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1509-1564
JOÃO CALVINO ERA ASSIM
- Capítulo 1 -
O Primeiro Lar De Calvino
Com as mãos a proteger os olhos, a mulher e o menino sairam da meia-luz da catedral para a praça
ensolarada onde o burburinho da feira contrastava com a solidão do templo.
Como sempre, a praça estava apinhada de gente e animais. Os moleiros já, começavam a cutucar seus
asnos para que se encaminhassem de volta a roca. Voltariam com seus lombos vazios das cargas de fubá
vendidas na feira. Homens a cavalo matraqueavam sobre o calçamento irregular. Aqui e ali, com vestes
pretas e marrons, padres e monges iam a caminho.
A mulher quase nada via disso tudo. Seus olhos ainda estavam embaciados pela emoção das suas
confissões. Seus lábios mal haviam cessado suas preces aos santos. Consideravam-na mulher piedosa. Diziam
até que ela era.a tão piedosa quanto bela, o que significava ser piedosa de verdade. Mas o menino, embora
meio escondido pelos largos panos do xale materno, via tudo com seus pequenos mas matreiros olhos.
Pisando entre fardos e bruacas e esbarrando entre cotovelos e bichos esparramados pelo centro da cidade,
mãe e filho atravessam a praça e chegam em casa. Entram de mansinho, porquanto o lar era um escritório
também. Atras dos vidros esverdeados das janelas, o chefe da casa, sentado a sua mesa, cuidava dos
negócios da igreja. Gerard Calvin era advogado dos padres e cônegos. Era secretário do próprio bispo. Os
homens que trabalhavam para a igreja estavam sempre entrando e saindo por essa porta. Eles questionavam
e gritavam nos seus ouvidos. Maquinavam e faziam intrigas para melhorar a situação de cada qual. E, na
hora do aperto, precisavam do seu advogado para ajudá-los. Gerard Calvin trabalhava infatigavelmente na
sua importante tarefa a favor dos homens da igreja. Era um homem astuto, respeitado por todos. Era sagaz,
também, no tratamento dos seus próprios interesses.
O advogado da igreja estava galgando posição no seu pequeno mundo. Vinha fazendo assim desde
o dia em que deixara a vila do seu pai e largara o oficio paterno, Por que ser tanoeiro, fabricante de barris e
pipas, quando se poderia manejar uma pena em vez de um martelo? O filho do tanoeiro instalara-se, pois,
em Noyon, cidade francesa amuralhada, a meia hora da casa de seu pai. Diziam que Gerard Calvin tivera
sorte ao casar-se com Jeanne le Franc, bela filha de um rico hoteleiro aposentado. O primeiro filho chamava-
se Charles.
Os dois seguintes morreram na infância. Então viera João, o menino dos olhos vivos, nascido as treze
horas e vinte e sete minutos do dia 10 de julho de 1509. Depois dele, nascera mais um menino, chamado
Antoine, Jeanne le Franc Calvin falecera quando seu filho João tinha apenas três anos de idade. Uma
madrasta veio residir no lar dos três meninos, acrescentando duas filhas a família.
Embora raras vezes mencionasse os primeiros anos da sua vida, João, anos mais tarde, descreveu uma
breve peregrinação que ele havia feito com sua mãe. Por duas horas caminharam juntos pelo vale até
chegarem ao santuário de Sant'Ana, segundo diziam, avo terrena do Senhor. Erguido por sua mãe, o menino
João beijara a relíquia preciosa da caveira de Sant'Ana que estava exposta num receptáculo dourado, cercado
de velas e flores e das faces reverentes de outros romeiros. Diziam que esse pedaço de osso era uma relíquia
toda especial. O sacrário, por conseguinte, estava sempre repleto. Podia-se, no entanto, encontrar relíquias em
Noyon também, todas adoradas como se fossem verdadeiras.
Naqueles dias o povo se dispunha a crer em qualquer coisa. A igreja dizia que havia alguns cabelos de
João Batista, um dente do Senhor, um pedaço de maná do Velho Testamento, e algumas migalhas que
sobraram da primeira multiplicação dos pães. Havia na catedral um fragmento da coroa de espinhos. Havia,
também, relíquias de menor importância, tais como os restos de um tal Santo Elói. Os monges do mosteiro
e os padres da catedral sempre discutiam sobre a verdadeira localização dos ossos daquele santo: se no
mosteiro ou na catedral. Era uma discussão cerrada e interminável. Nem mesmo o parlamento francês
conseguiu solucionar o problema.
Durante quatorze anos o menino João morou em Noyon, na província francesa de Picardy. Dez mil
pessoas habitavam dentro dos muros da velha cidade. A cidade já era antiga naquela época. Quinhentos anos
após Cristo, Noyon já era sede de bispado. Fora aqui que o grande Charlemagne foi coroado rei no ano 768.
Uns quinhentos anos mais tarde, a grandiosa catedral foi construída, pedra sobre pedra, até que a sua
imponente estrutura dominava toda a paisagem. Noyon estava sobrecarregada de padres, monges, cônegos,
capelães, e de toda espécie de empregados eclesiásticos. Cada qual estava seguro dos seus direitos pessoais e
pugnava pela sua promoção. O poderoso bispo, um fidalgo da nobre família de Hangest, governava a todos.
