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DA DEFESA DA TRADIÇÃO ORAL A UMA POÉTICA “GRIÓTICA” NA

LITERATURA, NO TEATRO E NO CINEMA AFRICANOS

Mahomed Bamba

Il existe, dira-t-on, un courant du cinéma d´Afrique noir


qui tend à rapprocher l´énonciation de la représentation
cinématographique de celle de la littérature orale, de la
tradition du conte1 (Michel Serceau)

Le griot c´est ce que je fais et le rôle du cinéaste dans la


société. C´est un mot wolof qui signifie davantage
qu´être un simple conteur d´histoires: le griot est un
messager de son temps, un visionnaire et le créateur du
futur2 (Djibril Diop Mambety, cineasta senegalês)

Do griô-narrador tradicional às “grióticas” modernas

As numerosas reflexões sobre a função social, a arte e a retórica do griô


constituem um campo discursivo denso e coeso no interior daquilo que se
convencionou chamar de “pensamento estético africano”. As diferentes definições
da narrativa oral do griô ocorrem principalmente na crítica do romance africano. Os
comentários sobre a retórica do griô se encontram também na formalização
programática de algumas “novas estéticas dramatúrgicas” e, de maneira
fragmentada, no campo cinematográfico. A literatura, o teatro e o cinema na África
têm uma gênese e uma trajetória parecidas. São formas de expressão pós-coloniais
que precisaram ser “inventadas3” para servirem de testemunhas do passado e do
presente, mas também para serem portadoras da “memória íntima” e das grandes
narrativas coletivas. Ao longo de suas respectivas evoluções históricas, a literatura, o
teatro e o cinema africanos passaram a revisitar, de diversas maneiras, as narrativas
orais do griô que os antecederam no tempo. Dessas incursões, surgiu um novo “mito
1
“Parece que existe uma corrente do cinema da África negra que tende a criar uma aproximação entre a
enunciação e a representação cinematográficas e aquelas da literatura oral e da tradição oral.”
(SERCEAU, 1995, p.45).
2
“Faço o griô e o papel do cineasta na sociedade. É uma palavra wolof que significa mais do que ser
um mero contador de histórias: o griô é um mensageiro de seu tempo, um visionário e o criador do
futuro” (numa entrevista com June Givanni, in African conversations, British Films Institute/Screen
Griots, 1995. Citado por Olivier Barlet, Les cinémas d´Afrique noire: le regard en question, 1996,
p.180).
3
Obviamente, referimo-nos às formas mais modernas da literatura e do teatro, pois, como a própria
história pré-colonial o comprava hoje, estas práticas artísticas já existiam sob outras formas na vida
cultural na África.
do griô4” que foi progressivamente ganhando força e contornos nos debates estéticos
e ideológicos5 na África. Primeiro, nos campos da literatura, da poesia e das artes
dramáticas. E, mais tarde, no campo do jovem cinema africano.

Mesmo sendo uma realidade na cultura tradicional oral da África ocidental, a


figura do griô passou a ser objeto de sucessivas construções teóricas que culminaram
naquilo que podemos chamar de “grióticas”. Alguns destes pensamentos sobre a
prática griótica podem ser considerados como estéticas e poéticas na medida em que
trazem uma definição, às vezes, pormenorizada da arte e da retórica do griô, e do
estatuto social e político do griô no espaço público. Outras definições concernem à
relação da narrativa veiculada pelo griô (epopeias, lendas, contos...) com a história
de alguns grupos étnicos, e com toda a história africana. As diferentes “grióticas”
compartilham também o fato de considerarem o “fenômeno do griô” como uma das
características inconfundíveis e sui generis das práticas narrativas africanas e
diaspóricas. Às vezes, algumas dessas poéticas representam a própria concepção
artística dos autores que as formulam e utilizam a figura do griô nas suas
experimentações estéticas.

Graças a essas poéticas, o griô-narrador e a tradição oral acabaram sendo


objeto de um trabalho de reabilitação por parte dos escritores, dos dramaturgos e dos
cineastas africanos. Hoje, não se contam mais romances, poemas, peças de teatro e
filmes africanos que põem em cena um conto ou uma epopeia junto com o griô-
narrador. O recurso à figura do “mestre da fala” se tornou uma estratégia de
construção narrativa e um modo de ancoragem cultural e idiossincrática da história
narrada. Este trabalho está estruturado em duas partes: primeiro revisaremos uma
parte desses discursos sobre o griô na literatura e no teatro africanos, e, em um

4
Cf O denso estudo que Valérie Thiam-Thiers consagra ao “mito do griô-narrador” e aos projetos
estéticos e ideológicos que se perfilam por trás das diferentes adaptações da epopéia de Soudjata em
alguns romances e filmes africanos. (THIAM-THIERS, 2004).
5
O livro pioneiro e mais significativo, ao meu ver, na formação do pensamento estético africano é
Nations nègres et Cultures, do egiptólogo senegalês Cheikh Anta Diop. Nessa obra, Diop não só quer
questionar uma suposta origem “branca” e não africana da civilização egípcia, bem como dedica um
capítulo à definição das características de cada expressão artística nas quais se encontraria a suposta
“essência” da arte negra. Com relação à descrição dos estilos de escultura negra, Diop começa
perguntando: “O que é então esta arte (negra) que se comenta tanto, que suscita tantas cobiças, qual é seu
valor misterioso que leva o ocidente a querer reivindicar com veemência sua paternidade por
subterfúgios?” O que caracteriza a arte negra no seu conjunto, diz Diop, “é a liberdade do artista na
criação plástica, o artista tem certeza de seu gênio, alguns, da autenticidade de suas invenções [...]”.
Sendo assim, conclui Diop, “o artista africano sempre atingiu o belo, o estético através do útil” (DIOP,
1954, p.519).
segundo tempo, examinaremos como as narrativas de alguns filmes e as escolhas
estéticas de alguns cineastas africanos participam da ampliação dos limites da
“griótica” (entendida aqui como uma estética e, ao mesmo tempo, uma poética).

