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UNIVERSIDADE FEDERAL DO CARIRI

CENTRO DE LETRAS E ARTES


DEPARTAMENTO DE MÚSICA
CURSO DE LICENCIATURA EM MÚSICA

CARLOS RENATO DE LIMA BRITO

EDUCAÇÃO MUSICAL E IGREJA EVANGÉLICA: O ENSINO DE MÚSICA NO


COTIDIANO DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL EM JUAZEIRO DO
NORTE

JUAZEIRO DO NORTE

2013
CARLOS RENATO DE LIMA BRITO

EDUCAÇÃO MUSICAL E IGREJA EVANGÉLICA O ENSINO DE MÚSICA NO


COTIDIANO DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ DO BRASIL EM JUAZEIRO DO
NORTE

Trabalho apresentado como requisito final


para aprovação Trabalho de conclusão de
Curso do Curso de Música da Universidade
Federal do Ceará, Campus Cariri

Orientadora: Prof. Ma. Maria Goretti


Herculano Silva

JUAZEIRO DO NORTE

2013
2

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação


Universidade Federal do Cariri

B862e Brito, Carlos Renato de Lima


Educação musical e igreja evangélica: o ensino de música no cotidiano
da congregação cristã no Brasil em Juazeiro do Norte/ Carlos Renato de
Lima Brito. – 2013.
52f. ;enc. ; 30 cm.

Monografia (graduação) – Universidade Federal do Cariri, Curso


Música, Juazeiro do Norte, 2013.
Orientação: Profº. Ma. Maria Goretti Herculano Silva

1. Música-Estudo e Ensino. 2. Cristianismo - Brasil. I. Título.

CDD 780.7
iii 3

CARLOS RENATO DE LIMA BRITO

EDUCAÇÃO MUSICAL E IGREJA EVANGÉLICA: O ENSINO DE MÚSICA NO


COTIDIANO DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL EM JUAZEIRO DO
NORTE

Trabalho apresentado como requisito final


para aprovação na atividade Trabalho de
Conclusão de Curso do Curso de Música da
Universidade Federal do Cariri.

Aprovada em: ___/___/______.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Prof. Ma. Maria Goretti Herculano da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFCA)

_________________________________________
Prof. Me. Marco Antônio da Silva
Universidade Federal do Ceará (UFCA)

_________________________________________
Prof. Dra. Carmen María Saenz Coopat
Universidade Federal do Ceará (UFCA)
4
iv

A Deus.
A minha família, Elaine, Amanda, Carlos e
Ana.
5v

AGRADECIMENTO

À CAPES, pelo apoio financeiro com a manutenção da bolsa no Programa


Institucional de Iniciação a Docência – PIBID.
À Professora Mestra Maria Goretti Herculano da Silva, pela excelente orientação
e grande paciência.
Aos professores participantes da banca examinadora: Marco Antônio da Silva, que
me iniciou no texto acadêmico, e a professora Carmen María Saenz Coopat pelo grande
incentivo e pelo exemplo de vida.
A todos os alunos, instrutores, encarregados e examinadores da Congregação
Cristã no Brasil pelo modo sempre cordial e solícito com que me receberam no decorrer da
pesquisa.
Aos colegas da primeira turma de licenciatura da UFC, agora UFCA, pelas
reflexões, críticas e sugestões recebidas.

À Igreja Batista Regular do Novo Juazeiro, onde trabalho e tenho encontrado nova
família e apoio espiritual.

Ao Seminário Batista do Cariri, onde tenho oportunidade de trabalhar com Música


e Teologia.
vi6

RESUMO

A presente pesquisa consiste num estudo de caso realizado no ensino de música da


Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte. O objetivo geral da mesma é investigar
esse ensino e os específicos são verificar a existência de diálogos entres os valores
socioculturais presentes na Igreja com o ensino de música realizado em seus templos, bem
como verificar a existência de metodologias de ensino de música tradicionais e/ou inovadoras.
Baseado nos pressupostos de Berger e Luckmann (1983), referentes ao conceito de cotidiano
e de socialização primária e secundária, bem como baseado no conceito de Geertz (2008) de
cultura e na ideia de educação musical proposta por Swanwick (2008), o trabalho faz uma
reflexão deste ensino de música a partir das falas dos entrevistados, das observações das
escolinhas de música nas Igrejas, realizando uma pesquisa de cunho qualitativo, utilizando-se
da etnografia para análise de dados. A pesquisa constata que o ensino de música e os valores
religiosos da Congregação Cristã no Brasil estão fortemente ligados e que as metodologias
pedagógicas utilizadas dentro da Igreja são eminentemente tradicionais.

Palavras-chave: Congregação Cristã no Brasil. Educação Musical. Igreja Evangélica.


vii7

ABSTRACT

This research is a case study on teaching music in the Christian Congregation in Brazil in
Juazeiro do Norte, state of Ceará. The overall objective is to investigate this teaching and the
specifics objectives are to check for dialogues between socio - cultural values present in the
Church with teaching music performed in their temples, as well as check for methodologies of
traditional music teaching and/or innovative. Based on the assumptions of Berger and
Luckmann (1983), referring to the concept of everyday life and of primary and secondary
socialization, as well as based on the Geertz (2008) concept of culture and the idea of music
education proposed by Swanwick (2008), this paper is a reflection of this music education
from the interviewees' statements, the observations of schools for music in churches,
conducting a qualitative study, using ethnography for data analysis. The research finds that
the teaching of music and religious values of the Christian Congregation of Brazil are strongly
linked and pedagogical methodologies used within the Church are eminently traditional.

Keywords: Christian Congregation of Brazil. Music Education. Evangelical Church.