A catedral era o centro da vida citadina. Além dela, havia uma
abundância de mosteiros, conventos, igrejas e capelas, cada qual com
seu sino. E cada sino badalava freqüentemente. Dizia-se que em
Noyon não se podia falar três palavras sem a interrupção de um sino.
O badalar dos sinos ecoava pelo vale. Nos dias de festa, o côro
metálico alcançava os ouvidos dos barqueiros que desciam o Rio
Oise, com suas barcaças, em direção ao mar.
A distancia, os montes purpurinos, que apanhavam o pôr-do-
sol, abrigavam, também, as notas soltas que conseguiam chegar até
lá. Foi nesse pequeno mundo amuralhado, de santuários e relíquias,
de procissões e festas, de círios, sinos e imagens, que cresceu o
segundo filho do advogado da igreja. Em tudo ele participava com
devoção, lembrando os olhos embaciados de sua mãe. Do seu
tamborete, no canto da casa, também ouvia as vozes que vinham da
escrivaninha do seu pai. Um clérigo queria o fruto de mais vinhas.
Outro desejava o grão de maiores campos. Estavam sempre
querendo mais coisas para si mesmos. Queriam ficar mais ricos, mais
admirados, mais acomodados. Talvez em sua cama, a, noite, João
imaginasse com os pensamentos de rapaz:
O Senhor, cuja imagem em tamanho natural estava pendurado
naquela cruz na catedral, sangrando, trajando somente um pano nos
seus lombos e uma coroa de espinhos - na terra Ele não possuía
coisas. Estaria Ele contente com estes homens que trabalhavam para
Ele na igreja? Estaria Ele alegre vendo-os defraudando, ambicionando
posições mais altas, vestindo trajes esplendidos, preocupados
A casa de Noyon, onde nasceu Calvino
unicamente consigo mesmos? Que estaria o Senhor achando de tudo
isso?
- Capítulo 2 -
Um Advogado Astuto
Gerard Calvin estava arrumando a vida dos seus filhos. Ele precisava de dinheiro para a educação deles,
a fim de prepará-los para trabalhar na igreja. Aproveitara-se, portanto, de um costume em voga na época e
arrolara os rapazes como assalariados da igreja. Naqueles dias um menino podia ser nomeado para um cargo
eclesiástico, receber o salário, pagar uma fração do salário a um padre adulto que fizesse o trabalho, e então
ficar com os lucros para si mesmo. Era necessário conhecer pessoas bem postas para levar tais planos a bom
termo. Era contra a lei, mas já ninguém dava bolas para esses regulamentos estéreis. Pois o exemplo vinha
de cima.
Havia um papa, Benoit IX, com somente doze anos de idade. E um arcebispo de Rheims que fôra
investido na sua alta função aos cinco anos de idade. E um bispo de Metz que mal havia completado quatro
anos de vida.
O próprio bispo de Noyon, Charles de Hangest, aos quinze anos de idade já tinha recebido do papa
toda a sorte de benefícios juntamente com as rendas que deles provinham. O povo não mais se espantava
com essas barganhas pecaminosas dentro da igreja.
Gerard Calvin conhecia o pessoal bem postado de Noyon. Ele aguardava com paciência umas
vaguinhas para seus filhos. Não tardou que Charles, o filho mais velho, se arrumasse como capelão de uma
pequena capela quando mal tinha alcançado a idade mínima para cantar no coro da catedral. Três anos mais
tarde, em maio de 1521, o jovem João recebeu o seu primeiro beneficio. Foi nomeado para uma das capelas
de La Gesine, recebendo anualmente, como compensação, três medidas de milho de uma cidade e, da outra,
a colheita de vinte trigais.
O pai pagava um padre para fazer o trabalho das capelanias e guardava os lucros para seus filhos. Era
um negócio da China. Com doze anos de idade, João solenemente assinou os juramentos da capelania.
Recebeu a tonsura logo após, um corte de cabelo especial que deixava rapada a coroa da cabeça do
clérigo.
O novo capelão, com os seus trigais e a sua cabeça rapada, era agora um noviço. E tinha dinheiro para
estudar. Caso houvesse uma brecha, era possível trocar-se um benefício por outro mais rendoso. Foi o que
João fez com a idade de dezoito anos. Estava estudando em Paris na época, quando trocou de capelanias,
passando a primeira a Antoine, seu irmão mais moço. Novamente, dali a dois anos, João faria nova troca,
tornando-se capelão da vizinha cidade de Pont I'Evêque onde seu avô Calvin morava.
Os rapazes da família de Hangest, sobrinhos do bispo, eram bons amigos de João. Gostavam do filho
do advogado da igreja embora ele não pertencesse a classe aristocrática deles. João brincava na mansão
deles, e aprendeu a andar a cavalo. Estudou com eles sob a direção de um tutor particular. Mais tarde
acompanhou-os ao College des Capettes, um educandário para meninos, em Noyon, assim chamado por
causa dos capuzes usados pelos alunos.
