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RESUMO
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INTRODUÇÃO
“O ESTRANHO”
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que nos é íntimo causar-nos estranheza? A resposta, segundo Freud, está
em Schelling: “'Unheimlich' é o nome de tudo que deveria ter
permanecido secreto e oculto, mas veio à luz” (SCHELLING apud FREUD,
1976, p. 91). “Vir à luz”, “trazer à luz” ou “lançar luz” é um dos termos
mais empregados ao longo da obra freudiana, porque, de acordo com sua
“arqueologia da alma”, o psicanalista fará com que venham à luz todos os
traumas soterrados, reprimidos pelo subconsciente. O mecanismo de
repressão é abordado por Freud na segunda lição de Cinco Lições de
Psicanálise. De acordo com Cesarotto, “por um lado, heimlich remete ao
que é familiar e confortável, por outro, refere-se ao que está escondido,
dissimulado. Assim, unheimlich seria utilizado apenas como o oposto do
primeiro sentido, e não como o contrário do segundo.” (CESAROTTO,
1987, p. 115)
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sombra; Robert Louis Stevenson, em O Médico e o Monstro; Oscar Wilde,
em O Retrato de Dorian Gray; Guy de Maupassant, em “O Horla”; Hans
Christian Andersen, em “A Sombra”; E.T.A. Hoffmann, em Os Elixires do
Diabo, por exemplo. Entretanto, um autor merece destaque dentre
aqueles que cultivaram em sua obra o tema do duplo: o escritor norte-
americano Edgar Allan Poe. Alguns de seus principais contos abordam
essa temática de maneira explícita, são eles: “O Retrato Ovalado”, “A
Queda da casa de Usher”, “O Gato Preto” e “William Wilson”. Há, no
entanto, outros contos de Poe em que o tema do duplo aparece de
maneira velada, sugestiva, quer pela caracterização do ambiente sombrio,
insólito, quer pela inversão e transfiguração da realidade. É o que ocorre
em “O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena”, conto publicado
pela primeira vez em 1845, segundo a edição de 2008 das Histórias
Extraordinárias, selecionadas e traduzidas por José Paulo Paes.
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estabelecer esse efeito pré-concebido. (...) Em
toda a composição, não deve haver uma só
palavra escrita, cuja tendência direta ou
indireta não esteja a serviço desse desígnio
pré-estabelecido. (POE apud FLORES DA
CUNHA, 1998, p. 30-31)
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receber passivamente a influência de Poe, mas sim incorporou e
transformou as ideias de seu antecessor, re-elaborando e re-criando os
temas desenvolvidos por esse. De acordo com Flores da Cunha, “essa
confluência se faz sobretudo de forma estrutural e temática, mas como
qualquer outra em Machado – pois coexistem várias – permite
intrinsecamente uma leitura às avessas do mesmo” (FLORES DA CUNHA,
1998, p. 66).
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pelo menos no que concerne à forma –, tema que se faz presente ao
longo da obra dos dois contistas.
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A sensação de permanente desconforto que o narrador sente
diante da situação em que se encontra, bem como a inversão da lógica
preestabelecida criam aquilo que Freud chamava de unheimlich, haja vista
que tal conceito não diz respeito apenas ao desdobramento do homem em
duplos, mas, sobretudo, a essa ansiedade que estoura “em situações
como a solidão, o silêncio e o escuro, passíveis de provocar impressões
assustadoras”. (CESAROTTO, 1987, p. 123). De fato, “O Sistema do
Doutor Alcatrão e do Professor Pena” é o conto menos sombrio de Edgar
Allan Poe, pois nele predomina certa graça zombeteira, porém, não
devemos nos deixar levar pelas aparências. A desconfiança e as dúvidas
do narrador acerca de algo fora do comum estar acontecendo contagiam o
leitor. Com efeito, graças ao discurso do narrador autodiegético,
identificamo-nos com o seu relato, somos tomados pela mesma
desconfiança, somos mergulhados em um mar de incertezas, sentimos
que algo de ruim pode acontecer a qualquer momento, como quando a
animação dos convivas do jantar promovido por Maillard é interrompida
por uma “série de gritos horríveis, ou mesmo urros, provindos de um
cômodo da parte central do edifício” (POE, 2008, p. 92). No conto de Poe,
a sensação de unheimlich é sentida devido a inversão entre razão e
desrazão. Somente no final é elucidada a causa da estranheza que
permeia a narrativa, e as máscaras se rompem, e aquilo que devia ter
permanecido secreto, escondido, vem à luz. O desconforto que sentimos
ao ler “William Wilson” e “O Gato Preto”, contos em que o tema do
unheimlich se apresenta de maneira explícita, é o mesmo que nos aflige
ao ler “O Sistema do Doutor Alcatrão e do Professor Pena”.