A “griótica” ao serviço de um teatro popular africano

É bom lembrar que o termo “griótica” (do francês griotique) foi,


primeiramente, criado, conceituado e experimentado no campo do teatro. No
capítulo IV de Nations nègres et culture (1954), Cheik Anta Diop enunciava, de
forma lacônica, aquilo que seria o caminho a ser trilhado mais tarde pelas novas
estéticas do teatro africano:

Se nós tivermos que traduzir nossas obras autênticas para comunicar


com os outros, para trazer-lhes algo, para que sejamos conhecidos
por eles, [...] o contrário disso também deve existir: nós devemos
pensar em traduzir em língua africana o teatro ocidental e seria
interessante ver o que dariam tais experimentações. Em todo caso,
esperamos poder oferecer daqui a pouco tais experiências ao povo
africano graças a traduções apropriadas” (DIOP, 1954, p.526)

O teatro moderno africano fez mais do que traduzir em língua africana o teatro
ocidental. Foi buscar os fundamentos de uma arte dramática genuinamente africana
na tradição oral dos griôs. Niangoran Porquet, antropólogo e dramaturgo da Costa
do Marfim, define a “griótica” como “a expressão dramática na qual se integram, de
maneira metódica e harmoniosa, o verbo e o canto, a música e a dança, a mímica e a
(linguagem) gestual, e que põe em movimento a história e a literatura das sociedades
afronegras” (POURQUET apud GNAOULÉ-OUPOH, 2000, p.152). Na definição
de Porquet, a griótica se aparenta a uma prática artística performática e heterogênea,
na qual o griô intervém simultaneamente como um artista polivalente, isto é,
contador, músico, dançarino, mímico, “historiador tradicionalista”. Porquet
apresenta também o griô como “preceptor dos jovens príncipes na sociedade antiga”
(Ibid, p.152). Como podemos ver, as definições preliminares das funções e do
estatuto do griô fazem parte da própria definição programática da poética
dramatúrgica do pesquisador marfinense: “quis fazer dele (o griô) o mestre de minha
expressão dramática. E criei a griótica” (Ibid, p.152). Sendo assim, a griótica de
Porquet tem dois objetivos claros: esclarecer a “opinião pública sobre as funções
fundamentais do griô” e, por outro lado, usar a prática griótica de forma estratégica
para “insuflar um novo sangue no teatro da Costa do Marfim” que, segundo o autor,
“era ou muito clássico no sentido ocidental do termo, ou muito folclórico no sentido
pejorativo” (Ibid, p.152). Quando se contextualiza a poética griótica de Porquet,
observa-se que ela intervém em um momento de intensa efervescência cultural e
artística na Costa do Marfim, onde, nas décadas de 70, pesquisadores e professores
universitários participam de um movimento de “inovações estéticas6” em que se
prega um retorno para a suposta “autenticidade africana”. É nesta dinâmica
intelectual que Niangoran Porquet concebe sua griótica como um meio de renovação
da dramaturgia moderna africana e que pudesse conduzir à criação de “um teatro
novo que seja dinâmico, popular, refletido e total” (Ibid, p.152).

Como na griótica de Porquet, nota-se que nas demais poéticas confundem-se


uma descrição da arte narrativa e performática do griô e uma vontade de reafirmação
dos valores africanos. A figura do griô ocupa um lugar central nos debates sobre a
literatura e a estética negroafricanas. No momento em que se questiona a validade de
uma literatura africana pós-colonial forjada na língua do ex-colonizador, o griô-
narrador serviu de argumento para postular a existência da literatura oral africana
pré-colonial. Sendo assim, sua figura se tornou emblemática da “africanidade”; ela
atravessa os séculos e reaparece, como um avatar, em muitas manifestações
artísticas africanas e diaspóricas7.

Defesa e glorificação do griô e da tradição oral na literatura africana


No campo da literatura, é a figura do griô-narrador que foi mais discutida e,
através dela, procurou-se reabilitar toda uma tradição da literatura oral na África
ocidental. Inclusive, serviu de conceito operatório para a teoria e a crítica literárias
definir e analisar as obras dos escritores africanos numa perspectiva de estudo que
leva em conta as influências da oralidade no processo de criação do romance
africano. Mas cabe ressaltar que os próprios escritores reivindicaram diversamente a

6
Para uma análise mais aprofundada do teatro da Costa do Marfim e os debates formalistas que
acompanharam sua evolução (cf Natacha Raschi, “Quand le tronc se fait caïman”, in Drammaturgie di
Costa d´Avorio. Roma: Bulzoni, 2002, p. ?). Ver também “Pemière saison théâtrale de Cote d´Ivoire en
1972: un tournant décisif” in Bruno Gnaoulé-Oupoh, La littérature ivoirienne, Paris: Karthala, 2000,
p.140-150.
7
Basta pensar nos paralelos que se fazem entre a figura do MC (Mestre de Cerimônia) e o Griô-narrador.
herança ou a influência do griô para justificarem os traços de uma oralidade residual
em suas narrativas. Para muitos, este narrador que atravessa os séculos simboliza a
literatura oral africana. Os primeiros escritores africanos que se sentiam incumbidos
da mesma missão que o griô-narrador tradicionalista, isto é, um guardião, um
depositário e um mensageiro das lendas e das epopeias africanas, contentaram-se
humildemente com um papel de compiladores da literatura oral. Os grandes nomes
da literatura moderna africana e precursores da Negritude, como Birago Diop,
Amadou Hampâté Bâ e Djibril Tamsir Niane, dedicaram sua vida inteira na coleta e
na escrita dos contos orais grióticos. Às vezes, a origem social, familiar e geográfica
desses escritores os predispunha a tal tarefa de salvaguardar a tradição oral8 graças à
escrita.

A “invenção” do mito do griô na história da poesia e da literatura da África


ocidental9 se prosseguiu com o movimento da “Negritude”, ganhando dimensões
estéticas e ideológicas. Senghor e outros escritores e poetas não só se empenharam
em o griô como fonte inesgotável das características fundamentais das tradições
orais africanas, bem como se esforçaram também em elaborar uma estética da
griótica.

