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03/12/2019 A responsabilização dos agentes da ditadura pelos crimes contra a humanidade nos países do Cone Sul – Observatório do Estad…

A responsabilização dos
agentes da ditadura pelos
crimes contra a
humanidade nos países do
Cone Sul
POR ODELA / EM 23 DE JULHO DE 2018

Mateus Henrique Weber (IPDMS)*

Fonte: Gabriel Pansardi Ruiz

Recentemente, duas condenações judiciais recolocaram o


debate sobre a responsabilização criminal dos agentes pela
prática de crimes contra a humanidade durante o período
das ditaduras militares que vigoraram nos países do Cone
Sul da América Latina.

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A primeira delas se refere à condenação pela Justiça chilena


de 9 militares da reserva do Exército, responsáveis pelo
sequestro e assassinato do artista popular Víctor Jara e do

ex-diretor penitenciário Littré Quiroga Carvajal, ocorrido em


15 de setembro de 1973, poucos dias após o golpe de
Estado que instalou no Chile uma das mais violenta
ditaduras militares, que perdurou até o ano de 1990 (EFE,
2018).

A segunda condenação foi proferida pela Corte


Interamericana de Direitos Humanos, no âmbito do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos da Organização dos
Estados Americanos (OEA), contra o Estado brasileiro no
“Caso Herzog”. O Brasil foi condenado pela ausência de
investigação, julgamento e potencial responsabilização dos
agentes pelos crimes de tortura e assassinato do jornalista
Vladimir Herzog, morto nas dependências do DOI-Codi de
São Paulo, em 25 de outubro de 1975 (LEAL, 2018). A família
de Herzog acionou a Corte internacional após terem
esgotado todas as instâncias nacionais do Poder Judiciário
brasileiro, sem que tivessem autorizada a investigação
criminal das circunstâncias da sua morte, sob o argumento
da vigência da Lei de Anistia e de que o caso já estaria
prescrito.

Desses dois casos, tanto o assassinato de Víctor Jara, como o


de Vladimir Herzog, se tornaram, de algum modo, símbolos
da violência dos regimes vigentes no Chile e no Brasil,
naquele período. Víctor Jara, reconhecido artista popular,
teria tido suas mãos esmagadas a coronhadas e obrigado a
tocar violão, enquanto esteve preso no Estádio Nacional, e
posteriormente executado e seu corpo atirado em via
pública. Enquanto que Vladimir Herzog, jornalista, diretor da
TV Cultura, após se apresentar espontaneamente para
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prestar esclarecimentos ao Exército, foi torturado, morto e


um suicídio foi forjado como a causa de sua morte, sendo
registrado em uma fotografia bastante conhecida.

Para além da coincidência de que ambos os processos


tiveram suas sentenças de condenação numa mesma
semana, o que nesse momento eles nos suscitam está
situado nas suas diferenças, mais que nas similitudes dos
casos. A questão que se coloca é porque o Brasil, na
contramão do que promove o Chile, a Argentina e o Uruguai,
não permite a responsabilização criminal dos agentes do
Estado pelas violações dos direitos humanos praticados
durante o período da ditadura militar?

A resposta certamente não se limita apenas a uma questão


jurídica, de vigência e interpretação da Lei de Anistia ou de
prescrição dos crimes, uma vez que tanto o Chile, como a
Argentina e o Uruguai tiveram leis de perdão semelhantes, e
essas não se tornaram óbices à responsabilização dos
agentes violadores. A situação perpassa, sobretudo, por uma
análise dos conflitos políticos que se estabelecem na
sociedade e nos aparelhos de Estado, resultado das
especificidades do modelo de regime autoritário que se
instalou no país a partir do golpe militar de 1964, como
também do processo de transição democrática que se
sucedeu no Brasil.

É desse ponto de vista que poderíamos explicar as


” dificuldades de implementação das medidas de
reparação que estão na esfera da chamada “justiça
de transição”, da qual a persecução e
responsabilização penal dos agentes é apenas uma
dessas medidas, e certamente a que encontra maior
resistência do Poder Judiciário, fundamental para a
sua efetivação.
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Os regimes militares que se estabeleceram nos países do


Cone Sul, no que se refere à utilização do aparato jurídico

para a repressão e consolidação desse regime, adotaram


diferentes padrões de “legalidade-autoritária” (PEREIRA,
2010), que se distinguem pelos graus variados de
“judicialização da repressão”.