“O ALIENISTA”
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de Itaguaí uma casa de saúde para doentes mentais, a Casa Verde,
visando realizar estudos científicos. O seu objetivo é estabelecer os limites
da loucura e da razão e, para tanto, Bacamarte, seguindo unicamente
critérios científicos – pois, “a ciência (…) é o meu emprego único” (ASSIS,
1987, p. 41), declara ele no início da novela – promove um verdadeiro
“caça-bruxas” contra a loucura, em detrimento da opinião pública e dos
direitos individuais Há, na novela, pelo menos duas reviravoltas.
Primeiramente, Simão Bacamarte interna em Casa Verde aqueles que são
considerados loucos pelo senso comum. Por estar de acordo com o critério
popular, ele recebe apoio da opinião pública. Em um segundo momento,
Simão cria um novo critério para as internações, para ele “a razão é o
perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia, e só
insânia.” (ASSIS, 1987, p. 53). As detenções aumentam gradativamente,
e a população começa a indignar-se com Simão Bacamarte. A partir daí
estabelece-se o período de terror, e Casa Verde torna-se a “Bastilha da
razão humana.” (ASSIS, 1987, p. 64). Eis a primeira inversão de “O
Alienista”, haja vista que, de acordo com o novo critério de Bacamarte, a
maioria da população é considerada insana e internada em Casa Verde.
Essa primeira inversão gera desconforto, alteridade, pois o lado de fora
invade o de dentro – esse desconforto equivale ao unheimlich, porque,
conforme a metáfora do espelho431 de Oscar Cesarotto, a alteridade é
resultado de uma assimetria, ou seja, mutatis mutandi, o mesmo
raciocínio se aplica em “O Alienista”, porque o fato de Simão fazer com
que os que são considerados loucos, 4/5 da população, sejam mais
numerosos dos que os sadios caracteriza-se como uma assimetria que
produz a desagradável impressão de estranheza.
O terceiro momento, retratado no capítulo 11, “O Assombro de
Itaguaí”, é ainda mais desconfortável do que o segundo, pois Simão muda
de ideia em relação ao que preconizava anteriormente – doravante, para
431 “O espelho, parâmetro de exterioridade, oferece-lhe [ao sujeito] a chance de se enxergar interior, mas ao
preço de se ver como um outro. Nesta relação com o semelhante, a figura que se reflete invertida, coincidindo o
lado direito com o esquerdo, e vice-versa. Essa assimetria é o elemento que impõe a diferença no registro do
idêntico, forçando a alteridade. Por este viés, aquilo que seria o mais conhecido e familiar, a própria imagem,
vira estranho.” (CESAROTTO, 1987, p. 115)
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ele, serão considerados loucos aqueles que estiverem em perfeita
faculdade de juízo. De acordo com a nova teoria, “se devia admitir como
normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades, e como hipóteses
patológicas todos os casos em que aquele equilíbrio fosse ininterrupto.”
(ASSIS, 1987, p. 80). Agora, a pequena parcela de 1/5 da população que
era considerada sadia é encarcerada, até que, gradativamente, é
libertada, já que todos apresentam algum desequilíbrio. A preocupação de
Simão é que não existem mais loucos, pois todos são desequilibrados. “No
fim de cinco meses e meio estava vazia a Casa Verde; todos curados!”
(ASSIS, 1987, p. 87) É quando Machado de Assis decide ir “mais além”,
isto é, plus ultra, título do 13º e último capítulo: Simão Bacamarte julga-
se em perfeito equilíbrio mental, pois “possuía a sagacidade, a paciência,
a perseverança, a tolerância, a veracidade, o vigor moral, a lealdade,
todas as qualidades enfim que podem formar um acabado
mentecapto.”(ASSIS, 1987, p. 89). Ele recolhe-se voluntariamente à Casa
Verde, porque, em suas próprias palavras, “a questão é científica (…);
trata-se de uma doutrina nova, cujo primeiro exemplo sou eu. Reúno em
mim mesmo a teoria e a prática.” (ASSIS, 1987, p. 90). Dezessete meses
depois de se internar, Simão morre e é enterrado com muita pompa e
rara solenidade.
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CONCLUSÃO
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ASSIS, Machado de. Papéis Avulsos. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994a.
Vol. 2.
ASSIS, Machado de. Várias Histórias. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994b.
Vol. 2.
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