A griótica de Câmara Laye


As “estéticas da griótica” são formadas por um conjunto de escritos e de
caráter descritivo e não normativo sobre o estatuto do griô e de suas funções sociais
na África. Alguns desses ensaios grióticos foram, na maioria dos casos, redigidos
pelos primeiros escritores africanos. O que pode parecer paradoxal à primeira vista
quando se pensa que a literatura pós-colonial na África foi sempre vista como uma
superação ou sobreposição da literatura tradicional oral por uma forma moderna.
Para muitos escritores africanos, ao contrário, a “invenção” de uma literatura em
língua francesa, inglesa ou portuguesa passava pelo reconhecimento da legitimidade
de uma literatura tradicional africana, cujos traços estruturais, formais e temáticos se
encontrariam naturalmente no romance africano. A retórica do griô e os modos de

8
Cf As antologias de contos de griô, compilados por Amadou Hampâté Bâ (Contes des sages
d´Afrique, reeditado em 2004), Birago Diop ( Les contes d´Amadou-Koumba, escrito em 1947) e Djibril
Tamsir Niane (Soundjata, ou l´épopée mandingue, 1960).
9
Cabe lembrar que a tradição griô é mais específica dos países da África ocidental de cultura mandingue.
enunciação de sua narrativa passaram a ser não só modelos de inspiração e de
influência no trabalho, mas também objeto de uma teorização.

A definição mais conceitual da atividade do griô é a proposta pelo escritor


guineense, Camara Laye. O volumoso prefácio do seu romance, Le Maître de la
Parole: Kouma Lafôlo Kouma, é redigido como um verdadeiro tratado estético sobre
o griô. É estruturado em três partes10. A primeira parte, L´Afrique et l´appel des
profondeurs, pode ser lida como um ensaio histórico e filosófico sobre os valores e
os fundamentos das “civilizações tradicionais” africanas que Laye chama de
“vibração da alma” ou “vivo chamamento das profundidades da alma”. Camara
Laye começa por situar histórica e geograficamente o contexto de ação do griô, isto
é, os povos do Alto-Níger, que, mesmo sendo subjugados e sofrendo uma política de
assimilação na era colonial e pós-colonial, precisa Laye, nunca deixaram de reviver,
sob a influência e pelo intermédio dos griôs, seu passado. Graças ao griô historiador,
esse povo continua se nutrindo de sua civilização tradicional. Nesse contexto
daquelas sociedades pré-coloniais ágrafas, o papel de libertador político do “mestre
da fala” é completado por sua função de compilador e guardião da tradição oral:

[...] as ordens do rei, as proclamações eram transmitidas por vozes


humanas, segundo um costume multisecular. Os anunciadores
públicos, isto é, os griôs constituíam, naquela época, uma verdadeira
classe. Eram eles que, pelo único trabalho da memória, detinham os
costumes, as tradições e os princípios de governos dos reis. E cada
família real tinha um griô, a quem cabia a conservação da tradição.
(LAYE, 1978, 12).

Na parte do prefácio intitulada L´Afrique et les griots, estão concentradas as


principais definições estéticas que podem ser consideradas como os fundamentos da
“poética griótica” do escritor da Guiné Conakry. Laye abre esta segunda parte por
uma pergunta: “mas, nos perguntarão talvez, aonde você quer chegar depois destas
considerações estéticas?” (LAYE, 1978, p.19). A resposta é taxativa: “Claro, à
África, ou mais precisamente ao Alto-Níger, visto através da tradição oral” (Ibid,
10
Na terceira parte do prefácio, Camara Laye apresenta o griô Babou Conde, que ele considera como o
“autor da lenda que se seguirá” no romance (que será construído como uma re-transcrição da lenda de
um dos “griôs tradicionalistas mais competentes”: Babou Conde).
p.19). É a região de origem de Babou Conde, um dos “mais competentes griôs
tradicionalistas”. Mas, Câmara Laye explica também que sua preocupação maior
“neste estudo”, “é a versão dos griôs, esta versão (dos fatos e do passado) na língua
dos griôs, estes griôs que constituem verdadeiramente a alma da África antiga”
(Ibid, p.20). Sem os griôs, diz Laye, a África seria morta. Como podemos ver, os
griôs não são apenas depositários da tradição oral do alto Níger: sua função é capital
para toda a África. Na verdade, diz Laye, o “griô é um dos membros importantes da
antiga sociedade bem hierarquizada”. Seu papel de historiador o torna o principal
detendor da tradição histórica que ele ensina. Apesar desta função política, Câmara
Laye insiste no fato que o griô é, antes de tudo, um artista: “seus cantos, suas
epopéias e suas lendas são obras de arte” (Ibid, p.21).

A retórica do Griô-narrador segundo Câmara Laye


Na definição da atividade griótica tradicional, Camara Laye tem também a
preocupação de separar o joio do trigo, ou seja, tenta distinguir o “verdadeiro griô”
do falso: “Os verdadeiros Griôs, isto é, os Bélën-Tigui, ou mestres da fala, não
vagam pelas grandes cidades; eles são raros, deslocam-se pouco, têm um apego à
tradição e à sua terra natal [...]” (Ibid, p.21). Diferentemente dos “verdadeiros griôs”,
os falsos griôs são apresentados como nômades, geralmente são instrumentistas,
“comerciantes de música”, tocam instrumentos modernos de música e erram pelas
grandes cidades na procura de estúdios de gravação11. Além do mais, os falsos griôs
“modernos” que atuam nas cidades “deformam à vontade as realidades históricas”,
pois têm um parco conhecimento da história da África.

A partir daqui, a estética griótica de Laye toma a forma de uma poética em que
figuras ilustres de griôs são celebradas também com base no tipo de manejo da
palavra. O bom domínio da retórica griótica coloca estes mestres da palavra e da fala
acima da média e os faz gozar de uma autoridade entre seus pares e no meio da sua
comunidade. Suas narrativas e suas versões sobre o passado não sofrem de nenhuma
contestação. Esta autenticidade pode ser fruto de sua linhagem e classe, mas também
vem do domínio da técnica da oratória. Como Griô não tem nenhum compromisso

11
Esta distinção de Camara Laye pode ser uma boa matéria para repensar a condição de muitos cineastas e
artistas africanos obrigados a migrarem ou a se exilarem para poder criar (e viver de) sua arte.
com a verdade histórica (no sentido da historiografia moderna), explica Camara
Laye, ele pode narrar o passado e embelezar os fatos segundo seu belo querer:

Como faz o escultor africano, a realidade histórica colocada diante


do griô não é contada por ele tal qual, ele a narra usando fórmulas
arcaicas, sendo assim, os fatos se encontram transpostos em ledas
divertidas para os profanos, mas que têm um sentido secreto para as
pessoas perspicazes12. (LAYE, 1978, p.21).

