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Parecer 048/2014

Da inaplicabilidade da lei 8.666/93 ao pagamento de licenciamento de veículos automotores pela


Administração

INTRODUÇÃO

Subsistem muitas dúvidas acerca do procedimento para pagamento anual da denominada


taxa de licenciamento de veículos automotores de propriedade da Administração Pública. Muitas
vezes se aplica de forma automática o rito da Lei 8.666/93 (LLC) referente às inexigibilidades, sem
maiores reflexões sobre o assunto.

O objeto do presente artigo é abordar a adequação ou não de tal forma de proceder em


relação ao pagamento da já mencionada taxa de licenciamento de veículos automotores, cobrada
anualmente dos respectivos proprietários, isto é, da Administração Pública.

A APLICAÇÃO DA LEI 8.666/93 SOMENTE A RELAÇÕES CONTRATUAIS

Tem-se, portanto, que a dúvida a ser dirimida refere-se à aplicabilidade ou não do


procedimento de inexigibilidade de licitação para pagamento da taxa de licenciamento de veículos
automotores.

A necessidade de prévia licitação para a celebração de contratos públicos deriva de


mandamento constitucional inscrito no art. 37, XXI, da Constituição Federal, in verbis:
Art. 37. [...]
[...]
XXI - ressalvados os casos especificados na legislação,
as obras, serviços, compras e alienaçõesserão contratados mediante processo de
licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com
cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da
proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação
técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.
(sublinhamos)

Note-se que a redação prevê especificamente o termo “contratados” querendo referir-se,


obviamente, aos “contratos”; além disso, menciona como espécies de contratos as “obra”, os
“serviços”, as “compras” e as “alienações”.

Na Lei 8.666/93, que concretizou o mandamento constitucional, seu art. 2º melhor definiu
o âmbito de aplicação dessa exigência da Carta Magna:
Art. 2o As obras, serviços, inclusive de
publicidade, compras, alienações, concessões, permissões e locações da Administração
Pública, quando contratadas com terceiros, serão necessariamente precedidas de
licitação, ressalvadas as hipóteses previstas nesta Lei.
Parágrafo único. Para os fins desta Lei, considera-se contrato todo e qualquer ajuste
entre órgãos ou entidades da Administração Pública e particulares, em que haja
um acordo de vontades para a formação de vínculo e a estipulação de obrigações
recíprocas, seja qual for a denominação utilizada.
(sublinhamos)

No caput do artigo fica explicitado um maior número de casos do que aqueles do texto
constitucional; foram inseridos, por exemplo, os contratos de concessão, as permissões e as locações.

Ao definir o que entende por “contrato” para os fins da Lei, na verdade o texto está a
definir o âmbito de aplicação da referida Lei. Lembre-se de que o dispositivo constitucional exige a
licitação para aqueles serviços a serem “contratados”, assim como a Lei 8.666/93 fala que aquelas
atividades, quando forem “contratadas” com terceiros, serão precedidas de licitação. Ora, decorrência
lógica desse fraseado é a de que a licitação é obrigatória quando previamente à celebração de um
instrumento cuja roupagem jurídica seja a de um “contrato”.

Por via de consequência, quando da realização de despesas públicas outras, que não
possam ser enquadradas como contratos, não há que se falar em licitação nem, igualmente, em
aplicação de procedimento de dispensa ou inexigibilidade de licitação, se cabíveis. Cita-se como
exemplo o pagamento de diárias e de ajudas de custo a servidores, cuja natureza não é contratual,
mas afeta à área de gestão de pessoas; o pagamento decorre do simples vínculo do servidor com a
Administração e do ato administrativo que fundamenta esse pagamento (remoção, viagem a serviço
etc.).

Cabe, então, distinguir os casos em que se está diante de “contrato”, daqueles em que o
pagamento decorre de obrigações outras que não “contratuais”, sendo importante aqui averiguar os
atributos que a Lei 8.666/93 defere aos contratos.

Pelo parágrafo único do art. 2º da LLC, elementos essenciais para a celebração de um


contrato são a existência de um acordo de vontades e a presença da Administração Pública de um lado
e de um particular de outro. Quando estiverem ausentes alguns desses pressupostos, há fortes indícios
de que não é necessária – ou seria inadequada – a celebração de um contrato administrativo, sendo
igualmente descabido o procedimento prévio de licitação ou os atos necessários a sua dispensa ou
inexigibilidade.

