Você está na página 1de 61

Apresentação i5

V.
de uma ~udança. A obra de Sade multiplica pontes, abismos,
claustros, ilhas - lugares quer de passagem, quer de encerramento,
mas que portam, todos~ o sentido de uma transformação em curso,
figurada pela translaçao espacial, e com freqüência também o
sentido de uma cofcentração que adensa as experiências novas
reveladas no texto. Mas, ao mesmo tempo que na própria obra
lemos esses trajetos, sucede também em nós, leitores, alguma sorte
de passagem, de iniciação. O texto de Sade, apresentado por Eliane
na boa, ainda que recente, tradição de um século que deu ao
marquês uma popularidade e simpatia antes desconhecidas, não
mais se arrasta na repetição ou monotonia de que tanto foi acusado:
toma-se o veículo de uma novidade, de uma revelação leiga.
Aqui, a segunda conclusão. Apostando no materialismo de Sade,
Eliane Robert Moraes pode então libertá-lo da imagem assustadora
que dele construíram os séculos XVIII e xrx. Não, é certo, para
compor um marquês bem-pensante, por exemplo, o apóstolo pre-
coce e incompreendido da liberdade se:xual.4legar-lhe a identifica-
ção com o Mal não significa reduzi-lo a um casto e quem sabe
castrado anjo de presépi~ Mas era pr~ciso afastar os preconceitos,
sair do plano do bem e do mal, para apreender o vigor sensual de
uma obra como a de Sade. Dizendo de outro modo, é a perspectiva
resolutamente materialista de Eliane que abre caminho para uma
leitura que fará mais justiça ao erotismo sadiano do que as leituras
assustadas do passado. Para a ficção do marquês expor toda a sua
sensualidade, era pois necessário esposar os ritmos de seu pensa-
mento; sem o materialismo, que é de sua filosofia, não será legível
o erotismo, que é de sua fantasia. Um repertório de alguns temas
seletos assim se mostra especialmente rico para se ingressar no
pensamento e na ficção de Sade. E, para te~~r _numa nota
pessoal, minha impressão de leitor que teve o _pnvilegio de acom-
panhar a escrita deste livro: raras vezes, acredito, o prazer que se
tem em ler deverá tanto ao prazer que teve a autora em escrever.

Sete Praias, março de 1994.


NOTA INTRODUTÓRIA

Nos últimos anos de sua vida, passados no hospício de Charen-


ton, Sade escreveu um ~esta~ento onde, além de dispor dos poucos
bens q1:1e lhe res~avam, ma~~stava o desejo de ser completamente
esquecido dep~1s de morto. que os traços de minha cova desapa-
re~am por d~b_aixo da superfície d~ ~erra assim como eu anseio que
nunha memona se_ apag~e do esp1nto dos homens, com exceção,
contudo, do reduzido numero dos que bem me quiseram amar até
o último momento e de quem levo uma doce recordação ao túmu-
lo" * Segundo indicam os biógrafos, as disposições testamentárias
não foram obedecidas tal como detalhadas pelo velho Marquês.
Tampouco o foi seu desejo de ser banido da lembrança dos homens.
Aliás, neste caso parece ter ocorrido exatamente o contrário:
passados mais de duzentos e cinqüenta anos de seu nascimento, o
criador da ~ociedade dos Amigos do Crime vem sendo aclamado
como romancista e filósofo, vindo a ocupar um lugar de honra na
história da literatura.{> mais perigoso escritor ocidental transforma-
se agora num respeitável clássico. Maldito no XVIII, clandestino no
XIX, para enfrm tomar-se divino no nosso século, que se deixou
fascinar definitivamente por ele~
"O espírito mais livre que jamais existiu no mundo" - escreveu
Apollinaire ao apresentar Sade em 1909, quando publicou a primei-
ra antologia de escritos sadianos de que se tem notícia, acompanha-
da de um pequeno estudo biográfico. Estava dado o primeiro passo
para que o autor de Justine viesse a ser venerado pelas vanguardas
t
européias da época; geração que se reunia em tomo do surrealis-
mo teve especial atração por ele, conferindo-lhe um papel funda-
mental nos cenários da modernidade~ Considerado um dos mais
importantes surrealistas avant la lettre, lido e interpretado por
autores como Antonin Artaud, Georges Bataille, Luís Buiíuel ou

1 Citado por Gilbert Lcly, Vie du Marquis de Sade, Paris, Gallimard, 1957, tomo
D, p. 659.
18 Nota Introdutória

André Breton, sade influenciou de forma decisiva essa geração, para


,, mesmo das diversidades que se desenvolveram no seu interior
a1em ,, , • fi ·
Mas Apollinaire havia ido alem e pro.1et1zara que a 1gura do marquês
,, ul o XX" •
iria "dominar o sec . ,, . .
Com efeito, não são poucos os md1c1os de que o interesse Por
ele tem aumentado significativamente nas últimas décadas. Além
das diversas publicações de sua obra completa, culminando com a
edição em curso pela Bibl~othequ_e de la Plé~a~e, há que se ter em
conta O número de traduçoes realizadas nos últimos anos em vários
idiomas. Mais que isso, tal interesse revela-se sobretudo na quanti-
dade de estudos em tomo do Marquês: uma bibliografia organizada
em 1973 por E. Pierre Chanover aponta quase s~iscentos títulos
publicados, a maior part~ deles dos anos 50 par~ ca. Acre~cente-se
a esses, um expressivo numero de trabalhos escritos nas decadas de
70 e 80, quando se realiza uma efetiva exegese da obra de Sade.
A felicidade libertina participa dessa linhagem de estudos contem-
porâneos que, para além mesmo do que já foi realizado, insiste em
continuar propondo interpretações para o pensamento sadiano. Insis-
tência significativa por si mesma, e, ainda mais, pelo fato de que ela só
encontra para.19.0 na idéia, hegemônica entre os intérpretes do Mar-
quês, de que ~ade continua sendo irredutível a toda e qualquer
interpretação~ "Felizmente irredutível'' e "enigmático", como afirma
Michel Delon, o organizador da edição da Pléiade, ou, como reitera
'simone de Beauvoir: "habitado pelo gênio da contradição, seu pensa-
mento emprega-se em frustrar quem quiser fixá-lo e desse modo ele
atinge seu objetivo que é preocupar-nos"~ Certamente não consegui-
mos decifrar o enigma que sua obra encerra; mas hoje, sem dúvida,
tentamos reconhecê-lo. E continuamos insistindo.
Contudo, sendo este um trabalho produzido no Brasil, onde Sade
é pouco conhecido e estudado, ele visa não só propor uma inter-
pretação, dialogando com outros estudiosos, mas também apresen-
W:, o _aut~r. Para tanto, valeu-se de uma estratégia sugerida na
propna leitura da obra: a de acompanhar o itinerário dos libertinos
sadianos, desde a viagem, ponto de partida, até a chegada, quando
!'15talam-se no boudoir~Cada capítulo representa um espécie de
parada" na trajetória prometéica desses personagens, iniciando-se
nos espaços abertos do universo para fechar-se progressivamente

3 .5imoae de BcalJVOir. •n-- --


51o Paulo •
' -~•~ quetmar Sadc?" in Novelas do Marquis de
'-Âa
UU'- 1
, Difel, 1967, p. 38.
26 Capítulo 1

re provém do sangue, ele percorre o mundo p


culável que semp . h . ara
' h
tudo con ecer e experimentar; tais con
. _ec1mentos e experiênc· 1as
,, b
so cola oram para reforçar suas . inchnaçoes; encerra-se então
.
n nn-..
"-4,lll
. ,. 1•to para poder reahzar p 1enamente seus deseJos
reduto 111osp ,, . . & h ·
0r
·1so1am-se sempre os hero1s de Sade, .1 ec am-se em_ castelo s,
. çortalezas buscam a clausura para dar vazao às suas
mosteiros, .1' ' f •. ~
tendências voluptuosas. Mas nunca o . azem sem antes v1aJa~ É
como se a viagem fosse o ponto de partida .desses personagens e 0
de b oche não pudesse eclodir sem os sucessivos deslocamentos que
lhe são impostos. Juliette percorre a Ita 1a; nsa T esta, sob o nome
"l· B .
de Borchamps, faz uma longa turnê pelo norte da Europa; os
libertinos das J 20 journées deslocam-se para o longínquo castelo
de Silling, na Floresta Negra. Além desses roteiros, apontados por
Barthes em Sade, Fourier, Loyola, há que lembrar Jérôme, primeiro
devastando o interior da França, depois explorando o continente
europeu de norte a sul. E, ainda, de Sainville e Léonor~, que
encontram os exóticos reinos de Butua e Tamoe no centro da Africa.
A vida no mundo do deboche implica constantes mudanças; não há
libertino que não viaje.
Nem tampouco viagem sua que não seja bem-sucedida, o que
pode ser comprovado pelo número de vítimas que ele deixa em
cada lugar por onde passa, medida das mais seguras na libertinagem.
A volta ao mundo empreendida por Minski tem como rastro uma
enorme quantidade de mortos; sua hóspede, Juliette, não é menos
cruel: só no episódio do incêndio do hospital,~orante sua estadia
na Itália, ela e seus amigos calculam em mais de vinte mil o número
de mortos~uanto mais vítimas fazem, mais felizes estarão - em
petfeito acordo, portanto, com um pressuposto da libertinagem que
esclarece a singular relação entre felicidade e assassinat~ "Supondo
haver dez porções de felicidade numa sociedade composta por dez
pessoas, ei-las todas iguais, e conseqüentemente, nenhuma delas
pode gabar-se de ser mais feliz do que as outras; se, ao contrário,
um dos indivíduos dessa sociedade chega a privar os outros nove
de suas porções de felicidade para reuni-las sobre sua pessoa, com
certe7.a será verdadeiramente feliz; pois desde então poderá estabe·
leccr compaações que antes nem podia conceber" .3 As dimensões
potência e as proporções dessa acumulação evidenciam ,
A Viagem 29

Mas podemos ~reconhecê-lo,


d também ' n0 profundo interesse.
com qdue a gReraçalo _e Sade percorre essas terras. Os anos que
antece em a evo uçao Francesa constituem ~se ndo . ,,
"a Idade de dOuro da viagem
· à Itália "~ 11 Juliette 'comgu rt·lhR. Michea,
· pa 1 a, em suas
aventuras,
. . ,, · d o entusiasmo
• que
. ,, sua época revela pe1o su1, e seu
itmerano ,ereve muito aos mumeros guias que on·entam os v1a1antes
bªbl' · ·
franceses.
,, -f\. i ioteca
. ,, .do marquês contava com pelo menos vmte ·
t1tulos de obras histoncas
. . . e "turísticas"
. consagradas à p enmsu ,, la,~
e1:1tre e1es D escrt,pti~n historique et critique de I'Italie, do abade
Richard, e Voyage d un français en Italie, do astrônomo Lalande
verdadeiras enci_clopédias do gênero, constantemente citadas po~
Sade, que parodia essas fontes de informação adicionando a elas o
sabor de uma singular lubricidade. 12
"Cá estou eu na pátria dos Neros e das Messalinas" - diz a
libertina - "respirando um ar mais puro e mais livre ... " .13 A atmos-
fera que se respira nestas viagens é de um prazer vertiginoso:
"através de Juliette sentimos soprar o mesmo ar louco que vibra
deliciosamente em La Chartreuse de Parme" .14 Com efeito, essa
Itália feliz percorrida por Sade e Juliette assemelha-se muitas vezes
àquela que, mais tarde, Stendhal vai atribuir uma magia inexplicável:
"Experimento nessa região um encanto que não consigo explicar;
15
parece o amor, mas não estou amando ninguém" . Estar em terras
italianas significa por si só encontrar a felicidade; a natureza mais
emocionante, a música mais apaixonada, as paixões mais viscerais;
tudo ali contribui para lançar "uma luz extraordinária sob re as
profundidades do coração humano" .16 Na Itália, Stendhal vê um tipo
de energia e espontaneidade de que a França carece; lib ertos da
afetação e do convencionalismo excessivo dos franceses, os ita~ia-
nos podem abandonar-se a sensações mais volup tuosas e emoçoes

11 Citado por Jean Molino em • Sacie devant la beauté", em Le Marquts de Sad


Paris, Armand Colin, 1968, p . 145, nota 15.
J 2 Ver Jean Molino, "Sade devant la beauté·, cit., p. 144 a 146. O aut~r obs rva u
aan-.. numero de coincidêndas entre as celebridades da alta 1 d d \tal
JO Capítulo 1

mais. m
. tensas , inspirando o temperamento
d . . passional
. . . dos persona-
gens stendhalianos, que, não_ S<:_ dobran o a 1e1 nem a moral, deixaltl
fluir o curso livre de suas paixoes.
/,Energia é um conceito-cha;e tant~ ~~ Stendhal quan~? em Sacte,
correspondendo para ambos as possibilidades
. d de..expenencias Pro.
fundas nas quais irrompe uma força interna o su1e1to, uma vontade
de potência, que põe em questão, i~c_essantemente~ a~ limitações
das convenções sociais. Quanto mais intensas as paixoes, maior a
energia, e é dela que decorre a felicidade. Entretanto, se Stendhal
encontra o máximo de energia no campo dos sentimentos (é na
emoção - advinda do amor, da arte - que ela se revela),~ ade vai
reconhecê-la tão-so?1ente nos se?tido_s: a energia J e c~necta com 0
movimento da materia, com a v1braçao da carne. A viagem, sendo
movimento e portanto elemento deflagrador de paixões, abre a
cena para tais experiências; a viagem à Itália, lugar por excelência
da energia, é a garantia de sua realização.
É verdade que a Itália, ao lado da Espanha, ocupa um lugar
especial no imaginário europeu já bem antes de Stendhal e mesmo
de Sade; a tradição de viagens para o sul desde o século xv vai
criando uma mística em tomo desses países, associando ao clima
quente a sensualidade e, às tradições, a sensibilidade artística, o que
será enfatizado nos livros de viagem dos séculos seguintes. 17 Há uma
fantasia recorrente que descreve os países do sul ora como o lugar
das paixões desenfreadas e dos excessos passionais, ora como os
espaços paradisíacos da dolce víta. Palco da paixão, cenário infalível
do desastre, mas também convite à alegria, à sensualidade, à aven-
18
tura. Itália e Espanha são "mundos imaginários", como lembra Rui
19
Coelho, que no século XVIII abrigam toda sorte de paixões, dos
amantes obstinados de Radcli.ff e Walpole à sedução frívola dos

~~orme_ Michele Duchet, Antropologia e Historia en el Stglo ~~ ~ ~uce~


17
Mex1co, Siglo XXI, 1984, parte 1, cap. 2; e Pierre Chaunu, A ctvtlizaçao d
18 Europa das Luzes, Lisboa, Estampa, 1985, vol. 1, p. 50-89. ~
O peso des.u COSmOVisão "italiana" da vida foi talvez maior no imaginário alemao
do que no francês: a representação do diabo na literatura alemã geralmen~e
eaatna afiaura de um italiano ... __,. ...._ • , mmedta
34 Capítulo 1

. nto só se adquire através de infortúnios e de viag


nh ecune d ~ ens• t
necess a ,, ri·o ter visto homens
. de to as
,, . as naçoes para bem
. ,, conh '"
ece.
. e" necessário ter .sido"/t..,,sua vitima para saber avaha-los ... ,, . A.
1os,
associação é significativa: sodse acede aos :, segredos
~
do coração ao
se observar ou a diversidade e suas manuestaçoes, ou suas forrn
mais radicais. Horizontalidade das via~ens, verticalidade da dor.,~
mão do infortúnio, enaltecendo o carater daquele que ela esmaga
coloca-o na justa distância a que ele deve estar para estudar 0 ~
homens; dali ele os vê como o passageiro que observa as ondas em
fúria quebrando-se contra o rochedo sobre o qual a tempestade 0
lançou ... ".26 O infortunado também é um viajante .
.,O Sade que escreve essas páginas está preso na Bastilha. 27 Tem
consigo mais de uma dezena de relatos de viagem e os lê avidamen-
te; utiliza-os constantemente em seus escritos, e à vontade. Cada vez
que um libertino profere um discurs2, é citada uma enorme quan-
tidade de exemplos retirados dali: ~a vigência da crueldade em
civilizações do passado e nas culturas exóticas que a literatura de
viagem, tão apreciada em sua época, descreve, permite-lhe forjar
uma a~gumentação segura para que seus personagens justifiquem o
crime: Encerrado numa cela, o marquês recorre aos livros: lê Cook,
Pauw, Bougainville, Prévost, Montesquieu e viaja através deles; a
seus libertinos dará uma mobilidade sem par, como a desses viajan-
tes das obras que lê, ou maior. Recorre também à memória: as
viagens à Itália são evocadas inúmeras vezes em sua obra; talvez as
derradeiras imagens de liberdade que ele tenha registrado, um
pouco antes de seu encarceramento em 1777.28 Passageiro quando
lê, infortunado quando recorda, Sade parece reconhecer na sua
injusta condição a distância justa que faz dele um perfeito observa·
dor do homem.

