MODERNIDADE
Bárbara Freitag
II - A TEORIA DA MODERNIDADE DE
HABERMAS
A Teoria da Modernidade é parte integrante da "Teoria da Ação Comunicativa" de
Habermas . Ao lado de um conceito de sociedade que associa a perspectiva subjetiva,
interna, "do mundo vivido", à perspectiva objetiva (externa ou sistêmica) e do resgate de
um conceito de racionalidade dialógica, a teoria da modernidade habermasiana procura
explicar a gênese da moderna sociedade ocidental, diagnosticar as suas patologias e
buscar soluções para sua correção. Neste sentido, a Teoria da Modernidade faz parte de
uma teoria evolutiva mais ampla, preocupada em reconstruir os processos de formação,
os princípios de organização e as crises pelas quais passam as formações societárias no
decorrer do tempo. (cfe. Habermas, 1973, p. 31)
Essa nova teoria evolutiva procura evitar as falhas das antigas teorias da evolução
(Comte, Spencer, Darwin), via de regra unilaterais e simplificadoras, compreendendo os
processos de transformação das formações societárias como processos coletivos de
aprendizagem. À semelhança da descentração que caracteriza, segundo Piaget, o
aprendizado da criança, as sociedades teriam a capacidade de "aprendizado", superando
princípios de organização mais simples e menos eficazes em favor de princípios novos
mais universais, mediante sucessivas descentrações. À superação do centramento no
princípio do parentesco permite assumir a perspectiva do Estado centralizado; a
descentração desse princípio torna possível assumir a perspectiva do mercado
(internacional), organizado em torno da relação trabalho e capital. A divisão local e
internacional do trabalho impõe novas descentrações, que resultam no planejamento dos
processos societários. A complexidade gerada, acompanhada de crescente
intransparência, impõe, por sua vez, à introdução de processos argumentativos
("discurso") mediante os quais podem ser encontrados os novos princípios de
estruturação universais ou universalizáveis das futuras sociedades. o que se constata em
conseqüência dessas permanentes descentrações é um aprendizado coletivo, que se
traduz em uma capacidade de manejo e direcionamento maior das formações societárias,
em maior diferenciação, e na autonomização de certas "esferas"ou subsistemas.
O tema polêmico da "Modernidade"com suas múltiplas facetas infiltrou-se no
pensamento de Habermas há mais de dez anos e não o "largou"mais, como confessa o
autor de o Discurso Filosófico da Modernidade, em sua Introdução (cfe. Habermas,
1985 a, p. 7).
4
III - A INTERPRETAÇÃO DA
MODERNIDADE: AS CRÍTICAS DE
HABERMAS
A Teoria da Modernidade de Habermas é o produto da análise crítica e do reexame
da obra de inúmeros intérpretes da própria Modernidade. A teoria exposta e sintetizada
no tópico anterior inspira-se nos trabalhos de sociólogos (Weber, Durkheim, Parsons),
psicólogos (Freud, Piaget, Mead), filósofos (Husserl, Heidagger, Wittgenstein),
lingüistas (Chomsky, Austin, Apel), e críticos de arte (Lukacs, Benjamin,Adorno) e
muitos outros. Em verdade, essa teoria inexiste enquanto teoria positiva, afirmativa. Ela
pode ser reconstruída à luz das críticas que Habermas faz aqueles pensadores que
tentaram formular uma teoria da modernidade com a qual ele discorda ou somente
concorda em parte.
Para sistematizar as críticas de Habermas parece-me útil discuti-las entre grandes
blocos: (a) a crítica feita à teorização sociológica sobre a modernidade, (b) a crítica
relacionada ao discurso filosófico da modernidade e (c) a crítica feita às teorias estéticas
que se debatem com a modernidade.