Portanto, o único compromisso que o griô tem é com o modo de enunciar a


lenda, os contos da tradição oral. Sua capacidade de fabular importa mais do que a
verdade dos fatos. Para Laye, o “mestre da fala” é criador de uma ordem discursiva
em que o valor estético da narração importa mais do que a verdade do conteúdo
narrativo. Afinal de contas, como diz Laye, sempre há no conto, no canto, na lenda,
duas verdades: “a verdade primeira deliberadamente criada e periférica, destinada a
divertir o auditório; mas, no verso desta verdade primária, há uma verdade
secundária, profunda, isto é, mais próxima da verdade, da realidade, difícil de acesso
ao profano: é a verdade histórica”.

O que sobressai destas definições detalhadas do griô, enquanto narrador e


historiador e artista, são as características de um “intérprete” dos fatos e da realidade
históricas. No centro das preocupações poéticas e estéticas grióticas de Câmara
Laye, estão as figuras do griô-historiador, mas, sobretudo, o griô-narrador, que,
como qualquer artista, pode atingir o belo pelo seu trabalho, mas também pelo seu
gênio. Sendo assim, a arte griótica é uma poética no sentido aristotélico, e pode estar
ao alcance de qualquer artista, independentemente de sua origem cultural, geográfica
ou social. Não é uma dádiva dos únicos africanos. “Não precisa ser necessariamente
africano para pronunciar as palavras que o griô tradicionalista pronuncia” (Ibid,
p.21), diz Laye. Dali a justificativa das numerosas comparações que foram feitas
entre a figura do griô-narrador e a missão de um escritor ou de cineasta africano ou
não que, como o griô, revisita, traduz e adapta as lendas e algumas epopeias na
linguagem literária ou cinematográfica com muita originalidade.

12
Basta pensar nas diversas versões dos griôs sobre as grandes epopeias como a de Soundjata Keïta.
As apropriações cinematográficas da “griótica”

São essas imagens do griô descritas nas poéticas grióticas de Câmara Laye e de
Niangoran Porquet que iremos encontrar em algumas apropriações cinematográficas
da narrativa do griô. Os filmes de ficção africanos que revisitam ou adaptam um
conto, uma epopeia ou uma lenda oferecem ao espectador uma mise-en-scène, em
que o “mestre da palavra” é convocado como narrador, mas também como ícone de
toda a tradição oral africana. Esse uso estratégico do griô tem como efeito criar uma
narrativa em que há uma imbricação de dois modos de enunciação: o de um mega-
narrador e o do griô-narrador. Quanto aos filmes documentários, são geralmente
construídos como ode aos griôs modernos. Nas cinebiografias, há também uma
homenagem à tradição griótica. O conjunto desses discursos fílmicos sobre o
“fenômeno griô” participa não só da extensão do termo griótica, bem como
participam da emergência de novas poéticas cinematográficas que conferem uma
dimensão universal à figura e às narrativas do griô.

Os estudos estruturalistas, como sabemos, tendem a declarar a universalidade


das narrativas e uma competência ou intuição particular dos sujeitos diante dos
textos narrativos. A narrativa, diz Barthes, começa com a própria história da
humanidade, “todos os grupos humanos têm suas narrativas, e frequentemente estas
narrativas são apreciadas em comum por homens de culturas diferentes”
(BARTHES, 2008, p.19). Cabe apenas à narratologia (de tendência estruturalista)
rastrear, recensear e estudar os códigos, os protocolos, e as leis fundam a
especificidade e os modos de funcionamento da narratividade enquanto propriedade
discursiva. Sendo assim, a atualização e a leitura das narrativas (romanescas,
dramatúrgicas e fílmicas) não seriam, em princípio, condicionadas a nenhum tipo de
particularismo cultural. No caso do cinema, como sabemos, parte desta competência
é assegurada pelo reconhecimento, pelo espectador, do modelo da narrativa dita
clássica nos filmes.

Mas, paradoxalmente, foi em nome da diversidade cultural que muitos


estudiosos acabaram querendo analisar e entender as narrativas dos filmes
provenientes de cinematografias não-ocidentais. Por um lado, com o intuito de
avaliar seus particularismos em termos narrativos, mas também para examinar o tipo
de relação que esses filmes de outras culturas13 mantinham como com o que é
considerado o modelo narrativo “ocidental” por excelência: a narrativa do cinema
clássico.

O griô-narrador e o cineasta-griô: dois coletores de lendas e epopeias

Sendo assim, muitos estudiosos do cinema mundial não só viram nos filmes
africanos um sinal da expansão da prática do cinema a novos povos, mas também
procuraram na maneira como estes filmes contam suas histórias um sinal de
novidade e de ruptura com o modelo “língua da narrativa” cinematográfica. Além da
temática, acredita-se que os cinemas africanos são portadores de novos modelos de
narrativa.

A prática cinematográfica é uma forma de mediação cultural não só no sentido


de trazer experiências estéticas diferentes a vários grupos sociais, mas também no
sentido de ser uma máquina para revisitar as próprias narrativas de cada sociedade.
Não existe, propriamente dita, uma “griótica” cinematográfica. A formalização de
uma estética griô nos cinemas africanos passa, de um lado, pelo estudo da
continuidade que pode existir entre o programa narrativo de alguns filmes africanos
e as poéticas grióticas literárias e dramatúrgicas. E, por outro lado, pela análise das
maneiras como cada filme revisita grandes narrativas contidas na tradição oral
africana. Para Olivier Barlet (1996), a referência à tradição oral funda a
especificidade dos filmes da África negra. Cineastas de Senegal, Mali, Burkina Faso
e Costa do Marfim levam esse compromisso com a oralidade ao seu extremo ao
conferir o papel de principal narrador do filme ao griô.

