Novembro,
2018
Tese
apresentada
para
cumprimento
dos
requisitos
necessários
à
obtenção
do
grau
de
Doutor
em
Ciências
da
Comunicação,
Área
de
Especialização
em
Comunicação
e
Arte,
sob
a
orientação
científica
da
Professora
Doutora
Margarida
Medeiros
À
Dilma
Rousseff,
Marielle
Franco
(Presente!)
e
demais
mulheres
brasileiras.
ii
FINANCIAMENTO
iii
AGRADECIMENTOS
Agradeço
aos
sete
fotógrafos
que
participaram
dessa
Tese
com
suas
entrevistas
e
imagens
enviadas
por
e-‐mail.
Todos
os
fotógrafos
foram
muito
solícitos
e
simpáticos
e
me
ajudaram,
também,
a
perceber
muita
coisa
sobre
o
meu
povo.
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
André
Cepeda,
Duarte
Belo,
Martim
Ramos,
Jordi
Burch,
Valter
Vinagre,
Catarina
Botelho:
Obrigadíssima!
A
todos
que
lerão
essa
Tese:
Espero
que
este
trabalho
contribua
para
o
entendimento
de
que
o
nosso
modo
de
ver
e
representar,
seja
o
conterrâneo
ou
o
estrangeiro,
é
muito
mais
importante
do
que
descobrir
novos
territórios.
iv
RESUMO
ABSTRACT
This
thesis
sought
to
analyze
the
image
of
the
“Brazilian
body”
in
contemporary
Portuguese
photography
in
the
attempt
to
understand
which
aspects
of
Brazilian
identity,
built
since
the
colonial
period,
are
highlighted
or
surpassed
in
the
production
of
the
image
by
the
Portuguese
photographer.
The
objective
of
the
analysis
was:
to
select
a
Portuguese
photographic
production
of
which
the
purpose
was
to
produce
images
of
the
Brazilian
body
in
the
Brazilian
territory;
to
investigate
the
emergence
or
construction
of
stereotypes
related
to
Brazilians
over
time;
to
gather
theoretical
references
that
also
support
a
postcolonial
and
feminist
perspective;
finally,
to
evaluate
if
the
old
representations
of
the
body
in
the
colonial
period
have
similarities
with
the
contemporary
production
of
the
photographic
image,
through
a
deep
examination
of
images
and
interviews
with
the
selected
photographers
themselves.
The
research
presents
a
theoretical
and
empirical
investigation,
conceived
from
crossing
theory,
documents,
interviews
and
photographic
images.
The
first
chapter
posts
a
theoretical
and
methodological
perspective
with
the
discussion
about
culture,
representation,
subjectivity,
colonialism
in
the
production
of
difference
and
the
methodology
adopted.
The
second
chapter
offered
a
reflection
on
the
forms
of
representation
of
face
and
body
in
photography,
from
a
more
philosophical
approach
to
a
more
scientific
approach.
The
third
chapter
presents
some
figures
and
images
that
represent
the
colonial
ideology,
presenting
16th
century
letters
and
treatises,
landscape
photographs,
portraits
in
carte
de
visite
format,
20th
century
press
discourse,
and
the
image
of
Brazilian
women,
who
are
the
majority
with
regard
to
immigration,
as
well
as
protagonists
in
the
representation
of
Brazil
in
the
press
and
in
the
publicity
that
shows
them
as
bearers
of
a
latent
and
bewitching
sexuality.
The
fourth
chapter
promotes
a
reading
of
classic
and
contemporary
authors,
both
Portuguese
and
Brazilians,
to
understand
how
the
image
of
the
Brazilian
people
was
constituted
and
how
some
aspects
of
identity
were
certainly
attributed
to
"race".
The
fifth
and
last
chapter
analyzed
the
works
and
interviews
of
the
seven
contemporary
Portuguese
photographers:
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
André
Cepeda,
Valter
Vinagre,
Duarte
Belo,
Jordi
Burch,
Martim
Ramos
and
Catarina
Botelho.
Based
on
these
works,
this
thesis
approaches
aspects
of
culture,
identity,
representation
and
subjectivity
to
understand
how
photography
can
also
be
seen
as
a
tool
to
overcome
preconceived
images
based
on
a
subjectivity
that
is
assured
by
the
understanding
of
photography
as
the
result
of
an
encounter
between
an
ethical
subject
and
a
subject
that
evokes
ethics.
KEYWORDS:
contemporary
photography,
Brazilian
body,
subjectivity
vi
ÍNDICE
INTRODUÇÃO ............................................................................................................ 1
Capítulo
III:
Figuras
e
imagens
do
colonialismo
-‐
O
“olhar
europeu”
no
Brasil
..........
88
III.1.
A
primeira
imagem
do
Brasil:
cartas
e
relatos
portugueses
..........................
92
III.2.
A
fotografia
na
documentação
da
paisagem
imperial
..................................
100
III.3.
Popularização
e
sentidos
do
retrato
carte
de
visite
......................................
108
III.4.
A
imprensa
do
século
XX
no
Brasil
e
a
nostalgia
colonial
..............................
117
III.5
A
imagem
da
mulher
e
a
persistência
do
estigma
colonial
............................
125
Capítulo
IV:
A
construção
da
imagem
do
povo
brasileiro
........................................
138
IV.1.
Povo
indígena:
bárbaros
e
canibais
..............................................................
140
IV.2.
Escravo
africano:
melancolia
e
sexualidade
.................................................
151
IV.3.
Povo
mestiço:
a
ninguendade
e
surgimento
de
um
novo
povo
....................
157
IV.4.
Brasileiro
contemporâneo:
cordialidade,
malandragem
e
corrupção
..........
163
Capítulo
V:
O
corpo
brasileiro
na
fotografia
contemporânea
portuguesa
...............
176
V.1.
Miguel
Valle
de
Figueiredo:
A
imagem
turística
do
Brasil
.............................
178
vii
V.2.
André
Cepeda:
O
fotógrafo
flanêur
em
São
Paulo
.........................................
187
V.3.
Duarte
Belo:
Os
caminhos
de
floresta
na
Amazónica
....................................
199
V.4.
Martim
Ramos:
Ocupação
em
ruínas
de
luxo
................................................
212
V.5.
Valter
Vinagre:
Modo
autobiográfico
de
ver
o
mundo
..................................
221
V.6.
Jordi
Burch:
Amor
cachorro
num
quarto
da
madrugada
...............................
230
V.7.
Catarina
Botelho:
Espaços
de
exclusão
social
................................................
240
V.8.
Considerações
adicionais
ou
“Por
uma
subjetividade
ética”
.........................
250
ANEXO 5: Entrevista com Miguel Valle de Figueiredo ............................................. 333
viii
INTRODUÇÃO
Esta
Tese
tem
como
objetivo
geral
analisar
a
representação
do
corpo
brasileiro
na
produção
fotográfica
contemporânea
portuguesa
a
partir
de
um
olhar
para
a
subjetividade
que
é
evocada
no
encontro
do
fotógrafo(a)
com
o
brasileiro(a),
tendo
em
vista
um
passado
colonial.
Dessa
forma,
os
objetivos
específicos,
são:
1)
selecionar
a
produção
fotográfica
contemporânea
portuguesa
que
produziu
imagens
do
corpo
brasileiro
no
Brasil;
2)
investigar
o
surgimento
e
a
construção
de
estereótipos
relacionados
ao
brasileiro
e
a
brasileira
através
de
um
olhar
para
uma
genealogia
do
povo
brasileiro
ao
longo
da
história;
3)
Levantar
referências
teóricas
que
envolvam
questões
pós-‐coloniais
e
feministas
para
a
compreensão
do
corpo
contemporâneo
na
fotografia;
4)
avaliar
se
as
antigas
representações
do
brasileiro
ainda
estão
presentes
na
produção
fotográfica
contemporânea
portuguesa;
5)
analisar
como
a
subjetividade
atua
na
produção
de
imagens
do
corpo
brasileiro
contemporâneo,
a
partir
do
cruzamento
entre
entrevistas
e
a
produção
fotográfica
portuguesa
contemporânea.
1
Sabe-‐se
que
o
“corpo
brasileiro”
como
se
conhece
hoje
foi
moldado
por
referências
externas
ao
longo
do
tempo,
mas
sabe-‐se
também
que
essa
construção
obteve
ajuda
interna
em
sua
propagação
e
assimilação.
Fala-‐se
a
título
de
exemplo
do
governo
ditatorial
da
época
Vargas
e
de
Gilberto
Freyre
com
o
lusotropicalismo;
do
mercado
da
diferença
ou
do
exotismo
comandado
pelo
turismo;
e
das
novelas
e
músicas
brasileiras
ou
produtos
culturais.
Nesse
contexto,
percebe-‐se
que
o
estereótipo,
além
de
ser
aceito,
passa
a
ser
reproduzido
internamente,
como
também
de
forma
performativa
pelo
próprio
brasileiro.
Por
isso,
no
segundo
capítulo,
coube-‐
nos
refletir
sobre
as
principais
formas
de
representação
do
corpo
na
fotografia
desde
o
século
XIX,
como
também
refletir
sobre
algumas
interpretações
filosóficas
do
corpo
e
do
rosto
com
a
discussão
sobre
o
surgimento
do
retrato
por
Didi-‐Huberman
e
de
corpo
utópico
por
Foucault.
Tratou-‐se,
portanto,
de
pensar
e
discutir
sobre
o
corpo
controlado,
objetificado
e
monstruoso
enquanto
ferramenta
dos
poderes
hegemônicos,
bem
como
o
corpo
como
fruto
de
um
olhar
ideológico,
como
instrumento
de
uma
performance
e
como
angústia
diante
do
desaparecimento
no
tempo.
Essas
formas
de
representação
foram
responsáveis
por
excluir,
fragmentar
ou
até
de
nos
fazer
compreender
como
a
fotografia
pode,
paradoxalmente,
tanto
apagar
a
existência
das
pessoas
numa
sociedade,
como
fazer
durar,
para
sempre,
aquela
imagem.
2
imprensa
brasileira,
a
partir
do
século
XX,
composta
por
portugueses
que
ainda
estavam
no
Brasil
e
também
por
brasileiros
que
queriam
o
retorno
do
imperialismo
português
e,
por
isso,
expressavam
em
seus
textos
uma
“nostalgia
colonial”.
Por
fim,
no
último
tópico,
são
analisados
os
discursos
e
as
imagens
que
apresentam
o
corpo
da
mulher
brasileira
como
um
corpo
disponível
desde
as
primeiras
imagens
produzidas
do
Brasil.
Esta
ideia
ainda
é
propagada
nos
media
portugueses
e
na
proposta
de
convencimento
do
turismo,
contribuindo
para
a
manutenção
da
imagem
da
mulher
brasileira
como
um
corpo
sempre
disponível
na
contemporaneidade.
O
quarto
capítulo
aproxima-‐se
de
uma
genealogia
do
povo
brasileiro
a
partir
de
uma
análise
dos
discursos
que
construíram
a
diferença
em
relação
ao
colonizador,
ou
seja,
através
do
discurso
colonial
que
conectou
estereótipos
aos
povos
africanos
e
indígenas.
Observou-‐se
que
as
representações
criadas
do
brasileiro
estavam,
sobretudo,
conectadas
à
raça,
e
que
tais
representações
serviam
para
justificar
e
exploração
de
seus
corpos.
Desse
modo,
foram
apresentados
os
povos
indígenas
no
Brasil,
vistos
como
preguiçosos;
os
povos
africanos,
vistos
como
melancólicos
e
sexuais;
a
formação
do
“novo”
povo
brasileiro
oriundo
da
mestiçagem
e,
por
isso,
marcado
pela
ninguendade
e
pelo
abandono
dos
pais;
para,
por
fim,
refletir
sobre
a
representação
do
corpo
brasileiro
contemporâneo,
que
ora
pode
ser
visto
como
cordial,
ora
pode
ser
percebido
como
um
malandro
que
se
aproveita
das
situações
através
do
“jeitinho
brasileiro”.
Neste
capítulo
foram
utilizados
autores
brasileiros
e
portugueses
para
tentar
compreender
os
diversos
olhares
dispensados
àquele
povo,
tentando
refletir
também
sobre
as
contradições
internas
que
os
autores
carregam
a
partir
de
um
confronto
entre
as
várias
formas
de
interpretar
a
história.
3
Burch,
Martim
Ramos
e
Catarina
Botelho.
Esses
fotógrafos
produziram
imagens
nos
mais
vastos
contextos,
do
turístico
ao
artístico,
do
retrato
à
paisagem.
Ao
fim,
empreendeu-‐se
um
olhar
para
a
identificação
de
aspectos
da
cultura,
identidade
e
estereótipos
do
Brasil
por
esses
fotógrafos,
em
suas
imagens
e
em
seus
discursos,
bem
como
identificou-‐se
quais
os
aspectos
da
subjetividade
emergem
nas
imagens
quando
no
momento
do
encontro
com
outro,
sejam
eles
produzidos
por
uma
subjetividade
ética
ou
uma
subjetividade
objetivadora.
Esta
tese
resulta,
portanto,
de
um
trabalho
de
investigação
que
busca
analisar
a
construção
da
imagem
do
brasileiro
de
acordo
com
os
discursos
e
imagens
de
portugueses
que
representaram
o
“corpo
brasileiro”
na
fotografia
contemporânea.
No
entanto,
além
de
empreender
uma
investigação
sobre
permanência
ou
não
de
antigas
concepções
coloniais
atreladas
ao
corpo
do
homem
brasileiro
e
da
mulher
brasileira,
buscou-‐se
olhar
para
a
subjetividade
do
fotógrafo
de
forma
sensível.
A
tese
defendida
neste
trabalho
é
a
de
que
é
possível
produzir,
através
da
fotografia,
aparato
que
foi
muitas
vezes
conectado
a
práticas
excludentes
e
ideológicas,
uma
“fotografia
sensível”,
ou
seja,
uma
fotografia
que
é
produto
de
uma
subjetividade
ética
do
fotógrafo
no
momento
de
encontro
com
o
fotografado.
A
relação
corpo-‐a-‐corpo
no
momento
da
produção
da
fotografia,
deve
ser
vista,
nesse
sentido,
tal
como
Viveiros
de
Castro
descreve
a
relação
do
antropólogo
com
seu
objeto
de
estudo:
uma
relação
sujeito-‐sujeito
ao
invés
de
uma
relação
entre
sujeito
que
possui
conhecimento
versus
objeto
pesquisado.
Além
disso,
vale
destacar
que
as
medidas
adotadas
a
partir
do
século
XIX
e
XX
com
a
criação
do
Estado-‐Nação,
do
luso-‐tropicalismo
e,
a
seguir,
com
a
ideia
de
“multiculturalismo”,
permitiram
uma
hipervalorização
do
passado
colonial
ao
reforçar
o
sucesso
lusitano
e
o
heroísmo
“conquistador”
português
em
terras
distantes.
Por
esta
razão,
o
colonialismo
se
mostra
presente
tanto
ao
longo
da
tese
como
ao
longo
do
período
histórico.
Mais
recentemente,
a
criação
do
Museu
das
Descobertas
mostra
que
o
colonialismo
não
ficou
no
passado,
ele
está
aqui,
bem
à
nossa
frente,
quando
o
governo
português
busca
naturalizar
o
caráter
violento
e
explorador
da
política
colonial,
na
medida
em
que
mostra
aquele
passado
como
forma
de
valorização
da
narrativa
nacional
ao
invés
de
dar
voz
ao
povo
escravizado.
Disso,
conclui-‐se
que
o
4
colonialismo
é
contemporâneo
e
precisa
ser
discutido,
pois
a
sua
permanência
termina
por
impregnar
as
imagens
contemporâneas
e
o
senso
comum
em
Portugal.
Fundamentações
teóricas
e
metodológicas
Com
o
intuito
de
mergulhar
nesse
mar
de
águas
turvas
que
é
a
construção
da
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira
na
contemporaneidade,
tornou-‐se
necessário
pensar
primeiro
nos
conceitos
que
nos
servirão
de
ferramentas
para
a
compreensão
da
complexidade
de
elementos
agregados
àquela
imagem
ao
longo
do
tempo.
Esse
exame,
da
imagem
do
brasileiro
pelo
português,
atravessa
várias
disciplinas,
pois
se
trata
de
uma
relação
social,
um
contato
entre
sujeitos
de
locais
distintos
que
se
iniciou
no
colonialismo,
sistema
político-‐económico
responsável
pelo
encontro
entre
Brasil
e
Portugal.
No
primeiro
tópico,
fala-‐se
sobre
o
conceito
de
cultura,
entendida
por
Geertz
(1989)
como
uma
rede
que
conecta
sistemas
de
signos,
e
sua
análise
deve
ser
compreendida
não
como
poder,
mas
como
contexto
das
relações
sociais,
momento
em
que
são
recebidas
e
propagadas
as
nossas
“culturas”.
Este
pensamento
se
contrapõe
ao
sistema
rígido
moderno,
que
defendia
a
cultura
como
privilégio
e
sua
transmissão
unicamente
possível
através
da
genética.
Nesse
sentido,
todo
ser
humano
é
passível
de
ser
“programado”
pelos
códigos
e
convenções
da
sociedade.
No
período
colonial,
várias
culturas
foram
violentamente
reunidas
num
mesmo
espaço
geográfico
e,
por
isso,
pensar
na
cultura
de
países
colonizados
é
pensar
na
existência
de
um
hibridismo
cultural.
Isto
porque
o
povo
dominado
absorveu
valores
externos
aos
seus
para,
assim,
sincretizar
culturas
opostas.
No
contexto
específico
do
Brasil,
os
índios
e
os
africanos
tiveram
suas
culturas
oprimidas
e,
mesmo
assim,
encontraram
formas
de
6
manter
e
dar
continuidade
a
algumas
de
suas
crenças
de
forma
sincrética,
misturadas
com
a
cultura
portuguesa.
O
híbrido,
assim,
avisa
Canclini
(1989),
surge
como
forma
de
adaptação
ao
meio
em
que
se
vive
e
todas
as
culturas
devem
ser
vistas
todas
como
culturas
de
fronteira,
pois
deixam
escapar
suas
tradições
para
além
dos
territórios
originários,
como
também
absorvem
culturas
externas.
Como
toda
relação
social,
a
fotografia
precisa
do
Outro
para
acontecer
e,
por
isso,
envolve
a
subjetividade
do
fotógrafo
no
momento
em
que
há
um
confronto
entre
culturas
do
fotógrafo
e
do
fotografado.
No
quinto
tópico
tratou-‐se
de
pensar,
portanto,
na
possibilidade
da
relação
ética
com
o
Outro,
quando
a
subjetividade
do
fotógrafo
atua
de
forma
sensível
na
formação
de
imagens.
Mais
do
que
um
cuidado
de
si,
a
produção
de
imagens
do
Outro
solicita
uma
ética
que
se
impõe
no
momento
que
há
o
encontro
com
o
Outro.
Trata-‐se
de
pensar
a
fotografia
como
processo
e
produto
de
uma
relação
ética
que
desconsidera
os
estereótipos
da
representação
para
acolher
o
Outro
do
jeito
que
ele
é.
Trata-‐se
de
procurar
um
olhar
que
“ensina
um
pensar
generoso
que,
entrando
em
si,
sai
de
si
pelo
pensamento
de
outrem
que
o
apanha
e
o
prossegue”
(Chauí,
1988,
p.60).
O
encontro
com
Outro,
o
estrangeiro,
o
instável,
abre
caminho
para
a
vulnerabilidade
mas,
na
fotografia,
essa
relação,
parece
ser
necessária
para
que
se
produza
uma
“fotografia
sensível”,
sem
a
carga
negativa
do
colonialismo.
9
I.1
Cultura
e
hibridização
da
cultura
como
forma
de
sobrevivência
O
termo
cultura
foi
criado
em
1871
por
Edward
Tylor
para
sintetizar
os
termos
“Kultur”
e
“Civilization”.
Kultur,
em
alemão,
diz
respeito
aos
aspectos
culturais
de
uma
comunidade;
Civilization,
em
francês,
fala
sobre
as
realizações
materiais
de
um
povo.
Assim,
Tylor,
com
a
definição
de
Culture,
procurou
abranger
todas
as
realizações
humanas
para
contrapor-‐se
à
antiga
ideia
de
cultura
como
uma
disposição
inerente
ao
ser
humano
que
seria
perpetuada
biologicamente,
ou
seja,
contra
a
ideia
de
que
a
cultura
seja
uma
questão
de
privilégios
(Laraia,
1986),
pensamento
que
foi
intimamente
conectado
ao
colonialismo.
Por
isso,
para
fugir
da
definição
de
cultura
ligada
à
tradição,
Tylor
a
definiu
como
“um
todo
complexo
que
inclui
conhecimentos,
crenças,
arte,
moral,
leis,
costumes
ou
qualquer
outra
capacidade
ou
hábitos
adquiridos
pelo
homem
como
membro
de
uma
sociedade”
(Tylor
apud
Laraia,
1986,
p.25).
Ou
seja,
a
cultura
seria
um
conjunto
de
práticas
humanas.
A
definição
de
cultura,
no
entanto,
tem
sido
moldada
ao
longo
do
tempo.
Max
Weber,
um
dos
fundadores
da
sociologia
moderna,
definiu
a
ação
social
como
sujeito
da
investigação
social,
pois
é
uma
ação
relevante
para
o
significado.
De
acordo
com
a
sua
“sociologia
do
significado”,
nossas
ações
são
inteligíveis
quando
conseguimos
interpretá-‐las
significativamente,
conforme
um
conjunto
de
normas
e
significados
compartilhados
que
dão
às
nossas
ações
relevância
para
o
significado.
Desse
modo,
o
sociólogo
concebeu
a
ideia
de
que
o
homem
é
um
animal
que
vive
preso
a
uma
teia
de
significados
criada
por
ele
mesmo.
10
publicamente,
seja
um
gesto
ou
uma
manifestação,
desde
que
seja
transmitido
e
percebido
no
interior
da
sociedade.
A
partir
dessa
concepção,
a
cultura
deve
ser
conectada
mais
a
uma
forma
de
nomear
e
dar
significado
ao
mundo
do
que
a
algo
que
pode
ser
definido
e
localizável.
Para
análise
dessa
teia
de
significados,
o
que
menos
interessa
é
a
interpretação
e
explicação
do
fatos
de
forma
isolada,
pois
sua
importância
se
apresenta
em
conjunto
com
a
sua
utilização
quotidiana
e
transmissão
de
significados
ao
grupo,
ou
seja,
o
importante
é
pensar
na
forma
como
esses
fatos
são
perpetuados
e
repetidos
por
quem
vê.
Assim,
na
ação
social
se
produz
sentidos
que
são
entendidos
tanto
para
quem
pratica
como
para
quem
observa
e
isto
acontece
devido
aos
diversos
sistemas
que
nos
permitem
compreender
significativamente
as
ações
alheias.
Em
conjunto,
esses
sistemas
constituem
nossas
“culturas”
e
garantem
que
toda
ação
social
seja
cultural.
Por
isso,
a
importância
de
se
olhar
para
a
transmissão
de
significados
em
conjunto
e
no
interior
de
uma
sociedade.
12
Para
Canclini
(1989),
“todas
as
culturas
são
de
fronteira”
(p.325).
A
partir
do
momento
em
que
todas
as
artes
já
não
possuem
fronteiras
geográficas.
Os
artesanatos
migram
do
campo
para
a
cidade,
as
narrativas
audiovisuais
de
um
povo
são
vistas
por
outros
povos.
Desse
modo,
todas
as
culturas
perdem
a
“relação
exclusiva
com
seu
território,
mas
ganham
em
comunicação
e
conhecimento”
(Canclini,
1989,
p.
326).
Sabe-‐se
que
em
todas
as
fronteiras
há
possíveis
brechas
que
deixam
escapar
conteúdos
e
por
isso
tratar
de
uma
cultura
de
fronteira
é
saber
que
toda
cultura
recebe
algum
grau
de
interferência
de
outras
culturas.
Segundo
Geertz
(2002),
a
globalização
estimula
as
culturas,
não
as
extermina1.
I.2.
A
identidade
e
as
práticas
de
mimese
Taussig
(1993)
também
recorreu
ao
conceito
de
mimese
para
compreender
as
práticas
de
terror
associadas
ao
colonialismo,
principalmente
no
que
se
refere
à
extração
de
borracha
no
Sudoeste
da
Colômbia
e
no
Congo
Belga.
Para
ele,
o
“terror
colonial”
é
uma
operação
de
mimese
por
parte
do
colonizador,
que
procura
reproduzir
uma
suposta
imagem
do
colonizado
bárbaro
e
selvagem
com
a
adoção
de
atos
violentos.
Ao
apresentar
os
índios
como
“comedores
de
gente”,
os
colonizadores
passaram
a
utilizar-‐se
de
violência
extrema
como
forma
de
mimetização
da
representação
do
colonizado
e,
assim,
justificavam
seus
atos.
A
violência
perpetrada
pelo
colonizador
se
justificaria
pela
violência
que
era
reproduzida
na
imagem,
apesar
14
de
muitas
vezes
ser,
a
imagem,
muito
pouco
credível
ou
produzida
pelos
próprios
colonizadores.
Dessa
forma,
a
mimese
tornou-‐se
responsável
por
fornecer
um
grave
enfraquecimento
do
mundo
ao
simplificar
a
realidade
em
imagens
distorcidas
e
conduzir
ações
violentas.
A
mimese
tornou-‐se
também
responsável
por
suportar
o
poder
das
imagens.
15
democracia
utiliza
a
violência
como
antídoto
contra
a
ameaça,
mas
na
verdade
essa
violência
se
mostra
contrária
aos
propósitos
humanistas
da
própria
sociedade.
O
conceito
de
identidade
nos
mostra
que
ela
é
relacional
e
por
isso
está
sempre
“em
construção”.
Enquanto
a
cultura
se
transforma,
está
sempre
em
movimento
ao
receber
e
produzir
significados
no
interior
da
sociedade;
a
identidade
está
sempre
se
transformando
no
interior
de
relações
múltiplas
com
alteridades.
O
ato
de
mimetizar,
tanto
na
cultura
como
na
constituição
da
identidade,
para
os
dominados,
surgiu
como
forma
de
sobrevivência
e
adaptação
diante
da
repressão
imposta
pelos
poderes
dominantes.
No
caso
do
colonizador,
o
mimetismo
serviu
para
justificar
atos
violentos
perpetrados
contra
os
colonizados,
reproduzindo
imagens
distorcidas
dos
povos
dominados.
O
mimetismo,
assim,
serviu
para
controle
de
si
e
do
Outro,
seja
dominado
ou
dominante.
Deleuze
e
Guattari
(1997)
propuseram
a
percepção
de
que
nós
somos
todos
criaturas
instáveis
e
híbridas
que
possuem
respostas
específicas
no
momento
de
encontro
com
alteridades.
Para
os
autores,
“a
axiomática
social
das
sociedades
modernas
está
contida
entre
dois
polos,
e
não
para
de
oscilar
de
um
pólo
a
outro”
(Deleuze
e
Guattari,
1997,
p.345).
O
capitalismo
está
constantemente
produzindo
novos
territórios
e
neste
processo
a
cultura
está
sempre
em
transformação,
tornando
quase
impossível
a
tarefa
de
distinguir
a
cultura
a
qual
pertence
cada
elemento
da
ação
social.
Desse
modo,
tanto
a
identidade
como
a
cultura
estão
em
um
eterno
devir
e,
assim,
perceber-‐se
como
humano
é
compreender
que
todos
somos
criaturas
híbridas
e
instáveis,
que
todos
estamos
mudando
o
outro
e
a
si
próprio
e,
que,
esse
processo
de
mudança
acontece
no
interior
de
relações
constantes
com
as
alteridades.
I.
3.
A
representação
como
forma
de
interpretação
da
realidade
O
significado
do
termo
“representação”
possui
caráter
ambíguo,
e
conceituar
pode
ser
complexo,
pois
é
campo
de
interesse
de
várias
disciplinas.
Roger
Chartier
(1988),
definiu
como
apresentação
de
algo
para
substituição
daquilo
que
está
ausente.
Etimologicamente,
o
termo
tem
origem
latina,
vem
de
representare,
que
significa
fazer
presente
ou
manifestar-‐se
outra
vez.
No
latim
clássico,
o
seu
uso
é
quase
sempre
16
limitado
a
objetos
inanimados,
o
que
pode
significar
que
“representação”
os
tornam
presentes,
como
também
pode
significar
a
substituição
de
um
objeto
por
outro,
ou
em
vez
de
outro,
ao
trazê-‐lo
para
o
presente
(Pitkin,
1967).
Assim,
se
o
conceito
de
representação
for
entendido
como
substituição
do
objeto,
quer
dizer
que
pode
tanto
evocar
a
ausência
como
sugerir
a
presença
ou
substituição
por
meio
da
representação.
Na
concepção
moderna,
representação
se
refere
ao
processo
democrático,
associado
à
delegação
de
poderes
a
um
grupo
reduzido,
por
meio
do
voto,
para
representar
o
interesse
do
grande
grupo
que
o
elegeu
(Freire
Filho,
2004).
Por
sua
abrangência,
o
termo
pode
se
relacionar
às
noções
de
imaginário,
ideologia,
mito
e
mitologia,
utopia
e
memória
(Falcon,
1985).
A
conceituação
do
tema
tem
alcançado
grande
interesse
por
parte
de
historiadores,
como
é
o
caso
de
Chartier
(1988),
que
procurou
refletir
mais
profundamente
sobre
suas
possíveis
significações,
e
Le
Goff
(1996
[1982]),
com
a
associação
da
representação
com
o
imaginário.
Para
Jacques
Le
Goff
(1996),
a
representação
surge
como
uma
tradução
mental
de
uma
realidade
exterior
que
tem
conexão
com
o
processo
de
abstração.
Sob
essa
perspectiva,
o
imaginário
também
faz
parte
do
campo
da
representação,
visto
que
se
mostra
como
expressão
do
pensamento
ao
manifestar-‐se
por
imagens
e
discursos
que
representam
a
sua
definição.
Apesar
da
representação
se
mostrar
de
natureza
distinta
do
que
é
considerado
real,
para
Le
Goff
(1996),
ela
é
responsável
por
conferir
significado
ao
que
se
convencionou
chamar
de
real
e,
assim,
é
também
parte
da
existência
da
realidade.
O
real,
nesse
sentido,
passa
a
ser
constituído
tanto
pela
existência
material
como
por
sua
própria
representação.
Já
para
Roger
Chartier
(1988),
na
representação
há
uma
oscilação
entre
substituição
e
evocação
mimética.
As
imagens
de
imperadores
ou
reis
no
momento
da
morte
eram
construídas
para
ser
o
equivalente,
junto
com
os
restos
mortais,
ao
corpo.
Para
o
autor,
a
representação
é
o
que
resulta
de
uma
prática.
Independente
do
discurso
ou
do
meio,
o
que
temos
é
a
representação
do
fato,
uma
referência
por
aproximação,
e
é
ela
que
nos
permite
conhecer
o
fato.
Dessa
forma,
a
representação
do
real,
seja
por
meio
do
discurso
ou
da
imagem,
transforma
o
real
e
a
sua
função
de
dar
sentido
ao
mundo.
A
representação,
como
sistema
de
interpretação,
controla
a
relação
social
e
orienta
o
nosso
comportamento.
Essas
representações
interferem
nos
processos
de
17
difusão
e
assimilação
do
conhecimento,
na
construção
de
identidades
pessoais
e
sociais,
no
comportamento
no
interior
de
grupos
e
em
relação
a
outros
grupos,
como
também
nas
ações
de
resistência
e
mudança
social
(Jodelet,
1989).
Assim,
surge
principalmente
com
a
função
de
criar
realidades,
agindo
também
como
forma
de
controlo
da
relação
social
e
do
comportamento.
Quando
a
realidade
é
construída
conforme
normas
pré-‐estipuladas
pelos
poderes
vigentes,
cada
grupo
social
colabora
na
produção
específica
de
representações
e,
ao
mesmo
tempo,
colabora
para
a
distinção
entre
os
grupos.
Muitas
representações
sociais
tornam-‐se
consensuais
quando
são
transmitidas
pelos
meios
de
comunicação
social.
Isto
porque
toda
representação
recebe
um
status
de
verdade
quando
é
compartilhada
em
larga
escala.
Quando
a
fotografia
desempenha
o
papel
de
notícia,
passa
de
um
complemento
da
informação
textual
para
representar
a
verdade
que
é
transmitida
no
texto.
Assim,
“toda
fotografia
produz
uma
‘impressão
de
realidade’
que
no
contexto
da
imprensa
se
traduz
por
uma
‘impressão
de
verdade”’
(Vilches,
1993,
p.
19).
Com
a
exibição
de
notícias
nos
meios
de
comunicação,
o
sujeito
tem
a
sensação
de
proximidade
com
o
fato
e,
por
isso,
se
conecta
muito
mais
facilmente
com
a
mensagem
veiculada
(Freire
Filho,
2004).
Os
meios
de
comunicação
passam
a
ser
responsáveis
pela
criação
e
validação
de
determinadas
realidades.
Esses
discursos
veiculados
nos
media
produzem
lugares
a
partir
dos
quais
o
indivíduo
confabula
alguma
opinião.
Por
isso,
o
contato
com
o
fluxo
frequente
de
referências
mediáticas
causa
interferência
na
avaliação
que
os
indivíduos
fazem
de
si
e
de
seus
interesses.
A
veiculação
de
representações
desfavoráveis
pode
prejudicar
as
minorias,
ou
seja,
aqueles
grupos
sociais
que
são
marginalizados
pelas
estruturas
de
poder
e
pelos
sistemas
de
significação
dominantes
numa
sociedade
ou
cultura
(Edgar
e
Sedgwick
2003
apud
Freire
Filho,
2004,
p.46).
Por
exemplo,
identidades
de
género
podem
ser
construídas
pelas
imagens
veiculadas
em
novelas
ou
em
peças
publicitárias.
Quando
a
representação
promove
uma
diferença
radical
entre
o
“nós”
e
“eles”,
entre
bárbaros
e
civilizados,
ela
pode
ser
identificada
com
o
que
se
conhece
como
estereótipo.
18
I.4.
Estereótipo
como
lugar
de
“exílio
simbólico”
Na
imprensa
e
na
tipografia,
“estereótipo”
era
um
molde
de
impressão
para
a
reprodução
de
múltiplas
cópias
de
um
único
modelo.
Foi
Walter
Lippman,
em
1922,
que
usou
esse
termo
pela
primeira
vez
de
forma
metafórica
no
campo
das
ciências
sociais.
Em
Public
Opinion
(2008
[1922])3,
livro
responsável
por
iniciar
os
estudos
mediáticos
nos
Estados
Unidos,
Lippman
especifica
duas
noções
diferentes
para
estereótipo.
A
primeira,
que
tem
base
psicológica,
fala
do
estereótipo
como
modo
de
processamento
de
informações
necessário
para
a
organização
da
vida
social
em
sociedades
que
possuem
uma
população
diversa.
Neste
sentido,
o
estereótipo
surge
mais
como
uma
tipificação
de
indivíduos
que
servem
para
estruturar
e
interpretar
experiências
e
eventos
complexos.
Esta
primeira
conceitualização,
para
Freire
Filho
(2004),
pode
levar
ӈ
temerária
conclusão
da
necessidade
do
estereótipo,
inocentando
seus
perpetradores,
e
deixando-‐nos
inermes
diante
do
racismo,
da
xenofobia
e
da
discriminação
sexual”
(2004,
p.46).
Assim,
esta
definição
promove
e
ratifica
qualquer
cisão
no
interior
da
sociedade,
ideia
contrária
a
um
olhar
mais
político
e
integrador
das
sociedades
que
tanto
se
busca
na
contemporaneidade.
A
segunda
noção
proposta
por
Lippman
(2008),
de
caráter
político,
revela
que
os
estereótipos
são
construções
simbólicas
que
não
possuem
reflexão
racional
e
que
são
também
resistentes
à
mudança
social.
A
representação
inadequada
de
estrangeiros,
comunidades
e
classes
sociais
desprivilegiadas
mostra-‐se
como
um
grande
problema
na
era
democrática,
pois
a
imprensa
ao
reproduzir
estereótipos
fornece
informações
que
servirão
de
base
para
a
formação
de
opinião
dos
indivíduos.
Para
Freire
Filho
(2004),
esta
segunda
tentativa
de
definição
também
propõe
um
sentido
de
organização
ao
mundo
social.
O
que
difere
da
primeira,
no
entanto,
parece
ser
o
entendimento
de
que
o
estereótipo
quer
impedir
qualquer
flexibilidade
de
pensamento
“na
apreensão,
avaliação
ou
comunicação
de
uma
realidade
ou
3
Foi
escolhida
a
seguinte
formatação
para
as
obras
dos
autores
consultados:
A
data
de
lançamento
da
obra/texto
do
autor
estará
entre
chaves
e
só
aparecerá
na
primeira
vez
que
o
autor
for
citado.
Nas
citações
seguintes
do
mesmo
autor
será
utilizado
apenas
o
ano
da
obra
consultada
nesta
tese,
entre
parênteses.
19
alteridade,
em
prol
da
manutenção
e
da
reprodução
das
relações
de
poder,
desigualdade
e
exploração;
da
justificação
e
da
racionalização
de
comportamentos
hostis”
(2004,
p.47).
20
que
os
cria,
e
por
outro,
envia
todos
aqueles
que
não
se
encaixam
na
sociedade
para
um
“exílio
simbólico”
(Freire
Filho,
2004).
A
criação
e
propagação
de
estereótipos,
segundo
Hall
(1996),
refere-‐se
ao
que
Gramsci
chama
de
luta
pela
hegemonia,
ou
seja,
tem
a
ver
com
a
relação
de
supremacia
entre
grupos
sociais,
na
qual
um
agrupamento
de
dirigentes
modela
a
sociedade
de
dirigidos,
conforme
seus
próprios
valores
e
entendimentos
de
mundo.
Tudo
isto
acontece
de
forma
que
se
considere
normal
por
toda
a
sociedade.
Os
meios
de
comunicação
são
a
fonte
primordial
de
difusão
e
disseminação
dessas
ideias,
pois
influenciam
em
sua
aceitação
nas
práticas
culturais.
No
entanto,
a
participação
dos
media
no
processo
de
difusão
de
ideias
pode
ser
bastante
contraditória.
Com
os
processos
de
estigmatização
(construindo
estereótipos)
e
a
criminalização
das
minorias
(de
raça,
género
e
classe
social),
podem
tanto
exercer
o
papel
de
fortalecimento
de
estereótipos
a
serviço
dos
poderes
hegemônicos,
como
podem
servir
como
espaço
de
expressão
de
minorias
na
luta
contra
injustiças.
22
desenvolveu
uma
explicação
para
a
conexão
entre
as
duas
substâncias.
O
que
ele
deixou
claro
foi
que
a
mente
seria
sinônimo
de
consciência,
seria
alma
e
“coisa”
que
define
o
eu
que
daria
expressão
ao
corpo.
Dole
(2001)
explica
que
o
sujeito
cartesiano
só
pode
ser
uma
figura
de
individuação
quando
se
considera
que
só
pode
se
expressar
por
meio
de
corpos
e
rostos.
O
corpo
seria
então,
para
Descartes,
a
forma
de
expressão
da
alma.
A
questão
da
subjetividade
no
pensamento
cartesiano
está
conectada
à
noção
de
cogito,
visto
como
fundamento
racional
e
por
isso
fonte
de
conhecimento.
O
“eu
penso”
funda
toda
a
certeza
do
conhecimento
e
institui
o
princípio
de
subjetividade
como
locus
de
toda
e
qualquer
certeza
filosófica.
Este
pensamento
iniciado
no
século
XVII
ganhou
reforço
no
século
seguinte
com
a
filosofia
de
Kant
(1724-‐1804)
que,
a
partir
das
contribuições
do
pensamento
cartesiano,
dedicou-‐se
à
tarefa
de
explicar
os
fundamentos
do
pensamento
e
da
ação
do
homem.
A
subjetividade
transcendental
proposta
por
Kant
salvaguardou
o
cogito
enquanto
fundador
da
possibilidade
do
entendimento
ao
propor
um
“eu
penso”
transcendental
(Castro,
2016).
Conforme
seu
pensamento,
a
subjetividade
se
desenvolve
na
discussão
entre
o
sujeito
sensível
e
o
sujeito
transcendental.
Enquanto
o
primeiro
é
passivamente
afetado
pelas
representações
do
mundo
que
são
externas
a
ele,
pois
ele
é
governado
por
leis
que
estão
fora
do
seu
domínio,
o
sujeito
transcendental
tem
a
capacidade
de
realizar
o
pleno
exercício
da
liberdade
a
partir
de
suas
escolhas.
O
sujeito
só
alcança
a
liberdade
quando
passa
da
passividade
para
a
autonomia
no
agir
moral
e,
assim,
o
“Eu
transcendental”
é
a
base
que
sustenta
a
objetivação
e
universalização
do
conhecimento
teórico.