26 Sadc, "Idéc sur les romans", em Les crimes de l'amour, em OEuvres complete~,
~ , PaUVttt, t. 10, p. 74 (grifos do autor).
Z7 •Jdée sur lcs romans", texto de abertura de Les a t,nes de l'amour f0 • s r h
A Viagem 37

Não é de estranhar que ela seja citada por Buõuel num filme
sobre peregrinação, La Voie Lactée. 33 Por onde andam os peregri-
nos senão por tortuosas estradas? O que encontram senão infortú-
nios? Se, para alguns desses viajantes, a terra prometida, o lugar
santo ou o paraíso terreal acenam com uma promessa, um fim de
percurso venturoso, para outros a verdadeira chegada só ocorre
depois da morte. Um dos sentidos da peregrinação - e justamente
aquele que pressupõe talvez a maior devoção religiosa - é o da vida
enquanto viagem e a viagem enquanto uma cadeia sem fim de
sofrimentos. 34
Assim concebida, a verdadeira peregrinação só termina com a
morte. Não está nesse mundo a recompensa que o peregrino almeja;
aqui tudo o contraria. É significativo o desfecho dejustine: quando
enfim ela termina reconhecida e abrigada pela irmã, quando a
virtude parece contemplada e a paz restaurada, um raio atravessa-
lhe o corpo. A própria natureza se opõe a ela - os cenários sinistros
deixam de ser cenários para participar do acontecimento. A Natu-
,, ,,
reza e ma.
"Justine é uma prisioneira perpétua e uma viajante etema." 35 Em
vão ela viaja na esperança de encontrar o abrigo da virtude. Quime-
ras, ilusões - advertirão centenas de vezes seus algozes, e ela nunca
aprenderá: de infortúnio a infortúnio, de cárcere em cárcere, pro-
longa-se uma repetição sem fim, se ela nunca aprende, nem com os
reiterados discursos dos devassos, nem com seu desventurado
itinerário - lembremo-nos de que suas experiências anteriores
nada valem, nada ensinam e não operam a menor mudança em seu
comportamento - é porque a vítima não é, por natureza, predis-
posta ao aprendizado; está condenada ao Mesmo~
Um outro viajante infortunado, que se torna bastante con h e cido
no século XVIII, Xariar, o sultão das Mil e uma noites, d á sentido

33 Buõuel cita o episódio em que Justine, sob o nome de Thérese, é aprisionada


nos subterrâneos do castelo de Roland.
34 Sobre a concepção da vida como viagem e seu significado religioso ver João
David Pinto Correia ( org.), Autobiografia e aventura na literatura ~e t,uigens:
a ·'Pffnri~C/Jo· de Fff'fflloMfflMS Phllo, Lisboa, P.dilorial Comun,- -~,
38 Capítulo 1

. percurso. Ao tomar conhecimento de que fora traído


diversoª seu ropõe ao u-mao• ~ - tamb"'em d es1·1u ct·d
1 o pe1a mesma
pela m ulher, P d . 1
razão_ que ambos abandonem seus Estda os e sa1a~....~e º ,,m_undo
para em terras estranhas, melhor escon erem seus 1iuorturuos; 0
. ~' acei·ta , mas com a condição de voltarem
irmao . caso encontrasseni
1 ém mais infeliz do ., que
agu .
eles. A viagem assume, neste caso,
• d ~ • .
evidente função pedagog1ca, col?ca uma 1n agaçao a priori e
implica a busca de uma resposta. E u~a sondag~m, qu~, os coloca
na mesma posição do observador sad1ano que, distante das ondas
em fúria", pode ter a frieza necessária para estabelecer relações e
traçar comparações com o que vê. AJustine porém não é dada essa
capacidade; testemunha passiva, incapaz de observar com método,
ela só pode constatar: é vítima do destino.
i'o libertino ' ao contrário, torna-se senhor
.4
de seu destino. Em sua
trajetória prometéica, raros infortúnios • A esses se contrapõem as
prosperidades do vício, num movimento progressivo, ascendente,
que raramente é interrompido~Vale lembrar que os fmais trágicos
ocorrem sobretudo nas histórias das vítimas: Aline e Valcour, a
marquesa de Ganges, Dorgeville e, obviamente, as três Justines. Para
os devassos tais desfechos são raros e concentram-se, na obra de
Sade, em praticamente um livro, Les crimes de l'amour.36 Nele
teremos a figura do arrependimento e do castigo: Oxtiem e a prisão,
a condessa de Sancerre e o convento, Franval e a morte. 37 Mas, salvo
poucas exceções, os heróis sadianos são muito bem-sucedidos em
seus empreendimentos lúbricos; os finais felizes de suas histórias
anunciam a continuidade de seu gozo.
Tomando a obra de Sade como modelo poderíamos discordar da

36 Poderíamos elencar aí as d • . -
o arrependim d . uas primeiras versoes de justtne que terminam con1
t;
que O de Justi:;t~ JW!ette, e~bora este seja um castigo infinitamente menor
livro que traz · fi rceu-a ve?ao, no entanto, contradiz tal desfecho. Um outro
Fwmce, últim:11 ina.l moral e Histoire secrete de IsabeUe de Baviere, reine tle
rcs. romance de Sade e bastante atípico cm relação às obras anterio
37 Convém lembrar que u novelas
A Viagem 45

e, através ~
das
A
alteridades,
." .
tenta estabelecer O s ct·iversos graus de
civilizaçao. nova . c1enc1a
,. do homem funda u ma nova c1enc1a. . . . de
viagem que exige metodo na observação e pede ct· ~ .
~ ' il Ih 1staneia em
relaçao aqu .
o
po que se o a para
. garantir O rigor e a exat·d~
1 ao.
A
0 bservat ion , . uco a pouco vai se tornando analyse.
O mundo
, . . e um vasto teatro . mas também um Iaborato"r·o 1 : por tras,.
dos cenanos procuram-se leis universais e as explorações científicas
cont:acenam com a aventura. Talvez seja justamente essa a riqueza
do Seculo das Luzes: o teatro e o laboratório dialogam um com 0
outro, e os saberes literário e científico, embora comecem a se
tornar antagônicos, ainda mantêm estreita convivência. Se encon-
tramos essa liberdade em pensadores como Voltaire e Diderot, que
circulam com desenvoltura entre esses saberes, vamos encontrá-la
com igual força na literatura filosófica de Sade.

~O herói sadiano reunirá as características dos viajantes setecen-


tistas: alegre aventureiro, mas também rigoroso observador, estu-
dioso das alteridades que se faz igualmente observado por elas. Se
sua viagem é uma aventura, nem por isso prescinde de método: "O
filósofo que corre o mundo para se instruir deve acomodar-se a
todos os costumes, todas as religiões, toda espécie de tempo, todos
os climas, leitos e comidas, deixando ao voluptuoso da capital os
seus preconceitos ... o seu luxo ... " 53 - adv~e o viajante-filósofo
de Sade, compartilhando as teses de Roussea~ Critica o excesso de
fatuidade e a impertinência "com que nossos elegantes viajam: este
tom de menoscabo que utilizam ao falar de tudo o que não conhe-
cem, ou de tudo que não encontram em casa; este ar insultante e
repleto de desprezo a partir do qual eles consideram tudo aquilo
54
que não tem sua tola ligeireza" .
O fato de criticar a visão deformada e etnocêntrica de alguns
viajantes não significa, contudo, que se deva renunciar, n~s relatos
de viagem, à ficção - desde que verossímil. Ao romancist~~ Sade
aconselha: "se fazes viajar os teus heróis, conhece bem ª regiao por
A Viagem 49

essencial do. deboche; contra o.,.."nada ensina" de Barthes, msmua-se


. .
a i~éia da viagem como expenencia fundadora da liben·
,1. ,, . 1nagem
,se e o prazer que move o libertino se ele corre O m d ·
• nh ' un o para
expenmentar e co ecer todas as modalidades do vício e delas
desfrutar, deve-se ter presente
,, que a fruição não se 11·nu·ta a's praticas
, .
eróticas; ou melhor, ha uma erotização de todas as atividades
levadas a termo durante suas viagens. O filósofo sadiano desfrutará
im~nsamente iº"pr~zer de ob~ervar, pois ~ua atividade é também
obJeto de gozo. Juliette, a tunsta esclarecida, a pesquisadora que
sabe o que está procurando, pode tanto tomar-se uma parte integral
dessa ordem, por seu deboche e seu crime, quanto também ver, por
trás das aparências, a universalidade dessa mesma ordem" _67 Obser-
vador apaixonado, cujo gosto jamais impede o rigor, pois tem 0
coração endurecido, o libertino pode colocar-se a uma distância tão
justa daquilo que examina quanto o infortunado descrito por Sade
ou os viajantes da viagem científica.
Assim, dirá Hénaff, "o Discurso, a Viagem, o Prazer traçam o
mesmo gesto dentro de diferentes registros, o do percurso minucio-
so, obstinado, maníaco, sob a evocação implícita daquilo que apa-
rece como a hipótese fundamental do materialismo, a saber que o
mundo é finito e que é possível se fazer seu balanço" .68 Hipótese
que Sade retira das novas ciências do homem, e, mais exatamente,
do pensamento materialista ateu em voga no século XVIII, cujos
principais representantes são exaustivamente citados por ele, sen-
do, em inúmeras passagens, literalmente copiados linha por linha.69
i'Em Buffon e em Robinet, o marquês encontra as bases naturais da
"transmutação" da matéria, sistema que permite indicar a crueldade
c~mo "necessicppe natural" e apontar se~..pa_pel decisivo J econo-
rrua do univers~ b crime assegura o equilíbno da natureza. tudo se

67 Jacques Guicharnaud, "Toe wreathed columns of St. Peter", Yale French Studies
- Sade, New Haven, Eastem Press, 1965, n. 35, p. 38.
68 Marcel Hénaff, L'invention ... , dt., p. 72-73. "
69 Conforme Jean Deprun, "Sadc et la philosophic biologiquc de son temps , em
Le Marquú de Sat1e, cit., p. 190-191, ~ 6 e 1 2 ~ ~ que o
50 Capítulo 1
---
assa afirma Jean Deprun ' "como se a. natureza dispusesSt c1
P ' "'nicos em quantidade finita e a permanência t
ele~e:°toesÇ,eº~:mente presentes sobre nosso globo, no Ptitn:ôl.1
espec1es 1 1
t,, • . 1rll
comand o da espécie humana, lhe furtasse
~ • d
a ma er1a-pr1ma
,, 70 indisp tn.
sável ao desdobramento de sua açao cria ora .
Se Buffon e Robinet informam ~ade sobre a transmutação ela
matéria, é em La Mettrie, em Louis de la Caze . e sobretudo elll
d 'Holbach que ele encontra as teses fundamentais do equilíbrio e
da eletricidade como princípios da vida, sustentados ora "corno a
soma de movimentos do corpo", resultante da proporção dos
elementos, ora como o essencial "fluido elétrico que circula nos
nervos". Aderlndo às concepções da eletrobiologia - cujo conceito
a
básico é intensidade - Sade forja, a partir dela, uma noção
fundamental na libertinagem a que Deprun dá o nome de "choque.
prazer". Lê-se numa extensa nota de La nouvelle Justine: "É dos
nervos que dependem a vida e toda a harmonia da máquina; daí os ·
sentidos e as volúpias, os conhecimentos e as idéias; numa palavra:
são a sede de toda a organização e lá também se encontra a da alma,
isto é, esse princípio de vida que se extingue nos animais, crescendo
e decrescendo com eles, e que, conseqüentemente, é totalmente
material.' ' 71
li! Uma vez dissipadas as quimeras da religião e da metafísica, uma

~ 0 libertino poder concluir que se a natureza sempre permitiu um grande


70
n~e~o de massacres no decorrer da história humana é porque ela "desejava 0
aruq~mento total dos seres criados, a fim de desfrutar de sua faculdade de
nar. novas criaturas•• Conforme Jean Deprun, "Sade ct la philosophie ... •, dt.,
rec200
p.
71
!os~orgãos
obj
~nclui: "Co~i~ra-se nervos os tubos destinados a veicular os espírita!
0
~ se distribuem, e a trazer de volta ao cérebro as impressões doS
ctos ex~ores sobre esses órgãos. uma grande inflamaçio agita de modO
CXtraordinário
. os espíritos ani • .
A Viagem 51

vez comprovada a verdade irrefutável dom t . 1.


. . . . a eria ismo O conh
cimento o bJettvo visa a inventariar O universo, o b ter um ' reperte-
0.,
rio completo, acumular todas as inform - -
·1 t· l'b açoes,
particu1ar d a f i oso ia i ertina, ampliar ao m,.. • e ' no caso
~ T b ,. · aximo a esfera das
sensaçoes.
,.
am em. nisso,
" .
o pensador sadiano e,. ra ct·1ca1.. nao
- .,
e
possive. 1acatar
d' ~ a existenc1a
.
de domínios reservad os nem tampou-
co de .inter 1çoes; privar-se
. _ de parte do saber si·gni·t·
1ca cair• nas
arma~tlhas da superstiçao e, mais ainda, deixar de experimentar
as mais extremas - e portanto as mais refinadas _ formas de se
obter o prazer.
Turistas esclarecidos, filósofos aventureiros, sempre dispos-
tos a iluminar cenários obscuros do teatro do mundo e a realizar
estranhas experiências no laboratório do universo, os libertinos
sabem que as viagens lhes servem para acumular conhecimentos
e prazer. Para aprender. Embora sejam em sua maioria homens já
maduros e experientes - raros têm menos de 36 anos72 - há
vários exemplos de aprendizado do deboche na obra sadiana, dos
quais o vivido pela jovem ~ e de La_/l_hilQ.SJJJ2hie dans le
boudoir é o mais representativo. Para tal aprendizado-.:: percur-
so que se faz "imperceptivelmente" - basta }Yllª coisa: aptidão.
Daí para a frente "caminha-se sobre flores":ro que se aprende
nessa escola é simultaneamente um conhecimento e uma forma
de prazer. Scientia sexualis e a ars erotica reúnem-se em Sade:
não há saber que não seja prazeroso e essa marca da pedagogia
libertina predispõe o viajante aprendiz, sempre, a uma nova lição.
E o que desejam, senão aprender, aqueles quatro devassos que,
durante cento e vinte dias, passam horas e horas ouvindo os
relatos criminosos de suas notáveis historiadoras para depois
praticá-los com maestria? E não será justamente por essa razão
que o subtítulo, muitas vezes esquecido, das 120 journées é
l'Ewle du libertinage?~
11"Ficai convencidos nesta escola de que só ampliando a esfera
dos gostos e das fantasias, só sacrificando tudo à volúpia, 0 infeliz
indivíduo conhecido pelo nome de homem, jogado a contragost?
neste triste universo, poderá semear alguma, rosas entre os esp1-
54 Capítulo 2
,, . ,, de seu senhor, armados, servem de barreira a V' .
"fieis vassa1os 1s1-

tantes imprevial stdºs: é preciso escalar durante cinco horas 1'\-,.


11
Passada a eia , •d ~•a
d da de precipícios; a medi a que avançam, maior
montanha ro ,,
ea e mais imponente d e1es evi.dencia-se . então· e
es
são os obstacu1os, O ,, d d " · Stt
. . ho da natureza que Sa e escreve como fenda d
"smgular capnc d nh e
. d
mais e tnn a . t toesas sobre o cume a monta a, entre sua Part e
setentnona1 . e sua parte meridional, de forma que, sem
. habilidade
,, s
,, . depois de escalada a montanha, toma-se rmposs1ve1 des.
artisticas, b. d ·
cê-la,,. Entre essas duas partes abre-se um a ismo e mais de mil Pés
de profundidade.
U m a delicada ponte de madeira possibilita o acesso "
ao pequeno
lanalto contornado por penhascos agrestes que sob em até as
p
nuvens" ' e, mais à frente, por uma muralhd ·
a e tnnta ,, de altura.
pes
Do outro lado, um profundo fosso cheio de água, cuja margem
oposta comporta uma enorme cerca. Uma passagem subterrânea
leva ao castelo. De tal forma está ele separado do resto do mundo
que, quando destruída a ponte, "não há, na terra inteira, um único
ser, não importa a espécie que se possa imaginar, capaz de atingir
estç pequeno pedaço de terra" .2
l'o local do deboche é, por excelência, aquele que está fora do
alcance da visão dos outros~ expressões como "nenhum traço
humano apresentava-se a seus olhos ... ", ou "florestas imensas pare-
ciam roubá-lo ao olhar dos homens ... " são utilizadas com freqüência
para descrever a situação clandestina e, portanto, ideal, da liberti-
nagem. Desnecessário dizei\ que não há obstáculo que os devassos
não atravessem: conhecendo todos os segredos do lugar, eles en-
contram os caminhos, pontes e p~as secretas, que lhes permitem,
sempre, chegar a seu destino. Os obstáculos têm assim dupla
função: defesa e passagem. Impedimento absoluto aos ataques de
fora; segurança plena ao abrigo libertino. O castelo é inviolável.•

Há imagens na obra de um autor que parecem impor-se mais ~ue


ou~. Adquirem certa independência, ganham autonomia de vo~,
ampliam seu campo de significações. Suas referências originaíS
passam ª ser apenas um ponto de partida ao qual se agregam outr~

rt. l
O Castelo 55
significados, explicitando para além do qu . _
tendia, ultrapassand o a associação primeira e a mtençao · · • pre-
m1c1al
O
ou inconscientemente, propôs através deias.que autor, consciente
Perguntado certa vez sobre sua obsessão .
Borges respondeu: "Não sou eu ... Eles é u~:~~tgres, Jorge Luis
mim". 3 Os tigres não são apenas figuras às q . obc~cados por
quais o escritor re
quando escreve, escolhendo-as num vasto r ,. . corre
~ epertorio: assumem
estatuto d e revelaçao. A resposta
. ,.. . borgeana nos dº1z que a imagem .
pode transcend er a consc1enc1a do suJ·eito que d 1 ..
· dº e a se utiliza
colocando, d e une tato,,, . outra
,. questão·· é O autor que se serve da'
D imJgem ou, ao contrano, ~ ela que,,. se impõe ao seu texto?
s ~o ca~o de Sade, essa imagem e o abismo. De várias formas ela
se enuncia: como. elemento. o_bri~atório da espacialidade sadiana;
l
como uma das paisagens pnvtleg1adas do imaginário setecentista·
como metáfora do pensamento de Sade.~ '
~ão há castelo libertino que não seja protegido por um abismo ou
algo semelhante. Não há libertinagem que não seja referida à figura
abismal. Para que o castelo seja absolutamente inviolável é necessário
prec~ar ( e em Sade este termo assume um sentido matemático) a
distância que separa o mundo exterior do universo do deboche. É
necessário evidenciá-la através de uma paisagem inóspita, que, se de
um lado representa a interdição, de outro anuncia os excessos de uma
volúpia cuja principal fonte de inspiração é essa mesma natureza, a ser
imitada em sua imponderável capacidade de destruição, e, por exigên-
cia da insaciabilidade libertina, a ser incessantemente ultrapassadl O
abismo não existe apenas para mostrar ao homem a fragilidade de sua
condição, ~ sobretudo para provar, concretamente, que é possível
transcendê-la,\
Tema filosófico que, ao eleger a natureza como campo desco-
nhecido a ser investigado, toma-a como lugar onde está depositada
uma verdade irrefutável. As paisagens dão a conhecer leis e princí-
pios imutáveis. O projeto de ler o homem atrav~s dos eleme?t_os
naturais de conhecer a natureza humana, leva o seculo XVlll a vanas
vertent;s de exploração quase todas fundamentadas num diSt ªncia-
' - "bJ·~
mento entre sujeito e objeto que pressupoe a natureza como 0
de conhecimento". Essa postura manifesta-se tanto na r;.;~:
sentação pictórica do mundo natural como na s ºª expio ç

· - brasileira.
O Castelo 59

não se conseguem ver, nem conceber, O "fun d o fa1so ,, que L A


contador
. Borges
, evoca para . falar de Sade lançandomao~ d . · ·
aimagem
chinesa do K an "- o .abismo sobre O abismo - 'L11 impoe-se
• ~
aos
leitores d o arques assim como os tigres de Borges.~ tal é sua força
M
que ela tem o poder ,, .de evocar
b a totalidade da obra sad·iana.
Por" que O cenario a ismal serviu tão bem aos intérpretes do
marques? Por q~e tomou-se quase obrigatório? Bataille responde
contemplando a unagem, como se fosse impossível desviar-se dela:
"diante dos livros de Sade estamos como outrora devia estar o
viajante angustiado perante os rochedos vertiginosos que na sua
frente lhe barravam o caminho: qualquer movimento nos afasta
deles ~ no ~ntanto nos sentimos atraídos. Esse horror nos ignora,
mas nao tera, porque existe, um sentido que nos é proposto?" .12 Um
desafio ao leitor: a cada página um abismo, convidando-nos ao salto.
Talvez seja esta uma das razões pelas quais, não raro, acusa-se
Sade pela monotonia de seus escritos. É comum ouvirmos dizer que
a literatura sadiana é repetitiva. Não será, contudo, essa atribuição
uma espécie de resistência por parte de seus leitores?
Í:rmaginemos um mundo corµpletamente dirigido pelo mal -
propõe Sade. Mas ele não pára aí: este mundo deve desenvolver e
aprimorar o gosto pela crueldade em nível de requinte tão alto e
inatingível que mantenha a destruição como sua única possibilida-
de, seu único objetivo e sua única utopia. Daí Sade eleger a sexua-
lidade como locus privilegiado para a realização de tal projeto; ali,
onde o gozo se impõe e reina a fabulação, ele pede ao leitor que se
associe a seu projeto de ultrajar o inconcebível~'
?Este leitor ideal, este "leitor amigo", evocado incansavelmente
em sua obra, é definido justamente como aquele que tem condições
de apreciar a multiplicidade dos prazeres do crime e, ainda mais,
aquele capaz de preencher os espaços de devaneio que o autor lhe
oferece,Quantas vezes Sade não afirma que "deixa o leitor entregue
às suas fantasias" ou que ;.yrefere não revelar para favorecer a
imaginação" de quem O lê? tias, perceber o requinte das diferenças
que se constroem no texto sad1ano · ··
e pernut1r-se · essa ordem
cnar

