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Curso Online de Filosofia

Olavo de Carvalho
Aula 83
13 de novembro de 2010

[versão provisória]
Para uso exclusivo dos alunos do Curso Online de Filosofia.
O texto desta transcrição não foi revisto ou corrigido pelo autor.
Por favor não cite nem divulgue este material.

[Transcrição não revisada]


Boa tarde a todos, sejam bem-vindos.
Na aula passada eu anunciei que ia dar uma aula inteira de respostas a perguntas, mas acho que eu
vou fazer uma outra coisa que me parece mais urgente. Vou dedicar a segunda parte a responder as
perguntas, mas nesta primeira eu vou fazer uma outra coisa. É a seguinte: eu queria recordar algumas
das condições fundamentais da vida intelectual. E vou fazer isto pela seguinte razão: o método que
eu adotei neste curso, como também nos cursos que eu dei anteriormente ele tem evidentemente um
temário organizado anteriormente. Um conjunto de temas e problemas que nós temos que percorrer
até o fim do curso. Porém, esse negócio é móvel por que a gente está seguindo uma certa direção,
mas eu me oriento muito pelo feedback, pelas perguntas que vem dos alunos e pelas atitudes que eu
vejo tomarem na vida, às vezes, um ou outro escrever na internet, ou por aquilo que fico sabendo de
uma maneira ou de outra. E este feedback muitas vezes me faz mudar o itinerário, abrindo longos
parênteses que podem se prolongar por muitos meses. No fim, sempre acabamos retomando o fim da
meada e vendo que todas estas coisas estão interligadas. Em nenhum momento a ordem do curso foi
totalmente perdida ou anarquizada, ao contrário. Esses parênteses são como que notas de rodapé. Se
vocês leram o Jardim das Aflições vocês viram que ali tem algumas notas de rodapé que são enormes,
às vezes de uma página inteira, onde você abre para todo um novo campo de investigações que poderia
se desenvolver paralelamente ao livro e que, só não é desenvolvido ali por falta de espaço e a mesma
coisa acontece aqui com esses parênteses que abrem para temas que são, por assim dizer, filiados ao
tema central que nós estamos trabalhando e que não poderão evidentemente ser desenvolvidos
integralmente aqui, mas que às vezes requerem uma aula, duas ou três, até chegar a formulá-la de
maneira suficiente para que possamos voltar então à linha central. Nós estávamos nas semanas
anteriores estudando uma série de temas de teoria do conhecimento evidentemente. Nestes temas nós
tirávamos uma espécie de contra-inspiração do livro do Dardo Scavino, La Filosofia Actual. Era uma
espécie de mostruário de tudo o que não se deve fazer. Eu parei quando chegamos no capítulo
referente a Alain Badiou, e parei por um motivo que não tem nada a ver com isso que estou falando,
que é o fato de que a exposição que ele fez do Alain Badiou não me pareceu suficiente e eu vi que
teria que ler o próprio Alain Badiou, um autor que eu conheço muito superficialmente. Me aparece
ter coisas muito interessantes na filosofia do Badiou embora ele seguindo esta linha geral
desconstrucionista, que nós não podemos aceitar de maneira alguma. Tinha várias idéias interessantes
ali. E eu falei: isso aqui merece um exame mais aprofundado e enquanto eu não terminar de ler o
Alain Badiou não o comentarei aqui. Mas, como eu estava dizendo, nós temos uma linha mas esta
linha vai indo por uma reta e depois toma uma direção lateral e dá umas circunvoluções e no fim as
pessoas acabam percebendo todas as relações que uma coisa tem com a outra. E percebendo que não
houve extravio, não nos afastamos do assunto em nenhum momento. Na pior das hipóteses nós
voltamos em algum tema anterior já tratado ou um tema que foi dado como pressuposto. No caso
aqui, em função de algumas cartas que eu recebi e de perguntas que são feitas aqui, e coisas que andei
lendo na internet escritas por alunos ou ex-alunos, eu achei que era melhor lembrar vocês, elemento
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fundamental da vida intelectual que está dado no capítulo I e II do livro do Padre Sertillanges. Deste
livro se origina todo o meu esforço pedagógico. Este livro foi decisivo para a minha própria vida e
espero que seja decisivo para a vida de muitas pessoas. O fato é que vocês precisam ter consciência
de que a vida intelectual no Brasil não é normal de maneira alguma. Ela é uma coisa doente, mórbida,
onde todas as formas de falsidade existencial são cultivadas de uma maneira meticulosa e quase
obsessiva. Vocês vejam que a semana passada o maior prêmio literário nacional que é o Prêmio Jabuti
foi dado a Chico Buarque de Holanda e Maria Rita Kehl. Em função disso, fiquei sabendo agora, o
editor Sérgio Machado da Editora Record tomou uma atitude muito corajosa e disse que se o critério
desse prêmio não for modificado urgentemente, a Editora dele, que é a maior do país, não vai mais
colaborar com o prêmio. Uma atitude muito certa, mas o fato é que a atribuição desse prêmio a duas
pessoas absolutamente desqualificadas sob todos os aspectos, não reflete só uma distorção política
comum. Parece que é isso que o Sérgio Machado tenha entendido. De certo modo ele tem razão,
existe uma distorção política. Mas, existem também o fato de que toda a camada letrada brasileira se
tornou incapaz de julgar as obras literárias, culturais, por falta de, não posso dizer um critério, pois
critério é um conjunto de regras mais ou menos estabelecidas, mas por falta de uma certa sensitividade
que se desenvolve quando existe num país um diálogo cultural intenso, um intercâmbio, uma
colaboração e até um confronto. Esse confronto, essa colaboração, essa troca de informações não
existe mais há quase trinta anos. As pessoas hoje — talvez os mais jovens tenham até uma certa
dificuldade de entender o que eu estou falando... por isso eu recomendo a leitura das obras de trinta,
quarenta anos atrás, para você verem do que eu estou falando. As idéias circulavam e se fecundavam
mutuamente naquela época, o que é o normal em qualquer país. Isso não acontece mais no Brasil há
muito tempo. O único tipo de diálogo que continua existindo no Brasil foi o diálogo interno da
esquerda política através de órgãos como o suplemento Mais da Folha de São Paulo e vários outros,
várias revistas. Eram um grupo de esquerda discutindo as suas próprias idéias, seus próprios
problemas internos, a sua temática, no seu vocabulário, dentro da sua concepção do mundo, dentro
do seu imaginário e sem lugar para mais ninguém, e onde praticamente não havia muito o que trocar.
É uma inter-confirmação, um dizia uma coisa, outro dizia exatamente a mesma coisa, com um ligeira
diferença. Enfim, eu assisti esse fenômeno muito estranho, por que nos anos sessenta eu acompanhei
o debate interno da esquerda brasileira, logo depois do golpe de 64. Houve uma espécie de
efervescência de discussões na esquerda. Discussões para diagnosticar o que tinha acontecido e essa
discussão se prolongou muito além do tema imediato do golpe e da derrota de esquerda e se
aprofundou em diagnósticos de maior alcance sobre a estrutura da sociedade brasileira. Por exemplo,
uma discussão séria que aconteceu é que até então o partido comunista tinha seguido uma estratégia
de frente ampla, mediante uma aliança com o que ele chamava de burguesia nacional. Burguesia
nacional seria parte do empresariado brasileiro, cujos interesses o colocavam em antagonismo com o
concorrente estrangeiro. Então seria uma burguesia potencialmente nacionalista. Logo depois de 64
surge a discussão se esta burguesia existia mesmo, não que não existissem burgueses que fossem
assim, claro que existiam. Eu mesmo tive a experiência de trabalhar para um desses. Mas se existiam
como classe e se portanto uma estratégia revolucionária poderia se basear em uma aliança com esta
classe. Esta discussão se prolongava numa outra mais profunda ainda pra saber se a economia
brasileira do período colonial tinha sido feudal ou não. Havia uma tese, a de Caio Prado Junior, de
que nunca houve feudalismo no Brasil e que a agricultura do período colonial já se organizava em
bases capitalistas. Esta discussão se prolonga até hoje. Muitos anos depois saiu o livro do Jacob
Gorender, O Escravismo Colonial, que eu considero um livro notável, a melhor análise desse período.
O pessoal comunista não tinha muita dificuldade de aprofundar a análise dos problemas, desde o
ponto de vista marxista ou similar. Uma coisa que ficava clara é que, por um lado havia discussão
estratégica e sociológica da esquerda, e por outro lado havia a cultura geral do país. Eram duas coisas
diferentes, uma participava da outra, mas era somente um aspecto. Eu vi que esta cultura externa da
esquerda comeu o restante da cultura e sobrou só isso. Na medida em que sobrou só isto, também
aconteceu que o nível da própria conversa interna da esquerda baixou muito. As influências que
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chegaram depois do exterior foram todas elas de ordem corruptora. Todas tinham influência
desestruturalista e desconstrucionista, introduziu neste meio esquerdista uma espécie de
confusionismo liberal onde tudo é permitido, qualquer bobagem é permitida. Na medida em que esta
escola não reconhece a existência de realidade fora do discurso, só o que interessa é o discurso, que
assume — como nós vimos no estudo que fizemos do Dardo Scavino — ele assume uma posição
quase imperialista, ele engole tudo e no fim só existe um confronto entre discursos. Não existe mais
o problema da veracidade, da adequação do discurso à realidade, não existe mais uma realidade pela
qual conferir o discurso. Então, por outro lado, houve também a influência dessa corrente neo-
pragmatista com Richard Rorty que dizia que não existindo arbitragem possível entre as várias
divergências, só o que resta é a gente tentar influenciar os outros para que falem como nós. Ou seja,
tentar passar para o outro os nossos cacoetes de linguagem, na medida em que falando como nós, eles
estarão sob o nosso domínio, sob a nossa direção. Todas essas influências novas que entraram no
Brasil a partir dos anos 70, foram enormemente corruptoras para o pessoal da esquerda. Nem mesmo
dentro da esquerda você tem um diálogo hoje que possa se comparar ao que tinha nos anos 60. Por
um lado a discussão interna de um grupo político ocupou todo o espaço da cultura nacional, e não
tem mais nada fora disso. Em todos os domínios que você possa procurar, no direito, na sociologia,
na ciência política, na literatura, etc., praticamente só se fala disso. E existe uma espécie de
florescimento marginal de idéias liberais que também não ultrapassam a esfera da mera propaganda,
da mera pregação liberal, sem nenhum esforço sério de diagnosticar a situação existente. Os únicos
esforços sérios que eu vi, que me parecem fracassados de certa maneira, foram os do grupo do
Antonio Paim, sobretudo com Ricardo Velez Rodrigues, que por coincidência não é brasileiro, é um
venezuelano. Ele aprofundava o estudo do Estado brasileiro atual, para encontrar as suas raízes na
contra-reforma. Eu acho que é errada a tese, mas de qualquer maneira é um esforço considerável e no
lado conservador é o único equivalente que eu encontro nas inúmeras discussões que havia no campo
esquerdista. Ou seja, o único esforço de diagnosticar profundamente a situação brasileira e suas raízes
históricas foi esse que foi empreendido pela turminha do Antonio Paim. Mas na maior parte o que os
liberais conservadores escreviam era mera propaganda de idéias liberais, não passa disso. Estava no
nível do Rodrigo Constantino. Então, eu fui assistindo todo esse fenômeno e ficando evidentemente
cada vez mais assustado com o que estava se passando. E hoje, quando eu tenha a oportunidade de
reunir alguns milhares de alunos para tentar dar a eles uma formação mais sólida que permita tentar
criar uma cultura brasileira superior melhor a daqui dez ou vinte anos, num prazo de dez ou vinte
anos, não digo que vocês tenham que esperar para fazer as coisas só daqui vinte anos, eu vejo que às
vezes é difícil até para vocês transmitir o que está acontecendo. Por que vocês não tiveram informação
desse período anterior, vocês não idéia do que é uma alta cultura normal. Tudo aquilo que seria de se
esperar em uma alta cultura normal se tornou no Brasil uma coisa inexistente, inacessível,
dificilmente imaginável. Por outro lado, não sei se vocês se lembram de um artigo que eu publiquei
meses atrás, chamado Uma lição de Durkheim. Ele dizia que a quantidade de anormalidade que uma
sociedade pode aceitar é limitada. Quando uma situação anormal se prolonga ela se torna o novo
padrão de normalidade e a sociedade inteira reajusta então o seu foco e os seus esquemas para não
perceber mais aquela anormalidade, mas ao contrário, para julgar tudo a partir desse novo padrão de
normalidade. Eu vejo a rapidez com que as pessoas se adaptam a isto é uma coisa impressionante.
Sobretudo quando o contato que você teve com a situação anterior foi breve, ou nulo, e toda a sua
vida já transcorre dentro do novo padrão. Então, só pessoas que tem um gênio, uma independência
formidável é que conseguem enxergar um pouco além disso. A maioria, inclusive as pessoas mais
inteligentes, se adaptam a isso, mesmo quando está revoltada, mesmo quando odeia isso. Você odiar
não adianta quando você acredita que aquela coisa é a realidade, quando você não percebe o
coeficiente de ilusão, de sonho, de paranóia que está sendo imposto a você. Às vezes você está
vivendo dentro de uma ilusão mórbida mesmo, e odeia aquilo, mas você acredita que aquilo é a
realidade e que tudo o que você está pensando, desejando, aspirando, é apenas um sonho. Quando na
verdade é o contrário, você está percebendo algo da realidade, e a realidade que você percebe bate
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contra um sonho coletivo, que nem é tão coletivo assim, é um sonho grupal, é a ilusão de um grupo.
Se você somar tudo, dentro um país de cento e oitenta milhões de habitantes, não passa de cinco a
dez mil pessoas, que são a classe falante, que são os formadores de opinião esquerdista que dominam
tevê, jornais, escolas, etc. O primeiro elemento da obediência é a crença. Se você acredita que tal
coisa é a situação real, você já está de certo modo obedecendo. Se você acredita que uma coisa se
tornou realidade só por que todo mundo diz que é assim, e se você acredita que esta confluência de
discursos concordantes cria uma realidade, então de certo modo você já cedeu e já está obedecendo,
por mais que você odeie. Aquilo que você acredita ser a realidade tem uma função estruturante dentro
da sua personalidade. Você constrói toda a sua personalidade em cima de uma base que você acredita
ser a realidade, ainda que odeie, rejeite, está realidade. Às vezes eu vejo que a reforma que as pessoas
desejariam fazer em si para poderem se dedicar a atividades intelectuais superiores, não vai fundo
como deveria ir. O estado de dependência mental em relação a uma situação degradada, ele continua.
O que faz com que as pessoas estejam sempre deprimidas e no fim vejam as coisas pior do que elas
estão agora. Atribuem demasiada realidade, demasiada autoridade, demasiada força, a algo que é
apenas uma espécie de blefe grupal coletivo. Por exemplo, a gente vê a versão política disso nas
últimas eleições, onde as pessoas se sentiram esmagadas pela vitória da Dilma Roussef, sem levar em
conta que somando os 44% de votos do Serra, mais os 23% de abstenção, mais os 7 ou 8% de votos
brancos e nulos, a mulher foi eleita com 30% dos votos. Num país onde o voto é obrigatório, em que
todas as pessoas adultas são eleitores, o total que ela teve foi 30%, o que o PT sempre teve durante a
sua história. Passou a ter mais durante o período Lula, que foi um upgrade momentâneo, mas este
upgrade já acabou. Isso significa que você não está numa sociedade petista, você está numa situação
eleitoral dominada por este partido, mas a sociedade brasileira não é petista. O discurso petista não
reflete uma realidade, ele reflete um blefe, um blefe propagandista apenas. Sob este ponto de vista, a
situação brasileira não é tão desesperada assim. O fato é que o poder que este esquema petista desfruta
hoje, é completamente desproporcional com a estreiteza da sua base eleitoral. O que significa que
todos estão vivendo dentro de uma ilusão. Os próprios líderes petistas sabem que isto é uma ilusão,
mas eles não querem que ninguém perceba que é uma ilusão. Eu vejo por muitas cartas que eu recebo,
e-mails, um tom assim de desesperança, de tristeza. Sobretudo, um desencanto com o próprio país.
Isto é justificado até certo ponto, desde que você não internalize isto e se torne um elemento da sua
personalidade. O problema com a personalidade é que ela não nasce pronta, tem que passar por uma
série de mutações evolutivas antes de ela alcançar um patamar onde alguma atividade intelectual seja
possível. E isto nos remete de volta ao velho problema das camadas da personalidade que é uma
coisa que eu lecionei já há vinte anos atrás. É sempre um instrumento útil para analisar estas situações.
Eu vou sugerir que vocês, assim como fizeram o exercício do necrológio, no começo deste curso,
vocês parassem um pouco, toda essa linha de estudos que estamos fazendo, e fizessem uma análise
de vocês mesmos à luz da teoria das camadas. Na verdade não é uma teoria, é apenas um instrumento
descritivo de um fenômeno que qualquer um pode observar. Você observando a conduta de qualquer
pessoa, e a sua própria, você verá que todos os elementos que compõem uma personalidade estão
presentes no outro também. Nós todos temos basicamente os mesmos instintos, os mesmos impulsos,
as mesmas necessidades, os mesmos sentimentos de base, e a diferença entre um ser humano e outro,
não está nos elementos psicológicos que o compõem, mas apenas na forma que o conjunto adquire, e
esta forma por sua vez é mutável com o tempo. Embora todos estes elementos estejam ali, e a forma
também seja mutável, você pode apreender esta forma a cada momento da vida de uma pessoa, pela
pergunta seguinte: qual é o objetivo dominante que orienta o conjunto dos esforços dessa pessoa? Ou
seja, o que ela está procurando o tempo todo, o que ela está buscando no fundo de todos os vários
objetivos e emoções, situações, estados que ela vivencia? Qual é a chave de tudo isto? Se você
observar um bebê recém-nascido, você verá que o primeiro interesse fundamental que esta criatura
tem, é a descoberta do seu próprio corpo. Um bebê observa o seu próprio corpo, mexe os membros,
por que ele está tentando adquirir um domínio de algo que para ele é estranho ainda. Você veja, por
exemplo, o interesse que o bebê pode ter pelo seu próprio pé, ele pega o pé e fica olhando um tempão.
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Outra coisa típica da vida do recém-nascido, é que ele vive num estado de busca perpétua de auto-
satisfação. Esse é o primeiro centro de interesse, que nunca é abandonado. Todos nós temos interesse
em nosso bem-estar corporal. E temos o interesse em nosso próprio corpo. Ninguém é totalmente
indiferente ao seu próprio corpo. Mesmo um asceta tem que levar em conta o seu próprio corpo, e ele
é capaz de distinguir entre as várias sensações que tem e considerar algumas prazerosas e outras
extremamente desagradáveis. Inclusive a própria disciplina corporal que o indivíduo se impõe é ainda
um esforço de apropriação do corpo. Na medida em que você está tentando dominar o seu corpo,
você está tentando personalizá-lo. Por exemplo, se você vai fazer um jejum prolongado, você está
tentando dominar o seu corpo, está provando que ele é seu. Ou seja, que você não está à disposição
dele, que você não está perdido naquele conjunto, naquele sistema de órgãos e impulsos, mas que
existe um centro que domina tudo aquilo. Este esforço de dominar o próprio corpo, de personalizá-
lo, essa é primeira coisa que você vai ver um bebê fazendo. Isto é o que nós chamamos a primeira
camada da personalidade. Esta primeira camada está sempre presente, você nunca a perde. Acontece
que depois dos anos, existe uma passagem para outros centros de interesse, onde os instintos corporais
começam se dirigir a vários elementos do mundo exterior. Por exemplo, o garoto gosta de comer
umas coisas e não outras. Ele personaliza a expressão do seu instinto. Todos nós temos um instinto
básico de fome, é mais ou menos idêntico, mas nem todas as pessoas querem comer as mesmas coisas.
Você verá que o moleque prefere uns brinquedos e não outros, umas atividades e não outras. Isso
significa que ele está tomando posse de um círculo um pouco mais amplo do que o seu próprio corpo.
Esta segunda camada nós dizemos que é o círculo dos instintos, coisas que se prolongam para além
do corpo. Atender a estes instintos, desejos, selecioná-los em primeiro lugar, e atendê-los, é um
esforço que vai muito além do domínio do próprio corpo, mesmo por que a maior parte desses
instintos já não tem o próprio corpo como alvo, mas tem coisas, pessoas, situações, objetos. Nesse
período o indivíduo está formando o círculo dos seus impulsos e desejos predominantes. É evidente
que ele subiu um patamar. Por exemplo, se você tem a alternativa de comer várias coisas diferentes.
Um recém-nascido não tem, ele está tomando apenas leite, ou aquelas papinhas. Ele não conhece
aquelas coisas suficientemente para poder selecioná-las. Você imagina quanto tempo de experiência
o sujeito precisa ter para ele conseguir identificar a diferença entre uma papinha e outra papinha, e
saber que de uma ele gosta e de outra ele não gosta. No começo ele come a que gosta e a que não
gosta, não percebe uma diferença, mas depois ele vai personalizando isto. Esta personalização dos
gostos, desejos e preferências, é a segunda camada. Esta também permanece o resto da vida. Ou seja,
nós estamos o tempo todo selecionando objetos, situações, sensações, que nós queremos e não
queremos, e outras que nós apenas toleramos, e assim por diante. Ora, cada uma dessas camadas que
nós vamos atravessando, elas permanecem em nós para sempre. Cada uma é integrada na seguinte,
se torna um aspecto da seguinte, na medida em que a seguinte a transcende e a abarca
imensuravelmente. Vocês imaginem, por exemplo, todo o círculo das atividades que um menino de
três ou quatro anos gosta e desgosta, transcende infinitamente o tamanho e a esfera do seu próprio
corpo. Mas o corpo no começo era como se fosse o mundo todo para ele. Dentro dessa segunda
camada o corpo permanece lá e o impulso de apropriação continua lá, só que ele foi automatizado,
ele não é mais um objeto de atenção, ele passa para um segundo plano, enquanto o foco de interesse
se desloca para um círculo maior, incluindo aquele como uma sua parte e instrumento, ou meio.
Em seguida, se abre para o indivíduo o círculo das relações sociais, que transcende também o instinto
dos seus meros gostos e instintos corporais. Então ele vai ter que adquirir novos códigos e novas
possibilidades de ação que no anterior eram inconcebíveis para ele. Por exemplo, você vê que um
bebê que está na segunda camada ele não faz muita diferença entre pessoas e coisas, no que diz
respeito à sua conduta, ao seu tratamento daquelas coisas. A diferença entre um objeto dotado de
vontade própria como um ser humano, ou até um gato, e um brinquedo inerte, não está muito clara
para ele, por que ele os vê apenas como seus objetos de desejo, e não como entidades externas que
tem uma existência independente. A terceira camada então implica saber que os outros não são eu.
Que eles são também focos de... centros geradores de ação, de significação, etc., e que eu não posso
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submeter todos ao meu desejo. Esta é uma descoberta absolutamente formidável, ou seja, quando o
sujeito não manda no mundo, que ele vai ter que se relacionar com todos esses seres e aprender a
regra do jogo. Para ele obter o que ele quer, não basta apenas gritar ou fazer força. O bebê pequeno,
como é que ele impõe a sua vontade? Chorando! Logo em seguida ele aprende a fazer força para obter
aquilo que ele deseja. Quando um bebê, por exemplo, está lidando com um brinquedo e o brinquedo
não procede do jeito que ele quer, ele quebra o brinquedo. Se ele estiver brincando com o irmãozinho
ele desce a mão no irmãozinho, mas é a mesmíssima coisa. É apenas uma questão de impor a sua
força física ao universo externo. Essa é a segunda camada.
Na terceira, o indivíduo percebe que existe um imenso tecido de relações, de regras, de signos, todo
um mundo de uma linguagem social. Linguagem que evidentemente não é só a linguagem verbal.
São todos os códigos possíveis, por exemplo, olhares, gestos, etc. Já é um mundo enormemente mais
complicado do que o do mero trato instintivo entre o corpo como portador dos desejos e instintos e o
mundo físico em torno. Deste acúmulo de experiências se forma então um quarto círculo que nós
podemos dizer que é o mundo dos seus sentimentos historicamente consolidados. Quer dizer, você já
tem uma história aí. Então as coisas passam a ter uma significação temporal para você e se abre para
você o mundo do tempo. Você já tem coisas que são passadas; a distinção entre passado, presente e
futuro se tornam importante aí. Você é capaz de fazer uma história dos seus sucessos e das suas
frustrações. E a partir destes sucessos e frustrações você delineia esperanças, objetivos, sonhos. Então
é toda uma personalização do mundo emocional. Se vocês me perguntarem aonde é que entra aí a
