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3.

A GLOBALIZAÇÃO E O ESPAÇO DA CULTURA


PORTUGUESA
“Portugal, no mundo globalizado tem de ter um projecto”.280
José António Saraiva

O fenómeno da globalização está a processar-se a um ritmo incontrolável. Ao


criarem-se os meios que permitem chegar cada vez mais depressa a qualquer ponto da
terra, o mundo fica mais pequeno e interdependente. As relações internacionais
intensificam-se, as permutas comerciais generalizam-se e as economias interdependem
umas das outras. Deixou de haver fronteiras intransponíveis para o progresso do
conhecimento. Este é um processo fruto tanto do desenvolvimento dos mercados sem
fronteiras como da sociedade da informação, ambos potenciados pelas novas
tecnologias. À permuta mundial não escapam também as relações culturais e linguísticas
com claro predomínio dos mais poderosos economicamente procederem a uma pressão
cultural sobre os mais débeis. Se “a globalização está assinada em língua inglesa”,281
neste espaço cultural sem fronteiras reafirmamos que a lusofonia reune as
potencialidades e pode munir-se das ferramentas, para fazer frente, com sucesso, ao
assalto cultural e linguístico de feição anglo-saxónica.
Toda a cultura pressupõe a incorporação de valores de outras culturas. A
portuguesa teve o seu momento mais alto, quando nos descobrimentos encontrou a sua
vocação cosmopolita e universalista. Em contrapartida a lógica salazarista do
“orgulhosamente sós” atirou-nos para um dos seus piores momentos da história
nacional. No Estado Novo, o nacionalismo foi “exacerbado” a um ponto que
consideramos doentio, pela defesa da Pátria, todos os sacrifícios eram poucos, a
interiorização destes e outros valores era fundamental à sobrevivência do regime e factor
de práticas de políticas colonialistas e de dominação. Este discurso pejado de vários
“tiques” do nacional-socialismo está ultrapassado e torna-se até ridículo, é necessário
reinventar um outro de que a nossa afirmação no mundo se fará com a defesa de uma
identidade cultural, no respeito mútuo e no desenvolvimento de traços comuns que

280
José António Saraiva, “E se Figo fosse espanhol?” In Expresso - Política à Portuguesa, 9 de
Novembro de 2002 (Caderno Principal), p.5.
281
Eduardo Lourenço, “palavras com força e ideias-chaves” in Jornal de Notícias (sec. Sociedade)
16/10/2002.
muitos séculos em conjunto souberam criar. A nossa identidade formou-se nessa osmose
universal de contactos com povos e línguas, enriquecendo-nos mutuamente Torna-se
imperioso criar a noção de que pertencemos a uma comunidade de povos em que é
importante estreitar laços de fraternidade, potenciar histórias comuns, desenvolver
projectos em parceria alicerçados no respeito das especificidades próprias.
Cremos que o espaço ideal para iniciar e desenvolver a “batalha” de afirmação
dos valores e da cultura portuguesa é a escola. Nela é possível semear atitudes e
comportamentos, promover aprendizagens que terão de ser passos seguros, consistentes
e duradouros para a persecução destas tarefas. A escola é o espaço ideal para “fomentar
a consciência nacional aberta à realidade concreta numa perspectiva de humanismo
universalista, de solidariedade e de cooperação internacional e desenvolver o
conhecimento e o apreço pelos valores característicos da identidade, língua, história e
cultura portuguesa”.282 A educação/formação permitir-nos-á enfrentar com sucesso as
novas exigências de um mundo em mudança. É também com a educação que se podem
veicular os valores democráticos, de cidadania e do respeito intercultural que têm
caracterizado as nossas sociedades e permitido o seu desenvolvimento. O exercício da
cidadania exige e pressupõe também a “educação para os media” que é necessária, neste
século banhado de informação, encetar desde os primeiros anos de escolaridade. A
escola deixa de ser o exclusivo centro de transmissão de cultura mas vê alargado o seu
âmbito e até a sua natureza, posicionada num mundo inundado de informação deve
aprender a ser “um lugar de aprendizagem de metodologia que permita um olhar crítico
em relação a essa informação”.283

3.1 A globalização e a afirmação da diversidade e da interculturalidade

282
Objectivos do Ensino Básico. Lei de Bases do Sistema Educativo n.º 43/86.
283
Mary Warnok com obra escrita sobre educação e ética, citada por Ana Gomes Ferreira, “O medo da
americanização do Planeta tem mais de paranóia do que de realidade”, Público (secção: Sociedade), 17 de
Outubro de 2002.
O conceito de globalização entrou no vocabulário recentemente e a sua origem é
anglo-saxónico, o termo preferido pelos franceses é o de “mundialização” por ser um
conceito mais ligado à utopia e aos valores do que à economia284. Outro vocábulo
também utilizado, porém, de abrangência mais restrita, é o da internacionalização que
designa qualquer coisa que escapa ao âmbito dos estados285. Este fenómeno que se
caracteriza pela interdependência dos povos começou por ter uma tonalidade económica
estendeu-se depois a todos aos quadrantes da sociedade. Tem tido abordagens diversas e
é objecto de análises calorosas. Não nos interessa tanto para esta reflexão o sentido
marcadamente ideológico que opõe aqueles que pugnam por um mercado aberto e
global, sob a égide ideológica do neoliberalismo como factor de desenvolvimento da
humanidade porque cria riqueza e bem-estar e aos outros, delatores deste processo, o
acham responsável pelo aumento da exclusão social, do fosso entre ricos e pobres e
directamente responsável pelas grandes crises internacionais Estes manifestam-se aberta
e militantemente nos conhecidos grupos antiglobalização nas ruas de Seatle, Praga,
Washington, Londres, Davos, Gotemburgo, Génova, Barcelona, etc. Sinais dos tempos
são que os pais destes mesmos jovens lutavam há uma geração pelo aumento da
liberdade, esbracejavam contra as ditaduras que fechavam as fronteiras e impediam a
livre circulação de pessoas e mercadorias, enquanto que hoje as causas dos seus filhos
parecem inversas manifestando-se contra a abertura desmesurada das mesmas fronteiras.
A metodologia de trabalho que adoptámos está, pois, distante das diferentes
manipulações ideológicas não é que não tenhamos opinião, mas ela não nos parece
relevante para este estudo. Retiramos então o significado propagandístico ao termo e,
globalização, para nós, significa que todos estamos mais interdependentes, mais perto
uns dos outros e que é possível neste diálogo intercultural todos cabermos e nos
relacionarmos. Este não é um processo novo, embora esteja na moda, iniciou-se há
séculos e passou por várias fases de implementação como veremos. Os tempos que

284
É uma explicação de François Gros, biólogo molecular, na Conferência da Fundação Gulbenkian sobre
“Globalização – Ciência, Cultura e Religiões” realizada nos dias 15 e 16 de Outubro de 2002 conf. Dina
Margato, “Mundialização nas Universidades”, Jornal de Notícias (secção Sociedade), 17 de Outubro de
2002.
285
É curiosa a posição dos franceses que consideramos os mais arraigados na defesa de uma cultura
própria frente à invasão da matriz inglesa. Este posicionamento revela-se em todos os quadrantes sociais e
culturais. Apesar da Língua Francesa ser menos falada que a Portuguesa, eles conseguem, através de uma
política bem agressiva manter uma identidade própria e impor nos organismos internacionais a prevalência
do francês como segunda língua universal logo a seguir ao Inglês.
decorrem são apenas mais uma fase do processo que, as TIC, primordialmente,
transformaram o nosso mundo na metáfora de Mcluan da “aldeia global”.

3.1.1 O processo evolutivo da globalização

Poderemos distinguir três fases neste processo de encontro entre os povos. O


primeiro, que se inicia com as descobertas e se prolonga até ao início da
industrialização; o segundo, prolonga-se até à queda do muro de Berlim e; o terceiro, é
aquele que decorre nos nossos dias. Estes períodos estão contextualizados por factores
de ordem política, social e económica. Se a navegação à vela foi a técnica suporte do
primeiro processo de encontro entre os povos, no segundo momento, foi pautado pelo
desenvolvimento dos meios de transporte, então o sustentáculo da relação inter-nações
enquanto que, presentemente, é o desenvolvimento dos mass media, proporcionado pelas
novas tecnologias que sustenta a interligação dos povos como nunca se tinha visto.
Até ao início das descobertas, na generalidade da sociedade europeia vive-se uma
sociedade feudal, predominantemente fechada e auto-suficiente. No entanto, existem
algumas economias que são preponderantes sobre outras, num mesmo espaço, as
determinam. Exemplo disso, para não recuarmos mais no tempo286, são as cidades –
-estado italianas que estabeleceram laços comerciais, influenciaram e dominaram
culturalmente grande parte dos povos mediterrânicos. O comércio é também a actividade
económica que permite definir no sudeste europeu a hegemonia do império turco sobre
uma vasta área. No Oriente, o império da China estendia a sua influência à Coreia, à
Indochina e à Malásia. O dinamismo económico que partia das cidades de Cantão e
Xangai estendia toda a sua influência ao mar da China.
A Índia, graças à sua posição estratégica, traficava num raio económico mais
amplo. A ele convergiam diversos mercadores predominantemente árabes que
transacionavam especiarias e tecidos finos que também chegavam ao Ocidente. A cobiça
destes mercados perseguiu boa parte dos líderes europeus e seria uma pequena nação,
situada na parte mais ocidental da Europa, que elegeu como desígnio nacional e pedra-
chave da sua política expansionista a descoberta do caminho marítimo para assim poder