Trata-se, no caso, de uma visão panorâmica, sem o aprofundamento temático ou o
detalhamento que os autores estudados e criticados mereceriam. Por vezes, como no caso
da teoria crítica da Escola de Frankfurt, será difícil manter a diferenciação proposta em
"discurso sociológico", "discurso filosófico"e "discurso estético."
arte e moral. A modernidade ocorreu, segundo Weber, nessa forma típico ideal, i.é quase
caricatural, somente no Ocidente. Somente aqui, processos isolados de racionalização
(economia de mercado, contabilidade, burocratização, etc) coexistem simultaneamente e
no mesmo lugar em suas manifestações mais puras e extremas. Longe de "idealizar"a
modernidade (como Parsons parece fazê-lo), Weber "lamenta"certos traços da
modernidade, já que a "racionalização" do mundo levou ao seu "desencantamento".
Weber atribui a esse processo importância universal ("universalgeschichtliche
Bedeutung”), considerando-o inevitável e irreversível. Trata-se para Weber de uma
verdadeira força do destino. Mas há mais melancolia que otimismo nessa constatação.
Em conseqüência dessa racionalização houve uma "perda de significado e
aparência"como houve perda de liberdade no interior das sociedades modernas. O
homem moderno tem de aprender a viver entre "deuses"e "demônios", suportar o
"politeísmo"dos valores, buscar um sentido para a sua vida e para si próprio. Não há uma
concepção de mundo unificadora que possa fornecer esse sentido. Por outro lado, o
homem moderno vive em um sistema econômico que tole todas as liberdades e que se
transformou para todos em uma "armação de ferro"("stahlhartes Gehäuse"). (Weber, RS,
vol. 1p.)
Habermas concorda com o diagnóstico weberiano, no que concerne a
modernização da economia e do Estado, e apóia a tese sobre a racionalização e
autonomização das diferentes esferas de valor. Mas segundo Habermas, Weber comete
algumas simplificações, corta etapas certas e omite certas diferenciações necessárias para
diagnosticar corretamente a estrutura e dinâmica da sociedade moderna. Segundo
Habermas, Weber postula a racionalização e autonomização das três esferas de valor mas
acaba analisando somente a esfera ética. Além dessa redução da análise única "esfera
cultural" Weber comete uma segunda redução: interessa-se somente pelas formas de
institucionalização da ética do trabalho no interior do moderno sistema econômico.
Outros aspectos da racionalização e autonomização no interior da esfera ética são
omitidos ou abandonados. Dessa forma consegue ancorar o tipo ideal da ação
instrumental no sistema de trabalho, dando-lhe uma conotação valorativa da
"wertrationales Handeln". (cfe. Habermas, 1981, a, p. 276).
As teses do "desencantamento", da perda de sentido e de liberdade, decorrem desse
duplo reducionismo de concepções de mundo religiosas para a ética da convicção e
finalmente para ética de trabalho que resulta na institucionalização da ação instrumental
(como forma exteriorizada de uma conduta de vida metódica e regrada). Desse modo a
14
"A filosofia não pode mais entrar em cena como 'figura chave'
('Schlüsselattitüden') segundo o exprimiu Arnold Gehlen, como se ela conhecesse as
soluções para os enigmas do mundo. Mas esse fato não a dispensa de seu papel de
intérprete com relação ao mundo vivido (Lebenswelt). Ela continua a manter uma relação
íntima com o senso comum, está especialmente próxima daquilo que intuitivamente
sabemos de antemão, subvertendo, ao mesmo tempo, o chamado 'bom senso'. Estou
convencido de que os filósofos deveriam assumir sua opinião pública do papel de
intelectuais. Neste caso, porém, os filósofos precisam partilhar com outros especialistas,
a tarefa da reflexão e do esclarecimento (Aufklärung) de nossa cultura sobre si mesma.
"São palavras" de Habermas, em sua entrevista dada à Tempo Brasileiro em junho de
1989. (cfe. nº. 89, p. 18).
status quo ante dessas sociedades (de socialismo de estado) como a autêntica realização
dos ideais do marxismo. Os movimentos sociais recentes que resultaram (para Habermas)
dos potenciais explosivos da modernidade cultural (portanto do mundo vivido) nas
sociedades socialistas são interpretados pelos stalinistas como manifestações
contrarevolucionárias. Não aceitam o paralelo entre a ira das massas que resultou no
guilhotinamento de Louis XVI (no século XIII) e a indignação dos alemães orientais,
destruindo os arquivos da polícia secreta ("Stasi") 200 anos depois. É possivelmente a
posição das velhas lideranças partidárias dos PCs estabelecidos no bloco socialista).