formação do eu, eu não sei exatamente, por que tudo isso é o eu, afinal de contas. Mas, quando chega
na quarta camada você tem uma história pessoal, e o valor das coisas passa a ser julgado em termos
de tempo, de passado e futuro. Aí se delineia pela primeira vez os sonhos e aspirações, a pessoa
começa a sonhar com o futuro, com algo que ela desejaria ter ou ser, e se aprofunda muito a
consciência sobre o abismo entre a situação real e o imaginário. E você descobre então que em volta,
ou em cima, ou em torno da situação de fato, existe todo um mundo de signos e de aspirações, de
símbolos, que de certo modo só existem para você. Parte dele você pode comungar com outras
pessoas, mas ele nitidamente se distingue do mundo físico. Você sabe que tudo aquilo é real, mas não
está fisicamente presente. Claro que há uma tendência para dizer que todo este mundo está dentro da
pessoa, mas o dentro afinal de contas é apenas um conceito espacial e ele não descreve isto
corretamente, por que todo este mundo de sonhos e aspirações, ele definitivamente não é espacial, ele
não está em parte alguma. Toda sensação ela é localizada. Ou você tem uma sensação visual, ou você
tem uma sensação auditiva, sensação táctil, se você tem uma dor, você tem uma dor em algum lugar
ou em alguns lugares do corpo, mas as emoções e sentimentos não estão localizadas. Não podemos,
por exemplo, dizer que elas estão dentro do corpo, pois se estivessem dentro elas estariam em algum
lugar. E elas estão em lugar nenhum. De certo modo é até difícil dizer se elas estão dentro de nós ou
se nós estamos dentro delas. Uma emoção que você tem, ela espalha a sua cor por todo o horizonte
da sua existência. Ao ponto que quando você está triste, a tristeza até mesmo na visão que você do
mundo físico em volta. Tudo lhe parece mais apagado, cinzento, sombrio. Ou se você tem medo, tudo
lhe parece atemorizante. Podemos dizer que por um lado este mundo de sentimentos e emoções está
dentro de você, entre aspas, no sentido que ele não é acessível a outras pessoas, é só você que está
sentindo aquilo. Mesmo que uma pessoa sinta a mesma coisa, você só sabe disso por sinais externos,
não há uma co-participação imediata dos sentimentos. Mas por outro lado, como essas emoções
abarcam a totalidade da sua experiência, é você que está dentro delas, como se fosse em uma bolha,
da qual você não consegue sair. Um estado de medo, de tristeza, ele te rodeia, e você não consegue
sair de dentro dele. Existe até a expressão “eu preciso sair dessa”. Não haveria esta expressão se as
pessoas não tivessem realmente esta experiência de estar dentro de uma atmosfera de sentimentos,
como se o sentimento estivesse espalhado no espaço, como uma bolha. Assim como na primeira
camada o bebê buscava insistentemente a sua satisfação física, na primeira e na segunda ele buscava
a satisfação física, na primeira diretamente no próprio corpo, agindo apenas sobre o seu próprio corpo,
e na segunda, agindo sobre objetos em torno, na quarta ele também está buscando a satisfação, mas
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são modalidades mais sutis de satisfação. Uma satisfação emocional, que nós chamamos de
felicidade. Aí é a busca da felicidade e a fuga da infelicidade. Isso vai formar para sempre a
constelação de símbolos que representam para nós a felicidade, o infortúnio, a alegria, a tristeza,
assim por diante. É claro que é um período de intensa busca de auto-satisfação. Você vejam por
exemplo que os adolescentes buscam insistentemente situações que lhes pareçam estimulantes: festas,
esportes, passeios, às vezes até encrencas e aventuras. Isso aí é a busca da felicidade. O indivíduo
quer sentir determinadas coisas. A busca obsessiva de sentir certas coisas e não sentir outras. Isso
também se conserva dentro de nós, porém, chega um ponto que isso se esgota, e a mera busca do
sentir não resolve mais a situação, por que de certo modo a experiência aí se torna repetitiva e sempre
fadada ao fracasso. E há um momento em que o indivíduo percebe que, se ele quer de fato estabilizar
determinado sentimento, a primeira coisa que ele tem que fazer é sentir-se bem com ele mesmo. E
isto já não é a mesma coisa que você buscar a felicidade. A felicidade é sempre algo que lhe vem de
fora, é uma situação, é um estado, é um dom qualquer que você recebe. Por exemplo, se você se
apaixona por uma garota então, a sua felicidade depende de que ela retribua e a sua infelicidade, o
máximo de infelicidade será a indiferença dela. A sucessão dessas experiências emocionais, chega
uma hora em que o indivíduo percebe que ele é o autor dos seus próprios estados, ou seja, ele percebe
que muito do que ele sente não depende do que está acontecendo ou do que os outros façam, mas
depende dele mesmo. É o momento em que ele necessita tomar posse de si mesmo, já não no sentido
corporal como na primeira camada, mas no sentido existencial total. Ou seja, ele tem que mostrar que
ele é o senhor do seu próprio destino. A partir daí o critério já não é mais felicidade versus
infelicidade, mas vitória versus derrota. O indivíduo tem que vencer, tem que provar que ele é alguma
coisa. Provar para ele mesmo, em primeiro lugar. Pode até provar para os outros, pode ter algum
coeficiente de exibicionismo também, mas o fundamental e ele apropriar-se, tomar posse da sua força,
ele se sentir como sujeito criador de situações, que dependem exclusivamente dele. Neste período, o
coeficiente de felicidade ou infelicidade recebido de fora já não é tão importante. Por que mesmo os
fatores que possam deprimi-lo, agora são encarados como desafios que ele tem que vencer. Neste
período o indivíduo tem que sair vencedor em tudo. Notem bem que ele só está tentando provar algo
para ele mesmo. O que importa é a vitória subjetiva, é ele conseguir olhar para si mesmo, e ter um
certo orgulho de si. Ter orgulho de si é algo importante neste período. Muito bem, algum dia todos
nós saímos da adolescência e temos que fazer algo mais do que provar para nós mesmos o nosso
próprio valor. Eu repito, que em cada uma destas camadas as anteriores se conservam, mas agora elas
viram instrumentos para a conquista de um objetivo que as abrange e transcende. O indivíduo que
está na camada quinta, ele está buscando a vitória, o sentimento do seu próprio valor, da sua própria
capacidade, da sua própria força. Nisto se integra então, voltando detrás para adiante, todo o seu
mundo emocional passa a ser um fator de vitória ou derrota. Por exemplo, ele percebe que ele tem
que ter um certo domínio sobre os seus sentimentos. Ele precisa reprimir certos sentimentos, senão
eles podem atrapalhá-lo na luta para afirmar o seu próprio valor. Então aqueles sentimentos
continuam ali mas eles se integram diferentemente em um outro conjunto superior. Do mesmo modo,
tudo o que ele aprendeu com as relações sociais, a linguagem, os signos, etc., tudo isto está lá, mas
agora está organizado em função de um novo objetivo. Quando alcançou aquele mínimo e
indispensável de auto-confiança sem o qual não é possível a sobrevivência no meio social, então ele
tem que passar para uma outra camada. E nesta camada, o que interessa não é mais o indivíduo sentir
que ele vale alguma coisa, não é mais ele sentir a sua força, mas ele obter algum resultado real. Por
exemplo, se você arruma um emprego, não adianta você sentir que você é ótimo. Você tem que fazer
algo que funcione dentro daquele emprego, do conjunto das suas tarefas. Então você tem que ter um
resultado objetivo, ainda que este resultado objetivo valha pouco para você em termos de auto-
afirmação — camada cinco — ou em termos de felicidade e infelicidade — camada quatro — e assim
por diante. O domínio da vida prática, das necessidades práticas. Nós podemos dizer que esta sexta
camada é uma camada altamente contábil, onde tudo o que interessa é o crédito superar o débito.
Algum resultado você tem que obter. Evidentemente neste período você tem preocupação com
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horários, com a distribuição das suas energias. Você sabe, por exemplo, que você não pode ter
períodos de descanso ou repouso conforme o exclusivo critério do seu bem-estar físico. Mas é
necessário que o seu repouso e o seu esforço se encaixem dentro de uma máquina, de uma
engrenagem, que visa a objetivos que não são os seus, mas que você tem que fazer funcionar da
melhor maneira possível. Eu me lembro, por exemplo, quando eu tinha dezessete anos, e precisava
urgentemente trabalhar, já tinha tido alguma experiência trabalhando em escritório mas estava
achando muito ruim, e eu me lembro que eu fui trabalhar no jornalismo por um único motivo, por
que naquela época a lei determinava um período de cinco horas para o trabalho jornalístico. E eu
achei aquilo uma maravilha por que eu precisava de tempo sobrante para estudar. E fui para o
jornalismo exclusivamente por causa das cinco horas. Quando mais tarde modificaram e todos os
jornais começaram a utilizar o período de oito horas perdeu a graça o negócio. Então não era mais
vantajoso para mim. Quer dizer que eu não escolhi aquilo por que eu ia ter alguma auto-satisfação,
ou por que eu ia provar a minha própria capacidade. A capacidade já estava provada. Eu me lembro
quando eu sentei para fazer o primeiro teste no jornalismo eu não sabia que sabia melhor português
do que toda aquela redação juntos. Então aquilo ia ser moleza, minha capacidade estava demonstrada.
Mas o problema não era esse, não era provar para mim mesmo que tinha uma capacidade. Eu tinha
que escrever uma coisa que servisse para eles. O critério é completamente diferente. Os critérios de
exigência em matéria de linguagem no jornalismo eram muito inferiores aos meus. Mas, isso quer
dizer que eu tinha que dobrar os meus critérios de exigência e atender aos deles, por que os meus
abrangiam certas exigências que para uma redação nem existiam, se tornariam invisíveis. Se eu
escrevesse a coisa com altos méritos literários, seria totalmente invisíveis para aquelas pessoas. Eles
queriam saber apenas que eu atendesse este e este critério, que era do jornal. Foi uma espécie de
desaprendizado. Eu tive inclusive que baixar o meu auto-conceito para poder me adaptar àquela coisa
e obter o que? Aquele negócio maravilhoso que era um salário no fim do mês. Como eu tinha
trabalhado de office boy antes, eu fiz o teste no jornal, e quando me disseram o meu salário eu quase
caí de costas.
— Fiquei milionário!
Eram dez vezes mais, e com três horas de trabalho a menos. Naquele ponto tinha dado tudo certo e o
meu esquema organizacional estava funcionando perfeitamente bem naquela etapa da minha vida.
Nesse período então você se adapta a exigências externas mas visando um resultado que vai te
beneficiar, não psicologicamente, pois o benefício que você procura não é psicológico.
Psicologicamente pode haver até um malefício nisso aí. Mas você uma troca, você entrou em um
comércio. Quer dizer, eu sacrifico um pouco da minha auto-imagem, um pouco do meu tempo, um
pouco da minha felicidade, para obter um rendimento no fim do mês, no fim do ano, sei lá. Mas é
algum objetivo prático. É claro que isso não se aplica somente na vida econômica, strictu sensu. Em
vários domínios da vida você aprende a ter um senso prático, sem o qual você não pode sobreviver
como uma pessoa adulta na sociedade. Depois que você já obteve esse domínio, você percebe que
você está convivendo com outras pessoas que também estão buscando os mesmos objetivos, as
mesmas vantagens, e que não consideram você uma pessoa superior a elas. Vejam que coisa incrível!
Pela primeira vez você descobre que você não é a única pessoa que tem objetivos. E que os outros
não dão muita importância a você. Cada um deles tem os seus objetivos, os seus desejos, tem o seu
esquema organizacional, no qual ele não vai permitir que você interfira de maneira alguma. Por
exemplo, se você está muito ocupado, ou está doente e não pode fazer um determinado trabalho, você
quer que alguém faça no seu lugar, nem sempre você vai ocupar quem faça, por que os outros também
estão ocupados. E eles estão ocupados principalmente com os seus próprios objetivos. E você percebe,
começa a olhar em volta, e vê que cada um tem os seus próprios objetivos e que nenhum deles
considera, por incrível que pareça, considera que os meus objetivos são mais importantes. Você entra
em uma outra esfera, na qual o equilíbrio de direitos e deveres é a coisa fundamental. Ou seja, já não
é a organização da sua vida que interessa. Não é apenas o encaixe da sua vida dentro de uma
engrenagem maior que rende alguma coisa para você. É o encaixe do seu projeto e da sua organização
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pessoal numa infinidade de relações com outras pessoas, que tem cada uma os seus objetivos, e que
cada uma se considera, como você mesmo, o centro do universo. Aí você desenvolve o senso daquilo
que hoje se chama cidadania. Cidadania é saber que você tem direitos e deveres, ambos limitados, e
que os outros também têm. Esse senso dos direitos e dos deveres, ele chega a você, não sob a forma
abstrata de um código civil, ou de um código penal, nem sob a forma dos dez mandamentos, nem sob
a forma de nenhuma filosofia política abstrata ele chega sob a forma do código de lealdade vigente
no lugar onde você está. Por exemplo, eu me lembro que um dos primeiros códigos que eu aprendi,
ainda dentro do jornalismo, foi que havia uma conspiração geral para todo mundo trabalhar menos e
ganhar mais. Todo e qualquer serviço devia ser feito na base do mínimo indispensável, e os méritos
de cada um deveriam ser maximizados perante a empresa. Todos conspiravam juntos, então não era
uma coisa individual, para trabalhar o mínimo e ganhar o máximo. Nesse sentido, você ludibriar a
empresa que você trabalhada era um dever. Podendo ludibriar, nós temos que ludibriar. Por exemplo,
os jornais, quando nós saíamos para fazer as reportagens, saíamos numa viagem, então era um
mandamento divino que tudo tinha que ser superfaturado. Estou falando sério! Você viajou até
Sorocaba, você vai fazer como se tivesse viajado até o Amazonas. A tarifa do ônibus seria mais cara,
a do hotel seria mais cara, tudo seria superfaturado e ia sobrar sempre um dinheirinho no seu bolso.
Isso era a regra áurea. E se você apresentasse contas muito precisas e realistas os seus colegas iam
ficar revoltados contra você. Por que você estava boicotando o superfaturamento deles. Isso era uma
regra. Adaptar-se a esta regra implica então uma ambigüidade. Você tem uma regra para lidar com
os colegas e outra para lidar com a empresa. E a empresa é considerada apenas um malefício
temporário que você teve que suportar. No entanto, também havia uma outra regra. As pessoas que
aos olhos do chefe ou do patrão pareciam mais identificadas com as finalidades da empresa, subiam
e outros ficavam embaixo. Então chegava um momento na vida que você tinha que optar: ou serei
um bom colega dos meus colegas, e ficarei embaixo com todos eles, no fim de semana nos juntaremos
num bar para tomar cerveja e falar mal dos outros, e lamentar a nossa porca vida, ou eu voltarei as
costas aos colegas e me voltarei para o patrão, para o chefe, ou seja eu vou me comportar na linha
horizontal ou na vertical. Se eu subir um pouco na vida, todos os meus colegas vão me odiar, vão
falar muito mal de mim, mas a empresa estará satisfeita e eu terei uma perspectiva melhor. Estas
regras você vai ter que aprender. Elas não visam mais apenas a produzir um rendimento para você,
mas visam obter para você o apoio da comunidade. Você tem que ter um lugar na comunidade. Você
tem que ser respeitado, gostado, amado se possível. Tem que agradar as pessoas, e tem que ser justo
com elas, de acordo com o padrão de justiça que está vigente ali no lugar. Esse padrão de justiça
julgado depois filosoficamente desde uma distância maior pode parecer uma verdadeira
monstruosidade como a mim me parece. A respeito disso leiam o Aleksandr Zinovyev, The reality of
community, e vocês verão o conjunto destes códigos altamente predatórios, que você tem que
obedecer, para você ser aceito ou pelo seu grupo, ou pela sua empresa, etc. Nesta fase, quando você
esta nesta camada, que é a sétima, o acerto ou desacerto dos vários códigos, não interessa ainda,
objetivamente o que você interessa é você aprender os códigos e saber praticá-los. Evidentemente, a
opinião do grupo se torna uma coisa extremamente importante para você. Por que o seu futuro
depende disso. Para você abrir caminho na sociedade você vai precisar ser aceito por algumas pessoas.
Por exemplo, dentro deste exemplo que eu estou dando que era o mais comum no jornalismo, era a
regra mais disseminada no jornalismo... Se você subisse na base de agradar na base de agradar os
seus superiores e dar as costas aos seus colegas, você subia, mas se você perdesse totalmente a
lealdade dos colegas você não iria ter comando sobre eles. Quer dizer que as pessoas que subiam no
jornalismo tinham que ser de uma engenhosidade fora do comum. Por que eles tinham ao mesmo
tempo que agradar aos chefes, aos superiores, mas não perder completamente o elo de cumplicidade
com os antigos colegas. É claro que raríssimas pessoas conseguiam este ponto de equilíbrio. Alguns
subiam e eram odiados. Então quando as pessoas obedeciam, era de má vontade, e estavam
continuamente buscando puxar o seu tapete e substituí-lo por outros que os representasse. Basta isso
para você ver que a atmosfera nesses lugares era irrespirável. Havia um senso de ameaça por toda
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parte. Até havia um personagem mítico que se chamava no jornalismo brasileiro, o passaralho, que
de vez em quando o passaralho descia sobre a redação e dez ou quinze perdiam o emprego. Todo
mundo vivia num constante temor do passaralho, embora ele raramente descesse. Eu acredito que era
mais ou menos assim por toda parte. Depois observei que no meio universitário era a mesma coisa,
em empresas privadas pouco menos. Num mundo da indústria um pouco menos, mas também tinha
mesma coisa. Absorvendo esses códigos você se torna uma pessoa igual as outras, você se torna um
cidadão, com seus direitos e deveres, e tendo a sua posição reconhecida e você tem o mínimo de apoio
da comunidade, sem a qual você não pode viver. É claro que pode se introduzir já aí uma pequena
preocupação quanto à justiça ou injustiça objetivas da sua conduta. Mas esta preocupação pode estar
presente mas ela não é o centro das atenções. Você está tendo mais trabalho para você se adaptar e
aprender os códigos do meio do que você julgá-lo, evidentemente. Então você é praticamente um
homem maduro, ou seja, você lembrar que fez tudo isso e depois de conquistada uma certa posição
social, você ser capaz de examinar agora tudo isso criticamente. E pensar: o que eu fiz da minha vida?
Isso é justo ou injusto? É isso que eu quero? Não é isso que eu quero? Eu sou um fracasso? Um
sucesso? Etc. este auto-exame coloca você no plano da história, quando você estava na quarta camada.
Mas agora já não apenas no sentido de encontrar e definir objetos que simbolizem para você a
felicidade ou a infelicidade, mas sim no sentido de saber o que você fez pela sua própria felicidade,
o que você fez pela sua própria infelicidade. Encarar-se a si mesmo pela primeira vez como sujeito
dos seus atos. Só quando você está nesse ponto é que se pode dizer que você é um homem maduro.
Aquele que não é apenas um cidadão, é alguém, que tem uma consciência de si, é capaz de julgar-se
a si mesmo. Isso é extremamente difícil. Notem bem que quando eu repasso mentalmente a minha
experiência de ter vivido no Brasil, durante tanto tempo, vivi cinqüenta e oito anos neste país, eu vejo
o seguinte: a maior parte das pessoas que eu conheci tinha parado na camada quatro. Ou seja, não
tinham chegado sequer a ter o teste decisivo da sua capacidade. Fugiam do teste, buscavam proteção.
De certo modo, encruavam, e não alcançavam o desenvolvimento humano que é próprio da espécie.
Tudo o que eu estou dizendo é próprio da espécie humana, os animais não tem isso. Os códigos de
convivência todos, o animal aprende em um dia. Por que são muito simples: você obedece o mais
forte, e fica quieto. E não há mais nada para aprender depois disto. Vendo um documentário sobre
lobos, você via que o lobo chefe, o lobo mais forte, ele mantia o rabo elevado, e o outro baixava o
rabo. Já é um código. O cara que tem o rabo levantado é o que manda. Ou você vai lá um cacete nele
e obriga ele a baixar o rabo, ou você baixa o seu e fica quieto. Esses códigos são muito simples. É
desconhecido no reino animal qualquer longo aprendizado de tentativa e erro. Eles definitivamente
não aprendem isto por tentativa e erro. Esse negócio já está no código genético e acho que basta uma
experiência para saber o resto da vida. No ser humano não! Esse negócio é enormemente complicado.
Mesmo por que você vai conviver com muito mais membros da sua própria espécie do que qualquer
animal jamais fará. Não só diretamente, mas imagine todas as pessoas com que você encontrou ao
longo da vida, toda a imensa variedade de relações que você teve com elas, e mais aquelas que
influenciaram a sua vida à distância, como por exemplo, o sujeito que era Presidente e assinou um
decreto e mudou sua vida econômica, ou pessoas que viu na televisão, viu no cinema, etc. É uma
multidão de gente que nenhum bicho tem jamais acesso a isso. Até quantitativamente a situação é
bem mais complicada. Mas tudo isto que eu estou dizendo é próprio do ser humano, é próprio dele
atravessar todas as etapas. Mas uma coisa característica é a seguinte: para quem está numa camada,
os objetivos da seguinte são incompreensíveis. Se você pega um bebê que está em plena segunda
camada, em que tudo para ele no mundo em torno é objeto, e portanto como sujeito só existe ele,
então ele tenta dominar fisicamente as coisas. Por exemplo, forçando o brinquedo a fazer o que ele
quer, ou forçando o cachorrinho a fazer o que ele quer. Eu me lembro que um dos meus filhos tinha
um cachorro e quando ele discutia com o cachorro, de vez em quando ele mordia o cachorro. É
verdade! O cachorro não entendia direito aquilo e duvido que o cachorro passasse a obedecê-lo mais
por causa disto. A segunda camada é a que você força a natureza. Isto significa que a etapa seguinte,
que é uma etapa de intercomunicação e de negociação, é inimaginável para você. Isso quer dizer que
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qualquer sinal que venha de uma das camadas superiores será interpretado pelo indivíduo dentro da
própria camada em que ele está. Por exemplo, eu vejo muitos pais tentando dar explicações a crianças
que estão em plena segunda camada dizendo:
— Não, você não pode fazer isso, por causa disso e daquilo.
A criança interpreta isto como uma imposição de força física mediante o tédio.
— Esse desgraçado me obriga a ficar aqui ouvindo esta coisa toda.
Ele não está ouvindo uma palavra do que o outro está falando, mas ele está obrigado a ficar quieto.
Você paralisou o sujeito. É assim que ele vai entender. E quando eu digo a mães e pais, que não
expliquem nada para crianças pequenas, que dêem um ordem e está acabado. E se ele não quiser
obedecer você faça um olhar assassino. É simples. Eu demonstrei isto, minha filha Inês viu, com a
minha netinha. Ela até de vez em quando fazia um show de ranhetice e a Inês ficava desesperada.
Então eu disse:
— Vou te ensinar uma técnica.
Então quando começava a ranhetice eu fazia um olhar assassino e ela parava na mesma hora. Olhava
e a chupeta caia da boca. E obedecia imediatamente. Mas não usava nenhuma palavra. Com a palavra
você pode amedrontar a criança, mas forçá-la a entender o que você quer dizer, isso é impossível. Eu
vejo que nessa idade, as crianças obedecem facilmente uma ordem, quando ela é simples e dada com
energia. Mas você dar uma bronca é totalmente inútil. Por que ela vai entender a bronca como uma
imposição de força física e não como uma negociação. Uma criança pequena não sabe nunca por que
você está dando a bronca. Ela sabe apenas que você está dando a bronca. O por que depende da
terceira camada, ou seja, depende de linguagem, de significações, de negociações, etc. Do mesmo
modo que a criança aceita a ordem, ela não aceita bronca e não aceita explicação. Só serve para
enervar e deixar a criança mais rebelde ainda. Do mesmo modo, quando uma criança está em plena
conquista da sua rede imediata de relações, todo o mundo das emoções pessoais é incompreensível
para ela. Adolescentes parecem insensíveis, parecem cruéis, por que agora estão num mundo de jogo.
A terceira camada é eminentemente jogo. É interação, é troca e a descoberta desde instrumento
maravilhoso de ação que é a linguagem. Nós podemos obter o que nós queremos através da
linguagem. Isto ocupa de tal modo a mente deles que seria impossível você imaginar que o que ele
está fazendo pode magoar uma outra pessoa. Você não conseguir explicar para um sujeito desse o
que é magoar, ele não vai entender. Em cada uma das camadas a temática da camada seguinte é
incompreensível, é invisível. Para vocês verem como é pobre o caso da sociedade em que vocês
vivem, observem em torno e vejam a multidão de pessoas incapazes que querem ser felizes e que
contam com os outros, com a proteção dos outros para isso. Que vivem buscando uma atenção, um
carinho, buscando um espacinho para elas, mas que não são capazes de fazer nada, e que não tentam