286
Os impérios romano e árabe e outros são também tentativas globalizadoras de vastos espaços
territoriais.
dominar o rico comércio do Oriente. Esta descoberta seria depois reforçado com a
criação do império português da Índia. Note-se que este território era de tal maneira
importante que o vice-rei era, na altura, a segunda figura da nação.
Mas não é só na Europa e na Ásia que se assiste a movimentos globalizadores,
também nas Américas pontuam civilizações territorialmente globalizadoras como sejam
a Asteca no México, a dos Maias no Yucatan e a Inca no Peru, organizadas em redor da
cultura do milho e na elaboração de tecidos. No entanto, eram auto-suficientes e não se
conheciam, nem se relacionavam quer por via terrestre quer por via marítima.
A internacionalização global do comércio e a aproximação das diferentes
culturas à escala dos cinco continentes só viriam a realizar-se com a gesta dos
descobrimentos e das empresas marítimas iniciadas pelos portugueses. Este
empreendimento marcou de uma forma indelével toda a actividade humana,
modificando completamente as relações comerciais, a economia e os aspectos culturais e
sociais da humanidade, como diz Manuel Alegre foi “fonte de um ver claramente visto e
de uma consciência experimental que estariam na origem de uma nova mentalidade e de
uma revolução cultural e científica precursora do renascimento europeu” 287 e da construção
da mentalidade moderna. Este cometimento viria a ser complementado, porém, de formas
distintas, por espanhóis, ingleses, holandeses e franceses.
A primeira fase da globalização, resultante da procura de uma rota marítima para
as Índias, aproximou definitivamente o Oriente do Ocidente. Seria ainda este propósito
que levaria Colombo a descobrir as Índias Ocidentais288, o continente desconhecido – a
América. Posteriormente as conquistas das terras do “Novo Mundo” estabeleceram o
mercantilismo à escala planetária. Fernão de Magalhães consubstanciaria esse abraço
universal com a realização da primeira viagem de circum-navegação. As mercadorias
aportavam às importantes cidades litorais europeias de Lisboa, Sevilha, Roterdão e
Londres, provenientes de todos os pontos do mundo. Para abastecer os mercados das
nações colonizadoras foram programadas vastas explorações baseadas num único
produto (café, açúcar, tabaco, minério) sustentado com trabalho escravo, recrutado em
África.289 Estabelece-se durante três séculos um sólido triângulo comercial. A Europa

287
Manuel Alegre, “Uma causa chamada Portugal” in Expresso (secção Opinião), n.º 1561 de 28/9/2002.
288
O objectivo de Colombo era o de viajar para o Ocidente e chegar à Índia.
289
Estima-se que 11 milhões de africanos (40% deles destinados ao Brasil) fossem transportados pelo
Atlântico para trabalhar nas explorações agrícolas e nas minas das Américas.
fornece as manufacturas e a intteligentsia, da África subsariana são recrutados os
escravos e a América290 inunda o Ocidente de produtos coloniais. O contexto político em
que decorre esta fase da globalização é o das monarquias absolutistas que concentram
grande poder nas mãos dos reis e mobilizam grandes meios para consolidarem e
expandirem os seus impérios coloniais. A doutrina económica presente é a do
mercantilismo, caracterizada pelo proteccionismo, pelos incentivos fiscais e instauração
de monopólios. O objectivo último é o da acumulação de bens. O poder do rei é medido
pela quantidade de riqueza que consegue armazenar. Os grandes impérios são o inglês, o
espanhol, o português, o francês e o holandês.
A partir do século XVIII, inicia-se a industrialização que é um fenómeno que irá
revolucionar as relações entre estados e condicionar todas as actividades humanas,
dando origem ao período denominado de capitalismo que irá caracterizar o segundo
período globalizador. O processo foi iniciado em Inglaterra que graças à sua riqueza em
carvão e aço permitiu-lhe consagrar as riquezas adquiridas através da política colonial ao
desenvolvimento da indústria que por seu turno, com a dominação dos mares,
conquistava o mercado mundial. Com o desenvolvimento do caminho de ferro, novas
portas se abriram ao desenvolvimento do comércio e foi este que permitiu o
desenvolvimento da industrialização em França, na Bélgica, na Alemanha e em Itália.
Uma nova classe social emerge com toda a pujança – a burguesia industrial e bancária.
A doutrina económica é a do capitalismo.
Na génese deste movimento que se caracteriza por um espírito crítico e racional
que teve como seus mentores, entre outros, os franceses Rousseau291, Voltaire e
Montesquieu abrem novos caminhos ao pensamento político e social e são os ideólogos
das duas grandes revoluções que mudam radicalmente a relação de forças no mundo
pelas implicações do ideário político-social que veiculam, são elas a revolução

290
A partir do final do século XVIII e princípios do século XIX, com a independência das colónias
americanas os objectivos de criação de impérios coloniais viram-se para África. Portugal vê frustradas
muitas das suas intenções com o ultimato inglês ao mapa cor-de-rosa.
291
Rousseau escreve o “Contrato Social” em 1712 e nele apregoa: “o homem nasce livre e senhor da sua
própria vontade e não pode ser governado por quem quer que seja sem o seu próprio consentimento”. Ao
defender que todo o governo deve estar submetido à vontade maioritária, abre as portas para o articulado
político que se há-de implementar nos tempos modernos - os regimes legitimados pela vontade do povo.
Cf. Jean-Jacques Rousseau, O Contrato Social, Lisboa: Livros de bolso Europa – América, 1974, pp. 16 -
25.
americana (1776) e a francesa (1789) e do movimento europeu que apregoa a liberdade
individual.
As grandes invenções que se iniciam no século XVIII e se prolongam por todo o
século XIX ajudam à aproximação dos povos e à intensificação das suas relações. São
entre elas: o comboio, o barco a vapor, o telégrafo, o telefone, etc. Perfilam-se dois
conceitos principais de alinhamento dos países genericamente denominados de
“capitalistas” e “socialistas”. Estabelece-se uma nova ordem mundial perfilando-se duas
superpotências: Os Estados Unidos da América (EUA) e a União Soviética (URSS). São
dois projectos globalizadores que perduram rivalizando nos interesses e confrontando-se
indirectamente em múltiplos conflitos mundiais (guerra da Coreia, do Vietnam, de
Angola,...). A competição ideológica292, armamentista e tecnológica quase levou a
humanidade a uma catástrofe como foi o caso da crise dos mísseis de Cuba em 1962.
Após a Perestroika de Gorbatchev na URSS e a queda do muro de Berlim em
1989 foi proclamado um único sistema vencedor. No terreno, actualmente, apenas se
posiciona uma única superpotência mundial com todas as implicações daí resultantes. Os
EUA são o único país com capacidade para realizar intervenções militares em qualquer
parte do mundo (Kuwait em 1991, Haiti em 1994, Somália em 1996, Bósnia em 1997,
Afeganistão em 2001, em...). O dólar é a moeda forte e a base das transações comerciais,
assiste-se à “americanização” do mundo, fenómeno caracterizado pela difusão dos
valores culturais (língua inglesa), sociais e políticos americanos. A Europa apenas em
termos económicos consegue ombrear com o gigante do outro lado do Atlântico e na
definição das regras mundiais é apenas um espectador perante a força militar dos EUA.
Em termos económicos, neste início do séc. XXI, os EUA e os países que
integram a União Europeia, com particular relevância para a Alemanha, a França e o
Reino Unido, constituem no mundo actual os pólos mais poderosos do desenvolvimento
e isto porque dispõem de uma grande capacidade financeira, porque assentam em
estruturas organizadas muito poderosas e porque desenvolveram e acumularam
conhecimentos, tecnologias e capacidade executiva em praticamente todos os sectores da
actividade humana. Acresce serem estes os países que, ao longo dos últimos 50 anos,
criaram as estruturas, os mecanismos e os instrumentos capazes de prosseguir e

292
De um lado o bloco capitalista ou ocidental liderados pelos Estados Unidos e do outro o bloco
socialista ou de leste com o ideário marxista e sob a égide da URSS.
aprofundar o desenvolvimento conducente à melhoria das condições de vida das
populações através de sistemas políticos que, apesar de todos os seus defeitos e
insuficiências, procuram respeitar os direitos humanos e fazer intervir os cidadãos nas
decisões que respeitam à vida colectiva e aos interesses do Estado. São estes dois
grandes grupos económicos que constituem os espaços de vanguarda do nível de vida e
também esperança para o desenvolvimento para muitos outros países. Por outro lado,
são sede das grandes empresas transnacionais que ditam as leis do mercado. Por detrás
delas estão maioritariamente dinheiros e interesses americanos, alemães, japoneses,
ingleses, franceses, italianos, etc. Na sua grande maioria estão ligados à indústria dos
automóveis, do petróleo e das novas tecnologias.
A nova globalização caracteriza-se por dois modelos que, em termos económicos
se têm mostrado pouco conciliatórios e são até rivais na sua concepção e prática. O
modelo europeu que pretende dosear a competitividade com a solidariedade social,
apostando mais ou menos generalizadamente num Estado-Providência que preconiza a
assistência social aos desprotegidos e mais necessitados, a par de um controlo na
flexibilidade salarial em que os sindicatos têm ainda um papel preponderante e
significativo na sua negociação. Estas características, para além do contexto cultural,
advêm de a Europa ser ainda um agrupamento de países não federados e possuírem
relativa autonomia para definirem as grandes linhas macroeconómicas próprias. Por
outro lado, o modelo americano onde o Estado tem uma posição menos reguladora do
mercado e se impõe uma competitividade maior. Isto tem propiciado a criação de
grandes grupos económicos que influenciam decisivamente as opções políticas e são a
vanguarda do efeito da globalização caracterizado pelo neo-liberalismo.

3.1.2. A era da aldeia global

Nos anos 80 inicia-se a última fase da globalização que coincide com o


desenvolvimento e massificação dos computadores e da Internet. Esta teve como origem
uma arquitectura militar, durante os anos sessenta, os serviços básicos de conectividade
remota, transferência de ficheiros e correio electrónico surgiram em finais da década de
70 e o serviço de informação mais utilizado actualmente, a World Wide Web, surgiu em
1989 (CERN, Suíça), como podemos ver no tema redes de comunicação do I capítulo
deste trabalho. É também por esta altura que se massifica a utilização dos computadores
que suportam e simplificam muitas das actividades humanas e contribuem para unir os
continentes e os povos do mundo.
A nova globalização caracteriza-se por uma livre circulação, sem precedentes, de
capitais, bens e serviços. As relações tornam-se complexas, a tecnologia,
nomeadamente, a Internet e os meios de comunicação modernos, permitem fazer
negócios em qualquer parte do mundo sentado em casa ou no escritório de qualquer
empresa. As leis nacionais revelam-se insuficientes para regular as trocas comerciais e
os negócios. São necessários organismos internacionais que superintendam as relações
humanas. Aos cidadãos escapa o controlo dos seus actos e a participação na escolha de
poderes nacionais que se revelam fracos, frente às estruturas supranacionais, cria uma
sensação de impotência e frustração.
Na opinião de Joaquín Estefanía293 “se trata de un proceso por el cual las
políticas nacionales tienen cada vez menos importancia y las políticas internacionales,
aquellas que deciden lejos de los ciudadanos, cada vez más”294. Este afastamento das
pessoas dos actos de decisão das suas vidas e dos representantes, por si escolhidos,
implica debilidade da democracia que se reflecte no enorme e generalizado
abstencionismo aquando de actos eleitorais. Esta tese também se confirma pelo facto dos
movimentos antiglobalização combaterem as organizações internacionais (FMI, G7,
OMC, ECOFIN, UE, etc.) e não os governos dos países. As decisões são
predominantemente tomadas em organismos que ninguém escolheu e que actuam
segundo princípios não muito claros para o vulgar dos cidadãos. A evolução gradativa
da globalização tem tendência para enfraquecer cada vez mais os estados e fortalecer as
instituições supranacionais. Os mercados regionais e intercontinentais são exemplo deste
processo, que tem visibilidade na Comunidade Europeia, no Mercosul, na NAFTA, etc.
O resultado é a interdependência de nações, principalmente, nos aspectos económicos,
mas a tendência é para outras políticas comuns deliberadas por organismos que o povo
não escolhe directamente. Na perspectiva de muitos, estas estruturas federativas serão a