“Em
outras
palavras,
todo
o
projeto
crítico
da
filosofia
transcendental
kantiana
encontra
amparo
no
seu
fundamento
originário,
o
eu
transcendental”
(Castro,
2016,
p.149).
A
ética
é
vista
como
esse
lugar
privilegiado
onde
acontece
a
emancipação
do
sujeito
a
partir
de
sua
autodeterminação.
A
subjetividade,
unidade
que
integra
o
sentido
e
a
representação,
foi
vista
como
elemento
constituidor
do
sujeito
que
possui
autonomia
para
criar
e
seguir
suas
próprias
leis.
Esta
noção
de
um
sujeito
universal
como
estável,
soberano,
interiorizado
e
individualizado
foi
sendo
desconstruída
ao
longo
do
tempo,
pois
apesar
da
crença
na
força
do
sujeito
racional,
a
partir
do
Iluminismo
no
século
XVIII,
principalmente
com
o
23
movimento
Romântico,
iniciou-‐se
“uma
crítica
à
ideia
de
sujeito
soberano,
que
supostamente
dominaria
a
si
mesmo
e
ao
mundo”
(Hermann,
2006,
p.9).
As
críticas
à
subjetividade
moderna
ganharam
mais
força
nos
séculos
XIX
e
XX,
com
os
pensamentos
de
Marx,
Nietzsche,
Freud
e
também
dos
estruturalistas
Deleuze
e
Foucault,
para
desconstruir
os
ideais
e
mitos
e,
então,
reconstruir
o
sujeito
e
a
subjetividade
produzidos
pela
modernidade,
principalmente
no
que
se
refere
ao
reinado
do
Eu
e
da
razão.
Birman
(2006)
assinala
que,
nesse
momento
de
desconstrução,
Marx
foi
responsável
por
apresentar
o
descentramento
do
Eu
em
relação
à
política
e
à
economia,
para
reconhecer
as
forças
produtivas
como
ordenadoras
da
sociedade;
Nietzsche
mostrou
que
as
relações
de
força
e
poder
são
centrais
e
reguladoras
do
humano;
Freud
mostrou
que
a
imagem
do
eu
é,
na
verdade,
um
produto
de
uma
construção
imaginária,
visto
que
o
inconsciente
seria
particular
e
determinante
da
subjetividade.
Esses
pensadores
procuravam
novas
formas
de
compreensão
e
justificação
para
os
fatos
históricos
e
problemas
filosóficos.
Em
suas
críticas,
foram
expostas
“as
mazelas,
os
limites
e
as
aporias
da
filosofia
da
subjetividade,
que
objetualiza
as
relações
impedindo
a
intersubjetividade
e
o
reconhecimento
do
Outro”
(Hermann,
2006,
p.10).
O
tema
da
desconstrução
do
sujeito
vai
além
da
filosofia.
Ele
está
presente
nos
estudos
culturais
de
raça
e
etnia,
como
também
em
discursos
feministas,
para
mostrar
que
não
existe
um
sujeito
a-‐histórico,
fora
da
cultura
e
das
relações
de
poder.
Além
disso,
Não
é
apenas
o
pressuposto
de
que
existe
um
sujeito
universal,
unitário
e
centrado
que
está
em
questão,
mas,
sobretudo,
como
porventura
o
sujeito
poderia
ser
situado,
corporificado,
fragmentado,
descentrado,
desconstruído
ou
destruído.
Por
isso,
no
lugar
dos
antigos
“sujeito”
e
“eu”,
proliferam
novas
imagens
de
subjetividade.
Fala-‐se
de
subjetividade
distribuída,
socialmente
construída,
dialógica,
descentrada,
múltipla,
nômade,
situada,
fala-‐se
de
subjetividade
inscrita
na
superfície
do
corpo,
produzida
pela
linguagem,
etc.
(Santaella,
2008,
p.17).
Na
psicanálise,
o
processo
de
constituição
subjetiva
está
estritamente
conectado
com
o
entendimento
de
que
o
sujeito
é
efeito
da
linguagem,
visto
como
“(...)
aquele
que
se
constitui
na
relação
com
o
Outro
através
da
linguagem.
É
em
referência
a
essa
ordem
simbólica
que
se
pode
falar
em
sujeito
e
subjetividade
a
partir
24
de
Freud
e,
em
especial,
após
a
produção
teórica
de
Lacan”
(Torezan
e
Aguiar,
2011,
p.
535).
A
subjetividade
produzida
pela
linguagem
foi
considerada
como
emergência,
vista
a
partir
de
uma
relação
entre
pronomes
que
permite
que
o
sujeito
fale
de
um
“eu”
em
seu
discurso
(Rose,
2001).
Pensar
no
sujeito
a
partir
dessa
concepção
revela
que
há
um
“lugar”
e
que
este
lugar
deve
ser
constantemente
retomado
para
que
possa
existir,
ou
seja,
“o
sujeito
tem
que
ser
reconstruído
em
cada
momento
discursivo
de
enunciação
(Coward
e
Ellis,
1977
apud
Rose,
2001,
p.149).
Esse
olhar
para
a
subjetividade
como
um
sistema
gramatical
mostra-‐se
deficiente,
segundo
Deleuze
e
Guattari
(1980),
pois
o
sujeito
não
mais
existe
fora
do
“eu”.
Deleuze
e
Guattari
(Idem)
acreditam
que
a
subjetivação
não
pode
ser
considerada
como
um
processo
puramente
gramatical,
pois
a
linguagem
surge
de
um
regime
de
signos
conectado
a
uma
organização
de
poder:
ela
está
agenciada
às
“práticas
discursivas”
do
mesmo
modo
que
falar,
contar,
fazer
contratos,
emitir
ordens
ou
discutir
uma
teoria
(Rose,
2001).
Essas
práticas
não
são
homogêneas
em
termos
de
significação
e
negociação
entre
indivíduos
e,
por
isso,
são
estruturadas
em
relações
que
concedem
poderes
a
alguns
ao
mesmo
tempo
que
delimita
os
poderes
de
outros.
Na
década
de
1980,
após
ter
declarado
a
morte
do
sujeito,
Michel
Foucault,
a
partir
dos
volumes
II
e
III
da
História
da
Sexualidade
(1984
e
1985),
passou
a
refletir
sobre
a
história
dos
processos
pelos
quais
nos
tornamos
sujeitos.
A
partir
de
então
o
autor
tratou
da
relação
do
sujeito
com
as
verdades
que
lhe
foram
culturalmente
impostas,
partindo
do
pressuposto
de
que
em
qualquer
cultura
há
asserções
sobre
o
sujeito
que,
independentemente
do
seu
valor
de
verdade,
circulam
e
são
aceitas
como
se
fossem
verdadeiras.
Ao
invés
de
considerar
as
condições
e
possibilidades
de
uma
verdade
para
um
dado
sujeito,
Foucault
teve
a
intenção
de
saber
“quais
são
os
efeitos
de
uma
subjetivação
a
partir
da
própria
existência
de
discursos
que
pretendem
dizer
uma
verdade
para
o
sujeito”
(Candiotto,
2010,
p.
125).
Sabendo
que
os
modos
pelos
quais
nos
tornamos
sujeitos
são
os
modos
de
subjetivação,
Foucault
mostra
que
esses
modos
aparecem
e
desenvolvem-‐se
historicamente
como
práticas
de
si
que
vigoram
dentro
das
“práticas
discursivas
e
práticas
de
poder
que
testemunham
pela
descontinuidade
de
suas
formas
históricas”
(Cardoso
Jr.,
2005,
p.
344).
As
práticas
de
si
correspondem
a
quatro
importantes
25
problematizações:
“natureza
do
ato
sexual,
fidelidade
monogâmica,
relações
homossexuais,
castidade”,
que
atravessam
as
oposições
“filosofia
pagã,
a
ética
cristã
e
a
ética
moral
das
sociedades
modernas”
(Foucault,
1984,
pp.
17-‐18).
Essas
problematizações
em
torno
do
sujeito
indicam,
segundo
Foucault,
que
a
austeridade
sexual
tem
raiz
na
tradição
antiga
e
enuncia
uma
moral
futura.
A
própria
categoria
cuidado
de
si
é
inerente
à
cultura
grega,
que
se
manifesta
na
ação
do
ser
que
se
preocupa
consigo
mesmo.
Justifica-‐se
assim
o
olhar
histórico
de
Foucault
quando
se
refere
à
Grécia
clássica
para
pensar
sobre
a
sexualidade.
Foucault
mostra
também
que,
se
por
um
lado
o
sujeito
constitui-‐se
a
partir
de
imposições
externas
a
ele,
compreendido
como
um
produto
das
relações
de
saber
e
de
poder;
por
outro
lado,
é
constituído
a
partir
de
processos
intersubjetivos
com
aberturas
de
espaço
para
se
manifestar
livremente,
o
que
possibilita
a
criação
de
si
como
um
sujeito
autônomo
e
possuidor
de
liberdade.
Os
saberes
e
poderes
de
todos
os
tempos
procuraram
domar
os
processos
de
subjetivação.
No
entanto,
“o
ponto
mais
intenso
das
vidas,
onde
se
concentra
sua
energia,
fica
exatamente
ali
onde
elas
se
chocam
com
o
poder,
se
debatem
com
ele,
tentam
utilizar
suas
forças
e
escapar
de
sua
armadilhas”
(Foucault,
1977
apud
Deleuze,
1986,
p.
101).
Este
é
justamente
o
espaço
de
manobra
que
permite
manter
a
liberdade
e
autonomia
do
sujeito,
processo
em
que
a
subjetividade
mantém
resistência
diante
da
tentativa
de
captação
de
sua
forma.
Assim,
(…)
o
problema
da
subjetividade
em
Foucault
pode
ser
equacionado
de
maneira
fiel
pelas
seguintes
fórmulas:
toda
subjetividade
é
uma
forma,
mas
essa
forma
é
simultaneamente
desfeita
por
processos
de
subjetivação;
enquanto
a
forma-‐sujeito
é
captada
pelos
saberes
e
poderes,
a
subjetivação
é
um
excesso
pelo
qual
a
subjetividade
mantém
uma
reserva
de
resistência
ou
de
fuga
à
captação
de
sua
forma.
(Cardoso
Jr,
2005,
p.
344)
A
subjetividade
no
pensamento
de
Foucault
refere-‐se
ao
processo
da
nossa
relação
com
as
coisas
e
com
o
mundo
em
constante
mudança
e,
por
isso,
envolve
uma
relação
com
o
tempo.
Isto
quer
dizer
que
a
subjetividade
é
flexível,
ao
contrário
do
conceito
cartesiano
que
aponta
para
um
sujeito
central
e
autorreferente.
A
subjetividade
é
diferenciação
e
não
identidade
(Cardoso
Jr.,
2005)5.
Assim,
a
conexão
5
Na
modernidade,
uma
relação
de
identidade
seria
a
relação
entre
um
ser
interior
pensante
em
contato
com
um
exterior
que
está
separado
do
ser
pensante,
ou
seja,
o
sujeito
é
visto
como
centro
da
identidade
estável.
Foi
essa
imagem
de
um
sujeito
racional,
reflexivo,
solitário
e
central
na
ação
e
no
26
entre
subjetividade
e
tempo
é
um
modo
de
afirmar
que
a
subjetividade
acontece
num
corpo
e
que
dele
não
se
separa.
Este
corpo
de
que
fala
o
filósofo
não
é
apenas
orgânico,
mas
também
constituído
pelas
relações
com
as
coisas,
isto
é,
trata-‐se
de
um
corpo
que
envolve
o
encontro
com
outro
corpo,
seja
um
corpo
orgânico
ou
inorgânico,
uma
ideia
ou
imagem,
etc.
Desse
modo,
o
processo
de
subjetivação
em
Foucault
surge
como
ensaio,
processo
ético
(pois
é
irredutível
às
práticas
disciplinares)
e
estético
(produz
modos
inéditos
de
existência).
Enquanto
o
corpo
se
transforma,
a
subjetividade
se
diferencia
em
sua
relação
com
o
tempo.
O
fio
condutor
da
articulação
entre
subjetividade
e
verdade
no
pensamento
do
filósofo
é
o
cuidado
de
si,
impelindo
os
outros
a
terem
cuidados
consigo
próprios.
Assim,
o
cuidado
de
si
pode
ser
entendido
como
o
autoconhecimento
de
si.
Para
esse
autoconhecimento,
o
autor
reuniu
regras
e
princípios,
visto
que
“cuidar
de
si
é
se
munir
dessas
verdades:
nesse
caso
a
ética
se
liga
ao
jogo
da
verdade”
(Foucault,
2006,
p.
269).
Por
isso,
o
cuidado
de
si
é
de
ordem
diferente
do
conhecimento,
diz
respeito
à
atitude
diferente
consigo,
com
os
outros
e
com
o
mundo;
indica
a
conversão
do
olhar
do
exterior
para
o
próprio
interior
como
modo
de
exercer
a
vigilância
contínua
do
que
acontece
nos
pensamentos;
sugere
ações
exercidas
de
si
para
consigo
mediante
as
quais
alguém
tenta
modificar-‐se;
designa
maneiras
de
ser,
formas
de
reflexão
e
de
práticas
que
conformam
o
núcleo
da
relação
entre
subjetividade
e
verdade.
(Candiotto,
2008,
p.91)
A
ética,
no
pensamento
de
Foucault,
tem
como
condição
ontológica
a
liberdade
e,
assim,
“a
ética
é
a
forma
refletida
assumida
pela
liberdade”
(Foucault,
2006,
p.
267).
A
liberdade
consiste
no
“trabalho
de
si
sobre
si
mesmo”
e,
assim,
está
situada
numa
análise
de
poder,
pois
é
considerada
política
e
tem
um
modelo
político,
“uma
vez
que
ser
livre
significa
não
ser
escravo
de
si
mesmo
nem
dos
seus
apetites,
o
que
implica
estabelecer
consigo
mesmo
uma
certa
relação
de
domínio,
de
controle,
chamada
de
archê
–
poder,
comando”
(Foucault,
2006,
p.
270).
Assim,
a
ética,
no
processo
de
subjetivação,
surge
com
uma
dupla
tarefa:
é
tanto
reflexo
da
liberdade
quanto
comporta
a
própria
liberdade.
Esta
remete
ao
desapego
aos
hábitos
que
possam
levar
ao
vício
e,
por
isso,
remete
a
um
autocontrole
de
si.
pensamento
que
fundamentou
a
filosofia
moderna,
imagem
que
ainda
se
mostrou
presente
nas
teorias
sociais
e
políticas
ocidentais
até
muito
recententemente.
27
Através
desse
pensamento,
portanto,
o
filósofo
não
procurou
descobrir
a
verdade
no
sujeito.
O
que
ele
procurou
foi
“dotar
o
sujeito
de
uma
verdade
que
ele
não
conhecia
e
que
não
residia
nele;
trata-‐se
de
fazer
desta
verdade
aprendida,
memorizada,
progressivamente
aplicada,
um
quase-‐sujeito
que
reina
soberanamente
em
nós”
(Foucault,
20016
apud
Candiotto,
2010,
p.100).
Deste
modo,
o
cuidado
de
si
não
quer
dizer
o
mesmo
que
perseguir
uma
vida
bela,
refere-‐se
à
investigação
da
existência
e
de
uma
“estética
da
existência”,
tendo
já
como
pré-‐condição
o
rompimento
com
convenções,
hábitos
e
valores
pré-‐estabelecidos.
Portanto,
a
subjetividade,
de
acordo
com
o
pensamento
de
Foucault,
refere-‐se
a
um
processo
que
gera
continuamente
novos
modos
de
existência,
isto
é,
modos
de
agir
e
sentir
e,
tem
nesse
processo,
o
próprio
sujeito
como
produto.
Ainda
no
cenário
da
destituição
do
sujeito
soberano
na
filosofia
contemporânea,
surge
o
pensamento
de
Emmanuel
Levinas.
Este
pensador
da
alteridade
descreveu
a
subjetividade
como
lugar
de
exposição
e
acolhimento
e,
assim,
fala
de
uma
relação
ética
com
o
Outro
que
tem
como
base
a
supremacia
do
Outro
sobre
o
Eu.
Isto,
porque
“somente
um
eu
destituído
da
sua
soberania
poderá
ser
realmente
ético”
(Kuiava,
2003,
p.147).
Através
de
sua
crítica
e
reconstrução
da
subjetividade,
o
autor
nos
permite
pensar
nos
caminhos
da
sensibilidade
como
fruição,
com
o
contato
e
a
vulnerabilidade,
expondo
a
constituição
de
uma
nova
subjetividade:
uma
subjetividade
ética
que
nos
torna
reféns
ao
acolher
a
alteridade
infinita
do
Outro.
Assim,
ao
contrário
de
um
cuidado
de
si,
a
subjetividade
mostra-‐se,
em
Levinas,
como
responsabilidade
total
pelo
Outro.
Seu
pensamento
teve
sua
originalidade
atribuída
à
visibilidade
à
questão
da
alteridade,
promovendo
uma
ruptura
com
o
pensamento
da
tradição
filosófica
ao
conferir
à
alteridade
um
papel
central
na
construção
de
uma
ética,
esta
pensada
como
filosofia
primeira.
Desse
modo,
Levinas
nos
apresenta
uma
descrição
fenomenológica
da
subjetividade
que
tem
como
base
a
estrutura
“um-‐para-‐o-‐outro”,
que
quer
dizer
um
que
“deve
dar
ao
outro
e,
portanto,
um
que
tem
mãos
para
dar”
(Levinas,
2000,
p.
217).
Seu
olhar
se
mostra
como
uma
alternativa
para
pensar
a
subjetividade
pela
perspectiva
do
face-‐a-‐face
com
a
6
Foucault,
M.
(2001)
L'Herméneutique
du
sujet.
Cours
au
Collège
de
France,
1981-‐1982.
Édition
établie
par
François
Ewald
et
Alessandro
Fontana,
par
Frédéric
Gros,
Paris:
Seuil/Gallimard
(Coll.
Hautes
études).
28
alteridade,
da
relação
com
Outro
e,
por
isso,
também,
da
relação
estabelecida
com
o
Outro
através
da
fotografia.
Levinas
(1993)
considera
a
subjetividade
ética,
pois
há
uma
responsabilidade
antes
de
uma
liberdade
na
relação
com
o
outro.
Ela
surge
com
uma
concepção
diferente
daquela
entendida
pela
filosofia
ocidental,
visto
que
parte
da
sensibilidade
do
sujeito,
que
significa,
em
termos
levinasianos,
aproximação,
exposição
ao
outro.
A
exposição
ao
outro
produz
vulnerabilidade
e
responsabilidade
ao
Eu,
como
também
atribui
um
sentido
moral
à
subjetividade.
No
entanto,
tal
vulnerabilidade
é
intrínseca
à
relação
com
o
outro
e
mostra-‐se
como
“obsessão
pelo
outro
ou
proximidade
do
outro”
(Levinas,
1993,
p.119).
Nesse
sentido,
sem
corpo
não
há
doação
visto
que
não
há
aproximação,
ou
seja,
o
sujeito
da
responsabilidade
é
o
próprio
corpo:
“a
subjetividade
humana
é
de
carne
e
osso”
(p.217).
O
sujeito
levinasiano
é
um
sujeito
encarnado,
não
é
um
fenômeno.
Nesse
contexto,
não
há
uma
ordem
para
agir
e
em
seguida
responsabilizar-‐se
pelo
outro,
pois
a
própria
responsabilidade
está
contida
no
sujeito
e
o
torna
responsável
por
todos,
antes
mesmo
de
sua
escolha.
A
espontaneidade
da
liberdade
é
posta
em
questão
no
momento
em
que
não
há
escolhas
para
o
sujeito,
pois
a
responsabilidade
é
um
elemento
que
define
a
sua
unicidade.
A
presença
do
outro
exige
já
uma
responsabilidade
e
a
exposição
ao
outro
se
apresenta
já
como
vulnerabilidade.
A
subjetividade
não
é
da
ordem
da
intencionalidade,
ela
se
mostra
anterior
a
todo
começo.
Quando
em
contato
com
a
alteridade
a
sua
presença
produz
inquietação
na
autonomia
do
Eu,
mas
é
isto
que
convoca
o
Eu
para
a
responsabilidade
ética.
O
acolhimento
dessa
alteridade,
na
forma
de
hospitalidade
ao
estrangeiro,
ao
totalmente
Outro,
estabelece
uma
responsabilidade
insubstituível
pelo
Outro
que
leva
até
a
sua
substituição.
A
alteridade
do
Outro
é,
neste
sentido,
imprescindível
para
a
constituição
da
subjetividade,
visto
que
é
responsável
por
animar
e
manter
viva
a
intriga
na
relação
ética
levinasiana:
provoca
a
abertura
do
Eu
para
fazer
surgir
uma
nova
relação
com
a
alteridade.
Levinas
fala
do
Outro
como
o
rosto
de
outro
homem,
independente
de
seu
gênero
e
nacionalidade.
“A
forma
como
o
outro
se
apresenta
é
visage,
rosto
não
figurado
pelas
suas
qualidades,
ultrapassagem
da
imagem
plástica
que
deixa
no
eu”
29
(Marcos,
2011,
p.83).
O
rosto
é
a
epifania
de
outrem
e
é
nesta
epifania
que
o
rosto
do
outro
reflete
o
terceiro,
ou
seja,
a
presença
da
humanidade
inteira.
O
rosto
é
nu,
“porque
não
se
deixa
iluminar
ou
delimitar
de
fora
por
uma
forma,
nem
pensar
a
partir
de
sua
relação
com
qualquer
coisa.
Rosto
nu,
ainda,
porque
vulnerável
ao
sofrimento
e
à
morte”
(Marcos,
2011,
p.83).
O
rosto
do
Outro
é
vulnerabilidade,
mas
também
é
imposição
de
uma
responsabilidade.
Escapa
à
tematização,
pois
é
a
completa
exterioridade,
abertura
e,
sobretudo,
exposição
ao
outro.
Esse
olhar
fenomenológico
da
subjetividade
proposto
por
Levinas,
além
de
destituir
a
centralidade
e
soberania
do
Eu,
abre
espaço
para
a
reconstrução
de
uma
nova
subjetividade
que
se
constitui
pelo
encontro
com
o
Outro.
Essa
busca
inscreve
na
relação
face-‐a-‐face
uma
nova
relação
ética
com
a
alteridade,
momento
em
que
o
Outro
não
está
integrado
à
estrutura
do
Eu,
ao
contrário,
ele
é
transbordamento,
excesso
que
se
estabelece
no
encontro,
é
o
infinito.
Esta
ideia
de
infinito
“não
vem
do
interior
do
eu,
vem
do
exterior,
da
presença
do
rosto
do
outro
que
me
ensina
mais
do
que
eu
possa
apreender
e
suportar”
(Marcos,
2011,
p.83).
Isto
garante
a
estranheza
do
outro
e,
por
isso,
sua
liberdade,
pois
torna-‐o
inapreensível,
livre
de
qualquer
qualidade
que
eu
possa
conceder.
Contra
Kant,
aqui,
a
ideia
do
infinito
não
nasce
no
interior
de
uma
consciência
finita
e
nem
é
introduzida
por
um
ser
superior
como
concebe
Descartes;
ao
contrário,
surge
a
posteriori,
a
partir
da
relação
frente
a
frente
com
o
rosto
do
outro
(Kuiava,
2003,
p.131).
A
epifania
do
Outro
expressa,
assim,
uma
interpelação
ética
que
destrói
a
imagem
plástica
e
a
representação
que
dele
se
possa
ter,
para
ser,
no
lugar,
um
convite
à
hospitalidade.
O
rosto,
visage,
tem
um
papel
decisivo
no
pensamento
levinasiano,
pois
é
o
que
vemos
primeiramente
no
encontro
com
o
Outro
e
que
assim
irrompe
a
subjetividade
(Marcos,
2011).
Por
isso,
para
pensar
na
fotografia
como
produto
de
um
acontecimento
ético,
primeiramente,
deve-‐se
pensar
na
experiência
fotográfica
como
um
lugar
de
encontro
com
o
Outro.
Para
esse
encontro
acontecer
é
preciso
abrir-‐se
para
o
desconhecido
e
estar
preparado
para
isso.
Esse
encontro
é
essencial
para
a
composição
de
uma
“fotografia
sensível”,
sendo
a
sensibilidade
entendida
como
contato
e
abertura
para
a
vulnerabilidade.
Esse
processo,
portanto,
não
é
possível
através
de
um
encontro
entre
um
fotógrafo
privilegiado
e
um
fotografado
dominado,
mas
sim,
por
via
do
exercício
de
acolhimento
e
30
responsabilidade
pelo
Outro,
sabendo
e
aceitando
todos
os
riscos
e
vulnerabilidades
que
isso
carrega.
Ao
contrário
de
um
entendimento
da
fotografia
como
uma
racionalidade
técnica
que
produz
uma
visão
objetivadora
do
Outro,
na
imagem
fotográfica
deve
ser
elaborado
um
olhar
sensível
para
o
Outro.
Como
seria
transformar
um
olhar
objetivador
em
um
olhar
sensível?
O
encontro
face-‐a-‐face
está
na
base
da
experiência
fotográfica,
especialmente
nos
retratos.
É
o
Outro,
o
fotografado,
que
inaugura
essa
relação
ética
na
fotografia
ao
exigir
um
olhar
ético
do
fotógrafo.
Esse
encontro
permite
pensar
a
fotografia
como
criação
de
uma
novidade
que
ao
desfazer
a
imagem
plástica
e
a
representação
do
Outro,
abre
espaço
ao
acolhimento.
Na
sessão
fotográfica,
essa
relação
resulta
em
uma
imagem
singular
e
irrepetível
e,
por
isso,
nesse
encontro,
surge
algo
novo
que
está
fora
do
Eu.
Pensar
numa
“fotografia
sensível”
a
partir
de
uma
relação
ética
é
pensá-‐la
como
forma
de
resistência
e
combate
à
banalização
do
humano,
ou
seja,
como
luta
contra
a
repetição
de
estereótipos.
Diante
do
que
é
desconhecido
busca-‐se
sempre
transformá-‐lo
em
conhecido.
Procura-‐se
uma
familiaridade
para
diminuir
o
desconforto
do
encontro.
Esse
processo
de
inquietação
provocado,
através
do
choque
de
ideias,
culturas
e
representação
de
mundos
tão
diferentes,
deve,
antes,
ser
considerada
como
possibilidade
ou
abertura
para
a
responsabilidade
que
se
impõe
no
lugar
de
uma
consciência
egoísta.
Esta
relação
situa-‐se
entre
familiaridade
e
estranhamento
e
deve
levar
a
um
combate
contra
os
padrões
identitários
pré-‐concebidos.
Desse
modo,
a
fotografia,
como
qualquer
outra
relação
social,
quando
vista
pelo
prisma
ético,
encontra
o
seu
sentido
humanitário
do
Outro,
com
a
responsabilidade
pelo
Outro,
pela
família
do
Outro
e
de
seus
conterrâneos.
A
produção
de
imagens,
portanto,
deve
criar
algo
novo
e
a
fotografia
deve
ser
percebida,
no
interior
dessa
relação,
como
processo
de
encontro
e
também
como
produto
do
encontro,
pois
o
resultado
é
uma
outra
imagem
que,
fruto
de
uma
relação
com
a
alteridade,
escapa
à
representação
anterior
ao
acolher
o
Outro
tal
como
ele
é,
aceitando
toda
a
responsabilidade
que
a
representação
acarreta
no
Outro
e
no
Outro
do
Outro.
Reconhecer
essa
responsabilidade
é,
então,
produzir
uma
“fotografia
sensível”
através
de
uma
subjetividade
ética.
No
caso
da
relação
entre
portugueses
e
31
brasileiros
através
da
fotografia,
trata-‐se
de
um
acolhimento
de
estrangeiro
para
estrangeiro.
I.6.
O
colonialismo
e
a
produção
de
diferença
7
"Colónia",
in
Dicionário
Priberam
da
Língua
Portuguesa
[em
linha],
2008-‐
2013,
https://www.priberam.pt/dlpo/col%C3%B3nia
[consultado
em
26-‐02-‐2018].
32
O
sistema
colonial
deu
lugar
a
um
sistema
internacional
que
conhecemos
os
contornos:
a
criação
do
subdesenvolvimento
segundo
a
linha
divisória
entre
o
primeiro
e
o
terceiro
mundo,
e
o
surgimento
inesperado
de
sociedades
multiculturais
na
Europa
baseadas
em
desigualdades
sociais
profundas
entre
nacionais
e
imigrantes
(pp.82-‐83).
Para
o
Professor
Boaventura
Sousa
Santos8,
ainda
vivemos
em
uma
sociedade
que
tem
como
referência
os
três
principais
modos
de
dominação
da
modernidade:
capitalismo,
colonialismo
e
hetero-‐patriarcado.
Segundo
ele,
o
que
permanece
dos
períodos
anteriores
aparece
metamorfoseado
“em
algo
que
simultaneamente
o
denuncia
e
dissimula
e,
por
isso,
permanece
sempre
como
algo
diferente
do
que
foi
sem
deixar
de
ser
o
mesmo”
(Idem).
Seguindo
o
seu
pensamento,
o
que
acabou
foi
o
colonialismo
histórico
e
o
que
permanece
é
a
forma
de
dominação
colonial
exercida,
que
agora
se
apresenta
sob
outras
formas.
Exemplo
disso
é
a
forma
como
o
racismo
ainda
é
presente
(e
também
pode
ser
violento)
nas
formas
de
racismo
institucional
e
estrutural,
mas
que
também
ocorre
no
racismo
direcionado
à
pessoa,
embora
de
forma
mais
atenuada
nos
dias
atuais.
Também
o
racismo
pode
ser
visto
no
trato
dos
imigrantes
nos
países
de
acolhimento,
que
os
vê
como
aqueles
que
não
se
devem
misturar:
34
este
entendimento
surge
como
“esperança”
de
superação
da
diferença
cultural.
Desse
modo,
para
Bhabha
(1998),
a
questão
da
identificação
só
emerge
no
intervalo
entre
a
recusa
e
designação.
9
Conf.
Matéria
publicada
no
The
Guardian,
Why
are
white
people
expats
when
the
rest
of
us
are
immigrants?
Publicada
em
13
de
maio
de
2015.
Acessível
em:
https://www.theguardian.com/global-‐
development-‐professionals-‐network/2015/mar/13/white-‐people-‐expats-‐immigrants-‐
migration?CMP=fb_gu
35
pensá-‐los
como
negros10),
são
recebidos
pelo
mundo
como
expatriados.
Dessa
forma,
ser
imigrante
é
ser
diferente,
pois
além
do
fator
socioeconômico
e
de
classe
que
o
identifica
como
tal,
que
parte
do
entendimento
de
que
quando
vão
a
um
determinado
país
é
por
causa
das
condições
financeiras
desfavoráveis,
o
fator
racial
também
pode
ser
determinante
para
denominá-‐lo
de
acordo
com
esses
termos.
As
situações
coloniais,
que
hoje
são
pós-‐coloniais,
fazem
com
que
existam
espaços
em
que
populações
são
segmentadas
por
suas
diferenças
e
desigualdades
e
ainda
assim
convivam
na
mesma
sociedade.
A
situação
agrava-‐se
quando
a
questão
de
“raça”
se
une
aos
critérios
de
desigualdade
social
e
econômica,
pois
depara-‐se
com
uma
situação
que
ainda
é
resolvida
segundo
os
moldes
coloniais,
ao
demandar
uma
escolha
entre
a
“aculturação
ou
o
separatismo”
(Almeida,
2007,
p.
86).
Esses
extremos
não
corroboram
o
pensamento
de
Bhabha
(1998),
que
sugere
o
conceito
de
“fronteira”
para
determinar
não
uma
separação,
mas
sim
um
espaço
“entre-‐lugar”,
que
funciona
como
produto
da
interação
cultural
produzida
nas
fronteiras,
pois
são
estes
os
locais
onde
a
produção
de
significados
e
valores
da
minoria
é
realizada
de
maneira
errônea.
Os
brasileiros,
tratados
como
muitas
vezes
como
escravos
em
pleno
século
XXI,
são
vistos
como
mão
de
obra
imigrante
e,
por
isso,
sofrem
com
a
exploração
de
sua
força
de
trabalho.
Quando
são
passíveis
de
obtenção
da
cidadania,
são
abraçados
por
um
“multiculturalismo”,
que,
como
já
foi
dito,
os
define
como
diferentes
em
relação
10
Entrevista
com
Miguel
Vale
de
Almeida
ao
portal
QI,
“Ninguém
imagina
(de
verdade)
um
português
negro”.
Acessível
em:
https://qinews.pt/entrevista-‐qi-‐miguel-‐vale-‐de-‐almeida-‐ninguem-‐imagina-‐de-‐
verdade-‐um-‐portugues-‐negro/
36
ao
resto
da
população
europeia
ao
invés
de
promover
uma
integração.
“Nos
contextos
ditos
pluriétnicos,
os
multiculturalismos
não
é
mais
do
que
o
estabelecimento
de
um
supermercado
de
culturas”,
pois
objetifica
a
cultura,
transformando
“música
africana”
ou
“comida
chinesa”
em
produtos
que
passam
a
ser
vendidos
pelas
próprias
minorias,
“como
forma
de
construção
de
identidade
e
de
ocupação
de
nichos
na
sociedade
‘multicultural’”
(Almeida,
2007,
p.
89).
Dessa
forma,
o
diferente
continua
a
sobressair
numa
política
criada
para
receber
o
imigrante,
desde
que
ele
se
comprometa
a
não
se
sentir
totalmente
em
casa.
37
culturais
que
devem
ser
conectados
aos
processos
históricos
para
que
seja
possível
encontrar
uma
espécie
de
“terceiro
espaço”
que
Bhabha
(1998)
definiu
como
um
espaço
“entre”
na
relação
social
entre
o
Eu
e
o
Outro.
11
Texto
da
contracapa
do
livro
da
autora.
38
de
um
modo
mais
afetivo
e
efetivo
na
relação
social,
um
corpo
que
encontra
as
condições
participativas
e
de
concretização
da
pesquisa.
40
refere-‐se
à
utilização
da
primeira
pessoa
nos
relatos
sobre
o
outro,
para
colocar
em
primeiro
plano
as
diferenças
culturais.
Situamos
essa
pesquisa,
portanto,
com
a
aproximação
do
conceito
de
auto-‐etnografia
que
diz
respeito
ao
fato
de
a
autora
desta
pesquisa
também
fazer
parte
do
“corpo
brasileiro”
que
é
estudado.
Foi
preciso,
portanto,
oferecer
outras
perspectivas
de
interpretação
da
História
como
compreende
Walter
Benjamin
(1969
[1942]),
haja
visto
que
"o
estado
de
emergência
em
que
vivemos
não
é
a
exceção,
mas
a
regra.
Temos
de
nos
ater
a
um
conceito
de
história
que
corresponda
a
esta
visão”
(p.257).
Por
esta
razão,
o
olhar
de
Foucault
foi
visto
como
ferramenta
que
auxilia
o
pensamento
do
corpo
através
da
análise
das
práticas
de
poder,
pois
“só
podemos
falar
de
estruturas
ou
de
mecanismo
de
poder
na
medida
em
que
supomos
que
certas
pessoas
exercem
poder
sobre
outras”
(Foucault,
1982,
p.
217).
As
relações
de
poder
não
devem
ser
consideradas
apenas
como
uma
situação
de
constrangimento
absoluto,
como
aquele
que
envolve
a
violência
física
do
explorador
e
do
escravo
no
colonialismo
histórico
do
Brasil,
pois
também
se
estabelece
entre
pessoas
livres,
acontecendo
de
forma
muito
mais
sutil,
pois
a
existência
de
liberdade
impulsiona
a
reação
por
parte
daqueles
que
exercem
o
41
poder.
Para
mapear
o
poder
exercido
pelo
europeu
na
construção
da
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira,
foi
apresentado
no
capítulo
IV
um
olhar
histórico
em
relação
à
construção
da
imagem
de
um
povo
composto
por
várias
etnias
aprisionadas
e
que
tiveram
suas
identidades
homogeneizadas
nos
períodos
de
gestação
e
de
nascimento
de
um
Brasil
independente
de
Portugal.
No
capítulo
V
foram,
então,
analisados
os
discursos
coletados
na
fase
empírica,
através
da
realização
de
entrevistas
presenciais
com
os
fotógrafos
que
produziram
imagens
no
Brasil.
O
corpo-‐a-‐corpo
foi
fundamental
para
a
compreensão
de
significados
atribuídos
ao
corpo
brasileiro
em
suas
produções
fotográficas.
Como
método
de
entrevista,
para
a
compreensão
de
uma
subjetividade
na
produção
de
imagens,
foi
utilizada
a
entrevista
aberta
com
perguntas
que
não
obedecem
a
um
esquema
fechado,
mas
que
se
desenvolvem
em
ritmo
de
conversa,
para
trazer
à
tona
os
imaginários
coletivos
e
individuais
sobre
o
brasileiro
que
perpassam
a
vida
do
fotógrafo.
Essa
forma
adoptada
de
entrevista
permite-‐nos
a
captação
de
significados
e
conhecimento
dos
sentidos
que
os
sujeitos
dão
aos
seus
atos,
acessíveis
apenas
a
partir
dos
discursos
enunciados
pelos
próprios
fotógrafos.
Desse
modo,
não
eram
esperadas
nas
entrevistas
respostas
objetivas
e
verdadeiras,
mas
a
subjetivamente
sincera12,
o
que
corresponde
a
um
encontro
com
informações
relevantes
que
só
poderiam
ser
obtidas
através
da
experiência
do
encontro.
O
corpo
sempre
foi
local
de
intervenções
para
identificação
ou
pertencimento
a
algum
grupo,
filiação
ou
crença.
Com
este
objetivo,
foram
utilizados
desde
elementos
efêmeros
aplicados
ao
corpo,
como
pintura,
penteado
ou
traje;
até
deformações
definitivas,
como
escarificações
e
tatuagens.
As
pinturas
dos
índios,
as
queimaduras
de
vudu
na
Melanésia
e
as
tatuagens
dos
aborígenes
da
Nova
Zelândia
são
exemplos
de
intervenções
no
corpo.
As
marcas,
vestimentas
e
costumes
orientavam
a
identidade
do
sujeito.
O
corpo
e
o
rosto
surgem
como
revestimentos
que
atribuem
valores
fundamentais
para
coesão
em
um
determinado
grupo
social.
De
acordo
com
Tucherman
(2012
[1999]),
na
Grécia
Antiga
o
corpo
deveria
ser
cuidado
e
sua
imagem
idealizada
correspondia
ao
conceito
de
cidadão
que,
por
sua
vez,
deveria
cuidar
e
modelar
o
corpo
com
exercícios
e
meditações.
O
corpo
era
de
interesse
do
Estado
e,
por
isso,
era
dever
pessoal
o
cuidar
de
si
para
exibir
um
corpo
saudável
e
proporcional
que
estimava
a
capacidade
atlética
e
a
fertilidade.
O
intelecto
também
deveria
ser
cuidado
para
fazer
par
com
corpo
físico
e
assim
encontrar
a
perfeição.
A
mulher
não
participava
desta
concepção
de
corpo
perfeito.
Enquanto
o
homem
poderia
andar
nu
nos
ginásios
ou
com
vestes
soltas
na
cidade
(para
equilíbrio
térmico),
a
mulher
deveria
vestir
roupas
em
casa
e
cobrir
o
corpo
quando
saíssem
de
casa.
O
corpo
grego,
entretanto,
não
serviria
apenas
para
exposição
em
ginásios
e
nas
cidades,
ele
era
esculpido
também
para
a
guerra.
Ainda
segundo
Tucherman
(2012),
com
a
chegada
do
cristianismo
veio
também
a
culpa.
O
corpo
passa
de
expressão
de
beleza
para
fonte
de
pecado.
A
espiritualização,
regra
do
cristianismo,
trazia
a
negação
do
material
e
isso
inclui
o
cuidado
com
o
corpo
físico
para
que
se
possa
salvar
o
espírito.
O
corpo
exprimia
o
pecado
resultante
do
mau
comportamento
de
Adão
e
Eva
na
Terra
(mais
de
Eva,
na
44
verdade).
Por
isso,
Deus
estava
sempre
em
alerta
e
vigilante,
sem
pausa
para
descanso:
tudo
via
e
tudo
sabia.
O
corpo,
da
mulher
ou
do
homem,
com
o
cristianismo,
deveria
estar
coberto
até
no
momento
de
intimidade
dos
casais
ou
toda
nudez
seria
castigada.
Por
outro
lado,
o
corpo
sofredor
de
Cristo
mostrou
aos
cristãos
que
a
dor
física
servia
para
alcançar
alívio
espiritual,
ou
seja,
o
corpo
físico
seria
curado
de
todos
os
males
na
vida
pós-‐morte,
bastava
aguentar
um
pouco.
Assim,
no
mundo
judaico-‐
cristão,
a
dor
do
corpo
físico
e
a
prevalência
do
espírito
conduziriam
à
salvação.
O
corpo
feminino
foi
considerado
inferior
também
pelos
cristãos.
Deus
o
produziu
por
mediação
do
corpo
masculino,
através
das
costelas
de
Adão,
portanto,
seria
a
mulher
um
derivado
do
homem
para
servir
como
companheira.