11 ,, . . eontad or Borges , "Sade e a Revolução dos Espíritos", em Ciranda dos


"er LA
60 Capítulo 2

. . 1. a necessariamente uma identificação. É nec


de fantasias 1mp 1c . . . essá
. h . alguma adesão, algum mvestunento intelectual -
rio _que ªJªd ~ii
1
afetivo, quan o se e.-
essa exigência beira o insuportável qua 0u
b .. nc10
. os. ,É preciso passar pe 1os su terraneos do
se trata d esses 1ivr . d' An . L B i3 ,, ser
para aceder ao castelo de Silling", tz ~te,, e run. E Precisa
saltar abismos, concordam quase todos os _1nterpr~tes do marquês
Barthes pergunta-se sobre sua perplexidade d1a~te do e:xcess~
da escritura de Bataille: "Que tenho eu~ ver co?1 o nso, a devoção,
. a violência?". o texto de Batatlle,
a poesia, . ,, d assrm. como o de Sacte ,
tem sempre essa aura de "estrange1r? : aqui1o que amea~a nossa
humanidade e, por isso, provoca repudio, ou pelo menos distância.
"No entanto", continua ele, "basta que eu faça coincidir toda essa
linguagem (estranha) com uma perturbação que em mim se chama
medo para que Bataille me reconquiste: tudo o que ele escreve,
então, me descreve: a coisa pega" .14 Instala-se aí um jogo onde a
resistência só pode ser vencida através de uma identificação, mas
esse reconhecimento tem um nome: medo.
Diante deste vazio, diante dessa imensa lacuna que se apresenta
logo à entrada dos castelos libertinos, o leitor sente-se acuado. Enão
será porque suspeitamos que é esse mesmo vazio que Sade tentará
preencher? Assim cqpio preenche toda falta, todos os espaços ocos,
todos os orificios? ..'Neste sentido a figura do abismo pode ser
interpretada como a grande lacuna do pensamento que Sade tenta
ocupar, levando a fala aos vazios da interdição, domando uma
natureza selvagem e ameaçadora, mas forçada a se apresentar numa
muqez definitiva. Pois, ao silêncio sepulcral que envolve a paisagem
ao redor desses castelos contrapõe-se a loquacidade do devasso, seu
constante apelo à eloqüência, sua interminável fala, numa fidelidade
absoluta ao projeto de "tudo dizer" .1\
., "E não adquirimos o direito de tudo dizer?" - pergunta Dolma~-
c~ ao defender a prática do assassinato. 15 Direito que, para Sade, nao
80
~trapassa em muito os supostos "direitos do homem" declarad~s
CDt_:Io: mas também os desmascara, apontando sua fragilidade. ~ao
tera sido, para O leitor da época, insuportável aderir a tal proieto,
O Castelo 63

"sentimento de ilha" semelhante ao que Ant"' • C .


onio and1do atribui
aos personagens d e Joseph Conrad: situação fu d ,.
d •• n ante, metafora do
ilhamento ~ sd~Je1to. em relação ao social. 21 Mas o texto sadiano
parece. presc1n ir. da imagem ' retendo apenas O conce1to,
• abstrato·
o s~n~~ent_? ~e _1Iha em Sade é uma tabula rasa, marco inicial a~
qua a~ a nao 01 acrescentado nenhum conteúdo imagético, ponto
de partida sobre o qual se constrói a filosofia do deb h
Ir . I d oc e.
O 1so amento efine a situação original do homem do..
"N~ h,,. . ~ no mun
ao a qua1quer 11gaçao entre um homem e outro ... ", "a nat ureza
fez-n~s ~ascer sozinhos ... " - repetem com freqüência os devassos.
Cond1çao natural, restaurada plenamente quando O indivíduo cons-
ciente da força de sua solidão no mundo, afasta-se da vigilâ~cia da
socieda~e: "O homem n~o se ruboriza de nada quando está só; o
pudor so começa a cerca-lo quando alguém o surpreende, 0 que
prova que o pudor é um preconceito ridículo, absolutamente des-
mentido pela natureza". 2 ~
Sim, Sade refere-se amiúde ao isolamento de seus personagens;
mas notemos que este isolamento é, antes de mais nada, moral.
Vejamos: a Minski ele chama de "eremita", não obstante a presença
de dezenas de empregados, centenas de súditos e convidados como
Juliette e seus amigos em seu castelo.,Estar só" para o libertino
significa principalmente estar fora das restrições que a sociedade
impõe. No mais, os devassos estão sempre acompanhados~
//vale tocar aqui num tema muito pouco tratado quando se interpreta
a condição libertina: a amizade. Entre os quatro devassos de Silling
nenhum desacordo, nenhuma controvérsia e, sobretudo, nenhum
rompimento; nada merece desaprovação quando se está entre amigos
(e essa é uma palavra freqüentemente utilizada para nomeá-los), não
se faz concessões quando se está entre iguais. Há grande alegria em
se compartilhar os prazeres da libertinagem e isso fica claro também
quando lembramos da perfeita amizade que une Juliette a Saint-Fond
ou a Clairwil, sentimento que se expressa no campo er~tico, lúdic~
e filosófico. Posto que o devasso não acredita nessa qwmera que e
o amor, a amizade é O único sentimento da libertinagem que talvez

nd Barthes, Sade, Fourier, 1 otola,


64 Capítulo 2

- ecesse desaprovação por parte da sociedade, se esta t·


nao mer . d lib . tvess
poss1'b'l'dade
11 de J'ulgá-la. Uma vírtll
. e ,, ert1na. t
Aisociedade dos Amigos do Cnm_e e um templo da amizade. Do
e cinco artigos que compoem seu estatuto pelo tnen s
quarenta . . dad . ~- os a
metade toca na questão da solidane e entre os assoc1ados:-'A Soei .
dade não faz distinção al~~ entre el~s, como r~za o artigo ;.
"Unidos como num seio familiar, os anugos da Sociedade divide~
to das as suas penas assim como todosda
os seus prazeres; eles se ajuda
diversas s1tuaçoes
. ~ lll
e soco rrem-se mutuamente em to. s as . "A . nfi
da vida ,,
....
Tal perspectiva é ampliada no artigo 140-. maior co ança possívei
é estabelecida entre os irmãos; eles devem confessar seus gostos entre
si, suas fraquezas, deleitar-se com suas co~dênc~as, encontrando
nelas um alimento a mais para seus prazeres . Serao sumariamente
excluídos da casa os traidores desses princípios.
o mesmo acontecerá aos que adoecerem, se não observarem
adequadamente o retiro necessário para evitar a contaminação,
como reza o artigo 32º. Tudo é planejado no sentido de conservar
a vida dos associados. Mesmo as volúpias da libertinagem, quando
relacionadas ao suplício, sofrem rigorosas restrições: "no seio da
assembléia, nenhuma paixão cruel, com exceção do açoite aplicado
simplesmente nas nádegas, poderá exercer-se( ... ) bastam as volú-
pias crapulosas, incestuosas, sodomitas e suaves", diz o artigo 13º.
O 32º explicita ainda o que é considerado suavidade no crime: "o
roubo é permitido no interior da Sociedade, mas o assassinato
somente nos haréns" .
A Sociedade chega a assumir até, ousemos dizer, um caráter
filantrópico quando se trata de amigos do crin1e. Embora a anuidade

=~
custe a cada membro a vultosa soma de dez mil francos "Vinte
ou homens de le~s serão recebidos ao preço mÓdico de
" as por ano. A Sociedade, amiga das artes outorga-lhes essa
deferencia· ela last· '
, ,, ima que seus meios não permitam a admissão por
:1empreteraestima'
preço ~echocre de wn número maior de homens pelos quais
Mas
1
d " ~
e O arf 0 9º st · essa e.ierencia não é exclusiva dos artistas
nd
dos. ";: - .,e e e ª solidariedade exposta no 7º a outros associa·
. avera sempre em re
a utilidad d serva uma soma de trinta mil libras para
e eummembroq -
má situação" .23 ue ª mao do destino houver lançado em

23 ld. Ib'
O Castelo 65

É verdade que em alguns momentos as e:xigên •


mais alto.
.
Quando
01
Juliette e Clairwil v·1s1tam
. cias
o vulcã do mal falam
0 .
pela princesa ympe Borghese ' elas nao ~ h .
es1tam e c1ceroneadas
amiga para d entro de uma cratera em h . ~ empurrar a
com o acontecimento. Mais tarde cl admas, divertindo-se juntas
. . ,, , ao a o da Durand 1u1·
divertira envenenando Clairwil Mas , tette se
singular devoção de Juliette pa~ cor:i como o~serva Jane Gallop, "a
em perfeita harmonia com eles até O seus armgosem
momento consiste
que elaemp estar
respond er aos d esejos de outro amigo _ deixand assa ª
total metamorfose" 24 El º-se levar por uma
. ~ · ª nao trai as amigas gratuitamente (h"
~ .

sempre
amizade.exphcaçoes para tais atitudes) , mas sim• em funçao ~ de outraª
Se há traições .entre amigos elas observam pnn·c1p1os,
,, . e nad a tem
,.
a ver com a ?ratu1dade com que os libertinos destroem suas vítimas.
Quando Juliette e Clairwil, acompanhadas por Sbrigani, estão hos-
pedadas no castelo de Minski e, para fugir dele, ministram ao gigante
?111ª !º1:e dose d~ soporífero,_ a libertina recusa-se a aniquilá-lo:
pers1stmdo em minha resoluçao de jamais fazer tombfr sob meus
25
golpes aqueles que fossem tão cruéis quanto eu... " . o "respeito
aos talentos" que faz parte das regras do castelo de Silling é um
princípio constitutivo da libertinagem; não deve haver traição quan-
do o devasso está entre pares. Salvo exceções, excessos.•
Assim, podemos dizer que não apenas o libertino nunca está só,
mas também que ele insiste em se manter ao lado de seus pares,
reconhecendo talentos e desfrutando do conforto das boas compa-
nhias. As cenas de solidão - como a deJustine perambulando pelas
florestas - , Sade as reserva exclusivamente às vítimas~ sentimen-
to de ilha que une os devassos aponta outra solidão, comunitária,
que só existe para desvendar uma forma de sociabilidade que a
sociedade persiste em esconder, mascarando-a~ Afastados do mun-

24 Jane Gallop Jntersections a Reading o/ Sade with Bataille, B/anchot, anti


Klossowski 'Uncoln Uni~ity of Nebraska eress, 1981, P· 57· O h~ro5de Gallop
é um dos r ~ texto's que tratam o temaaida wuzade
da b d entre
sade os Uberttn?
e de •; ' autora
seus interpretes
O
:faz uma interessante. leitura intertextu
do tema ra ed
mostran o co mo ele foi n gado ou
0 ' ên ias da grand ·
68 Capítulo 2

daquilo que ultrapassa as possibilidades do pensamento raciona.1


uma espécie de loucura vislumbrada .num e st~do d~ est~anha sou:
dão. 34 O libertino entretanto propõe essa vertigemª razao. Desco.
brindo nos fenômenos naturais suas próprias ~te?ções, o devasso
copia as "torpezas" da natureza ( como fa.z. ~ qut~tco Almaru de La
nouvelle Justine), provando que o mal e um srmples termo ade,.
nat urai"
. · 35
quado para traduzir o efeito do d 11~am1smo . ~
4'Por sua capacidade imponderavel de destnuçao e seu efeito
progressivo, o vulcão é a crueldade da natureza, 36 "prova do mal
natural" como afirma Philippe Roger, que "pode tomar-se o Princí-
pio de reinterpretação do mal moral". Na erupção vulcânica "a
natureza se mostra em sua verdadeira face: a da indiferença para
com a humanidade, a da devastação, a da destruição" .37 Imagem
perfeita à qual comparar a vibração - o "vibrato", dirá Roger-
dos personagens sadianos.
Imagem viril, e, nesse sentido, incompatível com a simbologia
insular: "a ilha supõe um devaneio de água, com todos seus elemen-
tos complen1entares: embalo, universo feminino, etc", 38 afinna
Didier, contrapondo-a à imagem fálica do castelo. Sabe-se do des-
prezo que os libertinos cultivam por esses princípios femininos e
maternos. Além disso, não é a água, mas o fogo, o elemento de
referência do deboche.
Senão, vejamos: são raros os afogamentos em Sade, sobretudo
se ~omparados ao número de incêndios. Em Roma, Juliette e sem
anugos, a exemplo de Nero, reúnem-se para executar um plano de
dest · ~ 1 . .
nuçao, pe o fogo, de vmte e oito hospitais e nove casas de

34 O vulcão é imagem . ., 'ff#l


encontra . recorrente em Bataille: Jª em L'anus solar e L'oe'1 P'
Ve~uvio ;~: ;v~cação de Jesuvio, ermo que ele cria a partir d Jesus e de
S Pierre Klo O e ~~11:U- uma espécie de Deus-Vulcão ao qual o autor 1denttfiea
36 As ·ma O d ws ' Sa~e, ,neu[1róximo, São Paulo, Brasiliense 1 ~ P
1
70 Capítulo 2

. . . li . ardo de São Vítor interpreta a montanha de .


pnm1tt:ª·bRilc de autoconhecimento que conduz à sabedoria~tist()
cotno s1n1 o o t nh .,. tns,v
ç Freqüentemente a mon a a e meta de Ullla 1 ..,,.
rada dos pro1etas. .d d ,, 41 S b ono..
busca, ou 1oca1 d e transição para a eterru a e . a edona ct· .
«,ll
1vina
.,, • ,, 1
elt;vação do espmto.
' .Para Bataille, O excesso vertiginoso ~do pensamento
Ih .,. .
de Sade e\ltn
.,
~i... •
C01Iuec1men
to semelhante às revelaçoes
42
rmst1cas:
,.._ • d
e 1e nos leva clQ
"cume excessivo do que somos". Na sua a_ns1a e tudo assitnuar,
na obsessão de acumular todos os conhecimentos d~ planeta, o
libertino ultrapassa o philosophe. Perco~e o ~1:1ndo mteiro Pata
tudo conhecer e, realizado o projeto enc1cloped1co, ele refugia-se
nas montanhas, /ocus de extremos, onde profetas e vilões, santos e
bandidos se escondem.
Ao escolher isolar-se no alto, o libertino não está apenas reafir.
mando a interdição de comunicação com o mundo. Ele está mos-
trando que seu deslocamento é também uma elevação. Tudo o que
deixou fora, ficou também embaixo, de onde quase nada se vê. De
cima, do seu Olimpo, ele pode ampliar o alcance de sua visão e
aumentar a extensão de seu prazer. E quando a neve cai lá fora, 0
devasso de Silling clama:;{Não se imagina o quanto ganha a volúpia
com todas essas seguranças e aquilo que é possível fazer quando
podemos dizer: Estou aqui sozinho, estou no fim do mundo, sub-
traído a todos os olhares e sendo completamente impossível que
alguma criatura chegue até a mim; acabaram-se os freios e as
barreiras,, .4':

41 Marie Louise -von Franz A .


42 Georges Bataille O Erdus znterpr~tação ... , cit., p. 138.
43 Sade, Les 120Jo~trnées d n~o ... , c1t., p. 172.
e o<lome, cit., p. 225.
O Castelo 75
sugere que se coloque à venda a carne dos guilhotin d b .
,, d l . t d .d d ~
atraves e ei que o o ci a ao se abasteça num aç a os, o ngando
.
ougue nacional
uma vez por semana, para realizar a "verdadeira com h~ d '
. . . un ao os
patriotas, a ve~d a d eira e~canstta dos jacobinos,,. 19
Mesmo ~
assim,,.. a relaçao
,, •
entre os aspectos mais sangu1nanos
· , • da
Revoluçao e o gene~o gotico poderia parecer demasiado mecânica
se não ~?sse autonzada por um exigente leitor que, em l SO l,
escreve: . Con~en?amos apenas que este gênero, por muito mal que
dele se diga, nao e de modo algum destituído de certo mérito· ora
ele é o fruto inevitável
,M,.
dos abalos revolucionários de que a E~op~
inteira se ressentia.- rara quem conhecia todos os infortúnios com
que os malvados podem oprimir os homens, o romance tomava-se
tão difícil de escrever como monótono de ler; não havia um único
indivíduo que não tivesse experimentado, em quatro ou cinco anos,
uma soma de desgraças que nem em um século o mais famoso
D,
romancista da literatura poderia descrever. Era, pois, necessário
aJ pedir auxílio aos infernos para produzir obras de interesse, e encon-
b trar na região das quimeras o que era de conhecimento corrente dos
que pesquisavam a história do homem neste século de ferro''. 50 As
a- palavras são de Sade.
le "O sadismo aflora por toda parte: só lhe faltava um Marquês de
)S Sade" - afirmaJean Fabre nesta bela frase que condensa a atmosfera
r, da época. 51 Numa cumplicidade "histórico-narrativa", poderíamos
10
dizer com Jean-Marie Goulemot que o roman noir reflete sobre a
l'J
violência muda que ocupa as ruas nos anos revolucionários, dando
voz ao mal e abrigando a crueldade em seus castelos. 52 A lucidez
lS
noturna da arquitetura gótica recusa a men~ira. ~o "h_edonismo
n· político" que se constrói às expensas de uma individualidade sub-
mersa no corpo coletivo e relegada à sua particula~dade ext_r:m~,
o · e,
isto ,, a' sua loucura. Por isso,
· d'12 Annie Le Brun , "a 'inconveruencia
t

.
49 Citado . hâteau.,"C... , cit., p. 237. Notável coincidência: os
em Anrue Le Brun, Lese .
1
¼ l our. também se abastecem de
antropófagos do reino de Butua: em Allndaet: r~~vel,da redação do livro é 1789;
carne humana num açougue nacional. A P
foi publi<:_ado em 1795. .. ·mes de l'amour, em OEuvres completes
50 Sade, "ldee sur les romans , em Les cri
28
Paris, Pauvert, 1988, t. 10, P· · . ,, le ~/arquis de Sade, Pari , Arman 1
51 Jean Fabre, "Sade et le Roman Noir , em ~
88 Capítulo 2

perfcita1nente esta vida· bice· "' f:ª lª q ue foi


. a minha" ·tB Mais
· utna
afinidade entre os góticos e Sade. Mais ~ma vez ª diferença
am b os. Se para o l)ersonagem de Gautter . as
,, duas re·~lilCllllllli
, ,, e O vício , em Sade a virtude e sempre su·rTIC1~
entre1açam, a 1e 1

ser perfurada.