293
Célebre jornalista espanhol e autor de vários livros sobre esta temática. “La nueva economía”, “La
globalización”, “Contra el pensamiento único”, “Aquí no puede ocurrir”, “El nuevo espirito del
capitalismo”, “El poder en el mundo”, “Diccionario de la nueva economía”.
294
Joaquín Estefanía, Hij@, qué es la globalización? La primera revolución del siglo XXI, 1.ª edição
janeiro de 2002, Madrid: Santillana Ediciones Generales, S.L., 2.ª edição Fevereiro de 2002, p. 28.
base de uma administração mundial que já tem alguma visibilidade na Organização
Mundial do Comércio.
Ideologicamente esta fase é caracterizada pela crescente generalização dos
regimes democráticos e pela adopção quase universal da teoria neoliberal, caracterizada
pela primazia da iniciativa privada e pela livre circulação de produtos com a progressiva
abolição das taxas alfandegárias.
A globalização tem trazido modernidade à sociedade dita ocidental, porém o
fosso entre as sociedades subdesenvolvidas tem-se alargado, o claro privilégio dos
recursos fósseis tem levado à delapidação dos recursos naturais em detrimento do
desenvolvimento de novas formas energéticas, a teoria da insustentabilidade do Estado
de bem-estar, da ineficiência do sector público, a promoção da competividade e da
precaridade do trabalho tem criado instabilidade social o que deverá proporcionar uma
profunda reflexão.
A rejeição de formas de convivência cultural com medo do risco da
uniformização tem criado formas de nacionalismo e de construção de radicalismo que
explodem em formas de terrorismo colocando em risco um relacionamento saudável
entre os povos. As sociedades que se fecham ao intercâmbio dos povos têm tendência a
tornar-se totalitárias.
No mundo árabe há grupos que se diabolizam com receio da perda da identidade
face à colonização ocidental e particularmente a norte-americana criam-se ideologias
fundamentalistas que desabam em grande número de casos ou em sociedades fechadas e
asfixiantes ou engordam organizações terroristas que constituem verdadeiras ameaças à
civilização ocidental cujo exemplo mais flagrante é o “11 de Setembro”. A propósito da
dimensão cultural da globalização Jorge Sampaio refere que “se ela estará promovendo a
homogeneização ou mesmo, em última análise, a americanização dos gostos, práticas e
consumos culturais; ou se, pelo contrário, à medida que cresce a consciência desse risco
de uniformização, não estará a mesma globalização provocando um pouco por todo o
lado e em reacção, um movimento de intensa afirmação das identidades e culturas
nacionais, regionais e locais, quando não, em alguns casos, a própria rejeição de formas
elementares de convivência cultural”.295

295
Jorge Sampaio, “Discurso de abertura da Conferência - Globalização, Ciência , Cultura e Religiões – da
Fundação Gulbenkian”, Lisboa, 15 de Outubro de 2002, p. 4,
Todas as hipóteses são passíveis de uma verificação e ser aceitáveis, no entanto,
cremos que a superação das barreiras quer sejam físicas ou simbólicas entre os espaços
nacionais beneficiam o desenvolvimento humano e a “osmose informativa” não é apenas
um avanço técnico mas civilizacional pois “abre potencialidades enormes para a difusão
das ideias, da literatura, das ciências e das artes, ou seja para a democratização da
cultura (...) constitui um passo em frente para o conjunto da sociedade”.296
A construção da sociedade da informação é condição essencial para a
transformação da natureza do trabalho e a organização da produção e é condição
essencial para o progresso e um maior relacionamento entre os povos. Esta edificação
num mundo global é irregular e em alguns espaços muito deficiente. As desigualdades
são gritantes, apenas, como já o afirmamos 4% da população mundial tem acesso à
Internet297. Se, nos países desenvolvidos, o objectivo é o apetrechamento da sociedade
com as novas tecnologias, nos numerosos países do chamado terceiro mundo, o
objectivo principal é o combate à fome. Por outro lado, A qualidade da informação
disponível, na net, é polémica, pois ela serve particularmente os países desenvolvidos. È
necessária para além da promoção do acesso incentivar a diversidade das línguas298. A
tecnologia que deveria servir para criar um mundo mais perfeito e justo tem acentuado
as diferenças. Entre os muitos que defendem que as tecnologias e a Internet estão a
aumentar o fosso entre ricos e pobres destacamos Cess Hamelink299, responsável pelo
Departamento de Comunicação da Universidade de Roterdão, argumenta que muitas das
promessas estão ainda por cumprir, pois “muitas pessoas estão a ficar excluídas” ele
defende ainda que a generalização das tecnologias criaria um mundo insustentável em

(http://www.gulbenkian.org/globalizacao/presidente.pdf).
296
Mario Vargas Lhosa, escritor peruano, citado por Ana Gomes Ferreira, “O medo da americanização do
Planeta tem mais de paranóia do que de realidade”, Público (secção: Sociedade), 17 de Outubro de 2002.
297
A taxa de acesso ao serviço de telefone (fixo e móvel) era, em 1998, de 72% nos países membros da
OCDE, em oposição a 8 por cento registados nos países não pertencentes. Nos países desenvolvidos a
taxa de acesso à Internet é de mais de 30%, como vimos enquanto nos países africanos esta é inferior a
2%. Fonte: Diário de Notícias (secção net), “África não quer perder a corrida”, 26/05/2002.
298
Enquanto a presença de páginas em Inglês se situa na ordem dos 75%, restando as línguas latinas um
valor na ordem dos 10.5%. Os conteúdos em Português situam-se na ordem dos 1,1% contra 3,2% do
universo de falantes. Fonte: União Latina, “A presença das línguas e das culturas latinas na Internet”,
1998,
(http://www.unilat.org/dtil/lenguainternet/pt/lingua/linguas_cap1.htm#1.1.%20Síntese%20dos%20Resulta
dos).
299
Entrevista ao Público (Suplemento Computadores) conduzida por Isabel Gorjão Santos “As tecnologias
e as assimetrias” de 6 de Maio de 2002.
termos ambientais. Esta tese deveria servir para se repensar o tipo de desenvolvimento
que teremos de implementar.
As escolas terão forçosamente de se adaptar a este mundo em mudança. Algumas
experiências revelaram-se demasiado economicistas e falharam o objectivo essencial da
formação de pessoas. Pela educação/formação passa muita da esperança da construção
de um mundo mais justo.

3.1.3 A escola no mundo globalizado

Desde a década de 80 que as novas tecnologias e a Internet contribuíram para a


partilha de informação entre diversas estruturas do ensino superior. Investigadores a
trabalhar nos lugares mais dispersos conseguiram intercambiar experiências e em
parceria desenvolver projectos comuns de investigação. O processo iniciou-se nos EUA,
porém a Europa ao dar-se conta do seu atraso em relação á conexão em rede das
instituições do Ensino Superior, encetou um processo de rápida construção da Sociedade
da Informação, como vimos em capítulo anterior. Uma das primeiras medidas que toma
no âmbito do eEurope é o de construir uma rápida ligação entre instituições de Ensino
Superior. A utopia de um desenvolvimento sem precedentes e desinteressado do
conhecimento baseado numa verdadeira teia, que todos contribuíssem para a construção
de um mundo melhor poderia concretizar-se. Esta visão pressupôs um caminho tortuoso
e semeado de dificuldades e a utopia está longe de concretizar-se. O fosso entre os
países mais desenvolvidos e os outros tem-se alargado, a par das injustiças sociais.
A necessidade de formação profissional e de formação em exercício de
actividade permitiu que o número das escolas se multiplicasse, e muitas empresas
privadas entraram no negócio do ensino/formação. As Universidades aliaram-se a
grandes empresas em parcerias de investigação, o ensino estandardizado especializou-se
e retiraram dos currículos as cadeiras generalistas, desenvolveu-se o negócio do ensino
para o emprego imediato em que as aulas têm uma forte componente de elearning300.
Dan Schiller301 traça-nos uma panorâmica das transformações do ensino particularmente
nos EUA e a mutação do ensino tradicional universitário, não lucrativo, em

300
Ensino à distância pela Internet.
301
Dan Schille,, A globalização e as novas tecnologias, Lisboa: Presença, 2001, pp. 169 - 230.
oportunidade de negócio, deitando mão às redes informatizadas, especialmente a
Internet, que tiveram uma importância fundamental, originando ao que chama “o
capitalismo digital” no ensino. “Este aumento vigoroso da procura de formação técnica
foi uma consequência quase inevitável do aumento de dependência da indústria em
302
relação à investigação científica”. Por outro lado, as empresas são, por natureza,
grandes consumidoras de tecnologias, o que significa que ciclicamente, o departamento
de informática tem de proceder a uma reciclagem de conhecimentos. Outras razões
devem-se acrescentar a este aumento da procura de ensino, como seja o número
crescente de empregos em perigo, o desfazer do mito de uma carreira para toda a vida,
derivada do triunfo das políticas neoliberais.
A formação nas TIC tornou-se o mercado mais dinâmico do negócio da
educação/formação.303 O ciberespaço como fonte do conhecimento, aliado às
necessidades de formação para acompanhar a vertiginosa substituição de equipamentos e
aplicações, atraiu o investimento privado, numa perspectiva de lucro. No sector da
educação, onde antes havia instituições não lucrativas, começaram a surgir interesses
privados com o objectivo de adquirir dividendos. As empresas privadas criaram as suas
próprias escolas e durante a década de noventa, nos EUA, “o leque de matérias
ensinadas no sistema paralelo tinha crescido até se tornar tão abrangente como o das
escolas superiores e universidades”.304 A juntar a esta componente de prestação directa
de serviço surge o negócio do ensino em rede digital, do software educativo, da
programação de informática, material de testes, software de gestão de escolas, bases de
dados on-line, etc. A utilização crescente das novas tecnologias tornaram o negócio da
educação/formação um dos mais atractivos para os interesses empresariais e movimenta
um dinheiro incalculável e também múltiplos interesses.
A escola virtual transporta virtualidades transnacionais e globalizadoras. O
tráfego de estudantes para as universidades estrangeiras dos países mais desenvolvidos
apenas conhece a fronteira do custo, “segundo uma estimativa, em 1990, cerca de doze