fazer nada. Pessoas que fogem de desafios da vida. Ou seja não chegaram nem neste ponto ainda. Isto
é uma tragédia. É só na oitava camada que você está lidando com um homem adulto, ou seja, com
um homem que sabe que o tecidos das obrigações sociais dele não é tudo. Que existe para além disto
uma dimensão do sentido da vida. Uma dimensão da moralidade, uma dimensão da consciência
moral, do certo e do errado, e assim por diante. Não que antes ele não soubesse o que é o certo e o
errado. Mas é só quando ele chega neste ponto que ele interioriza efetivamente a questão do certo e
do errado. Para qualquer pessoa que esteja na sétima, sexta, quinta, etc., o certo e o errado são
elementos do mundo exterior. Se você está na segunda camada é uma força física que está se impondo
a você. Você deixa de fazer o errado por que se não o seu pai vai encher você de porrada. É só por
isto. Se você está na terceira, é o elemento de jogo. É quando o sujeito aprende, por exemplo, que ele
pode se fingir de bonzinho, que ele pode fazer uma coisa mas fingir que está fazendo outra. Não que
ele não pudesse fazer isto antes, mas ali ele adquire o domínio disto. Se está na quarta camada, tudo
para ele é uma questão de felicidade ou infelicidade. Como você está se sentindo? Então o bem para
ele é aquilo que ele ama. É aquilo que faz sentir-se bem. E assim por diante. Na quinta camada, o que
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é o bem? Aquilo que lhe dá a vitória, aquilo que reforça o seu ego, e aquilo que o deprime parece o
inimigo, o demônio. E assim por diante. Mas é só quando você chega na oitava que o problema do
bem e do mal começa a existir para você efetivamente. A oitava camada é uma crise, onde você pode
verificar que você falhou no sentido da vida, que sua vida não tem sentido nenhum. Onde você pode
se arrepender dos seus pecados e onde você pode tentar remanejar o comando. Em geral os seres
humanos adultos param por aí. Mas alguns criam uma nova camada, onde todos aquelas
perplexidades, aquelas contradições, aquelas dificuldades que ele observou ao rever a sua própria
vida, ele descobre que eles são componentes estruturais da vida humana. Que todos os seres humanos
tiveram as mesmas dúvidas e os mesmos sofrimentos. Ele aprende que não são problemas só seus,
são problemas da humanidade. Aprende isto através do que? Através da cultura. Lendo, se
informando, e vendo milhares de exemplos de outras vidas, interessando-se por vidas que se passaram
cem anos atrás, duzentos anos, quinhentos anos atrás, como se fosse a vida dele mesmo. Isto quer
dizer que o padrão de humanidade dele se amplia formidavelmente para abranger milhões de pessoas
que ele nunca vai conhecer, que já existiram, ou que não existiram, ou seja, são pessoas meramente
imaginárias, mas que através desse esforço de absorção da experiência humana universal ele, se não
encontra a solução para aqueles dramas pessoais dele, ele encontra uma nova razão de viver. E é isto
que eu chamo a personalidade intelectual. Você adquire uma personalidade intelectual quando tudo
o que lhe acontece já não é vivenciado apenas como problema pessoal seu, mas como exemplo,
símbolo, ou sugestão de problemas enormemente maiores que talvez não tenham solução, mas que
pensar neles e dedicar um tempo a eles é uma das grandes finalidades da vida humana. Não é preciso
dizer que se você não chega a ter uma personalidade intelectual você não acompanha este curso.
Ainda que você seja um gênio, pois aí não é uma questão de inteligência, não é uma questão do q.i.,
é uma questão da consistência da condição existencial do indivíduo. Existem outras camadas depois
destas, mas elas não vem ao caso no momento. Mesmo por que as pessoas tentam imaginar o que são
as camadas seguintes, mas é apenas uma curiosidade intelectual. O que interessa não é você examinar
as camadas seguintes, mas você examinar a seguinte. É saber onde você está. Quando eu convoco as
pessoas para este curso, eu estou tentando atender uma necessidade que é referente à nona camada,
a personalidade intelectual. Portanto eu não estou aqui para resolver problemas pessoais. Não estou
para lhe dar felicidade, nem alívio, nem para lhe ensinar o sentido da vida. Mas eu estou dando
instrumentos para que você cumpra as finalidades que são inerentes à nona camada da personalidade.
Ou seja, este curso é para intelectuais. Acontece que no Brasil, na sociedade brasileira, a função
intelectual está muito mal definida. Ela não é clara para o distinto público. E é por não se clara para
o distinto público que acontece aberrações como esta de dar o Prêmio Jabuti para o Chico Buarque
de Holanda, que é um indivíduo cuja consistência intelectual é absolutamente nula. Maria Rita Kehl
então nem se fala. A totalidade da obra de Maria Rita Kehl consiste em reclamar do sexo masculino,
e ponto final. É uma coisa de uma pobreza tão grande que nem se entende como isso possa entrar em
um concurso. Mas é preciso dar o prêmio a esses dois por que não há mais escritores. Não se produziu
absolutamente nada de bom nos últimos vinte, trinta anos. Então não há concorrentes. Como você vai
desenvolver uma personalidade intelectual num lugar que não há pessoas que esperem isto. Você vai
ter que olhar para o exterior. Você pode também olhar para mim. É claro que eu tenho uma
personalidade intelectual, é claro que na minha vida eu praticamente não tenho assuntos pessoais a
resolver. Tudo o que me acontece é amostra, é sinal, de alguma coisa na qual eu devo pensar e ao
pensar naquilo eu devo pensar usando todo o material e todos os recursos que eu adquiri ao longo de
cinqüenta anos de estudo. Eu quero chegar a uma compreensão efetiva e eu não me incomodo de que
pessoalmente eu continue sofrendo este ou aquele problema. Por que eu não estou mais buscando a
minha felicidade. O eixo já passou para outro lugar. Ou seja, eu entendi que a felicidade é um
resultado mais ou menos acidental. A felicidade é como o prazer, dizia Santo Tomás de Aquino. O
prazer é um efeito lateral resultante de uma coisa que deu certo. Ele não é um objetivo. Ele nunca
é um objetivo. Afinal de contas, o prazer é um termo abstrato que designa uma constelação de
sentimentos que pode deferir muito de uma pessoa para outra. O prazer é evanescente demais para
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você poder buscá-lo. Você vai ter que buscar alguma coisa concreta. O que é o prazer gastronômico?
Você pode comer o prazer gastronômico? Você não pode. Você vai ter que comer alguma coisa
concreta. E esta coisa pode lhe dar prazer ou desprazer. Santo Tomás de Aquino tem toda razão. Você
comeu, aquilo funcionou, então você diz que tem prazer. O prazer é o nome que você dá ao efeito
lateral subjetivo de alguma coisa. Felicidade é a mesma coisa. Buscar a felicidade é a coisa mais inútil
do mundo. Por que você nunca sabe o que vai deixar você feliz ou não. É certo que algumas coisas te
deixam felizes e outras te deixam infelizes, então são estas coisas que você vai ter que buscar. O
nosso esforço se dirige sempre a fazer alguma coisa, e não a um treco abstrato chamado felicidade.
Isso aí eu já entendi faz tempo: buscar a felicidade é fazer buraco na água. Quando o sujeito passa da
camada quatro para a quinta, ele já entendeu isto. Se ele buscar a felicidade ele ficará infeliz, então é
melhor ele buscar o que? A vitória, a auto-afirmação, a força, etc. aí já passou da busca da felicidade.
Diz que o Cristóvão Buarque quer colocar um artigo na constituição dizendo que todo o brasileiro
tem direito à felicidade. Se ele fizer isto, e se der certo, então todos nós iremos entrar com um
requerimento dizendo que nossos direitos constitucionais foram feridos pela vitória da D. Dilma
Roussef. Para dizer que estamos muito infelizes, e isto então viola os meus direitos constitucionais.
Você veja que um país aonde isto chega a ser discutido é por que todo mundo está na camada quatro.
Tem uma espécie de visão material da felicidade. A felicidade é como uma coisa que pode ser
garantida a esta pessoa, àquela outra pessoa, etc. Eu ia pedir que cada um examinasse profundamente
a sua biografia e pensasse isso: o que eu estou buscando aqui? E se eu estou sugerindo isto é por que
eu vejo que constantemente estas coisas falham. Por que, como os indivíduos não desenvolveram
ainda a sua personalidade intelectual, embora tenham a chance aqui de desenvolvê-la
formidavelmente, então os objetivos centrais da vida dele, não estão na vida intelectual embora ele
esteja participando da vida intelectual materialmente. Este é um grande problema, quando você está
efetivamente em uma camada mas a sua existência social real está vinculando você a uma camada
seguinte. Isso é gerado de infinitos equívocos. Você imagina, por exemplo, um indivíduo que esteja
em plena camada quinta, e que ele arrume um emprego, e está num meio profissional em que tudo
funciona segundo as regras do Zinovyev, os direitos e deveres recíprocos dos membros de uma
comunidade arranjados de modo que cada um atenda aos seus interesses da melhor maneira possível,
sem pisar nos do outro. O indivíduo que está afim de auto-afirmação, ele destrói a harmonia disto. E
ele pode ser rejeitado pelo meio e ele não saberá por que não foi rejeitado. Ele vai interpretar isto em
termos de camada quinta, isto é, perdi. E como tudo o que interessa para ele é demonstrar a sua força,
a demonstração da sua fraqueza é absolutamente intolerável. É a total infelicidade. Então ele vai tentar
de novo, e o desajuste ficará cada vez mais profundo. Isto é o que se denomina um chato. O que é um
chato? É um sujeito de uma camada anterior que está colocado em uma situação que existe uma
conduta de uma camada seguinte. O cara está completamente deslocado e só atrapalha. No Brasil ser
um intelectual é uma coisa que dá um prestígio, embora não haja intelectuais. É uma coisa fantástica.
Ninguém está cumprindo as exigências da vida intelectual mas ele fingir que cumpre, de algum modo
dá um prestígio. E isto torna condição de intelectual uma coisa que é ao mesmo tempo, desejada,
desprezada e odiada. Tudo isto ao mesmo tempo. É um complexo e sentimentos, absolutamente
incongruentes que ficam imantado em torno de uma determinada função social. E quando o indivíduo
pensa assim:
— Ah, eu vou ser um intelectual quando eu crescer.
Ele já começa a ter todos esses sentimentos com relação a ele mesmo. Uma solução que muitas
pessoas encontram para isto é:
— Não, eu não quero ser um intelectual, eu quero apenas levar a minha vida, etc. quero me aperfeiçoar
e alcançar a salvação da minha alma.
O sujeito entrou nisto, você já tem ali um trabalhador a menos e um canalha a mais. Por que nestas
condições, a adesão a finalidades religiosas é absolutamente falsa, sempre. E você verá isso sobretudo
no discurso das pessoas, que estarão cheios de citações bíblicas, tudo será feito “em nome do Senhor”.
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As pessoas cumprimentarão você “In Iesu et Maria”, etc., usando toda uma linguagem eclesiástica,
ou episcopal, cardinalícia, para arrogar-se importância, e inibir o interlocutor, de modo que o
interlocutor sinta:
— Não, ele está falando em nome da Santa Madre Igreja, eu não posso discutir com ele.
Isto no Brasil virou epidêmico entre este pessoal liberal, conservador, entre anti-petistas em geral.
Isto é epidêmico no Brasil. Veja que eu só invoco o Senhor no meu programa de rádio para que
proteja as pessoas contra mim. É a única vez que eu invoco. Eu não fico fazendo toda hora prece em
nome do Senhor. Eu só peço aquela ajuda ali, por que eu realmente preciso. Eu sei que vou estar
falando durante uma hora, eu vou estar falando coisa horríveis das pessoas, eu sei que a gente se
excede realmente e eu não quero cometer injustiças, então eu peço que Deus me fiscalize para eu não
passar dos limites. É o único momento que vocês me vêem fazendo isto. Invocar o nome de Deus em
vão virou mandamento obrigatório no Brasil para todo este pessoal. Eles acham que botando ali o
nome de Jesus, de Maria, etc., vai santificar o que eles estão falando. Ora, antes de você aprender a
falar em nome de Jesus, você aprendeu a falar em seu próprio nome? Antes da camada oito, você não
fala nada em seu próprio nome. Você só tem uma voz própria, uma voz personalizada, quando você
tomou posse da sua vida inteira como problema. Quando você é capaz de meditar sobre tudo o que
você fez, e viu que você pode ser um fracasso ou que você pode ter traído tudo. Ou seja, enquanto
você não tem uma espécie de crise de maturidade, você não tem voz nenhuma meu filho. Você não
fala sequer em seu próprio nome. Você apenas repete o que você ouviu ou o que lhe parece
conveniente dentro da regra do jogo. Então como é que pessoas assim estão toda hora com o nome
de Deus na boca? Isto é um sinal de subdesenvolvimento mental e espiritual enorme, por que estas
pessoas estão blasfemando o tempo todo e não percebem. Pra que você acha que um dos dez
mandamentos é este, você não usar o nome de Deus em vão? Por que você não tem nenhum direito
de atribuir a Deus aquilo que você está falando. Você fala a maior estupidez e mete lá o carimbo de
Jesus Cristo, e não percebe que está ofendendo. É claro que em nome de falar em nome de Jesus
Cristo, você pode falar em nome de inúmeras outras coisas. Você pode falar em nome do povo
brasileiro, você pode falar em nome dos milhares de ofendidos, você pode falar em nome de uma
classe social. Só que todas estas representações são falsas. Eu lhes digo, eu estou com sessenta e três
anos, e eu nunca consegui falar em nome de coisa nenhuma, exceto este que vos fala. Por que esta
medida eu sempre tive, ou seja, eu sei que isto aqui não é opinião de ninguém, eu não tenho autoridade
nenhuma para dizer isto, a não ser a do meu próprio testemunho. Nada garante o que eu estou falando.
Remontando a uma coisa que eu comentei há alguns programas, atrás, ou seja, as pessoas que ficam
julgando o que a gente está dizendo aqui em nome de algo que elas acham que é a doutrina da Igreja,
pois estão cometendo exatamente este erro. Eu não estou aqui enunciando nenhuma doutrina da
Igreja, eu estou apenas depondo algumas coisas que eu vi, que eu entendi, na medida em que vi e
entendi. E não pretendo que isso tenha nenhuma validade dogmática. Portanto nada do que eu digo
pode ser conferido com a doutrina da Igreja. Principalmente, nós enquanto estudiosos de filosofia,
assumimos o compromisso de Santo Tomás de Aquino. Embora ele escrevesse obras de teologia
baseadas na Sagrada Escritura, ele também escreveu várias obras de filosofia, em que o compromisso
era jamais tomar os dogmas da Igreja como premissa. Nunca! Você tem que raciocinar a partir do
fato, da experiência, dos princípios da razão e só. E é isso o que nós estamos fazendo. Será que é tão
difícil entender isso? No Brasil de hoje sim. Por que você tem milhares de pessoas que estão
amedrontadas, que estão na camada quatro, estão buscando uma proteção, um guarda-chuva, e crêem
encontrá-lo na Santa Madre Igreja. Não é uma maravilha? Um idiota covarde, de repente tem um
imenso guarda-chuva em cima dele, que o protege contra todos os males, o protege contra o erro,
contra a heresia, e dá então a chancela de Nosso Senhor Jesus Cristo a tudo aquilo que ele está falando.
Então quando eu olho estas coisas eu fico consternado, por que é um sinal de miséria humana. E nós
aqui neste curso, nós não podemos nos permitir isto jamais, nunca na vida. Então eu estou pedindo
encarecidamente a todos os alunos e ouvintes, por que têm pessoas que vêm e ouvem um pedacinho...
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Não falem nada em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo. Só diga em nome dele aquilo que ele mesmo
disse. Se você está citando uma frase do evangelho, aí sim, é em nome de Nosso Senhor Jesus Cristo.
Quando você vai rezar, você reza, “Em nome do Pai, e do Filho, e do Espírito Santo. Mas o que você
fala em seguida? A sua própria e distinta opinião? Não! Você fala as palavras do Pai Nosso, da Ave-
Maria, aí sim. Agora, criar esta aparência de autoridade espiritual, para proteger uma imensa covardia,
de um sujeito que tem trinta, quarenta, cinqüenta anos e está lá como um adolescente buscando
proteção, é uma coisa muito feia. Não estou dizendo que alguém em particular, fez isso. Eu sei quem
fez. Mas às vezes, as pessoas até reclamam disso, eu dou aula para o pior aluno por um motivo muito
simples. Às vezes as pessoas dizem:
— Por que você fica falando isto para pessoas atrasadas? Só faz a gente perder tempo.
E eu digo que não, nunca é perder tempo. Mas se você amarrar dois burros um no outro, botar para
correr, qual será a velocidade da dupla? A do mais lento. O mais lento tem a capacidade de atrasar o
mais rápido. Mas o mais rápido não pode arrastar o outro. O cara que está entendendo menos é aquele
que tem que receber mais explicações. E aqueles que já sabem disso vão sair reforçados nesta coisa.
Então queria pedir a vocês que relessem o capítulo I e o II do Sertillanges, A vida intelectual. Aquilo
é absolutamente indispensável. O padre Sertillanges coloca ali que o exercício da vida intelectual é
feito das virtudes, de determinadas virtudes. A capacidade de você conhecer as coisas com acerto, a
capacidade de descobrir a verdade, faz parte da virtude. Não é uma questão de q.i.! Não existe esse
negócio da inteligência como um instrumento que você domina. A sua inteligência é função do seu
amor pela verdade, e exclusivamente isto. A única e principal qualidade que você precisa ter para
você fazer este curso é isto, você ter amor à verdade. Ter amor à verdade, é em primeiro lugar, querer
conhecer a verdade sobre você mesmo, no sentido que isto tem quando você alcança a camada oito.
Ou seja, você é uma pessoa que sabe da sua insuficiência, você sabe que tem problemas e defeitos
que ao longo de toda a sua vida não conseguiu vencer, e não vai conseguir vencer nunca, que esta
história de fingir virtudes, praticar virtude, é uma coisa muito feia. A própria expressão “praticar
virtude”, é uma coisa muito feia, por que virtude é uma força e essa força é Deus que dá, às vezes ele
dá. A virtude pode também se tornar um hábito. O que é hábito? É algo que você tem. E você tem
pela prática repetida. Aquilo se incorpora em você e você esquece que tem aquilo. São estas virtudes
que você nem sabe que tem, essas são as que interessam. Aquilo que já se tornou normal para você.
Um dia, conversando com meu filho Pedro, ele me disse o seguinte: que foi depois de mudar para os
Estados Unidos que eu fiquei sabendo o que é um amigo. No Brasil eu não sabia. Para você encontrar
pessoas leais, que querem o teu bem, querem que você vá para frente, nunca havia acontecido isto no
Brasil. Todos os meus amigos, um puxando o tapete dos outros, isso era o normal. Puxando tapete,
deprimindo o outro, fazendo aquele tipo de gozação sarcástica, sádica, que você sabe que vai ferir o
outro e você sabe que vai ferir o outro, isso era o normal. Pergunto eu: de todas as pessoas que
passaram pelo meu curso, com quantas eu posso ter esse tipo de relação? Por exemplo, minha mulher
está aqui presente, me conhece há trinta anos, ela sabe que qualquer pessoa, que me peça ajuda, eu
nunca diga não. Eu não quero saber se o sujeito é bandido, é desonesto. Nunca! Esta virtude eu
realmente tenho, é uma coisa que se tornou natural em mim, não é uma coisa que eu faço por que eu
quero fazer. Eu faço por que eu não sei fazer outra coisa.
— Ah, mas o sujeito vai te enganar!
Não tem importância. Se ele me enganar, o problema é dele, não é meu. E se me enganar uma vez,
duas vezes, na terceira eu digo adeus, por que eu já fiquei com medo, não posso conviver com esse
cara por que ele vai me dar prejuízo. Para quantos de vocês essas atitudes são normais? Ou por
exemplo, o perdão. Examine você e veja se você tem o instinto do perdão. Quando alguém lhe faz
alguma coisa ruim, se o seu primeiro impulso é perdoar, ou é buscar uma vingança e dar uma bela
justificativa moral para aquilo. Outro critério: quando é que você acha que deve entrar em uma briga?
Quando você acha que tem direito de ficar com raiva e, por exemplo, bater em uma pessoa, ou
denunciá-la publicamente? Então eu vou dar um critério que eu acho que para todas as pessoas que
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tem uma personalidade intelectual, é obrigatório. Você só tem direito de entrar em uma briga se ela
tiver uma importância moral objetiva. Não para você, mas como exemplo para a humanidade em
geral. Se você não encara as coisas desta maneira, então está com o critério de outra camada. Eu
sinceramente, digo de coração, eu não acho que me ofender seja pecado. Nem me prejudicar. Existe
algum mandamento que diz assim: não prejudicarás o Olavo? Não tem. Em princípio, eu não acho
ruim que as pessoas façam isto, mas em certos casos, a conduta do indivíduo, está deseducando os
outros, e está prejudicando ela mesmo. Daí nós temos que entrar. Isto para mim já se tornou uma
coisa óbvia, e eu teria a presunção de transmitir isto a todos os meus alunos. Por que se nós não
aprendermos isto, nós não aprenderemos a ter uma grandeza suficiente, para desenvolver em nós uma
personalidade intelectual e poder atuar publicamente de maneira que seja boa e útil. Isso quer dizer
que, por exemplo, ofensas pessoais, uma pessoa de nível intelectual nunca se enfeza muito com
ofensas pessoais. Por que? Por que ela está preocupada com outra coisa. Por exemplo, esta situação
intelectual do Brasil me ofende profundamente. O total desrespeito que eles tem pelo conhecimento,
pela alta cultura, o Brasil me ofende profundamente. Me xingar, xingar o Olavo. Bom, aí só o Olavo
vai ser prejudicado. Agora, se nisto entra um elemento de despeito ou de desprezo pela alta cultura,
aí me ofende. Sem falar daquilo que ofende o próprio Deus. E normalmente no Brasil as pessoas que
ofendem o próprio Deus, elas sempre o fazem em nome de Deus. Sempre entra lá em nome de Jesus,
sempre entra três ou quatro invocações bíblicas. O indivíduo comete o próprio pecado contra o
Espírito Santo, que é negar uma verdade que ele sabe que é verdade, e neste mesmo momento está lá
citando Jesus, Maria, etc., e não percebe o que está fazendo. Pessoas assim não tem muito que
conversar conosco, e não tem nada o que aprender comigo. Embora eu prefira nestes cursos, manter
uma atitude descritiva e analítica, e nunca exortatória, de dizer o que as pessoas devem fazer, hoje eu
achei que devia fazer isso, que era uma obrigação. Por que, à medida que a gente vai transmitindo
novos materiais, novas informações, abrindo acesso a idéias, a autores, a fatos, a inteligência da
pessoa está sendo estimulada. Mas a inteligência sem a devida base emocional e moral, é um
problema. Por que ela vira sempre um fingimento. O indivíduo está exercendo funções da camada
intelectual, mas em função de motivações menores. Em função de motivações das camadas anteriores.
Por exemplo, se você pegar pessoas importantes da política nacional. Em que camada você acha que
está o Lula? Indiscutivelmente na camada seis: ele sabe fazer as coisas, sabe obter a vantagem, sabe
ter um resultado. Quanto aos códigos morais, códigos de cidadania que ele segue, você veja aquele
caso do menino do MEP e você vê a lealdade que ele têm com os seus próprios companheiros. Ele só
tem a lealdade na medida do interesse próprio. Quando um homem desse usa a palavra cidadania, é
claro que a palavra é vazia. É apenas um emblema, é um enfeite, um adorno, que ele está usando para
se fazer de importante. Quando usa a palavra ética, é a mesma coisa. Você sabe que estas palavras
não tem sentido substantivo numa pessoa dessas. Quanto à D. Dilma Roussef, eu duvido que ela tenha
alcançado a sexta, por que eu nunca vi ela fazer nada que funcionasse. O Lula fez várias coisas que
funcionam: o próprio PT, o Foro de São Paulo. São estas pessoas que estão mandando. Agora vocês
imaginem os formadores de opinião. Leiam as colunas de jornal. Oitenta por cento é constituído de
fingir uma importância que não tem. Pessoas que escrevem em um tom que está infinitamente acima
delas. Que tentam fingir uma impessoalidade acadêmica. A impessoalidade acadêmica é uma coisa
terrível. Imaginem um sujeito que está em plena camada quatro ou cinco e que entra numa
universidade em que ele aprende a escrever como um sociólogo ou um cientista político. Quando
você tem uma série imensa de termos e de construções feitos para fingir uma distância do problema.
Vocês imaginam que coisa mais feia que sai daí. A produção acadêmica brasileira é constituída disto.
Um fingimento de distanciamento, um fingimento de seriedade acadêmica por parte de pessoas que
estão tendo objetivos ou emocionais ou puramente egolátricos, muito inferiores a isto. É claro que
não é aí que vocês tem que buscar os seus modelos. Mas se não houver constantemente um auto-
exame nesta base, e se você não perguntar o que estou querendo mesmo, qual é o objetivo dominante
que é a chave de todos os meus esforços, por trás de todas as minhas alegações, se não houver isso,
não digo que você não vai ter nenhum aproveitamento intelectual, mas você não estará cumprindo a
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finalidade deste curso. Eu repito, este curso não foi feito para atender nenhuma necessidade pessoal
de ninguém, mas uma necessidade nacional. A necessidade de criar uma geração de intelectuais que