Os leninistas, mais realistas diante dos fatos históricos, chegam a admitir o caráter
revolucionário dos eventos em questão, mas lhe atribuem o caráter de uma reforma
auto-corretiva, no interior do próprio processo revolucionário. Esta continua sendo
interpretada em termos ortodoxos, como seqüência de lutas de classe que
necessariamente desembocariam na sociedade comunista do futuro. Sua teoria societária
não tem condições de refletir movimentos sociais e inovações produzidas no interior e
em conseqüência do próprio socialismo de estado, até então em vigor nos países do leste.
É possivelmente a posição oficial defendida hoje por Mikail Gorbachov.
Os comunistas reformistas defendem a teoria da terceira via e criticam a
revolução bolchevista, desde os seus primórdios como sendo uma falsificação do
verdadeiro socialismo. Criticam a estatização e sugerem uma democratização dos
processos políticos que leve a uma socialização democrática dos meios de produção. Foi
o caminho intentado por Dubcek na primavera de Praga. Em muitos aspectos essa
posição converge com os intérpretes do marxismo ocidental.
Os socialistas de esquerda (Kaustsky, Gramsci, Althusser) pertencem aos
marxistas ocidentais que apesar de uma permanente auto-crítica, continuam fixados em
uma interpretação estritamente marxista dos processos societários. Nessa linha de
interpretação o conceito de praxis assume prioridade absoluta diante do conceito
reflexão ou comunicação. Ao trabalho industrial e ao desdobramento técnico das forças
produtivas é atribuído, de forma a priori, um papel inequivocamente emancipador. O
trabalho fabril é gerador de solidariedade. A divisão da sociedade em classes, típica da
modernidade, destrói porém a unidade ética da sociedade. O estado democrático é
desprezado como invenção burguesa para assegurar a intervenção do estado nas crises
periódicas do sistema capitalista internacional . Há uma tendência de atribuir ao
socialismo um valor histórico privilegiado, por sua suposta ética, concretizada na
sociedade comunista compreendida como totalidade (em si ética).
20
presente. Isso explica a sua incompetência diante de eventos históricos novos de alcance
universal que acabam de abalar o bloco socialista como um todo.
Para que a filosofia seja capaz de refletir a modernidade cultural terá de retornar
ao ponto de partida da modernidade histórica, refletindo os processos de modernização
ocorridos, à luz de seu projeto original.
vanguarda, torna-se necessária a teoria estética. Mas seu trabalho de interpretação não se
faz mais através da busca de conceitos coerentes e critérios de julgamento
intersubjetivos: ocorre quase que intuitivamente, numa linguagem hermética,
compreensível a poucos iniciados.
A teoria estética de Adorno acaba enclausurando-se, perdendo o contato com a
realidade que ela pretendia criticar e modificar. Corre o risco de ser elitista,
conservadora, irracionalista. É elitista na medida em que procura reservar o acesso à obra
de arte de vanguarda a uma minoria culta, fora do alcance das massas, que a
transformariam em indústria cultural. É conservadora, pois querendo a todo preço
preservar a autonomia da arte, evitando sua incorporação à vida, permanece fiel à noção
clássica da obra aurática e à visão burguesa da arte pela arte. E finalmente, parece
dispensar a razão na medida em que declara a obra de arte inacessível a uma
conceituação controlável pelo pensamento.