45
funcionaria
como
veículo
da
alma,
nos
dizeres
de
Descartes:
“(...)
por
esses
sentimentos
de
dor,
fome,
sede,
etc.,
que
não
somente
estou
alojado
em
meu
corpo,
como
um
piloto
em
seu
navio,
mas
que,
além
disso,
lhe
estou
conjugado
muito
estreitamente
e
de
tal
modo
confundido
e
misturado,
que
componho
com
ele
um
único
todo”
(Descartes,
1988
[1641],
p.144).
Somos
portanto,
para
ele,
a
união
do
corpo
e
da
alma.
46
Diante
dos
vários
temas
que
podem
envolver
o
corpo
na
fotografia,
visto
que
o
corpo
e
as
suas
fantasias
sempre
participaram
dos
mecanismos
de
identificação
e
alteridade
(Tucherman,
2012),
neste
capítulo
buscou-‐se
apresentar
alguns
dos
modos
de
representação
do
corpo
e
do
rosto
na
história
da
fotografia,
principalmente
enquanto
forma
de
classificação
e
identificação
do
Outro.
Não
há
a
pretensão
de
fornecer
um
apanhado
teórico
completo
do
corpo
ou
uma
revisão
bibliográfica,
mas
sim
o
de
trazer
à
tona
pontos
de
conexão
entre
o
corpo
e
a
fotografia
que
são
importantes
para
esta
Tese.
O
capítulo
se
divide
em
seis
discussões
sobre
a
manifestação
e
representação
do
corpo
na
fotografia
contemporânea:
corpo
ausente;
corpo
refletido;
corpo
tendencioso;
corpo
controlado;
corpo
performativo
e
corpo
objetificado.
Os
estudos
que
se
dedicam
à
origem
da
imagem
ratificam
o
sentido
mágico
que
lhe
foi
conferido
na
Idade
Média,
ao
servir
como
mediação
entre
o
mundo
dos
mortos
e
dos
vivos
e
executando
uma
função
metafísica
com
relação
à
morte.
Isso
foi
confirmado
por
Regis
Debray
(1992),
que
diz
que
a
imagem
arcaica
surge
das
tumbas
para
prolongar
a
vida.
As
efígies
surgem,
assim,
como
mediação
entre
os
dois
mundos,
e
passaram
a
ser
veneradas
e
a
receberem
oferendas
específicas,
pois
o
corpo
morto
tinha
o
status
divino.
Ainda
segundo
Debray
(1992),
a
palavra
imagem
tem
origem
no
termo
latim
imago,
que
se
associa
aos
vocábulos
gregos
traduzidos
como
ídolo,
eídolon,
que
designa
a
alma
do
morto
que
sai
sob
a
forma
de
sombra,
o
seu
duplo.
Dando-‐lhe
um
aspecto
figurativo
de
sombra,
a
morte
parece
encontrar
na
imagem
um
antídoto
para
a
invisibilidade
ou,
pelo
menos,
um
alívio
para
esse
problema.
A
imagem
surge,
portanto,
como
manifestação
da
nossa
existência
no
mundo
e
também
como
protesto
contra
o
apagamento
da
existência
no
tempo
(Medeiros,
2000).
Essa
significação
atrelada
aos
símbolos
funerários,
demonstra
que,
desde
o
início,
a
imagem
tinha
os
efeitos
de
presença
e
dissimulação
da
perda.
O
tema
da
morte
também
foi
recorrente
na
história
da
fotografia,
de
forma
direta
ou
indireta,
47
como
também
em
contextos
diversos
(Medeiros,
2010).
No
século
seguinte
à
criação
da
fotografia,
ao
contrário
de
um
sentido
sinistro
ou
nostálgico,
diz
Medeiros,
a
relação
da
morte
com
a
fotografia
passa
a
ser
encarada
como
pretexto
para
o
exercício
de
humor.
No
entanto,
“quaisquer
que
tenham
sido
as
motivações
com
que
operaram,
o
contexto
da
produção
e
recepção
dessas
imagens
foi
sempre
ambíguo”
(2010,
p.25).
Sejam
nas
múmias,
nos
crânios
pré-‐históricos
ou
nas
pinturas
nas
cavernas
de
Lascaux,
a
representação
de
si
e
do
outro
surge
como
forma
de
marcar
e
fazer
presente
a
vida
e
todos
os
eventos
culturais
e
sociais
que
a
atravessam.
Sob
esse
contexto
e
para
além
de
uma
ideia
de
mimese,
uma
cópia
do
referente,
o
retrato
não
foi
considerado
como
um
género
por
Didi-‐Huberman
(1998),
mas
como
o
encontro
das
“incríveis
tranças
contraditórias
de
representações
e
de
presenças,
de
semelhanças
e
dessemelhanças,
de
seres
e
de
existências”
(p.62).
Isto
porque
mais
do
que
pela
necessidade
de
identificação
do
rosto
com
o
fotografado,
a
imagem
do
outro
tem
sua
importância
por
trazer
para
perto
o
corpo
que
está
ausente.
(...)
tudo
nos
indica
que
o
Homo
Sapiens
é
atingido
pela
morte
como
por
uma
catástrofe
irremediável,
que
vai
trazer
consigo
uma
13
Publicado na Revista de Comunicação e Linguagens (2008) nº39, pp. 257-261.
48
ansiedade
específica,
a
angústia
ou
horror
da
morte,
que
a
presença
da
morte
passa
a
ser
um
problema
(...)
Tudo
nos
indica
igualmente
que
esse
homem
não
só
recusa
a
morte,
mas
que
a
rejeita,
transpõe
e
resolve
no
mito
e
na
magia.
Na
Idade
da
Rena
(de
15
a
25
mil
anos
antes
de
Cristo),
o
rosto
humano
ainda
não
existia
na
produção
figurativa.
O
homem,
em
Lascaux,
não
tinha
um
rosto
delineado
nas
pinturas
rupestres,
mas
uma
espécie
de
bico,
“um
perfil
de
pássaro
sumariamente
traçado”
(Didi-‐Huberman,
1998,
p.63).
Do
que
decorre
que
o
homem
do
paleolítico
foi
representado
sempre
em
associação
com
a
figura
animal,
mostrando
que
o
rosto
estava
lá
(ao
contrário
do
que
Georges
Bataille
pensava),
mas
se
mostrava
de
forma
totalmente
diferente
da
que
conhecemos
hoje,
ou
seja,
totalmente
dista
de
uma
representação
mimética.
No
entanto,
enquanto
o
homem
existia
em
associação
com
a
cabeça/rosto
de
animais,
a
mulher
era
representada
por
uma
massa
disforme
que
só
era
reconhecida
pela
inserção
de
uma
vulva
ou
órgão
materno.
Foram
as
caveiras
da
pré-‐história
que
mostraram
a
Didi-‐Huberman
(1998)
que
mesmo
quando
não
existia
a
representação
do
rosto
humano
nos
desenhos
pré-‐
históricos,
havia,
por
outro
lado,
a
preocupação
com
o
destino
dos
rostos
através
do
cuidado
que
era
dispensado
aos
crânios,
que
eram
enfeitados
e
ritualizados
após
a
morte:
II.2
Corpo
refletido:
Narciso,
Drácula
e
outros
corpos
monstruosos
Para
Sabine
Melchior-‐Bonnet
(2016),
o
espelho
pertence,
em
primeiro
lugar,
ao
“domínio
do
vocabulário
místico
e
dá
lugar
a
um
discurso
moral
–
duradouro
–
que
baliza
os
direitos
do
olhar
sobre
si
e
desenvolve
a
dialética
da
essência
e
da
aparência(...)”
(2016,
p.13).
O
reflexo
do
corpo
teve
uma
importante
missão
na
organização
da
personalidade
há
um
século
por
psicólogos,
como
Lacan,
que
apresentou
o
“estádio
do
espelho”.
A
criança,
ao
ver-‐se
no
espelho
pela
primeira
vez,
passa
então
a
ver
o
seu
corpo
como
unidade,
não
mais
como
partes
separadas,
ao
mesmo
tempo
em
que
compreende
a
diferença
entre
o
modelo
e
a
imagem.
Esse
“estádio
do
espelho
como
formador
da
função
do
eu”,
proposto
pelo
psicanalista
em
1949,
refere-‐se
ao
momento
em
que
o
indivíduo
descobre
o
que
é
e
o
que
não
é
através
do
olhar
do
terceiro.
O
espelho,
enquanto
objeto
de
reflexão
simbólica,
está
sempre
atrelado
à
procura
pela
identidade,
já
o
primeiro
encontro
de
fato
com
o
espelho
faz
saber
da
unidade
do
corpo
e
atua
contra
as
ameaças
de
desmembramento.
O
espelho
passa
a
ser
assistente
na
identificação
do
eu,
mas
também
mostra-‐
se
revelador
de
perturbações
mentais
e
demarcador
de
alteridades.
Narciso
constitui
a
primeira
história
de
um
encontro
perturbador
com
o
espelho.
Filho
de
Juno,
esse
personagem
mitológico
era
muito
belo
e
tinha
muitas
mulheres
e
homens
51
interessados
em
seu
amor.
Quando
Juno
consultou
o
oráculo
sobre
o
futuro
de
Narciso,
ele
disse-‐lhe
que
o
jovem
viveria
muito
caso
não
pudesse
conhecer-‐se.
Narciso,
depois
de
recusar
muitos
pretendentes
de
ambos
os
sexos,
reduziu
Eco
à
sua
própria
voz
ao
condená-‐la
“ao
choro
e
à
morte”14
e
foi
condenado
ao
amor
sem
reciprocidade
por
uma
ninfa
humilhada
por
sua
recusa.
Indo
ao
encontro
de
seu
destino,
Narciso
vê
sua
imagem
espelhada
na
água
enquanto
a
bebe
e
se
apaixona
por
si
mesmo.
Com
a
impossibilidade
de
tocar
a
imagem
refletida,
ele
morre
afogado
e,
quando
procuram
o
corpo
do
jovem,
encontram
uma
flor
em
seu
lugar.
Segundo
Medeiros
(2000),
ao
contrário
de
um
conhecimento
filosófico,
o
“conhece-‐te
a
ti
mesmo”
que
solicita
uma
reflexão
interior,
um
conhecimento
da
razão;
o
conhecimento
mitológico
do
oráculo
de
Juno
refere-‐se
ao
conhecimento
do
corpo,
à
vaidade,
ao
amor
apenas
a
si
próprio,
afinal
“Narciso
acha
feio
o
que
não
é
espelho”15:
14
Cf.
Margarida,
2000,
p.61.
15
Trecho
da
música
“Sampa”
de
Caetano
Veloso.
52
Conforme
Ieda
Tucherman
(2012),
frente
ao
espelho,
o
agora
absoluto
é
mortal
ou
perigoso,
no
mínimo.
Além
do
mais,
a
nossa
cultura
ocidental
tem
sido
“uma
poderosa
construtora
de
espelhos
e
imagens
legisladoras
de
princípios
de
inclusão
e
exclusão,
natureza
e
cultura,
mesmo
e
outro”
(p.21).
Dentre
as
quais,
a
imagem
mais
radicalmente
privilegiada
talvez
tenha
sido
a
imagem
do
corpo,
o
que
parece
explicar
sua
longevidade
por
um
lado,
e
por
outro
lado
justificar
o
estado
de
aflição
com
a
crise
do
corpo.
No
primeiro
caso,
sobre
a
longevidade
do
corpo,
a
autora
faz
referência
à
admiração
frente
ao
corpo
humano
que
fora
referida
por
Nietszche16,
e
que
existe
ainda
hoje.
A
Ideia
é
compartilhada
por
físicos
dedicados
ao
estudo
da
cosmologia
científica
quando
encontram
dados
surpreendentes
sobre
a
idade
do
universo
ou
uma
nova
espécie
de
vida
encontrada
há
muito
tempo.
No
entanto,
a
ideia
da
imagem
do
corpo
próprio
e
ideal
mostrou
estar
em
crise
na
contemporaneidade,
com
o
surgimento
de
próteses,
clonagem,
cyborgs,
biologia
molecular
e
novas
técnicas
cirúrgicas
e
de
visualização
(Tucherman,
2012).
No
século
XVI,
época
das
primeiras
expedições
feitas
no
Brasil,
os
portugueses
tinham
como
hábito
oferecer
espelhos
e
outras
coisas
que
refletissem
a
imagem
para
mostrar
ao
nativo
que
o
seu
corpo
era
considerado
“como
diferença
dos
elementos
da
natureza,
mas
também
dos
‘homens
brancos’”
(2012,
p.25).
A
diferença,
entretanto,
já
era
há
muito
tempo
representada
no
livro
de
Gênesis
da
Bíblia,
quando
apresenta
o
homem
feito
por
Deus
como
diferença
da
natureza,
quando
“Deus
fez
desfilar
diante
de
Adão
todos
os
animais
e
a
cada
um
este
concedeu
um
nome
diferente
do
seu”
(Tucherman,
2012,
p.
25).
Também,
através
de
sua
costela,
Deus
criou
a
sua
companheira,
Eva,
totalmente
diferente
de
si.
Antes
mesmo
do
Cristianismo,
na
civilização
grega,
o
corpo
da
mulher
já
não
era
incluído
na
concepção
de
corpo
perfeito.
O
que
significa
dizer
que
em
nossa
cultura
“o
que
parece
contínuo
e
consistente
é
a
necessidade
de
constituir
um
locus
de
diferença,
de
alteridade
(...)”
(Idem,
2012,
p.96).
16
“O
que
é
mais
surpreendente
é
bem
mais
que
o
corpo:
não
deixamos
de
nos
maravilhar
com
a
ideia
de
que
o
corpo
humano
se
tornou
possível”
(Nietzsche
apud
Tucherman,
2012,
p.
22).
53
mulher
mais
bela
do
reino.
Essa
verdade
que
o
espelho
não
se
envergonha
de
dizer
ou
de
refletir
em
sua
superfície,
como
na
fotografia,
permitiu
o
entendimento
de
que
a
imagem
registrada
do
mundo
“real”
se
apresenta
da
forma
como
o
mundo
“realmente”
se
apresenta.
A
fotografia
foi
distinguida
como
fonte
de
conhecimento
e
instrumento
do
saber
científico
devido
ao
efeito
de
“mimese”
produzido
entre
a
imagem
e
seu
referente.
Para
Aristóteles,
a
mimesis
é
um
veículo
de
conhecimento,
enquanto
que
no
entender
de
Derrida
(1971
apud
Medeiros,
2000),
a
mimesis
se
manifesta
através
da
metáfora,
“desligado
da
própria
coisa
que
no
entanto
visa”
(p.66).
Trata-‐se
de
uma
referência
que
não
está
no
mesmo
espaço
do
referente,
mas
está
conectado
ao
objeto.
O
espelho
ainda
hoje
conserva
uma
relação
com
seu
poder
místico,
como
objeto
que
“devolve”
a
imagem
verdadeira.
Ao
me
ver
antes
de
sair
de
casa,
acredito
estou
me
vendo
como
os
outros
me
vêm.
Por
isso,
“espelho
e
retrato
são
pensados
em
função
um
do
outro”
(Melchior-‐Bonnet,
2016,
p.216).
Os
espelhos
eliminam
a
tridimensionalidade
do
objeto,
podem
inverter
a
imagem,
produzir
distorções,
portanto,
“como
as
câmaras
fotográficas,
se
regem
por
intenções
de
uso
e
seu
repertório
de
experiências
abarca
desde
a
constatação
científica
até
a
fabulação
poética”
(Fontcuberta,
2015,
p.40).
54
imagem,
ou
seja,
sua
reflexão;
no
outro
há
a
frustração
do
desejo,
“a
presença
escondida”,
a
não-‐imagem.
Quando
a
carta
de
Pero
Vaz
de
Caminha
descrevia
“aquele”
povo
encontrado
no
Brasil,
os
“índios”,
o
escrivão
se
perguntava
se
eram
da
raça
humana
ou
não.
E
embora
os
povos
indígenas
e
africanos
não
possuíssem
sinais
de
monstruosidade
clássica,
a
humanidade
de
ambos
os
povos
foi
sempre
questionada
pelos
portugueses
(Tucherman,
2012).
Esses
corpos
monstruosos
em
tudo
diferiam
do
corpo
europeu,
este
corpo
narcísico,
que
condenou
à
morte
a
imagem
desses
corpos
por
ser
a
alteridade,
a
diferença
de
suas
imagens
no
espelho.
Mas,
ao
mesmo
tempo
que
55
sentiam
repulsa,
também
eram
atraídos
e
possuíam
à
força
os
seus
corpos
e
de
todas
as
maneiras.
Essa
perturbação
tem
como
fonte
um
fascínio
pelo
desconhecido,
pela
impossibilidade
de
ser
como
o
outro.
A
figura
da
monstruosidade,
desse
modo,
exerce
uma
função
simbólica
que
perturba
os
sentidos
ao
mostrar
o
que
é
“anormal”
enquanto
corpo,
o
corpo
do
outro
diferente
do
Eu.
O
corpo,
na
imagem
refletida,
é
delimitado,
mas
esta
imagem
é
inacessível
na
medida
em
que
não
podemos
estar
onde
está
a
imagem.
Como
na
fotografia,
não
há
como
estar
ao
mesmo
tempo
no
momento
registrado
e
na
imagem:
apenas
a
imagem
pode
estar
lá,
o
corpo
não.
Por
isso,
para
Foucault
(2013),
“fazer
amor
é
sentir
o
corpo
refluir
sobre
si,
é
existir,
enfim,
fora
de
toda
utopia,
com
toda
intensidade,
entre
as
mãos
do
outro”
(p.16).
As
partes
que
não
vemos
no
espelho,
o
lado
mais
inalcançável
das
costas
ou
o
que
não
se
vê
abaixo
dos
pés,
tornam-‐se
sensíveis
quando
tocadas
pelo
outro;
há
um
olhar
que
nos
olha
quando
fechamos
as
nossas
pálpebras.
Por
isso,
fazer
amor,
esse
monstro
que
nos
toca
onde
não
podemos
ver,
talvez
seja
o
único
modo
de
nos
fazer
perceber
que
o
corpo
não
está
ausente
em
vida.
II.3.
Corpo
tendencioso:
A
opacidade
do
discurso
fotográfico
A
fotografia
possui,
desde
a
sua
invenção,
o
credencial
de
objetividade,
principalmente
por
ser
produzida
através
de
uma
câmara,
objeto
que
acreditava-‐se
permitir
um
resultado
“imparcial”,
verdadeiro,
por
supostamente
impedir
a
ação
da
mão
humana,
delegando
uma
autenticidade.
Era
vista
como
uma
“representação
da
própria
natureza,
como
uma
cópia
não
mediatizada
do
mundo
real.
O
próprio
meio
é
considerado
transparente”
(Sekula,
2013[1974],
p.389).
No
entanto,
ao
longo
do
tempo,
tem
sido
reconhecido
o
valor
que
as
imagens
escondem
por
trás
dessa
crença
construída
em
torno
da
transparência
da
imagem
fotográfica.
A
imagem
mecânica
surge
no
século
XIX,
num
ambiente
positivista,
como
resultado
da
intenção
humana
de
encontrar
uma
forma
mecânica
de
representação
do
real,
utilizando
esforços
já
iniciados
algumas
décadas
antes,
pelo
menos
desde
a
época
de
Leonardo
da
Vinci.
Depois
de
ser
apresentada
por
Daguerre
e
Niépce,
para
então
tornar-‐se
de
domínio
público,
“foram
criadas
condições
para
um
desenvolvimento
contínuo
e
acelerado”
(Idem).
Foi
assim
que
a
fotografia
passou
a
desempenhar
um
papel
fundamental
na
transformação
cultural,
especialmente
a
partir
do
momento
em
que
a
imagem
ganhou
terreno
junto
à
palavra
impressa,
com
a
invenção
dos
jornais,
apesar
dos
media
borrarem
as
fronteiras
entre
a
realidade
e
sua
representação.
A
fotografia,
nessa
época,
emergia
rapidamente
como
importante
instrumento
de
comunicação
de
massas.
Os
flashes
e
as
câmaras
de
pequeno
formato
começavam
a
ser
mais
fáceis
de
obter.
A
rotogravura
estava
a
desaparecer
e
as
primeiras
grandes
revistas
ilustradas
que
ocupariam
o
seu
lugar
davam
os
primeiros
passos
para
um
público
que
não
estava
habituado
a
uma
utilização
tão
liberal
das
imagens
fotográficas.
Desenvolviam-‐se
novas
formas
e
técnicas
para
conseguir
acompanhar
as
possibilidades
dos
novos
equipamentos
e
do
mercado,
bem
como
para
criar
novas
necessidades.
À
diversidade
dos
temas
já
legitimados
veio
acrescentar-‐se
todo
um
novo
território
de
assuntos
e
conteúdos.
(Tagg,
2013
[1977],
p.381)
58
Para
Walter
Benjamin,
em
Pequena
História
da
Fotografia,
os
processos
de
captação
de
imagem
no
século
XIX
foram
responsáveis
por
apresentar
uma
forma
diferente
de
experiência
e
recepção
das
imagens.
Antes
do
surgimento
da
linguagem
fotográfica,
não
havia
um
manual
ou
roteiro
para
“olhar”
a
fotografia.
À
primeira
vista,
na
fotografia
se
mostravam
vários
trajetos
possíveis
e
imprevisíveis,
“outros
tantos
tropeços
para
o
olho,
na
profusão
do
visível”
(Frade,
1992,
p.111).
Para
o
observador,
que
via
a
imagem
fotográfica
pela
primeira
vez,
a
visão
trazia
a
sensação
de
perda,
mesmo
que
de
forma
inconsciente.
De
todo
modo,
o
contexto
da
produção
e
recepção
destas
imagens
teve
sempre
um
caráter
ambíguo,
girando
em
torno
dos
pares
vida
e
morte,
verdade
e
representação,
visível
e
invisível,
para
mostrar
que
a
fotografia
ainda
está
coberta
por
uma
densa
nuvem
de
mistério.
Conforme
Miguel
Frade
(1992),
o
realismo
e
a
verdade
positiva
dos
fatos
da
ciência
no
século
XIX
não
impediram
que
as
imagens
se
constituíssem,
em
alguns
momentos,
como
objetos
de
um
“fascínio
do
ínfimo”,
que
ao
impedir
ou
dificultar
uma
restituição
total
dos
aspectos
da
imagem
fotográfica,
fez
vacilar
a
importância
atribuída
à
mimese
fotográfica.
Ele
ainda
conta
que
os
problemas
do
detalhe
estão
relacionados
ao
fato
de
que
as
fotografias,
quando
tudo
parecem
revelar
em
suas
superfícies,
são,
na
verdade,
um
espaço
misterioso
onde
se
joga
com
vários
modos
de
dissimulação,
a
exemplo
do
enquadramento,
profundidade
de
campo,
o
uso
do
flou
(desfocado)
ou,
ainda,
a
utilização
da
raspagem
e
retoque
do
negativo
(trucagem).
Desse
modo,
“qualquer
fotografia
esconde
tanto
ou
mais
do
que
se
dá
a
ver”
e,
por
isso,
todo
e
qualquer
ver
e
saber
pode
aparecer
como
“uma
potência
tendencionalmente
insuficiente”
(Frade,
1992,
p.113).
As
imagens
são
um
ecrã
visível,
“que
na
sua
visibilidade
interposta
forçaria
outras
visibilidades
possíveis
a
manterem-‐
se
indeterminados
como
invisíveis”
(ibidem,
p.114).
No
entanto,
a
fotografia
foi
determinante
para
a
utopia
moderna
ao
materializar
um
arquivo
visual
universal
a
partir
da
armazenagem
de
uma
imensa
variedade
de
amostras
do
mundo,
agindo
de
acordo
com
a
lógica
da
fragmentação
e
classificação
do
planeta.
A
fotografia
passa
a
representar
o
mundo
para
aqueles
que
visualizam
na
imagem
outros
povos
distantes
e
diferentes
de
si.
Sabendo
disso,
o
racionalismo
burocrático
utilizou-‐se
dela
como
instrumento,
como
foi
o
caso
da
polícia
de
Paris
que
criou
o
primeiro
cartaz
fotográfico
em
1871
junto
com
a
inscrição
59
“Procura-‐se”
(Sekula,
2013
[1974]).
Outras
funções
racionais
foram
atribuídas
à
fotografia
seguindo
essa
lógica
de
classificação
do
mundo,
como
foi
o
caso
dos
retratos
de
tribos
indígenas
e
escravos
que
atestavam
as
grandes
conquistas
imperiais
e
expansionistas
da
época.
Embora
as
noções
de
realidade
e
imagem
fotográfica
fossem
até
consideradas
complementares
no
passado,
não
é
a
realidade
que
se
torna
visível
na
superfície
da
imagem,
mas
sim
a
interpretação
do
momento
vivenciado
pelo
fotógrafo.
É
neste
processo
–
entre
o
que
se
viu
e
o
que
se
quer
mostrar
–
que
a
fotografia
tornou
visível
a
definição
identitária
do
Outro.
Por
isso,
para
Allan
Sekula
(2013),
qualquer
encontro
com
a
fotografia
deve
ser
a
nível
de
conotação,
visto
que
um
discurso
fotográfico
“é
um
sistema
no
interior
do
qual
a
cultura
liga
as
fotografias
a
várias
tarefas
representativas”
(p.
390).
Para
ele,
o
discurso
fotográfico
tem
como
função
tornar-‐se
transparente,
mas
se
caracteriza
por
uma
retórica
tendenciosa,
pois
“é
o
sinal
de
que
alguém
envia
uma
mensagem”
(Idem).
O
autor
acrescenta
também
que
Para
ele,
a
inserção
do
“natural
e
universal”
torna-‐se
particularmente
poderosa
na
fotografia
devido
ao
estatuto
fotográfico
de
testemunha
da
realidade.
Esta
vinculação
à
fotografia
é
produzida
e
reproduzida
por
aparelhos
ideológicos
privilegiados,
como
polícia,
tribunais
e
estabelecimentos
científicos.
Apenas
quando
ignorado
o
funcionamento
da
fotografia
no
interior
de
determinados
aparelhos
ideológicos,
o
seu
estatuto
privilegiado
é
deslocado
para
o
entendimento
de
uma
suposta
“natureza”
fotográfica.
Recordando
as
imagens
de
Atget,
Abbott
e
Evans,
temos
também
de
estar
conscientes
de
que
a
hipotética
“foto
bruta”
(frontal
e
clara)
é
ela
própria
localizável
dentro
de
uma
tipologia
histórica
de
configurações
fotográficas:
é
o
formato
característico
das
fotografias
nos
papéis
e
documentos
oficiais,
predominando
também
nesta
estirpe
mais
pura
das
fotografias
de
alta
linhagem
–
a
“fotografia
direta”-‐,
que
muitos
críticos
e
ideólogos
consideram
encarnar
as
“verdades
universais”
acerca
da
existência,
do
“estado
de
ser”,
da
“êxtase
em
contínuo”.
(p.361)
Desse
modo,
Tagg
entende
a
fotografia
como
objeto
utilizado
como
forma
de
manipulação.
Ela
tanto
pode
ser
posta
em
álbuns
como
pode
ser
exposta
em
museus,
servir
como
prova
policial
e
como
controle
de
fronteiras
e
ainda
serem
impressas
em
livros.
O
seu
conteúdo
pode
ser
descrito
por
qualquer
legenda,
assim
como
qualquer
um
pode
criar
uma
legenda
para
a
imagem.
Isso
aconteceu
muito
com
as
imagens
etnográficas
que
foram
consumidas
por
museus,
o
que
levou
a
erros
de
identificação
de
várias
tribos
(Edwards,
2008).
O
turismo
também
pode
deturpar
a
mensagem
fotográfica
através
do
seu
poder
de
“colonização
de
novas
experiências”
(Tagg,
2013,
p.365),
ou
seja,
utilizando
a
fotografia
para
captar
uma
diversidade
de
temas
inimagináveis
e
explorando
o
exotismo
criado
com
base
nas
velhas
concepções
colonizadoras
do
outro.
Mas
ambas
as
utilizações
da
imagem
–
turismo
e
museus
–
são
61
altamente
problemáticas,
pois
enquanto
a
primeira
atua
conforme
um
princípio
da
lógica
de
mercado,
o
segundo
foi
por
muito
tempo
consumidor
de
imagens
que
eram
vendidas
por
fotógrafos
que
determinavam
legendas
de
acordo
com
o
valor
que
elas
possuíam
para
os
acervos.
Referindo-‐se
a
Foucault,
Tagg
(2013)
fala
que
a
criação
e
a
definição
de
um
“estatuto
da
verdade”
em
qualquer
sociedade
faz
parte
de
um
“sistema
de
procedimentos
mais
ou
menos
ordenados
para
a
produção,
regulação,
distribuição
e
circulação
de
declarações”
(p.371).
A
“verdade”
vincula-‐se
a
sistemas
de
poder
que
a
produzem
e
a
suportam,
bem
como
aos
efeitos
de
poder
que
a
induz
e
reorientam.
Por
isto,
cada
sociedade
tem
uma
política
geral
da
verdade
que
nada
mais
é
que
um
conjunto
de
discursos
que
funcionam
como
verdade.
Logo,
a
imagem
fotográfica,
quando
vista
como
documento
atestador
ou
verificador
de
uma
suposta
verdade,
passa
a
ser
utilizada
também
para
imprimir
discursos
de
verdade
que
variam
de
acordo
com
o
que
é
produzido
em
cada
sociedade
com
esse
valor.
Victor
Burgin
em
Looking
at
Photographs
(1982
[1977]),
parte
dos
preceitos
da
semiótica
para
romper
com
a
ideia
de
um
sistema
único
de
significação,
com
signos
fixos,
para
pensar
na
fotografia.
Para
ele,
“há
antes
um
complexo
heterogêneo
de
códigos
a
partir
do
qual
a
fotografia
pode
se
posicionar”
(p.144).
Defende,
desse
modo,
uma
“linguagem
fotográfica”
como
um
processo
de
interação
entre
códigos
de
diversos
tipos,
visuais
ou
verbais,
que
variam
a
cada
imagem.
Também
para
ele,
as
características
do
aparato
fotográfico
ocultam
a
textualidade
da
imagem,
pois
a
dualidade
sujeito-‐objeto
mediada
pelo
aparato
fotográfico
e
pelas
imagens
que
são
produzidas,
tende
a
fazer
com
que
o
receptor
da
imagem
substitua
a
leitura
crítica
por
uma
recepção
passiva.
Nesse
sentido,
quando
nos
deparamos
com
a
imagem
fotográfica,
nós
operamos
no
sentido
de
fornecer
à
imagem
informações
que
ela
não
apresenta
até
conseguir
reconhecer
o
objeto
retratado
para
investir
uma
“identidade
plena”,
isto
é,
a
totalidade,
coerência
e
a
identidade
são
para
ele
uma
projeção,
uma
recusa
da
realidade
que
ocorre
de
forma
instantânea.
Esse
objeto
imaginário,
no
entanto,
não
é
utilizado
no
sentido
comum
da
palavra,
pois
“ele
é
visto,
ele
projetou
uma
imagem”
(p.147).
Burgin
(1982)
acredita
que
a
imagem
fotográfica
está
inextricavelmente
presa
a
atos
sociais
específicos
que
fornecem
uma
intenção
aos
sentidos
apresentados
na
62
imagem,
visto
que
a
sua
própria
estrutura
de
representação
se
envolve
intimamente
com
a
produção
de
ideologia,
ao
organizar
o
mundo
visual
no
interior
de
uma
moldura
que
tem
uma
estrutura
coerente
e
condizente
com
a
tradição
pictórica
ocidental.
A
questão
do
significado,
desse
modo,
foi
vista
como
da
ordem
das
formações
sociais
e
da
psique
do
autor
ou
espectador
da
imagem,
amparada
pelos
discursos
do
marxismo
e
da
psicanálise.
Referindo-‐se
à
ênfase
do
olhar
em
Lacan
e
na
discussão
sobre
o
imaginário,
Burgin
definiu
o
efeito
subjetivo
da
câmara
com
uma
coerência
enganadora
que
tem
como
base
o
olhar
unificador
de
um
sujeito
pontual.
Dessa
forma,
o
objeto
é
representativo
de
um
inconsciente
e
o
objeto
real
está
sempre
ausente.
Segundo
Geoffrey
Batchen
(2007
[1999]),
a
teoria
oferecida
por
Burgin
desloca
a
atenção
da
fotografia
para
procurar
algo
que
necessariamente
tem
a
origem
em
outro
lugar
ao
propor
a
separação
do
corpo
da
psique.
Essa
abordagem
acompanha
uma
corrente
teórica
que
passou
a
ser
desenvolvida
no
fim
dos
anos
1970,
em
que
também
participam
autores
que
falamos
anteriormente,
John
Tagg,
Allan
Sekulla,
além
de
Abigail
Solomon-‐
Godeau,
para
abordar
a
fotografia
num
campo
amplo
da
cultura,
negando
a
possibilidade
da
imagem
fotográfica
possuir
uma
identidade
própria.
Através
de
uma
aproximação
com
a
investigação
da
cultura
material,
Geoffrey
Batchen
(2007)
apresenta,
para
além
de
uma
origem
fotográfica,
uma
reflexão
sobre
o
surgimento
da
fotografia
como
uma
prática
discursiva,
cujo
objeto
de
desejo
parece
ser
a
fotografia.
Para
analisar
esse
discurso,
procura
examinar
não
só
obras
dos
primeiros
“experimentadores”
da
fotografia,
mas
também
outros
discursos
do
mesmo
período,
como
o
da
ciência
e
da
cultura
material.
Com
amparo
de
uma
modalidade
crítica
da
história
que
tem
base
na
genealogia
de
Foucault
e
da
desconstrução
de
Derrida,
o
autor
procurou,
em
Burning
with
Desire,
reescrever
a
história
tradicional
das
origens
da
fotografia
e
confrontar
as
análises
realizadas
no
pós-‐modernismo,
que
determinou
que
todo
significado
está
no
contexto.
Para
Batchen
(2007),
aqueles
autores
pós-‐modernistas
desenvolveram
uma
concepção
particular
de
fotografia
que
era
central
entre
os
autores
anglo-‐americanos
da
época:
um
olhar
para
o
sentido
contextual
da
imagem,
conectando
sentidos
que
expressam
experiências
de
classe,
raça,
gênero
e
nacionalidade.
Ao
se
contrapor
ao
formalismo
que
insistia
que
a
fotografia
é
natureza,
o
pós-‐modernismo
passou
a
63
defender
que
fotografia
é
cultura.
Desse
modo,
acabou
por
oferecer
a
mesma
economia
“logocêntrica”
(Derrida)
da
análise
produzida
no
formalismo
modernista,
oferecendo
uma
ideia
que
é
tomada
como
definitiva
e
irrefutável.
Essa
retenção
de
uma
lógica
estruturalista,
diz
Batchen
(Idem),
também
limita
a
relação
dessas
discussões
com
a
questão
do
poder,
pois
ao
reconhecer
a
fotografia
sempre
como
manifestação
de
poder
externa
a
ela,
termina
por
apresentar
também
a
separação
da
fotografia
do
corpo.
Na
teoria
proposta
por
Tagg,
por
exemplo,
Batchen
encontrou
duas
consequências
problemáticas:
Primeiramente,
o
“sujeito”
da
fotografia
surge
como
“efeito”
da
produção
de
ideologia,
como
se
o
corpo
estivesse
separado
da
mente
novamente;
depois,
o
autor
estabelece
uma
lógica
de
prioridades
na
qual
o
poder
sempre
precede
a
fotografia,
ou
seja,
o
poder
do
Estado
surge
como
anterior
à
representação.
Desse
modo,
situando-‐se
a
partir
da
Idade
Moderna,
Batchen
fala
que
a
fotografia
é
produto
do
sujeito
que
desponta
na
modernidade
e
que
abandona
os
seus
entendimentos
na
Idade
Clássica.
A
fotografia
se
inscreve
assim
como
um
“palimpsesto”,
isto
é,
como
“um
acontecimento
que
se
inscreve
a
si
mesmo
no
espaço
simultaneamente
marcado
e
deixado
em
branco
pelo
súbito
colapso
da
filosofia
natural
e
de
sua
visão
do
Iluminismo”
(Batchen,
2007,
p.186).
Para
o
autor,
a
origem
da
fotografia
mostra
na
verdade
que
ela
não
é
fixa
e
imutável,
mas
resulta
em
um
perturbador
jogo
de
diferenças
(différance),
onde
os
comentaristas
pretendem
identificá-‐la
com
a
natureza
(formalistas)
ou
com
a
cultura
(pós-‐modernistas).
Na
verdade,
a
fotografia,
em
sua
análise,
se
mostra
formada
por
uma
multiplicidade
de
fatores,
uma
junção
entre
imagem,
tecnologia,
modos
de
ver,
conhecimento
do
fotógrafo,
etc.,
e
por
isso
irredutível
ao
entendimento
de
que
a
imagem
se
conforma
apenas
segundo
o
ponto
de
vista
do
fotógrafo
que
exerce
o
poder
ou
de
qualquer
categoria
que
seja
externa
ou
anterior
à
própria
fotografia.
Por
ser
pensada
como
“o
jogo
de
uma
diferença
que
sempre
difere
de
si
mesma”
(Batchen,
2007,
p.187),
conforme
o
entendimento
da
differénce
de
Derrida,
o
que
confere
a
diferição
e
diferenciação
de
sentido,
a
fotografia
além
de
ser
vista
como
efeito
da
sociedade
moderna,
deve
ser
também
pensada
como
irredutível
a
ela
mesma,
pois
produz
várias
aberturas
para
produção
de
conhecimento.
Não
sendo
pós-‐
64
moderna
nem
formalista,
a
história
da
fotografia
proposta
por
Batchen
incorpora
os
dois
olhares,
se
põe
ao
meio
das
duas
correntes
de
interpretação,
e
utiliza
Foucault,
base
que
também
foi
recorrente
no
pós-‐modernismo,
para
mostrar,
através
do
conceito
de
disciplina,
“a
legitimação
para
uma
leitura
da
história
da
fotografia
que
identifica
esta,
como
base
na
sua
‘transparência’,
como
particularmente
apta
a
servir
a
construção
do
‘real’
por
parte
das
estruturas
de
poder”
(Medeiros,
2010,
p.59).
Dessa
forma,
ao
invés
de
pensá-‐la
como
efeito
de
poder,
a
fotografia
passa
a
ser
pensada
em
sua
relação
com
discursos
diversos,
de
modo
que
se
recusa
a
se
instalar
em
algum
dos
pólos
de
identificação
existentes,
seja
natureza,
cultura,
contexto
da
imagem,
os
media.
Por
isso,
quando
a
autora
pensa
na
fotografia,
ela
fala
dela
como
produto
do
encontro
entre
as
pessoas
que
são
ambas
protagonistas,
fotógrafo
e
fotografado,
câmara
e
espectador.
Mas
esse
“evento”
que
acontece
entre
pessoas,
como
ela
mesma
denomina,
não
necessariamente
resulta
em
uma
imagem
fotográfica.
Muitas
vezes,
mesmo
quando
a
câmara
ainda
estiver
desligada,
as
pessoas
ainda
verão
uma
fotografia
sendo
feita
através
da
imaginação.
Porém,
a
fotografia
produzida
ou
não
neste
“evento”
torna-‐se
um
documento
rico
que
pode
ser
usado
na
constituição
de
acontecimentos,
tornando-‐se
também
único,
no
sentido
de
que
não
se
pode
reivindicar
quem
possui
uma
posição
soberana
neste
encontro
que
foi
inscrito
na
fotografia
(Azoulay,
2010).
No
caso
de
inexistência
da
imagem,
a
imaginação
é
acionada
no
tempo
presente
como
dever
civil
de
ação
para
refazer
o
que
a
fotografia
poderia
ter
gravado,
caso
fosse
produzida.
“Quando
a
suposição
é
de
que
não
só
as
pessoas
fotografadas
estiveram
lá,
mas
que,
além
disso,
elas
ainda
estão
presentes
lá
quando
eu
estou
assistindo
essas
fotos,
meu
olhar
sobre
elas
está
menos
suscetível
de
65
tornar-‐se
imoral”
(Azoulay,
2008,
p.16).
Desse
modo,
a
fotografia
age
ao
convocar
o
outro
que
a
olha
para
a
ação.
II.4.
Corpo
controlado:
classificações
raciais,
médicas
e
policiais
A
fisionomia
surgiu
no
século
XIX
como
espelho
da
alma.
Johann
Kaspar
Lavater
(1741-‐1801),
criador
da
fisionomia,
acreditava
que
essa
ciência
permitia
o
conhecimento
dos
homens
através
dos
traços
fisionómicos,
pois
no
rosto
poderia
ser
revelada
a
verdade
que
está
escondida
no
coração.
Para
isso,
eram
isolados
o
perfil
da
cabeça
e
da
face,
atribuindo
uma
característica
significante
a
cada
elemento:
testa,
olhos,
orelhas,
nariz,
queixo,
etc.
(Sekula,
1986).