possa restaurar a dignidade da vida intelectual no Brasil. Quem foi chamado a isto, pra qualquer um,
é uma coisa muito honrosa. Mas que esta coisa honrosa não seja apenas uma camuflagem de algum
objetivo menor. Os seus objetivos menores serão atendidos também. Quando você passa para uma
camada, a anterior é absorvida. Significa que ela não é mais o foco, mas ela está lá dentro. Um
indivíduo que está na quinta camada, ele está atendendo o seu desejo de felicidade. Só que ele já
entendeu que a felicidade não pode ser conseguida diretamente, que a felicidade passa por um negócio
que se chama o eu, e que o eu tem que valer alguma coisa, tem que ocupar um espaço, senão está
perdido. E assim por diante. A vida intelectual pode atender todas as outras oito camadas anteriores,
desde que ela seja o centro articulador de todos os seus esforços.
Tem aqui uma primeira pergunta, que eu vou pedir para a Isabela repetir em voz bem alta.
Aluno: Judson Rocha Júnior. Boa noite professor! Estou feliz em poder assistir a aula ao vivo, depois
de muito tempo. Há algo para se fazer especificamente para se chegar a uma camada de personalidade
mais importante, ou tudo requer apenas seguir as circunstâncias daquela camada impõem?
Então a pergunta é se há algo a fazer para você apressar ou provocar a passagem de uma camada a
outra. É claro que existe. Se não existisse eu nem daria este curso. Por que eu não tenho a ilusão de
que todo mundo vai chegar aqui em plena maturidade, pronto para desenvolver uma maturidade
intelectual. Eu não posso acreditar nisso. É evidente que as pessoas às vezes estão em camadas bem
mais baixas. Mas o que eu posso fazer? Eu posso precipitar a crise de passagem. Para isso é claro que
o sujeito tem que identificar claramente em que camada ele está e com toda a honestidade reconhecer
isto. Essa honestidade não lhe dará maturidade ainda, mas precipitará a sua crise de passagem. O
critério para você saber em que camada está é perguntar assim: aonde dói? O que me ofende e me
magoa profundamente? Quando você dois menininhos pequenos, que um tenta tomar o brinquedo da
mão do outro, e um desce a mão, então você vê que simplesmente contrariar o instinto de um já é
ofendê-lo. Está então na camada dois por que o que quer que se oponha ao seu instinto dói nele. É
evidentemente camada dois. Quando você estuda a vida do Padre Pio, que é um indivíduo que estava
na camada doze, que é o confronto com a eternidade, você que o Padre Pio só se ofendia com aquilo
que ofendia a Deus. Ofender o Padre Pio você podia do jeito que quisesse. Boicotar os planos dele,
também não mexia muito. Mas se ele visse que a coisa ofendia gravemente a Deus aí ele ficava uma
fera. Ele vivia ali, este era o lugar permanente onde ele estava. Então pergunte para você: o que é que
me dói? O que me magoa profundamente? Então você vai ter a resposta e está acabado. Se você é
desses camaradas que vive ressentido com o mal que lhe fizeram, não aceita rejeição. A garota não
quis ir para o motel com você, você diz que o seu mundo acabou. Então meu filho, você está em plena
camada quatro. E assim por diante. Se você não suporta derrota, de jeito nenhum. Em tudo você tem
que mostrar que é o primeirão, então é camada quinta. Estando na camada quinta significa o seguinte:
você não está preparado para a vida em sociedade. A camada quinta é própria dos dezesseis, dezessete
anos, você ainda tem um pai que te protege, o pai é o teu mediador na vida social. Você participa da
vida social através da família, do pai, você não tem uma função própria ainda. É claro que a gente
pretende que as pessoas mudem de camada rapidamente. Também tem a pergunta: Você não pode
recair? Por exemplo, suponha que você viva numa situação extrema, que você viva num campo de
concentração, sem ter o que comer, pesando trinta e dois quilos, então as suas preocupações serão de
camada dois, evidentemente. Mas isto é temporário. Pode se tornar permanente em certas
circunstâncias. Mas isto é uma desgraça, isso não é para acontecer. Pelo próprio exemplo que eu estou
dando, este não é o caminho normal da humanidade. Uma coisa importante é o seguinte: na medida
em que você passa de uma camada a outra, você tende a se aproximar de pessoas que estão na mesma
camada e que estão entendendo as coisas no mesmo código seu. Porém, se quando você passa de uma
camada a outra, você só está convivendo com pessoas da camada anterior, você vai ter muito
problema. Você pode ser de certo modo forçado a não se desenvolver, forçado a voltar. Embora você
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não esteja realmente ali, você vai ter uma comunicação de dois andares. O que você diz significa uma
coisa para você mas vai significar outra coisa completamente diferente para aqueles que te cercam.
Durante quanto tempo você vai suportar este isolamento? Então é possível que você corte a própria
cabeça simplesmente para voltar a ser do tamanho que os outros eram. E diga:
— Ah, eu cresci demais, eu tenho que cortar, senão meus amigos não vão gostar mais de mim, e assim
por diante.
É natural as pessoas procurarem convivência, pelo menos a convivência mais intensa, com pessoas
que estão na sua camada, que tem os mesmos interesses e que tem portanto os mesmos pontos
doloridos.
Eu vou ver se primeiro tem perguntas referentes a isto mesmo, e depois passar para outras que são de
outros assuntos. O Alessander tem duas perguntas.
Aluno: A primeira delas é se os estados mórbidos — estados de depressão, neuróticos, tristeza —
serão vivenciados diferentemente por pessoas que estão em diferentes camadas.
O Alessander pergunta se estados mórbidos, por exemplo, depressão, serão vivenciados
diferentemente por pessoas de diferentes camadas. Certamente que sim. Na depressão existem fatores
neuro-biológicos que não estão no seu alcance. Mas a tradução simbólica disso para você vai ser
diferente conforme a camada que você esteja.
Aluno: A segunda pergunta é sobre a formação do imaginário pessoal como elemento integrante para
a passagem da camada.
Claro! Ele pergunta se a formação do imaginário pessoal é um elemento importante para a passagem
de camada. É fundamental. O tempo todo você está aprendendo coisas, absorvendo cultura e isto irá
formar uma massa crítica que de certo modo te força a passar de uma camada para outra. Isto quer
dizer que sem a aquisição de bastante cultura, a pessoa não chega. Eu acho difícil uma pessoa sem
bastante cultura chegar à maturidade, por que ela não tem elementos simbólicos para raciocinar sobre
a sua vida, não tem linguagem para isto. Mesmo que sinta algo... por exemplo, se o indivíduo passe
pela crise de maturidade, ele vai cair para a camada anterior, por que não tem elementos para elaborar
isto. Quando as pessoas entram em uma crise existencial e vão para a psicoterapia. O que elas vão
fazer na psicoterapia? Aprender uma linguagem na qual ela possa falar o que ela está sentindo. Muitos
destes estados muitas vezes são vivenciados de maneira muda, de maneira inarticulada. O próprio
esforço de articulação impele a pessoa a saltar uma camada. Por exemplo, quando no período de crise
na camada oito, se cria uma personalidade intelectual, o que aconteceu? Os instrumentos de expressão
da pessoa se diversificaram. Ela se tornou mais capaz de articular interiormente. Só que a articulação
que ele faz já não é apenas de um problema pessoal. Aquilo se torna útil para muita gente, ele está
dando voz para muita gente por assim dizer.
Aluno: Até que ponto o meio hostil, a realidade hostil brasileira, dificulta a produção de pessoas que
consigam chegar a uma camada.
O ideal da sociedade brasileira é manter todo mundo na quarta camada, exceto aqueles poucos felizes
que chegaram à sexta, se sabem ganhar dinheiro em cima dos outros. As pessoas que chegam à sexta
camada vendem fórmulas de felicidade para os idiotas que ficaram na quarta. Isto é o Brasil! Coloque
na sua cabeça: a sociedade brasileira não é normal, não é uma sociedade feita para o ser humano. É
feita para manter todo mundo muito abaixo do que o ser humano pode fazer. A conquista da
maturidade no Brasil é quase impossível. Por que? Por que você não encontra os similares com os
quais você possa dialogar no mesmo nível. Aqueles que conseguem continuar evoluindo sozinhos
vão enfrentar uma solidão monstro. Além de ter de passar de uma camada para outra, vão ter que
desenvolver uma capacidade extra, de suportar esta solidão. Esta capacidade para a solidão também
não é normal no ser humano. O próprio livro do Sertillanges, logo no capítulo I tem um parágrafo —
O intelectual não é um isolado. A vida intelectual é constituída de colaboração. Se você tem que
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exercer isso em condições de isolamento, você vai ter que fazer um arranjo. Ter a capacidade de se
articular numa situação extremamente anormal não é exigível do ser humano. É um dom que alguns
têm, outros não tem. A maioria não tem. Mas passar pelas camadas e evoluir, continuar crescendo até
morrer, é normal no ser humano. Todo mundo chega na décima segunda camada, mas às vezes só
chega quando morre. O confronto com a eternidade você vai ter algum dia, depois de morto. Mas
alguns tem em vida. A capacidade para rearticular as suas forças, para sobreviver em uma situação
de muito isolamento, isso não faz parte da evolução humana normal, é uma situação anormal, que
requer então adaptações. Como é que eu me adaptei a isto? Eu criei o meu próprio público. Não tem
leitores para mim? Então eu vou formar os leitores. Que escritor é obrigado a fazer isto? Quase
nenhum. Você imagina se Thomas Mann ou François Mauriac, tivessem que inventar o seu próprio
público. Nunca aconteceu para eles. Existia já o público e eles escreveram para esse público. Mas eu
vou ter que educar as pessoas por que daí elas serão capazes de ler o que eu escrevi. Se eu fosse por
vocação um escritor no sentido puro e estrito da coisa, eu teria sido liquidado. Mas tinha outras
capacidades, de professor, conferencista, articulador, promouter, organizador cultural. Tinha que
fazer um pouco de tudo. Um sujeito que viveu uma situação muito similar foi Ortega y Gasset. Ele
dizia que exercia todas as funções. Ser filósofo era apenas um aspecto do que ele estava fazendo. Ele
tinha que fazer tantas outras coisas para ser filósofo... Por exemplo, ele fundou revistar, fundou
editoras. Teve uma função de animador cultural que não é normal em um filósofo. Imagina o Eric
Voegelin perdendo o seu tempo com a função de animador cultural. Nunca aconteceu. Ele nem
saberia o que fazer. Se ele vivesse essa situação ele estaria liquidado por que ele não tinha esse talento.
Ele exerceu a função intelectual dele desde cedo, conheceu pessoas que tinham as mesmas
preocupações dele, era como se fossem companheiros vocacionais. Sempre teve. Sempre dialogou só
com eles e viveu nesse meio. Agora o Ortega y Gasset, ele diz que, quando voltou da Alemanha,
tendo estudado ali com o que tinha de melhor na Universidade Alemã, voltou para o meio espanhol
que estava extremamente subdesenvolvido nisso aí. Ele não tinha com quem conversar. Ele teve que
praticamente inventar o seu próprio público. Ortega y Gasset durante muito tempo escreveu artigos
de jornal que não parecem artigos de filosofia, parece outra coisa. Ele está falando para um público
de jornal e não para um público universitário. A situação universitária que ele desfrutou lá, foi ele
mesmo que inventou, ele criou. Ele, o Manuel Garcia Morente e Xavier Zubiri. Fizeram tudo.
Tinha algumas perguntas aqui que eram relativas a isto mesmo. Felipe Valadão pede que eu comente
a expressão “a busca da felicidade na independência americana”.
A declaração da independência americana é uma proclamação de direitos. O direito de um é um dever
que incumbe a outro. Portanto é a prescrição de uma obrigação que as pessoas tem com terceiros.
Dizer que as pessoas tem direito à busca da felicidade significa apenas que você não tem o direito de
atrapalhar a busca da felicidade delas, não importando como elas entendam a felicidade. Não quer
dizer que substantivamente a busca da felicidade faça algum sentido. É uma maneira de dizer: todo
mundo tem o direito de buscar aquilo que ele acha que tem que buscar. E o outro não tem direito de
atrapalhar. Então eu não vejo por que a declaração da independência deveria entrar na na
substantividade do conceito de felicidade ou não. Por que funcionalmente como mera expressão de
um direito é perfeito. Todo mundo tem direito à busca da felicidade, portanto, se o indivíduo acha
que ele deve fazer isto ou aquilo com a vida dele, você não tem o direito de impedi-lo.
Fernando José da Silva: Acompanho o seu trabalho há cinco anos, leio os livros que o senhor indica,
procuro entender a sua filosofia, faço o curso on-line, etc. A vida intelectual tem um papel em tudo o
que faço. Acho até que encontrei a minha própria voz, mas ainda não sei no que este esforço vai dar.
Ou seja, não sei se me tornarei um filósofo, um escritor, um professor excepcional como o senhor,
embora seja claro que é o meu desejo profundo...
Espero que você consiga pois é preciso umas cem pessoas fazendo isso o que eu faço. Se não tiver
pelo menos cem, o Brasil está liquidado.
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... no fundo acho que tenho uma boa capacidade de estudar e aprender, mas não consigo repassar a
terceiros muitos conhecimentos que já obtive por meio de suas aulas. Sinto uma espécie de alegria
dúbia, pois embora seja muito feliz com a minha vida intelectual, por outro lado sinto-me incompleto
por não conseguir em função da minha limitação espalhar virtudes e conhecimento.
Talvez esteja faltando alguma coisa pelo lado literário. A sua expressão talvez não seja suficiente. A
sua linguagem talvez não seja suficiente. E é só isto que está faltando. Ele termina a pergunta
dizendo...
... é possível tornar-se filósofo somente na boa vontade, da sinceridade, ainda que não se tenha a
capacidade para tanto?
Mas a capacidade consiste nisso. A capacidade consiste em ter boa vontade, sinceridade, não há mais
nada. Não há uma outra capacidade excepcional que você precise ter. Mesmo a capacidade de
expressão lingüística não faz parte da expressão filosófica. Um filósofo pode ter uma capacidade de
expressão muito deficiente e mesmo assim conseguir fazer alguma coisa boa, mas no meio em que
você está, onde resta tudo por fazer, onde você tem que educar as pessoas desde o princípio, então a
capacidade de expressão é fundamental, e você vai ter que desenvolvê-la de qualquer maneira. Eu
acho que é só isso que está faltando para você. Se você acha que não tem muita confiança no seu
poder de expressão lingüística e talvez não tenha confiança por que este poder está deficiente mesmo.
Outra coisa: dúvida sobre a sua própria capacidade é a coisa mais ociosa que existe. É um problema
de camada cinco. Se você duvida de sua própria capacidade, prove-a para você mesmo em qualquer
coisa. Não precisa ser na filosofia. Por exemplo, se você for capaz de cantar. Você canta, as pessoas
te aplaudem. Pronto, você ganhou a comprovação da sua força, e daí para adiante você não coloca
mais esse problema nem na música e nem em área alguma da sua vida. Examine bem dentro de seu
coração: tenho dúvida quanto à minha capacidade? Isto é uma coisa ociosa, não leva a nada. O que
você tem que fazer é provar esta capacidade imediatamente. Em qualquer coisa. Qual é o jeito de
provar a capacidade? Arrumar um desafio e vencê-lo. É simples. Depois de vencer um, você está
satisfeito. Em geral, como você já está com toda esta preocupação intelectual, então você está sendo
impelido à camada nove. Então tem um problema empacado de camada cinco, vença-o uma vez e
você verá que nunca mais terá dúvida a respeito de você mesmo. É importante você ter confiança na
sua capacidade de aprendizado, capacidade intelectual, isto é fundamental. Você tem que botar na
sua cabeça: eu consigo aprender qualquer coisa que eu queira aprender. Agora, explicar para os
outros, aí depende, por que isso aí não é uma capacidade, são várias capacidades conforme o meio
em que você está, conforme a situação, etc.
Augusto Rigue: O meio social pode impedir que o indivíduo pule de uma camada para outra?
Pode. É o que eu acabei de dizer. Se você não tem pessoas com as quais você pode dialogar dentro
do seu próprio nível, você é convidado a voltar para trás. E mesmo que interiormente você não volte,
você volta exteriormente. Então quer dizer, você vai estar o tempo todo uma vida interior que você
sente como real, e uma exterior que você sente como irreal. Durante quanto tempo você agüenta isto?
Se isto tiver assim, então você tem que mudar de meio social. Ele dá um exemplo aqui...
Aluno: Pergunto por que o senhor como jornalista teve vários problemas nos jornais que trabalhou
mas por outro lado acredito que a sua atuação como professor o tornou independente, e a estabilidade
profissional é um fator decisivo para subir na camada.
Não, não é. O essencial é que a presença ou ausência de estabilidade profissional não te afetem mais.
Se você precisa da estabilidade profissional, para você continuar evoluindo, então você está empacado
na camada seis. Você não conseguiu a eficiência necessária. Mas a eficiência não pode ser vista só
dentro do ponto de vista profissional. A eficiência tem que ser vista como rendimento total da pessoa
dentro da condição de vida dela. O indivíduo que se contenta com uma posição medíocre, ou modesta,
na vida, para ele ter tempo de fazer outras coisas. Está perfeitamente resolvido. É de uma grande
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eficiência isso. Muitos filósofos, escritores viveram assim, não há problema algum. Mas se você, pelo
fato de ter uma posição modesta, você se sente um incapaz, então você voltou para a camada cinco.
Se os problemas funcionais da sua vida, você não conseguiu organizar a vida suficientemente
modesta, e você continua tendo dívida toda hora, e tem que pensar nisso, então você está com
problema de camada seis evidentemente. A estabilidade é uma coisa que não depende de você
absolutamente. Eu nunca tive estabilidade para absolutamente nada. Nunca tive. Nenhum dia de
estabilidade. Nenhum dia em que eu possa dormir e dizer:
— Olha, as contas estão pagas pelos próximos três meses.
Nunca aconteceu isso, nem por três meses, nem por uma semana. Agora, é importante, para você
resolver a camada seis, que é uma camada utilitária, a total frieza para lidar com estas coisas. Ou seja,
você não permitir que os problemas desta camada se transformem em problemas emocionais de quinta
ou de quarta. Se você está abalado pelos problemas da camada sexta, então você não está na camada
sexta. A camada sexta é a de pura eficiência. E eficiência significa o seguinte: você não vai ter que
se preocupar muito com os problemas. Faz muitos anos que eu descobri uma regra área: você pensar
em uma dívida não põe dinheiro no seu bolso para você pagar a dívida. Então eu só penso na dívida
em dois momentos: quando eu faço a dívida e quando eu tenho o dinheiro para pagá-la. Isso no Brasil
é muito difícil explicar para as pessoas. Por que cada um acredita que se você tem uma dívida você
tem que sofrer dia e noite.
— Olha, eu não pago a dívida mas eu sofro pra caramba.
Então você está tentando provar que você é um homem bom, é um homem honesto.
— Não durmo de tanto pensar no dinheiro que eu te devo.
O credor vai dizer:
— Mas você ficar sem dormir o que me adianta? Você sofrer não vai me dar o dinheiro de volta. Nós
não queremos seu sofrimento, não queremos sua preocupação, não queremos seu arrependimento,
queremos apenas o seu dinheiro meu filho.
Eu entendi isto há tanto tempo e isso tirou um peso da minha cabeça. Eu nunca me preocupo com a
dívida que eu tenho que pegar. Eu me preocupo em ganhar o dinheiro. Como é que eu vou ganhar
dinheiro? Todo mundo precisa de dinheiro então alguma coisa eu tenho que fazer para ganhar
dinheiro. O que eu vou fazer quando ganhar o dinheiro? Eu sei que quando entrar o dinheiro eu vou
ter que pagar a dívida. Mas eu tenho que pensar em como ganhar o dinheiro e não em pensar na
dívida. Se você se deixa oprimir muito por estas coisas, isto está impedindo que você se torne uma
pessoa eficiente. Uma pessoa está na camada seis quando todos os problemas da camada seis ela
pensa com critérios de camada seis, e não de cinco ou quatro. Estão entendendo como no Brasil todo
mundo empurra você para voltar para a quatro? Você tem uma dívida e todo mundo diz:
— Você tem uma dívida, você não vai pegar?
Do que adianta? Eu tinha conhecido que quando começava a falar estas coisas pra ele, diziam pra ele:
— Olha, nós vamos te levar para um cartório
Ele respondia:
— Se vocês me levarem para um cartório que coloque dinheiro no meu bolso eu te dou dez por cento.
Você tem que agir assim, mas também tem que agir assim com o outro. Se o outro te deve um dinheiro,
o que você faz? Fica lá atormentando o cara? Por que você não experimenta rezar, pedir a Deus para
que ele tenha dinheiro? “Deus, põe dinheiro na mão daquele cara, melhora a vida dele” Reze pelos
seus devedores, é uma coisa tão simples. Agora ficar atormentando, ocupado em culpar o sujeito,
para que ele fique se sentindo culpado por que ele tem uma dívida e não pode pagar. Você vai criar
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um problema emocional, que coisa mais feia. Isso no Brasil é regra geral. Todo mundo quer que todo
mundo se sinta culpado por que não pode pagar as dívidas. É a psicologia do caranguejo no balde.
Um caranguejo quer sair e o outro pendura na perna dele. Reze para que todos prosperem, sobretudo
os seus devedores. Nunca fique com raiva de uma pessoa por que ela lhe deve dinheiro. Que coisa
mais feia. Eu não quero me preocupar com as minhas dívidas, mas eu também não quero que os meus
devedores se preocupem com a dívida que ele tem comigo. Eu quero que ele ganhe dinheiro para
pagar a dívida. Agora, se ele fica lá perdendo noites de sono...
— Ah, o que é que o Olavo vai pensar de mim?
Ele está liquidado na vida. Você veja que aqui na sociedade americana essas coisas são muito mais
fáceis. Acho que estas coisas que eu estou falando, de ordem prática, todo mundo entende
instintivamente. Você se atormentar por causa de uma dívida não põe dinheiro no seu bolso. E o
credor se atormentar não ajuda você em nada e não ajuda ele em nada. Se alguém te deve um dinheiro,
por que você não ajuda ele a ganhar dinheiro? Eu vou dizer, no Brasil eu nunca vi alguém fazer isto.
Aluno: Tem gente que está entendendo que dependendo do aspecto da vida da pessoa ela está em
camada diferente. Então profissionalmente ela pode estar na sexta, na sétima...
Não. Está pensando que a pessoa está em várias camadas ao mesmo tempo. Não, isto nunca acontece.
Sempre tem uma que é dominante, é ali onde dói, é ali que você está buscando seus objetivos. Ainda
que você esteja se ocupando de assuntos que teoricamente pertencem a outras camadas. O sujeito
pode estar cheio de dívidas, um assunto de camada seis, evidentemente, mas ele está tratando isto
com critérios de camada quatro. Ele está sofrendo, ele está se acusando, se lamentando, então ele está
na camada quatro. Veja, conforme a idade que você tem os problemas da camada seguinte vêm te
perseguir de qualquer maneira. Por exemplo, ainda que você não tenha evoluído, um dia você chega
a ser um homem fisicamente maduro, e provavelmente as pessoas vão olhar para você como homem
maduro, embora você não o seja. Os problemas da camada seguinte, mas você que não está presente
a eles. O problema da camada em que você está você sempre deve resolvê-lo pela camada mais baixa.
Se o que eu estou querendo é um contentamento que as pessoas me dêem, estou na camada quatro,
evidentemente. Eu espero isso, eu fico magoado por que as pessoas não me atenderam, por que não
me deram atenção. Então eu estou na camada quatro evidentemente, ainda que esteja cheio de dívidas,
ou que esteja estudando Santo Tomás de Aquino, ou ainda que você seja Presidente da República, ou
que seja um escritor. O Brasil está cheio de escritor que está na camada quatro ou na camada dois. Eu
conheci um, e não vou dizer quem era que dizia:
— Eu escrevo com o baixo ventre.
E eu falei:
— Você tem toda a razão.
Aluno: A Cris é quem está com esta dúvida, e ela deu um exemplo. Já vi um médico renomado que
tinha uma vida estável se perder e virar mendigo por que perdeu o amor da sua vida. Largou tudo e
perdeu a motivação pela vida.
Isso aí pode acontecer mesmo. Então onde é que ele estava? Na camada quatro. Uma vida estável
economicamente não tem nada a ver com a camada que você está. Você pode ser filho de um
milionário, então você já tem uma vida estável desde que nasceu. Isto não quer dizer que você esteja
na camada seis, ou que tenha passado por ela. Você pode se formar em direito, então você tem uma
idéia dos códigos e direitos e deveres recíprocos em todos os lugares, o que não quer dizer que você
esteja na camada sete. A maior parte dos advogados que eu conheci não estava, não tinha a menor
idéia dos direitos e deveres. Estava na camada seis, só queria saber dele levar vantagem. Se você tem
uma dúvida da camada anterior, se o problema da camada anterior te absorve, você está nela, você
não está na seguinte, ainda que você esteja se ocupando de assuntos da seguinte. É só quando aquilo
desaparece, quando aquele problema desaparece de você, e ele só aparece nos termos da camada
23