Habermas dá preferência à teoria estética de Benjamin. O autor da "Obra de arte
na era de sua reprodutibilidade técnica", apesar das ambivalências intrínsecas à sua obra
e apesar de sua afinidade com os teóricos de Frankfurt, parece fornecer um modelo
alternativo ao adorniano. A reprodutibilidade técnica da obra de arte longe de anular a
dimensão de protesto, a torna acessível a uma grande maioria. Os "best sellers", discos,
cassetes, vídeos, constituem avanços da técnica que divulgam a obra de arte, ativando seu
potencial crítico e inovador. A obra de arte, multiplicada e reproduzida, invade os
domicílios pelo consumo generalizado, mobiliza as consciências das massas. Benjamin,
na interpretação de Habermas, supera todos os tradicionalismos na medida em que não
lamenta a "perda da aura", mas a exalta. A idealização burguesa da obra de arte aurática,
constituía um impedimento para a compreensão de sua verdadeira dimensão crítica. A
perda da aura significa um desvendamento. A obra de arte, localizada pela desauratização
é apropriada pelas massas e facilita a mobilização revolucionária. Benjamin é
"progressista"na medida em que não se fecha ao cinema, à fotografia, ao "kitsch",
assimilando na esfera da arte novas técnicas de produção. A revolução das forças
produtivas não se dá unicamente no interior das fábricas, ela penetra na esfera da
produção artística, revolucionando a forma, o conteúdo e o conceito de obra de arte.
Finalmente, Benjamin deixa um espaço para a "comunicação", que Adorno já
considerava impossível. Habermas cita o texto benjaminiano: "existe uma esfera de
compreensão recíproca entre os homens, livre de violência , na medida em que é
completamente inacessível a ela: a esfera autêntica do entendimento mútuo, a
23
Habermas contestou o jovem Marcuse que postulava a dissolução da arte numa sociedade
justa e igualitária (Habermas, 1980) porque acredita na necessidade permanente de que
as instâncias críticas ( no mundo vivido) reflitam, reexaminem e questionem a validade
dos processos societários institucionalizados. A "verdadeira"modernidade começou para
Habermas quando as sociedades contemporâneas admitiram a institucionalização e
autonomização de esferas (modernidade cultural) que têm como função central a reflexão
crítica e o questionamento permanente, por parte de todos os membros da sociedade, dos
processos de transformação como um todo, e das instituições societárias (Estado,
economia, igreja, escola, etc.) em particular. Por essa razão, o "culto"da razão
comunicativa no interior do mundo vivido, passa a ser um componente estrutural
necessário para impedir a paralisação e consolidação de estruturas da modernidade com
características patológicas.
IV - O PROJETO NORMATIVO DA
MODERNIDADE
A Teoria da Modernidade de Habermas foi apresentada como uma teoria capaz de
explicar processos históricos ocorridos nos últimos três séculos e de diagnosticar as
estruturas e patologias das sociedades contemporâneas. Essa teoria ainda permitiu o
exame crítico de outras teorias da modernidade (sociológicas, filosóficas e estéticas).
Usando sua própria teoria como parâmetro, Habermas aponta as "falhas", lacunas ou
distorções, de tais teorias, que ora superdimensionam um (entre vários) aspectos da
modernização, como foi o caso da racionalização em Weber; nunca generalizam um
aspecto isolado para o todo societário, como foi o caso de Foucault que passou a
descobrir em todas os nichos do mundo vivido e do sistema societário o "Wille zur
Macht", efetivamente presente no sistema político; ora se recolhem, como no caso de
Adorno, a uma torre de marfim, no interior de um subsistema (a música, no interior da
esfera artística).
Em todos esses casos, a teoria da modernidade está preocupada em capturar um
fenômeno histórico: processos e estruturas que caracterizam as sociedades históricas
existentes. A própria modernidade foi "situada"no tempo e no espaço. A modernidade é
encarada como realidade, concretização histórica, singularidade. A teoria da
modernidade seria então uma teoria conjuntural, esforçada em capturar um momento
25
população habituada à liberdade. E última instância, vejo como uma das conquistas
duradouras da Revolução o surgimento de uma mentalidade nova.
A consciência revolucionária que surgiu na época é o berço de uma nova
mentalidade, que hoje é a força-motriz, não revolucionária, dos processos de
democratização. Uma consciência histórica que rompe com o tradicionalismo das
continuidades aceitas de modo cego e fatalístico, uma compreensão da prática política
sob o signo da auto-determinação e da auto-realização e, finalmente, a confiança em um
discurso público racional capaz de legitimar a dominação política, fazem parte dessa
mentalidade. São as características de um conceito intra-mundano do político, que nada
perdeu de sua atualidade." (Habermas, 1989,p.7/8).
BIBLIOGRAFIA