IV

"Vês que as janelas são inacessíveis ... "


Lano

ffoenso, o diálogo que Sade trava com as imagens ~


Nos castelos, a influência da atmosfera sombria da
do século, herdeira das histórias trágicas que se forj'""~
dade barroca; nos serra.lhos, ele compartilha com
râneos o fascínio pelo Oriente, exótico e cruel;
descobre a contraface da virtude, fazendo ecoar
denúncias dos filósofos das Luzes. Mas para -
há outras, ~ardadas como lembranças, que n·a::,;1;:
prisioneiro~
As fortalezas libertinas são muitas vezes
prisões onde Sade viveu grande parte de sua
maior parte de sua obra. Mais que idco
como reflexo desses cárceres. Primeiro
lha, e mais tarde o sanatório de
yinte e.!_Cte an9~ dos setenta e ~
92 Capítulo 2

contas ao rei, a quem representava diante de seus vassalos, sendo


que estes lhe deviam reverência de joelhos. "A lei é ele" - diz,
conclusivo, um de seus biógrafos. 90
/l"La Coste é o Silling de Sade" - afirma Jea~ 1!~s~orde~ numa
frase que ecoa em muitos intérpretes do marques. Sun, ha seine,.
lhanças entre os castelos, e Bouer, seu atual proprietário, obsetVi
várias similitudes arquiteturais entre ambos, dizendo que adis
ção dos apartamentos num e noutro é praticamente idêntica. M21ii
imaginação de Sade vai retocar as imagens retidas na memória;
descrição de Silling ele adverte o leitor que vai "pintar este
não da forma como ele teria sido no passado, mas num es,.:.--....,·-·-- ·
92
embelezamento e de solidão ainda mais perfeito". Silling sem
La Coste acabado, refeito e perfeito\'
Assim como Silling, La Coste é uma construção imaginária,
se realiza na literatura. Arquiteturas textuais de Sade, cujos .......
· .-
fixam-se ora na imaginação, ora na memória; espaços menlillll!lt.4
devaneio, que assumem certa equivalência se levarmos em co.1•
ração o lugar de onde ele escreve. O primeiro manuscrito
é o Dialogue entre un prêtre et un moribond, de 1782_,j
ele havia esboçado algumas notas esparsas, pequenos .. . 111111

peças de teatro, cartas e registros de algumas reflao-CSj!'r:


Dialogue, escrito durante a detenção em Vincennes, que
sua monumental obr~ Uma literatura, dizem muitos
e pela prisão. Vejamos. '
No a~o de 1784, a fortaleza Saint-Antoine recebe unt-'111!!~
transfendo de Vincennes após cinco anos e meio de
-!'arte d_e uma categoria especial de detentos: sua
e mantida pela família. O aristocrático libertin0 ,,
de
. la Libertt
,, " ~
e; tem entao quarenta e três anos de e
liberte ' como era conhecido o único 1111~«, do
torre era um . ' 1 - ..o
d ' ~ compartunento octogonal com
os, chao de tijolos , um le1·to, mesas e ·

90 Jean Desbordes o
1968, p. 118. i ~ro""!"'doAla,,,.,,
98 Capítulo 2

·dão Por 1•sso não se pode superestimar 0


. talar-se na imensi · d e sobretudo nao se deve com PaDt\
~
ins bra de Sa e , . d B ilh .\ et~
da prisão na o telo libertino a partir a ast al"'Tenha {}
equívoco de ler o
em mente o retrato
e;~ Marquês desenhado por Man Ray: enqua~{}s
,, m chamas a fortaleza Sade rnant· l<),
tilha esta e ' em..
ao longe, a Bas ,, lo-prisão, muralha a ser penetrada es , St
inabalada. Sade e o caste , Cala.
da, por nós, leit_ore~. castelo-prisão de Walpole, Beckford e Sadt
Como asso~iar s .fó lugar por excelência do exercíci ª
tilh se ele e para esse , . o da
Bas a '
ºb d de? Uma li er a .b d de que não se realiza nas ruas, na cornun·ct
1 a.
li er ª · "blº s mas nos espaços fechados e protegidosil\r
d nos atos pu ico ' 1ios
. e, . Melhor seria evocar um outro espaço p__ara traçar-lhe
1ntenores. . " stelo interior" d e sant a T e resa d'Av ila. um c'l.,
semelhanças. o ca .. l . ",)-
.
telo nnpercep t.1v
. el do lado de fora ' inacessive. ao .extenor, mas qu...'-
se revela dotado de fantástica profundidade: arqrutetura complexa,
hierarquizada ' com múltiplas salas, com os apartamentos que cons.
l . l
tituem as "sete moradas" da alma. Um ugar ~ssencia mente concên.
trico (Santa Teresa utiliza a imagem de um diamante para defini-lo),
onde tudo é concentrado, não permitindo nenhuma dispersão. Um
castelo que só é conhecido de seu interior.
"As muralhas de Ávila e as de La Coste são irmãs" - afirma
Béatrice Didier. 103 Acrescentemos a elas as de Silling. Essas forta-
lezas escondem o absoluto da liberdade interior: mística, para
Santa Teresa; erótica, para Sade. Nestes dois séculos que separam
um do outro, como já vimos, as habitações religiosas muitas vezes
trocaram a vocação mística pela erótica. Mas a diferença mais
significativa entre esses castelos, afirma ainda Didier, é que Santa
Teresa parte de uma imagem irreal que pouco a pouco vai
tornando-se realidade, enquanto Sade faz o percurso inverso: seu
P?nto de partida é um castelo r eal, repleto de detalhes arquitetô·
rucos, mas, na medida em que a narrativa progride, ele vai se
~oma?do palco de cenas cada vez mais irreais. E é à prova dessa
tr~fiahd__ade que. Sad~ c~locará a realidade humana.
Metáfora da mtenondade e do absoluto o castelo sadiano repre·
0
sen~ lugar por excelência onde o claustr~ é libertador, afirmau<lo
o tnunfo do libertino sobre o espaço e o tempo. Triunfo sobre \
grande natureza que, do lado de fora, anuncia a finitude do bometn~
102 Capítulo 3

. ,. . servindo-se do corpo moribundo de Cécij


do a cenmorua i e, att
ani uilá-lo totalmente. ,,
q di gwn·te os devassos reunem-se para outras ativ- rl-
No a se , ,. . , . ~ til ,, fi T t'l4des
lúbricas dando preferenc•~ ~ ~scus~~ses osob c~ ~ma: a natureq
Vemeuil toma a palavra e uu~1a ~~'ud tcursdo a. ot~ n o, em Pritneu,~
lugar, uma das "bases inabalave1s
.
e ~ o odao sistur
ema natural' a sªucr
"-
"que ha" necessariamente nas mtençoes
. , tra
uma classe "~
na eza fra ~
indivíduos essencialmente subrmss~ ~ ~u por sua queza e seu
nascimento". 2 Exaustivas provas histoncas fundamentam SUa argu.
mentação: não há povo que n~o ~e~ uma casta despr~zada; evidên.
cias biológicas adensam o rac1o~U110: como po~e um pigmeu de um
metro e trinta querer igualar-se a força de um Hercules?
'YPercorrendo uma demonstração que vai do indivíduo ao gênero
0 devasso confipna que a desigualdade é a primeira lei da natureza:
contrapondo-se de imediato à igualdade suposta pelas leis humanas.
Estas são feitas exclusivamente para o povo, o que prova que os
fracos (sempre em contingentes numerosos) necessitam dos fortes,
e, assim sendo, cabe aos últimos dispor dos outros dado sua condi-
ção natural de poder. Diante de toda essa evidência, dizer que os
homens nascem iguais é formular um paradoxo. Conclusão: as leis
da sociedade são um logro.~
"Só mesmo um misantropo como Rousseau poderia estabelecer
tal paradoxo, porque ele próprio, muito fraco, preferia rebaixar a
si mesmo aqueles sobre os quais não ousava se elevar". 3 Se a
sociedade funda-se a partir de leis falsas - por pressupor igualdade
entre os seres - qualquer reflexão que tenha por base suas premis-
sas não pode ser levada a sério. Sendo o homem apenas um "resul·
tad~ involuntário das forças naturais", como afirma o papa Pio VI na
notável dissertação sobre o crime dedicada aJuliette, não se pode
buscar fundamentos da humanidade fora da natureza. Rousseau
~~ dois tipos de desigualdade, uma natural e outra política;4 o
libertino, porém, reconhece apenas a primeira, dizendo qu~, ~
verdade, somente ela rege as ações humanas, e, ainda maiS, ifld
O Teatro 103
ndentemente da vontade do homem A d .
peri·a apenas uma das formas de revelaçã~ d edsi~ldade política
se ra devasso d e Sad e, d e pouco interesse os des1gnios . natura1s
.
e,
O O
parve-Jhe como exemplo das manifestações.d O espotismo político
se dedica a teorizá-lo mal, mas raramente
dese _ ·
"Todas as operaçoes da natureza não são li"
iolência necessária do forte sobre O fraco,,,jf. as, e~~m~lo_s dessa
V · ld d d · ~ ,, • ~onsequenc1a inevitá-
vel da des1gua a e, a estru1çao e o segundo pri·ncip10 .,. . fundamental
do sistema ~
da natureza,
b' • e, portanto,
. . da
_ libertinagem . O sacrifi1cad or,
seja qual• 1or,, ·o od Jeto que an1quda,
. nao comete maior crueldade que
0 propnetano
. _ e uma granJa . _ .,. mata seu porco , diz Vernew-1. um
que
pai, um ~rmao ~u um ami~o ~ao e, aos olhos da natureza, mais caro
nem mais_ precioso que_ o ú1~1mo verme que rasteja na superficie do
globo, reitera o papa libertino de Juliette. "Ora", argumenta Dol-
mancé no discurso de La philosophie dans le boudoir, "0 homem
custa alguma coisa para a natureza? E, supondo que possa custar,
custa mais do que um macaco ou do que um elefante? Vou além:
quais são as matérias-primas da natureza? De que se compõem os
seres que nascem? Os três elementos que os formam não resultam
da primitiva destruição de outros corpos? Se todos os indivíduos
fossem eternos não se tomaria impossível à natureza a criação de
novos? Se a eternidade dos seres é impossível à natureza, sua
destruição é por conseqüência uma de suas leis" .6"
A natureza, continua o libertino, não pode triunfar de suas
criações sem se valer dessas "massas de destruição" que a morte lhe
prepara, e o que chamamos de fim da vida animal não é um fim real,
mas "simples transmutação, que tem por base o perpétuo movimen-
to, essência verdadeira da matéria, que todos os filósofos modernos
consideram como uma de suas primeiras leis/A morte, segundo
esses princípios irrefutáveis, não é, portanto, mais q~e Au~a t:ans-
formação, uma passagem imperceptível de uma extstencia ª 0:1-
tra... "7. E o crime, por conseguinte, nada mais é que a manutençao
da ordem natural.\\

~ :ade, La nouvellejustine, cit., t. 7, p. 208. pletes Paris Pauvert,


d., La Philosophie dans le boudoir, em OEuvres chom em p'odem ~er aqui o
J " .. " rmam o om
104 Capítulo 3

Entretanto os desígnios naturais não se manifestam "


mente" no ho:Uem. Eis o problema: A naturez;i,_ diz o papa a~;t\tr-a\.
não fornece aos indivíduos os meios necessanos para a rea~t\t,
das horríveis inclinações de que os dotou. ~nçado Por ela Çà()
universo, o homem não lhe inspira nenhu~ ~dado_especial: a~~
torna-se madrasta (e quant~s veze~ o libertino ~ao substitui ele
termo pelo outro?)1'Será preciso, pois, antes de mais nada, obs~
a natureza investigar cientificamente seus processos, para dep ~t
'
modelo, como fonte d e . . ~d 0
tomá-la como mspiraçao o mal e, ftnaltnA1s
'-n-
te, recriá-la~ . . .
A questão não é simples. Como recnar artificialmente a natur
. b. e2a)
Como compatibilizar inclinações naturais com o Jetos artificiais? Ô
problema que se coloca para Sade, e ao qual ele responderá de forma
absolutamente singular, inscreve-se num gra~de e recorrente deba-
te que ocupa O pensamento e~opeu. A te~sa~ entre corpo e idéia,
paixão e ra7.ão, sujeito e obJeto, consciencia e sonho, leva 08
setecentistas a recolocar em pauta o tema da "ilusão da repte.
sentação", transformando-o num dos eixos centrais através dos
quais se discute a arte, a filosofia e a política. A tensão entre natureza
e artificio toma-se uma das mais candentes polêmicas da época;
vive-se, diz Annie Le Brun, uma grave "crise da representação" .8
"lmitar a natureza: projeto de tantos filósofos do século xvm,
encabeçado por Diderot, projeto do qual nem Rousseau, que se
coloca contra toda forma de imitação, consegue escapar. Partindo
do pressuposto da bondade natural do homem, esses filósofos
propõem que se repita o modelo da natureza, mas uma "bela e ooa•
natureza que seus próprios defensores identificam com a monl e
que o libertino prefere chamar de preconceito. A relação entte
natureza e moral é garantida pela noção de natureza humana, o que
pressupõe continuidade entre a bondade natural e a virtUde: a
imitação poderia dispensar o artificio, ou pelo menos atenuá-lo.
Mas, se tal conclusão pode ser válida para as concepções de RoUS-
s~u e Diderot, não o será para o sistema da libertinagem. Entre ~
filo~ofos setecentistas, o clandestino Sade talvez seja um dos roaíS
~~cais ao propor que estamos todos condenados a repetir e ª
muai: rud0 0 que uma nanueza soberana, completamente autôfl&
ma e Independente de nós, cria.
O Teatro JOS
{/_ ou melhor: tudo o que a natur ,, .
. ,., . • ~ eza destro1 p ·
equivalencta entre cr1açao e destru. ~ · ois, ao demonstrar a
dificações da matéria" , "transform tç~o no mundo natural _ "mo-
,, . d . açoes de um est d
"princ1p10 o movimento" ,, e outra s ,, .
maximas a . o em outro" '
biológica de sua epoca9 - 0 liberti· que retira da filosofia
. 1
ooe~o~ l
"0 nascimento do homem não consr1t . ao ugar dobe~
existência assim como a morte na~o u!, nifip~rtanto, o começo de sua
~ s1g 1ca o fim· e ~
engravida nao confere mais vida do que . . ' ª mae que
. · · um criminoso que oferece
a morte. a pnmeira produz uma espécie d · ., . ,. .
• d . e matena organ1ca em
determina . o sentido, . ao passo que O segundo d"a oporturudade . ' ao
renascimento• de um~, matéria diferente , qualquer de1es e1etuan
~ ,, 1'11
~ do
um ato de cnaçao ~ ,,., Elevando
. ,,. .a destruição à condição d e cnaçao, · -
Sad e f:az d e la nao so uma cienc1a, mas uma ética e uma estética~
Isso posto, o libertino dá um salto argumentativo e, deixando de
lado o poder de criação e de transformação presentes na natureza
., . '
ele detem-se exclusivamente nas suas possibilidades destrutivas.~
conceito de natureza para Sade, diz Maurice Charney, é utilizado de
forma circular para justificar todo e qualquer impulso do devasso,
o que nos coloca diante da seguinte questão: "Está o libertino
obedecendo aos desígnios da natureza ou será, ele mesmo, uma
força natural incontrolável?" 11 A questão porém é equivocada, pois,
ao propor a equivalência entre criação e destruição, ~ devass?
demonstra que, depois de ter sido criado, o h_om~m ~o se1:e a
natureza se destruído, o que faz com que toda açao !tbertina se1a ao
mesmo tempo um ato natural e reciprocamente. Livre para excu~-
sionar pelo mal e para conceber uma natureza hu~ana que so
,, d rgia no sentido de ultra-
destroi, ele então concentra to a sua ,e ne
"1 . 12:\
passar a natureza, seu objetivo u timo. "

m a filosofia biológica do século xvm


9 Sobre as relações do pensamento de Sade e? . 5 de Paris, Pauvert, 1986,
ve~ A?nie Le Brun~ Soudain ~n bloc d ::::,el'i:ve~tion co:ps
d t~ li.bertin,
· prime ira parte , cap1tulos II e III, Marcel H" ade et la pbilosoph1e b1ologique de
Paris, PUF, 1978, p. 27-33; e Jean Deprun: SArmand Colin, 1968.
• .L c .,..An P -:tnS . - - __.. 1 o s:.r7 t C) o
J 06 Capítulo 3

1A natureza torna-se inspiração: deixa de ser Oleta


mar-se em ponto d <:_ parti"d ª·, N ao- · "' t · Para t~
se . rat~ s~mple ·mentt ôc ª"sr<)r.
sua perversidade. Nao se trata apenas de un1tar O model rtPtr
. fi . o dest tr
q ue ela lhe oferece, mas s1n1, como a 1rma Simone de B l'lltiv
. .
_13 Pois eauvo·
0
mundo libertino "cumpre tornar-se crurunoso" s •r, llo
. e elo ·
vulcão, elegendo-o como espeIho, e se afi1nna sua intenção d .&ia <J
as fantasias naturais que o incitam ª es nur, o devasso O ef col\i~
. . d t . l"'ltlf

imediatamente conceber algo que possa ultrapassá-las. Co az Para


~ com o aUXJ"'1tO
zar esse obJ·etivo senao · d os artifi1c10s,
· ,,
a unica mo.rea1·~-
que O homem dispõe fora da nature~a.? ~~ COtsad
e
dÍtosas e lilases, tapetes de carmesun bordados em ouro po
/; ,,,
nas do Japão, vestidos de ta1eta co1on.d os, dosse1s ,, . , rceta.
de dam
. /; . asco
otomanas e espelhos, alicates, _p1s_to1as, 1erros, maruvelas, máq~
monstruosas, todo tipo de artificio que possa fazer com que 0
se manifeste é sempre_ a.d m1t1 · ºdo ~ t º?1a-se m . d.tspensavel ,, _ Para tnal
que se realizem os obJet1vos da hbertm~ge~. Os devassos não se
poupam para atingi-los: recorrem aos artifícios, propondo que não
há sequer uma paL""íão que prescinda deles para manifestar-se,
sustentando que da natureza só se recebem inclinações, a serem
realizadas fora dela. Das monumentais muralhas que os abrigam, u
minúsculas agulhas que servem aos suplícios do deboche, tudo é
artificial no castelo sadiano. Até mesmo o que parece não poder
render-se ao artificial ali o faz: nessa habitação há corpos que são
objetos."-
Mas insistindo na representação até suas últimas conseqüêncm,
levando-a ao absurdo, o libertino finalmente faz com que ela se
mbre. Essa é a genialidade de Sade?'quando parece ter submetido
da a natureza ao artificio, quando não sobra mais nada ao qual se
de atribuir o nome de "natural", ele dá uma reviravolta e submete
os os objetos ao corpo, transformando-os em apelos aos sen~~
! faz~ndo deles nada mais que instrumentos a serviço da carne.
mt~nor do castelo de pedra, todo artificio acaba por se render.
Assnn, se do lado de fora a natureza existe apenas como orna-
to, se nada mais é que cenário do castelo libertino, como
O Teatro 111

souza observa que "ao mesmo tempo que . traduz a necessi-


~ellº e dorno, a moda corresponde ao dese10 de distinção so-
d~dl'~ 2~~ ~aior parte das leis ~untuárias, ~iz ela, repousava sobre as
eia · 5
de classe, e os reis que as editavam circunscreviam as
d iferença· peliças e as correntes de ouro a certas camadas sociais,
5
~eda~i:ando-as a outras. Podemos identificar no guarda-roupa liber-
i?ter elo menos dois elementos que caracterizam a moda no século
unon:pum que ape1a para o passad o, a ornamentaçao ~ . d" .
in istmta para
:roens e mulheres (c~racterística do Antigo Regime que se modi-
fica no decorrer do seculo XIX), e outro que aponta o futuro, a
preocupação com vestimentas que contemplam a mobilidade ( exi-
gência da vida de salão, mais movimentada e menos sedentária).
Mas, ao afirmar que o vestuário é um jogo, não estaria Barthes
sugerindo - e com razão - que é como elemento lúdico que Sade
concebe seus figurinos, e que essa distinção nada mais é que uma
brincadeira a serviço da luxúria? Pois a ela contrapõe-se a verdadeira
distinção entre os seres, a inequívoca diferença entre fortes e fracos,
ditada pela natureza, à qual o artificio serve apenas como deleite.
Vejamos: um mesmo figurino pode servir a diferentes atores.· O
vestuário do súdito é, muitas vezes, similar ao do libertino;?'se
humilha os rapazes impondo-lhes trajes de mulher, o devasso diver-
te-se enormemente vestindo em seguida semelhantes indumentá-
rias femininas~ão é a roupa que distingue o libertino e, no mundo
do deboche, não estamos jamais autorizados a tomar o monge pelo
hábito; as aparências só enganam aos espíritos obscuros que, não
sabendo manipulá-las, tomam-nas como verdade~
Voltaremos a isso; de momento registremos apenas a invalidade
de se falar de moda ao abordarmos o vestuário do deboche, inclusive
pen.que tal é a variedade de trajes que compõem esse guarda-roupa
q-.,-caberia melhor falarmos de fantasias, remetendo-as à multipli-
de figurinos à disposição dos atores de um teatro. Com efeito,
erva que o vestuário sadiano é regulado em função de
~aate: a cada noite, senhores e vítimas aparecem vestidos
· , à espanhola, à turca, à grega), e até mesmo as
do serviço prestam-se ao jogo teatral trajando-
..._...._ viúvas, freiras.
~ t o deve se compatibilizar com a
112 Capítulo 3
ainda segundo Barthes, é~ ~rincipal quau
funcionalidade, que, . que O quarteto de Silhng destina claqt
desses figurino . s • o traJe _,.,e prussiano d escnto