seguinte, aí você passou de camada. Os objetivos de cada camada, quando você muda, eles passam a
ser buscados de uma maneira indireta e eles não são mais um assunto para você. Por exemplo, perder
o medo de falar em público, é um assunto de camada quinta. Eu estou falando em público há quarenta
e tantos anos. A primeira vez que eu falei em público eu tinha doze anos de idade, e com doze e meio
aquilo não era mais um problema para mim. Eu era capaz de falar para qualquer platéia, sobre
qualquer coisa, e não vou ficar com vergonha, com coisa nenhuma. Se alguém tiver que se sentir mal
são eles, eu não. Eles vão dizer:
— Esse chato não pára de falar.
— Problema seu meu amigo, eu não tenho vergonha de falar.
Isto nunca mais foi problema, nunca mais voltei a pensar. Às vezes, claro, você vai fazer uma
conferência e você está com dor de dente, e você não consegue pensar no assunto por que sua dor de
dente é obsessiva demais. Você pode fazer um esforço de abstrair da dor de dente e falar, mas toda
hora ela vem, e você pode ter uma idéia de achar que você não está explicando direito. Às vezes você
está cansado, mas isto não é o centro da sua preocupação, é muito periférico. O essencial do falar em
público é você estar concentrado no assunto. Você tem que esquecer você e a platéia. Só o assunto
interessa. Então as idéias estão aparecendo por que você está pensando no assunto. Mas se você
começa a pensar, como é que eu estou, estou vestido, estão me vendo, que figura eu estou fazendo.
Pouco interessa.
Aluno: Essa intolerância da sociedade americana com o erro, seria alguma coisa da camada quatro
isso?
Não, isso é camada seis. Tudo tem que funcionar.
Aluno: Mas qualquer coisa não está certa já...
Aqui na sociedade americana o pessoal tem um senso de camada seis muito desenvolvido. Agora as
novas gerações já não tem tanto. Eu conheci os Estados Unidos em 1986, e conheço agora, mudou
muito isto. Você entrava em um supermercado e perguntava:
— Você tem aqui sorvete de bacalhau?
O sujeito revirava o supermercado até achar o sorvete de bacalhau, telefonava para o chefe, tinha que
resolver o problema. Todo mundo tinha esta mentalidade. Outro dia, eu entrei no supermercado e
perguntei para a mocinha:
— Tem tal coisa?
— Não, não tem.
Ela não sabia o que era. Isto é brasileiro. Se eu desconheço a coisa ela não existe? É batata! Joga o
problema fora e não vai procurar. Fomos lá, procuramos, e achamos. Era querosene que nós
estávamos procurando. Ela não sabia o que era querosene, então não tem. Essa aí fez cursinho no
Brasil
Mas a maioria aqui ainda não é assim. Por que eles fazem isso? Por que eles são pessoas
maravilhosas? Não. Simplesmente aprenderam que as coisas tem que funcionar. Tem que funcionar,
não por que elas adorem isto. Por que também tem o cara que adora os assuntos de camada seis, só
pensa naquilo, naquela obsessão, achando que aquilo é tudo. Então o sujeito está doente
evidentemente. As coisas tem que funcionar de maneira que você pense nelas o mínimo possível.
Vou te dar um exemplo. Você tem qualquer problema funcional para resolver, problema de
praticidade. Conselho universal: tente resolvê-lo sem palavras. Mediante um gesto, uma ação que
resolva. Agora, você pede para uma pessoa:
— Vai lá e faz uma coisa assim e assim.
24