O filme Keïta! L´héritage du griot (KOUYATÉ, 1995) é o exemplo mais bem-


sucedido de uma adaptação cinematográfica de uma epopeia em que o uso do griô
como estratégia narrativa se combina sabiamente com uma reabilitação da tradição
oral pelo cinema. Neste filme, o cineasta de Burkina Faso, ele próprio descendente
de uma família griô, revisita uma das principais epopeias mandinga: a do fundador

13
Os ensaios e pesquisas consagrados aos filmes de cineastas japoneses como Ozu ou Akira Kurosawa,
tanto pela crítica como pelos teóricos do cinema, são ilustrativos dessa tendência em querer estudar
algumas narrativas cinematográficas em termos de particularismo cultural.
do império mandinga, Soundjata Keïta14 (“o filho da mulher-búfalo”). O filme pode
ser lido como um conto ou uma fábula cinematográfica. O personagem do griô
narrador, Djeliba, é o principal protagonista. É ele que inicia a história. A sua voz off
ecoa nos primeiros minutos do filme e serve do ponto de transição entre o presente e
o passado. A narrativa de Djeliba é escutada como uma fábula por Mabo Keïta, que
contracena com ele. Após receber uma missão no seu sonho, Djeliba decide ir até a
grande cidade encontrar-se com uma família remanescente da linhagem dos Keïta,
descendentes do grande Soundjata Keïta. Instala-se na casa da família de Mabo e
tenta convencer os pais da criança da necessidade dele conhecer a história da origem
de seu ilustre nome. A partir daí se instaura uma relação de amizade e de
cumplicidade entre Djeliba (que se torna assim o griô da família) e Mabo.

Keïta! é um dos raros filmes africanos em que o griô intervém


simultaneamente como protagonista e como narrador. Isso lhe confere um duplo
estatuto no aparato discursivo do filme. O griô Djeliba, desde os primeiros planos do
filme, anuncia sua responsabilidade com a enunciação da narrativa que vai tomando
forma. É sua imagem que aparece assim que o filme se abre. Um ligeiro movimento
lateral de câmera o mostra, dos pés à cabeça, deitado numa rede. Djeliba está
mergulhado num sonho. E narra, em voz off, uma história que parece ser a lenda do
povo mandê :

O mundo sai de novo do caos. As trevas e a escuridão da pré-vida


acabava de ser dissipadas. Wagadu era o teatro da primeira reunião
de todas as criaturas do universo. Naquele tempo, ninguém mandava
nos homens. Um homem, Maghan Kon Fatta, levantou-se e falou
aos outros: o mundo não pode seguir assim sem liderança. Eu quero
ser o vosso rei! Vocês concordam? “Konate!15”. Imediatamente
Maghan Kon Fatta tomou o nome de Kouyate. E proclamou-se Rei
do Mandê. (KOUYATÉ, 1995)

A narração dessa lenda em voz off, no início do filme, é pontuada por planos
panorâmicos de falésias, travelling vertical sobre um cupinzeiro e um plano de
detalhe de cupins.

14
É bom lembrar que a epopéia de Soudjata já havia sido compilada pelo escritor e historiador
guineense, Djibril Tamsir Niane, no livro que se tornou um clássico nas literaturas africanas: Soundjata,
ou l´épopée mandinque, escrito em 1960.
15
Ninguém te odeia!
Em seguida, o griô-narrador Djeliba é acordado por um estranho “mestre
caçador”, Mangha Safon, que o encarrega de uma missão. A partir do momento em
que Djeliba pula da rede, calça seu sapatos, despede-se da mulher e ruma para a
cidade, ele passa a representar o ponto de vista por onde surte toda a epopeia, mas
também informações que se situam entre história e lenda. O espectador e o jovem
Mabo são os ouvintes dessa epopeia que os leva aos confins de tempos imemoráveis.
O griô Djeliba é também um mensageiro, ou melhor, um atravessador que, como ele
próprio disse a Nabo, veio de um lugar “onde o mundo começou”. Na grande cidade,
ele se sente como peixe fora d´água. Não se sente à vontade na mesa e lhe custa
comer com talheres. Estranha o quarto e a cama que seus anfitriões lhe dão. Prefere
estender sua rede no pátio e dormir fora. Naquela altura, o filme passa a usar todos
os signos da dicotomia entre tradição e modernidade. Muitas referências são feitas à
escola que Mabo frequenta. A criança, inclusive, expressa-se em francês com os
seus pais. Como as crianças da cidade, Nabo se distrai com as narrativas dos livros.
Mas, conforme a narração do griô sobre a origem do nome dos Keïta vai tomando
forma, Mabo vai se interessando mais pela narrativa oral do griô e esquecendo os
livros. Afinal, Djeliba é depositário, como todos os griôs, de uma “narrativa que
pode durar toda a vida”. Na cena final do filme, diante da reclamação e ira da mãe
de Mabo que pede ao griô para dar fim a essa história (pois Mabo, de tanto se
interessar pela narrativa do griô, acaba faltando às aulas e é expulso da escola),
Djeliba responde: “minha filha, não posso fazer nada. Esta história é como o vento,
não se pode pará-la”. Portanto, cabe a Djeliba narrá-la, de acordo com sua versão,
pois “a palavra do griô é inesquecível como os búzios”. (A quem pertence essa
citação?)

Se aplicarmos a Keïta! l´Héritage du griot uma grade de leitura


“ficcionalizante”, isto é, a partir da perspectiva do espectador, podemos considerar o
primeiro plano do filme como a unidade de discurso que desempenha a função de um
“operador narrativo16”, ou seja, que dá início à narrativa (do griô no nível diegético,
mas também a narrativa do filme todo). Esse primeiro plano de abertura estrutura-se
em duas partes: primeiro, o griô vivendo sua narrativa de forma onírica e recebendo
em seguida uma missão; e depois, o griô preparando-se às pressas e se despedindo da

16
Usamos este conceito com o sentido que tem na semiopragmática de Roger Odin. Cf. ODIN, De la
fiction, 2000, p.84
mulher para rumar até a cidade. Instaura-se aí uma expectativa em termos de “desejo
de ficção”, mas também esse deslocamento do griô cria a colocação em relação de
dois espaços que parecem diametralmente opostos (a aldeia e a cidade africanas),
entre os quais, o griô e sua narrativa passarão a atuar como ponto de ligação. O griô-
narrador torna-se uma ponte entre as duas margens da cultura pós-colonial africana, e
entre a tradição ancestral e a modernidade.