302
Ibid., p. 182.
303
111 é o número de cursos superiores que no ano lectivo de 2002/2003 vão se disponibilizados em
Portugal para um universo de 6565 alunos. Em relação ao ano lectivo anterior há um ligeiro decréscimo
(7095 vagas forma as havidas no ano lectivo 2001/2002) segundo fonte: Hugo Séneca, “6565 vagas para
TI” in Exame Informática, n.º 86 de Outubro de 2002, p. 20.
304
Dan Schiller, A globalização e as novas tecnologias, Lisboa: Editorial Presença, Maio de 2002, p. 180.
por cento dos cientistas e engenheiros americanos tinham nascido no estrangeiro”.305 O
inglês que aprece como língua franca dos negócios e também da ciência possibilita a
internacionalização deste negócio que tem como ponto de partida os países anglo-
saxónicos, particularmente os EUA. A procura de cursos de formação estandardizados e
modulares é cada vez mais, porque é mais rápido e fácil de adquirir e importa em menos
custos. Corremos o risco de o conhecimento técnico-instrumental objectivado pela teoria
neoliberal ser castrador da dimensão cognitiva do ser humano. A qualidade do ensino
não pode pura e simplesmente aparecer atrelada á lógica de mercado. Muitos jovens
estão a substituir uma formação generalista por cursos de formação de tecnologias,
intensivos e de um período bastante curto que lhes garante mais depressa emprego, mas
que esquece a valência global do indivíduo.306 Para além do carácter instrumental, outros
valores devem ser desenvolvidos para que nos diferenciamos de puros instrumentos ao
serviço do mercado de trabalho. Neste espaço de confronto entre a escola a que
chamaremos “tradicional”, que se preocupa na formação integral e as novas práticas que
se direccionam para o imediato, a melhor resposta que as escolas podem dar é o de
“garantir uma educação relevante e de grande qualidade para todos os estudantes (...) e
[usar] a tecnologia como um recurso e não como um fim”.307
Um outro fenómeno ligado à globalização e que tem íntima repercussão na
escola é o dos fluxos migratórios. O aumento da circulação de pessoas, potenciada pela
globalização e o desequilíbrio entre países, tem originado nos mais desenvolvidos
comunidades imigrantes que colocam novos problemas sociais à sociedade e ao sistema
escolar. Estes estão ligados à discriminação, racismo, xenofobia, dificuldades de
integração, comunidades de imigrantes clandestinos e ilegais de difícil resolução. Em
Portugal e nos outros países europeus estão já criados nichos, a maior parte marginais,
que a sociedade tem problemas em integrar. Esta dificuldade acrescida das barreiras

305
Catherine Yang, “Give Me Your Huddled... High-Tech Ph.D.s”, Business Week, 6 de Novembro de
1995. pp.161-164 citado por Dan Schiller, A globalização e as novas tecnologias, Lisboa: Editorial
Presença, Maio de 2002, p. 226
306
Um artigo de Hugo Séneca, “Renovação de matrícula”, Exame Informática, n.º 88, Outubro de 2002.
Pp. 73 a 78 nele se fala de cursos tão intensivos que podem demorar dois a três dias. Aí podemos constatar
que se posiciona no mercado português um conjunto de empresas direccionadas para este segmento de
ensino disponibilizando múltiplas ofertas e em concorrência com as Universidades. Na sua maioria são
leccionados à distância com uma forte componente de e-learning.
307
Malcolm Skilbeck, “Os sistemas educativos face à sociedade de informação” in Rui Marques et al., Na
sociedade da informação: o que aprender na escola?, (1.ª edição, 1998), Porto: Edições Asa (Perspectivas
actuais), 2ª ed. 1998, p. 33.
linguísticas encontra de uma forma geral uma escola básica inadaptada, pensada para os
alunos nacionais e em que os professores têm pouca preparação para este tipo de casos.
A utilização de novas tecnologias poderá ajudar à integração e à educação multicultural
na medida em que possibilita o intercâmbio, a descoberta e a comunicação.
O outro aspecto que nos interessa analisar neste contexto e que vem associado
aos meios de comunicação servidos pelas novas tecnologias e à aproximação entre os
povos, é a imposição crescente de padrões uniformes de cultura, de valores e
comportamentos medidos sempre por uma bitola de consumismo e de perenidade. Jean
Baudrillard chama a estes modelos a “cultura dos mass media” que necessita de uma
continua reciclagem porque é efémera e nada consistente, ao sabor das modas “é para
actualizar todos os meses ou todos os anos a panóplia cultural (...) Outrora indicavam
um livro para a posterioridade e era divertido. Agora assinalam determinado livro para a
actualidade e é eficaz”. 308
As preocupações dos agentes culturais devem ser a da afirmação da diversidade e
da interculturalidade frente a poder avassalador da cultura americana que dispõe de
instrumentos poderosos para a universalização dos seus valores culturais em face de
outras especificidades, como refere Rui Marques “a universalização de uma língua
dominante e a presença avassaladora de uma cultura acentuam a uniformização”.309
Assim, a sociedade de informação, “como espaço de liberdade, deverá estimular o
diálogo na diversidade, a partilha de recursos culturais e a afirmação de cada pessoa,
povo ou cultura”.310 A educação/ formação na sociedade globalizada deve tomar o
compromisso de poder contribuir para a construção de um homem autónomo,
participativo, de uma sólida consciência crítica para participar numa cultura que não é
apenas local mas de todo o planeta, pois é no espaço global que deverá afirmar-se pela
diferença. É urgente o desenvolvimento de atitudes pedagógicas nesta sociedade
globalizada, mas carente de todas as especificidades para uma afirmação plural, mais
rica porque multifacetada. As escolas, lugar privilegiado da recepção de conhecimento
deverão também ser produtoras de informação, de dados científicos e de todo o tipo de
conhecimento para compartilhar com a comunidade nomeadamente no ciberespaço. A

308
Jean Baudrillard, A sociedade de consumo, Lisboa: Edições 70, 1991, pp. 106 e 107.
309
Rui Marques et al., Na sociedade da informação: o que aprender na escola?, (1.ª edição, 1998), Porto:
Edições Asa (Perspectivas actuais), 2ª ed. 1998, p.,18.
310
Ibid., p. 19.
atitude a desenvolver é a de inverter a tendência da passividade da recepção para formar
cidadãos interactivos e geradores de informação.
O contínuo esvaziamento da autoridade dos estados na definição das políticas
económicas deverá ser preenchida pelo aumento da responsabilidade na promoção das
políticas culturais e educacionais que promovam a autonomia educativa, a educação
permanente ao longo da vida, a promoção de conteúdos educativos e também o papel de
árbitro e de definidor, em diálogo com os diversos intervenientes, de itens de avaliação
de qualidade no confronto entre as estruturas lucrativas e não lucrativas do ensino. A
transformação do “status quo” no sentido de preservar as especificidades culturais e
construir uma identidade passa pela definição de um novo paradigma de escola e de
educação virada para a autonomia e a cidadania. Como escreve Agostinho da Silva
«Valioso... para mim... é a noção... de que o que importa não é educar, mas evitar que os
homens se deseduquem. Cada pessoa que nasce deve ser orientada para não desanimar
com o mundo que encontra à volta. Porque cada um de nós é um ente extraordinário,
com lugar no céu das ideias... seremos capazes de nos desenvolver, de reencontrar o que
em nós é extraordinário, e transformaremos o mundo”. 311

3.2 A cultura portuguesa e o espaço global

A identidade de um país livre e democrático provém da sua afirmação cultural e


científica. Se esta se dilui numa outra dominante, deixa de ter significado e razão de
existir e os povos definham ou morrem. Os contactos culturais desejados com outros
povos não deverão ser vistos, nos tempos modernos, numa óptica de dominação ou de
ser dominado, devem pautar-se pelo respeito mútuo, pela afirmação constante das
identidades próprias numa lógica de possível intercâmbio e de aprofundamento de laços
comuns que a história construiu como podem ser, por exemplo, a língua.
Por outro lado, reconhecemos que a defesa de uma matriz não deve ser
confundida com estagnação, ou isolamento, pois ela só terá importância se confrontada.
No espaço global dos tempos modernos, a interdependência é absolutamente vital para o
progresso e a construção de sociedades onde se viva melhor. Os países que não

311
Agostinho da Silva, “Entrevista” a Filosofia, publicação periódica da Sociedade Portuguesa de
Filosofia, nº 2, Dezembro de 1985, p.162. In Dispersos, ICALP, 1988, p. 51.
acompanham os progressos científicos e tecnológicos terão tendência a definhar.
Portugal inserido neste espaço e tempo deve participar deste processo mundial de
desenvolvimento e dar a sua contribuição, pois também da sua história pode retirar
alguns ensinamentos. Jorge Sampaio aponta esse caminho: “o universalismo do qual
Portugal se orgulha de ter sido pioneiro não é confundido com a massificação
uniformizadora. Pelo contrário! Pressupõe a unidade na riqueza da diversidade humana,
que se expressa em todas as formas de criação e vivência cultural: das línguas à
gastronomia, das artes à filosofia”.312
Portugal nasceu da confluência de várias culturas, “acolheu ao longo dos séculos
variados povos que nele deixaram um legado cultural do mais alto valor”.313 Até à
independência operada pelo nosso primeiro rei, D. Afonso Henriques, aqui aportaram ou
se estabeleceram: os fenícios, os gregos, os celtas, os cartagineses, os romanos, os
suevos, os visigodos, os árabes, entre outros. Miscigenaram-se na troca de todo o tipo de
valores, de afectos e até de sangue e deixaram marcas indeléveis que permanecem na
língua, nos costumes, na arqueologia, na religião, nas instituições, de maneira a formar
esses traços comuns que nos permitem caracterizar o povo português.
Esta identidade completou-se e ficou enriquecida com a expansão originada da
epopeia marítima. Portugal contribui, como vimos, para o processo de globalização e de
encontro de povos. Neste contacto influenciou e até determinou a cultura de outros
povos e por eles também foi influenciado. Este fenómeno de osmose provocou
profundas influências na cultura que se reflectiram, para além dos usos, costumes e
hábitos, na língua. Se esta tem a matriz latina, também colheu vocábulos nos diversos
povos que aqui aportaram como sejam os fenícios (o sufixo ippo em Olisipo – Lisboa e
Collipo – Leiria), os gregos (a maior parte dos helenismos foram introduzidos por
influência romana), os celtas e os celtiberos (o sufixo briga que aparece, por exemplo,
em Conímbriga), os germânicos suevos e os visigodos (de onde derivaram palavras
como aio, íngreme, espora, luva), para não falar dos árabes que contribuíram com
inúmeros vocábulos.