Quando a escola dos capuzes não tinha mais a oferecer, os rapazes de Hangest se prepararam para
continuar os estudos em Paris. A peste voltara para aterrorizar o povo de Noyon, o que era outro motivo
para sair da cidade. Perguntaram a João se gostaria de acompanhá-los, o que o entusiasmou sobremaneira.
Seu pai aproveitou a ocasião com alacridade. Os cônegos da catedral se reuniram e decidiram, com certa
relutância, que o ordenado da capelania de João não 1he seria cortado ao deixar Noyon.
No verão de I523, os rapazes de Hangest e o filho do advogado da igreja saíam a cavalo da cidade
que os vira nascer, agora infestada pela peste. Com grande expectativa, galopavam em direção a grande
cidade de Paris, noventa quilômetros a sudoeste de Noyon. João Calvino, com quatorze anos de idade,
entrava num mundo novo de pessoas, lugares e idéias. Ele não voltaria mais a Noyon para residir.
- Capítulo 3 -
Roma, Wittemberg, Paris
O mundo fora de Noyon não estava parado. Várias coisas de grande alcance estavam acontecendo.
Leão X estava sentado no trono papal em Roma, vestindo a tríplice coroa do seu elevado oficio. Leão
X era da família de Medici, o mais grandioso dos papas, o homem a quem se atribui a frase: "Que bom
negócio tem sido para nós essa fábula de Cristo." Tenha assim falado ou não, a verdade é que a sua posição
rendeu- lhe imensa fortuna. As suas riquezas eram incalculáveis, e fabulosos os seus tesouros artísticos.
Leão X estava também atarefado na construção da basílica de São Pedro em Roma, Mas o dinheiro
não estava entrando como convinha, razão pela qual o papa inventou um novo método de aumentar a renda
da igreja. Quem pagasse alguma coisa para a construção da basílica de São Pedro receberia uma indulgência,
um certificado de papel que declarava o perdão dos pecados do contribuinte, Tal declaração era assinada pelo
magnificente Leão X. Essas indulgências seriam eficazes, também, para os pecados de finados parentes que
esperavam no purgatório. Em 1513, quando João Calvino tinha completado quatro anos de idade, o monge
Tetzel começara suas viagens pelos estados germânicos com a finalidade de vender indulgências.
Fora a vinda deste monge Tetzel que agitara a vida de outro monge, um doutor em teologia que
ensinava na Universidade de Wittenberg. Martinho Lutero começara a ensinar ali um ano antes do
nascimento de João Calvino. Em 1517, quando o menino de Noyon tinha oito anos de idade, o professor de
Wittenberg pregava as suas noventa e cinco teses na porta da Igreja do Castelo. Lutero proclamava que o
perdão de pecados não podia ser comprado com o dinheiro das indulgencias. O perdão é gratuito. É um
presente de Deus, não do papa ou da igreja. O som do martelo monástico em Wittenberg foi o sinal para o
inicio de uma reforma para a qual muitos já estavam prontos e aguardando.
Nas montanhas da Suíça, Ulrich Zwingli estava pronto, O monge Sansão de Milão começara a vender
indulgências ao povo suíço. Mas de tal força foi a pregação de Zwingli que Sansão não conseguiu licença para
entrar na cidade de Zurich. A cidade agradecida convidou Zwingli para ser o pároco da igreja Grossmünster,
onde iniciou seu novo trabalho com uma série de sermões sobre a palavra de Deus. Zwingli pregava as
Escrituras que os homens não ouviam há séculos.
E os homens não tinham visto as Escrituras tampouco. Por isso foi um acontecimento notável o
aparecimento em Basel, em 1516, de uma nova tradução grega do Novo Testamento pelo extraordinário
sábio holandês, Erasmus. Era, sem dúvida, o redescobrimento de um livro perdido,
Na França, com seus quinze milhões de habitantes e sua extensa faixa litorânea, propicia para o
comércio, as coisas estavam também acontecendo. A Reforma aqui começou com um magnífico professor da
melhor universidade da Europa. O velho Jacques Lefèvre ensinava na Sorbonne, na cidade de Paris. Jacques
Lefèvre era erudito, natural da província de Picardy, viajado pela África e Ásia. Tinha voltado para lecionar e
escrever em Paris onde, com a idade de setenta anos, redescobriu as verdades da Bíblia.
No ano de 1512, quando Lutero,
ainda desconhecido, buscava paz para a
sua alma, quando João Calvino, com três
anos de idade, acompanhava sua mãe nas
suas rondas piedosas, Lefèvre publicou sua
tradução latina das epístolas do apóstolo
Paulo, juntamente com um comentário.
"É Deus quem salva pela graça somente",
disse o velho mestre.
Entre os alunos de Lefèvre havia um
moço troncudo, com barba ruiva. Vindo
de uma vila nas montanhas, o aluno era
ativo, destemido, vivo e, no seu modo de
falar, vigoroso. Estava a procura também.
"Meu filho", disse-lhe o velho professor
um ia, "é pela graça, somente pela graça. "
Quase que instantaneamente, Guilherme