Enquanto que em países como a Argentina, o Uruguai e o


Chile (com destaque aos anos iniciais do regime) não havia –
ou praticamente inexistia – um consenso e uma cooperação
entre as Forças Armadas e o Poder Judiciário, as ações de
repressão e os abusos tomaram a forma, em regra,
extrajudicial e sumária, e suas proporções foram de um
genocídio (QUEIROZ, 2012).

No Brasil, por sua vez, o regime buscou dar à repressão e


aos abusos uma maior aparência de legalidade. Os
opositores políticos eram enquadrados na Lei de Segurança
Nacional, e a Justiça Militar se tornou competente para
processar e julgá-los (o que não impediu que existissem
ações sumárias e extrajudiciais). Havia um consenso e
cooperação entre as Forças Armadas e o Poder Judiciário, de
modo que esse último se integrou ao regime e lhe atribuiu
legitimidade jurídica. Assim, a repressão tomou uma forma
mais institucional, e as violações coexistiram com um
aparente Estado de Direito.

Da mesma forma, as especificidades de cada país também


marcam os processos de abertura e transição democrática,
ao final dos regimes militares. Quanto mais
institucionalizado havia sido o regime, maior o grau de
consenso existente entre as forças políticas que conduziram
a transição e menor a ruptura que se estabeleceu na
d d i d áti (NINO 2006)
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mudança desse para um regime democrático (NINO, 2006).
Nessas condições, por consequência, se tornaram mais
difíceis as possibilidades de implementação das medidas de

justiça de transição, dentre as quais a persecução penal dos


agentes responsáveis pelas violações dos direitos humanos.

Em todos os processos de transição democrática do Cone


Sul, sejam as mais conciliadas ou as mais disruptivas, houve
uma negociação central que garantiu a impunidade e
impossibilitou o julgamento dos agentes de repressão no
contexto das violações sistemáticas. O resultado disso foram
as leis de perdão, que concederam anistia e/ou indulto, de
certa forma, tanto aos setores civis opositores ao regime,
como aos agentes repressivos (QUINALHA, 2012).

No entanto, Chile, Argentina e Uruguai, posteriormente, por


decisão de suas Cortes Supremas, tiveram suas leis de
perdão consideradas inconstitucionais ou inaplicáveis aos
crimes de lesa-humanidade praticados pelos agentes do
Estado, adotando os princípios do direito internacional, que
prevê a imprescritibilidade dos crimes de violação aos
direitos humanos, e a jurisprudência consolidada do Sistema
Interamericano de Direitos Humanos, que condena a
autoanistia (QUINALHA, 2012). Tal entendimento dos órgãos
máximos do Poder Judiciário desses países permitiu que
fossem processados e julgados aqueles agentes que
comandaram e operaram as prisões, torturas, sequestros,
desaparecimentos, execuções e toda sorte de arbítrios
praticados contra a população durante esse período.

No caso brasileiro, a transição democrática foi pactuada e


controlada pelos setores militares e as classes dominantes,
num cenário em que a crise econômica que se enfrentava
colocou em questão a legitimidade política do regime e
i i ã l t l A di t ã
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reanimou a organização e as lutas populares. A distensão
política ocorreu sob a insígnia de uma abertura “lenta,
gradual e segura”, contexto em que foi aprovada a Lei de
Anistia, em 1979. Naquele momento, a Anistia significou de

um lado a possibilidade de retorno dos exilados e a


libertação dos presos políticos, mas de outro, a legalização
da impunidade das violações praticadas pelo Estado,
historicamente fundado na violência genocida.

Passados mais de 30 anos da sua aprovação, somente em


2010 o Supremo Tribunal Federal (STF) se manifestou sobre
a Lei de Anistia, na ADPF nº 153, oportunidade em que
reafirmou a interpretação já atribuída à lei, de que o seu
pretenso sentido histórico é a de uma anistia “ampla, geral e
irrestrita” e, portanto, recíproca. Tal decisão denota a
posição política do Poder Judiciário sobre o assunto. Assim,
manteve a impossibilidade de julgamento e punição dos
agentes de Estado responsáveis pelas violações e
arbitrariedades, num exemplo contrário ao que fizeram as
Supremas Cortes dos demais países do Cone Sul.

Ainda no mesmo ano, posteriormente, o Brasil foi condenado


pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, em ação
que buscava a responsabilização dos crimes de lesa-
humanidade praticados pelo Estado, referentes ao
desaparecimento forçado de militantes e camponeses na
guerrilha do Araguaia. Foram diversas as medidas prescritas
nessa condenação ao Estado brasileiro, que o obrigavam a
reparar pelos crimes cometidos. Dentre elas a
inaplicabilidade da Lei de Anistia em face dos crimes contra
a humanidade, considerados imprescritíveis no direito
internacional (CIDH, 2010).