312
Jorge Sampaio, “Discurso de abertura da Conferência - Globalização, Ciência , Cultura e Religiões – da
Fundação Gulbenkian”, Lisboa, 15 de Outubro de 2002, p. 5 ,
(http://www.gulbenkian.org/globalizacao/presidente.pdf).
313
Joaquim Veríssimo Serrão, História de Portugal (1080-1415) – 1.ª edição 1977, Lisboa: Editorial
Verbo, 5.ª edição, 1995.
Com os descobrimentos, a influência índia e africana transmitiu ao português
numerosos vocábulos ainda hoje correntes: abacaxi, caipira, jacaré, batuque, samba.
Estas palavras normalmente eram de pronúncia suave, e foi esta característica que o
Brasil desenvolveu produzindo um linguajar próprio que levou Eça a dizer que aí “fala-
se português com açúcar”. A recente edição do “Dicionário Houaiss de Língua
Portuguesa” inclui vocábulos brasileiros e portugueses, ampliando-se a “palavras dos
crioulos orientais e africanos de origem portuguesa, além de diversos vocábulos de
outros idiomas - por exemplo, do chinês – incorporadas no nosso léxico por se
registarem em obras literárias cujo meio de expressão foi o português”314. Achamos
natural, retirados os devidos exageros, a introdução de vocábulos da língua inglesa ou
outra para designação de objectos ou conceitos que se estão a tornar mais ou menos
universais. Esta contínua actualização é característica de uma língua viva.
Não foram somente razões de comércio que levaram à expansão portuguesa, mas
também razões ideológicas que se centraram na disseminação dos valores religiosos na
ânsia de converter outros povos à doutrina cristã. Contudo, esta empresa que constitui a
página mais brilhante da História de Portugal serviu para, e parafraseando Camões, dar
“novos mundos ao mundo” mas também para difundir o espírito da “velha Europa” e
dos valores do humanismo, que muito contribui para uma nova concepção do homem e
da história, da cultura e das ciências e que se reflectiu no experimentalismo e na
observação da fauna e da flora das regiões contactadas, abrindo portas a uma nova era da
humanidade - a idade Moderna que iniciou uma época de progresso. Mal grado a
escravatura, a dominação e a deportação de populações que foi uma outra face da moeda
que também convém não esquecer para esconjurar novas ou futuras injustiças,
consideramos que a nossa expansão marítima foi diferente das demais, o que nos leva a
concordar com Veríssimo Serrão de que Portugal “criou um conceito de expansão que
nenhum outro povo da Europa conseguiu superar ou mesmo igualar, pelo convívio
humano e pela fixação às terras onde soube forjar – à imagem do Brasil (...) – um ‘outro’
e grandioso Portugal.”315

314
Este dicionário tem 228500 entradas e o projecto dirigido por António Houaiss demorou 15 anos a ser
realizado, cf. Carlos Câmara Leme, “Vêm aí o mais completo dicionário de Língua Portuguesa”, in
Público (secção Cultura), 25 de Setembro de 2002.
315
Joaquim Veríssimo Serrão, op. cit., p. 23.
António José Saraiva e Óscar Lopes definem o caminho a trilhar para que
Portugal se continue a cumprir. “Ao contrário dos homens, cuja vida biológica tem os
limites da própria existência, as nações podem atravessar períodos de glória ou
estagnação, mas não conhecem o destino da morte, enquanto as gerações guardarem a
terra de origem, os vínculos da língua e do sentimento e o legado cultural que as liga ao
passado”.316Somos por natureza geográfica e por razões culturais e económicas uma
terra europeia, mas, fruto da nossa história, possui condições únicas para estabelecer
esse vínculo de ligação aos povos de África, Oriente e Brasil alicerçado nos laços
comuns da língua, os valores do espírito e os interesses recíprocos terão de ajudar a
revigorar e a perdurar.

3.2.1 Alguns choques de aculturação

Ao longo da nossa história assistimos a períodos de torpor e de aculturação tão


fortes que poderiam pôr em causa a própria independência nacional. Estes processos são
fruto de vários condicionalismos, quantas vezes imperceptíveis e pouco claros,
funcionam também como lenitivo para cerrar fileiras, desenvolver actividades de
promoção da cultura autóctone, despontando vultos das letras que proporcionam
momentos fecundos e vivificantes de produção cultural. Vamos destacar dois deles.
O primeiro, é o que se refere ao antes, durante e depois da perca da
independência nacional, sob o domínio dos Filipes. Irónica será a circunstância do
surgimento desta crise de identidade numa altura da consolidação da língua. António
José Saraiva e Óscar Lopes referem-se a esta ocorrência como “a preocupação de exaltar
e cultivar o idioma”, fenómeno que vem “desde meados do século XVI (Barros,
Camões, António Ferreira, J. Ferreira de Vasconcelos, Fernão Álvares do Oriente,
Rodrigues Lobo), numa reacção de fundo nacional contra a tendência de unificação
dinástica castelhanizante, atingindo o auge sob a dinastia filipina, no século XVII”.317 A
produção literária, no pensar dos dois intelectuais, acrescida do trabalho dos gramáticos
ajudou à fixação do Português. A intelectualidade portuguesa vale-se da língua e torna-a
bandeira no confronto com a unificação ibérica, este estandarte parece-nos determinante

316
Ibid., p .33.
317
A. J. Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, s.l.: Porto Editora, s.d., 17.ª edição, p.
26.
no accionar do processo da Restauração. Neste período de indefinição da nossa
identidade estrutura-se o esteio mais importante da lusofonia. Curioso!
O segundo momento particularmente visível de aculturação é o de influência da
cultura francófona, que se inicia a partir do século XVIII. A vida portuguesa é marcada
pelo século das Luzes desde o reinado de D. João V, e prolonga-se durante séculos,
quase até aos nossos dias, repercutindo-se em todos os sectores da vida nacional. As
invasões francesas inverteram momentaneamente esta aculturação, pelo menos no ânimo
popular, prevalecendo o sentimento antifrancês. Filinto Elísio no seu exílio na pátria de
Vitor Hugo relançará as relações culturais com a tradução de várias obras. Esta
influência prolonga-se durante todo o século XIX e a crise do segundo império que
culmina com a comuna de Paris influencia ideologicamente a geração de 70. A pressão
sobre a cultura e a língua é asfixiante o que leva Eça a exclamar: “Portugal é um país
traduzido do francês em vernáculo”318.
Num texto brilhante com o título genérico “O que é o francesismo?” e com a
ironia que lhe é característica penitencia-se por também ser um dos responsáveis de
“desportuguesar Portugal” e até se denomina de “afrancesado e estrangeirado”. Porém,
segundo ele, a culpa é do “sistema” que atravessa todos os sectores da vida social,
minada que está pelo vírus do “francesismo”. Desde criança, continua Eça, lhe
insuflaram a cultura gaulesa e, até nessa idade tão determinante, lhe disseram que heróis
e santos “só em França se produziam com perfeição”. E não terminou na infância esta
“angústia”. Em todo o trajecto escolar “só encontrava, só respirava francês” (...) Sobre
as mesas só havia livros franceses; nas cabeças só rumorejavam ideias francesas. Toda a
arte nacional era desprezada e não havia lugar para a criatividade nacional, pois ela era
logo desprezada, só havia “arremedos baratos de França”. E por aí adiante: “esta geração
cresceu, entrou na política, nos negócios, nas letras, e por toda a parte levou o seu
francesismo de educação, espalhou-o nos livros, nas leis, nas indústrias, nos costumes e
tornou este velho Portugal de D. João VI uma cópia de França, malfeita e grosseira”. É a
pena demolidora de Eça a chamar a atenção para a descaracterização do país e para a
necessidade de arrepiar caminho.

318
Eça de Queirós, “O francesismo” in Últimas Páginas (manuscritos inéditos), Porto: Livraria Chardron,
1912.
Neste tempo e espaço de forte influência francófona surge um grupo conhecido
como a “Geração de 70”, influenciada pelos ideais da “Comuna de Paris”, respirando e
suando francês, que inicia uma intensa produção cultural, modificando o país e ajudando
a construir a identidade moderna da lusofonia. Deste grupo faziam parte Antero, Teófilo
Braga, Manuel de Arriaga, Eça de Queirós, Oliveira Martins, Jaime Batalha Reis,
Ramalho Ortigão, Guerra Junqueiro entre outros que se tornaram grandes vultos da
cultura portuguesa. António José Saraiva refere que «homens desta qualidade intelectual
e afectiva foram como carvões que mutuamente se aquecem e que produziram uma luz
que alumiou o final do século.”319 A influência francesa que se faz sentir sobre Garrett e
Eça não impede que eles produzam uma verdadeira revolução na língua portuguesa. “A
língua que nós usamos hoje é ainda em grande parte a língua de Eça, a que ele
conquistou a Garrett (...) A agilidade, a coloquialidade, o ‘jargon’ de Eça são em grande
medida, ainda os nossos.”320
Nestes tempos modernos e conturbados de forte aculturação derivados da
globalização, e por extensão da globalização linguística em favor da língua inglesa fruto
também da realidade incontornável das novas tecnologias e da estruturação de um
mercado global, acima descritos, a Língua Portuguesa revela um extraordinário
dinamismo que lhe deu José Saramago com a conquista do Nobel de Literatura, que lhe
dão também pela genialidade vultos como Jorge Amado, Mia Couto e Pepetela e
conquista e há-de conquistar sólido espaço no mercado global da cultura.