• no qUinto a .st\ts
d
amantes favon't°S , O unuOJ..L.1..0. cl1a.
,, de perfeitamente a aptado ao eç1 . Qa
t lo a 1em , e1t0
comitiva no ~as e c~bido para atender prontamente as obriga .Q() .
espetáculo, eco~ bertura atrás, em forma de coração Çoti,
,, . movimento, ao se d esatar o grande, e ,q\lt
,, . (" calçao com a
da tuxuna
. m um uruco no Ot
pode cair co. ")' deve desaparecer num segundo. A mobilida
fitas que O segurad · lo seu deseJ· o de satisfazer-se imediata""1 Ot
• · é dita a pe ente
•&

do libertino . ue o vestuário conserve em Sade "um vai ,


0 que detemuna q . ,, 23 or
im iedosamente funcional . . ,, .
p t Mas talvez seja dese1avel ampliar o campo de +;._
f/ Certamen e. . . •f ~ •\lll•
ões libertinas para além da imediata saus açao sexual. Nesse senti-
çd tuário sadiano assumiria, sob o olhar de Barthes, funçn-
o, oves · d umen~~..... """
perversas: Pode Ser usado simplesmente . como m _ I.Q.J.lcl, se
destacado O requinte do bem-vestir e seu ~o~~r de seduçao Ouliette
prepara-se para encontrar o cardeal Berms: ornamentada de tudo
0 que a arte saberia acrescentar aos encantos com que a naturei.a
me dotara", diz ela, "seria impossível parecer mais bela e elegante");
pode ser fantasia, que modifica ou realça os corpos de acordo com
os desejos da volúpia (no sexto dia em Silling, os amigos ordenam
que as meninas apareçam vestidas de marinheiros e os rapazes, de
prostitutas: "nada apressa tanto a lascívia quanto essa pequena
inversão voluptuosa", acrescenta o narrador~pode ser disfarce,
utilizado para iludir ou mesmo para enganar em certas situações (em
"Augustine de Villebranche", Franville veste-se de mulher com o
objetivo de seduzir uma jovem que só se interessa por parceiras do
mesmo sexo; em "La Comtesse de Sancerre", a libertina, apaixonada
pelo noivo de sua filha, concebe um plano ardiloso convencendo a
jovem a disfarçar-se de homem, enganando-a e ao rapaz que, pen-
sando matar um rival, assassina a própria noiva). 24 . _
,'':ransvestir: seduzir, inverter, iludir, disfarçar. É aí que a aç~o
ludica dos libertinos passa a ter um sentido mais denso· a diversao
é ~bém uma política. O claro jogo do vestuário é um ;util jogo de
ª
diSfarces, serviço do cerimonial do deboch~ Neste sentido temos
que nos distanciar da interpretação bartbesiana: além de concebd'

l3 Roland Barthcs, Sade, Fo


O Teatro 113

upa sadiano a partir das funções da distinção e da


n11arda-ro
o /!,- ~
J·dade funçoes, d.triamos,
' mais· transparentes, Barth es am-
·
·ooa t ' ,
fu11C1 . ala que "o transvestimento e raro em Sade. Juliette presta-se
daass•0 só vez, mas, vulgarmente, Sade parece desprezá-lo como
a is50 dum.~usão (serve-se dele negativamente, para determinar se os
fo, nte e ssumem
t
a nova fi1guraçao~ )" 25
.
sucfitOS ªa cerimônia em que Juliette e Noirceuil participam de
o.ra~tos duplos, na qual proliferam as inversões indumentárias,
casatn~se com freqüência no castelo de Silling, onde os casamentos
~pet~tas vezes celebrados com os noivos vestidos inversamente.
saom
4N as solenidades, o transvest1mento . , .
assume um carater cancatu-
c:i.ssê-se um homem vestido de mulher, ·e vice-versa. Simples elogio
.. · ':rência, embora nada desprezível para o libertin~ Mas a troca
d ap
a vestuário é tamb em,
, .
mwtas , . d e sed uçao,
vezes, estrateg1a ~
como

r ,evirnOS em "Augustine de Villebranche", que reedita um tema caro


libertinagem (haja vista sua recorrência nos personagens donjua-
nescos), e de estratégia pode passar ainda a armadilha, com conse-
qüências funestas, como acontece em "La comtesse de Sancerre"
ou em "La Châtelaine de Longeville". Há, em todos esses episódios,
a encenação de uma farsa. No mundo do deboche, perverso e
polimorfo, as identidades - inclusive e preferencialmente a sexual
- sempre podem ser forjadas, maquiadas, fantasiadas.
QC/estir-se de outro, fazer-se de outro. O transvestimento em Sade
significa a possibilidade de um desdobramento de identidade (fun-
damental para a realização da cena teatral), ao mesmo tempo que
concretiza uma transgressão, através da leviandade do elogio às
aparências, do ato criminoso de enganar o outro ou ainda da
exibição da indesejável inversão sexual. É simulando sua identidade
que o devasso desafia os padrões éticos e morais de sua época. É
iludindo que ele propõe seu enfrentamento com a virtude; é repre-
sentando que vai combatê-Ia.,'\
SeduZir, inverter, iludir, disfarçar: o século XVID não se cansa de
tqletircssas palavras, às vezes com certa desconfiança, suspeitando
seus signi6cados, passíveis de serem colocados do lado oposto
F.otre aqueles que as condenam, uns dirão que se deva
CJUtm■, que é ncccsário conhecê-las para melhor evitá-
recusas encontra-se a afirmação de qu a
]22 Capitulo 3

Não so,, u ma estética·· o disfarce é uma política. para o lib


ara confrontar-se com a sociedade. Dent t ttiri
q ue ele exerCe P 'd .,. b ro (1 C>
.,.
do1111n10s
. essa política não tem senti,
o, e.,.
su
d'
stituída Pel a fo
t Sth.'
't.\
assum em apenas um carater 1u 1co. Fora del tça
0 s disf:arces . es p · , t
,, .
ela e iroP
rescindível. Como.
pode o sedutor .
ctrcular,,
livren-. ' Ot~
.. "lente ,
. ·mular? E ao crinunoso, como sena poss1vel desy sefl\
se d1ss1 · . 1.b d d iat•se
cerco d o s outros? Para garantir sua
lib . 1 er a ~
e - mas tatnb '
ttn n
ct()
manter Sua identidade - , os .,. ert1nos sao os mais talentoPata
. ,,
mterpre tes dessa arte que o seculo
. .XVIII todo cultiva ' cotn tansos
_/: • ~ 0 concebida por seus historiadores como a "teatrau
peue1ça , zaçãta
do soc1a . l" .43 .,. o
"Não se diz no mundo que um homem e um grande comedia
Não se entende com isso que ele sente , mas ao contrário, que p ~te?
em simular, embora nada sinta: papel bem mais difícil que O do ~a
. d' funç" or
Pois tal homem tem ademais o 1scurso a encontrar e duas 1

. ,, .,. . oes
a realizar, a do poeta e a d o comed 1ante - e asstm que Dider
fecha O Paradoxo, assimilando as habilidades do cortesão às ;~
comediante.44 Neste sentido, também o devasso assemelha-se aos
nobres, mesmo quando acontece - o que é raro - não ser um
deles ..lA corte e os salões lhe oferecem os modelos desse jogo dt
aparências que se desenvolve na sociabilidade do Antigo Regime: é
na simulação que a nobreza encontra seu divertimento, tanto 11
sentido vulgar dessa palavra, como no sentido mais denso que lhe
atribuiu Pascal. Apreciadores dos bailes de máscaras, das ópms e
comédias onde a platéia disputava o palco com os atores, acostu-
mados aos rígidos cerimoniais palacianos e às etiquetas, os nobres
interpretavam seu papel dando à representação o estatuto de um
dever. Os libertinos a elevarão à arte~
Privilegiando a glória, a honra, a fama e a reputação, a socieda~c
de corte se caracterizava pelo apego às imagens e pela distinçao
através das aparências: "o Antigo Regime aceitava que vivêssemos
em meio a semblantes, a máscaras, a p ersonae" .45 Não importava

43
V~, nesse s~ntido: Claude Reichler, L'age ltbertin, Paris, Minuit, 19S~: N,:,'
El~: 1 socredade de corte, Lisboa, Estampa, 1987; Renato Janine R•~' A 1
1
Glória ' em O sentido das paixões, São Paulo, Companhia da . Letras'. ~O
O Teatro 127

articipação de internos de Ch~renton e ~o~e-


:itrais c 0 1? ª ~ de paris, tomando-se conhecido pelo publico
10s te . profisst011ª1 gente da sociedade francesa, intelectuais e
..,,~ces
PJ •• entador
do teatro'
. tira tais representaçoes - era considerado,
. por
frt~uas da cidade. Assis tenimento exótico e requintado. Durante
.,,.,1st
au-a plateia,
entre
,, . tU1l dos onze que vivera,, la,,, Sad e se d e ct·1ca, al"em d e
~llSe oito anos, . ·dades s1 Não sem opositores; afinal, nunca
q-- essas auv1 .
dcrever, ª,.. e dos mais veementes. .
de~ou de te-Jos, .ssário de polícia Dubois justifica a estadia de
0
Em 1so4, ,,c~mipor seu "estado perpétuo de demência liberti-
•• n1 hosp1c10
5ade nw.... ais tarde O médico-chefe de Charenton d.ira, . que
na"· Quatro anos - mé um alienado. Seu unico,. d ,, . ,, d ,, . " E
elírio e o o v1c10 .
•este h omem nao -
transferência para uma prisao, afiirma que " nao - e,,
ptoP0ndº si;:nsagrada ao tratamento médico da loucura que essa
••..n~ casa e
nua-a;-.e de delírio pode ser repnnu . .d a ,, . P airam
. d uv1
, . .d as sob re a
~pe~cfade mental de Sade, mesmo entre os que a ele se opõem.
~ distinguir O lo~co do crimin?so? ".
~ decorrer do seculo xvm, diz Foucault, mtemam-se como
~ o s todos aqueles que não se consegue rotular como loucos" .
Não há a preocupação de distinguir o doente do devasso, mas sim
a de circunscrever uma região indiferenciada da desordem, da qual
participa a monstruosidade do crime. O que determina e isola a
loucura não é tanto uma ciência médica quanto uma consciência
1USCetível de escândalo: "o internamento traçava o limite a partir do
IJllaf o escândalo se torna inaceitável" .52 Proclama-se a imoralidade
do irracional, mas também a irracionalidade do imoral. No Antigo
legime os sanatórios como punição para a libertinagem talvez
tossem o meio caminho entre as prisões e os conventos, significan-
• ora atenuação ora exacerbação da pena, mas sempre agravados
lflla natureza punitiva do confinamento~
~P~ da Revolução, porém, "quando os costumes constituem
propna substância do Estado, e a opinião o elo mais sólido da
uma, escândalo toma-se a forma mais temível de alienação''
0
. .
psiCOlogia do crime, decorrente, não de humanização da
mude uma ~enaa
doe PVift" •
suplementar da moral, de uma esta-
m.ctnmes, invertendo a imagem da justiça clássica. "A

~ , até 18U'/, OI dez fflhlmes dasJournhs de


DIDdaqucitW
O Teatro 129

_ç;rfTlando,, que as • representações


aiµ. ...-- •
"divertem os doente ,,
comédia e um . meio
~
curativo
,, .
para a alienaç~ao do espinto"
, . s eD que "a
"viva imagmaçao e o esp1nto de M . de Sad ,, d • efende
ª r tê-lo n o sanató rio: o teatro é "u m reméd~ ,; eclarando-se feliz
po . d" o .
á se passaram mwtas ·ecadas desde que d'Alembert Volt ·
J
Diderot e Rousseau po1emtzaram sobre os espet,. ul ' a1re,
ão outros,/Á.. sociedade do século XIX medicaliza oact s os. Os
emas tempos
filosófic
S
do XVIII, tudo
. ,. . passa
• pe1a, . d"comprovação
. de uma c1p1ente, porem
m
· • • ºs
...