O
carácter
individual
deveria
ser
julgado
a
partir
de
um
cruzamento
das
leituras
dos
elementos
faciais,
onde
cada
elemento
estabelecia
uma
característica
da
índole
do
indivíduo
analisado.
De
acordo
com
a
fisionomia,
o
homem
se
mostrava
ao
mesmo
tempo
visível
e
invisível,
alma
e
corpo,
moral
e
físico.
Mas
a
personalidade,
o
invisível,
tornava-‐se
visível
com
a
análise
de
cada
detalhe
do
rosto.
67
A
frenologia
também
surgiu
no
século
XIX
com
as
pesquisas
do
físico
Franz
Josef
Gall,
que
buscava
identificar,
a
partir
da
topografia
do
crânio,
áreas
que
correspondessem
à
localização
das
faculdades
mentais
do
cérebro.
A
frenologia
partilhava
com
a
fisionomia
a
crença
de
que
a
superfície
do
corpo,
nomeadamente
do
rosto
e
cabeça,
“eram
portadoras
dos
signos
externos
do
caráter
interior”
(Sekula,
1986,
p.140).
Assim
como
a
fisionomia,
a
frenologia
foi
uma
disciplina
comparativa,
taxonómica,
que
procurava
englobar
uma
imensa
diversidade
humana
como
que
para
constituir
um
grande
arquivo
à
espera
de
leitura.
Esta
ciência
era
acessível
a
todos,
bastava
a
leitura
dos
livros
e
manuais
de
frenologia
para
dominar
os
códigos
interpretativos
e,
então,
realizar
a
leitura
facial.
A
fisionomia
e
a
frenologia
representaram,
juntas,
a
hegemonia
ideológica
capitalista
que
defende
uma
divisão
hierárquica
de
trabalho
e
a
individualidade.
Essas
disciplinas
foram
responsáveis
por
estabelecer
motivos
orgânicos
que
serviram
como
prova
ou
autenticação
da
dominação
intelectual
de
um
sobre
os
outros.
Isto
teve
bastante
influência
na
arte,
literatura
e
na
cultura
geral
em
meados
do
século
XIX.
Teve
bastante
influência
também
no
processo
de
identificação
das
massas
de
estrangeiros
que
se
tornavam
trabalhadores
urbanos
com
o
surgimento
das
cidades,
momento
em
que
o
novo
contingente
dava
margem
para
a
equivalência
entre
o
povo
e
a
periculosidade18.
A
fotografia
e
a
frenologia
são
contemporâneas,
e
isso
foi
determinante
para
que
a
fotografia
servisse
como
ferramenta
valiosa
para
a
frenologia.
Na
medida
em
que
a
câmara
fotográfica
permitia
rapidez
e
veracidade
à
constituição
de
um
arquivo;
a
frenologia
poderia
ter
seus
estudos
validado
pela
imagem
mecânica.
Surgem,
as
duas,
numa
época
de
alta
movimentação
e
instabilidade
social,
o
que
também
levou
ao
uso
da
fotografia
e
da
frenologia
na
administração
social
e
sua
organização.
A
união
de
fato
com
o
Estado
burocrático
se
deu
pelas
mãos
do
policial
parisiense
Alphonse
Bertillon
(1853-‐1914)
nos
anos
1880,
quando
criou
o
primeiro
sistema
de
identificação
criminal
moderno
que
cruzava
aspectos
individuais
com
os
traços
fisionômicos
para
definir
formas
que
supostamente
representam
o
desvio
social.
18
Antes
disso,
no
século
XVII
existia
uma
sociedade
anónima
e
uma
população
desconhecida.
O
trabalho,
o
lazer,
o
convívio
com
a
família
eram
atividades
separadas,
que
eram
vividas,
cada
uma,
em
espaços
fechados,
protegidos
do
olhar
dos
outros,
espaços
particulares
(Tucherman,
2012).
68
Figura
1
–
“Cartão
de
arquivamento”
de
Bertillon,
1893
Fonte:
Internet
Bertillon
desenvolveu
tal
técnica
por
causa
de
sua
alta
demanda
de
trabalho.
Ela
consistia
em
uma
padronização
das
gravações
policiais
para
possibilitar
a
identificação
dos
reincidentes
no
“cartão
de
arquivamento”
(Fig.
1).
No
cartão,
eram
reunidas
medidas
detalhadas
dos
criminosos,
descrição
de
marcas
de
identificação
e
duas
fotos
–
de
frente
e
de
perfil
–
que
eram
tiradas
com
lentes
focais
e
iluminações
padrões.
Essas
fotografias
de
registros
de
prisão
com
sua
técnica
de
iluminação
e
foco
padrão,
para
Sekula
(1986),
fizeram
florescer
a
técnica
do
retrato
fotográfico.
A
fotografia
passou,
assim,
a
integrar
o
sistema
do
racionalismo
burocrático.
Tornou-‐se
ferramenta
imprescindível
para
identificação
e
arquivamento
da
nova
massa
de
trabalhadores
urbanos.
A
classificação
tipológica,
neste
sentido,
tornou
a
grande
massa
de
estrangeiros
na
cidade
mais
“familiar”
com
a
catalogação
da
fisionomia
e
a
utilização
de
generalizações
convenientes.
Mas,
na
verdade,
a
preocupação
com
a
identificação
e
arquivamento
pelos
poderes
dominantes
esteve
muito
mais
conectada
a
uma
necessidade
de
vigilância
e
controlo
do
que
a
uma
criação
de
um
sistema
de
segurança
para
as
instáveis
cidades
recém-‐formadas.
Além
disso,
este
procedimento
classificatório
foi
responsável
pela
generalização
de
identidades
que
condenava
os
“estrangeiros”
à
uma
caracterização
circunscrita
por
elementos
fisionômicos
e
significações
impostas.
A
fotografia
era
a
técnica
objetiva
e,
por
isso,
era
uma
ferramenta
perfeita
para
arquivamento
e
documentação
das
fisionomias,
como
também
veio
a
ser
na
tarefa
de
catalogação
de
doenças
em
manicómios.
Em
1860,
o
fotógrafo
Charles
Le
69
Nègre
realizou
um
registo
fotográfico
sobre
a
situação
dos
doentes
no
manicómio
imperial
de
Vincennes
e
Baillarger,
como
também
desenvolveu
uma
série
de
fotografias
de
Salpêtrière,
quando
Charcot
e
Richer
iniciaram
a
produção
da
Nova
Iconografia
da
Salpêtrière
(Tagg,
2005
[1988]).
Para
Didi-‐Huberman
(2007),
esse
processo
de
classificação
de
doenças
coordenado
por
Charcot,
professor
de
anatomia
patológica
de
Salpêtrière,
parecia
com
uma
"fábrica
de
imagens",
a
que
Foucault
(2008
[1972])
chamou
de
"clínica
da
observação":
Além
de
criar
o
conceito
classificatório
de
histeria,
quando
a
diferenciou
da
histeria,
lhe
concedeu
uma
identidade
visual.
Charcot
começou
a
trabalhar
em
La
Saltêtrière
em
1862
e
foi
nomeado
professor
de
anatomia
dez
anos
depois.
Em
1881,
com
apoio
político,
conseguiu
criar
a
primeira
cátedra
de
doenças
nervosas.
Quando
transformou
o
maior
manicômio
da
França
em
local
de
clínica
e
ensino,
criou
também
o
Serviço
de
Fotografia
que
funcionava
num
regime
de
colaboração
entre
os
seus
discípulos
e
fotógrafos.
Contraditoriamente,
a
produção
de
imagens
fotográficas
que
tinham
a
função
de
identificar
as
doenças
o
mais
realisticamente
possível,
eram
produzidas
com
o
auxílio
da
encenação
dos
doentes.
Segundo
Didi-‐Huberman
(2007),
a
fotografia
era
a
“verdadeira
retina”
do
cientista,
por
isso,
ela
foi
decisiva
para
a
invenção
da
histeria,
com
todos
os
estágios
fotografados
e
exibidos
como
prova
de
que
o
diagnóstico
era
autêntico.
Charcot
descreveu
a
histeria
em
quatro
estágios
distintos
da
doença
e
disse
que
tais
estágios
eram
aspectos
universais:
Havia
primeiramente
um
período
“epileptoide”,
no
qual
a
paciente
sofria
ataques.
Na
fase
seguinte,
no
“período
de
contorções
e
grands
mouvements”,
a
paciente,
como
o
nome
indica,
apresentava
demonstrações
físicas
dramáticas,
muitas
vezes
acompanhada
de
choro
e
gritos,
e
culminando,
em
alguns
casos,
na
adoção
da
posição
arc-‐en-‐cercle,
na
qual
a
paciente
de
dobrava
pra
trás
numa
contorção
aparentemente
impossível,
com
apenas
a
parte
de
trás
da
cabeça
e
os
calcanhares
tocando
o
chão.
Charcot
também
se
referiu
a
esses
episódios
como
clownisme.
Então,
especialmente
nas
pacientes
do
sexo
feminino,
havia
a
fase
das
attitudes
passionelles,
na
qual
posavam
como
estando
crucificadas
ou
em
vias
de
um
orgasmo.
(Scull,
2009,
p.115)
A
“imagem
da
histeria”,
como
ficou
vulgarmente
conhecida
a
produção
de
Charcot
(Fig.
2),
procurava
transmitir
o
saber
médico
das
doenças
nervosas
através
de
uma
estetização
da
patologia.
Charcot
personificou
uma
“autoridade
museológica
70
sobre
o
corpo
doente”
(Didi-‐Huberman,
2007,
p.
17)
ao
nomear
patologias
e,
ao
mesmo
tempo
em
que
construiu
uma
narrativa
fotográfica
da
histeria,
generalizou
a
patologia.
Para
Charcot,
a
histeria,
mal
feminino,
poderia
estar
conectada
ao
período
menstrual.
Até
hoje,
e
muito
frequentemente,
as
mulheres
são
acusadas,
principalmente
por
homens,
de
possuírem
problemas
no
período
e/ou
histerismo
quando
não
se
comportam
de
acordo
com
o
esperado
pela
sociedade.
Segundo
Eduarda
Neves
(2016,
p.37),
a
constituição
desse
arquivo
da
histeria,
no
qual
a
fotografia
procura
“desocultar”
os
problemas
mentais
inconfessáveis
por
seus
portadores,
representa
a
“individualização
como
facto
político,
integrada
no
dispositivo
geral
de
poder”
(Idem,
p.38).
Tentou-‐se,
assim,
materializar
uma
suposta
conexão
entre
identidade
e
“verdade”
nos
moldes
de
um
grande
inventário
de
gentes
que
servia,
ao
fim,
para
vigilância
dos
“desviantes”
da
sociedade
pelo
Estado
burocrático
e
burguês.
Desse
modo,
classificavam
as
diferenças
individuais
a
partir
de
um
estatuto
“de
singularidade
ou
de
desvio”
(Neves,
2016,
p.38),
para
agrupar
povos
“sem
cultura”
ou
com
comportamentos
“inadequados”
que
iriam
servir
como
representação
na
imagem
da
alteridade
ou
da
cultura
inferior.
Figura
2
–
A
imagem
da
histeria
na
Iconographie
photographique
de
La
Salpêtrière
(1876-‐80)
Fonte:
https://www.flickr.com/photos/kristeberlin/4384320687/
71
tornou-‐se
ferramenta
de
poder
para
identificação
do
que
seria
uma
“anormalidade”
na
sociedade
e
mostrar
que
todos
estão
sob
total
vigilância.
72
outras.
Com
o
amparo
científico
e
“objetivo”,
ele
conseguiu
fazer
com
que
estas
ideias
tivessem
grande
penetração
pública,
com
foi
o
caso
da
ideia
de
eugenia
que
conseguiu
uma
grande
adesão
no
nazismo.
Essas
práticas
classificatórias
que
tiveram
como
base
a
frenologia
e
a
fisionomia
ainda
hoje
se
fazem
presentes
na
burocracia
policial
e
médica.
A
polícia
ainda
utiliza
o
retrato
em
estúdio
para
identificar
criminosos;
a
medicina,
com
o
uso
de
softwares,
utiliza
a
composição
fotográfica
para
desenhar
o
rosto
do
futuro
filho
através
do
cruzamento
da
imagem
dos
pais
ansiosos.
Segundo
Henning
(1996),
o
fato
dessas
técnicas
fazerem
parte
do
quotidiano
contemporâneo
faz
com
que
muita
gente
ainda
não
consiga
associar
as
práticas
fisionómicas
às
ideias
racistas
ou
de
vigilância
e
de
controle
social.
Figura
3
–
Retratos
compostos
feitos
com
a
combinação
de
pessoas
diferentes
com
a
técnica
de
Francis
Galton
(1822-‐
1911)
Fonte:
http://galton.org/
Os
aparatos
reguladores
e
disciplinares,
como
visto,
estiveram
intimamente
vinculados,
no
século
XIX,
á
formação
de
novas
ciências
sociais,
antropológicas,
como
a
psiquiatria,
a
polícia
e
a
etnografia
que
tomou
o
corpo
como
campo
de
estudo
e
ação.
Vale
ressaltar
que
grande
parte
das
imagens
coloniais
foram
realizadas
com
a
mesma
técnica
do
retrato
policial
criadas
por
Bertillon,
conhecida
como
bertillonagem,
ao
por
de
frente
e
de
perfil
o
negro/negra
ou
índigena
para
melhor
observação
dos
traços
fisionómicos.
Isto
demonstrava
que
(...)
as
classes
trabalhadoras,
os
povos
colonizados,
os
criminosos,
os
pobres,
os
favelados,
os
doentes
e
os
loucos
foram
designados
como
objetos
passivos
-‐
ou,
nessa
estrutura,
como
os
objetos
"feminizados"
–
do
conhecimento.
Sujeitos
ao
escrutínio,
forçados
a
73
emitir
sinais,
porém
alijados
do
controle
de
significado,
esses
grupos
eram
representados
e
intencionalmente
mostrados
como
incapazes
de
falar,
agir
ou
se
organizar
sozinhos.
(Tagg,
2005
[1988],
p.
20).
Este
modelo
de
identificação
implantou
a
sujeição
de
indivíduos
a
normas
de
controle
e
de
estereotipagem
para
serem
vistos
como
diferentes
e,
assim,
compor
um
grande
arquivo
de
alteridades
para
acesso
do
Estado.
Toda
essa
crença
de
“verdade”
atrelada
à
fotografia
sempre
foi
acompanhado,
por
fim,
de
um
discurso
ideológico
criado
pelo
poder
hegemônico.
Aproveitou-‐se
da
“realidade”
fotográfica
para
classificar
e
justificar
a
exclusão
daqueles
que
não
se
encaixam
nos
requisitos
de
uma
sociedade
chauvinista,
branca
e
europeia
que
segue
firme
e
forte
na
fabricação
da
alteridade
desde
o
período
colonial.
74
inferioridade
social
emoldurava
o
significado
das
representações
dos
objetos
de
supervisão
ou
recuperação”
(Tagg,
2005,
p.
53).
O
retrato,
para
Tagg
(2005),
seria
um
signo
cuja
finalidade
é
tanto
a
descrição
de
um
indivíduo
como
inscrição
da
identidade
social,
mas
é
também
mercadoria,
luxo,
que
confere
posição.
Obter
um
retrato
no
século
XIX
não
era
acessível
a
todas
camadas
sociais,
pois
havia
uma
“aura”
preciosa
com
as
primeiras
miniaturas
fotográficas,
que
eram
impressas
em
vidro,
como
também
nas
coleções
de
carte-‐de-‐
visite
e
de
figuras
públicas.
Assim,
as
classes
sociais
que
ascenderam
na
hierarquia
social
procuravam
um
fotógrafo
para
poder
então
entrar
para
o
hall
dos
afortunados
que
poderiam
ter
uma
foto
de
si,
o
que
servia
para
exibir
seu
alcance
na
sociedade.
Foi
assim
que
a
produção
do
retrato
tornou-‐se
também
“a
produção
de
significados
em
classes
sociais
rivais
que
reivindicam
sua
presença
na
representação”
(p.53).
Ter
um
retrato
de
si
ou
da
família
significava
ascensão
social
para
as
classes
médias
e
médias-‐
baixas,
dava-‐lhes
um
lugar
de
maior
importância
social,
económica
e
política.
Figura
4
–
Honoré
Daumier.
Pose
de
um
homem
da
natureza
(acima)
e
pose
de
um
homem
civilizado
(abaixo),
em
Croquis
Parisiens,
1853
Com
a
fotografia
veio
o
“espanto”
provocado
pela
obsessão
do
detalhe,
disse
Miguel
Frade
(1992).
A
imagem
mecânica
tornou
possível
ver
o
“infinitamente
pequeno”,
cada
detalhe
do
rosto
e
do
corpo
poderia
ser
visto
minuciosamente
e
analisado
na
imagem
fotográfica.
Entretanto,
a
longa
exposição
frente
ao
daguerreótipo
aproximou
o
processo
fotográfico
ao
processo
também
longo
da
pintura
de
retratos.
Para
que
as
imagens
mecânicas
pudessem
ter
maior
definição,
criou-‐se
dispositivos
que
fixam
a
cabeça
e
joelhos
para
que
o
fotografado
permanecesse
em
uma
pose
rígida
no
momento
da
foto,
dando
uma
aparência
de
“fotografia
de
monumento”
(Benjamin,
1992,
p.121).
Esta
pose
estática,
que
muito
se
assemelha
à
de
um
morto
pela
imobilidade,
contribuiu
definitivamente
para
afastar
muitas
pessoas
da
câmara
escura,
pois
era
Nessa
passagem
do
retrato
pintado
para
o
fotográfico,
—
que
ora
foi
detestado
pelos
pintores,
ora
foi
utilizado
como
base
para
pinturas
—
permaneceram
ainda
alguns
códigos
estilísticos
da
pintura
na
fotografia
(Medeiros,
2000).
Um
deles,
como
vimos,
refere-‐se
ao
artifício
da
“pose”
para
imitar
as
pinturas
do
século
XVIII.
A
fotografia
tornou
o
retrato
acessível
e
democrático
devido
ao
desenvolvimento
tecnológico
que
permitiu,
mais
tarde,
o
estabelecimento
um
preço
acessível
a
todas
as
camadas.
Também
trouxe
o
entendimento
de
“autenticidade”
à
imagem
mecânica,
aspecto
que
na
verdade
serviu
para
esconder
um
dos
aspectos
da
pose,
que
é
a
simulação
de
identidades.
76
Para
Annateresa
Fabris
(2004),
no
momento
em
que
o
retratado
passa
a
utilizar
o
corpo
como
performance
de
si,
com
a
utilização
do
artifício
da
pose,
o
retrato
passa
a
ser
constituído
por
uma
dobra
de
significados
que
vacilam
entre
o
que
se
é
e
o
que
se
deve
parecer,
segundo
as
expectativas
do
fotógrafo.
O
resultado
acaba
por
gerar,
assim,
outras
imagens
de
si
ou
para
si,
ou
seja,
o
retrato
surge
como
uma
espécie
de
simulacro,
ou
ainda,
como
representação
de
uma
identidade
inventada,
pois
o
“indivíduo
deseja
oferecer
à
objetiva
a
melhor
imagem
de
si,
isto
é,
uma
imagem
definida
de
antemão,
a
partir
de
um
conjunto
de
normas,
das
quais
faz
parte
a
percepção
do
próprio
eu
social”
(Fabris,
2004,
pp.35-‐6).
77
que
no
retrato
pintado
o
artista
pode
atribuir
uma
imagem
“melhorada”
ao
retratado,
o
que
não
ocorre
com
a
imagem
mecânica:
(...)
ora,
a
partir
do
momento
em
que
me
sinto
olhado
pela
objectiva,
tudo
muda:
preparo-‐me
para
a
pose,
fabrico
instantaneamente
um
outro
corpo,
metamorfoseio-‐me
antecipadamente
em
imagem.
Esta
transformação
é
activa:
sinto
que
a
Fotografia
cria
o
meu
corpo
ou
o
mortifica
a
seu
bel-‐prazer
(...)
(Barthes,
1989,
p.
25)
Este
problema
que
acompanha
o
status
de
realidade
e
a
conformação
da
identidade
do
fotografado
parece
ser
recorrente
na
teoria
e
crítica
fotográfica.
Por
isso,
Baudrillard
(1996)
afirma
que
o
mais
sensato
seria
não
procurar
a
identidade
por
trás
das
aparências,
mas
sim
“procurar
a
máscara
por
detrás
da
identidade”
(p.120).
Esta
“máscara”
que
esconde
a
identidade
é
o
que
na
verdade
mostra
o
olhar
do
Outro
sobre
si.
Isto
quer
dizer
que
“perante
a
objectiva,
eu
sou
simultaneamente
aquele
que
eu
julgo
ser,
aquele
que
gostaria
que
os
outros
julgassem
que
eu
fosse,
aquele
que
o
fotógrafo
julga
que
sou
e
aquele
de
quem
ele
se
serve
para
exibir
a
sua
arte.”
(Barthes,
1989,
p.
29).
Dessa
forma,
a
fotografia
passa
a
fornecer
uma
imagem
múltipla,
paradoxal,
que
agrupa
em
si
mesma
o
conhecimento
e
a
ilusão.
A
imagem
apresenta
um
duplo,
mas
esse
duplo
não
é
a
imagem
pura,
ele
se
constitui
como
uma
máscara
que
é
adicionada
ao
fotografado.
Apesar
de
falsear
a
imagem
de
si,
essa
máscara
serve
para
mostrar
como
o
retratado
se
vê
a
partir
do
outro;
revela-‐se
como
um
conflito
interior
que
traduz-‐se
por
um
jogo
entre
o
que
se
é
e
o
que
se
espera
que
seja.
Nesse
sentido,
Peggy
Phelan
(1993)
fala
que
todo
retrato
fotográfico
é
fundamentalmente
performativo,
pois
a
representação
fotográfica
do
Eu
precisa
do
Outro
para
acontecer,
visto
que
“para
nos
reconhecermos
num
retrato
(ou
num
espelho),
imitamos
a
imagem
que
imaginamos
que
o
outro
vê”
(Phelan,
1993,
p.36).
O
bom
resultado
do
retrato
se
baseia,
conforme
a
autora,
não
na
performance,
mas
na
qualidade
da
questão
proposta
pelo
fotógrafo
ao
fotografado.
79
A
produção
do
retrato
fotográfico
ainda
implica
um
alto
grau
de
complexidade
quando
direcionadas
a
um
arquivo
fotográfico
ou
mesmo
à
produção
de
fotografias
que
envolvem
duas
culturas
totalmente
distintas,
fotografado
e
fotógrafo/instituição,
pois
são
fabricadas
segundo
as
necessidades
do
produtor,
ou
seja,
da
empresa
que
a
consome.
Neste
contexto,
as
identidades
surgem
na
superfície
da
imagem
como
“semelhanças
mentirosas”
(Fabris,
2004),
pois
imprimem
uma
imagem
que
é
construída
pelo
fotógrafo
e
que
deve
ser
performatizada
pelo
corpo
do
fotografado
de
forma
a
garantir
na
imagem
o
que
o
fotógrafo
espera
ver.
Refletir
sobre
esse
corpo
performativo
no
retrato
refere-‐se,
portanto,
a
uma
compreensão
das
questões
que
são
propostas
pelo
fotógrafo
que
dirige
e
enquadra
a
foto.
Além
disso,
na
análise
dos
retratos
produzidos
no
Brasil
por
portugueses,
estes
que
têm
relações
históricas
complexas
e
profundas
com
a
ex-‐colónia,
coloca-‐se
como
emergência
a
análise
do
contexto
em
que
as
imagens
foram
produzidas,
pois
a
imagem
pode
refletir
o
olhar
do
fotógrafo
pode
reavivar
questões
coloniais
e
de
género
ou
promover
um
novo
olhar
descolonizador.
Segundo
Baudrillard
(2014),
a
imposição
da
beleza
do
corpo
implica
o
erótico.
Por
isso,
na
sociedade
de
consumo,
o
corpo
é
sempre
objeto
que
liberta,
unicamente,
a
pulsão
da
compra.
Seja
para
a
venda
de
produtos
ou
de
cosméticos,
a
publicidade
tem
utilizado
corpos
femininos
para
fabricar
imagens
estereotipadas,
como
a
de
símbolo
sexual
e
a
da
dona
de
casa
submissa,
para
atrair
novos
compradores.
Também,
a
publicidade
tem
sido
responsável
por
representar
o
corpo
da
mulher
baseado
em
graus
de
nudez
explícita
ou
atividade
sexual,
ou
seja,
tem
mostrado
uma
imagem
erotizada
do
corpo
feminino,
transformando-‐o
em
objeto
para
o
olhar
masculino.
80
mais
insidiosa
e
instrumental
forma
de
domínio
e
subjugação
e
objetificação
é
produzida
pelas
imagens
mais
comuns
da
mulher
(o
que
acontece
de
uma
forma
muito
mais
eficaz)
do
que
as
imagens
policiais
ou
obscenas”
(p.
237).
É
neste
sentido
que,
para
a
autora,
a
história
da
fotografia
se
confunde
com
a
história
social
da
mulher,
dado
que
a
fotografia
tende
a
apresentar
um
cariz
voyeur
ou
fetichista
da
mulher
ao
longo
do
tempo.
A
palavra
fetiche
vem
do
latim
facere,
que
significa
fazer
ou
construir.
Esta
palavra
foi
utilizada
pela
primeira
vez
no
século
XV
por
mercadores
e
colonos
portugueses
com
referência
à
veneração
africana
por
amuletos
e
ídolos
religiosos,
ou
seja,
teve
início
com
referência
ao
feitiço
(Hirschfeld,
1982).
Fetichismo
seria,
então,
o
ato
de
adorar
um
fetiche;
de
incorporar
uma
propriedade
mágica
ao
objeto
de
fetiche.
Isso
inclui
a
iconolatria
cristã
que
atribui
poder
aos
santos
que
podem
manifestar-‐se
milagrosamente
no
plano
físico.
Na
psicanálise,
um
objeto
torna-‐se
um
fetiche
quando
é
foco
de
algum
desejo
sexual,
normalmente
associado
ao
sexo
feminino.
Isto
porque
o
fetichista
é
compreendido
como
aquele
que
idealiza
objetos
associados
à
mulher,
como
sapatos
e
batom.
O
que,
segundo
Freud,
em
Três
ensaios
sobre
a
teoria
da
sexualidade
(1974
[1905]),
trata-‐se
de
uma
aberração,
quase
uma
patologia,
pois
substitui
o
ato
sexual
“normal”
do
homem
por
um
objeto.
Fetiche
é
“um
substituto
para
o
pénis
da
mulher
(da
mãe)
em
que
o
menininho
outrora
acreditou
e
–
por
razões
que
nos
são
familiares
–
não
deseja
abandonar
(...),
pois
se
uma
mulher
foi
castrada,
então
a
posse
de
seu
próprio
pénis
estaria
em
perigo”
(p.
180).
A
escolha
do
objeto
de
fetiche
não
depende
da
semelhança
com
o
pênis,
mas
sim
do
momento
de
fratura,
de
trauma,
ocorrido
na
primeira
infância,
quando
o
menino
percebe
que
a
mãe
não
possui
um
pênis.
É
neste
instante
que
o
primeiro
objeto
que
é
visto
torna-‐se
o
seu
fetiche,
objeto
do
momento
em
que
se
instaura
a
própria
angústia
de
castração.
A
crítica
de
filmes
Laura
Mulvey
(1975)
também
utilizou
a
psicanálise
para
uma
profunda
crítica
da
imagem,
sobretudo
a
do
cinema.
Neste
contexto,
a
teoria
psicanalítica
foi
utilizada
para
desvendar
como
“o
inconsciente
da
sociedade
patriarcal
tem
estruturado
a
forma
do
cinema”
(p.
6).
Em
Visual
Pleasure
and
Narrative
Cinema
(1975),
ela
fala
da
existência
de
um
ponto
de
vista
masculino
que
se
mostra
nas
artes
visuais
e
na
literatura.
O
“olhar
masculino”
(male
gaze)
pode
ser
observado
com
o
uso
constante
do
close
da
câmara
para
mostrar
detalhes
do
corpo
da
mulher
ocasionando
a
sua
fragmentação
na
mente
do
espectador.
Com
a
utilização
da
teoria
do
fetichismo,
a
autora
fala
da
objetificação
da
mulher
a
partir
do
momento
em
que
ela
é
representada
como
espetáculo,
instante
em
que
ao
homem
(heterossexual)
é
o
olhar
e
a
mulher
é
a
imagem.
Estas
posições
são
envolvidas
pelo
complexo
de
castração,
momento
em
que
a
mulher
representa
a
falta,
a
diferença
sexual.
Para
escapar
da
ansiedade
da
castração,
o
homem
situa
a
mulher
em
um
posição
desvalorizada
como
punição
(voyeurismo)
ou
substitui
a
figura
feminina
por
um
fetiche
(objeto
de
desejo).
No
entanto,
mais
tarde
a
autora
pensou
no
fetichismo
não
como
pertencente
a
um
olhar
sexual
dominante,
mas
sim
como
uma
forma
culturalmente
dominante
de
ver
o
mundo.
Com
o
artigo
Afterthoughts
on
'Visual
Pleasure
(...),
Mulvey
(1989)
atualizou
seu
pensamento
com
a
inserção
de
dois
outros
elementos:
a
mulher
como
espectador
e
a
personagem
feminina
protagonista.
A
mulher
ao
ser
espectadora
reflete
o
“olhar
masculino”
que
nada
mais
é
do
que
uma
posição
no
mundo,
ou
seja,
retrata
uma
masculinização
da
posição
do
espectador.
A
mulher
assume
um
lugar
82
masculino
para
reviver
o
aspecto
perdido
de
sua
sexualidade,
a
castração,
com
o
olhar
e
o
prazer
e,
neste
sentido,
deixa
de
ser
passiva,
para
exibir
a
masculinidade
como
ponto
de
vista.
Foi
preciso
ver
além
de
uma
oposição
binária,
masculino
e
feminino,
para
que
Mulvey
desenvolvesse
mais
profundamente
essa
sua
teoria
em
Fetishism
and
Curiosity
(1996).
Neste
escrito,
a
mulher
quando
vista
como
espectadora
exerce
função
semelhante
à
de
Pandora
ao
abrir
a
caixa:
a
curiosidade
exerce
um
fascínio
pela
imagem
e,
por
isso,
mostra-‐se
como
fonte
de
saber.
Nesse
caminho,
a
autora
desenvolve
a
ideia
de
uma
“estética
da
curiosidade”
para
contrapor
o
olhar
masculino
que
fetichiza
a
imagem
ao
olhar
curioso
de
Pandora
para
a
caixa.
Mulvey,
dessa
forma,
transforma
o
mito
que
tem
o
significado
misógino,
pois
mostra
a
mulher
como
culpada
por
todo
o
mal
do
mundo,
em
uma
forma
de
olhar
para
a
imagem
com
curiosidade
e
com
dimensão
política
ao
interpretar
imagens.
Para
ela,
“enquanto
curiosidade
é
um
desejo
compulsivo
de
ver
e
saber,
de
investigar
algo
secreto,
fetichismo
é
sustentado
por
uma
recusa
de
ver,
por
uma
recusa
em
aceitar
a
diferença
que
o
corpo
feminino
representa
para
o
masculino”
(1996,
p.
64).
Como
resistência
à
escopofilia
machista,
Mulvey
(1996)
sugere
ainda
e
sempre
a
necessidade
de
modulação
do
seu
próprio
argumento,
para
que
se
permita
uma
relação
mais
dialógica
entre
fetichismo
e
curiosidade.
83
No
senso
comum,
o
fetiche
alcança
o
sentido
de
objeto
para
estímulo
do
desejo.
Este
sentido
foi
moldado
e
repetido
pelos
media,
indústria
cultural
e
pornografia,
que
são
os
meios
responsáveis
pela
venda
dos
conceitos
de
beleza
e
erotismo.
Nesta
era
de
onipresença
das
imagens
e
da
fragmentação
do
corpo
da
mulher,
seja
na
fotografia
ou
no
cinema,
cabe-‐nos
pensar
mais
profundamente
na
questão
de
gênero
que
permeia
toda
a
história
da
fotografia
e
que
inevitavelmente
nos
leva
a
uma
reflexão
sobre
os
conteúdos
que
fornecem
à
mulher
sentidos
na
imagem,
ora
como
um
objeto
de
desejo
a
partir
da
fragmentação
do
seu
corpo,
ora
como
fetiche
que
pode
ser
carregado
e
utilizado
como
instrumento
de
prazer.
Este
último
aspecto
esteve
bastante
conectado
com
a
imagem
da
mulher
na
fotografia
colonial
que
foi
responsável
por
objetificar
a
mulher
duas
vezes:
seus
corpos
eram
objetos
disponíveis
ao
colonizador
e
foram
transformados
em
objeto
fotográfico
para
escrutínio
do
europeu
ou
de
instituições.
Tais
entendimentos
do
corpo
feminino
ainda
ecoam
nas
imagens
contemporâneas,
principalmente
quando
são
representadas
pela
cultura
dominante,
bem
como
quando
são
transmitidas
pelos
meios
dominantes.
Figura 5 – Protestos no ano de 1972 nos Estados Unidos pelos direitos da mulher.
84
Mesmo
após
as
mudanças
sociais
e
a
liberação
sexual
da
década
de
1960,
o
papel
da
mulher
permaneceu
inalterado.
Foi
preciso
esperar
dez
anos
para
a
participação
das
mulheres
nas
criações
artísticas
e,
com
isso,
o
surgimento
de
uma
crítica
à
objetificação
da
mulher
nas
imagens,
ou
seja,
à
sua
representação.
Cindy
Sherman
(1954)
foi
uma
artista
bem
importante
nesse
sentido.
Ela
produziu,
a
partir
do
final
da
década
de
1970,
projetos
que
questionavam
o
corpo
da
mulher
através
de
autorretratos.
Com
este
objetivo,
seu
corpo
serviu
para
reproduzir
as
funções
atribuídas
ou
impostas
à
mulher
pela
sociedade,
como
crítica
da
presença
da
imagem
feminina
estereotipada
em
filmes
e
revistas.
Este
primeiro
trabalho,
Untitled
Film
Stills
(1977–80)
foi
inspirado
em
filmes
feitos
nos
anos
1940,
1950
e
1960
que
apresentavam
uma
mulher
vulnerável,
fraca,
às
vezes
no
“limite
da
loucura”
nos
papéis
de
jovem
ingênua,
estrela
ou
dona
de
casa
(Pultz
e
Mondenard,
1995,
p.139).
19
Fonte:
Moma
19
https://www.moma.org/collection/works/56560
85
pintura
Ocidental
(Fig.7).
Ao
reconstruir
tais
obras
célebres,
a
artista
transformou
o
emblema
dominante
de
beleza
feminina
ou
materna
em
símbolos
grotescos
através
da
utilização
de
próteses
teatrais.
20
Fonte:
Site
do
Moma
A
fragmentação
e
perda
de
um
corpo
coerente
continua
a
surgir
nos
trabalhos
da
artista
realizados
no
início
dos
anos
1990.
No
último
trabalho
em
série
de
Sherman,
o
projeto
Sex
Pictures
(Fig.
8),
ela
mostra
imagens
escuras,
grotescas
e
fragmentadas.
Próteses
ou
manequim
de
plástico
substituem
o
seu
próprio
corpo
para
reproduzir
a
fragmentação
do
corpo
feminino
como
fetichismo
masculino
(Pultz
e
Mondenard,
1995).
Neste
projeto,
a
artista
confronta-‐se
com
as
manipulações
do
corpo,
como
as
próteses
de
silicone
e
o
botox,
e
a
transformação
do
corpo
em
objeto.
Ao
representar
a
artificialidade
e
ausência
do
corpo
inteiro,
ao
mostrá-‐lo
fragmentado,
a
artista
articulou
também
o
tema
da
pornografia
de
maneira
particular
e
assustadora,
como
pode
ser
visto
na
Figura
8,
em
que
a
vagina
é
representada
de
forma
exagerada
e
com
uma
linguiça
no
interior
dela.
São
cenas
que
remetem
também
a
uma
ideia
de
violência
das
imagens
pornográficas,
que
só
exibem
partes
sexuais
e
posições
específicas
do
corpo
da
mulher.
Fonte:
Site
do
Moma
21
21
https://www.moma.org/collection/works/56560.
87
Capítulo
III
Figuras
e
imagens
do
colonialismo:
O
“olhar
europeu”22
no
brasil
“O
maior
apetite
do
homem
é
desejar
ser.
Se
os
olhos
vêm
com
amor
o
que
não
é,
tem
ser”
(Padre
Antônio
Vieira)
O
período
das
grandes
“descobertas”
só
foram
possíveis
a
partir
do
século
XIV,
quando
finalmente
estavam
prontos
para
uso
os
principais
instrumentos
para
a
navegação
—
“o
leme
central,
a
bússola,
o
portulano,
a
vela
latina
e
a
navegação
à
bolina,
etc.”
(Marques,
2018,
p.
47).
No
século
seguinte,
os
portugueses
aperfeiçoaram
um
novo
tipo
de
navio
que
foi
chamado
de
caravela,
ideal
para
viagens
a
longa
distância
(Marques,
2018).
Com
os
avanços
da
ciência
astronômica
e
matemática,
a
partir
dos
estudos
islâmicos,
judaico
e
cristão;
e
do
conhecimento
geográfico,
que
era
partilhado
entre
cientistas,
marinheiros
e
mercadores,
tudo
estava
pronto
para
o
início
das
navegações.
O
Brasil,
naquela
época,
não
fazia
parte
da
história
Ocidental
mas
estava
lá,
no
interior
dos
limites
que
circundam
as
terras
pertencentes
a
Portugal,
estabelecidos
pelo
Tratado
de
Tordesilhas.
Trata-‐se
de
um
documento
assinado
em
7
de
junho
de
1494
que
dividia
as
terras
descobertas
e
as
que
estavam
por
descobrir
entre
as
coroas
portuguesas
e
espanholas,
para
evitar
mais
guerras
entre
os
dois
países.
Como
Schwarcz
e
Starling
(2015)
contam,
“nem
se
sabia
onde
esse
mundo
ia
dar,
mas
ele
já
tinha
dono
e
certificado
de
origem”
(p.
28).
Assim,
em
abril
de
1500,
do
rio
Tejo,
saiu
uma
tripulação
masculina
(capitão-‐
mor,
capitães,
marinheiros
e
padres),
mas
com
algumas
prostitutas
embarcadas
às
escondidas.
Essa
tripulação
contava
com
cerca
de
mil
homens,
sendo
setecentos
designados
como
soldados,
apesar
de
serem
apenas
“plebeus
comuns,
filhos
de
camponeses,
muitas
vezes
apanhados
à
força
e
sem
maior
treinamento”
(Schwarcz
e
22
Utilizado
primeiramente
por
Kossoy
e
Carneiro
em
O
olhar
europeu:
o
negro
na
iconografia
brasileira
do
século
XIX
(1994).
88
Starling,
2015,
p.31).
Nesse
caminho,
problemas
não
faltavam,
principalmente
os
que
dizem
respeito
à
falta
de
higiene
e
escassez
de
comida,
o
que
gerou
doenças
como
o
escorbuto
e
mortes
na
tripulação.
Ao
longe
viram
aquela
imensidão
de
natureza,
pássaros
a
voar.
Caminha
anotava
tudo.
Chegando
à
terra,
era
Páscoa,
22
de
abril
de
1500,
e
depois
de
anotar
todos
os
nomes
dados
ao
longe,
adicionaram
mais
um
à
lista:
índios.
E
assim
nomearam
também
aqueles
povos
nus,
sem
fé,
sem
rei
e
sem
lei,
visto
que
os
fonemas
/f/,
/l/
e
/r’/
na
língua
tupi
não
existe
e,
esta
ausência,
resulta
em
desordenação
e
desregramento
de
suas
vidas,
dizia
Gândavo.
Foram
os
índios
os
mais
citados
pela
literatura
portuguesa
nos
séculos
XVI,
XVII
e
XVIII.
Também
a
natureza
exuberante
que
viram
ao
longe,
antes
mesmo
de
pisar
no
solo
brasileiro,
foi
muito
frequente
em
vários
relatos,
principalmente
para
incentivar
a
imigração
portuguesa
que
passava
por
um
período
de
crise
devido
a
morte
de
mais
de
um
terço
da
população
com
a
peste
negra.
Também,
era
preciso
aproveitar
aquela
fartura
de
terra
e
animais,
escravos
indígenas,
mulheres
exóticas
à
disposição
do
colonizador.
O
período
colonial
no
Brasil
inicia-‐se,
assim,
em
1500
e
termina
em
1822,
com
a
polêmica
independência
do
Brasil
proclamada
por
um
português,
D.
Pedro
I.
Portanto,
o
termo
“Brasil
Colônia”
é
indicativo
de
um
período
histórico
colonial,
período
no
qual
o
território
brasileiro
foi
designado
de
“colônia”
de
Portugal,
apesar
de
sua
exploração
ter
sido
realizada
exclusivamente
pela
metrópole
portuguesa
até
1808.