3.2.2 A vocação da universalidade lusíada

O papel messiânico e profético atribuído a Portugal faz parte do pensamento


escatológico que atravessou séculos e chegou aos nossos dias. Foi alimentado por
grandes homens da cultura de várias épocas, entre outros destacamos Luís de Camões, o
P.e António Vieira, Fernando Pessoa e Agostinho da Silva. Os Lusíadas de Camões são,
e a propósito da viagem de Vasco da Gama à Índia, uma exaltação do espírito e da
coragem dos portugueses. A epopeia da gente lusa culmina na utópica “ilha dos

319
António José Saraiva, A TERTÚLIA OCIDENTAL estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Marques,
Eça de Queiroz e outros; 2.ª edição - Lisboa: GRADIVA, Cultura e História,1996; p.14
320
Entrevista de Fernando Venâncio a António Reis, um dos maiores especialistas queirosianos “Entrevista
– A irreverente actualidade” in Revista do Expresso - Eça vida que eu tive n-º 1450 de 12 de Agosto de
2000, pág.42.
Amores”, que seria o justo prémio da aventura e para alguns, prenúncio do que estaria
reservado aos portugueses pelas suas façanhas. É com o P.e António Vieira que nasce o
mito do Quinto Império que consistiria na conversão universal, advento da última vinda
de Cristo a terra, este seria o último dos tempos do mundo cujos protagonistas, os
portugueses, o povo eleito, governariam o mundo em grande progresso e concórdia sob a
liderança do ressuscitado D. João IV ou dos seus sucessores. Esta metáfora surge num
tempo e espaço próprios e determinantes - o grande desaire da história nacional, após a
tragédia de Alcácer-Quibir e a morte de D. Sebastião. A dominação espanhola provocou
uma reacção nacionalista que inspirou diversas “invenções” como o diálogo de Cristo
com D. Afonso Henriques antes da batalha de Ourique e a “vaga messiânica do
Sebastianismo”.321 A perda da independência e a subjugação a Espanha faz-se crer que a
crise será vencida com o aparecimento de D. Sebastião envolto em nevoeiro. Este sonho
é sustentado e difundido por várias pessoas, que têm diversos intuitos que vão de uma
crença cega ao despertar a revolta contra a humilhação espanhola e de diversas maneiras
em que sobressaem as “Trovas” do Bandarra de Trancoso.
Foi, no Brasil, a “Nova Lusitânia” no dizer de Hernani Cidade322, um local que
constitui uma reserva cultural e patriótica muito importante na restauração da
independência, que o P.e António Vieira, nos últimos anos de vida e refugiado na Baía,
deu a última demão a um livro de escatologia, Clavis Prophetarum, que era o
desenvolvimento e a justificação teológica da ideia de Quinto Império, Terceiro Estado
da Igreja ou reino de Cristo consumado na Terra323 Esta teoria emanada das suas
meditações da Bíblia leva o padre a teorizar a ressurreição de D. João IV para se cumprir
o Quinto Império. Seria um império mais glorioso e persistente que os quatro da
antiguidade (impérios assírio, egípcio, persa e romano).
Em Fernando Pessoa vamos ainda encontrar esta ideia, mas em moldes
completamente distintos, pois o que ele prognostica é metafórico e de matiz imaterial.
Na “Mensagem”324 ele exprime poeticamente a sua visão mítica e nacionalista de

321
Hernani Cidade e Carlos Selvagem, Cultura Portuguesa, s.l.: Editorial Notícias, Edição Especial
patrocinada pela Direcção-Geral da Educação Permanente, vol. V,s.d. pp.12 e 13
322
Ibid.p.12.
323
A. J. Saraiva e Óscar Lopes, História da Literatura Portuguesa, s.l.: Porto Editora, s.d., 17.ª edição, p.
519.
324
Segundo António José Saraiva os três livros sobre Portugal são Os Lusíadas de Camões, a História de
Portugal de Oliveira Martins e Mensagem de Fernando Pessoa, cf. António José Saraiva, A TERTÚLIA
Portugal prefigurando um ressurgimento da cultura e do pensar lusíada como baluarte a
defender e a divulgar: “... Grécia, Roma, Cristandade, / Europa – os quatro se vão / Para
onde vai toda a idade / Quem vem viver a verdade / / Que morreu D. Sebastião? (Quinto
Império da Mensagem) ... Ó Portugal, hoje és nevoeiro ... / É a Hora! (Nevoeiro da
Mensagem).
Agostinho da Silva inspira-se na profecia das três idades de Joaquim Fiore, abade
cisterciense, na Calábria (1187-1202) para teorizar o seu pensamento apocalíptico e
defender o espírito ecuménico português para a edificação de uma idade virtuosa. Será
clarificador explicar a teoria do “bom abade Joaquim”. Joaquim de Flora e
particularmente os seus seguidores, “os espirituais”, divulgaram a doutrina de que todas
as coisas eram dividas em tríades a partir da Trindade Divina.
A primeira tríade era a dos homens, divididos em três classes: casados vivendo
sob o Pai; clérigos cujo patrono era o Filho; e os mais venturosos e perto da perfeição
seriam os monges que viveriam sob o Espírito Santo. A segunda tríade era a das
doutrinas dividia-se em três épocas: a Primeira idade foi a do Pai que corresponderia à
do Antigo Testamento caracterizada pelo temor a Deus e tempo dos patriarcas; a
segunda foi a do Filho correspondendo ao Novo Testamento e caracterizada pela
evangelização e pelos sacerdotes; a terceira e última época será a do Espírito Santo ou
Paracleto, caracterizada pelo domínio do espírito em que os homens se amarão e viverão
em perfeita harmonia governados por um Papa Angélico ou um Imperador Virtuoso, a
seguir virá o fim dos tempos com a última vinda de Jesus Cristo. Nesta teoria do
Joaquimismo haverá ainda uma terceira tríade que corresponde à maneira individual de
viver: os que vivem sobre a Carne, vivem sob o Pai; sob o Filho vivem a um tempo sob
a carne e o espírito; os que vivem apenas sob o espírito estão sob a influência do Espírito
Santo; nesta linguagem metafórica entenda-se a carne os prazeres do mundo e o espírito
será a entrega total a Deus. Os descobrimentos portugueses seriam a tentativa de
realizar na terra esta terceira idade sob a celebração do Espírito Santo.
Agostinho da Silva transporta esta tese para os tempos actuais e dirá “estamos no
limiar daquela idade de que profetizou o bom abade Joaquim”.325 O culto popular do

OCIDENTAL, estudos sobre Antero de Quental, Oliveira Martins, Eça de Queirós e outros, Lisboa:
Gradiva, s.d., p.102.
325
Paulo Pereira, “Agostinho, o regresso de D. Sebastião”, A Revista do Expresso, 31 de Março de 1990,
pp. 12 e 13.
Espírito Santo nos Açores, Tomar e Sintra são a prova de que há vontade, no mínimo
inconsciente de aspirar a esta utopia. Nos Açores é instala uma criança como Imperador
do Mundo. A criança pura, sem o estigma da escola, representa o modelo do homem que
se aspira, então está aqui o padrão daquilo que se deve fazer – “eles só coravam
“imperador do mundo aqueles que tinham escapado à educação”.326 É também partindo
daqui que se deve entender a tentativa de Agostinho da Silva, sempre muito vaga, por
vezes contraditória e, no mínimo polémica, de reformar a pedagogia e a escola
portuguesa. “A educação não terá nenhuma outra tarefa senão a de deixar que a bondade
inicial esplenda e seja”327 está eleito o ponto de partida para a construção de uma
sociedade melhor.

3.2.3 Agostinho da Silva: o universalismo português e o reflexo num projecto de


escola

Agostinho da Silva estabelece um dos traços de união entre o universalismo


português e as atitudes pedagógicas. Sem querer dar receitas e eleger uma corrente
pedagógica como a mais correcta, a sua obra é uma afirmação nos valores da liberdade e
do respeito pelo homem, acrescida da forte convicção que a tecnologia e o conhecimento
são vectores essenciais do progresso humano. O seu pensamento é filosófico mas
também polémico porque tudo põe em causa, os seus apotegmas encerram um sentido
profético “Portugal vai ser um dos países condutores do mundo”.328 Apesar de ser
obrigado a sair do país, ter sido preso e o seu magistério se ter localizado,
primordialmente, no Brasil, após o 25 de Abril e de regresso a Portugal, nos seus últimos
anos de vida foi considerado, por terras lusas, um intelectual da “moda”, principalmente
após o programa televisivo “Conversas Vadias”. Congregou em seu redor múltiplos
políticos e originou um estranho unanimismo sendo por isso considerado o ideólogo do
novo regime329. Porém, não faltaram os seus delatores, aparecidos essencialmente do
facto de privilegiar a relação com os povos de língua oficial portuguesa em detrimento

326
MACHADO, Luís – A última conversa - Agostinho da Silva (com prefácio de Eduardo Lourenço).
Lisboa: Editorial Notícias, Fevereiro de 2001, p. 100.
327
Agostinho da Silva, “A educação em Portugal”, in Textos pedagógicos II, Lisboa: Âncora Editora,
2000, pp. 94.
328
Luís Coelho, “O tele-visionário acidental” in Revista do Expresso, 31 de Março de 1990 p. 8.
329
Paulo Pereira, artigo citado Ibidem, pp. 12 e 13.
da integração europeia. Carrilho chama-lhe falso profeta e escreve que ele “não é autor
de nenhuma teoria, nem de uma doutrina cujas teses se possam discutir: o que ele
oferece é uma declamação para ‘pegar ou largar’ e opiniões de intenção utópica, mas de
uma utopia que abdicou num profetismo algo trapeiro”330.
Da sua obra transpira um profundo humanismo e a certeza de que a escola é o
baluarte fundamental para a transformação do mundo, “a escola deve servir o mundo e
tentar modificá-lo”.331 As suas ideias sobre a educação são paradoxalmente complexas e
ao mesmo tempo actuais e simples. Complexas, pois projectam-se sempre para uma
escola no domínio da utopia, mas que parece perfeitamente atingível se o homem assim
o desejar. Simples e actuais porque o objectivo é o de todos os homens tenham “a
mesma liberdade, os mesmos direitos e os mesmos deveres, os mesmos recursos e as
mesmas perspectivas”332. As tónicas do seu pensamento pedagógico são colocadas na
liberdade do aluno como valor supremo de qualquer método pedagógico porque cada
homem é um ser diferente e o objectivo último de qualquer sistema de ensino deve ser a
sua realização pessoal. Provocador, adepto mais da reflexão do que o do apontar
caminhos, Agostinho da Silva não tem pejo em afirmar-se “contra a pedagogia”, mas
totalmente a favor da “escola (...) em que a iniciativa pertence ao aluno e não ao
professor”.333
Um dos princípios que defende é a necessidade da universalização da cultura,
fundamental para o progresso da humanidade. Todos devem ter a obrigação de aprender
o mais e melhor que puderem e ao mesmo tempo proporcionar aos que consigo
interagem a oportunidade de se elevarem culturalmente. “Temos, sobretudo de aprender
duas coisas: aprender o extraordinário que é o mundo e aprender a ser bastante largo por
dentro, para o mundo todo poder entrar”.334 O nível de desenvolvimento dos povos ‘e
directamente proporcional ao nível de literacia “o problema da educação está entre os
primeiros que têm de resolver-se e sem uma sólida preparação cultural, nenhum povo
pode assegurar-se um progresso duradouro e profundo”.335 É neste sentido que avança,
nos anos 30, com o projecto do “Núcleo Pedagógico de Antero de Quental”, projecto
ambicioso que consta das realizações de missões de cultura pelas vilas e aldeias (pasme-
se! Na altura fazia-se acompanhar de um projector de slides o que era um instrumento
muito raro!); conferências pedagógicas para tratar de todos os problemas relativos à