oderosa,
,,. • c1enc1a.~
0 s me 1cos, diz.Foucault' assumem entao - o lugar
P
de sabios; serao e 1es a mon~polizar as grandes polêmic~ Se 0
interesse de Sade pel~s espetaculas deve-se à afirmação do teatro
enquanto arte, ele tera que se dobrar ao argumento do "rem"'ct·
A e 10,,
para combater os que veem nele um "vírus" contaminador.56
A indicação do teatro como terapêutica da loucura inscreve-se
numa concepção médica que defende a utilização de "medicamen-
tos psicológicos., ou de "métodos morais" no tratamento dos doen-
tes, concepção que, a partir das últimas décadas do século XVIII, vai
ganh~do o espaço outrora ocupado pelas teorias que prescreviam
apenas medicamentos para o corpo. O psicológico vai, pouco a
pouco, substituindo o físico. Royer-Collard é um homem da "velha
escola", não vê com bons olhos essas inovações que começam a ser
ldCl~didas e sistematizadas por uma psiquiatria que propõe mais
~~~~~de" aos internos, tendências às quais Coulmier parece ser
mais sensível. Alguns anos mais tarde, Esquirol irá prescrever
a e a encenação como terapias eficazes para as doenças
, dedicando um capítulo de seu tratado ao exame do teatro
em Charenton. 57 Mas será preciso esperar ainda um século
que a idéia de cura pelo teatro seja_reivindi~a~a de fo~a mai~
E subvertida: será um artista e nao um medico a faze-lo. Sera
.....,_ "louco" a realizá-lo: Artaud.
J34 Capítulo 3

cena, .1orça
& d os a vê-la , enquanto os .devassos
.d d têm absoluto"
. '"'"ºntr
. -
de sua v1sao, a f: zendo dela uma at1v1 .a e a serviço · . da lu"" , ()le
~Utia
.
ngor, somente esses últimos _ poderiam
d ser qualificados
. , coni.A
voyeurs,~ na medida em que sao, entre . ost que assistem
. ~ as cenas <1()
deboche, os únicos a investir erot1came~ e na ;7i~ao e , Portanto o
fru . daquilo que vêe~ Pelo menos sao os urucos a decia , , a
u lib . ~
Entendamos po,:ém ? ~oyeur!smo e1:ino como ~ma das Possibi~
l .d d s de fruiçao erot1ca e nao no sentido de desvio que a ps· ,
1 a e ~ ,, _ l'b 1cana
lise atribui à !°'ª~ão. ~ão ha pe1;7le_rslao na _1 hertinagem, tna~
preferências; nao ha desvios, mas mu tipos canun os de acesso ao
ppzer. "i'
(( Teríamos entre súditos e senhores a mesma diferença que
poderia estabelecer entre o espectador e o dir~tor d~ um espetác~~
teatral: ambos vêem, mas apena~ o seg~ndo !ntervem. o libertino
não é apenas ator em cena; ele e tambem, diretor em atividade
criar e recriar um campo visual a pa~ir, exclusivamente, de se~
desejos. Quanto ao leitor-espectador, e esperado que ele se identi-
fique completamente com a direção do espetáculo, e , nesse caso
intervenha com suas próprias imagens; se não atender a essa expec~
tativa só lhe resta a identidade com a vítima, condenada à absoluta
passividade. Sade não poupa o leitor. E aquele que imagina estar
fora da cena, evitando o desconforto das identificações, estará,
inevitavelmente, fora do texto. ~
Há um perverso tom rousseaniano no teatro do deboche: à
simples representação, que exige distanciamento entre palco e
platéia, Sade contrapõe a presença absoluta do corpo: da exibição
à manipulação, e desta ao dilaceramento - eis a composição desses
espetáculos. Sendo assim, o libertino não se obriga a manter o
afastamento que o olhar exige: se a visão é um sentido da distância,
o devasso, voyeur, além de subverter esse intervalo fazendo com
que o olhar sempre repercuta no corpo, irá também alterná-lo com
outro sentido que requer obrigatoriamente a proximidade, o tato.
A ferida exige o toque.
Ver e ferir: concomitância dos sentidos, plenitude do p razer. Em
Saló ou Os 120 dias de Sodoma, Pasolini recria a cena sadiana com
perfeição: os quatro fascistas, no final do filme, reúnem-se para
torturar seus súditos no pátio da villa o nde se hospedam; uma daS
janelas da casa J>Crmite-lhes a visão privilegiada desses suplíci~;
os quatro algo7.es se revezam entre as atividades externas e a cadet
Capítulo 3
136
70
.
,., pois se desenrola em público" . Da tortura a., ex
ostentaçao, oduz e reproduz uma verdade. Das t ec:u\¾
diz ele, c?1~ ~lhotinas do Terror, o espetáculo d~~Utiras (4;
0

santo ofici~e uma verdade, seja em nome de Deus, da na. ~eldactt


evoca semp d Em outras palavras: a verdade do suplícioç' 0 0 u clt
ntida e. e strn
outra e um outro lugar. Ptt
posta em or.:tnde diferença entre as torturas e execuções ,
S erá essa a tr .......- ., ,, sd
,, ul do deboche!"Cabera a a e teonzar a crueict cas
. PUbli
e os espetac osra"tica sem recorrer a nenhum discurso .
que ade.. no
• ·or de sua P ' nao s •
inten tn'buir a ela nenhum fundamento senão O do . eia
do mal sem a ~ N~ clltnt
o . ' . .s O criminoso de seu attf. ao encontraremos ern S ,
sem isolar, Jama1func1amento pedagógico' como o apresentado ade
nem mesmo o Kafka p· Ptlo
. , . de A colônia penal de , que ierre Clastres asso .
func1onano . 11 • tifi d eia
. . iniciáticos dos índios guayaqU1, JUS ican o a tortura con-.
. . - da memória soci·a1 no meio
aos ntuatS . d o corpo, fundamento quo 4

constitwçao . . ue
Nietzsche vai estender para toda a --~~a~dade ao dizer q~e a terrível
técnica humana se constroi mvanavelmente atraves da dor.n
mnemo li . . . b
- ~ a formulaça~0 sadiana o sup ao Jamats se su mete a outro
Nao,"11 & 1m ,,
sentido que não seja o do mal. Ou, como pre.1ere Do ance, "daqUilo
. ,, 7 ~
que os imbecis chamam d,, ~ cnme . -~ . . ,,
Uoo ponto de vista da vitima, a crueldade libertina e sempre gratuita;
a rigor não se pode falar de castigo ou punição no mundo do deboche,
pois na tortura e no assassinato o que se visa é unicamente a fruição
do mal. Os corpos imolados não são, jamais, ~superfícies onde se
inscrevem leis, mas matéria-prima da lubricidade~A vítima nada tem a
aprender ou memorizar: prova disso é que o corpo mutilado sempre
pode, a desejo do devasso, ser reciclado. A passagem final de]uliette
é, nesse sentido, bastante significativa: o corpo de Justine, totalmente
recuperado das horriveis marcas que seus algozes lhe imprimiram,
servirá à derradeira cena lúbrica, mutilação fatal da natureza aprimo-
rada pelos devassos. Além disso os supostos cas~·s dos súditos de
Sillin - . '
li ~ sa~ _apenas formas de inflamar a volupia, do ponto de v1sta
,, ·
bertino e Justamente essa gratuidade da crueldade que fundamenta 0
prazer, Verdade última do suplício.\

70
Michet Foucau11, Vigia
71 Pierre Clastres "Da 1i r e />Unir, Petrópolis, Vozes, 1977, p. 43-44. tra
0 &t.do, Rio dcJan ?rtura nas Sociedades Primitivas", em A sociedade cm,

~ Fricdricb ~ e aro, Francisco Alves, 1978. 1


S a c i e . , : , , . ~ ~ da moral, São Paulo, Brasilien , 1987 · P
O Teatro 137

/J
1111ver
sofrer faz bem, ,,fazer-sofrer
. . mais bem ainda- ei·s uma frase
as um velho e sohdo axioma, humano, demasiado h
duta, m ,, . b umano ,
ue talvez até os s1rmos su -~crevessem: conta-se que na invenção
q
de crueldades bizarras ele~ Jadan~ciam e como que 'preludiam' 0
mero" _ as pa1avras sao e Nietzsche. Lançando O mal à sua
h;é-história (idade de ouro, diria Sade), "quando a humanidade não
fe envergonhava ainda de sua crueldade", quando não precisava
encobri-la de razões outras para praticá-la, Nietzsche percebe uma
substância cruel irredutível e anterior a qualquer lei humana. Nessas
épocas ancestrais "não se prescindia do fazer-sofrer, e via-se nele
um encanto de primeira ordem, um verdadeiro chamariz à vida" .7•
Esses "homens primordiais" agem movidos por uma "força
ativa", por uma avassaladora "vontade de poder": "sua obra consiste
em instintivamente criar formas, imprimir formas, eles são os mais
involuntários e inconscientes artistas - logo há algo novo onde eles
aparecem, uma estrutura de domínio que vive ... ". São criadores de
sentido, orientados por um "instinto dei liberdade" que nos outros
homens foi tomado latente à força. 75 ~ crueldade do artista, a
violência
,,,
da arte, precede a lei.
E nessas raízes, concebidas pela antropologia de Nietzsche como
"ancestrais", que a arte da libertinagem vai novamente coincidir com
a do teatro. Não só na superfície da carreira, de ator ou libertino, mas
nas profundidades, onde encontram-se o sentido primeiro e último da
atte: aos tempos nrimor~ais de Niet~che correspond~ a na~eza de
Sacie. E, por issofo espetaculo libertino pede para ser lido, nao como
espelho dos suplícios que a época ostentava publicamente, mas como
manifestação superior de uma energia que, inscrita em todos os
home11s, foi forçada a calar-se ou a manter-se nos cantos obscuros de
consciência conciliada com a lei.
148 Capítulo 4

nomes e on·gens· A raridade, que . h nos pratos .


é mUitas veze
,, s atrib
ando se trata de vm os e 1teores e expressa at \lt()
abstrato, qu . t·d d ravé
. d distinção entre as diversas qua 1 a es de bebida s ela
de11ca
. a ~
libertino entretanto nao a rmte d . moderação-~ · Oe
f 011.
naisseur d . · ~ ato
conhecer as sutilezas de paladar que ca a vmh? ~e oferece ~e
impede, de forma alguma, o excesso. Pelo contrario, é justarne°ª()
esse aPuro que estimula o desregramento . ,. . . a que se entregan-. nte
•.t1 esse
singulares gourmands em suas cenmoruas. s
"O vinho ocupou sempre um lugar central nos ritos, fe
cerimônias da antigüidade pagã e do Ocidente cristão. Sem:~e
,, d' o . p 1.-lllO
não há comida que valha a pena ,, - tzd t~v10 az aludindo à sua
qualidade mágica: "homól~g~ da ag1:1a, ? semen e ~o fluído espiri-
tual, é fertilidade '~ressurre1çao,, e arumaçao da. materia" .28 Esse"nCta .
vital da ceia crista, mas tambepi das bacanais romanas, tão m .
. I('..,.. lib . ais
próximas do universo sad1ano. para os _ ertmos_ e as ?ªcantes, 0
vinho_ e seu correlato: o san~ue - estao associados a orgia, aos
êxtases, aos delírios e à morte.)'
/'/o privilégio do álcool na libertinagem é justificado pela convic-
ção de que ele predispõe o homem às sutilezas do crime, prodUZin-
do um temperamento vulcânico, propício ao deleite da crueldade,
na medida em que toma os órgãos "mais delicados", as fibras "mais
sensíveis", o fluido nervoso mais "aquecido", determinando assim
a acuidade e a intensidade das sensações que o devasso experimen-
ta. Se a alma é propriedade da matéria, a embriaguez não é um
estado psicológico, mas tisico: o vinho "eletriza", "aquece", "exal-
ta", "irrita", anima o espírito, preparando o indivíduo para as
volúpias do corp~No caso do libertino, elas serão as mais refinadas.
O virtuoso, ao invés, sendo por natureza frio e insensível ao prazer
porque seus órgos grosseiros e suas fibras relaxadas não se deixam
excitar, ao escolher uma dieta m oderada é purgado de toda vivaci-
dade, de toda paixão, o que o dispõe unicamente às volúpias morais.
Diferença decisiva, cujos fundamentos Sade retira do materialismo
filosófico que tanto aprecia.
"Cada um de nós pode, de alguma forma, produzir seu tempera·
menta" - afirma d 'Holbach no Systeme de la nature, acrescentan·
do em seguida que o álcool, disseminado na corrente nerv?5~,
aumenta no homem a proporção ou a violência desse "princ1P1º

28 ~ Paz, "EI banquete y d cnnitaiío", cm Corrlente altema, Mésiell• ~


XI, 1969, p. 10.
O Banquete J5 7

deus apenas a flfiliação


o0 .:n1 ~
paterna, fazendo dele um 0,,. rfã d
·d .
~
o e mae .
,AsSu.A. ., toda sua re exao. vai esconsiderar qualquer noção d e caren-
"
. "11.Toltando-se
eia, ,, ,. exclusivamente para a. riqueza e a fartura . O vicio
, . . e, .
sempre prospero. Ma.s, . veremos adiante, nem por isso O Eros
diano será menos filosofo.
s~Quando o duque de Blangis, no oitavo dia em Silling, sustenta a
e de que, se a felicidade consiste na satisfação total de todos os
tes
sentidos, são eles os h omens mais . 1.e
ç 1·
1zes d o mundo, Durcet com-
leta: "onde quer que os homens sejam iguais e onde não houver
itais] diferenças entre eles, não haverá felicidade" .49 Refere-se ele
ao prazer da comparação que~ libe,~ino d~sfru~a quando observa
as pessoas desgraçad~s e pode d1~er: sou mais feliz que elas" . Prazer
de tal ordem e magrutude que nao raro o leva a produzir desgraças
e a engendrar a ruína de outros co1n o objetivo único de saborear a
comparação.\.
LSigamos por um momento a argumentação de Dorothée para
perceber a importância desse tópico no sistema filosófico de Sade.
"O que é um c~e?" - pergunta ela a Justine, imediatamente
respondendo: "E a ação pela qual, dominando os homens, nos
elevamos infalivelmente acima deles; é a ação que nos torna senho-
res da vida e da fortuna alheia, e que com isso acrescenta à porção
de felicidade de que gozamos a do ser sacrificado. E nos dizem que
à custa dos outros esta felicidade não poderia ser perfeita ... imbe-
cis! ... é precisamente por ser usurpada que é tal, pois não teria mais
encantos se nos fosse dada. É necessário então arrebatá-la, arrancá-
la; há de custar lágrimas àquele que privamos dela, e é da certeza
dessa dor ocasionada aos outros que nascem os mais doces praze-
res". E, em seguida completa: "A felicidade não diz respeito a esse
ou àquele estado de alma: ela reside na comparação de seu estado
em relação aos dos outros", concluindo que "é necessário, para a
perfeição de minha felicidade que eu possa me acreditar a única
~ a feliz não mundo ... feliz quando todo mundo sofre. Não há
ser delicadamente organizado que não sinta o quanto é doce ser
pn·...vuegia
.:1 • d
º ···,, so
Tal privilégio também corresponde ao reconhecimento da iden-
;•JMIIC absolutamente singular do libertino, atributo que Sade sem-
enfatin na descrição de seus personagens mais fortes - Blangis,
164 Capítulo 4

d perdizes novas e patinhos de Rouen) e ser


sangrada pe .ea a fornecerem à luxúria redondos e rechoengorda.
das de ~~ºl~ambém O corpo do devasso que triunfa q;chudos
altares . ando as
vítimas se nutrem. . . .
tro lado, ainda quando ministrado, o alimento tern
Por ou p . ~ . . Ullla
. função: serve para matar. aixao cnrrunosa, anotact
terceira . b b d . a na
.
terceira c lasse·· "Dá-lhe copiosamente a
d . e er; epo1s
. costura
,, lh
· ea
boceta e O cu , assim como a boca
,, e eixa-a assrm
,, 63 ate que a,,
agua
1
rebente-lhe os condutos, ou ate que e a morra . A alimentação
pod e fazer adormecer, deixar adoecer, b . ,. . envenenar
. e assassm·
ar
deixando de ser provisão para aso rev1venc1a para tomar-se veícul~
do ,mal.
')N"a última função anotada por Barthes o _al~ento aparece como
produtor do que podemos chamar de mais-alimento: é a Cümida
em seu estado puro de matéria, sofrendo a alteração e a adulteração
que lhe impõe o corpo. É a comida na ~orma de sujeira, mas também,
inversamente, a sujeira enquanto conuda. As fezes, a urina, o vômito
deixam de ser um produto inútil no mundo libertino e assumem 0
estatuto de alimento. Servem ao consumo. Acrescente-se a eles 0
suor, a saliva, o hálito, os arrotos, os peidos, as lágrimas, o pus, 0
sangue menstrual, o sêmen, e todo tipo de secreção produzida pelo
corpo. A boca comunica-se então com todos os orificios e todas as
aberturas: expande-se o campo da oralidade. Toda sujeira serve à
luxúria.
E o libertino dará a ela o mesmo tratamento que dispensa à
alimentação. D'Aucourt é ainda o melhor exemplo: administra uma
dieta rigorosa às suas vítimas para melhor deleitar-se com suas fezes,
sempre servidas em pratos de porcelana. Duelos descreve-a: "A base
das refeições normais consistia numa imensa quantidade de peito
de galinha, aves desossadas, preparadas e apresentadas de todas as
maneiras imagináveis, vitela ou outra carne vermelha, nada que
contivesse gorduras, pouco pão ou frutas. Tinha de comer esses
alimentos até no café da manhã ou no lanche da tarde. ( ...) O
resultado dessa dieta, como meu amante calculara, eram duas
evacuações por dia, e as fezes eram muito adocicadas, muito macias,
e, segundo D'Aucourt afirmava, de um gosto requintado que não~
con eguia obter com a alimentação comum; e ua opinião merecia
. O Banquete 165
crédito, pois ele era um connaisseur" 0
rado em D'Aucourt, ordena a mesma ·d. quarteto de Silling in .
oito dias, observa •
o,, resultado·
4 ·
as fez estet:
sao a seus
« de
súditos~ , aps~1- os
infinitamente maior ..6 uma delicadeza
~ sujeira, quando mvestida pela libert· .
ara ostentar sua condição orgânica q magem, deixa de ser tabu
· .,. . · d l ' ue, controlad
P
serve às exigenc1as o pa adar do devass E . ~ e ordenada,
ara ele sao - as poss1.bil.d
1 ades infinitas d
o. 'a partir
,. dai, o que conta
_ 1
e a tera-la· as s ~
P
corpo estao em constante transformação d · ecreçoes do
cessante objeto para a filosofia materialis~ sen o ~ortanto um inte-
.. - d ,. .
atenta as mutaçoes a matena e seus efeitos .
ª que onenta o deboch e,
das N ' se1am elas naturais ou
provoca · . .
E se a boca libertma estará sempre ab rt ·
matérias, também o ~stará para teorizar sobre\ :s::~:O p~~var
12 0
d essas
no décimo nono dia b no castelo: "é um eqwvoco ,. ·d.1zer que uqueé
necessário: pabra sle o ter pra~eres, que a boca das mulheres ou dos
.rapazes s~Jª a so utamente limpa. Deixando de lado todas as ma-
mas, admito ,, de boa vontade .d que quem exige hálitos fétid os e b ocas
nojentas e apenas movi o por depravação, mas concordai comigo
quando afinno que uma boca inteiramente desprovida de odor não
proporciona nenhum prazer ao beijo: deve haver sempre um certo
condimento, um certo sabor picante nesses prazeres, e ele não se
aicontra senão em um pouco de sujeira". E propondo outra dieta
aos súditos que lhe permita saborear essas delícias, ele continua:
"Por mais limpa que esteja a boca, o amante que a chupa faz
catamente uma coisa suja, e com certeza é essa sujeira que lhe
agrada. Basta dar um pouco mais de força a esse irnpulso e se
desejará que essa boca tenha algo de impuro: que ela não cheire
como um cadáver podre na hora do clímax, mas que ela não tenha
'd . rt" l" 6s
o r do leite e da inf"ancia, q~e cons1 ero_msup~ ave .
interessante notar que se há uma negaçao da limpeza enquanto
norma absoluta, também há uma necessidade de ordem no trata-
mento da sujeira o que é evidenciado pelos pratos de porcelana,
pela ritualização dos
atos de coprofilia e sobretudo pelos rigo~o~~
ttgimcs alimentares. Não se trata, pois, de aceitação cega da SUJei•rlt'"
propor a dieta dos súditos o duque fala em • alterar sem c~rr~m-
....~; trata de acrescentar ~ondimentos vi ando a produçao o:s
]74 Capitulo 4

há um acréscimo de prazer, um requinte ainda maior a contemplar


0 apetite do devasso.

0 sacrifício nos dá a conhecer o sentid?,, °:1ais profundo da


u tilidade dos obJ"etos do deboche; tudo
,, o que
,, e uttl para
,, o libenino,
0
é porque serve ao consumo. _E soo que_ e consunuvel lhe serve,
condição essencial de seu ~bJeto pre~e~do: º,, ~orpo da vítima.
Bataille sugere que nos rituais de sacrifício a v1t1ma representa
"parte maldita": é "um excedente retirad~ da massa da riqueza
E ela só pode ser retirada para ser~onsunuda sem lucro, conseqüen-
úti:
temente destruída para sempre" .fflesíduo, sobra, acréscimo e exce-
dente, a vítima equivale às matérias malditas, entre as quais estão as
jóias e os excrementos, o lux~ e a sujeu:a: são ex~essos. Situam-se
fora do mundo do trabalho, sao formas unprodut1vas que existem
para ser dilapidadas, não no sentido vulgar - a despesa funcional
_ e sim no mais nobre: o consumo violento, pela radicalidade com
que destrói, dá o verdadeiro sentido da riqueza, a liberdade. Contu-