Cite-se lição de Marçal Justen Filho que corrobora o entendimento acima:


Quando alude a “contrato administrativo”, a Lei indica um tipo de vínculo produzido por
manifestação conjunta e concorde de vontade. A relação jurídica entre a pessoa
administrativa e o terceiro sujeitar-se-á a esse diploma apenas quando for
produzida consensualmente. Ficam excluídas todas as relações jurídicas cujo
aperfeiçoamento dispense a concordância do terceiro. Por isso, não se aplicam as regras
da Lei em casos de desapropriação, tributação, requisição administrativa, sanções
penais etc. Sempre que a lei dispense, para o aperfeiçoamento do ato jurídico, o
concurso da vontade do terceiro, não se aplica a Lei (2004: 34).
(destaque no original)
Do mesmo modo, Hely Lopes Meirelles apresenta como primeira qualificação do contrato
administrativo a natureza consensual, ao dizer que ele se classifica como “consensual [bilateral], em
regra, formal, oneroso, comutativo e realizado intuito personae. [...]; é formal porque se expressa por
escrito e com requisitos especiais; [...]” (2009: 214).

Conclui-se, portanto, que a Lei 8.666/93 somente se aplica aos contratos administrativos,
assim entendidos os instrumentos que consignem uma relação jurídica entre a pessoa administrativa e
um terceiro, relação esta produzida consensualmente. Jamais há de se cogitar, por exemplo, na
utilização da Lei 8.666/93 para pagamento de tributos:
[...]. No Estado de Direito, a dívida de tributo estruturou-se como uma relação jurídica,
em que a imposição é estritamente regrada pela Lei, vale dizer, o tributo é um
prestação que deve ser exigidanos termos previamente definidos pela lei, contribuindo
dessa forma os indivíduos para o custeio das despesas coletivas (que, atualmente, são
não apenas as do próprio Estado, mas também as de entidades de fins públicos).
Tributar [...] mantém ainda hoje o sentido designativo da ação estatal: o Estado tributa.
O tributo [...] seria o resultado dessa ação estatal, indicando o ônus distribuído entre os
súditos. [...]
[...]
O tributo, portanto, resulta de uma exigência do Estado, que, nos primórdios da história
fiscal, decorria da vontade do soberano, então identificada com a lei, e hoje se funda na
lei, como expressão da vontade coletiva. (Amaro, 2005: 16-17).
(sublinhamos)

Note-se, portanto, que a relação tributária nada tem de contratual, devendo ser tratada
em apartado.

A TAXA DE LICENCIAMENTO DE VEÍCULO AUTOMOTOR COMO ESPÉCIE DE TRIBUTO E A NÃO


APLICAÇÃO DA LEI 8.666/93 AO PAGAMENTO DA EXAÇÃO

Sob gênero “tributo”, a Constituição arrola espécies, como os “impostos”, as “taxas”, as


“contribuições de melhoria” etc, não cabendo aqui discutir a celeuma acerca da classificação
constitucional dos tributos (cf. Amaro, 2005: 27-82 e Sabbag, 2004: 67-105). Convém apenas ter
ciência dessa distinção inicial, porque, não obstante a existência de mandamento constitucional que
consigna imunidade recíproca aos entes da Administração Pública, o preceito somente se aplica às
espécies denominadas “impostos”, in verbis:
Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à
União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
VI - instituir impostos sobre:
a) patrimônio, renda ou serviços, uns dos outros;
[...]
§ 2º - A vedação do inciso VI, "a", é extensiva às autarquias e às fundações instituídas e
mantidas pelo Poder Público, no que se refere ao patrimônio, à renda e aos serviços,
vinculados a suas finalidades essenciais ou às delas decorrentes.
§ 3º - As vedações do inciso VI, "a", e do parágrafo anterior não se aplicam ao
patrimônio, à renda e aos serviços, relacionados com exploração de atividades
econômicas regidas pelas normas aplicáveis a empreendimentos privados, ou em que
haja contraprestação ou pagamento de preços ou tarifas pelo usuário, nem exonera o
promitente comprador da obrigação de pagar imposto relativamente ao bem imóvel.
(sublinhamos)

Confirmando a disposição literal acima, interpreta a doutrina:


O artigo em comento traz à baila regra imunizante adstrita tão-somente aos impostos. A
proibição, pois, refere-se à espécie “impostos”, e não a taxas e contribuições. Tal
intributabilidade encontra respaldo no fato de que o imposto enseja um poder de
sujeição de quem tributa sobre quem é tributado, não sendo possível imaginar tal
subserviência no sistema federativo nacional entre os Entes Federados. Com relação aos
demais tributos (taxas e contribuições de melhoria), a contraprestação ou bilateralidade
de tais gravames prevalecem sobre a regra imunizante. (Sabbag, 2004: 47)

Assim, em princípio, o pagamento da espécie tributária “impostos” pela Administração


Pública não deve ser feito, em razão do princípio da imunidade tributária recíproca, a afastar qualquer
débito dessa natureza. No entanto, a Constituição não outorga aos entes públicos o direito de não
pagar espécies tributárias outras, tais como “taxas”, “contribuições” etc. Por exemplo, a Administração
não paga o Imposto sobre a Propriedade Territorial Urbana (IPTU), mas deve pagar outras taxas
incidentes sobre o imóvel, como taxa de lixo, de esgoto, contribuição de iluminação pública etc.