330
Manuel Maria Carrilho, “O profeta e a tribo”, Revista do Expresso, 31 de Março de 1990, pp. 10 e 11.
331
Agostinho da Silva – Textos pedagógicos I. Lisboa: Âncora Editora, Março de 2000, p. 208.
332
Ibidem, p. 284.
333
Helena Maria Briosa e Mota, “Introdução” in Textos Pedagógicos I, Lisboa: Âncora Editora, Março de
2000. p. 13.
334
Luís Machado, A última conversa – Agostinho da Silva, (1.ª edição, 1995), Lisboa: Editorial Notícias,
8.ª edição, 2001.
335
Ibidem, p. 233.
educação de crianças e adultos; publicação de um boletim de divulgação pedagógica;
publicação de boletins de iniciação cultural para crianças e adultos; fundar escolas
experimentais onde se testem as novas pedagogias; criação de bibliotecas pedagógicas e
de temáticas gerais, organizar sessões de cultura pela rádio. Para além de conferencista,
nunca se negou a qualquer solicitação e de uma intensa publicação de escritos na
imprensa, meteu ombros a uma empresa impressionante de redacção de opúsculos para
todas as idades. São os cadernos “À Volta do Mundo... – Textos para a Mocidade e
Textos para a Juventude” (1938-1943), a par das “Biografias” (1943-1944) que visavam
um público entre os dez e os dezasseis anos. Para um nível etário equivalente ao
Secundário, mas também para públicos mais instruídos, que tinham como objectivo
permitir uma sólida base cultural, se destinaram os cadernos “Iniciação e Divulgação
Cultural”336 (1940-1947). Na mesma altura, surge a colecção “Antologia de Grandes
Autores”337 (1941-1947) que constavam de textos escolhidos de todos os autores do
mundo.
Neste esforço de construção de leituras didácticas e de contribuir para uma
transformação da escola e com ela do país e como consequência do próprio mundo,
lança-se ao estudo de diversos pedagogos, de correntes pedagógicas inovadoras e não se
coíbe de dar ideias e conceber projectos. Na obra Miguel Eyquem, Senhor de
Montaigne338, apresenta-nos um Montaigne precursor do humanismo e credor de duas
características pedagógicas a desenvolver e “cheias de consequências; o gosto da
observação e o amor do raciocínio”.339 Os descobrimentos tinham revelado um novo
mundo, os saberes absolutos e totais, que os clássicos tinham produzido, revelaram-se
tão só uma ínfima parte do saber. À verdade dogmática da escolástica, contrapõe-se a
dúvida como móbil do conhecimento. O saber constrói-se “pelo juízo [e] (...) pela
experiência”340 e pela aprendizagem natural. O bom método “é aquele que avança
lentamente, preocupado com tudo, dando importância a todos os pequenos resultados,
não os aceitando sem experiência nem os ensinando sem prova”.341 Como veremos o

336
São 10 séries de 6 títulos cada e ainda uma 11.ª Série de 3 títulos
337
São 8 séries com 6 títulos cada e ainda uma 9.ª Série com 5 títulos
338
Agostinho da Silva, “Miguel Eyquem, Senhor de Montaigne” in Textos Pedagógicos I, Lisboa: Âncora
Editora, 2000 pp. 39 a 128.
339
Ibidem, p. 70.
340
Ibidem, p. 78.
341
Ibidem, p. 121.
conceito de liberdade é recorrente em todo o articulado de Agostinho, pois “ o que é
necessário é que se ensine a estudar, a trabalhar pelos próprios meios; viagens, contactos
com os homens e não a prisão dos colégios”.342
No texto, A vida de Pestalozzi,343 traz-nos a ideia de que a criança deve ser o
centro do universo e serão os humildes os mais necessitados do empenhamento do
mestre. O início do texto é um feroz ataque à escola, instituição, aquela escola formalista
e violenta em que “os filhos de campónios, tão vivos e alegres, se transformavam com os
anos em moços melancólicos e estúpidos”.344 Defende a tese, que lhe é cara na maioria
dos escritos, de que é a dedicação e o trabalho do professor são primordiais na melhoria
do acto educativo. A apresentação da vida de Pestalozzi é um hino à dedicação e à
perseverança do mestre cujo objectivo último é servir as crianças. A metodologia centra-
se na “paciência”, na “bondade”, na “compreensão”, na “confiança”, na “sólida
amizade” e “na franqueza”. Esta é também desenvolvida no texto “Projecto de um
mestre”: “Ora o mestre (...) não verá no aluno um inimigo natural, mas o mais belo dom
que lhe poderiam conceder; perante ele e os outros nenhum desejo de domínio; o mestre
é o homem que não manda, aconselha e canaliza, apazigua e abranda; não é a palavra
que incendeia, é a palavra que faz renascer o canto alegre do pastor depois da
tempestade; não o interessa vencer, nem ficar em boa posição; tornar alguém melhor –
eis o seu programa; para si mesmo, a dádiva contínua, a humildade e o amor do
próximo.”345
A insistência deste postulado de “missão” aparece mais uma vez na leitura do
texto “Baden Powell, Pedagogia e Personalidade”346 onde também são exaltados os
valores humanistas da fraternidade, da perseverança, da honestidade, da
responsabilidade, da justiça e da liberdade e da importância da escola se abrir à vida,
pois “é a vida (...) que educa (...) é a vida (...) que importa”347. Se o professor é essencial
na revolução escolar, toda a verdadeira mudança deve ter o seu alicerce na escola, pois

342
Ibidem, p. 127.
343
Agostinho da Silva, “A vida de Pestalozzi” in Textos pedagógicos I, Lisboa: Âncora Editora, 2000 pp.
129 a 187.
344
Ibidem, p. 132.
345
Agostinho da Silva, “Projecto de um mestre” in Considerações, Assírio § Alvim, Maio de 1994, pp. 72
e 73.
346
Agostinho da Silva, “Baden Powell, Pedagogia e Liberdade”, in Textos pedagógicos II Lisboa: Âncora
Editora, 2000, pp. 23 a 32.
347
Ibidem, p.28.
“uma revolução que não se faz acompanhar de uma acção pedagógica é um tumulto e
nada mais.”348 O cunho profético do pensador que acredita no poder salvador do acto
educativo continua “um dia, pela escola, a humanidade [poder-se-á] libertar de todos os
defeitos e de todas as misérias”.349
No estudo dedicado a Montessori350 e ao seu método ressalta a ideia de uma
escola pensada de acordo com a personalidade da criança. É o conceito de liberdade,
mais uma vez, mas agora de forma mais vincada, que é determinante na construção da
autonomia e autodisciplina da criança. É imprescindível “o respeito pela personalidade
infantil e a recusa de toda a acção modeladora”.351 Este conceito de liberdade também é
recorrente no exemplo das escolas de Winnetka352 que, apesar de sublinharem a
necessidade de desenvolvimento máximo das capacidades do estudante, advogam uma
metodologia expurgada da “máquina das notas, dos quadros de honra, da vigilância nos
exercícios e das lições recitadas [que] conduz (...) a um desenvolvimento quase
monstruoso do egoísmo”.353
Um dos outros acentos tónico são a virtualidade do ensino cooperativo que passa
pelo alargamento da relação entre a escola e a comunidade educativa. No relato mais
conhecido e também o mais entusiástico: Sanderson e a escola de Oundle354, Agostinho
defende a adaptação dos currículos ao espaço circundante e às necessidades ditadas pelo
meio circundante que contemplam uma prática pedagógica em contexto de liberdade, de
criatividade e interacção. Anderson acaba com as paredes físicas e mentais derrubando-
se a escola instituição porque é necessário refutar a velha escola que predispõe para o
êxito, para um bom emprego, para a rivalidade e a competição e é necessária organizar
uma escola cuja principal atitude seja a cooperação. A escola só tem fundamento se
enraizada no meio circundante e for concebida com base nele e direccionada para
atender às suas necessidades. O trabalho de grupo, na escola de Oundle “é a arma mais
segura de combate contra o egoísmo, contra o desprezo dos outros, contra a intolerância
perante a opinião alheia; dá o sentimento e o hábito duma grande faina comum para o
progresso da colectividade”.355

348
Agostinho da Silva, “A vida de Pestalozi” in Textos pedagógicos I, Lisboa: Âncora Editora, 2000, p.
160.
349
Ibidem, p. 176.
350
Agostinho da Silva, “O método Montessori”, in Textos pedagógicos I, Lisboa: Âncora Editora, 2000,
pp.189 a 234.
351
Ibidem, p. 197.
352
Agostinho da Silva, “As escolas de Winnetka” in Textos pedagógicos I, Lisboa: Âncora Editora, 2000,
pp.235 a 248.
353
Ibidem, p. 235.
354
Agostinho da Silva, “Sanderson a escola de Oundle”, in Textos pedagógicos I, Lisboa: Âncora Editora,
2000, pp.249 a 284.
355
Ibidem, p. 272.
Agostinho da Silva parece concluir356 que apesar da guerra que queima energias,
apesar da brutalidade que invade todos os sectores sociais, apesar de todas as formas de
repressão, apesar da sociedade consumista que embrutece o espírito, apesar da falta de
respeito pelos mais pequenos, apesar de se continuar a matar em nome de credos, apesar
das disparidades crescentes entre as nações poderosas e os povos do Terceiro Mundo, o
que nos fica é a esperança de que o homem é naturalmente bom e o que é preciso para a
criação de uma sociedade perfeita é que ele saiba regressar às origens e seja de novo
criança. E para que tal aconteça só é necessário um novo paradigma de escola e de
educação. Ela não nasce deformada, nem autónoma isto é destituída de alma, tem
amplas potencialidades para amar a vida e encontrar a felicidade que só se alcança
conjuntamente com os outros, em sociedade, e se conservar a pureza inicial.
Inspirado em Camões, Vieira e Pessoa, o pensador acredita na mediação de
Portugal para a construção de um mundo baseado no Espírito que tenha como valores
supremos a fraternidade, a liberdade e a paz reinvertando radicalmente a actual situação.
Retirado o possível exagero e o patriotismo inerente, mas parafraseando o filósofo,
Portugal só se cumprirá com uma aposta séria na educação, através da planificação de
currículos, do equipamento das escolas e de uma boa formação de professores. Este seu
pensamento tem muito de utópico. Porém, é com o olhar numa sociedade perfeita,
apesar de irreal que se poderá melhorar a sociedade em que nos inserimos. Se formos á
raiz da palavra utopia será sinónimo de “não lugar”, não é este o objectivo do pensador,
pois acredita num processo de construir o “paraíso” na terra, essa edificação terá de ser
realizada através da educação e nela o papel do professor é essencial. Este conceito de
educar é bem mais abrangente do que o simples acesso ao conhecimento, pois incluirá
uma formação humanista em que o homem é o factor central e determinante. O acesso
ao conhecimento poderá ser mediado pelas TIC, estas são apenas uma parte do processo
educativo, a outra componente deve ser um modelo de relações forte e variado e sempre
apoiado na entrega absoluta e radical do mestre.