Mas este mesmo plano de abertura do filme pode servir também como um “operador
enunciativo”, cuja função visa a “pôr o espectador na altura da dinâmica ficcional” que
foi criada. Funciona como um pacto de leitura ficcional entre o espectador e a epopéia
de Soudjata, que está sendo narrada pelo griô no interior do discurso narrativo fílmico.
A nenhum momento, o público africano ou ocidental terá a impressão de estar vendo
um filme etnográfico ou um documentário sobre a tradição oral mandinga. Ao longo
do filme, o espectador escuta, em uma quase cumplicidade, a história de seu ilustre
nome de família do personagem Mabo. O espectador compartilha com Mabo a mesma
curiosidade pela narrativa do griô. Essa identificação espectatorial é obtida graças à
utilização estratégica dos códigos da narrativa construída em “abismo17”. O filme se
utiliza de todos os artifícios da narrativa em flash-back. A curiosidade da criança em
querer ouvir, cada vez mais, essa história de seus antepassados funciona como um
pretexto e uma estratégia para levar o espectador a uma maior adesão à narrativa do
griô e ao filme como um todo.

Mas, na verdade, o discurso de Djeliba não passa de uma subnarrativa no interior


do aparato enunciativo do filme. Parcimoniosamente, o filme vai deixando a narrativa
do griô se desenrolar em pequenos trechos, como por “capítulos”. O único e
“verdadeiro” narrador de um filme, diz François Jost, é o “grande imagista”; por
direito, é ele que merece o vocábulo de “meganarrador” (GAUNDREAULT & JOST,
2009, p.67-68).
É essa verdade narratológica e esse princípio estruturalista que, de certa forma, a
narrativa griótica de Keïta! L´héritage du griot vem abalar um pouco. Não é à toa que
a maioria das análises desse filme tenha se concentrado nesses aspectos narratológicos
e discursivos. Valérie Thiers-Thiam, por exemplo, ao consagrar um estudo denso e
interessante ao mito do griô-narrador na literatura e no cinema, vê o filme de Dani

17
Uma narrativa contida dentro de outra.
Kouyaté como parte de uma tendência dos cinemas africanos, em que “os diretores se
apropriaram do mito do griô-narrador e o transformaram em ícone do cinema
africano” (THIERS-THIAM, 2004, p.40). Nessa “manipulação das vozes narrativas18”,
as figuras e as missões do cineasta e do griô passam a se confundir e a se assemelhar:
ambos aparecem sucessivamente como “coletores”, guardiões e testemunhas das
tradições orais e ancestrais. Para Joseph Paré, o filme Keïta! l´héritage du griot
participa de uma “estética da reutilização19”, isto é, um processo de criação no qual o
filme utiliza a estética africana tradicional, cuja matéria, oralidade, acaba tomando
conta de diversas maneiras de toda a narração fílmica. Sendo assim, acrescenta o
autor, a narrativa oral do griô não é apenas um “elemento de ornamento” do discurso
do filme; ao contrário, ela funciona como uma “mediação entre a palavra e a imagem”.
Esse tipo de experiência estética griôtica no cinema permite, paradoxalmente, revelar
toda a eficácia da estética da palavra.

São essas modalidades de utilização narratológica da figura do griô-narrador


no cinema que serão objeto de uma utilização generalizada, a ponto de dar forma
àquilo que podemos chamar de “poética griótica” nos cinemas africanos. Como Dani
Kouyaté, outros cineastas africanos, que puseram um griô-narrador em cena,
fizeram-no com a plena consciência dos efeitos enunciativos, pragmáticos e poéticos
esperados dessa incorporação estratégica da narrativa oral tradicional no discurso
fílmico. A voz, o canto e os instrumentos do griô dão uma coloração e uma
ancoragem culturais particulares ao filme, ao mesmo tempo em que introduzem,
participam de uma poética dramatúrgica africana tal como defendida por Niangoran
Porquet na sua “griótica” teatral. Para muitos estudiosos do cinema africano, a essas
características, os filmes africanos devem parte de suas singularidades.

A imbricação do modo de enunciação audiovisual com o modo de enunciação


griótica opera também de forma eficaz em Djeli, Contes d´aujourd´hui (Kramo
Lanciné Fadika, 1981). Os primeiros planos do filme mostram um griô sentado no
chão na sala de uma família sentada num sofá, ouvindo-o tocando um xilofone e
18
Nesta “manipulação das vozes” nas narrativas fílmicas grióticas, Valérie Thiers-Thiam refere-se ao
meganarrador como um “megagriô” e o assimila à própria possoa do sujeito cineasta africano. Nós
preferimos nos ater a uma concepção rigorosamente estruturalista do discurso narrativo e vemos no
“megagriô” uma mera instância de discurso que não pode ser confundido com um autor-cineasta social e
culturalmente determinado. Sendo assim, um “filme griótico” pode ser construído tanto por um diretor
africano como por um cineasta europeu e não africano.
19
Cf artigo “Keïta! L´héritage du griot: l´esthétique de la parole au service de l´image”. In revista
CiNémas, vol. 11, nº11, dossiê: “Écritures dans les cinémas d´Afrique noire, 2000, p.45-59
entoando uma canção. Esses planos de abertura são impregnados dos signos da
recorrente temática modernidade versus tradição dos filmes africanos. Pela transição
entre presente e passado, o espectador percebe que o griô-personagem, na verdade,
atua aqui como um narrador em posição intradiegética. Sua canção, que dá início à
narrativa e à história que narra, é o conteúdo narrativo do filme. Mas diferentemente
de Keïta!, o griô, que intervém no início da narrativa de Djeli, não é um personagem
que atua na diegese. Como um narrador em posição extradiegética, ele se contenta
em dar início ao filme, e o filme se encarrega de encerrar a “subnarração” do griô,
mostrando-o novamente sentado no mesmo lugar. Logo o espectador se dará conta
de que essa história, que se aparenta a uma lenda (com uma moral final), tem tudo a
ver com a história da família de classe média que está escutando o griô.