O sujeito fez uma pergunta, duas, três, ele criou um segundo problema em cima do primeiro, que é o
problema da verbalização da coisa. Você manda o sujeito varrer chão e ele pergunta:
— Como é que eu vou varrer chão? O que eu vou usar?
Pronto, complicou o negócio. Às vezes tem coisa que você sabe fazer e não sabe verbalizar. Se puder
resolver os problemas desta esfera com poucas palavras, é melhor para você. Quanto menos verbalizar
é melhor. Quando um problema prático discussão, então complica, pois já passou para a camada
quatro, o sujeito vai dizer:
— Ah, você não gosta de mim, você tem preconceito contra mim.
Aí complica mais ainda.
Rodrigo Assoufi: O estudo das camadas da personalidade pode ser enquadrado dentro do estudo da
tipologia espiritual humana, no sentido que o sujeito tipificado psicologicamente como xudra, não
passa da quarta camada, o vaxia vai no máximo até a sétima, o xátria chega à oitava, e o brama
caminha em direção à décima segunda.
Eu acho que a grosso modo, a comparação é perfeitamente cabível. Eu mesmo escrevi uma apostila
que chama elementos de tipologia espiritual e eu digo que a pertinência do indivíduo a uma casta ou
a outra se define pelo objetivo predominante da vida dele, o que ele está buscando. Grosso modo o
xudra busca sentir-se bem e evita sentir-se mal; o vaixa busca a praticidade; o xátria busca a honra e
a grandeza; e o brama busca a verdade, Deus, o infinito, etc. Faz sentido de alguma maneira, só que
as castas tendem a ser uma coisa muito mais estável. E há uma dificuldade muito grande de encaixar
a teoria das castas nas classes sociais. É uma coisa que não coincide. Precisaria fazer muitas
distinções, que nesta apostila eu fiz, mas que aqui não tem sentido fazer.