Sendo assim, para tais espécies tributárias, que não os impostos, a Administração tem o
dever de pagar, não por força de um contrato administrativo, eis que ausente qualquer manifestação
de vontade, mas pela mera realização do fato gerador. Por isso, não se aplica a disciplina da Lei
8.666/93 ao pagamento de tributos, como reconhece a própria doutrina, no trecho transcrito acima
(“Por isso, não se aplicam as regras da Lei em casos de desapropriação, tributação,...”).

A despesa, embora sujeita a outras normas, como a Lei 4.320/64, a Lei de Diretrizes
Orçamentárias, etc., não se submete à Lei de Licitações e Contratos. O afastamento da LLC traz
algumas consequências, tais como: não é necessário um termo de contrato; não precisa deflagrar
qualquer procedimento de dispensa ou inexigibilidade; não se aplica o art. 38 parágrafo único da LLC,
ou seja, eventual consulta à Procuradoria Jurídica do órgão é facultativa.

Como rega, portanto revela-se indevida a utilização dos procedimentos da Lei 8.666/93
para o pagamento de tributos, pois não se trata de vínculo contratual, porém, até agora nada se falou
acerca da natureza e classificação tributárias da denominada taxa de licenciamento de veículos
automotores.

O que se denomina de forma leiga “licenciamento”, a legislação entende o valor pago para
os fins de expedição do Certificado de Licenciamento Anual, conforme previsto no art. 130 e seguintes
da Lei 9.503/97 (Código de Trânsito Brasileiro – CTB).

Na classificação doutrinária e na definição constitucional dos tributos, o valor enquadra-se


como taxa, devida pela utilização do serviço público de licenciamento do veículo, conforme já
considerado pelo Superior Tribunal de Justiça:
PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. OFENSA AO ART. 535 DO CPC.AUSÊNCIA.
1. Cuida-se, na origem, de ação de repetição de indébito pela qual a ora recorrida
pretende a restituição, com os acréscimos legais, dos valores pagos ao Estado de Minas
Gerais a título de Taxa de Licenciamento, nos exercícios de 2003 a 2008, referentes aos
veículos de sua propriedade, em função de suposta inconstitucionalidade do artigo 5º
da Lei Estadual n. 14.136/01.
[...]
(REsp 1297695/MG, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA,
julgado em 16/02/2012, DJe 27/02/2012) - sublinhamos

Assim, não resta dúvida de que a taxa de licenciamento tem natureza tributária e se
enquadra na espécie denominada taxa, não incidindo a mencionada imunidade tributária recíproca,
que se restringe às espécies tributárias classificadas como imposto. O pagamento da referida taxa de
licenciamento, portanto, é devido inclusive por órgãos públicos, mas no seu pagamento não se revela
adequada a utilização dos procedimentos previstos na LLC.

CONCLUSÃO

Em sede de conclusão, cumpre fazer um resumo de tudo o que foi dito neste artigo, em
ordem lógica apta a consignar todos os fundamentos postos. Primeiramente, viu-se que a Lei 8.666/93
somente se aplica aos instrumentos enquadrados juridicamente como contratos, isto é, a relações
ditas contratuais, conforme entendimento legal e doutrinário.

Depois, viu-se que a Administração Pública está obrigada a pagar tributos, sendo imune
apenas daquelas espécies tributárias denominadas “impostos”. Sendo o tributo enquadrado como
“taxa”, por exemplo, é devido o seu pagamento. Ainda em relação ao estudo dos tributos, viu-se que a
despesa conhecida como licenciamento de veículo enquadra-se como taxa e sua cobrança da
Administração Pública é, pois, devida.

Entendendo-se, portanto, que ao pagamento de tributos pela Administração não se


aplicam as disposições da Lei 8.666/93 e que o licenciamento é espécie de tributo, não há como
concluir de forma diversa: não se aplicam os procedimentos da Lei 8.666/93 ao pagamento da taxa de
licenciamento de veículo automotor, não havendo que se falar em contratação por dispensa ou
inexigibilidade.

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