3.2.4 Enfrentar os desafios

356
Agostinho da Silva, “Projecto de um mestre” in Considerações, Assírio § Alvim, Maio de 1994, pp. 72
e 73.
Assistimos à emergência de um mundo globalizado em que os actuais traços são
muito mais indefinidos que os processos anteriores. As tecnologias de informação e
comunicação são o principal instrumento que potencia e também caracteriza esta fase
globalizadora. Por isso toda a investigação, aplicação e uso desta técnica pressupõe uma
cuidada reflexão. Ela transporta a contradição de ao mesmo tempo poder padronizar
comportamentos e de promover a heterogeneidade. A pergunta mais premente que
procurámos responder neste capítulo é esta: Pode um mundo globalizado preservar a
riqueza da diversidade cultural ou está predestinada a uniformização de valores e
culturas? A resposta poderá parecer ainda ambígua cremos, porém, se soubermos dar
uma resposta centrada na escola, há horizontes de optimismo e a possibilidade de uma
maior afirmação da identidade portuguesa. “Aquilo que o país vai ser depende daquilo
que as instituições de educação e formação quiserem que ele seja”.357
No domínio da educação, para enfrentar os desafios da sociedade do
conhecimento temos de nos preparar, nos munir das ferramentas necessárias. Convém
também ter alguns cuidados. Assim a necessidade de formação para atender às
necessidades do mercado não pode esquecer que o homem para além de se inserir no
mercado de trabalho é pessoa em primeiro lugar, implicando que lhe seja disponibilizada
uma educação/formação que contemple a aquisição de conhecimento, mas também a sua
formação global. A utilização das ferramentas tecnológicas na perspectiva da inovação e
da investigação constitui a base de desenvolvimento principalmente de países parcos em
recursos naturais como o nosso. Portugal tem infra-estruturas e telecomunicações dos
mais avançados do mundo, porém esbarra com uma deficiente cobertura de
equipamentos358 e rácio de computadores como apontam os dados analisados. Muitos
passos já foram dados, como vimos, nomeadamente o programa Internet nas escolas e as
múltiplas experiências já desenvolvidas, nomeadamente na formação contínua de
professores, mas um longo caminho ainda é preciso percorrer. Os desafios abrangem-nos
a todos: estado, escola/instituição, professores, encarregados de educação e alunos.
Pensamos competir ao decisores políticos a conceptualização da necessidade de

357
Prof.ª Dr.ª Maria João Rodrigues no debate realizado pelo Conselho Nacional de Educação sobre
“Qualidade e Avaliação da Educação” no artigo de João Veiga “Qualidade e Avaliação da Educação” in
Notícias – Jornal do Sindicato do SPZN, Junho de 2002, p. 5.
358
Conf. Raul Junqueiro, A idade do conhecimento a nova era digital, Lisboa: Editorial Notícias, Maio de
2002, p.
utilização das novas tecnologias para manter uma competitividade e nesse sentido tornar
urgente mobilizar recursos, promover iniciativas, avaliar as experiências, planificar
currículos e formar professores. Às escolas pedem-se lideranças fortes e esclarecidas,
implementação de experiências locais, mediadas com as instituições do meio,
divulgação de especificidades próprias, desenvolvimento de projectos educativos que
envolvam toda a comunidade educativa e intercâmbio interescolas. Aos professores
pedem-se motivação e porque não espírito de “missão”, competência instrumental,
confiança em inovar práticas e processos. Aos estudantes, a consciência de uma
responsabilidade acrescida na sua aprendizagem e de que esta é para toda a vida, que
saibam usar as novas tecnologias como um meio de aumentar os seus conhecimentos e
que a sua responsabilidade na sua aprendizagem cresceu. Os pais e encarregados de
educação terão de estar atentos a esta transformação social e compreenderem que as
novas tecnologias estão para além do carácter lúdico e a aposta em equipamentos é um
valor acrescentado ao percurso escolar dos seus educandos e a consciencialização de que
o manuseamento das novas técnicas poderá servir a uma melhor ligação à escola e à
informação dos seus.
Na alvorada do novo século, um novo recurso se perfila para ser explorado. No
mundo virtual cabe todo o conhecimento e é porta aberta à descoberta. Pelas redes
informáticas estabelecem-se relações sociais para os mais diversos fins, circulam dados
vitais à construção de uma melhor sociedade humana. É um novo oceano pejado de
perigos, encerrando mistérios, apelando à aventura, repleto de novos mundos por
descobrir: “literaturas do mundo inteiro, mercados intercontinentais, conversas nos
vários fusos horários, negócios virtuais, traduções automáticas na Babel universal,
amores sem fronteiras, notícias instantâneas”.359 Temos de novo à nossa disposição o
meio para difundir os valores da universalidade portuguesa.
Malcolm Skilbeck fala-nos da existência de “uma ameaça muito real à
diversidade cultural, patente na homogeneidade e nas reais tendências imperialistas
observáveis na sociedade de informação actual, e de que é particular exemplo o domínio

359
José Magalhães, - homo sapiens – Cenas da vida no ciberespaço – Lisboa: Quetzal Editores, 2001, p.
133.
da língua inglesa pela sua versão americana”.360 A ameaça tem vindo a crescer com
consequências visíveis nas especificidades culturais fruto do impacto de “pacotes
culturais”, assim ditos, prontos ao consumo imediato e à satisfação das necessidades
mais primárias e que nos chegam das mais variadas formas em detrimento de uma
formação completa, acreditamos, porém, que se garantirmos aos estudantes “culturas
ricas e diversificadas e (...) um modelo de relações sociais forte e variado”, esta
tendência poderá inverter-se. Acreditamos como Raul Junqueiro que “ao invés de perder
a identidade cultural pela massificação e globalização proporcionada pela Internet, o
Homem tem de si a oportunidade de se enriquecer e amadurecer com a diversidade e
também de aprender e compreender a aceitar a pluralidade de ideias, de perspectivas e
culturas”.361
Somos cerca de 200 milhões de falantes espalhados pelos cinco continentes,
inseridos em países em expansão populacional e com enorme potencial económico como
sejam o Brasil e Angola. Portugal está inserido num espaço económico e o esforço de
modernização e desenvolvimento têm-no afastado de outros objectivos que passam pela
afirmação cultural e do relacionamento com o chamado “mundo lusófono”. A recente
mobilização do povo português de apoio à autodeterminação do povo timorense, a
grande comunidade de imigrantes dos PALOP e do Brasil que continuam a miscigenar-
se no nosso país, a atenção que damos à actualidade dos países lusófonos, mostra à
saciedade o espírito ecuménico e de ligação profunda dos portugueses a povos com
quem se relacionou durante centenas de anos. É esta energia que importa incrementar. A
construção de parcerias para um aprofundamento da língua e da cultura comuns é
exigência que a história e o futuro nos impõem.
O enquadramento destas acções tem um lugar e um espaço próprios – a
Comunidade de Países de Língua Portuguesa (CPLP)362, mas também a escola poderá ter
papel importante e primordial no enraizar deste relacionamento através de currículos que

360
Malcolm Skilbeck, “Os sistemas educativos face à sociedade de informação” in Rui Marques et al., Na
sociedade da informação: o que aprender na escola?, (1.ª edição, 1998), Porto: Edições Asa (Perspectivas
actuais), 2ª ed. 1998, p. 41.
361
Raul Junqueiro, A idade do conhecimento a nova era digital, Lisboa: Editorial Notícias, Maio de 2002,
p. 248.
362
A União Latina é outro espaço global de defesa da língua inserida no contexto das línguas latinas. Esta
instituição tem como princípio a “promoção e a difusão de heranças comuns e das identidades do mundo
latino”. Para mais informações visitar o endereço electrónico:
(http://www.unilat.org/info_pt/info/info1.html). Este espaço agrupa actualmente 35 estados membros.de
língua nacional ou oficial românica.
incorporem conteúdos que contemplem este contacto entre gerações, de parcerias
educacionais, de mobilidade da população estudantil e da troca de experiências. As
tecnologias de informação e comunicação podem desempenhar uma função
importantíssima no aprofundamento das relações culturais já que elas transportam
consigo o elo que pode unir distâncias e encurtar contactos.
A iniciativa política de multiplicar os conteúdos em português na Internet363
ganha pleno sentido e reforça a presença da lusofonia no mundo. Mais explicitamente, as
acções passam pela constituição de bancos de dados informatizados, edição de CD-
ROMs linguísticos e culturais, constituição de endereços electrónicos na rede, que
possam ter o papel tanto de promotor como de federador de informações Será necessário
agora sair das intenções e implementar projectos no terreno. A presença das escolas na
rede através de portais próprios, o aumento de ambientes virtuais de apoio ao ensino
pode propiciar o intercâmbio e a interacção entre povos “irmãos”. O crescimento da
“alfabetização digital” dos países de expressão portuguesa contribuirá certamente para o
aumento das trocas culturais e o estreitar das relações. O mesmo raciocínio para a
diáspora lusitana que pontilha o mapa-múndi, consequência da emigração e da anterior
presença colonialista. A utilização das novas tecnologias, nomeadamente a Internet, na
divulgação e ensino da cultura e língua portuguesas no estrangeiro junto da comunidade
lusíada são uma ferramenta essencial. Cremos ser esta uma época excelente para de
novo nos cumprirmos no intercâmbio com todos os povos. Elaborem-se planos, tracem-
se rumos e projectos.

363
Meta 7. da Iniciativa Internet Resolução do Conselho de Ministros n.º 110/2000, DR n.º 193, I Série B,
de 22 de Agosto de 2000.

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