Depois
disso,
com
a
abertura
dos
portos
e
a
vinda
da
corte
portuguesa
ao
Brasil
escoltada
pela
Inglaterra,
o
mercado
se
abre
para
o
mundo
e
a
independência
não
demora
muito
a
chegar.
De
todo
modo,
foram
os
portugueses,
através
de
seu
expansionismo,
“pautado
por
interesses
comerciais,
militares
e
evangelizadores,
equilibrados
em
boas
doses”23,
que
divulgaram
as
primeiras
imagens
do
Brasil
para
o
mundo
através
de
cartas
e
tratados
produzidos
por
exploradores
e
jesuítas
quando
estiveram
no
território
brasileiro.
O
Brasil,
agora
sede
administrativa
de
Portugal
e
com
a
corte
devidamente
instalada
no
Rio
de
Janeiro,
abria-‐se
para
o
mundo
exterior
depois
de
três
séculos
mantidos
sob
olhar
exclusivo
do
português.
O
europeu
estava
atraído
por
esse
mundo
23
Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.26
89
desconhecido,
mostrava-‐se
como
um
laboratório
a
ser
estudado
pelos
naturalistas
e
com
um
mercado
que
acabava
de
surgir
e
que
deveria
ser
explorado.
Com
a
invenção
da
daguerreotipia
em
1839,
o
“olhar
europeu”
(Kossoy
e
Carneiro,
1994),
passa
a
se
materializar
através
das
diversas
técnicas
pictóricas:
ilustração,
pintura
e
fotografia.
Ao
fim,
todas
elas
serviam
para
a
publicação
da
documentação
da
flora,
fauna,
riquezas
minerais,
sociedade
e,
claro,
do
negro
de
diversas
nações
que
não
passava
despercebido
no
Brasil.
Ao
fim
do
colonialismo
histórico,
permanece
a
ideologia
do
colonialismo
que
é
perpetuada
pelas
imagens
e
relatos
portugueses
que
chegavam
na
ex-‐metrópole.
Muitos
estrangeiros
contribuíram
para
a
produção
e
publicação
da
iconografia
brasileira,
principalmente
a
do
Rio
de
Janeiro
que
na
época
era
o
maior
porto
de
escoamento
de
matérias
primas
tropicais
para
o
exterior,
sede
da
corte
e
também
a
cidade
mais
populosa
na
primeira
metade
do
século
XIX.
A
possibilidade
de
multiplicação
da
imagem
com
a
litografia
e
a
fotografia
foi
fundamental
para
a
história
do
conhecimento.
Muitos
fotógrafos,
além
de
trabalharem
como
“retratistas”
em
estúdios,
visto
que
a
fotografia
era
uma
atividade
comercial
presente
nos
principais
portos
da
costa
do
Brasil,
passaram
a
fazer
parte
das
expedições
científicas
e
atividades
militares
para
documentar
tudo
que
se
via
e
assim
reproduzir
com
a
sua
suposta
objetividade.
Com
o
surgimento
do
colódio
e
do
retrato
do
formato
carte
de
visite,
próprio
para
presentear
amigos
e
parentes
e
obtido
a
preços
mais
acessíveis,
o
retrato
se
popularizou
no
Brasil
Império.
As
cartes
de
visite,
apesar
de
apresentar
retratos,
possuía
uma
ondulação
de
sentidos
que
giravam
em
torno
de
quem
era
retratado.
As
fotografias
de
escravos
foram
tanto
consumidas
pelo
mercado
etnográfico
como
pelo
mercado
de
souvenirs
do
Brasil.
Através
do
recurso
da
pose,
os
escravos
eram
retratados
de
forma
a
reconhecer
marcas
da
pele
e
também
profissões
exercidas
quando
libertos.
Mas,
como
todos
sabem,
a
independência
do
Brasil
foi
bastante
singular.
Foi
proclamada
por
um
português,
mantinha
o
sistema
monárquico
de
poder
e,
também,
não
aboliu
a
escravatura
dos
negros,
e
o
Brasil
foi
o
último
a
realizar
esse
último
quesito.
Mesmo
sob
pressão
inglesa
que,
com
o
início
do
capitalismo
industrial,
comandava
o
comércio,
a
escravatura
e
os
latifúndios
com
suas
leis
próprias
permaneciam
nos
trópicos.
Assim,
havia
uma
conexão
com
Portugal
muito
forte,
o
que
era
visível
na
imprensa
local
a
90
partir
da
expressão
de
uma
nostalgia
colonial.
Monarquistas
tentavam,
através
da
imposição
da
cultura
portuguesa,
tocar
os
corações
dos
brasileiros
que
queriam
se
desvencilhar
de
vez
de
Portugal
para
estabelecer
uma
nova
cultura.
Esse
sentimento
de
nostalgia
colonial
ou
de
repetição
de
ideias
ideológicas
coloniais,
tornou-‐se
corriqueiro
no
tratamento
da
mulher
brasileira.
Isso,
de
fato,
coexiste
no
tratamento
de
mulheres
de
países
colonizados
e
pele
não-‐branca.
De
todo
modo,
a
menção
da
“Terra
de
Vera
Cruz”
em
lugar
de
Brasil,
de
apresentação
de
partes
fragmentadas
do
corpo
da
mulher
em
revistas
ou,
ainda,
da
conexão
da
imagem
da
brasileira
à
prostituição
ou
ao
sexo
fácil,
possuem
claramente
sintomas
de
repetição
de
um
sistema
colonial.
Nesse
ponto
os
media
são
os
grandes
perpetuadores
de
ideias
antigas,
ao
fazer
com
que
tais
ideias
nunca
sejam
esquecidas
no
imaginário
português.
Mas,
esse
“estigma
colonial”
não
é
só
propagado
pela
imprensa
portuguesa,
pois
as
telenovelas
brasileiras,
além
da
publicidade
turística
do
Brasil
têm
dado
grande
suporte
para
a
manutenção
de
um
corpo
exótico
e
de
uma
natureza
exuberante,
pontos
importantes
para
estimular
o
turismo
europeu.
Diante
desses
fatores,
falar
das
imagens
e
figuras
do
colonialismo
é
falar
da
origem
e
da
permanência
de
ideologias
coloniais
que
fizeram
parte
da
construção
da
imagem
do
brasileiro
e
da
brasileira,
seja
a
imagem
do
século
XVI
ou
a
do
século
XXI.
O
período
colonial
construiu
uma
imagem
forte,
estereotipada,
de
fácil
apreensão
através
dos
textos
e,
posteriormente,
dos
retratos
em
cartes
de
visite.
O
surgimento
da
imprensa
no
Brasil
procurou
produzir
uma
ideia
de
contiguidade
entre
os
dois
países
para
que
a
superioridade
cultural
de
Portugal
prevalecesse
sobre
a
do
Brasil
e,
além
disso,
a
mulher
brasileira,
desde
1500,
ainda
é
vista
como
aquele
corpo
disponível,
sexualizado,
principalmente
quando
negra
ou
mulata.
São
apresentados
cinco
tópicos
que
detalham
algumas
práticas
que
contribuíram
para
a
construção
da
imagem
do
brasileiro
ao
longo
do
tempo:
cartas
e
relatos
portugueses;
a
fotografia
na
documentação
da
paisagem
exuberante
brasileira;
popularização
e
sentidos
do
retrato
carte
de
visite;
a
imprensa
do
século
XX
e
a
nostalgia
colonial;
a
imagem
da
mulher
e
o
estigma
colonial.
91
III.1.
A
primeira
imagem
do
Brasil:
cartas
e
relatos
portugueses
No
dia
22
de
abril
de
1500,
a
armada
de
Cabral
seguia
para
as
Índias,
segundo
dizem,
mas
avistou
uma
terra
no
Ocidente.
Para
Marques
(2018),
historiador
português,
a
chegada
foi
algo
acidental,
pois
os
portugueses
“sem
qualquer
razão
aparente,
navegaram
mais
para
sudeste,
atingindo
a
costa
do
Brasil
(22
de
abril
de
1500)”
(p.75).
Ao
longe
viram
um
mundo
novo
que
não
se
encontrava
no
mapa
europeu,
com
animais
e
plantas
nunca
vistos
e
um
povo
totalmente
desconhecido.
Tudo
o
que
foi
visto
foi
nomeado,
como
uma
forma
de
garantir
a
posse
do
“Novo
Mundo”.
Deram,
àquela
terra,
o
nome
de
Terra
de
Vera
Cruz,
ao
monte
deram
o
nome
de
Monte
Pascoal
(era
Páscoa),
e
aos
povos
encontrados
deram
o
nome
de
índios,
numa
referência
à
terra
ainda
não
encontrada,
a
tão
cobiçada
Índia.
Ainda
segundo
o
autor,
as
“descrições
contemporâneas
mostram
que
a
descoberta
do
Brasil
não
suscitou
admiração
maior”
(p.75).
Desse
modo,
sem
grande
felicidade,
mas
ao
mesmo
tempo
nomeando
tudo
que
encontravam
na
terra
descoberta,
chegou
o
que
restou
da
armada
portuguesa:
homens
sujos,
esfomeados
e
doentes.
Entretanto,
não
se
sabe
como
chegaram
as
prostitutas.
Pero
Vaz
de
Caminha,
escrivão
oficial,
tratou
de
anotar
tudo
o
que
vira
daquelas
terras
e
com
os
mínimos
detalhes,
antes
mesmo
de
chegar
lá,
para
avisar
ao
El
Rei
de
Portugal
na
“Carta”24,
também
conhecida
como
certidão
de
nascimento
do
Brasil.
Nela,
foram
apresentadas
as
primeiras
imagens
do
Brasil
e
do
brasileiro
pelas
mãos
dos
portugueses:
(...)
A
feição
deles
é
serem
pardos,
um
tanto
avermelhados,
de
bons
rostos
e
bons
narizes,
bem-‐feitos.
Andam
nus,
sem
nenhuma
cobertura.
Nem
fazem
mais
caso
de
cobrir
nem
mostrar
suas
vergonhas,
e
estão
acerca
disso
com
tanta
inocência
como
têm
em
mostrar
o
rosto.
(...)
E
Nicolau
Coelho
lhes
fez
sinal
que
pousassem
os
arcos.
E
eles
os
depuseram.
Mas
não
pôde
deles
haver
fala
nem
entendimento
que
aproveitasse
(...).25
24
Carta
a
El-‐Rei
D.Manuel
sobre
o
achamento
do
Brasil.
Disponível
em:
http://cvc.instituto-‐
camoes.pt/conhecer/biblioteca-‐digital-‐camoes/literatura-‐1/coleccao-‐98-‐mares-‐expo98/1566-‐
1566/file.html
25
Carta
consultada
no
Arquivo
Nacional
da
Torre
do
Tombo.
Acessível
em
http://digitarq.arquivos.pt/details?id=4185836.
92
Essa
primeira
percepção
da
terra
deu
início
à
construção
da
imagem
do
indígena
como
o
“bom
selvagem”
brasileiro.
Parece
que
o
que
queriam
mostrar
era
que
no
Novo
Mundo
não
existiam
guerras,
como
também
que
os
bons
gentios
poderiam
ser
bons
escravos,
desde
que
catequizados
para
assumir
a
boa
fé.
Na
“Carta”,
os
primeiros
povos
mostraram
que
eram
pacíficos
e
assim
também
criou-‐se
a
lenda
de
que
a
conquista
do
“Novo
Mundo”
foi
realizada
sem
violência26.
Foram
também
realçados
os
bons
ares
do
Brasil,
a
imensidão
de
água
e
de
terra
que
tudo
dá,
diferente
da
escassez
pela
qual
passava
Portugal,
com
a
crise
ocasionada
com
a
peste
negra
e
morte
de
mais
de
um
terço
da
população.
No
início
da
carta,
Caminha
contava
a
surpresa
de
ver
aquela
terra
(Pereira,
1999,
p.50):
94
plantas,
a
mandioca
recebeu
sua
maior
atenção,
com
descrição
de
suas
partes
e
utilidades.
A
História
da
Província
(...)
também
relatou
a
“descoberta”
do
Brasil
por
Pedro
Álvares
Cabral
e
o
início
da
colonização,
as
tribos
indígenas
e
as
capitanias
que
dividiam
o
Brasil.
Por
fim,
queria
mostrar
as
riquezas
e
prospecção
de
avanço
que
a
terra
reservava
aos
portugueses
com
seu
vasto
território.
A
mão
de
obra
era
formada
por
escravos
indígenas.
Ficou
famoso
por
falar
dos
nativos
como
aqueles
que
“não
têm
Fé,
nem
Lei,
nem
Rei”,
que
correspondiam
à
ausência
dos
fonemas
/f/,
/l/
e
/r’/
na
língua
tupi,
e
que
por
isso
“vivem
sem
justiça
e
desordenadamente”.
Segundo
Moreau
(2003,
pp.
68-‐9),
Gândavo,
que
não
escrevia
nada
de
forma
ingênua,
tinha
três
intenções
com
o
seu
texto:
“não
atemorizar
nem
desencorajar
os
futuros
colonos;
relegar
os
índios
ao
plano
dos
exotismos
da
terra
(funcionando
como
“objetos”
de
curiosidade,
sem
influir
na
colonização);
gerar
hostilidade
contra
eles,
que
não
passavam
de
entraves
aos
objetivos
dos
colonos
e
da
Coroa
(mesmo
em
afronta
à
jurisprudência
que
começava
a
vigorar)”.
Fonte:
Gravura
do
Tratado
da
Província
do
Brasil
(...),
de
Gândavo
(1575)
Tal
jurisprudência
diz
respeito
à
proibição
do
uso
da
mão
de
obra
indígena
pela
igreja,
o
que
não
o
impede
de
sentir
desprezo
pelos
povos
indígenas,
chamando
de
gentios
mesmo
aqueles
que
se
aliaram
às
guerras
promovidas
pela
metrópole.
Apesar
95
de
ter
em
seu
Tratado
distinguido
as
tribos
indígenas,
“ele
via
nos
índios
uma
massa
uniforme,
desprezível
e
útil
apenas
como
escravos
para
os
colonos
pobres”
(Moreau,
2003,
p.69).
O
que
demonstra
uma
visão
invertida
da
chegada
do
Brasil,
com
os
índios
incorporando
o
papel
de
invasores,
por
estarem
ali
todos
ocupando
a
terra
brasileira:
“ninguém
pode
pelo
sertão
dentro
caminhar
seguro,
nem
passar
por
terra
onde
não
acha
povoações
de
índios
armados
contra
todas
as
nações
humanas”
(Gândavo,
1980
apud
Moreau,
2003,
p.69).
Nesse
ponto
é
possível
notar
a
animalização
ou
falta
de
humanidade
concedida
aos
índios
em
seus
relatos.
Tomaram
este
modo
de
um
pássaro
que
(...)
canta
de
madrugada
e
lhe
chamam
de
rei,
senhor
dos
outros
pássaros,
e
dizem
eles
que
assim
como
aquele
pássaro
canta
de
madrugada
para
ser
ouvido
dos
outros,
assim
convém
que
os
principais
façam
aquelas
falas
e
pregações
de
madrugada
para
serem
ouvidos
dos
seus.
96
Algumas
cartas
também
tiveram
grande
importância
na
propagação
da
imagem
do
Brasil.
Dentre
tantas,
as
cartas
do
Padre
Manuel
da
Nóbrega
e
do
Padre
José
de
Anchieta,
adquiriram
grande
importância
na
literatura
portuguesa.
Segundo
Gonçalves
(1961,
p.13),
“as
primeiras
cartas
de
Manuel
da
Nóbrega,
de
1649,
já
no
ano
imediato
se
encontravam
em
Roma,
depois
que
foram
enviadas
para
todas
as
casas
e
colégios
europeus
da
Companhia”.
Antes
disso,
em
1556,
“encontrava-‐se
já
traduzida
para
o
francês
pelo
menos
uma
das
cartas
de
Manuel
da
Nóbrega,
que
nesse
mesmo
ano
foi
publicada
em
Paris”
(Leite,
1956
apud
Gonçalves,
1961,
p.13).
Ao
que
parece
que
“as
coisas
do
Brasil
tinham
encontrado
um
meio
incomparável
de
divulgação”
(p.13).
As
cartas
eram
traduzidas
pelos
jesuítas
em
várias
línguas
e
assim
alcançavam
todos
os
europeus.
Os
jesuítas
chegam
ao
Brasil
em
1549
e
o
superior
responsável
era
o
Padre
Manuel
da
Nóbrega,
que
tinha
o
intuito
de
trabalhar
na
conversão
dos
índios.
Sua
primeira
impressão
dos
povos
nativos
foi
posta
em
carta
a
Martim
de
Azpilcueta
Navarro,
após
a
descrição
das
boas
qualidades
da
terra:
Mas
é
muito
de
espantar
ter
dado
(o
Criador)
tão
boa
terra
tanto
tempo
a
gente
tão
inculta,
e
que
tão
pouco
o
conhece,
porque
nenhum
deus
tem
certo
e
qualquer
que
lhe
dizem
creem.
Regem-‐se
por
inclinação,
a
qual
sempre
prona
est
ad
malum,
e
apetite
sensual,
gente
absque
consilio
et
sine
prudentia.
Têm
muitas
mulheres
enquanto
se
contentam
delas
e
elas
deles,
sem
entre
eles
ser
vituperado
(...)
E
nestas
duas
coisas,
scilicet,
em
ter
muitas
mulheres
e
matar
os
seus
contrários,
consiste
toda
a
sua
honra
e
esta
é
a
sua
felicidade
e
desejo,
o
qual
tudo
herdaram
do
primeiro
e
segundo
homem
e
aprenderam
daquel
qui
ab
initio
mundi
homicida
est.
(Gonçalves,
1961,
pp.16-‐17)
O
padre
Manuel
da
Nóbrega
falou
também
em
uma
de
suas
cartas
sobre
o
desapego
aos
bens
materiais
do
povo
indígena,
ao
dizer
que
qualquer
“cristão,
que
entre
em
suas
casas,
dão-‐lhe
a
comer
do
que
têm,
e
uma
rede
lavada
em
que
durma”
(Gonçalves,
1961,
p.
65).
Isto
de
fato
o
impressionou
ao
ponto
de
fazê-‐lo
acreditar
que
eles
apenas
necessitavam
ser
catequizados,
mesmo
que
seja
necessário
assustá-‐los,
pois
assim,
“talvez
por
medo
se
converterão
mais
depressa
do
que
o
não
farão
por
amor,
tanto
andam
corrompidos
nos
costumes
e
longe
da
verdade”28.
28
Padre
Manuel
da
Nóbrega,
Carta
ao
Padre
Simão
Rodrigues,
1550,
p.70.
97
O
padre
José
de
Anchieta
veio
suceder
Manuel
da
Nóbrega
na
ação
de
converter
os
índios.
Ele
pedia
para
a
metrópole
o
envio
de
mais
padres
e
irmãos
devido
ao
grande
alcance
da
colonização
daqueles
povos.
Em
Informação
do
Brasil
e
suas
Capitanias,
Anchieta
descreve
primeiro
as
Capitanias
e
seu
caráter
histórico-‐
geográfico,
como
os
seus
colonizadores,
governadores,
bispos
e
jesuítas
de
cada
uma
das
capitanias.
Depois
disso,
ocupa-‐se
dos
costumes
indígenas:
Segundo
Gonçalves
(1961,
p.
53),
dezenas
de
jesuítas
enviavam
cartas
para
os
mais
diversos
lugares
com
descrição
dos
índios
e
seus
costumes.
Segundo
análise,
todas
elas
“confirmam
o
que
Nóbrega,
Anchieta,
Cardim
e
Simão
de
Vasconcelos
disseram”:
os
índios
eram
vistos
como
“semelhantes
às
feras
quanto
ao
entendimento
(...),
preguiçosos,
comilões,
têm
muitas
mulheres,
ódios,
guerras,
excessos
quanto
ao
vinho”,
além
de
possuírem
o
vício
de
comer
a
carne
humana.
No
que
se
refere
ao
encontro
de
semelhanças
entre
o
olhar
dos
viajantes
e
o
olhar
dos
jesuítas,
“os
costumes
dos
gentios
a
que
se
referem
são
essencialmente
os
mesmos”
(Idem,
p.
54).
A
diferença
de
olhares
para
o
indígena
se
interpõe
quando
o
explorador
se
ocupa
em
apenas
descrever
o
nativo,
enquanto
que
o
jesuíta
procura
interpretar,
nem
que
isso
seja
feito
a
partir
de
uma
descrição.
No
entanto,
“para
uns
como
Cardim,
são
os
29
Anchieta
apud
Gonçalves,
1961,
p.48.
98
aspectos
positivos
que
tomam
mais
relevo
e
prevalecem
sobre
os
comentários
(sobre
os
índios).
Para
outros,
como
Simão
de
Vasconcelos
dá-‐se
exactamente
o
inverso”
(Idem,
p.
54).
O
índio
foi
um
tema
bastante
recorrente
na
literatura
portuguesa
também
nos
séculos
XVI
e
XVII,
como
evidenciado
por
historiadores
que
procuravam
contar
o
caminho
marítimo
para
a
Índia
e
dedicaram
umas
poucas
páginas
à
paragem
de
Cabral
no
Brasil
(Francisco
de
Brito
Freire,
João
de
Barros,
Damião
de
Góis,
António
Galvão),
do
que
Gonçalves
(Idem,
p.56)
presume
que
“a
historiografia
portuguesa
dos
séculos
XVI
e
XVII
não
tenha
concedido
maior
atenção
ao
Brasil”.
No
que
tange
às
obras
literárias,
a
autora
não
encontra
nada
de
autoria
portuguesa
na
época,
a
não
ser
os
escritos
dos
jesuítas
Manuel
da
Nóbrega
e
José
de
Anchieta,
já
tratados
anteriormente.
Mas,
ainda
é
desejoso
ressaltar
que
no
século
XVIII,
após
o
esmaecimento
da
curiosidade
despertada
pela
chegada
ao
território
brasileiro
e
a
consequente
diminuição
de
documentos
de
viajantes
e
colonizadores
sobre
aquela
terra
e
seu
povo
nativo,
a
historiografia
permaneceu
alheia
ao
Brasil
e
aos
brasileiros
(Idem).
Muitos
textos
surgiram
para
mostrar
outras
marcas
do
espírito
“autômato”
do
nativo
brasileiro,
que
se
deixava
levar
pelas
suas
inclinações,
como
foi
o
caso
da
preguiça,
apresentado
no
texto
Apontamentos
para
a
civilização
dos
Índios
bravos
do
Império
do
Brasil
(1823)
de
José
Bonifácio
de
Andrade
Silva,
que
nasceu
no
Brasil,
mas
era
estadista
e
considerado
colonizador
(Idem,
p.
70):
99
grupos
destacados
nos
séculos
XVI,
XVII
e
XVIII
por
Gonçalves
(pp.107-‐110):
o
primeiro
grupo,
apresenta
os
índios
com
qualidades
e
defeitos,
mas
diferentes
do
europeu
(historiadores
e
exploradores
dos
séculos
XVI
a
XVIII
e
jesuítas);
o
segundo
grupo,
apresenta
o
índio
europeizado,
real,
disto
do
“bom
selvagem”,
mas
ainda
apresentando-‐se
como
selvagem;
o
terceiro,
utiliza
a
figura
do
índio
como
pretexto
e
elogio
da
ação
civilizadora
portuguesa.
30
Diante
de
uma
grande
crise
promovida
por
agitações
liberais
que
ocorrera
como
resposta
à
revolta
liberal
na
França,
com
a
deposição
do
Rei
da
França,
D.
Pedro
I
abdica
o
trono,
volta
para
Portugal,
e
deixa
uma
carta
de
abdicação,
deixando
em
seu
lugar
D.
Pedro
II
com
apenas
cinco
anos,
dando
tendo
início
o
Período
Regencial
(1831
a
1840).
Este
período
foi
o
último
da
monarquia
no
Brasil
e
compreende,
além
da
abdicação,
a
“Declaração
da
Maioridade”
que
proclamava
D.
Pedro
II
rei
antes
dos
15
anos
de
idade,
como
tentativa
de
manter
uma
estabilidade
do
reino
diante
de
tantas
revoltas
que
aconteciam
à
época,
a
exemplo
da
Guerra
dos
Farrapos,
Sabinada,
Cabanagem,
Revolta
dos
Malês
e
Balaiada.
Apesar
da
estabilidade
com
a
presença
do
monarca,
muitas
revoltas
regenciais
ainda
100
no
Brasil
e
também
grande
colecionador
de
fotografia
no
Brasil
(Chiarelli,
2006).
Segundo
conta
Natália
Brizuela
(2012),
o
“Segundo
Império
(1840-‐89)
utilizou
a
fotografia
para
complementar
o
seu
projeto
de
construir
uma
‘imaginação
geográfica’
e
desenvolver
um
sentimento
nacional”
(p.18).
Figura 10 – Foto de D. Pedro II da Cachoeira do Marmelo, c. 1876
Fonte:
Biblioteca
Digital
Luso-‐Brasileira
subsistiam,
como
a
Guerra
de
Farrapos
que
só
terminou
em
1845
e
a
Balaiada
que
terminou
em
1841
(Cf.
Schwarcz,
1998).
101
O
Brasil
foi
um
dos
países
que
mais
reuniu
fotógrafos
na
América
Latina
ao
longo
dos
séculos
XIX
e
XX,
conta
Kossoy
(1980).
O
Brasil,
esse
“gigante
tropical”
habitado
por
muitas
raças,
tornou-‐se
logo
um
posto
avançado
de
observação
naturalista
e
científica
e,
por
isso,
após
a
sua
invenção,
a
fotografia
encontrou
aplicação
imediata
na
documentação
da
paisagem
natural
e
rural.
No
entanto,
“cachoeiras,
florestas
ainda
virgens,
árvores
imensas,
e
também
animais
selvagens
ou
domesticados,
frutas,
flores
que
fizeram
parte
do
primeiro
desenho
captado
do
Brasil,
que
era
tomado
–
antes
mesmo
de
os
fotógrafos
estrangeiros
chegarem
como
um
local
excêntrico
na
natureza
e
em
seus
naturais”
(Schwarcz,
2012,
p.14).
Ao
longo
do
século
XIX
e
durante
as
principais
décadas
do
século
XX,
os
“álbuns
de
vista”
foram
a
forma
dominante
de
difusão
das
fotografias
de
paisagem
e
“é
sobretudo
por
sua
afinidade
com
as
narrativas
de
viagem
que
são
comercializadas
e
acolhidas”
(Lissovsky,
2011,
p.282).
Figura
11
–
Praia
de
Ipanema
e
morro
dois
irmãos,
c.
1900.
Fotografia
amadora
do
comerciante
português
José
Baptista
Barreira
Vianna
Fonte:
Acervo
Instituto
Moreira
Salles31
31
José
Baptista
Barreira
Vianna
(1860-‐1925)
é
um
exemplo
excepcional
desse
processo.
Comerciante
português
que
chegou
ao
Rio
de
Janeiro
em
1875,
Vianna
trabalhou
no
comércio
antes
de
abrir
uma
loja
de
produtos
importados
da
Europa
no
largo
da
Carioca.
Fonte:
https://ims.com.br/por-‐dentro-‐
acervos/a-‐cidade-‐em-‐direcao-‐a-‐copacabana-‐e-‐ipanema-‐transicao-‐para-‐a-‐modernidade/.
102
elementos
que
eram
naturalmente
locais,
pois
eram
desconhecidos
pelo
fotógrafo
europeu
que
a
fotografava;
ora
poderia
representar
ideias
preconceituosas
que
faziam
parte
do
espírito
do
fotógrafo.
103
destruição
da
natureza
para
a
construção
de
novidades,
como
é
o
caso
das
fotografias
de
estradas
de
ferro,
de
novas
autoestradas,
fábricas
e
monumentos
(Alonso,
2016).
Um
exemplo
disso
pode
ser
visto
com
o
trabalho
de
Roger
Fenton,
que
documentou
a
deterioração
arquitetônica
em
Paris
e
realizou
imagens
que
mostravam
o
caráter
pitoresco
das
ruínas
do
edifício
medieval
de
Bolton.
Figura
12
-‐
Roger
Fenton,
Bolton
Abbey,
fenêtre
ouest,
1854
Fonte:
National
Media
Museum,
Bradford/Science
&
Society
Picture
Library
Por
causa
da
precária
tecnologia
fotográfica
da
época,
a
qual
demandava
uma
preparação
individual
na
câmara
escura,
as
fotos
eram
sobretudo
de
soldados
comuns
e
oficiais,
sendo
esta
(Fig.
13),
intitulada
“O
vale
da
sombra
da
morte”,
a
única
feita
no
campo
de
guerra.
No
entanto,
ela
foi
alterada
para
ter
um
melhor
resultado:
“Fenton
fez
duas
chapas
da
mesma
posição,
com
a
câmara
sobre
um
tripé
(...)
mas,
antes
de
tirar
a
segunda
foto
(...)
ele
supervisionou
uma
operação
para
espalhar
as
balas
de
canhão
sobre
o
leito
da
estrada”
(Sontag,
2003,
p.47).
A
fotografia
de
paisagem,
como
qualquer
fotografia,
esconde
mais
do
que
se
mostra
(Frade,
1992).
Figura
13
-‐
O
vale
da
sombra
da
morte,
Criméia,
Ucrânia
(1855)
de
Roger
Fenton
Fonte:
Science
Museum,
London.
105
trata
de
um
conhecimento
de
aparências,
de
fragmentos
selecionados
de
edificações,
praças
e
logradouros;
fragmentos
institucionalizados
e
repetidos
à
exaustão”
(p.134).
Estes
fragmentos
que
um
dia
foram
escolhidos
pelo
fotógrafo
passa
a
fazer
parte
do
imaginário
do
receptor
e,
quando
repetidos,
condensam
nesse
fragmento
toda
a
memória
do
lugar,
principalmente
para
“aqueles
afastados
no
tempo
da
produção
das
imagens”
(p.134).
O
Rio
de
Janeiro
sempre
foi
reconhecido
pelas
suas
belezas
naturais,
como
o
corcovado
e
as
praias
e
isto
não
aconteceu
por
mero
acaso.
A
memória
das
cidades
foi
armazenada
através
da
fotografia
para
servir
de
consulta
daqueles
que
a
procuram
para
recordar
o
passado,
para
constituir
estudos
científicos
ou
como
ato
de
simples
prazer
nostálgico.
Figura
14
-‐
Estrada
de
ferro
de
Nazareth,
em
Belém
do
Pará,
do
fotógrafo
português
Felipe
Augusto
Fidanza32,
c.
1875
Fonte:
Instituto
Moreira
Salles
(IMS)
A
fotografia
tornou
familiar
o
outro
e
também
o
espaço
do
outro,
por
reforçar
expectativas
e
sugerir
realidades
através
de
sua
função
de
mediação
do
real.
Surge,
então,
como
fenômeno
cultural.
Quando
passa
a
representar
o
modo
de
ver
ocidental,
promove
consequências
graves
no
modo
de
perceber
o
mundo,
como
o
que
foi
visto
no
processo
de
representação
de
paisagens
brasileiras.
Jenks
(1995,
p.8)
avisa:
“Ver,
olhar
e
observar
são
ações
com
filtros:
olhar
é
seletivo”.
Olhar
é
abstrair
e
abstração
é
uma
questão
de
perspectiva
em
que
“o
tamanho
e
a
relevância
de
certos
fenómenos
são
alterados
em
relação
ao
seu
lugar
original”
(p.9).
A
fotografia
passou
a
determinar
aquilo
que
deve
ou
não
ser
visto,
ou
seja,
a
oferecer
uma
visão
parcial
como
instrumento
de
manipulação
e
controle
da
sociedade.
32
Felipe
Augusto
Fidanza
foi
um
fotógrafo
português
radicado
no
Brasil.
É
considerado
o
mais
importante
fotógrafo
em
atividade
em
Belém
no
fim
do
século
XIX
e
princípios
do
século
XX.
106
Georg
Simmel,
em
A
filosofia
da
Paisagem
(1913),
conta
que
para
“ver
uma
paisagem”
é
preciso
que
um
pedaço
do
campo
de
visão
cative
o
nosso
espírito
e
que,
dessa
forma,
passe
a
ser
um
novo
conjunto
ou
unidade.
Segundo
ele,
o
homem
da
Modernidade
perdeu
o
sentido
da
natureza
como
realidade
espaço
temporal
e
só
pode
recuperá-‐la
parcialmente
através
do
ato
perceptivo
que
une
elementos
soltos
para
compor
uma
unidade
sintética,
a
paisagem.
Esse
destaque
da
natureza
faz
com
que
a
paisagem
seja
um
fragmento,
uma
parcela
da
natureza
tomada
como
unidade
a
partir
de
um
sentimento
da
ordem
da
subjetividade
e
da
afetividade
denominada
Stimmung,
ou
seja,
um
estado
de
espírito,
um
sentimento
pessoal.
Simone
Maldonado
(1996)33,
diz
na
apresentação
do
texto
de
Simmel
que
Stimmung
é
um
“horizonte,
o
conceito
unificador
que
confere
sentido
aos
constructos
do
olhar
que
ao
delimitar
a
base
material
da
paisagem,
isola
um
trecho,
que
não
necessariamente
se
constituiria
como
paisagem”.
Para
Serrão
(2013),
a
A
abertura
dos
portos
brasileiros
para
o
comércio
internacional
faz
com
que
a
fotografia
surja
como
atividade
comercial
em
um
mercado
que
ainda
estava
em
fase
de
“descobrimento”.
Neste
período,
o
mercado
fotográfico
funciona
basicamente
com
a
produção
de
retratos
que
já
havia
se
tornado
uma
necessidade,
pois
permitia
a
reprodução
da
própria
imagem
para
a
posteridade.
A
partir
dos
crescentes
avanços
no
desenvolvimento
dos
processos
fotográficos
tornou-‐se
possível
o
desenvolvimento
da
sua
indústria
e,
com
isso,
a
possibilidade
de
comercialização
da
fotografia
em
larga
escala
e
a
preços
mais
económicos
(Naranjo,
2006).
34
A
carte
de
visite
foi
introduzida
por
André
Adolpho
Eugène
Disdéri
(1819-‐1890)
que
patenteou
o
processo
em
1854
na
França.
Este
formato
consiste
numa
foto
colada
sobre
um
cartão
suporte
com
as
dimensões
5,25
x
10,2
cm
aproximadamente
e
foi
criada
com
a
finalidade
de
ser
oferecida
a
amigos
e
parentes
(Kossoy,
1980,
p.38).
108
Todos
queriam
oferecer
e
receber,
como
também
enviar
para
os
familiares
e
pessoas
queridas
um
retrato
como
lembrança.
Com
essa
moda,
muitos
fotógrafos
se
tornaram
conhecidos
e
milionários
e
milhares
de
retratos
no
formato
carte
de
visite
foram
produzidos
em
todo
o
mundo.
Figuras
15
e
16
–
Cartes-‐de-‐visite
de
Christiano
Júnior
em
1865
com
escravos:
“Escravo
da
Nação
Africana
Olunan”
e
“Escravo
da
Nação
Africana
Mina”
Fontes:
Coleção
Gilberto
Freyre
e
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional
As
cartes
de
visite
que
eram
vendidas
no
comércio
também
foram
incorporadas
ao
discurso
científico
sob
a
forma
de
“tipos
raciais”.
Os
fotógrafos,
estrangeiros
em
sua
maioria,
nunca
deixaram
passar
a
figura
do
negro
nas
imagens
e,
assim,
realizaram
uma
série
de
retratos
dos
negros
escravos
e
libertos
que
faziam
parte
da
população
brasileira.
Nessas
imagens,
eles
procuravam
reafirmar
suas
diferenças
para
compor
uma
“tipologia”,
pois
destacavam
marcas
e
vestimentas
que
caracterizaram
cada
nação
africana.
Além
de
servir
para
controle
dos
mercadores
de
escravos,
essas
imagens
foram
consumidas
por
artistas
e
cientistas
da
época,
que
“na
condição
de
observadores
e
representantes
das
nações
colonizadoras,
interpretaram
–
através
de
seus
filtros
ideológicos
–
as
diferenças
culturais,
sem
entretanto,
questioná-‐las”
(Kossoy
e
Carneiro,
1994,
p.27).
Os
escravos,
vindos
do
mesmo
continente,
tinham
em
comum
apenas
a
pele
negra.
Eles
apresentavam
diferenças
culturais
que
eram
apresentadas,
de
modo
visual,
pelas
marcas
no
rosto
e
também
pelos
panos
e
penteados.
Essas
tradições
culturais
foram
também
exploradas
nas
cartes
de
visite.
109
Júnior,
que
se
dedicou
à
produção
de
imagens
de
“tipos
raciais”
e,
por
isso,
os
representa
como
“souvenirs
exóticos”;
e
José
Ferreira
Guimarães,
amigo
de
D.
Pedro
II,
que
fotografou
personagens
ilustres
da
nobreza
imperial.
Enquanto
o
primeiro
realizou
uma
apropriação
mercadológica
de
escravos,
o
segundo
apresentou
cartões
de
visita
de
uma
sociedade
que
se
espelhava
nos
gostos
do
monarca
Pedro
II,
amante
da
técnica
fotográfica
e
maior
entusiasta
do
império
(Mauad
e
Cruz,
2017).
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional,
Brasil
As
cartes
de
visite
do
fotógrafo
Christiano
Júnior
eram
produzidas
em
estúdio
e,
dessa
forma,
deslocava
os
representados
do
meio
em
que
viviam
para
uma
sala
com
fundo
neutro
e
homogêneo.
Através
desse
movimento,
indivíduos
díspares,
de
diversas
localidades,
foram
representados
como
pertencentes
ao
mesmo
universo:
o
universo
do
exótico.
O
destaque
da
“personagem”
em
um
fundo
neutro
só
confirma
a
função
de
montra
do
imperialismo
que
a
fotografia
exercia,
ao
exibir
tipos
humanos
“exóticos”
que
foram
conhecidos
com
grande
mobilidade
mercantil.
O
fotógrafo,
por
sua
vez,
exercia
um
duplo
poder
sobre
o
fotografado:
detinha
os
meios
de
produção/reprodução
da
imagem
e
possuía
um
ponto
de
vista
dominante.
Segundo
Natália
Brizuela
(2012),
as
cartes
de
visite
deixam
de
ser
retratos
para
mostrar-‐se
como
signo
de
exclusão,
demarcando
o
Outro
e
a
alteridade.
Esta
técnica
111
de
representar
o
outro
anula
subjetividades,
pois
descontextualiza
os
indivíduos
de
sua
vida
particular
e
da
história
nacional.
Nessa
produção
imagética,
a
tecnologia
fotográfica
“se
apropriava
de
corpos,
criava
estereótipos
e
reificava
conceitos
de
raça
e
de
cultura
na
ciência,
e
legitimava
e
adoptava
ideologias
coloniais
ou
práticas
discriminatórias”
(Edwards,
2008,
p.102).
Do
que
se
pode
entender
que
as
cartes
de
visite,
produzidas
no
Brasil
Imperial,
reproduziam
um
discurso
do
ponto
de
vista
do
colonizador,
pois
o
fotógrafo
estrangeiro
ao
exibir
seu
ponto
de
vista
acreditava
ser
o
responsável
por
desvelar
aquele
mundo
bárbaro
e
ainda
desconhecido.
Figuras
18
e
19
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
em
1865:
“Escravo
da
Nação
Africana
Cabinda”
e
“Escravo
da
Nação
Africana
Angola”
Fonte:
Museu
Histórico
Nacional,
Brasil
As
características
adotadas
pelas
cartes
de
visite
no
Brasil
definem
o
que
foi
concebido
como
“fotografia
colonial”.
Este
tipo
de
fotografia
surgiu,
sobretudo
para
o
consumo
dos
europeus,
“mas
também
para
mostrar
e
reproduzir
a
superioridade
do
colonizador
sobre
o
colonizado
em
vários
referentes”
(Barradas,
2014,
p.449).
O
colonialismo
encontrou
fundamento
na
“produção
do
Ocidente
como
forma
de
conhecimento
hegemónico
(que)
exigiu
a
criação
de
um
Outro,
constituído
como
um
ser
intrinsecamente
desqualificado,
um
repositório
de
características
inferiores
em
relação
ao
poder
e
saber
ocidentais
e,
por
isso,
disponível
para
ser
usado
e
apropriado”
(Santos
e
Arriscado,
2004,
p.
24).
A
fotografia
colonial
quando
atrelada
aos
poderes
hegemônicos
serviu
como
ferramenta
para
a
manutenção
de
desigualdades.
As
cartes
de
visite
ainda
reproduziam
essas
mensagens
e
apresentavam
personagens
exóticos
aos
olhos
eurocêntricos.
112
Contudo,
a
fotografia
colonial
tem
especificidade
própria:
constitui-‐se
como
a
mais
antiga
memória
pictural
dos
países
que
emergem
após
a
descolonização.
Essa
memória,
conta
Lobato
(2006),
foi
preservada
através
do
olhar
do
fotógrafo
europeu,
“o
qual,
como
qualquer
olhar,
é
discriminativo
e
(...)
também
frequentemente
discriminatório”
(p.107).