do, não é o objeto a exprimi-la: "O sentido dessa profunda liberdade
é dado na destruição, cuja essência é consumir sem lucro o que
podia permanecer no encadeamento das obras úteis. O sacrifício
destrói aquilo que consagra" .81
Para Bataille, o sujeito livre emerge numa ordem fora do traba-
lho; não tem que fazer provisões, nem previsões. No mundo do
trabalho vigora a escassez, mas fora dele a abundância prevalece,
tudo circula o tempo todo, como nos banquetes eternos dos califas
e libertinos. Deste sujeito livre "de modo algum subordinado à
ordem 'real' e estando ocupado somente com o presente, a própria
loucura dá uma idéia suavizada". Preocupado com "o que é" - e
não com "o que será" - ele não tem razão alguma para guardar e
acumular; nenhuma necessidade de reserva. Pode, pois, fazer da
totalidade de seus bens um consumo instantâneo: "Tudo transpare-
ce, tudo é aberto, tudo é infinito entre aqueles que consomem
intensamente. Mas nada conta a partir de então, a violência se libera
82
e se descncadcia sem limites, na medida em que o calor aumenta'' -

<ie:Oc:111Sllllllailllc,A""fillo•...,_.- A,,,_,.moldlta, RiodeJaneiro, Imago,


97198e96.
96-97.
Capítulo 5

O BOUDOIR

"Passemos
.. d . então
. , ,. para
. meu boudoir, 1,a,. estaremos mais
a .vonta
, ,. e, Jª alertei
, ,. meus criados·, asseguro-vos que
runguem ousara nos interromper."
La philosophie dans le boudoir

"Guardai vossas fronteiras e recolhei-vos em casa" - adverte 0


devasso, depois de instalado no boudoir, último ponto de chegada
de sua longa viagem. 1 Inviolável, protegido por enormes muralhas,
o lugar libertino fica longe do mundo. E o boudoir - ou pelo menos
o mais famoso deles na obra de Sade - , ao que tudo indica, fica em
Paris.
1/'O boudoir é a unidade mínima do espaço sadiano: concentração
da luxúria, síntese da Iibertinagem.~Mme. de Saint-Ange recebe

Sade, i,a phüosophie {Ians /e boudoir, em OEuvres completes, Paris, Pauvert,


1
1986, t. 3, p. 535. . . 1 d mosteiro
Por issO, ele estará presente em toda a arqu1terora sacbana. As ce as ?. com
2 de Sainte-Maric-des-Bois são deSCritaS como •tocai encantador, ~obiliado
, . . dmº e nelas "nao faltava nada
gosto e voluptuosidade"· . - ,_a propna
dá Justtne
I 1te qu , ao prazer
a adequada
to , ,. . Tambem~ em
para tomar essa solidão tao agra ve quan . partamentos ocupados
Silling encontram<>S wrianteS desse aposento. ,. quadatro ª 1 um boudoir com
05

~ Durcct, ..,.,. H•, ,._..g15 e o Bispo, contem,


- - - - - - • nL... • ca qua,
de dalJlllSCO cm três cores"', e. um
plêndidas calNS turea5 COlll (loSSéis
.ad-atiírio ~aclecpmado à IIJbriddade e ao confortatodoS os scnhOrcs, destinado a
~ ' que serv: ~outraS volúpiaS secrcw" =
de seus ocupanres". Ha ainda
178 Capitulo 5

nesse agradável aposento de seu palacete a jovem E , .


mancé, o célebre devasso de "Fra~is, encore un uf!ellie e n01_
,,
serão seus h ospe d
es por d 01s . d.
tas. encontro teme i.on · · ·,, , que
educar a jovem dentro dos princípios da libertinagem ~m Objetivo:
, arefa qu
preceptores compartilham a1egremente com outros ex 1 . e os
tantes da casa. Não faltarão ao boudoír de Saint-Ancg usivos Visi-
. e todos
excessos que caractenzam o deboche: orgias, flagelaçõ os
,,
natos, todas as vo1up1as.. es, assass· 1-
Percebe-se entretanto, ali, uma economia de obJºetos: ai '
otomana, move,, 1 tmprescm
· · d"1ve1 nas cenas 1ubricas,
" e dos espernIhda
que o revestem, nao ~ h,, s: ,.,
a re.1erenc1a•
a outros d etalhes que compe~ os
o ambiente. Ao apresentá-lo, Sade refere-se usualmente a um ?em
biliário destinado à luxúria,, ou, ainda, de forma mais gera~º,-
existência de "objetos que convêm à impureza", como se não fo~s:
necessário precisar nada mais além disso~fse o teatro e o banquete
caracterizam-se como espaços onde se reúne toda a comunidade
libertina, dando portanto a conhecer a sociabilidade do deboche, 0
boudoír será lugar da descontração e da informalidade: o pequeno
aposento - além de prescindir do monumental aparato cenográfico
indispensável às cerimônias coletivas, assim como dos opulentos
figurinos e excessivos protocolos obrigatórios nas situações rituais
- é sobretudo marcado pela desobrigação da presença de todos e,
nesse sentido, o oposto da "câmara de assembléias" de Silling. No
boudoir os devassos realizam a intimidade libertina.
Yvon Belaval observa que a palavra boudoir, assim como otto-
mane, que em Sade andam sempre juntas, são relativamente novas
quando o marquês escreve La pízilosophie dans le boudoir, em
1795. Um de seus primeiros re ·stros data de 1768, no Voyage
autour du monde de Bougainville, numa passagem bastante signi-
ficativa se associada a Sade: che ando ao Taiti o viajante avista "uma
montanha alta, íngreme e isolada" que resolve batizar com o nome
de "Le Boudoir", provavelmente inspirado na fragata em que nave- ,,
gava, "La Boudeuse". Em 1787, a palavra já aparece ligada a conteu-
dos eróticos no Manuel des boudoirs ou Essais érotiques sttr les
demoiselles d~thenes, escrito por Claude-François-Xavier Mercier
de. . Compiegne. 3 A relação entre alturas inacessíveis e segredos
crõticos não é, de forma alguma, estranha a Sade; nesse sentido, ua

3 y ~ Bdnal. Prdicio ala mard 1976


O Boudoir 179

obra é precursora, constittúndo-se


h" numa d as mais . den
sobre O tema. Mas a nela," também , ressonanc1as ,.. . dsas,,reflexões
,t'l'1
JJ...0111
ento em • que o marques escreve ' novas sensibilid ª epoca:
d no
-
se
ndo produz1clas, ecoando na imaginação d
-:~ d
. ª
os escntores e d'
es estao
que seus sigu.u.ica os se expressem através de pe mdo
fJBoudoír é uma das muitas palavras que os novas palavras. d
contemporân
sade criam · para dar · conta
·d d desse tema fundame nt a1 da sociedade ~os e
setecentista, ,, 1a pnvaci1 a e. A. busca
. de espaços ,,mt·imos, durante
todo o secu - o, reve a-se de imediato na arqui·tetura. uma nova
concepçao · · de
d casa· aparece
-~ para abrigar a família burguesa, ennque-.
cida, exigin o maior cou1.orto: surgem os cômodos especializad
(salao,~ ga.b.~ete_ e quarto, separando as esferas mundana, profissio- ~
nal e familiar), isolados ademais por corredores, espaços de circu-
lação interna que garantem a privacidade de seus moradores. Mas a
intimidade também ganha espaço nas habitações da nobreza: se até
o século XVII os castelos eram abertos ao movimento da criadagem
e da clientela, os palácios setecentistas modificam suas plantas
criando uma divisão en1 apartamentos independente~
São várias as privacidades que a época produz. Daí a dificuldade
em se traduzir o termo boudoir, correndo-se o risco de neutralizar
importantes diferenças ao substituí-lo por "quarto", "toucador" ou
"alcova", mesmo quando se reconhecem as afinidades desse voca-
bulário.5 Com efeito, a expressão "quarto de dormir", segundo
Pascal Dibie também surge na segunda metade do século, para
marcar uma das 6
novas fonnas de organização do habitat. Por trás

· sentimento da vida privada


Sobre as relações entre a arquitetura setecentista e.º d fi "l ·a Rio de
4 .. . .. História social da criança e a ami i '
consultar: Philippe AriCS, . . N bert Elias, A sociedade de corte,
Janeiro, Zahar, 1978, p. 24 e segwnt~,, ;r "Les refuges de l'intimité", em P.
lisboa, Estampa, 1987, cap. I; e Orest arlnué, Paris Seuil 1986, vol. III, p. 214
Arles e G. Duby, dir., Histoire de la vie P v e, ' '
a 234. ,. d ções de La phtlosophie dans le
5
"°""""'
A palavra alcoYa, utillZada em ~ d tra b~guo .. Aposento. recâmara, quarto
para o porwgucs, ,. tem senu o aro 1 sécUlo
·
xv• no idioma portug\1
, de <'Jlri8Cm árabe, aparec; : ~ r a ) . "l. Em ca$id an
0
180 Capítulo 5

dessaS Palavras residem diferentes


. h concepções
,, . de vida Privacta e
cad qual abriga uma uto~1a do º?1-~m mt1mo. . ,
/& sentimento de intirmdade esta ligado a uma significativa e
~ 1·d d ,, ons-
telação de valores que estao se conso 1 an -~ na epoca: a infância
a educação, 0 amor materno, as responsab1hdades domésticas '
sexualidade, o grande segred? d~ vida p~va~a'l Temas rigorosam:;
te tratados em La nouvelle Heloise e no Emile; temas exaustivame _
te revisitados em La philosophie dans le boudoir. Rousseau e Sad~:
dois dos mais expressivos formuladores desse sentimento; dois
pólos, opostos, fixando os limites de um mesmo campo~<Talvez se
possa dizer que o tema da privacidade se estende, na filosofia
setecentista, no espaço intermediário que separa esses dois pensa-
dores. Um levando ao lar, o outro ao ~o"f!-oir.1\
Comecemos pelas semelhanças: ha, ~anto em Sade como em
Rousseau, um pressuposto de recusa ao social que parece se cons-
tituir como pedra angular do sentimento de privacidad~Rousseau
critica o império das aparências que se instalou na corte, nos salões,
na sociedade, e desmascara o homem público dizendo que "ser e
parecer desvendam duas coisas completamente diferentes" . Como
se fizesse eco a essas reflexões Sade indaga: "será certamente a
virtude, ou sua aparência, que se toma realmente necessária ao
homem social? Não duvidemos que a aparência lhe basta: tem tudo
de que precisa quem a possui". 8 O homem referido à sociedade -
mas particularmente a essa sociedade, no caso de Rousseau - é
visado na implacável contestação de ambos os pensadores, que
concebem a vida social de seu século como o lugar por excelência
de valores falsos, máscaras a encobrir a verdadeira natureza humana.
Com efeito~ privacidade moderna nasce marcando sua diferen-
ça em relação à sociedade, produzindo novas formas de discurso e
de existência, postulando zonas de segredo que não existiam antes~
Reivindicação de uma nova forma de liberdade, que Benjamin
Constant definirá mais tarde como "liberdade dos modernos" em

7
,.,..ille
Consub:ar,
ncw sentido, além de Philippe Alies, Edwud Shorter, Naissance d~
Paris c-.a 1977· EUabetb Bactintcr Um amor conqttl.,-
lllOdernt,,
-..u: o _., tio 4Ullar . . .' ,_.,.,,
.__.._, -.-...., ' ' M. hei
Rio de janeiro, Non Fronteira, 1985: ,e
,auk>. Gra~l.
O Boudoir 183
s sociais, já não mais conseguem reconhecer .
má.scar~ to materno"; Sophie, ao contrário "segu em s1mesmas
" · sun f ili ,. . , e o caminh d
o i0 ,, e encontra na am a, uruca sociedad o a
oatureza "razão de viver': is e verdadeiramente
tural, sua .
11a.u. 11ada em seu boudoir, Mme. de Saint-Ange ta b "
~rec ç ,. m em prop~
orno à natureza 1.ormulando criticas radicais , oe
tJl11 re t ~ as mulheres da
. dade. Mas seu a1vo sao aquelas que se associam .
soc~eedades filantrópicas e materna~ "não há nada mcam1 ·s t?dr;io das
soei . . n 1culo e
ao Jl1 esmo tempo mais
.
perigoso
..
do que todas essas asso . - e,. a
c1açoes·
e1as, às escolas gratuitas e as casas
. de caridade que no"s d evemos · a
-1vel desordem em que
110,~.. . . hoJe nos
~
encontramos" •16 0 assassmato .
da virtuosa Mme. ~e M1st1val, ~ae de E~génie, expressa as dimen-
sões dessa recusa. ~o boudoir, ela sera sodomizada, flagelada e
penetrada por um cnado que a contamina com um vírus venenoso
nUtllª orgia que c~mina na cena de sua filha costurando seu~
genitais para garan~rr a mo1:e __lenta, indispensável aos prazeres da
IibertiJlagem que a Jovem d1sc1pula rapidamente assimila.
At) boudoir contém os elementos do lar: o leito, na otomana
objeto emblemático da volúpia; a educação, na rigorosa conjunçã~
de teoria e prática que orienta a atividade dos preceptores liberti-
nos; a criança, no infanticídio; a mãe e o pai, no incesto, no
matricídio, no parricídio. Numa troca de sinais, o boudoír projeta
a face noturna da família, dá-lhe segredos inconfessáveis, ao mesmo
tempo que descortina completamente o que há de mais oculto nela,
o sexo. O boudoir é o lar pelo avesso~
Contestando a vida sedentária dos apartamentos e salões, dedi-
cada à frivolidade, ao luxo e à galanteria, "prisões voluntárias" que
encemun indivíduos prisioneiros de seu interesse privad o, Rous-
seau elabü_D uma contundente crítica ao "homem fechado em si
mesmo": ro pior homem é aquele que mais se isola , que mais
concentra o coração sobre si mesmo; o melhor é o que divide
igualmente seus afetos por todos os seus semelhantes"~ A utopia
rousseaniana concebe um sujeito privado e pú b lico ao mesmo

15 CitadoemElisabeth Badinter Um amorconquistado ... , cit., P· 245 e seguintes.


16 Sade, laphiloso,..hie darzs le,boudoir cit. p. 412. A ''horrível desordem"ª qu
.....~- r ' ' · al Doln1anc ·
..uuc Saint-Ange remete o leitor ao parágrafo anterior, no qu
fl'n•--
~
.. ,. . d
il as nefastas consequencias dos atos e can a
·d de·· de um lado. a cons<tr-
., 1
nd
Yaçio de seres inúteis à sociedade, de outro a possibilidade de uma ' c J-l
-
190 Capítulo 5

atmosfera rousseauniana do ar livre não serv d


para realizá-la. e, e forma algulll.
. Nas . ,,entranhas
. da terra, diz Rousseau , "0 hom em vai. bus a,
1mag1nanos em lugar dos bens reais que a nature Ih car bens
. d za e ofe .
s1 mesma quan o ele sabia deles gozar" : "ele fo d rec1a de
~ ,, . d. ge o sol e d O
que nao e mais 1gno de ver". Reino mineral , reserva oculta dia
fatal da natureza que, de sua interioridade apont fi .' segrecto
• '
morte: esse pengoso suplemento instaura uma viol"enc1a
ª a lllítud
. porqe e a,.
excesso, acrescenta-se ao natural, e se rege, portanto ue e
rd
das substituições. Assim também' diz Derrida, "a neg'aPt_e~adº 1v1 ade emd0
mal,_ segundo Rousseau_, terá a forma de suplementariedade".
escntura, a .representaçao, a imagem ' a arte , a convença~o etc. , ·sóª
f:azem suprir essa natureza que deveria bastar-se a si mesm 34
Suplemento perigoso, igualmente, será a experiência ;~
. " . . auto-
erot1smo: assrm como a escntura abre a crise da fala viva a p .
· d artrr
d e sua imagem, e sua pintura ou representação, assim também
onanismo anuncia a ruína da vitalidade a partir da sedução imagin~
tiva" .35 Haveria, pois, na experiência da masturbação, vivida por
Rousseau como perda irremediável da substância vital, uma destrui-
ção da natureza: o desvio, sedutor, conduz o desejo à errância,
submetendo-o aos artifícios do imaginário.
Negação da vida em função da imaginação: as idéias libertinas,
segundo um personagem das 120 journées, familiarizam o devasso
com a morte. "Nada excita mais a imaginação, nada a inflama, como
o silêncio e o mistério" - diz Juliette ao ser recebida na pequena
ilha de Nicette, sentindo-se "no fundo da terra". 36 Silêncio e misté-
rio, entendamos bem, são metáforas, assim como o é a solidão, do
isolamento da libertinagem, vazio que o devasso funda ignorando
os códigos sociais, tabula rasa a partir da qual sua imaginação ope_ra
soberana para conceber um erotismo quete constrói como n~gaça~
do outro em função do prazer individual.~ vítima, send_o obJeto, e
reduzida à condição absoluta de imagem, existindo urucamente ª
·d auto-
setviço da fruição do devasso,Não estaríamos, nesse senti. o, na
rizados a conceber a experiência libertina como auto-erotismo,

'o,ot'a São paulo,


~tn " em Grama to,, o ,
• su.....,......----··· '
192 Capítulo 5

deveres pedagógicos de conduzir o homem à verdade pr0 0-


percorrer. ' P e-se a
"Ele caminha à noite, mas precedido de uma tocha" _ d'
efeito, o verbete le philosophe da Enciclopédia. Determina~' com
razão o filósofo dirige-se às fontes do conhecimento, exa~Pela
origens, observa com rigor as particularidades, ocupa-se demo/das
mente nos detalhes, pois é na observação, e não na adivinha~~ a-
que ele constrói seu sistema e forma seus princípios. "Homo suao,
humani nil a me alienum puto" - orientado pela máxima:,
Terêncio, "homem sou, nada do que é humano me é estranho" , el:
despe-se dos preconceitos que impedem, ao homem comum, 0
reconhecimento da verdade. Resta saber, no entanto, a extensão
atravessada pelos raios de sua tocha, e, se na escuridão da noite
eles chegam a iluminar trevas. '
Ao comedimento que o suposto philosophe revela no parágrafo
de abertura das três versões de Justine, para justijlcar a história que
apresentará logo a seguir, poderíamos submetea fala de Minski: "É
necessário muita filosofia para me compreender ... eu sei: sou um
monstro, vomitado pela natureza para cooperar com ela nas destrui-
ções que ela exige ... sou um ser único na minha espécie ... um ...
Oh! sim, conheço todas as inventivas nas quais me gratifico, mas,
poderoso o suficiente para não precisar de ninguém, sábio o sufi-
ciente para me comprazer na minha solidão, para detestar todos os
homens, para desafiar sua censura, e zombar de seus sentimentos
por mim, instruído o suficiente para pulverizar todos os cultos, para
chacotear todas as religiões e me foder de todos os Deuses, corajoso
o suficiente para abominar todos os governos, para me colocar
acima de todos os laços, de todos os freios, de todos os princípios
morais, eu sou feliz em meu pequeno domínio"~
;Será a .filosofia concebida na Enciclopédia suficiente para ilumi-
nar um homem como Minski? "O homem não é um monstro que
deva viver nos abismos do mar ou no fundo de uma floresta; as
necessidades básicas da vida fazem com que o comércio com os
outros lhe seja necessário; e em qualquer estado no qual ele possa
se encontrar, suas necessidades e bem-estar o engajam a viver en1
sociedade" - diz o verbete cuja assinatura se atribui a I)iderot.
Nessa concepção, o fil~fo não é um ser exilado do mund . 111~
. . ,, O Boudoir 193
dele part1c1pa: e um honnête h omme q
prazeres com seus semelhantes ' ue deseja com .
sociedade não é sua inimiga m , agradar e ser útil aos ºpartilhar
,, . d' . d , as, ao contrá . utros A
"a uruca ivin ade que ele reconh rio, constitui-se ·
,, ~ d ece sobre a f d çomo
E a razao que etermina O filósofo d ace a Terra" .~
exceto as "tranqüilas" , devem se .as Luzes. Quanto às paixões
. r evitadas pois " ,
mens d e maneira cega" . As pa·IXoes ~ '
se orga · assaltam os ho-
como oposto da razão e só podem d . . ruzam, por essência
. ser a mitidas n " . '
se apaziguadas.
. Para Diderot a ~
' razao coincide c a Justa medida" '
sentimento constituidor da disposi ão . . . om ~ probidade,
faz agir em conformidade à o~e ~ " meca~ca do filosofo, que 0
jamais o conduz à desordem" .~ss~ a~~i:azao c~ltivada o guia e
um monstro"' ele revela o duplo ~entidoerdque e suao concepção·
homem não éé
mons t ro.quem se exila da sociedade e t amb,,em o e,, aquele que segue .
o curso
~ 1ivre•de d paixões sem submetê-!as ª' d omesticaçao
d suas · ~ social .
Razao e socie • ~ a e tomam-se termos equivalentes , e xc1um · d o seus·
opostos, paLXao e solidão. Reencontramos O monstro solitá · d
Sade. no e
"É necessário muita filosofia para me compreender". - diz 1
. ili d e e,
JUSt !can... o a ~ntrada de_ Juliette e Sbrigani em seus domínios por
considera-los assez philosophes pour venir s'amuser quelques
temps chez moi. .. ", 39 ou seja, pares à sua altura. E esse plus que
Minski exige não é contemplado pelo filósofo da Enciclopédia,
cujas idéias Sade, na abertura de Les infortunes de la vertu parece
compartilhar. Bastaria um tanto de filosofia para iluminar o homem
dentro dos limites da sociedade - é o que parece sugerir o cruel
libertino. Algo ficaria de fora, exigindo ainda um esforço, equivalen-
te àquele que todo francês, segundo Dolmancé, deveria fazer. De
certa fonna, isso estaria implícito até mesmo em Diderot, pois ao
dizer que as paixões assaltam os homens "de maneira cega" não