O Alexandre Magno pergunta: Eu gostaria de saber se é pertinente falar de uma hierarquia de valores
como: vida, propriedade, honra. Não creio que exista uma ordem absoluta de prioridade, mas ao
mesmo tempo mas em geral se pode dizer que um valor é de maior hierarquia que o outro.

Todo o problema da teoria dos valores que aparece em Max Scheler é este. É quase incoercível que
os valores se organizem hierarquicamente. Se todos os valores forem iguais, não há valor algum. O
conceito mesmo de valor implica que algo valha mais do que outra. Onde quer que você queira
raciocinar em termos de valor, você esta raciocinando em termos de hierarquia. Não tem escapatória.

Atos Barbosa Lima: Como fica a vaidade, o problema do orgulho que vem naturalmente do conselho
de fazer o bem, e de estar movido pelo amor à verdade. Lembro do (...) “sabemos que fazemos o bem
e assim o maculamos”. Mas é o bem que fazemos e não o mal.

Isto também um problema de camada. Por que você querer se sentir bem por que você fez o bem é
coisa de camada quatro. Você está buscando a sua felicidade. A hora que você entendeu que fazer o
bem pelo menos em certos domínios que você está qualificado para isto é a coisa natural, normal, e
obrigatória, e que você não está fazendo nada de mais, a hora que você entendeu isso, você não se
preocupa mais com esse negócio. Acontece que, como existe uma pressão muito grande para as
pessoas ficarem na camada quatro, então a busca de uma auto-satisfação é obsessiva. No brasileiro
esta busca é obsessiva. Tudo o que ele faz ele quer ter uma recompensa emocional imediatamente.
Onde você busca uma recompensa emocional você tem uma frustração. Agora mesmo estava
comentando dessas pessoas que vivem falando em nome de Jesus, etc. O que estão buscando?
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Satisfação emocional, o sujeito vai se pintar de ouro a si mesmo. É claro que isto é palhaçada, mas à
medida que você cresce, você vê que esses assuntos da vida são mortalmente sérios. E que não dá
tempo de ficar com esse tipo de frescura. Ontem mesmo estava lendo um conselho do Padre Pio que
recomenda você estar sempre de bom ânimo, ter sempre um estado de humor estável. Você não está
nem morrendo de felicidade, nem infeliz, nem triste nem alegre, está normal. E este estar normal é
uma alegria permanente. Isso aí é incrível, por que você está feliz de certo modo. O seu nível de
infelicidade não consegue passar de um certo ponto. Isto você só consegue quando você dedicou
inteiramente a sua vida a alguma coisa que está muito acima de você. Então você deixou de ser
problema. O doutor Juan Alfredo Cesar Müller dizia que você está curado quando você esqueceu de
você mesmo, quando você não é mais problema. Toda este trajeto é para você esquecer de você
mesmo.

Paulo Camargo: Há camadas de personalidade que parecem guardar estreita relação com a faixa etária
de uma pessoa, já outras não, parecem ser mais independentes da idade do indivíduo ao analisá-la,
embora não totalmente. Pergunto, pela experiência que o senhor tem, que faixa etária tinham os
indivíduos que estavam na nona camada da personalidade ao ingressarem nela?

Não antes dos trinta. A idade da maturidade de uma personalidade intelectual é acima dos quarenta.
Eu não duvido que pessoas possam já estar virtualmente nela muito antes disso. Por que a camada
não é uma coisa que você conquista de uma vez para sempre. Existe um período de consolidação, em
que os seus interesses vão mudando, o eixo da sua vida vai mudando.

Alexandre Tamanini: A partir da maior compreensão da teoria das doze camadas que eu gostaria de
ter adquirido na aula de hoje, instantaneamente parece que passei a me lembrar das conversas que
tive com eleitores da Dilma. Parece que retrospectivamente a motivação das pessoas residiam no fato
de manterem a sua felicidade atual. Gostaria de perguntar ao professor se a simples existência da vida
intelectual em pessoas que já atingiram a oitava camada num país, pode fazer que em um debate
público e a preocupação do Zé povão se eleve.

Claro que pode. Você imagina um país em guerra, onde todos são chamados a atender uma
responsabilidade. As pessoas vão pensar na sua felicidade e esperar que o governo as ajude neste
momento? Não. Todas sabem que tem que dar alguma coisa.

(...) Ou seja, o senhor está tentando recuperar a capacidade do brasileiro comum de atingir a quinta,
sexta e sétima camada e se tornar um ser humano mais completo?

Isto só é pensável a partir do momento em que você estiver uma vasta classe intelectual capacita e
séria, senão pode tirar o cavalo da chuva. Quando a camada intelectual decai, ou se desfaz, ou
desaparece, como aconteceu no Brasil, é claro que o nível moral de todo mundo vai pro brejo. Por
que você acha que tem essa coisa de banditismo, esse cinismo generalizado que tem no país, essa
falta generalizada de compaixão? Eu acho que a paixão que as pessoas colocam em discussões
econômicas, no momento em que 50 mil brasileiros estão sendo assassinados por ano, é uma falta de
compaixão monstruosa.
26

— Ah, vai voltar a CPMF!

Todo mundo está revoltado, mas matar cinqüenta mil brasileiros não tem importância. É uma baixa
de nível moral fantástica. Você está criando um país de criminosos. Isto aí se chama mentalidade
luciferina. As pessoas estão ficando luciferinas. Por que isso acontece? Por que não tem gente
suficiente para informar para elas que isto é errado. Os nossos comentaristas e analistas políticos
falam de mil e uma coisas mas eles não tem preocupação com isto. Eu nunca vi um único articulista
brasileiro protestar contra a indiferença geral quanto ao homicídio, a violência no Brasil, a violência
em modo geral. O problema não é violência de modo geral, o problema é homicídio, é morticínio. As
pessoas só falam disso quando há um interesse grupal. Por exemplo, o movimento gay faz um barulho
desgraçado por que no meio de 50 mil mataram 195 gays. Eles mesmos dizem que os gays são
dezesseis por cento da população. Então tinham que ter matado pelo menos 8 mil gays, para estar
dentro da proporção. Se mataram 195 está muito abaixo e então significa que os gays não são um
grupo de risco no Brasil e no entanto eles fazem uma choradeira, por interesse grupal. Quem fala
pelos outros 49 mil e tantos? Ninguém fala. Eles não tem direito a voz e voto. Isso é total falta de
compaixão. Usaram o termo violência. O termo violência é genérico. Homicídio não. Falar homicídio
é falar daquelas pessoas que foram assassinadas. Violência pode ser uma bala perdida, pode ser um
assalto, uma briga de trânsito. Tudo isto é violência, é genérico. Então as pessoas se queixam da
violência. Por que atinge a elas de algum modo. Mas e as 50 mil pessoas que foram assassinadas?
Ninguém as defende? Pode cuspir no túmulo delas como todo mundo está fazendo? É coisa de louco.

Juliano Müller: Não sei ao certo em que camada estou, mas sei que toda a minha vida gira em torno
da busca da verdade e da filosofia deste curso. Trabalho como frentista e isto não me ofende...

Ofende a mim, por que quem devia estar aí é o doutor Emir Sader, é o Rodrigo Constantino. E você
devia estar pelo menos escrevendo em um jornal, dando aula de filosofia. Olha como é que está o
Brasil! A esperança da vida intelectual do Brasil depende dos frentistas. Por que os professores todos
já pediram demissão.

Agora algumas perguntas que vieram da aula passada.