Os
fotógrafos,
em
sua
maioria
estrangeiros
no
Brasil,
atuavam
como
autoridade
intelectual
sobre
o
outro,
representando-‐o
como
alteridade,
amoral,
animal,
exótico.
E,
mesmo
com
o
progresso
da
técnica,
segundo
Kossoy
e
Carneiro
(1994),
o
“olhar
europeu”
nunca
deixou
de
representar
a
figura
do
negro
com
a
mesma
aparência
do
passado.
Figuras
20
e
21
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
mostrando
ofícios
exercidos
pelos
negros
escravos
e
libertos
no
centro
urbano,
c.1865
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional,
Brasil
As
cartes
de
visite
possuíam
um
padrão
preestabelecido
para
que
as
informações
alcançassem
melhor
compreensão
e
para
facilitar
a
comparação
de
tipos.
Além
disso,
grande
parte
reproduzia
todo
o
tipo
de
fantasias
relacionadas
com
o
orientalismo36
e
outros
exotismos,
criando
identidades
estereotipadas
que
satisfaziam
aos
consumidores
românticos
europeus.
Essas
imagens
funcionaram
como
mercadoria
nas
redes
relacionais
da
antropologia,
recebendo
significados
ambíguos
que
variavam
de
acordo
com
cada
interesse
ou
ideologia
política
de
consumo
institucional.
Como
36
O
orientalismo,
visto
por
Edward
Said
(1978),
relaciona-‐se
com
o
tratamento
subalterno
da
cultura
do
“Outro”.
É
uma
crítica
do
fenómeno
do
Orientalismo
definido
como
“um
conjunto
de
ideias
circunscritas
a
valores,
apresentados
de
modo
generalizado,
mentalidade,
características
do
Oriente”.
Dessa
forma,
a
cultura
dominante
se
apodera
da
outra,
a
traduz
a
partir
de
uma
gramática
e
imaginário
próprios
ao
descrever
a
cultura
do
Outro.
Termina
por
estabelecer
categorias
e
valores
que
se
baseiam
não
na
realidade,
mas
em
necessidades
políticas
e
sociais
do
Ocidente
113
aponta
Elizabeth
Edwards
(2008,
p.102),
no
século
XIX,
havia
uma
“interdependência
e
interpenetração
entre
esta
ciência
fluida
e
incerta
e
o
colecionismo
e
o
mercado”
e
a
fotografia
não
escapou
a
essa
regra,
pois
poderia
tanto
representar
um
quadro
falso
de
acontecimentos,
como
também
poderia
burlar
identidades
e
alterar
eventos
históricos
para
que
a
fotografia
fosse
mais
atrativa
e
assim
vendida
a
um
valor
proporcional
ao
grau
de
exotismo
oferecido
na
imagem.
Figuras
22
e
23
–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
mostrando
trajes
típicos
dos
africanos,
c.1865
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional,
Brasil.
114
imperial”37.
Suas
imagens,
por
isso,
“deslizam
entre
os
planos
da
vida
pública
e
da
esfera
privada”
38.
A
função
de
representação
social
e
laços
pessoais
são
marcas
da
coleção
de
cartes
de
visite
de
Guimarães.
Ele
também
foi
fotógrafo
oficial
da
família
imperial
e
fez
grande
fortuna
na
profissão,
conforme
afirmou
Boris
Kossoy
(1980).
De
acordo
com
Ana
Maria
Mauad
e
Itan
Cruz
(2017),
identificou-‐se
a
presença
da
“fotografia
nas
relações
sentimentais
do
século
XIX,
sobretudo
com
o
crescimento
da
produção
da
modalidade
carte
de
visite,
a
partir
dos
anos
de
1870,
na
corte
do
Rio
de
Janeiro”
(p.159).
Tal
presença
foi
destacada
na
troca
de
correspondências
entre
a
imperatriz
Teresa
Cristina
e
Maria
Amanda
Paranaguá,
dama
de
companhia
da
princesa
Isabel
(filha
de
D.
Pedro
II)
e
baronesa
de
Loreto
(Fig.
24).
Pelo
estúdio
de
Guimarães
também
passaram
militares,
com
suas
fardas
e
condecorações
que
com
suas
poses
rígidas
queriam
registrar
para
a
posteridade
o
lugar
social
e,
sobretudo,
demarcar
hierarquias.
No
retrato
de
Beaurepaire
(Fig.
25),
as
condecorações
mostram
a
sua
estreita
vinculação
com
o
governo
imperial,
apesar
da
fotografia
ter
sido
produzida
na
época
republicana
do
Brasil.
Figuras
24
e
25
-‐
José
Ferreira
Guimarães.
“Retrato
da
baronesa
de
Loreto”
(c.1884)
e
“Retrato
do
visconde
de
Beaurepaire”
(1894)
37
Cf.
Acervo
Brasiliana
Fotográfica.
Acessível
em
http://brasilianafotografica.bn.br/?tag=dom-‐pedro-‐ii
38
Idem.
115
próprio
cliente
“se
converte,
ele
mesmo,
num
acessório
de
estúdio”
(Freund,
1976,
p.62)
com
poses
que
obedeciam
a
“padrões
pré-‐estabelecidos
e
já
institucionalizados
de
acordo
com
a
sua
posição
social”
(Kossoy,
1980,
p.44).
Com
as
imagens
realizadas
do
busto
do
fotografado
posicionado
mais
próximo
da
câmara,
as
expressões
faciais
e
as
insígnias
e
condecorações
ganham
mais
destaque.
Segundo
Heynemann
e
Rainho
(2017)39,
atrás
das
fotos
de
Guimarães
constava
dados
referentes
ao
estúdio,
“sua
participação
em
exposições,
seus
títulos
–
Fotógrafo
da
Casa
Imperial,
Cavaleiro
da
Ordem
da
Rosa
–
seus
prêmios”.
Com
essas
informações,
o
fotógrafo
se
distinguia
dos
concorrentes
e
aproximava
uma
seleta
clientela,
“homens
e
mulheres
da
boa
sociedade
que
aumentavam
seu
capital
simbólico
justamente
por
se
darem
a
ver
através
das
suas
lentes.”
Olhar
para
essas
imagens
pode
tanto
“suspeitar
um
balanço,
uma
memória
ou
uma
expectativa,
como
uma
representação
da
narrativa
e
da
identidade
do
colonizador
e
do
colonizado
nos
vários
estágios
que
as
compuseram”
(Mirzoeff,
1998,
p.127).
Essa
memória,
entretanto,
pode
vir
a
resgatar
um
passado
distante
no
tempo
e
no
espaço,
ao
invés
de
servir
como
desconstrução
da
narrativa
colonial
com
a
produção
de
imagens
a
partir
do
ponto
de
vista
do
colonizado,
o
que
nos
levaria
ao
conceito
de
pós-‐colonialismo.
As
fotografias
de
“tipos”
e
de
uma
sociedade
imperial
marcada
por
uma
relação
íntima
com
Portugal
nos
mostra
que
tais
imagens
representavam
aquele
modo
de
ver
o
mundo
ao
produzir
ainda
uma
“fotografia
colonial”.
117
a
imprensa
à
iniciativa
privada,
o
que
significava,
evidentemente,
a
sua
entrega
ao
capitalismo
em
ascensão”
(Sodré,
1983,
p.2).
Assim,
os
conflitos
e
as
guerras
passaram
a
ser
assistidos
por
correspondentes
que
se
deslocavam
até
o
local
dos
acontecimentos
e,
por
consequência,
a
informação
passa
a
ser
priorizada
no
lugar
da
opinião
nos
jornais
que
surgiam.
No
entanto,
muito
rapidamente
“a
grande
imprensa
capitalista
compreendeu,
também,
que
é
possível
orientar
a
opinião
através
do
fluxo
de
notícias”
(Sodré,
1983,
p.
4).
No
desenvolvimento
da
imprensa,
além
da
luta
entre
opinião
e
informação
houve
também
a
luta
entre
opinião
e
publicidade.
A
imprensa
francesa
no
final
do
século
XIX
tornou-‐se
pioneira
no
sentido
de
dar
uma
apresentação
gráfica
destacada
aos
anúncios
publicitários.
119
efetivamente
para
a
definição
do
Outro
através
de
um
jogo
de
contrastes
que
expõe
imagens
simplificadas
e
estereotipadas
do
Outro
para
mostrar
que
ele
é
diferente
da
maioria
dominante
(Rivers
e
Schramm,
1967
apud
Ferin
Cunha
et
al.,
2002).
A
imprensa,
portanto,
é
política,
pois
defende
o
ponto
de
vista
da
empresa
que
a
publica.
Dessa
forma,
os
media
podem
contribuir
com
o
reforço
da
percepção
de
minorias
como
“espaços
ideológicos-‐políticos,
como
realidades
alienígenas,
constituindo
um
corpo
estranho”
(Fernandes,
1995,
p.24).
Ao
mesmo
tempo
que
tornou
possível
visualizar
os
acontecimentos
que
ocorriam
para
além
das
proximidades,
das
áreas
mais
longínquas
do
planeta,
“(...)
se
converte
num
poderoso
meio
de
propaganda
e
manipulação.
O
mundo
em
imagens
funciona
de
acordo
com
os
interesses
de
quem
são
os
proprietários
da
imprensa:
a
indústria,
as
finanças,
os
governos”
(Freund,
1976,
p.96).
Com
a
instalação
da
República
no
Brasil,
em
1889,
as
relações
luso-‐brasileiras
tornaram-‐se
difíceis.
No
entanto,
foram
também
criadas
bases
necessárias
para
a
convivência
amistosa
entre
as
duas
nações.
Ao
fim
do
século
XIX
e
início
do
século
XX
havia,
no
Brasil,
uma
preocupação
em
definir
o
caráter
nacional
que
tinha
conexão
com
especulações
estéticas
e/ou
poéticas
(Müller,
2009).
Com
o
centenário
da
independência
em
1922,
momento
de
balanço
da
nacionalidade,
cresce
a
discussão
e
publicação
de
obras
e
estudos
sobre
o
Brasil
nas
áreas
de
história,
sociologia,
literatura
e
língua
nacional.
Nesse
período
de
transição
e
transformações
sociais
subjaziam
divergências
120
duas
nacionalidades.
Muitas
revistas
portuguesas
da
época
e
mesmo
aquelas
que
se
diziam
luso-‐brasileiras,
procuravam
divulgar
a
cultura
e
a
literatura
de
ambos
os
países,
mas
“utilizavam-‐se
de
artigos/matérias
para
realizar
a
manutenção
do
status
quo
português,
apesar
de
debates
intensos
acerca
da
desvinculação
cultural
promovida
por
alguns
intelectuais
brasileiros,
por
exemplo”
(Müller,
2009,
p.3).
Segundo
Benedita
Sant’Anna
(2007),
que
investigou
esse
tipo
de
imprensa
em
Portugal
e
no
Brasil,
tais
publicações
luso-‐brasileiras
procuravam
estreitar
laços
entre
o
Brasil
e
Portugal,
movimento
que
teve
início
na
metade
do
século
XIX.
Dentre
as
revistas
que
procuravam
impor
valores
portugueses
na
sociedade
brasileira
estavam
Illustração
Portugueza
(1903-‐1930)
e
Atlântida:
Mensário
artístico,
literário
e
social
para
Portugal
e
Brasil
(1915-‐1920).
Figura 26 – Frontispício de Illustração Portugueza, nº111 de 29 de janeiro de 1906
Fonte:
Hemeroteca
Digital
de
Lisboa
121
Fundador
da
Illustração
Portugueza,
o
escritor,
jornalista
e
monarquista
português
Carlos
Malheiros
Dias,
colaborava
com
a
imprensa
periódica
da
época
e
também
foi
um
dos
luso-‐brasileiros
que
procuravam
estreitar
os
laços
entre
os
dois
países,
apesar
da
procura
do
efetivo
corte
que
teve
seu
ponto
alto
com
a
Semana
de
Arte
Moderna
de
1922
(Müller,
2009,
p.6).
O
jornalista,
conta
Nelson
Vieira
(1991),
citado
por
Müller
(2009,
p.6),
“estava
imaginando
o
Brasil
como
uma
plataforma,
a
partir
da
qual
poderia
relançar
o
Portugal
do
século
XVI,
sempre
a
conquistar
novos
horizontes”.
Com
esse
intuito,
ele
utilizou
a
imprensa,
como
as
revistas
Illustração
Portugueza,
Cruzeiro
e
a
Revista
da
Semana
para
expressar
os
ideais
portugueses
no
Brasil.
A
revista
Illustração
Portugueza
(Fig.
24)
era
uma
revista
semanal
que
mostrava
a
vida
social,
política,
artística,
mundana,
esportiva
e
doméstica
portuguesa
(Müller,
2009).
Foi
publicada
em
Lisboa
e
apresentava
fotografias
de
personalidades
importantes
da
cultura
portuguesa.
A
partir
de
1906,
sob
a
direção
de
Malheiro
Dias,
apresentava
também
poemas
de
Fernando
Pessoa,
dentre
outras
obras
de
ilustres
literatos
portugueses.
No
ano
seguinte,
Malheiro
Dias
visita
o
Brasil
e
sua
revista
foi
apresentada
no
editorial
do
jornal
O
Estado
de
São
Paulo
como
uma
revista
que
procurava
divulgar
a
cultura
e
os
valores
de
Portugal
no
Brasil,
como
pode
ser
visto
nesse
trecho
do
editorial:
122
Neste
trecho,
torna-‐se
clara
a
procura
de
subordinação
do
Brasil
à
cultura
portuguesa
através
da
divulgação
da
revista
no
editorial
do
jornal
brasileiro.
No
momento
em
que
diz
“reatando
assim
a
comunidade
literária
que
perdurou
até
aos
primeiros
anos
do
século
XIX”,
observa-‐se
uma
necessidade
de
reatar
os
laços
do
passado,
coisa
que
deve
acontecer
através
da
unidade
que
se
impõe
pelo
idioma.
Desse
modo,
os
valores
portugueses,
que
eram
passados
através
da
língua
e
da
literatura
na
revista,
tinham
a
função
de
manter
sempre
vivos
os
valores
colonizadores
através
da
“hegemonia
literária”.
Se
Portugal
não
obteve
sucesso
através
da
unidade
territorial
Brasil-‐Portugal,
Malheiros
Dias
acreditava
que
o
sucesso
poderia
ser
alcançado
através
da
língua-‐mãe.
Expelindo
cheiro
de
política
a
cada
página,
a
revista
Atlântida
tinha
como
eixo
principal
a
propaganda
nacional
portuguesa
para
uma
aproximação
entre
Brasil
e
Portugal.
Interessante
notar
que
mesmo
com
editor
brasileiro
há
uma
ideia
compartilhada
de
Brasil
entre
os
editores.
“Atlântida”,
ao
utilizar
o
nome
da
civilização
perdida,
buscava
retomar
o
prestígio
perdido
português
no
momento
em
que
os
brasileiros
queriam
uma
cultura
própria
e
independente.
Ou
mesmo,
procurar
recriar
essa
civilização
perdida,
fazendo
surgir
outra
através
da
força
da
união
cultural.
Foi
financiada
pelos
Ministérios
das
Relações
Exteriores
do
Brasil
e
dos
Estrangeiros
e
Fomento
de
Portugal,
do
que
decorre
que
era
uma
“(...)
revista
de
elites
para
elites,
a
viabilidade
financeira
da
Atlântida
assentava,
provavelmente,
nas
assinaturas,
em
alguma
publicidade
e
nos
apoios
e
colaborações
voluntariosas
dos
que
lhe
asseguravam
conteúdo”
(Correia,
2008,
p.
4).
123
Figuras
27
e
28
–
Páginas
de
“Atlântida:
mensário
artístico,
literário
e
social
para
Portugal
e
Brasil”,
nº17
de
15
de
março
de
1917;
nº6
de
15
de
abril
de
1916
40
Fonte:
Hemeroteca
Digital
de
Lisboa
A
necessidade
de
união
luso–brasileira
proposta
por
João
de
Barros
poderia
até
ultrapassar
as
relações
diplomáticas,
como
o
próprio
disse:
A
animalidade
se
conecta
à
imagem
do
negro/negra
para
associação
ao
sexo.
Conforme
atesta
Fanon
(2008,
p.145),
o
negro
sempre
“representa
o
instinto
sexual”
para
os
europeus.
As
escravas
eram
alvos
da
luxúria
dos
senhores
e
para
as
quais
eram
dirigidas
toda
sorte
de
ações
no
âmbito
sexual,
uma
vez
que
elas
eram
“tidas
como
meros
objetos”
nos
quais
“davam
vazão
a
impulsos
sexuais”
(Freitas,
2011,
p.
65).
Além
disso,
segundo
Gilberto
Freire,
nos
engenhos
do
Brasil,
a
sexualização
das
negras
e
mulatas
era
algo
incentivado
até
pelas
mães
brancas:
“Nenhuma
casa
grande
do
tempo
da
escravidão
quis
para
si
a
glória
de
conservar
filhos
maricas
ou
donzelões.
O
que
a
negra
da
senzala
fez
foi
facilitar
a
depravação
com
sua
docilidade
de
escrava:
abrindo
as
pernas
ao
primeiro
desejo
do
senhor-‐moço.
Desejo
não,
ordem”
(Freyre,
1973
[1933],
p.352).
A
utilização
do
corpo
da
escrava
por
esses
senhores
ociosos
em
casa
era,
como
tudo
na
vida
escrava,
um
trabalho
forçado,
violento,
ou
melhor,
uma
violentação
naturalizada,
que
tratou
de
ser
amenizada
pela
literatura
e
pela
fotografia
da
época
que,
ao
invés
de
denunciar
tal
violência,
preferiu
apresentar
um
corpo
disponível
que
dava
vazão
aos
instintos
sexuais
animalescos
característicos
da
raça
negra.
A
fotografia
aprisionou
esses
corpos
pela
segunda
vez,
objetificou
o
corpo
da
negra
pela
segunda
vez
quando
permitiu
que
se
tornasse
um
objeto
visual
de
valor
sexual
que
pode
ser
carregado
para
qualquer
lugar
do
mundo.
Os
corpos
dos
escravos
pertenciam
aos
seus
donos
para
que
fosse
feito
o
que
bem
quisessem,
tal
como
corpos
dos
animais.
Nenhum
poder
se
impunha
contra
a
lei
dos
donos
de
escravos
em
seus
imensos
latifúndios
que
expandiam
os
terrenos
da
libertinagem,
da
depravação
e
da
subordinação
sexual,
que,
segundo
Gilberto
Freyre
(1998),
foram
características
inerentes
ao
sistema
colonial
brasileiro.
Além
do
mais,
vale
ressaltar
que
nos
navios
negreiros
as
africanas
eram
violentadas
para
que
126
chegassem
grávidas
em
seu
destino
e,
dessa
forma,
seriam
mercadorias
mais
atrativas
para
os
compradores
que
levavam
dois
escravos
pelo
preço
de
um
(Pomer,
1980
apud
Freitas,
2011).
Figuras 29 e 30 – Retratos de Augusto Stahl de negras de “raça pura” no Rio de Janeiro, 1865
Fonte:
Peabody
Museum
of
Archaeology
and
Ethnology,
Universidade
de
Harvard
A
produção
de
identidades
esteve
sempre
ancorada
em
uma
produção
visual
abundante,
com
exposições,
postais,
cartes
de
visite,
que
alcançou
todos
os
cantos
do
mundo,
criando
novos
sujeitos
que
passaram
a
participar
de
um
imaginário
coletivo
criado
e
perpetuado
apenas
através
das
imagens
de
seus
corpos.
Segundo
William
Ewing
(1996),
tais
fotografias
que
têm
como
objeto
o
corpo
humano
são
políticas,
pois
são
utilizadas
para
controlar
opiniões
ou
influenciar
ações.
Esse
tipo
de
imagem
alcança
maior
impacto
no
imaginário
social
que
as
imagens
televisivas,
pois
são
elas
que
ficam
marcadas
na
memória
como
identidade
do
Outro.
São
elas
que
promovem
a
identificação
do
Outro,
e
essa
identificação,
o
ser
para
um
Outro,
“implica
a
representação
do
sujeito
na
ordem
diferenciadora
da
alteridade
(...),
é
sempre
o
retorno
de
uma
imagem
de
identidade
que
traz
a
marca
da
fissura
no
lugar
do
Outro
de
onde
ela
vem”
(Bhabha,
1998,
p.76).
Figuras
31
e
32
–
Retratos
de
Walter
Hunnewell
de
mulheres
de
“raças
mistas”
em
Manaus,
1865-‐1866
Fonte:
Peabody
Museum
of
Archaeology
and
Ethnology,
Universidade
de
Harvard
O
olhar
erotizado
para
a
mulher
nas
primeiras
fotografias
do
Brasil
parece
ter
seguido
a
linha
do
erótico,
disfarçado
de
um
olhar
etnocêntrico.
Afinal,
as
escravas
eram
alvos
de
luxúria
dos
seus
senhores
e
exerciam
um
valor
fetichista
quando
puderam
ser
representadas
nessas
fotografias
duvidosas.
Esse
olhar
objetificador
não
é
exclusivo
do
Brasil,
ele
sempre
foi
lançado
para
as
mulheres
negras
e
birraciais
da
África,
por
exemplo,
para
que
suas
imagens
fossem
produtos
também
sexuais.
Tais
imagens,
de
qualquer
forma,
possuem
sentidos
ambíguos,
“elas
situam-‐se
entre
a
negociação
do
consentimento
por
parte
das
mulheres
fotografadas
e
a
intenção
voyeurística
do
fotógrafo”
(Monteiro,
2010,
p.76).
Elas
aceitam
ser
fotografadas
nuas,
mas
parecem
ser
coagidas
a
isso,
pois
suas
expressões
não
aparentam
que
estão
confortáveis
diante
das
lentes
e
também
dos
homens
que
a
encaram.
As
cartes
de
128
visite
do
português
Christiano
Júnior
também
representou
o
corpo
desnudo
de
mulheres,
mostrando
o
corpo
feminino
como
uma
simples
“geometria
de
sexualidade
cativa
da
tecnologia
da
forma
imperial”
(McClintock,
1995,
p.04).
Figura
33–
Cartes-‐de-‐visite
de
José
Christiano
Júnior
em
1865:
“Mulher
Negra”
Fonte:
Serviço
de
Patrimônio
Histórico
e
Artístico
Nacional;
Museu
Histórico
Nacional
41
Acessível
em:
http://www.lusocom.net/anuario/anuario-‐2009/
130
casas
de
prostituição,
prisão
de
algumas
mulheres
e
repatriação
das
brasileiras
que
estavam
ilegais.
Para
a
imprensa
portuguesa,
foi
uma
confirmação
de
que
as
mulheres
brasileiras
eram
mesmo
“sexualizadas”
como
sempre
mostrou
a
história
dos
descobrimentos
e
que,
por
isso,
elas
deveriam
voltar
ao
seu
país
de
origem,
onde
tudo
é
permitido,
inclusive
para
os
homens
portugueses.
Figuras
34
e
35
–
Capa
da
revista
americana
Time
que
chama
Bragança
de
“Europe’s
New
Red
Light
District”
e
a
matéria
de
jornal
que
mostra
a
prisão
de
brasileiras
na
imprensa
portuguesa
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
Internet
Muitas
brasileiras
que
emigraram
e
que
não
vinham
a
Portugal
para
prostituir-‐
se,
mas
sim
para
tentar
uma
vida
melhor
e
mais
tranquila,
foram
conectadas
automaticamente
a
uma
geração
que
procurava
maridos
europeus
para
casar
e
assim
obter
o
visto
português
de
residência.
Essa
imigração
ficou
marcada
no
imaginário
dos
portugueses
e
vez
por
outra
a
discriminação,
espelhada
nesse
caso,
ainda
se
repete.
Interessante
lembrar
que
houveram
vários
casos
de
retaliação
das
mulheres
portuguesas
em
relação
ao
corpo
visto
como
sexualizado
da
mulher
escrava
no
período
colonial,
conforme
relatou
Freyre
(1933)
sobre
o
fato
de
que
as
senhoras
de
escravos
destroçavam
dentes
de
negras
com
sapato
ou
mandavam
cortar-‐lhes
os
mamilos
quando
chegavam
na
puberdade
para
que
não
fossem
mais
atrativas
aos
esposos
brancos.
Essa
cultura
de
“retaliação”
passou
a
alimentar
“uma
grande
rivalidade
entre
senhoras
e
escravas
–
ambas
desconhecendo
que
estavam
todas
submetidas
ao
mesmo
poder
patriarcal”
(Freitas,
2011,
p.67).
Triste
constatar
que
até
hoje
ainda
há
um
entendimento
de
que
os
homens
são
pobres
coitados
que
não
podem
resistir
ao
corpo
de
outra
mulher,
ainda
mais
se
for
de
uma
brasileira
ou
uma
africana,
remetendo
ambos
os
corpos
a
uma
cultura
de
estupro
internalizada
na
época
131
da
escravidão.
Isso
faz
com
que
as
próprias
mulheres
se
tornem
inimigas
umas
das
outras
por
causa
dessa
ordem
patriarcal
que
ainda
bombeia
as
veias
de
todo
o
mundo.
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
Internet
132
corpo-‐objeto
que
se
mostra
como
uma
constante
ameaça
contra
a
paz
da
família
portuguesa.
Os
homens
portugueses,
que
agora
não
se
lançam
mais
ao
mar,
passaram
a
frequentar
as
casas
de
alterne
à
procura
da
mulher
brasileira
que
é
capaz
de
tudo
para
satisfazer
o
seu
senhor.
Gomes
(2013)
acrescenta
que
este
corpo
disponível,
sexualizado,
ainda
atinge
todas
as
brasileiras,
independentemente
da
função
na
sociedade
ou
do
nível
de
escolaridade.
No
entanto,
a
diferença
de
classe
e
a
escolaridade
influenciam
a
vulnerabilidade
ao
estigma,
ou
seja,
mulheres
com
baixa
instrução
ao
exercer
atividades
domésticas
ou
de
atendimento
ao
público,
tornam-‐se
alvo
de
maior
preconceito
ou
de
sexualização.
A
capacidade
de
reação
organizada
deste
grupo
também
é
menor,
visto
que
se
sentem
inferiores
e
por
isso
internalizaram
já
essa
condição.
Gomes
(2013),
em
uma
revisão
crítica
de
estudos
realizados
sobre
a
mulher
brasileira
em
Portugal
em
sua
tese
de
doutoramento,
apontou
diversas
pesquisas
que
confirmam
a
permanência
nos
dias
atuais
do
estigma
da
facilidade
sexual
ou
mesmo
da
prostituição
que
carrega
a
mulher
brasileira
em
Portugal,
como
foi
o
caso
dos
trabalhos
de
Cunha
(2003;
2005)
e
Padilla
(2007).
Nesta
tese,
entretanto,
não
se
objetiva
traçar
uma
revisão
do
assunto,
mas
assinalar
que
muitos
estudos
já
comprovaram
a
permanência
de
um
estigma
colonial
no
que
se
refere
à
imagem
da
mulher
brasileira.
Figura
37
–
Neon
produzido
pela
artista
plástica
brasileira
Santarosa
Barreto
em
sua
residência
artística
em
Paris,
2016
Fonte:
Instagram
da
artista
(@santarosabarreto)
A
associação
da
mulher
brasileira
com
a
prostituição
deve-‐se
tanto
aos
media
portugueses
como,
também,
às
telenovelas
brasileiras
(Feldman-‐Bianco,
2010;
Machado,
1999).
Como
uma
mercadoria
pré-‐fabricada
no
próprio
Brasil,
a
mulher
brasileira
sensual,
principalmente
aquelas
que
são
negras
e
mulatas,
tornaram-‐se
133
atrativas
tanto
para
o
mercado
interno
como
para
o
externo.
Disto
se
percebe
que
no
Brasil
também
se
consome
o
estereótipo,
“pelo
que
a
exotização
se
sobrepõe
à
racialização”
(Padilla,
2007,
p.
125).
Cunha
(2003)
afirma
que
três
anos
após
o
fim
do
regime
ditatorial
português
houve
um
incremento
das
audiências
televisivas
em
Portugal
com
a
telenovela
Gabriela,
em
16
de
maio
de
1977,
adaptada
do
romance
homônimo
do
escritor
brasileiro
Jorge
Amado,
e,
desde
então,
esse
gênero
televisivo
vem
contribuindo
para
as
referências
lusófonas
da
mulher
tropical
do
Brasil.
Inclusive,
segundo
Cunha
(2005),
os
romances
de
Jorge
Amado
foram
os
mais
vendidos
naquela
época
na
Feira
do
Livro
de
Lisboa,
superando
a
venda
de
livros
políticos
pela
primeira
vez
após
o
25
de
Abril.
Gabriela
era
uma
mulher
sensual
que
representava
a
mudança
do
meio
patriarcal
da
Bahia
para
os
novos
tempos
de
renovação
cultural,
política
e
econômica
no
início
do
século
XX,
trata-‐se
de
uma
personificação
da
mudança.
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
internet
Importante
ressaltar,
entretanto,
que
não
é
apenas
em
Portugal
que
a
mulher
brasileira
é
frequentemente
associada
a
um
corpo
disponível
sexualmente.
Margolis
(1993
apud
Gomes,
2013,
pp.
8-‐9),
em
seu
estudo
sobre
os
brasileiros
em
Nova
York,
fala
que
“por
algum
motivo
a
fama
das
Brasileiras
se
exacerba,
tanto
entre
os
cidadãos
Brasileiros
como
entre
os
não-‐brasileiros.
Essa
fama
refere-‐se
a
uma
“marca
da
prostituição”
que
também
foi
vista
na
Itália
(Bógus
e
Bassanezi,
1999).
A
grande
diferença
entre
os
cenários
de
Portugal
e
o
de
outros
países,
prende-‐se
ao
fato
de
a
presença
das
brasileiras
em
Portugal
ser
proporcionalmente
maior.
134
As
empresas
turísticas
e
a
publicidade
têm
grande
peso
na
propagação
da
imagem
de
um
Brasil
exótico
ao
apresentar
mulatas
com
corpo
nu
como
atrativo
de
pacotes
turísticos
e
uma
natureza
exuberante
sempre
a
ser
descoberta.
Segundo
Gomes
(2012),
isto
tem
mudado
um
pouco,
pois
o
órgão
responsável
pelo
turismo
brasileiro
e
a
imprensa
portuguesa
estão,
atualmente,
desconstruindo
o
imaginário
da
mulher
mulata
e
erotizada,
para
construir
outros
imaginários
do
Brasil
com
a
apresentação
de
elementos
da
cultura
em
detrimento
de
corpos
expostos.
Isso,
deve-‐
se,
em
parte,
segundo
a
autora,
à
pressão
exercida
pelos
movimentos
sociais
e
feministas
brasileiros
no
Brasil
e
em
Portugal.
A
expressão
“corpo
colonial”
foi
cunhada
por
Franz
Fanon,
pensador
afro-‐
caribenho,
e
utilizada
como
forma
de
percepção
do
corpo
da
mulher
brasileira
reproduzido
nos
media
portugueses
e
imaginário
de
portugueses,
principalmente
no
trabalho
de
Mariana
Gomes
(2012).
Esse
“corpo
colonial”
refere-‐se
a
um
corpo
que
ainda
é
visto
como
disponível
e
sexualizado
pelo
olhar
do
europeu,
nomeadamente,
pelos
portugueses.
Quando
Fanon
trata
do
“corpo
colonial”,
segundo
Oto
(2016),
ele
fala
de
um
corpo
que
é
constituído
pelo
colonialismo
mas
que
passa
a
ser
visível
apenas
no
momento
pós-‐colonial,
quando
o
corpo
é
enunciado
como
existente
através
da
ação
política
que
abre
a
crítica
do
colonialismo.
Trata-‐se
de
um
corpo
que
passa
por
um
deslocamento
espacial
e
temporal,
um
corpo
que
é
visto
no
momento
posterior,
momento
pós-‐colonial,
e
por
isso
também,
em
outro
espaço,
produzindo
uma
“poética
do
deslocamento”
para
Fanon:
um
corpo
que
foi
visto
e
reduzido
pelos
olhos
da
alteridade
no
passado,
mas
que
hoje
se
afirma
como
uma
identidade
libertadora.
Esse
corpo
da
mulher
brasileira
sob
estigma
colonial,
ainda,
como
muitas
pesquisas
realizadas
em
Portugal
mostraram
(Machado,
2004;
Feldman-‐Bianco,
2010;
Cunha,
2002;
Lages
e
Policarpo,
2003;
Padilla,
2007;
Gomes,
2012),
é
reconhecido,
no
momento
pós-‐colonial,
principalmente,
e
com
mais
força,
como
aquele
corpo
disponível
ao
olhar
do
outro
quando
surgem
em
imagens
nos
media
portugueses
e
nas
telenovelas
brasileiras.
Juntos,
reproduzem
ainda
a
mulher
negra
como
fetiche
ou
a
mulher
objeto
com
a
fragmentação
do
seu
corpo.
A
mulher
brasileira
pode
ser
entendida
então
como
uma
dobra
de
significações
que
une
raça
e
sexualização
como
identificação.
Esse
corpo,
ainda
representado
de
forma
objetificadora
e
reduzida,
135
passa
a
ser
desconstruído
através
de
um
pensamento
pós-‐colonial
e
feminista
para
que
se
torne
possível
descolonizar
o
pensamento
europeu
e,
também,
o
pensamento
da
própria
mulher
brasileira
que
muitas
vezes
pode
repetir
o
que
lhe
foi
internalizado
pela
cultura
heteronormativa
durante
todos
esses
anos.
Sabe-‐se
bem
que
ser
brasileiro
no
início
do
século
XXI
não
é
o
mesmo
que
sê-‐lo
no
século
XVI.
Considerando
o
que
Foucault
(2004
[1970])
escreve
sobre
o
discurso,
somos
sujeitos
e
objetos
da
história,
somos
resultado
das
múltiplas
relações
e
atribuições
de
sentidos.
Isso
porque
o
poder
é
relacional,
ele
convence
para
a
sua
livre
adesão
quando
nos
leva
a
seguir
em
alguma
direção
ao
mesmo
tempo
em
que
sofremos
os
seus
efeitos.
Ainda
segundo
Foucault
(2004),
quem
escreve
a
história
tem
motivações
específicas
e
utiliza
códigos
específicos,
inexistindo
um
“sujeito
fundador”
desinteressado
ou
com
algum
intuito
nobre.
Compreendendo
que
a
realidade
é
uma
construção
discursiva
que
é
controlada,
selecionada,
organizada
e
redistribuída
por
procedimentos
externos
e
internos
a
ela,
de
modo
a
prevenir
os
poderes
e
os
perigos,
dominar
a
força
dos
eventos
incontroláveis
e
esconder
as
forças
que
materializam
a
constituição
social
(2004,
p.
9),
deve-‐se
entender
o
discurso
não
no
âmbito
da
imaterialidade,
mas
sim
da
materialidade,
pois
é
dessa
forma
que
ele
se
efetiva
e
produz
efeitos.
Por
isso,
o
lugar
do
discurso
é
o
da
relação
(Ibidem,
p.57),
pois
cria
o
que
é
verdadeiro
e
falso,
o
legal
e
o
ilegal,
o
normal
e
o
anormal.
É
o
discurso
que
“liga
os
indivíduos
a
certos
tipos
de
enunciação
e
lhes
proíbe,
consequentemente,
todos
os
outros
(...)
serve,
em
contrapartida,
de
certos
tipos
de
enunciação
para
ligar
indivíduos
entre
si
e
diferenciá-‐los,
por
isso
mesmo,
de
todos
os
outros”
(Ibidem,
p.43).
Desse
modo,
devemos
encarar
os
textos
e
as
imagens
agrupadas
neste
capítulo
com
referência
à
uma
motivação
de
quem
escreveu,
pois
foram
produzidos
de
acordo
com
estratégias
de
convencimento
e
os
veículos
de
informação
são
instrumentos
de
amplo
alcance
dessa
disseminação
de
um
saber
que
é
forma
de
poder,
instrumento
que
pode
ser
orientado
para
promover
e/ou
excluir.
A
materialização
de
discursos
que
propagavam
“verdades”
produzidas
por
uma
sociedade
que
procurava
diferenciar-‐se
de
uns
(brasileiros)
e
unirem-‐se
a
outros
(portugueses),
ditavam
comportamentos
e
proibiam
outros.
Sabendo
disso,
procurou-‐se
desnaturalizar
tais
discursos
ou
produção
de
“verdades”
já
consagradas
para
deixar
emergir
os
jogos
de
poder
que
estão
136
envolvidos
na
produção
do
que
é
normal,
verdadeiro
e
justo,
de
modo
a
conferir
uma
coerência
aos
fatos
dispersos
que
foram
aqui
reunidos.
137
Capítulo
IV
138
No
que
se
refere
ao
habitante
do
Brasil
na
época
colonial,
pode-‐se
dizer
que
o
termo
“brasileiro”
agrupa
sentidos
complexos,
pois
variam
de
acordo
com
a
raça
e
o
gênero,
mas
ao
fim
todos
são
exóticos,
no
limite
da
humanidade
e
representados
como
se
fizessem
parte
da
paisagem
do
“Novo
Mundo”.
Isto
ocorre,
principalmente,
devido
ao
fato
de
que
a
construção
de
uma
“identidade”
brasileira
foi
construída
de
acordo
com
o
olhar
de
uma
camada
privilegiada
sobre
o
Outro,
que,
por
sua
vez,
era
desprovido
de
meios
materiais
e
simbólicos
de
representação.
Durante
muito
tempo,
desde
1500
para
ser
mais
exata,
foram
proferidas
muitas
“verdades”
sobre
o
caráter
brasileiro
que
passaram
então
a
povoar
o
imaginário
europeu,
incluindo
aquelas
associações
justificadas
com
base
em
“ciências”
duvidosas
que
conectavam
problemas
do
caráter
à
etnia,
pois
era
um
“problema
genético”.
Nesses
poucos
mais
de
500
anos
após
a
chegada
dos
portugueses
no
Brasil,
homens
e
mulheres
que
não
nasceram
na
Europa
foram
representados
como
preguiçosos,
canibais,
tristes,
sexualizados,
cordiais,
malandros
e
corruptos.
Este
conjunto
resumido
de
características
associadas
ao
brasileiro
(a),
é
repetido
pela
imprensa
e,
assim,
demonstram
a
força
dos
discursos
atribuídos
pelo
ponto
de
vista
139
europeu
a
um
povo
percebido
como
culturalmente
inferior.
Diante
disso,
tornou-‐se
fundamental
encontrar,
a
partir
do
exame
do
passado,
os
vestígios
e
contaminações
que
se
desdobram
nos
discursos
proferidos
e
propagados
sobre
os
brasileiros
pelos
portugueses,
sejam
em
textos
ou
fotografias,
como
forma
de
compreender
a
conformação
identitária
brasileira.
Trata-‐se
de
um
exame
do
passado,
das
raízes
étnicas
de
um
povo,
para
lançar
um
olhar
crítico
à
percepção
da
imagem
do
brasileiro
no
presente.
IV.1.
Povo
indígena:
bárbaros
e
canibais
42
Os involuntários da pátria. Aula pública durante o ato Abril Indígena. Rio de Janeiro, 20/04/2016.
Disponível em: https://ufrj.academia.edu/EVdeCastro
140
No
entanto,
os
povos
indígenas
ainda
não
são
considerados
“brasileiros”
por
viver
naquela
terra.
Eles
não
são
registrados,
controlados
ou
seguem
as
leis
de
um
Estado
soberano
(apesar
de
ter
que
respeitar
o
que
o
Estado
determina
como
seu
espaço).
Eles
sempre
foram
livres,
ao
contrário
do
“branco”,
o
aprisionador.
E
essa
liberdade
inclui
uma
relação
vital
com
a
terra:
“O
indígena
olha
para
baixo,
para
a
Terra
a
que
é
imanente;
ele
tira
sua
força
do
chão.
O
cidadão
olha
para
cima,
para
o
Espírito
encarnado
sob
a
forma
de
um
Estado
transcendente;
ele
recebe
seus
direitos
do
alto”
(Viveiros
de
Castro,
2006).
Diante
disto,
a
palavra
“índio”,
como
categoria
genérica,
foi
inventada
pelos
“brancos”,
pelo
Estado
“branco”,
imperial,
especialistas
na
generalização.
O
Estado
é
único,
singular
na
sua
própria
universalidade;
o
povo,
ao
contrário,
é
múltiplo,
mas
foram
dissolvidos
e
homogeneizados
para
serem
“abrasileirados”
pelo
poder
transcendente.
Por
causa
do
modo
de
vida
simples
e
da
utilização
da
caça
e
da
agricultura
para
viver,
muitos
portugueses
tinham
a
convicção
de
que
os
indígenas
viviam
num
momento
anterior
ao
homem
da
pedra.
É
o
que
pode
ser
visto
no
livro
A
evolução
do
povo
brasileiro
(1923)
de
Oliveira
Viana
(1883-‐1951),
historiador
e
sociólogo
brasileiro.