estaria ele admitindo que há uma região obscura, não iluminada, e
portanto estranha à filosofia?
,?"Dirigindo-se, numa nota, aos phi/osophes - "amável La ~ettrie,
profundo Helvétius, sábio e erudito Montesquieu" - , Sade mdaga-
lhes por que, se tão convict~ da exi!tência _d? c~e, ~.les se
dispuseram unicamente a indica-lo em seus d1v~os bv~os _', em
aprofundar a obserVação, rigor exigido de todo filosofo. Ó se uto
194 Capítulo 5

da ignorância
. e da tirania ' a que equívocos fioram conduz·d
1
conhecimentos humanos, e a que escravidão foram cond os o,;;
. " . d . enados 0
maiores ,..genios o universo! Ousemos pois falar hoJ·e , po rque p s
mos faze-lo; e como devemos a verdade aos homens Ode.
.,. 1 40 • . , ousem
reve1a- a comp1etamente" . Mais adiante, o marquês, men 5 , os
placente, irá chamar Montesquieu de "demi-philosophe" ."1° com.
Convém, portanto, ressalvar que ~ade compartilha ape . .
cialmente das teses enciclopédicas~o segundo parágrafo~as in~-
meiraJustine, há a importante observação de que o conhecU: Pn-
buscado por ele, esse saber que os homens maus dominam im e~to
um "abuso das luzes". E abuso, na libertinagem, tem se~pr p ca
sentido superior. Do philosophe ao filósofo libertino há, senã~ um
rompimento, uma ampliação. Trata-se de uma diferença _ e e~~
fundamental - na intensidade das luzes: ali, onde O prime~ e
. d e parar-se com os limi.tes d a razo, d o que cega e portant
acred 1ta iro
não permite esclarecimento, o segundo excursiona com seguran ~
e liberdade, vendo tudo, esclarecendo tudo. Daí a importância âa
iluminação absoluta dos cenários sadianos, que não deixa nada na
obscuridade, profundamente relacionada à convicção de que "a
filosofia deve dizer tudo'' .
#sade leva a extremos o ideal da razão iluminista e, para fazê-lo )

concebe outro tipo de filósofo - um "mais-filósofo" poderíamos


dizer - que, em lugar da razão-probidade (termo que por si só
indica certa economia: à justa medida contrapõe-se a desmedida),
é detemunado por uma razão-paixão. Concepção que Foucault
condensa com precisão ao afirmar (!U~ devasso de Sade ~ aqueiê
que, obedecendo a todas as fantasias do desejo e a cada um de seus
furores, pode, mas também de e, esclarecer o menor de seus
movimentos por uma representacão lúcida e voluntariamente o~e-
rada. Há uma ordem estrita da vida libertina: toda representaçao
deve animar-se logo no corpo vivo do desejo, todo desejo deve

40 Id., Ibid., p. 209 (nota). oo1tnancé


41 ade identifica também o "bons filósofos": é assim, por exemplo,0 ted'Hotbach,
define Buffon Acrescente-se o nome de La Mettrie e, sobretudo, d1 0 110n1a
cujo .ysteme de la nature recebe dele grande elogio , quali?cª:,r
1
~1~1 wdª"
carta de 1 83 a me de Sade, como "livro de ouro" que "dcven. e. :,brc ,1 qu~l
- 1-. 1.., ~ - • .._,,_,,.. r.1ncnr~· ão aouele que lh da b. r1 1 ltb run
0
enunciar-se na pura luz de um d. Boudoi,-
ção evidenciada já na estrutura ~scurso represen - . /95
ou!ll movimento ,, vertiginoso ' asoscen
textos sact·ianos
tattvo" ·" Co ncep
filosóficas, ate
. o ponto de reuni-las numas ,,lúbricas e' queas ct·alternam ·
e carne se 1igam, em que reflex~
. h " ao e pa.·so~ ato ' em que p iscussõ
. . ·.
es
Iibertl.110 e ama de filosofia lúbrica" . lXao se fundem . Ee~samento
is o que o

~ Localizado
. entre o salão , onde rema
. a
onde rema o amor, o boudoir simb0 li conversação e 0
· "~ E ~ za o lug d ' quarto
e .do
,, . erotismo . nao seria tamb,,em a otoma ar e união da fiil osofia'
d1ano entre a~cama ~ e o sofá , reiterand o que refl
na um~ móvel interme-
discurso e açao sao ~
indissociáveis n a libertmagem,
. exaoEe sentimento '
mesma concepçao em Laclos, na Cart · ncontramos a
Merteuil narra uma de suas conquist ª x, em que a Marquesa de
as ao Viscond d v
"Passamos,, ao boudoir, que se apresent ava em toda suae m e almont:
nifi "
eia. Aí, um pouco por reflexão, um pouco or se . ag icen-
lh~o~ braços na cintura e, deixei-me cair ao~ seus ;~e4~to, passei-
Nao se cometa o .eqwvoco . de unaginar que as d.unensoes ~ do
pe~~eno ~poscnt? limitam a extensão dos pensamentos e das
praticas ali .produzidos;
,, _ elas apenas indicam que tudo é concenra t do
no bouá o,r. Lá serao praticadas todas as paixões libertinas, os
voluptuosos prazeres do vício. Lá, também, serão citados Suetônio,
Nero, Maquiavel, :tuffon, Alcebíades, Thomas Morus, César, Rous-
seau, Virgílio, Saf~e tantos outros pensadores com os quais discute
Dolmancé para justificar filosoficamente o crime, ora utilizando-os
para adensar suas argumentações, ora reparando suas idéias, ou
comb~endo seus princípios, sem abrir mão, jamai,s, _das luzes?ª
razãortá o libertino colocará o mundo inteiro: a Grecia, a TurqU1a,
o Império Romano o Oriente, os longínquos reinos selv~gens. ~
assado , o present~ e o futuro. E' ao entrar . . nessa imensidao que e
-~~""o',, 4s,~
P
o boudoir, Eugénie exclama: "Que delicioso Illlll• mprime
· · contra seus
6
"O ninho é um fruto que incha, que se ~o emMichelet.-!
limites" - diz Bachelard, interpretand essa unagem º
- 1 Martins fontes, 1981, p.
·sas sao pau o,
42 Michel Foucault, As palavras e as cot '
224. . ·r p. 7/8. d 38.
·O Y\'Oll Bclaval Prefácio a La philosophte--•• ~• deJaneiro, Ediouro, s/ • P·
, Laclos Relações perigosas: Rio 59
de ' . c1t., P· ·
196 Capítulo 5 ~

~ ,,
'.Podenamos dizer o mesmo do boudoír libertino: um 1
. d ,, . . . - ugar peque
no, pnva o e mtrmo CUJas dunensoes se ampliam indefmidame ·
Um espaço ao mesmo tempo confinado e ilimitado Daí a pr nte.
,, .
d os espeIhos, acessono · esença
que, ao lado da otomana, é imprescinct'
nos aposentos do deboche. ive1
Saint-Ange explica: "é que repetindo as atitudes em mil sent·d
diversos, [os espelhos] multiplicam ao infinito os mesmos praz~r~:
aos olhos daqudes que os desfrutam sobre essa otomana. Dessa
forma, não se oculta nenhuma das partes de um ou outro corpo: é
necessário que tudo se evidencie; são tantos os grupos reunidos em
volta desses que o amor encadeia, tantos os imitadores de seus
prazeres, tantos quadros deliciosos, que só fazem excitar sua lubri-
cidade e servem imediatamente para completá-la" .47 À visibilidade
absoluta proporcionada pela iluminação soma-se o efeito multipli-
cador dos espelhos. Abuso das luzes?
O dispositivo do espelho, diz Marcel Hénaff, "visa a tomar 0
espaço absolutamente circular na onivisibilidade, a garantir o fecha-
mento da cena e seu controle pelo olho libertino; ele não serve
apenas à imaginação em seu trabalho de invenção de quadros, mas
se constitui numa espécie de maquette de realização prática da
imaginação, uma projeção objetiva de suas estruturas internas".
Máquina de reflexos que automatiza a mimesis e, portanto, jamais
mero instrumento de ilusão, o espelho sadiano é "reconstruído
segundo o pensamento das Luzes, se é possível dizê-lo, despojado
de toda a metafisica". 48
O libertino é um "senhor onivoyeur": detentor de um "panótico
erótico", que lhe assegura a onipresença de um olhar sem recipro-
cidade, ele tem acesso à soma de todos os pontos de vista possíveis.
Nada se oculta à sua visão. Por isso, os espelhos sadianos não têm a
função de abrir para um novo universo - como o espelho barroco,
sinônimo de psyché, abre para os segredos da alma - mas justamen-
te o contrário: fechar o sistema, sem que nada lhe falte, sem. qu~
nada lhe escape. Por isso também, se a presença de espelhos e
.freqüente nos aposentos.sadianos, não são seus efeitos de profun·
didade que o devasso enfaaza · mas os muitip , , e, ainda ' se.
· licad o ...~es·
isso acontece, é porque o profundo veio · a, tona, o d e sconhecido foi
J 98 Capítulo 5

IV

" ... eu sou feliz no meu pequeno domínio."


Histoire de Juliette

1/se a trajetória do devasso começa nos espaços abertos do uni-


verso, por onde ele viaja, seu desenvolvimento será marcado por
um percurso que vai do externo ao interno, do disperso ao concen-
trado, dos grandes salões de seu castelo ao pequeno boudoir
laboratório da libertinagem, 51 onde a imaginação e a experiênci~
substituem as convenções coletivas: A viagem permite ao libertino
formular uma antropologia do crime, testando seu caráter universal
ao mesmo tempo que conhece suas particularidades. Mas à horizon-
talidade da trajetória inicial sobrepõe-se a verticalidade que ele
percorre dentro do castelo, perfurando as superfícies para observar
profundezas. O etnólogo torna-se então filósofo. A exigência de
distanciamento será ainda maior.
4Apatia: distância, deslocamento, afastamento - princípio funda-
mental da libertinagem, de antigos antecedentes filosóficos. Apatia,
apatheia: ao redor dessa palavra, que pertence à tradição asceta, se
organizam os motivos da ética estóica. O homem deve suportar,
impávido, todas as dores; e evitar, deliberado, todos os prazeres-
aconselhando a indiferença pelas paixões, o estoicismo prega a
impassibilidade absoluta, estado de identificação perfeita entre o
homem e o logos, almejado pelos sábios. Motivos que reemergem
na tranquillitas animi de Séneca ou na quies mentis dos teólogos
medievais, consistindo importante matriz do pensamento ociden·
tal, identificada sobretudo na tradição cristã que vai da Ida~e ~é<li~
a Fénelon, passando por São Franciseo de Sales e certos nnsttcos.
,,A'o epicurismo também evoca a apatia, assimilando o prazer, bem
supremo, à quietude da mente: a ausência de paixões leva o homem
ao domínio de si forma mais acabada de felicidade. Hénaff chegaª 5
'
dizer que o epicurismo trai sua posição de partida, moralizando uas

~1 Cabe aqui a famosa melifora do "laboratório" que Maurice Heinc criound


para0
35
defuur o lugar sadianO· um paço onde as idéias ão experim ntad ,
demandas de prazer ao re.ivindicar
. . O Boudoir 1
. ,, ,, . 99
apath eia so e epicurista . n a medid tal grau d .
e ms ·
forma ~ em estoicismo. o resuI tado ·a em que O . ensibilidade·· "A
ep1cun
pulsoes
• !~
no cumprimento d e uma sab visado
d é O mesmosmo d0 se ; tran s-
mduerença, autodomínio: a a . _e Oria ascética" tnmio das
stre as paixões. 52 patia indica um tri · Austeridade,
"A . Unfo do es ; .
apatia, a negligência . . pinto
.d d , , o esto1cism0
a tonal1 a e a qual devemos . , a solidão de .
quisermos ser felizes sobre naecTessar!a53mente elevar ns~;aesmlmo, eis
. d erra ,. a a se
resunun o numa frase os exaustivos . - e o que propõe S;de
gens proferem para 1·ustifi1car essa máxi discursosfi que ,, seus pe rsona-
gem. A questão é delicada p ara seus ma int,. ilosofica da libert·ma-
podemos
. reconhecer
. a importâncta . d a dtsposiç~
. erpretes.; De . um lado
so. o sangue-fno, o endureciment d ~ ao apattca do devas-
~ , d o o coraçao a in 'bili.
re1açao a or alheia e a ausência d , sensi dade em
tos indispensáveis do deboche De remorso constituem pressupos-
. • e outro porém 1
diante de um paradoxo·. não há uma contradição ' ,fundamental
e a nos coloca
pergunta
· il p hili~ppe Roger - na figura do "libertmo . estoico"
,, . -
que
d airw
Cl d ,,propoe
· aJuliette?
" Como conceber lad0 a lad o a msensibili- . . ..
a e apat1ca e a extrema sensibilidade dos sentidos" que a liberti-
nagem
· dreclama?
· Ou,
. ~ como indaga Marcel Hénaff, como é poss1ve ,. 1
remtro uztr a patxao depois de rejeitá-la?
/,J
~ respost as sao ~ vanas,
,, . mas apontam um mesmo caminho: Sade
opera uma conversão no conceito de apatia, transformando-o em
meio de acesso ao absoluto do praze~ Segundo Blanchot, "para que
a paixão se tome energia, é preciso que ela seja comprimida, que
se mediatize ao passar por um momento,8!cessário de insensibili-
dade; então ela será a maior possível" .5 Roger dirá que a apatia
sadiana é um procedimento mecânico: a ascese libertina não traz
em si mesma seu próprio fim, mas serve à libertinagem, na medida
em que pennite ao sujeito acostumar-se progressr_ente co~ o
mal até o ponto de fazê-lo convergir com o prazer! Assun,, ta~bem
Hénaff propõe a apatia, não enquanto estado, mas como tecroca de
, ,. . it . 9 8/99, e Philippe Roger, La
52 Conforme Marcel Henaff, Ltnventwn ..., e ·•Grasset,
. p ris Bernard p 1976, p · 50/51 · Sobre a
phüosophie dans le pressoir, a . '. R "La trace de Fénelon"' emSade:
relação entre Sade e Fénelon ver Philippe oger,
écrlre la crise, Paris, Pierre Belfond, 1983.
53 Sadc, La nouveUejustine, cit., t. 7 , P· 2~ ~;t1~de et Rétif de la Bretorme,
54 Mauricc Blanchot, "La raison de Sade '
Bruxelas, eompaexe. t 986, P· 4;.
200 Capítulo 5

multiplicação das paixões: "O artefato do vazio apát• , _


portanto, em nada, un1a eliminação da paixão, mas, ao c~º ?~0 é
"' · reina
tecn1ca fi d a efe sua exasperaçao ~ " . A insensibilidade
· ntrar10
, .,a
. d . metoct1ca
instaurand o um vazio e signos, prepara "as condensações ex .'
vas e tu111ultuosas <lo prazer". 55 10
P s1-
9Ao
.
libertar o sujeito de toda e qualquer influência qu .
. . e seus
sentidos possan1 ter recebido do exterior, a apatia permite
·
ascese singu · ~ entre o ser moral do preconceitouma
lar, " a transiçao
ser livre da libertinagem", isolando as experiências sensíveis ~ ~
convençoes ~
morais,•
para d ar Iugar a, sensibilidade superior do as
crime. 56 Promovendo a distância necessária a toda atividade do
deboche, a indiferença despe a paixão das "fraquezas do espírito,,
retirando o devasso da humanidade inteira, desligando-o completa~
mente das exigências da vida em sociedade: "a apatia realiza essa
maravilha de produzir a separação infinita". 5~
~im, a maravilha: "O ser mais feliz da Terra não é aquele no qual
as paixões endureceram o coração.. . levando-o ao ponto de ser
unicamente sensível ao prazer?" 58 Então, a apatia é absolutamente
indispensável no deboche porque dela decorre esse objetivo sem o
qual a libertinagem é injustificável: a felicidade. Note-se que a
indiferença e a insensibilidade, como afirma o narrador de La
nouvelle Justine, são as condições espirituais necessárias para
quem "deseja ser feliz sobre a Terra". Entenda-se, portanto, e não
poderia ser diferente tratando-se do mais ateu dos filósofos, que essa
felicidade é temporal, material e corporal. Despe-se o espírito para
se chegar à carne.
Estranha-se que essa relação passe despercebida a alguns dos
mais importantes intérpretes de Sade, que, muitas vezes, parecem
esquecer que o personagem sadiano é, simultaneamente, filósofo e
libertino. Hénaff dirá que a apatia é a "condição de um erotismo
superior, o erotismo mental: aquele do verdadeiro libertino", con-
cluindo que o devasso frui dos "prazeres do método" : "essa vitória
da cabeça significa não ter mais corpo senão como ocasião de um
gozo para o espírito". 59 Semelhante conclusão encontramos em

Marcel Hénaff, L'invention ... , cit., p. 110.


Philippe Roger, La philosophie ... , cit., p. 54.
Marcel Hénaff, L'inl'ention, cit., p. 116.
ade Jlistoire dejuliette, cit., t.8, p. 134.
faroel fknaff, L'invention ... , cit., p. 99 e 116.
206 Capítulo 5

se. o boudoir
~ d é contra a sociedade, ele represen t a, mais
. que is
.
c_n~,açao e uma •
privacidade para o indivíduo ·n E sa d e 1ns1ste
. . so, a
d uerença
. l d existente
. dº . entre cada homem , propondo que cada corp na
0
seJa eva o m• 1v1dualmente em consideração ' recusand o toda
qual quer teona que submeta a singularidade do su1·eito e
. l N . ao corpo
soc1a · . 1 este, sentido, a intimidade sadiana é uma conquist a, talvez
eqwva ente aquelas que seus contemporâneos exaltam e exi e
dando-lhes o nome de "direitos do homem" .7, \ g m,
Mas aqueles "libertinos e voluptuosos de todas as idades" a
. · d d. ,, . . quem
S-a d e .se d mge na e 1catona de La philosophie dans le boudoi·r nao ~
sao tipos que se fazem reconhecer no interior da sociedade em
· p 1 - que
vivem. e ~ menos, nao no grau de excesso com que sua obra lhes
oferece a imagem; e sobretudo pela impossibilidade que ela com-
porta. O libertino sadiano é modelo sem concretude, não se realiza
no social. Mesmo assim ele será radicalmente recusado.
As raras edições de seus livros na época, quase todas clandestinas
e proibidas, o atestam. Porém, mais que isso, os vinte e sete anos
que, no Antigo Regime e depois da Revolução, ele passou recluso
em prisões e sanatórios, onde se perderam dois terços de sua obra,
confirmam que~ intimidade que o Marquês colocou em seu bou-
doir era absolutamente insuportável para uma sociedade que atri-

72 Adorno, por exemplo, na Dialética do esclarecimento, propõe o libertino


sadiano como figura emblemática do avesso da privacidade burguesa. Se de um
lado essa interpretação realça a vertente crítica da obra de Sade, ao defini-lo
exclusivamente como um negativo da ordem burguesa Adorno dificulta a com-
preensão do que é mais singular na filosofia sadiana, a saber, a criação de um
lugar que produz uma intimidade de valor absolutamente individual, sem ne-
nhum laço com a sociedade.
73 O terna é atual e polêmico. Se tomarmos um trabalho de fôlego como o de
Richard Sennett, Q (leçlínio__!Jg bPlll.em público, cit., percebemos que a intimi-
dade ê tornadã como vaíof negativo, e não como conquista. As "tiranias da
intimidade", diz ele, impedem o homem de exercitar ,sua liberdade polític_a,
impelindo-o, mais e mais, às atitudes privadas, pessoais. E certo que a afirmaça~
do autor diz bem mais respeito ao nosso século ( e bem provavelmente a seu pais
t
de origem, os Estados Unidos) que à França setencentista. Não cabe,_ neS e
trabalho, discutir as formas que o sentimento de privacidade tomou na s~1edade
contemporânea· mas, o que é importante ao lermos a tese de Sennett a luz de
Sade é que se t~ma impossível a generalização do modelo criticado pelo autor.
Resta-nos refletir sobre a perda desse sentido outro de intimidade nos n~sso:
A:-· e verificar: segw·ndo a linha de Sennett mas considerando tambe~
uw..,, ' , ões pelas quais e
signifteativa contribuição de Foucault a essa tcmatica, as ~z . vi Hân·
COO$Olidou um modelo de privacidade marcado pela mcsquumez e pela g
208 Capítulo 5

de Butua, emAline et Valcour, não há, em sua obra, nenhum 1 .


. .. . ,, . d b e og10
a prmut1vos sangu1nanos; quan o usca alteridades, e O faz
freqüência, ele prefere 9:s grandes civilizações do passado: os pe~~~
os gregos, os romano✓
,, INenhuma
,, novidade, talvez, em Sade , a n~ao'
s~r essa, que so um seculo depois de sua morte emerge de sua
obscuridade: a presença da crueldade, não no outro, mas em si
mesmo. A violência de cada um e de todos. Porém, ainda mais que
isso, o que ele faz, no distante século XVIII é deslocá-la para um novo
lugar, abrigando-a no boudoir, habitação do prazer. \\
Apontando a supremacia da imaginação sobre o biográfico -
ou, o primado da fantasia sobre o vivido - Sade realiza na literatura
uma ficção absoluta do eu, produzindo uma outra felicidade para o
homem íntimo, construindo para ele um lugar onde tudo é suprido,
onde não há amor nem fome, signos da falta. Um século depois,
Freud e a psicanálise irão instalar-se nessa região limítrofe entre o
prazer e a dor, percebendo, num momento de extrema grivacidade
do sujeito, que o ponto que os separa também os une~as, então,
o erotismo já terá se cristalizado em sexualidade;i divã toma o lugar
da otomana, o consultório substitui o boudoir. 'f.Iaverá um grande
hiato, um vazio, a isolar a fala e o corpo. Entre Sade e Freud, urr
abismo.\\

Você também pode gostar