O paratexto de Djeli merece comentário. Nos créditos finais, o diretor


homenageia um griô moderno, cujas canções e músicas serviram de trilha sonora
para o filme, com as palavras seguintes: “La musique ‘DOUGA’ de Kouyaté Sori
Kandia a été choisie pour rendre hommage à l´artiste pour son oeuvre de
réhabilitation de la musique et la culture africaine20”. Paratexto, nos cinemas
africanos, tem sido frequentemente aproveitado para fazer dedicatórias diversas.
Aqui, a homenagem concerne particularmente a um griô cantor, compositor e
instrumentista de ngoni21, que foi apelidado “a voz de ouro do Mande22”. Fez muito
sucesso nas décadas de 70 e deixou um rico repertório de composições, todas
inspiradas nas canções populares mandingas e que lhe valeram, quando era ainda
vivo, um reconhecimento internacional e o Prix de l’Académie Charles Cros.
Através desta homenagem contida no paratexto dos créditos finais, o filme declara,
indiretamente, a sua participação do trabalho de preservação da tradição griótica.
Para Valérie Thiers-Thiam, por exemplo, está claro que o mito do griô-narrador
continuará se impondo pelo intermédio do cinema (THIERS-THIAM, 2004, p.40).
Esse trabalho de preservação passa pela adaptação cinematográfica de contos, lendas
e epopéias que só o griô tinha o dever de transmitir. Quem diz adaptação diz
também transformação da literatura oral africana. Esse trabalho de recriação está
perceptível nas diversas formas como cada filme convoca ou homenageia a figura do

20
“A música de DOUKA de Kouyaté Sori Kandia foi escolhida para homenagear o artista por sua obra de
reabilitação da música e a cultura africana”.
21
Instrumento de cordas da África ocidental.
22
Conjunto dos povos de língua mande que ocupam o norte da zona de floresta da África ocidental (da
Serra Leoa à Costa do Marfim, incluindo a república de Guiné Conakry).
griô. Não há um tipo de griô, há diferentes tipos de griôs, como dizia Câmara Laye
na sua griótica.

Outros modos de construção e intervenção fílmicas do personagem-griô


Mais do que fenômeno de gênero, a griótica nos cinemas africanos pode ser
considerada como um fato estilístico presente em obras isoladas. Quando o griô não
está representado na narrativa como um narrador explícito, ele está na diegese nas
figuras de um bobo da corte, um bufão, um sujeito bajulador ou de um sujeito
aproveitador e oportunista. Nos documentários, geralmente são os griôs músicos que
são objetos de cinebiografias. Os filmes africanos constroem diversamente seus
griôs e dão um retrato multifacetado da prática griótica. No filme Ceddo, de
Sembène Ousmane (1976), por exemplo, vê-se, numa longa sequência, um griô que
fala com um grupo de mulheres e de homens (os ceddos) prostrados diante do rei.
Nessa cena, o griô é um mero porta-voz: o rei fala a seus súditos pela mediação do
griô. Bamako, de Abderrahmane Sissako (2006), ao contrário, põe em cena, nos
minutos finais do filme, um griô que fala em seu nome próprio. Ele se levanta no
meio do público, que está assistindo ao processo das instituições internacionais no
quintal de uma família humilde, começa a entoar um canto acapella, interpelando,
de forma emocionante, os advogados meio constrangidos. O griô sai, assim, do
anonimato dos demais figurantes e rouba a cena, com uma performance vocal que
carrega todos os traços da arte de improviso com as palavras.

Há poucos casos de retrato do falso griô. Mas a glorificação das tradições


africanas não se fez apenas a partir de seu lado positivo. Por exemplo, no curta
metragem Borrom Sarret (1963), Sembène Ousmane decide mostrar um griô que
aproveita sua arte para iludir, com belos elogios, um pobre trabalhador na cidade de
Dakar-Senegal. Em contrapartida, o dono da carroça lhe entrega toda a sua renda do
dia. Esse episódio aparece no final do filme como uma maneira de denunciar alguns
comportamentos e práticas sociais no mundo moderno, incluindo, aí, a prática
griótica deturpada da sua verdadeira função. A história no filme Guimba, de Cheick
Oumar Sissoko (1995) começa com um griô-narrador, em posição extradiegética,
que canta e toca uma harpa enquanto vai andando na margem de um rio. Sua
narrativa serve de recurso para um flash back para um tempo em que reinava um
soberano tirano que tinha direito de vida e de morte sobre seus súditos, a ponto de
exigir uma donzela a cada noite para o seu filho. Depois da introdução desse griô-
narrador, é um outro griô, uma espécie de bobo da corte, que o espectador vê
saltitando ao longo do resto da narrativa. Ele vive na suntuosa corte, passa o tempo
todo aconselhando o soberano e seu filho anão sádico e destilando palavras
lisonjeadoras aos dois. É o exemplo do griô-cortesão com uma função ambígua:
mesmo parecendo um bobo da corte, ele tem uma influência considerável sobre as
decisões do tirano e seu filho anão. Além de preceptor, o griô de Guimba é também
um conselheiro. Mas seu lado bufão acaba fazendo dele um sujeito de pouca
importância no sistema das personagens nesse filme. Paralelamente aos filmes de
ficção, os documentários africanos vêm dando destaque ao retrato dos griôs vivos.
São cinebiografias construídas geralmente como odes a determinados artistas griôs
vivos23. São entrevistados, acompanhados nos seu dia a dia, falam de sua vida de
griô, da origem desta tradição que se herda e se transmite de pai a filho. Ao seu
modo, podemos dizer que os documentários africanos participam da poética griótica
que toma forma no cinema, criando odes fílmicas em que os artistas, instrumentistas
e grandes nomes da música africana de origem e família griô são homenageados. Em
1996, num documentário de média-metragem, Sotigui Kouyaté, un griot moderne, o
cineasta do Tchad, Mahamat-Saleh Haroun, prestava uma homenagem àquele que
era considerado até então como o “último griô vivo”, isto é, o ator de Burkina Faso
Sotigui Kouyaté que, aliás, tinha o papel principal na pele do griô-narrador do filme
Keïta! l´héritage du griot24. Sotigui gostava de se definir como “griô, comediante de
teatro e ator de cinema”.