Kenio: Minha pergunta é sobre Hans Ionas. No mês passado tomei contato com os textos de Hans
Jonas onde participara de um curso de pós-graduação em que surgiu uma disciplina com este tema.
Achei o autor original e sábio mas fiquei com a pulga atrás da orelha pois vi que ele era uma espécie
de pai ou mãe do movimento ecológico.

Vamos direto ao ponto. O Hans Jonas sabe tudo sobre o gnosticismo, sabe tudo sobre o gnosticismo,
mas ele é meio gnóstico. Ele foi profundamente influenciado pelo pensamento gnóstico. Acho que o
longo contato fez mal para ele. O que a gnose tem a ver com isto? A gnose não é propriamente uma
doutrina, é uma dimensão da experiência humana. Sempre que você sente que o universo é hostil, que
Deus está contra você, que o universo é um erro, você está vivendo a experiência gnóstica. Alguns
decidem teorizar este estado. Em vez de tentar sair dele, eles começam a justificar e teorizar. Pronto!
Isto é a gnose. Se você procurar uma unidade doutrinal na gnose, não tem. aquilo é um saco de gato.
É um sentimento, uma experiência que você tem que te faz sentir certas coisas. O ser humano pode
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teorizar qualquer coisa, pode pegar qualquer estado subjetivo dele e transmutar aquilo em uma teoria,
como que tentando justificar o seu estado. As justificações você pode tirar de onde você quiser.

Kenio: Algum tempo atrás me submeti a uma terapia em uma discreta clínica de saúde. Entre outras
pérolas, pois o guru mor, trata-se de uma clínica exotérica, escreveu uma série de livros sobre a técnica
que ele desenvolveu por cinqüenta anos e que pretende entregar à ONU para que seja aplicada
mundialmente.

O que o sujeito fez? Exatamente isto que eu estou dizendo. Pegou um estado de espírito dele,
codificou num sistema de erros e quer implantar aquilo mundialmente.

(...) Será que entre as inúmeras clínicas exotéricas no Brasil, esta clínica seria mais uma?

Sem sombra de dúvida.

(...) Pois eles se acham adultos e a humanidade constituída de psicóticos, alguns tratáveis, outros não.
Fiquei feliz em ter saído de lá, mas confesso que sinto falta daquela sistematização toda.

Meu filho, mas ideologia é isso. Te dá um sistema de explicações universais. Note bem, se você pegar
a doutrina da Igreja Católica, ela não te dá uma explicação universal. Ela explica alguns pontos. E é
incompleta, e está sempre tendo que acrescentar alguma coisa a mais. Eu ontem mesmo estava lendo
no livro do Garrigou-Lagrange, que é o guru máximo dos escolásticos, que não era filósofo, era um
teólogo, ele falava sobre lacunas imensas que existem na doutrina da Igreja Católica. Isso quer dizer,
você não é capaz de pegar qualquer fato e explicá-lo pela doutrina Católica. Simplesmente não é
possível. O livro é Deus: sua existência e sua natureza. Ele está falando aqui dos atributos de Deus
então fala da infinitude, eternidade, etc. daí ele coloca: “A ausência de toda sucessão, admitida pela
unanimidade dos teólogos, como elemento do conceito de eternidade, é uma verdade certa que se
aproxima da fé, mas ela não parece ser ainda um dogma da fé católica”. Então, existe sucessão ou
não em Deus? Todos os teólogos dizem que sim, mas isso não faz parte do dogma, então podemos
continuar discutindo. Quer dizer o seguinte: nós não sabemos, parece que sim, parece que isso se
deduz do conceito de eternidade, mas sempre pode alguém dizer, tem isso e mais aquilo, então isso
continua em discussão e ninguém sabe. Agora, existem estes sistemas auto-explicativos que tem
resposta para tudo e tem um mecanismo gerador de respostas para tudo. Se você pegar esse
cientificismo do Richard Dawkins, ele tem uma resposta para qualquer coisa que aconteça no mundo.
É claro que é uma ideologia ou uma pseudo-religião se quiser. É a busca de um repouso, de uma
estabilidade, como que dizendo: “encontrei a verdade, sentei aqui”. Agora os teólogos estão
discutindo esse negócio há dois mil anos e ainda não resolveram. A Igreja é obrigada a dizer que não
chegamos a uma conclusão.

Alexandre Magno: Nestas eleições foram ditas muitas coisas sobre Estado Laico. O senhor poderia
comentar um pouco sobre isso e indicar bibliografia.
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A bibliografia eu não tenho aqui no momento mas existe uma infinidade de livros sobre isto. O que
se pode dizer é o seguinte: se o Estado é laico mas a sociedade é religiosa, então das duas uma, quem
vai decidir as questões morais? Ou o Estado vai impor as suas decisões à sociedade, ou a sociedade
vai influenciar o Estado, no sentido de seguir a sua orientação religiosa. O conceito atual da laicidade
é que o Estado tem a obrigação de impor a laicidade à sociedade. O que é inteiramente absurdo. O
Estado nasce da sociedade, é criado por ela, a sociedade existia muito antes do Estado e vai continuar
existindo depois que o Estado acabar. A sociedade é que predomina. Agora, quando você começa a
pressionar o Estado para que ele faça leis que reflitam a sua moral religiosa, o que você está fazendo?
Você está declarando que a sociedade não é capaz de impor a sua moralidade aos seus membros sem
a ajuda do Estado. Então você está entregando tudo para a mão do Estado. É por isso que estas
políticas da democracia cristã acaba dando errado. Por que eles querem o seguinte:
— O Estado tem que seguir a nossa norma.
Por que o Estado? Você não é capaz, pela sua influência cultural, social, fazer as pessoas agir assim
independentemente do que o Estado diz ou não? Agora, se eu quero pegar os dez mandamentos, a
bíblia, e transformar tudo em Constituição, em direito penal, civil, então eu estou confessando a minha
impotência. A sociedade não tem iniciativa suficiente para ela se governar a si mesma. E ela apela ao
Estado. Neste momento ela não pode reclamar que o Estado venha querer lhe impor o seu laicismo.
Você dá arma para o bandido e depois você reclama que ele te assalta? Toda essa política dos
movimentos políticos todos que querem cristianizar o Estado, eles estão loucos. Vocês tem que
cristianizar a sociedade, as pessoas, não o Estado. Você tem que tirar funções do Estado e cumpri-las
por você mesmo. Por exemplo, a educação.
— Ah, nós queremos que a nossa religião, nossa doutrina, seja ensinada em todas as escolas.
Pra que? Por que você não faz as suas próprias escolas e ensina do jeito que você quer e vira as costas
para o Estado? É isso que você tinha que fazer. Agora você entrega tudo para o Estado, então você
precisa de verbas do Estado, e fica lá a Igreja nas portas do Estado pedindo dinheiro. É um mecanismo
de auto-boicote. Praticamente todas as políticas supostamente cristianizantes, todas são culpadas
disto. De certo modo identificam o poder com o Estado, quando o que nós temos que fazer é lugar
para que o poder esteja na sociedade e permaneça nela, e ao Estado delegar só uma parte pequena. O
que é o Estado? É uma administração. Uma administração em si não pode ser cristã nem anti-cristã.
Existe uma contabilidade cristã? Não. Então também não existe uma administração cristã. Este é um
departamento onde os critérios são de eficiência, de funcionalidade, etc. O Estado por si mesmo é
uma máquina antipessoal. Você pode cristianizar um automóvel? Um liquidificador? Não pode. Então
o Estado deve ser mantido nos limites do automóvel e do liquidificador. É uma máquina que serve
para determinadas finalidades. Ele tem a tendência de se expandir e virar o educador, o guru, o
médico, tudo. Quanto mais você pede a ele, mais ele gosta. E se você pedir para ele ser cristão, ele
diz que sim. Mas então o cristianismo da sociedade depende do Estado. O certo não é lutar para que
as leis reflitam a doutrina cristã, é para que a sociedade seja cristã. E para que o Estado não se meta.
Por exemplo, eu devo discutir se o Estado deve aprovar uma lei abortista ou não? Quem deu
autoridade ao Estado, autoridade de discutir esse assunto? Fomos nós mesmos! Nós pedimos que ele
se metesse e ele se meteu. No Brasil a rejeição ao aborto é maciça. Acho que são 72%. Como que
esses 72% não tem meios de fazer valer a sua opinião em cima do Estado? É por que se acredita
realmente que o Estado tem uma legitimidade superior à da própria sociedade. Só é legítimo aquilo
que o Estado aprova. Mas quem botou ele lá em cima?

Edson Cavacubo: Me matriculei no curso de Filosofia on-line, no entanto preciso de orientações para
poder acompanhar o curso de forma adequada. Peço informações sobre o prazo para entrega de
trabalhos, sobre a duração do curso para alunos que iniciam tardiamente.
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A duração é a mesma. Não a duração em tempo, mas em número de aulas. Você vai assistir todas as
aulas, não pode pular nenhuma. Se você está acompanhando as atuais, e repassando as antigas, você
fará o mesmo número de aulas que todo mundo fez. É claro que, uma vez terminado o curso para
quem iniciou no começo, vai ter um prolongamento para estas pessoas que ficaram com aulas
atrasadas. Não se precipite que nós vamos resolver a coisa na medida em que o problema vá se
apresentando.

Eduardo Ribeiro: Qual o nome do ideólogo do Obahma que fez uma dedicação a Satanás no seu livro
e qual a relação dele com o movimento neotomista e o Vaticano II?

Chama-se Saul Alinski, que é amicíssimo de Jacques Maritain e de Paulo VI. Não sei como admitiram
este sujeito lá dentro.

Aluno: O senhor julga que a expansão de seitas como a de Gauge, com os mandalas e eneagramas,
tornam as pessoas pré-dispostas a obsessão e possessões, como descreve Malachi Martin... ao passo
que o Modernismo na Igreja Católica e a descrença moderna na atuação do maligno entram apenas
como força passiva?

Eu não acredito que a seita do Gauge tenha toda esta relevância. Você tem seitas satanistas que atuam
dentro do Vaticano, fazem ritos lá dentro, atuam junto a todos os governos do mundo, então
funcionando agora mesmo, e o Gauge perto disso é menino passarinho.

Cristiano Kanezin: A causa da alienação pelo centro do ser percebido pelo senhor na pessoa e em si
mesmo, não seria decorrência daquilo que a pessoa denomina pecado original?

Claro que não. O pecado original é antiqüíssimo e ele nunca implicou esta alienação como hoje. O
que acontece é que a nossa civilização pelo menos nos últimos trezentos anos, e mais ainda a partir
da segunda metade do século XIX, ela de fato perdeu o centro, perdeu o eixo. Nós estamos numa
transição do cristianismo para o luciferismo, ou para o Islã, na qual o Islã aparece até como uma
alternativa menos ruim. Como que as pessoas poderiam não estar sofrendo de profunda alienação,
perda do centro do ser, perda da própria voz, perda da própria expressão humana, perda da caridade,
perda compaixão, se a civilização como um todo está perdendo, se nas altas esferas as lideranças
perde? A sociedade humana não tem toda esta autonomia. Nós que estamos estudando, estamos
tentando defender por meios intelectuais a nossa autonomia. Mas isto custa muito trabalho. Não é
natural que o cidadão comum tenha autonomia para se manter imune a estas correntes. Nem nós
temos, temos que lutar muito para isso. Não temos que perguntar por que as pessoas estão alienadas.
A pergunta é: como poderiam não estar? Você leia a profecia de Fátima, leia a profecia de La Salette,
e você vai ver que tudo isto está se cumprindo diante de nossos olhos. E você pensa que isso é
brincadeira? Quando Nossa Senhora disse que se o Papa que estava no trono em 1960 não cumprisse
as instruções dela, os erros da Rússia se espalhariam pelo mundo, o que acontece? O movimento
comunista se expandiu depois da queda da União Soviética. E não só o movimento comunista. Junto
com ele vem o naturalismo, luciferismo, de maneira avassaladora. Isto está acontecendo, e nós
estamos no meio disto. E como poderiam as nossas personalidades magicamente permanecer imunes?
Não, nós temos que lutar e pedir a Deus a ajuda do Espírito Santo vinte e quatro horas por dia. E
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quando você for invocar a Deus, só invoque a Deus para dizer que Deus me perdoe. Esta é a única
invocação que você tem que fazer. Não é sair falando mal dos outros, em nome de Jesus. Quem faz
isto evidentemente está do outro lado.

Aqui tem uma pergunta interessantíssima sobre um assunto... tem várias perguntas... mas tem uma
aqui que eu não posso deixar de responder, por que ela é realmente importante, sobre teoria do
conhecimento.

Um parênteses. O Carlos Velasquez me manda uma mensagem mas eu prefiro lhe responder
pessoalmente. Você diz que quer enviar o texto para esse seu amigo pintor. Manda imediatamente,
nem precisa discutir. Quanto ao fato de você escrever um blog, na situação pessoal que você vive, é
inteiramente justo você continuar fazendo o seu blog político. Não entre na categoria de abstenção de
opinião, neste caso não entre.

Agil Marin: A partir da aula 47 tentei raciocinar a partir de algum modo o que foi dito pelo senhor a
respeito da apreensão da forma inteligível com o experimento das cartas de baralho comentadas na
aula 15. 1 – Se a apreensão da forma inteligível é imediata, o primeiro raciocínio sobre qual o monte
de cartas é o mais seguro e qual o mais arriscado, chega o indivíduo submetido ao teste, não pela
elaboração de um juízo de probabilidades montadas sobre o resultado das tentativas às quais ele
participa como se ele tivesse pegado a forma no ar?

Entendo a pergunta, e muita gente deve ter feito esta pergunta. Acontece o seguinte. A forma
inteligível que você pega é a forma inteligível dos objetos, dos seres, das relações entre eles. A ação
de um sobre o outro você não tem como pegar pela intuição da forma inteligível. Você reconhecer
um ser é captar a forma inteligível dele imediatamente. Isto aqui é um copo, aquilo é uma câmera,
isso aqui é uma mesa, este aqui sou eu, ali está a Roxane. O que você está captando em tudo isso aí?
Formas inteligíveis. Isto é imediato. Agora, se em um monte de cartas tem mais cartas propícias do
que no outro, não se trata de captar uma forma inteligível, mas isto é um raciocínio de probabilidades,
e este raciocínio é feito de duas maneiras. Raciocínio sempre você está usando signos. Não é captado
nas coisas, você monta isso na sua cabeça. Só que em um caso você está usando os signos tal como
diretamente apreendido na realidade, e no outro caso é com os signos que você montou na sua cabeça.
O raciocínio é montado nos dois casos, ele não é intuitivo. Na própria aula eu enfatizei que nos dois
casos se trata de um raciocínio, só que um você está jogando com signos que você está vendo na
realidade, e no outro, com signos que você criou na sua cabeça. O raciocínio foi você que criou nos
dois casos. Só que no segundo você cria os signos também. Isto dá mais trabalho evidentemente. É
por isso que a mão percebe a coisa e o que está acontecendo, antes de que a mente, por assim dizer,
perceba. Mas este raciocínio que você fez por assim dizer com a mão, ele é um raciocínio também,
ele não é uma apreensão intuitiva de maneira alguma. Por exemplo, eu mostro uma figura para você
e quero que você apreenda algo para você nesta figura. Eu desenho um quadrado na parede e digo:
— Se eu traçar aqui uma diagonal, o que eu obtenho?
Você pode olhar para a parede e dizer:
— Você obtém dois triângulos isósceles.
Agora é outra coisa é dizer:
— Fecha os olhos e pensa o quadrado.
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O raciocínio é o mesmo nos dois casos. Só que em um você está usando um signo que está fisicamente
presente, e no outro caso um signo que você mesmo montou. É claro que este segundo raciocínio é
mais lento, embora você tenha mais controle sobre ele. Em nenhum dos dois casos é percepção
intuitiva, e não é percepção de forma inteligível. Forma inteligível é só quando os seres, as entidades,
não as suas relações, as suas posições recíprocas. Na quase totalidade dos casos você tem que fazer
algum raciocínio para isto. Esta é que é a confusão.

Bom, acho que por hoje já fomos longe demais. Já são 23h no Brasil.

Transcrição realizada por: Pe. Emilson José Bento

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