Neste
livro
ele
diz
que
entre
as
Índias
e
o
Brasil
há
uma
diferença
essencial:
Enquanto
que
nas
Índias
foi
encontrada
uma
civilização
milenária
com
uma
população
organizada,
que
tinha
além
de
uma
indústria
desenvolvida,
riqueza
acumulada
e
longa
tradição
comercial
com
os
povos
do
Ocidente
e
Oriente;
no
Brasil
acontecia
justo
o
contrário,
pois
os
portugueses
“encontraram
uma
população
de
aborígenes
ainda
na
idade
da
pedra
polida;
que
não
conhece
o
uso
de
metais;
que,
na
sua
maior
parte,
está
ainda
na
fase
puramente
caçadora;
que
pratica
apenas
uma
agricultura
rudimentar”
(Viana,
1923,
p.48).
Claude
Levi-‐Strauss
tem
uma
opinião
totalmente
oposta
à
do
sociólogo
Oliveira
Viana.
Em
Saudades
do
Brasil
(2009
[1994]),
o
antropólogo
conta
que
pesquisas
arqueológicas
recentes
mostraram
que
os
índios
são,
na
verdade,
sobreviventes
de
civilizações
mais
altas
e
numerosas,
possuidores
de
técnicas
muito
modernas.
As
mesmas
pesquisas
provaram
também
que
a
existência
dos
povos
indígenas
é
anterior
a
10.000
a.C.
Escavações
recuperaram
restos
de
cerâmica
em
Marajó
(embocadura
do
141
Rio
Amazonas)
e
no
baixo
Amazonas,
que
possuíam
influência
andina.
Ou
seja,
a
Amazônia
poder
ser
o
berço
das
civilizações
andinas.
Para
Darcy
Ribeiro
(2012
[1995]),
quando
os
portugueses
chegaram
ao
Brasil
se
depararam
com
grupos
indígenas
que
em
sua
maioria
eram
de
tronco
Tupi.
Esses
grupos
foram
os
primeiros
a
utilizar
a
atividade
agrícola,
domesticando
diversas
plantas
selvagens
para
mantimento
de
seus
roçados.
Para
o
autor,
esse
grupo
foi
amistoso
e
receptivo
com
os
portugueses
que
ao
desembarcar
das
caravelas
foram
vistos
sob
uma
espécie
de
encantamento.
Apesar
dessa
concepção
do
“bom
selvagem”,
alimentada
pelos
relatos
de
uma
chegada
pacífica
dos
portugueses
no
território
brasileiro,
os
povos
indígenas
nunca
formaram
um
grupo
homogêneo.
A
própria
condição
tribal
“fazia
com
que
cada
unidade
étnica,
ao
crescer,
se
dividisse
em
novas
entidades
autônomas
que,
afastando-‐se
umas
das
outras,
iam
se
tornando
reciprocamente
mais
diferenciadas
e
hostis”
(Ribeiro,
2012,
p.29).
Os
Tupi
viviam
em
guerra
permanente
contra
outras
tribos
que
se
alojavam
em
sua
área
de
expansão
ou
mesmo
contra
seus
vizinhos
de
mesma
matriz
cultural.
Seja
pela
disputa
das
melhores
áreas
para
caça,
pesca
e
lavoura
ou
pela
condição
cultural,
que
visava
a
captura
de
prisioneiros
para
antropofagia
ritual.
43
Hans
Staden
(1525
-‐1579)
foi
um
aventureiro
mercenário
alemão
que
por
duas
vezes
esteve
no
Brasil,
participando
de
combates
nas
capitanias
de
Pernambuco
e
de
São
Vicente
contra
navegadores
franceses
e
seus
aliados
indígenas
e
onde
passou
nove
meses
refém
dos
índios
tupinambás.
De
volta
à
Alemanha,
Staden
escreveu
"História
verdadeira
e
descrição...",
de
1557),
com
um
relato
de
suas
viagens
ao
Brasil
e
que
se
tornou
um
grande
sucesso
editorial
da
época.
142
Figura
39
–
Canibalismo
no
Brasil
descrito
por
Hans
Staden.
Gravura
de
Théodore
de
Bry,
1562
Fonte:
Coleção
particular,
Rio
de
Janeiro.
Essa
redução
da
prática
cultural
indígena
a
um
fator
econômico
demonstra
que
é
frequente
a
incompreensão
da
cultura
indígena,
fato
que
também
foi
visto
por
Bideaux
(1994)
em
Frank
Lestringant,
Le
cannibale:
grandeur
et
décadence,
ao
fazer
uma
análise
da
imagem
do
canibalismo
na
Europa.
Para
ele,
143
extrema
escassez
de
víveres,
vira
seu
apetite
contra
seus
semelhantes
(1994,
p.
30).
Conforme
Adone
Agnolin
(2002),
sob
uma
perspectiva
histórico-‐religiosa,
a
prática
alimentar
não
é
condicionada
por
um
valor
nutritivo.
Para
o
investigador,
os
cronistas
da
época,
viajantes
e
missionários,
ofereceram
respostas
que
são
contrastantes
com
a
ideia
materialista.
Não
se
tinha
prazer
em
comer
a
carne
de
outro
homem,
isto
apenas
obedecia
aos
preceitos
ritualísticos
da
antropofagia:
144
A
propagação
da
imagem
dos
índios
como
mansos
e
depois
como
bárbaros
iniciou-‐se
com
a
carta
escrita
por
Pero
Vaz
de
Caminha
ao
El
Rei
D.
Manuel,
em
primeiro
de
maio
de
1500.
Nela,
Caminha
descreve,
através
de
presunções
do
que
viu,
que
os
índios
eram
bárbaros
e
por
isso
deveriam
ser
amansados
pela
fé
cristã.
Mas,
“apesar
de
tudo
isso
andam
bem
curados,
e
muito
limpos...
São
como
aves,
ou
alimárias
montesinas,
as
quais
o
ar
fez
melhores
penas
e
melhor
cabelos
que
às
mansas
(...)”.
Logo
após
essa
curiosidade
inicial
e
por
causa
dos
rituais
antropofágicos,
os
índios
foram
vistos
como
“canibais,
totalmente
detestáveis
mas
susceptíveis
ainda
de
salvação”
(Arroyo,
1963,
p.22).
Bárbaros
ou
canibais,
os
povos
indígenas
foram
catequizados
à
força
e
submetidos
a
um
processo
de
aculturação.
A
difusão
do
canibalismo
foi
a
desculpa
perfeita
para
um
novo
propósito:
escravizar
os
índios.
Nesse
processo
devastador,
vários
índios
perderam
o
uso
da
língua
e
da
cultura
devido
à
presença
de
escolas
missionárias
em
seu
território.
Segundo
Darcy
Ribeiro
(2012),
os
adereços
e
plumárias
eram
guardados
pelos
jesuítas
para
que
não
fossem
“danificados”.
A
reposição
dos
artigos
tomados
tornou-‐se
difícil,
pois
muitas
aves
de
cores
vivas
passaram
a
ser
exportadas
para
o
outro
lado
do
oceano.
Algumas
tribos
ainda
foram
introduzidas
na
cultura
europeia,
mas
morreram
com
doenças
de
145
“branco”
e
alcoolismo.
Aos
poucos,
diante
do
estado
das
coisas,
os
índios
foram
obrigados
a
procurar
esconderijos
no
interior
de
florestas
e
áreas
de
difícil
acesso,
para
evitar
novas
invasões
portuguesas.
Os
portugueses,
por
outro
lado,
estavam
sempre
próximos
ao
mar,
sua
rota
de
fuga
caso
algo
desse
errado.
Isto
originou
uma
palavra
antiga
que
passou
a
descrever
o
português:
marinheiro.
A
chegada
dos
portugueses
foi
agressiva
e
capaz
de
destruir
de
várias
formas
a
existência
indígena.
Segundo
conta
Darcy
Ribeiro
(2012),
apesar
de
ser
um
grupo
pequeno
de
brancos
a
aportar
no
território
de
Santa
Cruz,
esse
grupo
atuou
em
vários
níveis
na
dizimação.
Nos
níveis
bióticos,
trouxeram
as
pestes
do
homem
branco
que
eram
mortais
para
os
indígenas;
no
nível
ecológico,
iniciaram
uma
disputa
de
territórios,
mata
e
riqueza
para
exploração
colonial;
e
nos
níveis
econômico
e
social,
inseriram
a
escravização
do
indígena.
147
Os
povos
indígenas
conseguiram
organizar
algumas
confederações
regionais,
mesmo
que
efêmeras,
contra
o
domínio
dos
portugueses.
A
mais
importante
foi
a
Confederação
dos
Tamoios,
motivada
pela
aliança
com
os
franceses
que
estavam
alojados
na
baía
da
Guanabara.
Apesar
das
derrotas
enfrentadas,
eles
jamais
estabeleceram
uma
paz
estável
com
o
colonizador,
exigindo
um
esforço
continuado
do
invasor
ao
longo
de
muito
tempo
para
dominar
cada
região.
A
resistência
indígena
contra
a
escravidão,
segundo
afirma
Darcy
Ribeiro
(2012),
é
explicada
devido
à
sua
estrutura
social
igualitária
que
não
admitia
um
poder
superior,
nem
camadas
inferiores
que
fossem
condicionadas
à
subordinação
e,
por
isso,
seria
impossível
se
organizarem
como
um
Estado,
ao
mesmo
tempo
que
seria
impossível
a
sua
dominação.
Na
ordem
de
jesuítas,
como
nos
de
Anchieta,
até
encontraram
alguns
defensores
contra
a
violência
praticada
pelos
traficantes
e
colonizadores,
mas
nem
por
isso
deixaram
de
sofrer
ataques
desapiedados
ao
serem
caçados
pelos
bandeirantes
pelo
interior
do
Brasil.
São
Miguel
da
Cachoeira,
município
do
Amazonas,
abriga
o
maior
número
de
indígenas.
São
29
mil
espalhados
pelo
território
e
há
outras
línguas
oficiais
além
do
português,
que
são
o
tukano,
baniwa
e
nheengatu,
todas
línguas
indígenas.
Denilson
Baniwa,
ativista
indígena,
diz
que
há
ainda
um
desconhecimento
sobre
as
diferenças
culturais
entre
os
povos
indígenas
brasileiros.
Para
ele,
"comparar
um
baniwa
a
um
tukano
é
como
comparar
um
francês
a
um
japonês.
São
povos
com
línguas,
hábitos
e
45
“Pesquisa
inédita
do
IBGE
detalha
características
de
povos
indígenas
brasileiros”,
matéria
Disponível
em
http://www.tribunapopular.com.br/noticia/pesquisa-‐inedita-‐do-‐ibge-‐detalha-‐caracteristicas-‐de-‐
povos-‐indigenas-‐brasileiros.
149
características
físicas
bastantes
distintas,
e
isso
porque
vivem
bem
próximos.
Imagine
a
diferença
entre
um
baniwa
e
um
kaingang,
um
povo
lá
do
Rio
Grande
do
Sul?"
46
Sempre
houve
uma
generalização
do
que
se
entende
por
índio
ou
indígena.
Todos
eles
foram
considerados,
de
uma
só
vez,
como
preguiçosos
por
causa
da
sua
inaptidão
à
escravização;
bárbaros,
por
causa
do
hábito
de
algumas
tribos
de
rituais
antropofágicos;
atrasados,
por
causa
da
produção
agrícola
ter
sido
considerada
rudimentar.
Todas
essas
características
foram
apreendidas,
ao
longo
do
tempo,
como
inerentes
à
toda
comunidade
indígena.
Não
se
tem
a
consciência
de
que,
mesmo
ainda
resistindo
em
número
muito
inferior
ao
número
inicial,
cada
etnia
tem
suas
particularidades,
rivalidades
e
aspectos
culturais
diferentes.
46
Entrevista
publicada
no
site
da
BBC
Brasil.
Disponível
em
http://www.bbc.com/portuguese/brasil-‐
36682290?SThisFB.
Acesso
em
10/04/2017.
47
Cf.
Vídeo
do
Instituto
Socioambiental
(ISA)
#MenosPreconceitoMaisÍndio.
Disponível
em
https://www.youtube.com/watch?v=uuzTSTmIaUc
150
IV.2.
Escravo
africano:
melancolia
e
sexualidade
151
A
maioria
dos
negros
foi
capturada
na
costa
ocidental
africana,
constando
basicamente
de
três
tipos
culturais
(Ribeiro,
2012):
os
Yorubá
(conhecidos
como
nagô,
gegê
ou
minas);
os
Peuhl,
os
Mandiga
e
os
Haussa
(culturas
africanas
islamizadas
do
norte
da
Nigéria,
conhecidos
como
negros
malé
na
Bahia
e
negros
alufá
no
Rio
de
Janeiro);
e
os
Bantu
(grupo
congo-‐angolês).
Sabendo
destes
fatores,
as
únicas
coisas
que
os
africanos
levados
para
o
Brasil
tinham
em
comum
eram
a
cor
e
a
condição
de
escravos.
Com
línguas
diferentes
e
a
hostilidade
latente,
os
escravos
foram
obrigados
a
fazer
parte
do
universo
cultural
da
nova
sociedade.
Com
o
tempo,
aprenderam
o
português
com
seus
capatazes
e,
com
a
presença
indígena
cada
vez
mais
rara,
passaram
então
a
influenciar
de
maneira
decisiva
na
formação
da
sociedade
local.
Esta
introdução
do
negro
africano
no
Brasil
remarcou
o
“amálgama
racial
e
cultural
brasileiro
com
suas
cores
mais
fortes”
(Ribeiro,
2012,
p.102).
Ou
seja,
mudou-‐se
a
fisionomia
do
brasileiro,
marcada
então
por
singularidades
e
africanidades.
Devido
a
essa
mistura
de
etnias,
o
antropólogo
brasileiro
conta
que
os
habitantes
pareciam
aos
olhos
visitantes
como
uma
gente
bizarra,
o
que
somado
à
tropicalidade
índia,
os
qualificariam
como
exóticos.
A
escravidão
foi
o
real
alicerce
da
sociedade
colonial,
pois
os
negros
eram
as
mãos
e
pés
do
senhor.
Na
região
do
Recôncavo,
na
Bahia,
os
escravos
africanos
chegaram
a
ser
mais
de
75%
da
população.
No
Rio
de
Janeiro,
capital
do
império
português,
chegaram
a
constituir
mais
da
metade
da
população
(Lissovsky,
1987).
Diante
desta
enorme
presença,
o
negro
influenciou
na
demografia
de
forma
muito
mais
considerável
que
outras
matizes,
embora
a
afluência
de
novos
contingentes
152
brancos
e
a
seleção
social
(e
não
a
natural)
contribuísse
para
que
a
presença
do
branco
se
acentuasse
no
Brasil.
Para
os
portugueses
o
negro
era
mais
submisso
e
mais
robusto
que
os
índios.
Essas
“qualidades”
eram
importantes
para
o
transporte
de
cargas
e
a
execução
do
trabalho
de
forma
mais
ágil.
Essa
construção
da
ideia
de
um
“negro
submisso”
deve-‐se
ao
fato
de
que
eles
não
tinham
para
onde
ir
em
caso
de
fuga:
caso
quisessem
voltar
para
casa
tinham
o
oceano
como
obstáculo;
caso
ficassem,
eram
capturados
ou
teriam
que
disputar
terras
com
índios
“vorazes
e
antropófagos”
(Corrêa,
1938).
154
novamente
como
escravos.
Isto
demonstra
que
os
negros,
após
a
abolição
da
escravatura,
foram
lançados
num
poço
profundo
e
desumano
do
qual
poucos
conseguiam
fugir.
O
sistema
real
não
previu
e
nem
planejou
o
processo
de
inserção
desses
ex-‐escravos
que
nunca
tiveram
direitos
ou
cidadania,
pois
a
extinção
da
escravatura
aconteceu
mais
por
pressão
externa
do
que
por
uma
visão
humanista
da
Princesa
Isabel.
A
Lei
Áurea,
lei
imperial
n.
3.353,
sancionada
em
13
de
maio
de
1888,
fez
com
que
muitos
ex-‐escravos,
por
falta
de
instrução,
passassem
a
exercer
atividades
pesadas
ou
braçais,
equivalentes
às
qualificações
que
receberam
quando
aportaram
no
país.
Figura
40
-‐
Missa
campal
celebrada
em
ação
de
graças
pela
Abolição
da
Escravatura
no
Brasil,
1888.
São
Cristóvão,
Rio
de
Janeiro
Fonte:
Antônio
Luiz
Ferreira/IMS.
Muitos
falam
que
a
escravidão
foi
mais
branda
no
Brasil
em
relação
às
outras
colônias
americanas.
Segundo
essa
teoria,
a
índole
portuguesa
foi
“amaciada
pelo
contato
dos
trópicos
e
a
geral
moleza
que
caracteriza
a
vida
brasileira”,
como
diz
Caio
Prado
Jr.
em
Formação
do
Brasil
Contemporâneo
(1942,
p.276).
Esta
tese
“climática”
fez
surgir
a
associação
da
moleza
ou
preguiça
ao
povo
brasileiro.
Ao
negro,
exilado
e
escravo,
sobrou-‐lhe
a
tristeza.
Em
Retrato
do
Brasil
–
Ensaio
sobre
a
‘tristeza’
brasileira
(1927),
Paulo
Prado
refere-‐se
à
associação
da
luxúria
e
da
cobiça
ao
brasileiro
como
resultado
dessa
tristeza.
Para
o
autor,
a
luxúria
foi
resultado
da
intensa
vida
sexual
que
o
colono
estabeleceu
com
os
escravos;
e
a
cobiça
resultou
de
uma
grande
melancolia,
pois
os
esforços
para
enriquecer
não
resultavam.
No
155
entanto,
essas
caracterizações
não
podem
ser
concebidas
como
traços
da
personalidade,
são,
sobretudo,
se
utilizáveis,
fruto
das
circunstâncias
que
foram
impostas
aos
escravizados.
A
tristeza
fez
com
que
muitos
escravos,
arrancados
de
suas
terras
e
famílias
morressem
de
banzo48;
enquanto
a
sexualidade
foi
algo
imposto
pelos
colonizadores
como
parte
da
tarefa
de
possuir
aqueles
corpos
para
o
que
bem
entendessem.
Os
negros
foram
sempre
os
“bodes
expiatórios”,
eram
estrangeiros
e
exilados,
possuidores
de
características
inaceitáveis
para
a
cultura
europeia.
157
intermediação
de
escambo,
trocando
artigos
europeus
pelas
mercadorias
da
terra”
(Ribeiro,
2012,
p.74).
159
O
trabalho
escravo
era
utilizado
para
produção
mercantil
e
a
utilização
de
meios
violentos
de
ordenação
e
repressão
abriu
caminho
para
o
genocídio
e
etnocídio.
Esta
violência
aumentou
o
distanciamento
entre
classes
sociais
dominantes
e
subordinadas.
O
Estado
atuou
sempre
às
custas
do
pânico
que
causava
nas
classes
oprimidas
e
isto
ainda
se
mostra
presente
na
sociedade
brasileira.
Este
racismo
se
mostra
como
resultado
de
um
processo
violento
e
desumano
de
construção
de
uma
nação
colonizada
tendo
como
base
a
escravidão.
A
obra
de
Casa
Grande
&
Senzala
de
Gilberto
Freyre
surgiu
em
um
momento
muito
oportuno
para
fazer
da
mestiçagem
uma
grande
representação
nacional.
Segundo
Vera
Lúcia
Mata
e
Artur
Gomes
(2001),
foi
a
partir
dos
conceitos
elaborados
por
Freyre,
de
aclimatabilidade
e
miscibilidade,
que
“os
aparentes
“pares
de
oposição”
branco/negro,
casa
grande/senzala,
senhor/escravo,
parecem
acabar
por
se
harmonizar,
dando
origem
a
uma
situação
nova”.
Para
Freyre
(1933),
a
relação
senhor-‐
escravo
se
estabelece
num
constante
processo
de
troca,
característica
da
especificidade
“harmonizadora”
do
colonizador,
que
resultou
em
uma
relação
de
equilíbrio
e
não
de
conflito.
Foi
passada
uma
percepção
nacional
como
uma
soma
de
160
raças,
regiões
e
culturas,
pois
Freyre
acredita
que
não
houve
uma
relação
conflituosa
dominador/dominado,
mas
sim
uma
harmonia
promovida
pelo
português,
“tipo
ideal”
de
colonizador
dos
trópicos.
Isto
seria
fruto,
para
o
autor,
da
posição
geográfica
estratégica
de
Portugal
que,
por
estar
entre
a
Europa
e
a
África,
tornou-‐se
local
propício
ao
encontro
de
várias
etnias
e
culturas.
De
fato,
é
mais
fácil
dizer
que
o
Brasil
foi
formado
por
um
triângulo
de
raças,
o
que
nos
conduz
ao
mito
da
democracia
racial,
do
que
assumir
que
somos
uma
sociedade
hierarquizada,
que
opera
por
meio
de
gradações
e
que,
por
isso
mesmo,
pode
admitir,
entre
o
branco
superior
e
o
negro
pobre
e
inferior,
uma
série
de
critérios
de
161
classificação.
Assim,
podemos
situar
as
pessoas
pela
cor
da
pele
ou
pelo
dinheiro.
Pelo
poder
que
detêm
ou
pela
feiúra
de
seus
rostos.
Pelos
seus
pais
e
nome
de
família,
ou
por
sua
conta
bancária.
As
possibilidades
são
ilimitadas,
e
isso
apenas
nos
diz
de
um
sistema
com
enorme
e
até
agora
inabalável
confiança
no
credo
segundo
o
qual,
dentro
dele,
“cada
um
sabe
muito
bem
o
seu
lugar”
(1984,
p.
32).
Em
Racismo
à
brasileira,
Edward
Telles
(2003)
propôs,
através
de
uma
mescla
entre
dados
estatísticos
e
obras
de
estudiosos,
uma
nova
forma
de
ver
a
questão
racial
do
Brasil.
Nesta
análise,
Telles
diz
que
os
pardos
possuem
uma
ligeira
vantagem
acima
das
pessoas
negras,
mas
ainda
é
muito
abaixo
das
pessoas
brancas
de
classe
média.
Disto
dá-‐se
a
entender
que
o
racismo
aumenta
ou
diminui
no
país
segundo
a
quantidade
de
melanina
na
pele.
A
cor
parda,
agora
incluída
nas
pesquisas
censitárias
do
país,
no
entanto,
depende
da
percepção
do
agente
que
realiza
o
questionário
porta
a
porta.
Este
fator
pode
dificultar
ter
com
exatidão
o
número
de
negros
no
Brasil.
Mas
as
raízes
brasileiras
não
foram
apenas
estudadas
na
área
das
ciências
humanas.
O
geneticista
Sérgio
Danilo
Pena,
da
Universidade
e
Minas
Gerais,
estabeleceu
com
precisão,
do
ponto
de
vista
genético,
de
onde
vem
o
brasileiro.
No
livro
Homo
Brasilis
(2002)
ele
estabeleceu
o
“Retrato
molecular
do
Brasil”
com
a
análise
de
DNA.
Nesta
demonstração,
97%
dos
brancos
brasileiros
tinham
ancestrais
europeus
no
lado
paterno.
Já
a
linhagem
materna
dividia-‐se
em
3
ramificações:
39%
europeia,
33%
ameríndia
e
28%
africana.
No
total,
61%
dos
brasileiros
possuem
herança
indígena
ou
africana
do
lado
materno.
Os
números
só
confirmam
que
os
autores
como
Freyre
(1933),
Holanda
(2012)
e
Ribeiro
(1995),
“usando
metodologia
histórica,
sociológica
e
antropológica
já
analisaram
as
origens
do
povo
brasileiro”
(Pena,
2002,
p.
11).
Geneticamente
ou
sociologicamente
o
resultado
é
o
mesmo:
os
brancos,
os
colonizadores,
tiveram
uma
grande
quantidade
de
filhos
com
as
índias
e
as
escravas
africanas.
Em
1941
a
Walt
Disney
resolveu
investir
nesta
aproximação
com
a
criação
de
projetos
para
representar
a
“Política
da
Boa
Vizinhança”.
Mandaram
um
grupo
de
músicos,
roteiristas
e
desenhistas
para
o
México
e
América
do
Sul.
Após
esta
viagem,
a
equipe
regressou
aos
Estados
Unidos
com
esboços
para
dois
longa-‐metragens
de
animação:
Olá
amigos
(“Saludos
Amigos”)
que
teve
a
sua
estreia
em
1943
e
Você
já
foi
à
Bahia?
(The
Three
Caballeros),
que
estreou
em
1945.
Algumas
especificidades
foram
importantes
para
a
construção
dessas
animações
que
passaram
a
representar
uma
ideia
de
Brasil
em
uma
escala
mundial:
164
‘bicos’”
49
(Cavalcante,
2005,
pp.
71-‐72).
Estava
assim
criado
o
estereótipo
do
brasileiro
mais
assimilado
em
todo
o
mundo.
O
curioso
é
que
esta
ideia
foi
percebida
como
proposta
de
projeção
de
uma
imagem
positiva
do
brasileiro.
Getúlio
Vargas,
líder
da
ditadura
militar
no
Brasil
à
época,
viu
no
filme
norte-‐americano
uma
homenagem
ao
brasileiro
e
logo
patrocinou
o
lançamento
do
longa-‐metragem
no
Rio
de
Janeiro.
Esta
era
a
época
de
grande
interesse
pelas
coisas
nacionais,
considerava-‐se
a
mestiçagem
como
um
elogio
ao
brasileiro
ao
invés
de
transmitir
o
sentimento
de
desvantagem
que
os
habitantes
realmente
sentiam.
Neste
período,
“estava
em
curso
no
país
um
pensamento
que
negava
o
argumento
racial,
arriscava
explicações
de
ordem
cultural
e
insistia
em
oferecer
a
mestiçagem
como
a
melhor
resposta
do
Brasil
ao
resto
do
mundo”
(Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.477).
Figura 41 -‐ Pato Donald e Zé Carioca em Olá, Amigos (1942)
Fonte:
Reprodução
encontrada
na
internet
Sérgio
Buarque
de
Holanda
em
Raízes
do
Brasil
(2012)
analisou
a
formação
do
Brasil,
abordando
também
o
receptividade
do
brasileiro
como
símbolo
nacional.
Para
ele,
“(...)
a
lhaneza
no
trato,
a
hospitalidade,
a
generosidade,
podem
ser
observados
no
brasileiro
pelos
estrangeiros
que
os
visitam”.
Neste
modo
de
ser,
“permanece
ativa
e
fecunda
a
influência
ancestral
dos
padrões
de
convívio
humano
informados
no
meio
rural
e
patriarcal”
(2012,
p.146).
Esta
obra,
produzida
no
contexto
da
urbanização
crescente,
estabeleceu
a
expressão
“homem
cordial”
para
falar
do
brasileiro
que
carrega
consigo
as
“relações
de
simpatia”
(Holanda,
2012).
As
relações
cordiais
são
49
No
Brasil
“fazer
um
bico”
significa
trabalhar
com
serviços
informais,
como
encanador,
jardineiro,
babá,
etc.
165
responsáveis
por
reduzir
qualquer
padrão
social
rígido
em
padrão
pessoal
e
afetivo.
Isto
pode
acontecer
também
no
âmbito
da
linguagem
através
da
utilização
dos
diminutivos
para
se
ter
acesso
a
alguma
intimidade.
Esta
particularidade
seria
um
traço
nítido
de
atitude
“cordial”;
uma
maneira
de
tornar
o
outro
mais
acessível.
Este
apego
aos
diminutivos
foi
encontrado
também
como
traço
rural
em
terras
de
língua
espanhola,
como
em
Andaluzia,
Salamanca
e
Aragão.
Segundo
Amado
Alonso
(1935
apud
Holanda,
2012),
os
ambientes
rurais
espanhóis
que
utilizavam
essas
maneiras
eram
contrários
às
relações
interpessoais
das
sociedades
ou
classes
cultas,
que
consideravam
insinceras
e
isentas
de
expressividade.
No
Brasil,
segundo
Holanda
(2012),
a
utilização
de
diminutivos
tem
relação
com
uma
saudade
em
relação
ao
estilo
de
convivência
do
ambiente
patriarcal,
cuja
marca
o
urbanismo
não
conseguiu
apagar.
O
autor
ainda
diz
que
este
aspecto
causa
zombaria
pelos
portugueses,
considerado
tão
ridículo
como
é
para
os
brasileiros
a
“pieguice
lusitana,
lacrimosa
e
amarga”
(Holanda,
2012,
p.148).
A
cordialidade
também
pode
ser
identificada
nos
aspectos
religiosos,
a
exemplo
das
capelas
particulares
construídas
em
cada
casa,
seja
de
fidalgos
ou
de
plebeus,
para
que
estivessem
sempre
em
contato
direto
com
Deus.
Até
os
santos
poderiam
ser
amigos
próximos.
O
“homem
cordial”
proposto
por
Holanda
(2012)
não
tem
relação
alguma
com
“boas
maneiras”
ou
civilidade.
Para
ele,
a
expressão
carrega
consigo
a
reunião
de
expressões
legítimas
de
fundo
emotivo,
em
que
o
convívio
social
é
justamente
o
contrário
de
uma
polidez
como
a
que
é
vista
no
Japão.
Afirma
ainda
que
a
vida
em
sociedade
para
o
“homem
cordial”
é
uma
libertação
do
pavor
de
viver
consigo
mesmo
diante
de
todas
as
circunstâncias
de
existência.
Também
a
manifestação
normal
de
respeito
no
Brasil
reflete-‐se
no
desejo
de
estabelecer
intimidade.
Nestes
termos,
Holanda
(2012)
acredita
que
o
princípio
de
cordialidade
foi
possivelmente
favorecido
pelo
processo
inicial
de
formação
do
brasileiro
no
interior
da
junção
de
tantas
etnias.
Visto
que
o
Brasil
se
originou
da
mistura
entre
índios,
negros
e
brancos,
o
autor
acreditava
que
a
tolerância
poderia
ter
surgido
como
sentimento
espontâneo.
Tal
relação
pacífica
entre
as
três
etnias,
como
já
visto,
também
foi
realçada
na
obra
de
Freyre.
No
entanto,
Darcy
Ribeiro
(2012)
discorda
totalmente
de
uma
cordialidade
que
faz
parte
do
discurso
da
formação
do
brasileiro
nos
dois
autores:
166
Às
vezes
se
diz
que
nossa
característica
essencial
é
a
cordialidade,
que
de
nós
um
povo
por
excelência
gentil
e
pacífico.
Será
assim?
A
feia
verdade
é
que
conflitos
de
toda
a
ordem
dilaceraram
a
história
brasileira,
étnicos,
sociais,
econômicos,
religiosos,
raciais,
etc.
(...)
O
processo
de
formação
do
povo
brasileiro,
que
se
faz
pelo
entrechoque
de
seus
contingentes
índios,
negros
e
brancos,
foi,
por
conseguinte,
altamente
conflitivo.
Pode-‐se
afirmar,
mesmo,
que
vivemos
praticamente
em
estado
de
guerra
latente,
que,
por
vezes,
e
com
frequência,
se
torna
cruento,
sangrento
(2012
[1995],
pp.
167,
168)
(...)
a
mania
de
congelar
a
imagem
de
um
país
avesso
ao
radicalismo
e
parceiro
do
espírito
pacífico,
por
mais
que
inúmeras
rebeliões,
revoltas
e
manifestações
invadam
a
nossa
história
de
ponta
a
ponta.
Somos
e
não
somos,
sendo
a
ambiguidade
mais
produtiva
do
que
um
punhado
de
imagens
oficiais
congeladas
(Schwarcz
e
Starling
(2015,
p.20).
A
imagem
do
Zé
Carioca,
além
de
emanar
essa
cordialidade
brasileira,
representou
também
uma
nova
forma
de
navegação
social:
o
“jeitinho
brasileiro”
para
lidar
com
as
adversidades.
Roberto
DaMatta,
importante
antropólogo
brasileiro,
escreveu
sobre
isto
em
O
que
faz
o
Brasil,
Brasil?
(1984).
Ele
explica
que
o
“jeitinho”
está
localizado
entre
o
que
pode
e
o
que
não
pode
ser
feito,
ou
seja,
é
a
tentativa
de
conciliar
vontades
opostas.
Isto
pode
ser
designado
como
um
modo
simpático,
desesperado
ou
humano
de
relacionar
o
impessoal
com
o
pessoal,
ou
seja,
de
juntar
167
um
problema
pessoal
com
um
problema
impessoal,
encontrando
uma
forma
pacífica
de
resolver
problemas
imediatos
através
de
favores
que
devo
e
que
me
devem.
Quando
os
cobradores
procuravam
o
Zé
Carioca
para
cobrar
o
que
lhe
deviam,
ele
sempre
encontrava
uma
forma
de
escapar
e
com
um
“jeitinho”
negociava
um
tempo
maior
para
pagar
suas
dívidas.
Ser
malandro
é
utilizar-‐se
do
“jeitinho”,
esse
modo
impessoal
de
se
relacionar
com
os
outros.
Para
ser
considerado
assim,
é
preciso
ter
um
talento
pessoal
ao
usar
das
“histórias”
ou
artimanhas
para
obter
benefícios
de
certas
situações.
De
acordo
com
Roberto
DaMatta
(1984),
foi
na
literatura
brasileira
do
século
XIX
que
surgiu
o
primeiro
‘malandro’
associado
à
identidade
do
brasileiro.
No
livro
Memórias
de
um
sargento
de
milícias
de
Manuel
Antônio
de
Almeida,
a
personagem
Leonardo
Pataca
se
mostrava
como
um
mulherengo
e
criador
de
problemas.
DaMatta
definiu
assim
o
malandro
como
um
“profissional
do
jeitinho
e
da
arte
de
sobreviver
nas
situações
mais
difíceis”
(1984,
p.101).
Mas,
foi
com
a
chegada
das
histórias
de
Pedro
Malasartes
no
final
dos
anos
1930,
que
o
brasileiro
passou
a
ser
representado
como
um
exemplo
de
trapaceiro
sem
escrúpulos
e
sem
remorso.
Gente
como
Pedro
Malasartes,
que
foi
capaz
de
realizar
uma
série
de
transformações
impossíveis
ao
homem
comum.
Assim,
ele
superou
a
exploração
econômica
e
política
do
seu
trabalho,
condenando
o
fazendeiro
que
o
espoliava.
Conseguiu
também
transformar
a
imobilidade
da
miséria
numa
venturosa
vida
de
viajante
sem
pouso
ou
casa,
situação
de
onde
pode
sempre
enxergar
tudo
e
ganhar
novas
experiências.
Pedro
Malasartes
foi
também
capaz
de
proezas
incríveis,
como
explorar
os
ricos,
vender
merda
como
se
fosse
riqueza
e
levar
a
honestidade
ao
meio
de
pessoas
desonestas.
Suas
aventuras
nos
indicam
que
a
vida
contém
sempre
o
bom
e
o
mau,
o
lado
humano
e
o
desumano
estando
misturados
de
modo
irremediável
em
todos
e
tudo.
Assim,
Pedro
Malasartes,
como
todos
os
malandros,
talvez
nos
diga
que
é
preciso
tomar
consciência
desses
dois
lados
para
poder
escolher
uma
vida
humanamente
digna.
(DaMatta,
1984,
p.70)
O
malandro
mostra-‐se
como
um
tipo
paradigmático
de
herói,
pois
ele
é
“um
ser
deslocado
das
regras
formais,
fatalmente
excluído
do
mercado
de
trabalho,
aliás
definido
por
nós
como
totalmente
avesso
ao
trabalho
e
individualizado
pelo
modo
de
andar,
falar
e
vestir-‐se”
(DaMatta,
1997,
p.263).
Pedro
Malasartes
é
o
paradigma
do
chamado
malandro,
frequentemente
visto
com
camisa
listrada,
anel
com
a
imagem
de
168
São
Jorge
(bastante
apreciado
pelos
africanos)
e
sapatos
que
tinham
duas
cores
(característica
das
danças
de
salão),
sendo
o
exato
oposto
do
militar
na
sociedade,
que
segue
uma
ordem,
uma
hierarquia
e
a
igreja.
No
entanto,
há
várias
gradações
de
“malandragem”
que
tornam
a
designação
complexa,
pois
tanto
pode
representar
um
gesto
sagaz
quanto
um
ato
marginal.
169
pode
buscar
uma
espécie
de
“nativo
universal”,
já
que
por
aqui
se
encontraria
uma
súmula
dos
povos
“estranhos”
de
todos
os
lugares”
(Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.21).
Para
Caio
Prado
Júnior
(1942),
há
ainda
resquícios
do
passado
colonial
no
Brasil
contemporâneo.
No
passado,
o
colonialismo
construiu
algo
de
novo
no
plano
das
realizações
humanas,
concretizado
em
todos
os
elementos
que
constituem
um
organismo
social,
como
foi
a
população
distinta
que
se
formou
no
Brasil,
construída
por
uma
estrutura
material
própria,
uma
organização
social
completa
e
específica,
até
chegar
a
uma
consciência
coletiva
particular
de
um
povo-‐nação
(Ribeiro,
2012).
Os
sintomas
de
cada
elemento
vão
aparecendo
no
curso
da
evolução
histórica.
No
terreno
econômico,
por
exemplo,
pode-‐se
dizer
que
o
trabalho
livre
não
se
organizou
ainda
inteiramente
em
todo
o
país.
Há
apenas,
em
muitas
partes
dele,
um
processo
de
ajustamento
em
pleno
vigor,
um
esforço
mais
ou
menos
bem
sucedido
naquela
direção,
mas
que
conserva
traços
bastante
vivos
do
regime
escravista
que
o
precedeu.
O
mesmo
poderíamos
dizer
do
caráter
fundamental
da
economia,
isto
é,
da
produção
extensiva
para
mercados
do
exterior,
e
da
correlata
falta
de
um
largo
mercado
interno
solidamente
alicerçado
e
organizado
(Idem).
De
acordo
com
Schwarcz
e
Starling
(2015),
após
a
Segunda
Guerra
e
ao
fim
do
Estado
Novo,
o
Brasil
se
constituía
pela
mistura
de
crenças
e
costumes,
mas
existia
também
o
racismo
e
a
hierarquia
social
baseada
na
intimidade.
Corriam
pelas
ruas
vários
protestos
contra
a
censura,
a
favor
da
liberdade
de
expressão
e
pedidos
para
a
convocação
de
uma
nova
eleição
democrática.
Mas,
em
29
de
outubro
de
1945
os
ministros
militares
de
Getúlio
Vargas
tomam
poder,
instaurando
aí
a
ditadura
e
total
repressão
da
imprensa
e
dos
cidadãos,
que
passaram
a
ser
torturados
e
até
mortos
quando
capturados
pelos
militares.
Não
há
um
regime
político
de
democracia
plena,
isto
é
fato.
Mas,
no
caso
brasileiro,
a
luta
pela
eleição
democrática,
a
partir
dos
anos
1950
e
início
de
1960,
mostraram
uma
crescente
capacidade
de
mobilização
autônoma
dos
trabalhadores
rurais
e
a
presença
da
pressão
popular
ao
governo
em
busca
de
uma
sociedade
menos
excludente.
50
“Em
março
de
1968
o
estudante
de
17
anos,
Edson
Luís
de
Lima
e
Souto,
foi
morto
pelos
militares
no
restaurante
“Calabouço”,
no
centro
do
Rio
de
Janeiro,
desencadeando
revolta
e
protestos
por
todo
o
país.
Padre
Antônio
Henrique
celebrou
uma
missa
em
memória
do
estudante
assassinado,
tornando-‐se
desde
então,
alvo
da
ira
dos
militares.
No
dia
26
de
maio
de
1969
o
CCC
(Comando
de
Caça
aos
Comunistas)
seqüestrou,
torturou
e
matou
o
padre.
O
corpo
foi
deixado
em
um
matagal
da
cidade
universitária
do
Recife.
Padre
Antônio
Henrique
estava
pendurado
pelos
pés
em
um
galho
de
árvore;
trazia
marcas
brutais
de
tortura,
como
queimaduras
de
cigarro,
castração
da
genitália,
marcas
de
espancamento,
cortes
profundos
em
todas
as
partes
do
corpo
e
dois
ferimentos
de
bala
que
indicavam
a
execução
final”.
Disponível
em
https://virtualia.blogs.sapo.pt/34846.html
171
Figura
42
–
Cena
do
filme
Rio,
40
graus
(1955),
roteiro
e
direção
de
Nelson
Pereira
dos
Santos.
Em
1972,
foi
composto
o
espetáculo
teatral
Calabar:
O
elogio
da
traição,
a
fim
de
questionar
a
versão
oficial
sobre
a
Independência
do
Brasil
no
momento
em
que
a
ditadura
comemorava
150
anos.
A
peça
foi
censurada,
como
normalmente
acontecia
com
toda
a
produção
e
circulação
de
bens
culturais
no
Brasil,
na
época
da
ditadura.
Vários
artistas,
cineastas,
músicos,
apresentadores
e
membros
da
classe
artística
em
geral
protestaram
e
foram
presos
(Schwarcz
e
Starling,
2015).