Conclusão

A formalização de uma estética griô nos cinemas africanos passa, por um lado,
pela busca de afinidades ideológicas e estéticas que podem existir entre algumas
dessas poéticas já consagradas e as experiências empreendidas em alguns filmes
africanos. Além do uso metafórico do termo “griô” para referir-se aos cineastas

23
Ver uma série de documentários que Laurence Gavron , realizadora francesa, dedicou aos griôs de
Senegal: Yande codou Sene, Diva Seereer (2009), sobre a mulher griô muito apega ao presidente
Senghor, “a única que podia interromper os discursos de Senghor para entoar um canto de louvor”, como
é dito no início do documentário. Ver também outros documentários de Laurence Gavron, um co-
realizado com Hamidou Dix: Le maître de la parole, el Hadj Ndiaga Mbaye, la mémoire du sénégal
(2004) e Samba Diabare Samb, le gardien du temple (2006).
24
Filme de autoria do seu filho, Dani Kouyaté, ele também griô como o pai.
africanos que vivem sua profissão como uma missão de mensageiros do passado, do
presente e do futuro, as operações de cruzamento dos modos de enunciação
cinematográfica e os modos discursivos dos contos orais aparecem como brechas
para postular as particularidades narrativas de alguns filmes africanos. Mas,
paradoxalmente, o griô acaba sendo um modelo e, ao mesmo tempo, um alter ego
para o cineasta africano: as opções estilísticas e o trabalho de construção narrativa
do segundo acaba se sobrepondo à voz do primeiro25. Como frisa Michel Serceau,
no cinema, só há “substitutos da oralidade” (SERCEAU, 1945, p.45). Em outras
palavras, nos filmes “orais e grióticos” africanos, a tradição oral, ideologicamente
revisitada e reapropriada, não passa de uma matéria prima para um trabalho de mise-
en-scène rigorosamente cinematográfica. Sendo assim, as figuras do griô-narrador
no filme de ficção também não passam de um recurso narrativo no agenciamento e
adequação estratégicos dos modos de enunciação oral e audiovisual. Talvez seja
nisso que consista toda a singularidade das “poéticas grióticas” na literatura, no
teatro e no cinema: a busca dos fundamentos de uma suposta expressividade
tipicamente africana na narrativa e na retórica do griô acaba sendo um pretexto para
experimentações que transcendem as idiossincrasias culturais. Dali, toda a dimensão
universal que Câmara Laye destacava, em última instância, na arte do griô. Muitos
desses documentários sobre os griôs vieram engrossar e enriquecer a tendência do
documentário musical nos cinemas africanos.

REFERÊNCIAS
BÂ, Amadou Hampâté. Contes des sages d´Afrique. Cidade: Editora, ano.
(Reeditado em 2004). Informar referência completa da antologia.
BARLET, Olivier. Les cinémas d´Afrique noire: le regard en question. Paris:
L´harmattan, 1996.
BARTHES, Roland (org.). Análise estrutural da narrativa. Petrópolis, RJ: Vozes,
2008.
DIOP, Birago. Les contes d´Amadou-Koumba. Paris, Fasquelle, coll. « Écrivains
d'Outre-Mer », 1947.
DIOP, Cheikh Anta. Nations nègres et culture. Paris: Présence Africaine, 1954.

25
Para Olivier Barlet, isso redunda numa espécie de “escrita fílmica do paradoxo” (BARLET, 1996,
p.158).
FADIKA, Kramo Lanciné. Djeli, Contes d´aujourd´hui. 1981. Informar referência
completa do filme.
GAUDREAULT, André; JOST, François. A narrative cinematográfica. Brasília:
UNB, 2009.
GAVRON, Laurence. Yande codou Sene, Diva Seereer. 2009. Informar referência
completa do documentário.
______. Samba Diabare Samb, le gardien du temple. 2006. Informar referência
completa do documentário.
______; DIX; Hamidou. Le maître de la parole, el Hadj Ndiaga Mbaye, la
mémoire du Senegal. 2004. Informar referência completa do documentário.
GNAOULÉ-OUPOH, Bruno. La littárature ivoirienne. Paris: Karthala, 2000, p.152.
(Collection Lettre Du Sud). In: FRATERNITÉ MATIN, jornal de 8 setembro de
1981, p. 17.
HAROUN, Mahamat-Saleh. Sotigui Kouyaté, un griot moderne. 1996. Informar
referência completa do documentário.
KOUYATÉ, Dani. Keïta! L´héritage du griot. 1995. Informar referência completa
do filme.
LAYE, Camara. Le Maître de la Parole: Kouma Lafôlo Kouma. Paris: Plon, 1978.
NIANE, Djibril Tamsir. Soundjata, ou l´épopée mandingue. 1960. Informar
referência completa da antologia.
ODIN, Roger. De la fiction. Paris: Editora?, 2000.

OUSMANE, Sembène. Ceddo. 1976. Informar referência completa do filme.


______. Borrom Sarret. 1963. Informar referência completa do filme.
RASCHI, Natacha. “Quand le tronc se fait caïman”. In: Autor? Drammaturgie di
Costa d´Avorio. Roma: Bulzoni, 2002.
SERCEAU, Michel. “Le cinéma d´Afrique francophone face au modèle occidental:
la rançon du refus”. In: IRIS (Revue de théorie de l´image et du son), nº18, dossiê:
Nouveaux discours du cinema africain. 1995, p.39-45.
SISSAKO, Abderrahmane. Bamako. 2006. Informar referência completa do filme.
SISSOKO, Cheick Oumar. Guimba. 1995. Informar referência completa do filme.
THIAM-THIERS, Valérie. À chacun son griot: le mythe du griot-narrateur dans la
littérature et le cinéma de l´Afrique de l´Ouest. Paris: L´Harmattan, 2004.

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