Essa condenação pressionou o Brasil à adoção de


” diversas ações na esfera da justiça de transição,
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ç j ç ç ,
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como a instalação da Comissão Nacional da Verdade,


que ocorreu em 2012, e endossou outras medidas
que já vinham sendo instituídas. Essas medidas,

entretanto, não ocorreram sem recuos e concessões,


em razão das posições polarizadas que se
estabeleceram na ocasião, e da grande resistência de
alguns setores da sociedade, com destaque às
Forças Armadas.

Em 2014, outra ação foi ingressada no STF, a ADPF nº 320,


buscando justamente uma nova interpretação da Lei de
Anistia que esteja em conformidade com os tratados e
convenções de direito internacional, a exemplo do que
ocorre no Chile e no Uruguai (a Argentina revogou suas leis
de perdão em 2003), e que considere a condenação do Brasil
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no “Caso
Guerrilha do Araguaia”. Essa ação ainda está pendente de
julgamento e o Brasil permanece em descumprimento à
condenação da Corte Interamericana.

E agora, na mais recente condenação do Estado brasileiro,


do caso Vladimir Herzog, a Corte Interamericana reiterou a
inaplicabilidade da anistia aos crimes contra a humanidade
(CIDH, 2018), reafirmando a necessidade de revisão da Lei
de Anistia, seja por sua revogação ou por uma mudança de
interpretação. O certo é que o Estado, e isso inclui o Poder
Judiciário, não deve criar óbices à persecução penal dos
agentes envolvidos nas violações de direitos humanos.

O julgamento da ADPF nº 320 pelo STF seria uma


oportunidade para readequar o entendimento sobre o
assunto e resgatar a justiça de transição, embora seja
improvável que isso ocorra no momento. O cenário de crise
política e instabilidade democrática que passa o Brasil, e que
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tem no Poder Judiciário e nas Forças Armadas importantes


protagonistas, tende a manter selado o pacto de
impunidade.

*Mateus Henrique Weber é advogado, bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais


pela UFRGS, pesquisador associado do Instituto de Pesquisa, Direitos e
Movimentos Sociais (IPDMS). mateusweber@hotmail.com   

Referências

CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso


Gomes Lund e outros. “Guerrilha do Araguaia” Vs. Brasil,
2010. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_219
_por.pdf>. Acesso em 15 jul. de 2018.

CIDH. Corte Interamericana de Direitos Humanos: Caso


Herzog e outros Vs. Brasil, 2018. Disponível em:
<http://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_353
_por.pdf>. Acesso em 15 jul. de 2018.

EFE, Agência. Brasil é condenado por não investigar


assassinato e tortura de Vladimir Herzog. El País, San José
(Costa Rica), 5 de jul. 2018. Brasil. Disponível em:
<https://brasil.elpais.com/brasil/2018/07/04/politica/1530
734238_207748.htm>. Acesso em: 14 jul. 2018.

LEAL, Javier Sáez. Ocho exmilitares chilenos condenados a


18 años de cárcel por el asesinato de Victor Jara en 1973. El
País, Santiago de Chile, 4 de jul. 2018. Internacional.
Disponível em:
<https://elpais.com/internacional/2018/07/04/america/15
30657784_011851.html>. Acesso em: 14 jul. 2018.

NINO, Carlos Santiago. Juicio al mal absoluto. Buenos Aires:


Ariel 2006
https://www.ufrgs.br/odela/2018/07/23/a-responsabilizacao-dos-agentes-da-ditadura-pelos-crimes-contra-a-humanidade-nos-paises-do-cone-sul/ 8/9
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Ariel, 2006.

PEREIRA, Anthony W. Ditadura e repressão – o autoritarismo


e o Estado de Direito no Brasil, no Chile e na Argentina. São

Paulo: Paz e Terra, 2010.

QUEIROZ,  Silvia Maria Brandão.  Esquecimento ou verdade?


Perdão ou justiça? A justiça de transição no Brasil. In:
ACESSO – Cidadania e Direitos Humanos (Org.). Justiça de
Transição para uma transição da justiça. Porto Alegre:
Avante, 2012. p. 227-250.

QUINALHA,  Renan  Honório.  Supremas Cortes e Justiça de


Transição: um paralelo entre Argentina, Brasil e Uruguai. In:
ACESSO – Cidadania e Direitos Humanos (Org.). Justiça de
Transição para uma transição da justiça. Porto Alegre:
Avante, 2012. p. 165-197.

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