Artistas
como
Chico
Buarque,
Caetano
Veloso
e
Gilberto
Gil
foram
obrigados
a
se
exilar,
professores
universitários
foram
obrigados
a
se
aposentar,
pesquisadores
foram
proibidos
de
trabalhar
e
Caio
Prado
Jr.,
importante
historiador
do
Brasil
e
que
também
foi
utilizado
nesta
pesquisa,
foi
preso.
Figuras 43 e 44-‐ Cildo Meireles, Inserções em circuitos ideológicos, 1970
Fonte:
Reprodução
da
internet
A
corrupção,
que
não
é
exclusividade
do
Brasil,
costuma
ser
associada
à
própria
identidade
do
brasileiro.
O
brasileiro
seria
corrupto
devido
às
práticas
de
comportamento,
como
o
“jeitinho”
e
a
“malandragem”.
É
também
no
Brasil
que
se
associa
a
imagem
do
brasileiro
com
a
do
político
ladrão,
criado
no
interior
dessa
“cultura
de
corrupção”.
Esta
visão
impede
que
se
veja
a
complexidade
da
corrupção
e
suas
raízes
antigas,
bem
como
torna
turvo
o
olhar
no
combate
à
corrupção
no
Brasil,
173
pois
torna
ineficaz
qualquer
busca
de
mudança
quando
se
acredita
que
todo
o
político
é
corrupto.
Segundo
Schwarcz
e
Starling
(2015),
apesar
desse
descrédito
em
relação
à
política
pelos
brasileiros,
tem
crescido
consideravelmente
no
Brasil
atos
de
reação
pública
contra
atos
de
corrupção
de
políticos
que
desviam
verbas
públicas
para
as
suas
contas
pessoais.
Os
incontáveis
protestos
populares
que
estampam
jornais
e
noticiários
de
TV
mostram
uma
onda
de
indignação
presente
em
todo
o
país.
Torna-‐se
cada
vez
mais
importante
lutar
contra
a
aceitação
passiva
de
uma
política
corrupta,
pois
isso
“pode
enfraquecer
os
mecanismos
de
participação
pública
e
levar
à
descrença
ao
funcionamento
das
instituições
democráticas”
(Schwarcz
e
Starling,
2015,
p.632).
No
entanto,
a
política
brasileira
atual,
simpatizante
da
ditadura,
tem
exercido
com
sucesso
suas
estratégias
de
convencimento
daquele
povo
carente
de
educação
e
de
dinheiro
em
meio
a
uma
enorme
crise
econômica
causada
pela
privatização
de
muitas
estatais
e
da
alta
do
desemprego.
Candidatos
de
direita
que
têm
como
plano
de
governo
a
luta
contra
o
Partido
dos
Trabalhadores
e
a
privatização
de
todo
o
patrimônio
do
Brasil,
têm
sido
vistos
como
única
escolha
por
um
povo
amedrontado
e
atordoado
com
a
crise,
pois
com
a
falta
de
educação
a
imprensa
brasileira
tendenciosa
tem
servido
como
parâmetro
na
formação
de
suas
opiniões.
175
CAPÍTULO
V
Tem-‐se
em
conta
que,
segundo
as
reflexões
pós-‐modernas
da
fotografia,
cada
imagem
se
referencia
a
outras,
construindo
paralelos,
diacronias,
sincronias
e
dialéticas,
construindo
uma
teia
de
significância
cujo
resultado
está
além
da
intencionalidade
do
autor.
Nessa
perspetiva,
“as
fotografias
foram
vistas
como
sinais
que
adquiriram
seu
valor
a
partir
de
sua
inserção
no
bojo
de
um
sistema
mais
amplo
de
codificações
sociais
e
culturais”
(Cotton,
2013,
p.
191).
É
assim
que
se
entende
os
trabalhos
apresentados:
como
parte
de
uma
grande
tessitura
histórica,
social
e
política
da
qual
emergem
diferentes
relações,
incluindo
as
coloniais,
que
foram
produzidos
no
interior
de
uma
relação
entre
Brasil
e
Portugal;
do
olhar
contemporâneo
do
fotógrafo
português
para
o
Brasil.
O
capítulo
foi
organizado
em
oito
tópicos:
são
sete
tópicos
com
as
análises
dos
trabalhos
e
entrevistas
dos
fotógrafos
que
aceitaram
participar
da
pesquisa;
e
um
tópico
final
com
as
considerações
adicionais
desta
pesquisadora
para
o
encontro
de
uma
subjetividade
ética
na
construção
de
imagens.
V.1.
Miguel
Valle
de
Figueiredo:
A
imagem
turística
do
Brasil
Miguel
Valle
de
Figueiredo
nasceu
em
Santa
Comba
Dão,
no
distrito
de
Viseu,
Portugal.
É
fotógrafo
profissional
desde
1986,
com
trabalhos
nas
áreas
industrial,
de
engenharia/arquitetura
e
editorial.
Em
1994
foi
cofundador
da
revista
Volta
ao
Mundo,
publicação
destinada
a
expor
possíveis
rumos
de
viagens,
realizando
reportagens
em
mais
de
50
países.
Foi
também
diretor
de
fotografia
da
revista
Evasões,
no
período
de
1999
a
2002,
dedicada
à
divulgação
do
turismo
em
Portugal
e
da
vida
do
país.
Figueiredo
já
foi
ao
Brasil
cerca
de
30
vezes,
sendo
duas
dessas
vezes
de
férias.
Ele
diz
conhecer
o
Brasil
mais
que
muitos
brasileiros,
realizando
fotografias
que
compõem
revistas
e
publicações
de
viagens
ou
de
turismo.
Em
1997,
ganhou
o
prêmio
Fuji-‐
European
Press
Award,
na
categoria
de
Grande
Reportagem,
com
uma
das
fotos
realizadas
no
interior
do
estado
do
Ceará,
Brasil.
178
Figura
45:
Miguel
Valle
de
Figueiredo,
Bitupitá,
Brasil
(1997).
Foto
vencedora
do
1st
prize
Fuji
European
Press
Award
'97
de
Grande
Reportagem
51
Fonte:
Flickr
do
autor
52
Em
conversa
com
o
fotógrafo ,
ele
destacou
que
suas
incursões
no
Brasil
são
resultado
de
vários
trabalhos
para
publicações
turísticas
e
que,
por
esse
motivo,
muitas
de
suas
imagens
não
fogem
da
iconografia
atribuída
ao
país
tropical
de
belas
paisagens
e
terra
da
“garota
de
Ipanema”.
Porém,
em
sua
fala,
o
autor
expõe
que
esse
mito
sobre
a
mulher
brasileira
não
existe
(sensualidade
e
beleza
atribuída
à
mulher),
pois,
na
extensão
do
país,
cada
brasileira
é
uma
–
com
suas
peculiaridades
no
andar,
no
falar,
no
agir.
No
entanto,
suas
imagens
e
suas
legendas
retomam
estereótipos
da
mulher
para
representá-‐las
em
revistas
turísticas
para
portugueses,
como
pode
ser
visto
nas
fotografias
Mermaid
e
Garota
de
Ipanema
(Fig.
44
e
45)
que
representam
a
mulher
em
praias
ora
pitorescas,
ora
emblemáticas
(Rio
de
Janeiro)
de
um
Brasil
exótico
em
sua
natureza.
Figuras 46 e 47 -‐ Miguel Valle de Figueiredo, Mermaid (2007); A Girl from Ipanema (2008)
51
Disponível
em
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
52
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
179
53
Fonte:
Flickr
do
autor
Esse
imaginário
que
permeia
a
imagem
da
mulher
brasileira
como
aquela
que
hipnotiza
o
homem
como
uma
sereia
através
de
uma
beleza
sem
igual,
termina
sendo
associado
à
sua
representação.
Apesar
de
Figueiredo
garantir
que
não
existe
“a
mulher
brasileira”,
mas
muitas
mulheres
diferentes
em
cada
parte
do
Brasil,
em
suas
imagens,
todas
aparecem
da
mesma
forma:
trajando
apenas
fatos
de
banho,
em
praias
fantásticas,
como
se
a
própria
mulher
fizesse
parte
daquele
cenário
pitoresco.
A
representação,
por
transformar
o
real
e
na
sua
função
de
dar
sentido
ao
mundo,
muitas
vezes
representa
o
Outro
de
forma
generalista
ou
cria
realidades
estereotipadas
(Chartier,
1988).
São
aquelas
representações
estereotipadas
que
controlaram
por
muito
tempo
as
relações
sociais
entre
Brasil
e
Portugal.
A
partir
dessa
reflexão,
compreende-‐se
que
as
imagens
de
Figueiredo
parecem
reconectar
a
mulher
brasileira
àquela
ideologia
colonial
que
determinava
o
corpo
da
mulher
como
um
corpo
disponível
para
o
olhar
(e
não
só)
do
estrangeiro.
Contribui,
de
certa
forma,
ao
fortalecimento
de
um
estereótipo
que
foi
conectado
à
imagem
da
mulher
brasileira,
tão
difícil
de
ser
desconstruído.
54
Fonte:
Flickr
do
autor
53
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
54
Idem.
180
esconde-‐se
aí
também
a
situação
de
mercadoria
da
cultura
e
identidades
do
sujeito
que
fortalecem
estereótipos.
A
sua
escolha
não
se
dá
objetivamente
por
uma
identidade,
por
definir
quem
seria
a
“brasileira”,
mas
apresentar
uma
identidade
conectada
aos
mitos
que
fazem
parte
da
história
do
Brasil,
ou
seja,
promove
uma
imagem
sexualizada:
181
Mundo.
Em
entrevista
ele
contou
que
houve
um
grande
choque
quando
chegou
no
Brasil55,
em
1987,
na
cidade
de
São
Paulo,
principalmente
por
causa
do
tamanho
cidade
e
da
quantidade
de
pessoas
que
transitavam
por
entre
as
ruas
movimentadas
da
cidade.
Apesar
desse
seu
espanto
com
as
grandes
dimensões
da
metrópole
brasileira,
o
fotógrafo
quis
registar
os
lugares
escondidos
e
ainda
pouco
povoados,
totalmente
opostos
à
agitação
e
desenvolvimento
econômico
de
São
Paulo
e
das
outras
cidades
do
centro-‐sul
do
país.
Essa
procura
se
deu,
primeiramente,
porque
estava
fotografando
para
um
projeto
sobre
o
patrimônio
mundial
de
origem
portuguesa,
o
que
o
levou
a
fotografar
locais
onde
houve
a
presença
das
“missões”
catequizadoras
no
século
XVI
na
região
Nordeste
do
Brasil
e
em
Minas
Gerais.
Miguel
Valle
de
Figueiredo
acredita
que
muitas
localidades
fotografadas
por
ele
mudaram
muito
após
a
publicação
das
imagens
turísticas
no
livro
que
produziu,
pois
deixaram
de
ter
o
“sossego”
como
marca
registada,
para
se
tornarem
movimentados
pontos
turísticos:
Eu
tive
alguma
culpa
nisso,
por
causa
de
um
artigo
que
publiquei
na
revista
que
na
altura
eu
dirigia
a
parte
fotográfica,
que
era
a
Volta
ao
Mundo.
Foi
a
primeira
grande
reportagem
que
mostrou
Parati.
E
nem
no
Brasil
se
falava
muito
de
Parati.
(...)
E
de
repente,
(...)
publicaram
uma
reportagem
sobre
Parati
dando
referência
a
Volta
ao
Mundo
e
ao
trabalho
que
fizemos
lá.
(...)
O
turismo
tem
isso,
o
que
tem
de
bom
muitas
vezes
para
população,
tem
de
mau
por
causa
do
próprio
55
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
56
Idem.
57
Idem.
182
turista58.
Figuras
49,
50,
51
e
52
-‐
Lunch
Time
(2008)
e
The
mission
(2008),
Trancoso,
Brazil
(2007)
e
Hotel
em
Bitupitá
(1997)
59
Fonte:
Flickr
do
autor
Para
Cristina
Conceição
(1998),
a
divulgação
de
um
local
como
destino
turístico
transforma
suas
atrações
em
“mito”,
pois
corresponde
a
“um
sistema
coerente
de
imagens
manipuladas
pela
linguagem
mediática,
(...)
cuja
verdade
é
meramente
referencial,
dependendo
da
coerção
do
próprio
código”
(p.69).
O
turista,
através
dessa
antevisão
do
lugar,
ou
seja,
da
fotografia,
compreende
que
aquela
imagem
corresponde
ao
“local
de
sonhos”
tão
desejado,
antes
mesmo
do
contato
direto
com
a
localidade.
Por
isso,
a
fotografia
tornou-‐se
essencial
para
o
turismo:
permitiu
a
previsão,
bem
como
escolha,
de
locais
que
só
serão
vistos
posteriormente.
Figuras 53 e 54 -‐ Secret Place (2007) e Patience (2008), fotografias de Parati, RJ
58
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
59
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
183
60
Fonte:
Flickr
do
autor
São
cada
vez
mais
raros
os
locais
que
não
são
conhecidos
hoje
em
dia.
Foram
os
fotógrafos-‐turistas
que
passaram
a
selecionar
um
conhecimento
do
local,
porém
de
forma
descontextualizada,
“fruto
de
mecanismos
de
seleção
e
interpretação
que
pautam
todo
o
processo
comunicativo”
(Conceição,
1998,
p.74).
Dessa
forma
podemos
falar
que
as
imagens
fotográficas
apresentadas
passaram
a
produzir
opiniões
sobre
lugares
a
partir
de
uma
valoração
de
determinados
aspetos
em
detrimento
de
outros,
definindo
o
que
deve
ou
não
ser
visto.
Para
Conceição
(1998),
esse
discurso
presente
na
fotografia
turística
e
os
comentários
dos
lugares
por
outros
turistas,
reduz,
na
maioria
das
vezes,
a
realidade
dos
destinos
a
apenas
um
aspeto,
ou
seja,
a
uma
estereotipação.
É
nesse
sentido
que
atuam
as
imagens
de
Miguel
Valle
de
Figueiredo:
como
um
ensaio
que
se
utiliza
de
estereótipos
e
valoração
de
locais
pontuais
que
produzem
grande
apelo
turístico,
com
imagens
de
belas
mulheres,
futebol
e
praias
“descobertas”
pelo
fotógrafo.
Figuras 55 e 56 -‐ Beach Football e Sugar Loaf (2008), no Rio de Janeiro, RJ
61
Fonte:
Flickr
do
autor
60
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
61
Idem.
184
contexto,
portanto,
são
descontextualizadas,
simplificadoras
e
exageradas,
mostrando
uma
natureza
sempre
mais
exuberante
do
que
realmente
se
mostra.
Estes
fragmentos
selecionados
pelo
fotógrafo,
como
apontou
Kossoy
(2008),
passam
a
fazer
parte
do
imaginário
do
receptor
que,
com
a
repetição,
condensam
em
um
fragmento
toda
a
memória
do
lugar.
Com
a
presença
dos
fotógrafos-‐viajantes
nos
locais
mais
recônditos
do
planeta,
iniciou-‐se
um
processo
de
transformação
de
espaços
de
transitação
em
espaços
de
vigilância,
pois
“não
estamos
nem
no
anfiteatro,
nem
no
palco,
mas
sim
na
máquina
panóptica”
(Foucault,
2007[1975],
p.217).
Desse
modo,
o
nativo,
ao
se
sentir
vigiado,
pode,
em
maior
ou
menor
grau,
passar
a
estabelecer
uma
performance
para
justificar
os
estereótipos
identitários
e
dessa
forma
contribuir
para
o
trabalho
de
disseminação
dessas
falsas
ideias
generalizadoras
de
si.
Além
da
performance
causada
pela
sensação
de
eterna
vigilância
nos
nativos,
também
pode
ocorrer
uma
representação
por
conta
de
um
“bovarismo”,
descrito
por
Holanda
(2012[1936]),
como
uma
insatisfação
crónica
com
a
autoimagem
sofrida
pelo
brasileiro,
devido
à
falta
de
representatividade
nos
media
e
produtos
culturais.
Esse
“bovarismo”
foi
exemplificado,
pelo
fotógrafo,
com
a
62
Entrevista
concedida
no
dia
10
de
agosto
de
2016,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian,
a
Lorena
Travassos.
185
escolha
de
Gisele
Bundchen
para
representar
o
Brasil
na
copa
do
mundo,
quando
o
brasileiro
é,
em
sua
maioria,
pardo
e
negro.
63
Fonte:
Flickr
do
autor
Figura
58
-‐
Back
to
basics
(fotógrafo
de
rua),
Brasil
(2008)
64
Fonte:
Flickr
do
autor
63
https://www.flickr.com/photos/miguelvf/albums/72157603760063735
186
Conclui-‐se,
assim,
com
base
na
apreciação
das
imagens
atravessadas
pela
fala
do
artista,
que
sua
escolha
não
se
dá
objetivamente
por
uma
identidade,
por
definir
quem
seria
o
brasileiro,
mas
apresentar
um
possível
brasileiro.
Embora
fotografando
cenas
quotidianas
das
comunidades
visitadas
e
sendo
as
imagens
povoadas
por
indivíduos,
aquilo
que
se
apresenta
ao
espectador
é
uma
“cultura”,
uma
estrutura
sobre
a
qual
esses
indivíduos
mantêm
suas
relações
com
o
mundo
que
o
cercam,
inclusive
quanto
à
sua
necessidade
de
subsistência.
Contraditoriamente,
seu
discurso
não
dialoga
com
as
imagens
produzidas,
mostrando
conivência
com
a
imagem
mediática
e
turística
que
prevê
uma
sensualidade
da
mulher
brasileira
e
um
ambiente
extremamente
exótico
e
pitoresco
que
dialoga
com
os
discursos
coloniais
e
mediáticos
que
estereotipizam
gentes
e
paisagens
do
Brasil.
V.2.
André
Cepeda:
O
fotógrafo
flanêur
em
São
Paulo
64
Idem.
187
Para
ele,
o
livro65,
Foram
muitos
os
projetos
e
encomendas
solicitadas66
em
sua
carreira,
mas
foi
a
utilização
do
grande
formato
que
marcou
o
seu
trabalho
por
impor
uma
contemplação
como
método
de
construção
de
imagens.
Como
cresceu
num
meio
“completamente
analógico,
nem
se
quer
havia
digital”,
a
solidão
do
processo
de
revelação
foi
sempre
presente
na
sua
relação
com
a
fotografia.
A
câmara
passou
a
conduzir,
nas
palavras
de
Cepeda,
“a
forma
como
eu
quero
me
relacionar
com
o
mundo
e
com
aquilo
que
eu
vou
fotografar.
Eu
quero
estar
a
olhar
para
as
pessoas
e
para
as
coisas,
eu
quero
fazer
65
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
66
“Comecei
a
expor
regularmente
desde
1999,
ano
em
que
tive
uma
bolsa
para
realizar
a
residência
de
artista
no
Espace
Photographique
Contretype
de
Bruxelas.
Foi
editado
um
livro
com
este
projeto
em
2005,
na
inauguração
da
exposição
individual
no
mesmo
espaço.
Em
2001
recebi
duas
relevantes
encomendas:
a
primeira
no
âmbito
da
programação
do
Porto
2001
-‐
Capital
Europeia
da
Cultura,
pelo
Centro
Português
de
Fotografia/MC,
e
uma
segunda
para
os
Encontros
de
Imagem,
pelo
Museu
da
Imagem
de
Braga.
Fui
bolseiro
do
Centro
Nacional
de
Cultura
em
2002,
e
em
2003,
volto
a
fazer
uma
residência
de
artista,
em
Viseu,
na
António
Henriques
Galeria
de
Arte
Contemporânea,
que
durou
6
semanas
por
um
período
de
5
meses
e
deu
origem
a
uma
exposição
individual
e
catálogo.
Em
2006
recebi
2
encomendas,
uma
da
RAR-‐
Holding,
com
um
projeto
intitulado
“Um
olhar
sobre
a
RAR”,
comissariado
pelo
Miguel
von
Hafe
Pérez,
e
outro
da
Reitoria
da
Universidade
do
Porto,
para
a
exposição
“Depósito,
Anotações
sobre
Densidade
e
Conhecimento”,
comissariado
pelo
Paulo
Cunha
e
Silva.
Em
2007
fui
selecionado
para
o
Prémio
EDP
–
Novos
Artistas,
e
desenvolvi
um
projeto
comissariado
pelo
Sérgio
Mah,
para
o
Instituto
de
Emprego
e
Formação
Profissional,
que
teve
uma
exposição
no
Edifício
da
Alfândega
no
Porto
com
catálogo.
Em
2008,
após
ter
exposto
na
Faulconer
Gallery
em
Iowa,
USA,
desenvolvi
um
projecto
ao
longo
do
Rio
Mississippi,
que
foi
editado
pela
Chromma
e
apresentado
na
Galeria
Pedro
Cera
em
Lisboa
em
2009.
A
comissária
espanhola
Virgínia
Torrente
convidou-‐me
a
participar
na
exposição
Paraísos
Indómitos
no
Marco
-‐
Museu
de
Arte
Contemporânea
de
Vigo,
Espanha
em
2008.
De
2006
a
2009
desenvolvi
um
projeto
intitulado
“Ontem”,
apoiado
pela
Fundação
Ilídio
Pinho,
que
teve
a
sua
primeira
apresentação
na
ZDB
em
2008
em
Lisboa
e
que
vai
ser
editado
por
Le
Caillou
Blue
Editions
de
Bruxelas
com
2
exposições,
no
Espace
Photographique
Contretype,
Bruxelas
e
Galeria
Pedro
Oliveira,
no
Porto.
Em
2010
foi
nomeado
para
o
Prémio
BESPhoto,
e
desenvolveu
2
grandes
projectos
de
encomenda,
para
a
Trienal
de
Arquitectura
de
Lisboa
e
Fundação
Champalimaud.
Participou
ainda
em
2
grandes
exposições
internacionais,
Impresiones
Y
comentários
-‐
Fotografia
Contemporânea
Portuguesa,
na
Fundació
Foto
Colectania,
Barcelona,
Spain
comissariada
pelo
João
Fernandes
e
na
Mostra
de
Video
Arte
e
fotografia
Portuguesa
no
Centro
de
Artes
Helio
Oiticica,
Rio
de
Janeiro,
Brasil.
Em
2011
foi
shortlist
do
prémio
internacional
Paul
Huf
Award,
Foam
Fotografiemuseum
Amsterdam.
(texto
retirado
do
site
da
galeria
Missopo,
Porto)
Disponível
em
http://www.missopo.com/content/andr-‐cepeda
188
parte
dos
objetos,
da
paisagem”67.
Tal
processo
de
fotografar
com
uma
grande
câmara
é
um
processo
lento
que,
por
um
lado,
segundo
Cepeda,
requer
uma
organização
prévia,
com
a
escolha
do
filme
e
da
forma
de
abordagem
do
objeto
e,
por
outro,
também
carrega
consigo
o
improviso
no
momento
da
ação.
De
todo
modo,
esse
processo
o
obrigou
a
confrontar-‐se
com
as
pessoas,
a
planejar
com
antecedência
os
movimentos,
bem
como
a
aprender
com
os
erros
e
acertos,
elementos
que
são
muito
caros
ao
artista.
Figuras
59
e
60
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
69
Fonte:
Site
do
artista
67
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
68
Disponível
em
http://www.andrecepeda.com
69
http://www.andrecepeda.com
189
Em
2012
o
artista
foi
selecionado
para
uma
residência
artística
na
cidade
de
São
Paulo,
no
Brasil,
numa
parceria
entre
a
Fundação
Gulbenkian
e
a
Fundação
Armando
Álvares
Penteado
(FAAP).
Segundo
ele,
o
primeiro
plano
era
ir
para
Berlim,
mas
a
fotografia
não
era
interesse
principal
daquela
residência,
então
foi
indicado
pelo
Gulbenkian
para
a
participação
da
residência
em
São
Paulo.
O
trabalho
do
artista
realizado
no
Brasil
logrou
três
meses
de
olhares
e
percursos
que
o
levaram
a
uma
cidade
peculiar.
Ao
contrário
do
seu
trabalho
anterior,
realizado
em
preto
e
branco,
Rien
(2012),
mais
“duro”
e
produzido
na
cidade
do
Porto,
o
autor
decidiu
fotografar
em
cores
para
realçar
tudo
o
que
via
na
metrópole
brasileira.
De
acordo
com
os
seus
relatos,
o
primeiro
mês
em
São
Paulo
foi
gasto
em
passeios
pela
grande
cidade
para
tentar
perceber
o
que
ele
queria
fazer.
O
fotógrafo
procurou
compreender
o
olhar
romântico
que
tinha
sobre
o
país,
olhar
que
era
inspirado
principalmente
pelas
músicas
de
Vinícius
de
Morais,
telenovelas
e
pela
convivência
com
o
padrasto
brasileiro.
Depois
disso,
ele
começou
a
se
apaixonar
pela
cor,
“pela
forma
como
a
natureza
entra
na
própria
arquitetura”70.
Buscava,
assim,
imagens
que
apresentassem
a
cidade
ao
estrangeiro
que
passeava
por
entre
as
ruas
sem
fim
da
cidade
e,
por
isso,
queria
que
a
paisagem
e
as
pessoas
mostrassem
o
caminho
a
seguir
em
seu
projeto.
Assim
foi
construído
o
livro
Rua
Stan
Getz,
publicado
em
2015
pela
editora
Pierre
Von
Kleist.
Figura
61
–
Imagem
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist.
Na
foto,
uma
árvore
tem
sua
base
quase
totalmente
coberta
pelo
concreto
da
calçada
71
Fonte:
Site
do
artista
70
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
71
http://www.andrecepeda.com
190
No
livro,
o
autor
apresentou
ruas,
transeuntes,
paisagens,
reflexos
do
espaço
da
cidade
em
ângulos
pouco
convencionais,
mas
que,
segundo
ele,
foram
muito
bem
pensados.
Quando
as
imagens
“estão
tortas
é
porque
estão
tortas”
72
e
essa
precisão
é
algo
que
também
é
fortemente
requerida
quando
se
usa
uma
câmara
de
grande
formato
como
a
dele.
É
com
essa
precisão,
convivência
com
o
ambiente
e
participação
na
imagem
de
forma
a
ser
visto
por
quem
é
fotografado,
que
ele
procurou
registar
seu
olhar
sobre
o
caminho
construído.
Segundo
o
autor,
via
e-‐mail73,
o
título
desse
livro
remete
ao
nome
de
umas
das
ruas
de
São
Paulo,
pois
“é
um
livro
feito
a
olhar
para
as
ruas,
de
andar
na
rua”,
e
foi
a
“ideia
de
um
som”
provocado
pelo
nome
“Rua
Stan
Getz”
que
motivou
a
sua
utilização
como
título
do
livro.
Stan
Getz,
na
verdade,
era
um
saxofonista
americano
de
Jazz
que
trabalhou
ativamente
com
Tom
Jobim
e
João
Gilberto
sendo
um
dos
grandes
responsáveis
pela
difusão
da
Bossa
Nova
pelo
mundo.
O
fotógrafo,
assim,
elegeu
o
nome
de
um
dos
principais
disseminadores
da
visão
romantizada
do
Brasil
que
se
revelava
nas
letras
do
movimento
musical
criado
por
João
Gilberto,
a
MPB.
Uma
dessas
visões
romantizadas
e
cristalizadas
no
imaginário
pela
Bossa
Nova
foi
o
mito
da
beleza
da
mulher
brasileira,
com
a
música
“Garota
de
Ipanema”
criado
por
Tom
Jobim
e
Vinícius
de
Morais
em
1962.
Figuras
62
e
63
–
Imagens
do
livro
Rua
Stan
Getz
(2015),
editora
Pierre
Von
Kleist
74
Fonte:
Site
do
artista
Por
ser
um
livro
feito
“a
olhar
para
as
ruas”,
torna-‐se
inevitável
a
associação
do
72
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
73
E-‐mail
recebido
em
06
de
abril
de
2018.
74
http://www.andrecepeda.com
191
flâneur
à
figura
do
fotógrafo
em
sua
jornada
no
Brasil.
O
flâneur,
para
Baudelaire,
refere-‐se
ao
andante
que
é
um
observador
apaixonado,
um
observador
por
natureza.
“Ele
gosta
de
ver
o
mundo,
estar
no
centro
do
mundo,
e
também
permanecer
escondido
pelo
mundo”
(Baudelaire,
1964,
p.09).
A
ideia
do
artista
como
caminhante
desconhecido
no
meio
da
multidão
foi
importante
para
o
processo
de
construção
do
ensaio
pelo
fotógrafo
que
“queria
aprender
a
olhar
para
a
própria
cidade
com
a
escala
que
era
completamente
diferente”
(...)”
75.
Figuras 64 e 65 – Imagens do livro Rua Stan Getz (2015), editora Pierre Von Kleist
76
Fonte:
Site
do
artista
Eu
acho
que
socialmente
há
um
desequilíbrio,
não
sei
se
de
valores.
O
Brasil
tenta
ser
contemporâneo,
mas
não
tem
estrutura
para
aguentar
(...)
São
Paulo
tem
uma
história
incrível.
É
o
motor
da
economia
da
América
Latina,
das
transações,
das
empresas.
São
Paulo
é
uma
Nova
York
da
África,
era
aquilo
que
eu
dizia.
Era
a
sensação
que
eu
tinha
porque
tem
um
bocado
de
estrutura
de
Nova
York,
o
lado
econômico,
tudo
a
crescer
e
construção
por
todo
lado.
Muito,
muito
dinheiro.
Pessoas
muito
ricas.
Lojas
vendem
helicópteros,
eu
nunca
tinha
visto.
Mas
depois
é
um
caos
ao
mesmo
tempo
e
tudo
convive
junto78.
Figuras 66 e 67 – Imagens do livro Rua Stan Getz (2015), editora Pierre Von Kleist
79
Fonte:
Site
do
artista
Neste
ensaio
de
André
Cepeda
há
também
retratos
que
se
entrecruzam
com
a
paisagem
da
cidade
na
organização
sequencial
do
livro.
Foram
apresentados
sete
retratos
que
foram
produzidos
em
seu
atelier,
que
passou
a
ser,
além
local
de
partida
para
suas
derivas,
lugar
de
trabalho80.
Desses
sete
retratos,
seis
imagens
são
de
nu
feminino,
restando
apenas
um
com
um
homem
que
está
completamente
vestido81.
Especificamente
no
caso
do
seu
ensaio
no
Brasil,
as
mulheres
que
posaram
para
os
79
http://www.andrecepeda.com
80
“Como
o
meu
ponto
de
partida
era
sempre
o
mesmo,
o
meu
atelier,
eu
quis
usar
o
atelier
também
como
lugar.
Então
comecei
a
fotografar
as
pessoas
não
só
fora
do
atelier,
mas
no
atelier”.
Fragmento
retirado
da
entrevista
concedida
pelo
André
Cepeda
no
dia
20
de
dezembro
de
2017.
81
Vale
lembrar,
entretanto,
que
sempre
houve
o
nu
feminino
em
seus
trabalhos.
194
seus
retratos
eram
todas
“modelos
que
posam
para
pintores”
82,
pois,
segundo
o
artista,
“era
a
forma,
em
três
meses,
mais
interessante
que
eu
encontrei
para
poder
fotografar
nu”83.
A
escolha
por
imagens
de
nu
feminino
se
deu
mais,
ao
seu
ver,
pela
qualidade
final
das
imagens,
visto
que
as
imagens
de
nu
masculino
não
foram
tão
agradáveis
ao
seu
olhar.
Em
outra
ocasião,
em
um
curso
de
verão84,
o
artista
comentou
que
prefere
fotografar
mulheres
por
ser
heterossexual,
ou
seja,
ele
fica
mais
à
vontade
diante
do
corpo
feminino,
impondo-‐se
aí
uma
questão
mais
de
“afinidade
sexual”
do
que
estética.
Figuras 68, 69, 70 e 71 – Imagens do livro Rua Stan Getz (2015), editora Pierre Von Kleist
89
Fonte:
Site
do
artista
Como
referência
à
pintura
clássica,
toma-‐se
como
exemplo
a
fotografia
em
que
uma
mulher
negra
está
nua
(Fig.
70)
e
reclinada
sobre
uma
cama
(o
nu
reclinado
é
bastante
tradicional
na
pintura,
como
bem
se
sabe).
Uma
análise
apressada
pode
levar
a
pensar
que
aquela
imagem
representa
a
objetificação
da
mulher
pelo
fotógrafo
europeu.
No
entanto,
por
saber
que
a
mulher
em
questão
é
modelo-‐vivo
para
pintores,
é
conveniente
discordar
daquela
visão
clássica
da
objetificação
da
mulher
para
dar
lugar
a
um
pensamento
mais
complexo
que
implica
a
utilização
da
pose
como
performance
de
forma
intencional
pela
modelo.
Se
o
corpo
da
modelo
se
expõe
ao
Outro,
ela
o
faz
intencionalmente
ao
utilizar
uma
pose
clássica
da
pintura
que
alcançou
atribuições
simbólicas
diversas,
inclusive
na
pintura
Olympia
(1863)
produzida
por
89
http://www.andrecepeda.com
196
Manet90.
Dessa
forma,
a
modelo
exibe
seu
corpo
para
que
seja
plasmada
na
imagem
o
que
Cepeda
queria
ver,
ou
o
que
esperava
ver,
refletindo
esse
“olhar
masculino”
que
foi
performatizado
pela
modelo.
Para
Fabris
(2004),
a
pose
é
uma
atitude
teatral
que
oferece
uma
imagem
já
definida
“a
partir
de
um
conjunto
de
normas,
das
quais
faz
parte
a
percepção
do
próprio
eu
social”
(pp.
35-‐36).
O
retrato,
por
ser
tomado
como
uma
representação
do
que
o
outro
quer
ver,
termina
por
refletir
também
a
imagem
que
é
percebida
como
representação
de
si
pela
modelo.
Como
uma
outra
Olympia,
a
imagem
de
Cepeda
possui
uma
dobra
de
significados
que
vacilam
entre
o
que
se
é
e
o
que
se
deve
parecer,
pois
gera
outra
imagem
de
si
ou
para
si
e,
desse
modo,
não
se
revela
como
identidade
da
mulher,
mas
como
máscara
que
esconde
a
identidade
para
manifestar-‐se
mais
conectada
com
o
imaginário
da
“mulher
brasileira”,
que
prevê
a
imagem
da
mulata
e
da
sensualidade.
As
mulheres
que
posam
para
Cepeda
são
profissionais
que
estão
acostumadas
a
posar
para
pintores
e
a
reproduzir
imagens
de
pinturas
famosas
da
história
da
arte.
A
escolha
por
fotografar
modelos
ao
invés
de
mulheres
daquela
sociedade
foi
justificada,
pelo
fotógrafo,
pela
maior
facilidade
de
execução,
visto
que
“as
pessoas
lá
não
estavam
tão
disponíveis
para
serem
fotografadas
nuas,
como
as
pessoas
aqui
estão.
As
90
Manet,
quando
pintou
Olympia
(1863)
tinha
a
Vênus
de
Urbino
de
Titian
como
inspiração.
No
entanto,
em
vez
de
pintar
na
tradição
artística
aceita,
dentro
de
temas
bíblicos
ou
mitológicos,
Manet
escolheu
pintar
uma
mulher
real,
uma
prostituta.
197
pessoas
são
muito
mais
pudicas
no
Brasil
do
que
cá”91.
Esse
foi
o
grande
paradoxo
encontrado
por
Cepeda,
no
que
tange
as
mulheres
brasileiras:
têm
liberdade,
mas
não
conseguem
mostrar
o
corpo
com
facilidade.
No
entanto,
a
sua
escolha
por
modelos,
apesar
de
ter
sido
crucial
para
a
execução
do
seu
trabalho
em
apenas
três
meses,
tornou
a
representação
da
mulher
brasileira
superficial
e
descontextualizada,
comprovando
que
seus
trabalhos
não
têm
uma
preocupação
com
o
contexto
social
do
lugar,
mas
sim
com
a
questão
estética
que
acompanha
a
técnica
fotográfica.
Quando
Pollock
(1998)
avisa
que
“a
modernidade
ainda
está
connosco”,
ela
fala
também
da
permanência
de
formas
de
representação
dos
negros,
mulheres
e
indígenas
nos
dias
de
hoje.
Na
Figura
69,
do
ensaio
de
Cepeda,
por
exemplo,
uma
mulher
negra
foi
fotografada
ao
estilo
etnográfico
do
século
XIX:
posicionada
lateralmente,
bem
iluminada,
bem
focada,
disponível
para
a
câmara
(Tagg,
2005
[1988]).
A
utilização
de
uma
cor
neutra
de
fundo
exclui
o
fotografado
do
fundo
para
mostrar
a
sua
cor
e
os
traços
fisionómicos,
refletindo
“traços
de
poder”
(p.
85)
que
expõem
o
outro
de
acordo
com
um
ponto
de
vista
privilegiado.
Disto,
constata-‐se
que
o
autor
ignora
toda
a
longa
conexão
histórica
Brasil-‐
Portugal,
como
também
a
história
da
representação
da
mulher
quando
na
produção
de
suas
imagens.
Desse
modo,
termina
por
representar
a
brasileira
de
forma
banal
de
modo
que
pode
ser
associada,
livremente,
pelo
expectador,
ao
corpo
disponível.
Conforme
Cepeda,
“era
a
mesma
forma
como
eu
fotografava
um
corpo,
fotografava
91
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
198
uma
arquitetura,
uma
rua
(...)
O
que
eu
procuro
é
exatamente
igual”.
92
A
mulher,
posta
como
objeto
do
olhar,
tal
como
uma
rua
ou
um
edifício,
corre
o
risco
de
ser
vista,
em
sua
representação,
com
referência
ao
olhar
excludente
e
objetificador
que
foi
característico
da
ideologia
colonialista
quando
representava
a
alteridade.
Para
Cotton
(2013),
a
imagem
adquire
seu
valor
“a
partir
de
sua
inserção
no
bojo
de
um
sistema
mais
amplo
de
codificações
sociais
e
culturais”
(p.191).
Nesse
contexto,
o
ensaio
Stan
Getz,
através
de
suas
imagens,
sugeriu
um
estranhamento
causado
pelo
contraste
do
nu
feminino
e
do
homem
sério
e
completamente
vestido.
De
forma
inconsciente
ou
não,
o
autor
representou
a
brasileira
conforme
performances
que
estão
conectadas
às
imagens
do
passado,
principalmente
com
referência
à
questão
de
género,
ao
representar
um
corpo
disponível
que
continua
a
ser
regulado
pelo
olhar
masculino.
92
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa.
93
Em
entrevista
concedida
a
Lorena
Travassos,
em
20
de
dezembro
de
2017,
na
Fundação
Calouste
Gulbenkian
em
Lisboa
94
Idem.
199
impõe-‐se
uma
distância
social
e
temporal
com
a
neutralidade
semelhante
àquela
reivindicada
pelas
ciências
tipológicas
(e
excludentes)
que
surgiram
no
século
XIX,
visto
que
não
buscava
uma
representação
da
brasileira,
mas
sim
uma
exibição
de
tipos.
V.3.
Duarte
Belo:
Os
caminhos
de
floresta
na
Amazónica
Martim
Heidegger
(1988,
p.
3)
diz
que
na
floresta
há
caminhos
que
são
muitas
vezes
“sinuosos”,
e
“terminam
perdendo-‐se,
subitamente,
no
não
trilhado”.
São
esses
os
chamados
“caminhos
de
floresta”,
caminhos
que
são
diferentes,
porém
estão
contidos
na
mesma
floresta.
Podem
parecer
que
esses
caminhos
são
iguais,
mas
não
são.
“Lenhadores
e
guardas-‐florestais
conhecem
os
caminhos”.
Conhecer
os
caminhos
de
floresta
na
Amazônia
parece
ser
uma
tarefa
difícil,
pois
é
muito
fácil
perder-‐se
por
entre
os
caminhos
não-‐trilhados
e
desconhecidos
quando
se
é
estrangeiro.
Duarte
Belo
(1968),
fotógrafo
primeiro
e
arquiteto
depois,
acredita
que
ter
cursado
a
arquitetura
foi
importante
para
aprofundar
a
sua
sensibilidade
sobre
a
paisagem
que
o
cerca.
Ele
expõe
regularmente
seus
trabalhos
fotográficos
desde
1989,
seja
em
Portugal
ou
no
estrangeiro.
No
total,
foram
30
livros
publicados
com
suas
fotografias,
dentre
eles,
destaca-‐se95:
Orlando
Ribeiro
(1999);
Ruy
Belo:
Coisas
de
Silêncio
(2000);
O
Vento
Sobre
a
Terra
-‐
apontamentos
de
viagens
(2002);
À
Superfície
do
Tempo
-‐
Viagem
à
Amazônia
(2002);
Território
em
Espera
(2005);
Geografia
do
Caos
(2005);
Terras
Templárias
de
Idanha
(2006);
Fogo
Frio:
O
Vulcão
dos
Capelinhos
(2008);
Cidade
do
Mais
Antigo
Nome
(2010)
e
Sabor-‐Mamoré:
Viagem
de
comboio
sobre
o
mar
(2013).