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SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ...................................................................................................................... 10

1. COTIDIANO E ENSINO DE MÚSICA: CONTRIBUIÇÕES TEÓRICO-


METODOLÓGICAS PARA A ANÁLISE DOS DADOS .................................................. 15
1.1. O enfoque sociológico e etnomusicológico ................................................................ 15
1.2. Metodologia da Pesquisa ............................................................................................ 19

2. VALORES E ENSINO DE MÚSICA DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ EM


JUAZEIRO DO NORTE ....................................................................................................... 23
2.1. História do Ensino de Música na Congregação Cristã no Brasil ........................... 24
2.2. Crenças sobre educação musical ............................................................................... 26
2.3. Valores socioculturais e gênero ................................................................................. 28

3. MÉTODOS E METODOLOGIAS NO ENSINO DE MÚSICA DA


CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL EM JUAZEIRO DO NORTE ....................... 33
3.1. Local de ensino e recursos didáticos ......................................................................... 33
3.2. Estrutura, hierarquia, cargos e papéis ..................................................................... 35
3.3. Formação do professor ............................................................................................... 37
3.4. Currículo e Métodos de ensino .................................................................................. 38

CONSIDERAÇÕES FINAIS ................................................................................................. 42

REFERÊNCIAS ..................................................................................................................... 45

APÊNDICE A – PERGUNTAS DA ENTREVISTA SEMI-ESTRUTURADA ................ 48

APÊNDICE B – FICHA DE CONTROLE DO ALUNO .................................................... 49

APÊNDICE C – TERMO DE RESPONSABILIDADE PARA RECEBER O


INTRUMENTO FORNECIDO PELA IGREJA ................................................................. 50

APÊNDICE D – ORIENTAÇÃO PARA OS MÚSICOS .................................................... 51

APÊNDICE E – TABELA DE TESTES E PERMISSÕES ................................................ 52


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EPÍGRAFE

Depois de ter rodado o quarteirão por três vezes, procurando o endereço do local da
primeira observação, acho a igreja, em que, de frente, se encontra parado um carro popular,
fechando mais da metade da rua estreita. O bairro é pobre e a igreja é pequena. Chego duas horas da
tarde e a escolinha de música inicia com 15 minutos de atraso. O encarregado me recebe muito bem,
afirma estar disposto a dar auxílio no que for necessário, sai por uns instantes e dá início aos
trabalhos. “Aqui tudo que fazemos começa com oração!”. Sinto-me transportado para outra
realidade. O encarregado usa uma palavra de ordem, todos respondem, a oração é iniciada, todos
participam da oração, confirmando, respondendo e reforçando as palavras do orador.
Depois da oração, surgem instrumentos aparentemente incompatíveis com o ambiente e com
as expectativas do pesquisador. Um bombardino, dois sax alto, um sax tenor, três violinos, clarinetes,
um trompete e uma tuba; instrutores “tirando lição”, alunos “tirando som”, métodos de instrumentos,
métodos de solfejo e hinários destinados a certos instrumentos de transposição.
A partir das 4 horas da tarde, inicia-se o ensaio que se destina ao aprendizado das novas
músicas do hinário. As irmãs chegam. Todas elas se sentam do lado esquerdo da nave e, a maioria
delas, é organista. Quando o ensaio começa, elas se revezam tocando os hinos, vez por outra
desacompanhadas da orquestra, mostrando habilidade com os olhos, ouvidos, mãos e pés. O
encarregado tem um metrônomo. Salienta a distância de andamentos entre o que é requerido e o que
está sendo executado. Sempre com otimismo, afirma arrematando: “Mas vamos chegar lá!”.
10

INTRODUÇÃO

O cenário religioso brasileiro possui uma rica diversidade de crenças, cultos e


representações simbólicas. O tronco religioso brasileiro, enriquecido pelas raízes ameríndias,
africanas e europeias, transporta vida para galhos, folhas, flores e frutos das religiões
institucionalizadas por séculos de desenvolvimento aos núcleos informais de aglomeração
religiosa.
Neste rico cenário de manifestações religiosas destacam-se as igrejas evangélicas.
Com crescimento acentuado desde o fim do século XX, contavam com 7,8 milhões em 1980 e
em 2010 com 26 milhões (BOHN, 2004, p.289). As igrejas evangélicas têm sido estudadas
por diversos pesquisadores na área de ciências sociais, enfatizando diversos aspectos destas
igrejas, desde a recente contextualização de seu discurso até a presença de ensino informal de
música nos seus grupos de louvor e adoração.
O presente trabalho delineia a investigação do ensino de música no cotidiano da
igreja evangélica pentecostal Congregação Cristã no Brasil, em seus núcleos encontrados na
cidade de Juazeiro do Norte, estado do Ceará. Sendo a música parte essencial do culto
evangélico desta denominação religiosa, a igreja dispõe de aulas de música ministradas por
pessoas da própria igreja e possui um sistema de inserção dos alunos na programação musical
da mesma. O ensino de música encontrado dentro do templo desta igreja é o objeto de estudo
desta pesquisa, incluindo em especial seus valores sociais, religiosos e culturais, bem como as
suas metodologias de ensino de música à luz das contribuições dadas por autores como Berger
e Luckmann, Geertz, Merriam e Swanwick.
A expressão “igreja evangélica” diz respeito aos grupos religiosos historicamente
instituídos em decorrência das ideias e movimentos sociais do protestantismo europeu. Kerr
define o termo evangélico “como o coletivo que designa os componentes das denominações
que surgiram da Reforma Protestante do século XVI e engloba luteranos, presbiterianos,
presbiterianos independentes, batistas, metodistas, membros da Assembléia de Deus, da
Congregação Cristã, pentecostais” (KERR, 2003, p. 1).
As igrejas evangélicas compartilham de uma preocupação com a educação
musical de modo que a música se torne componente da formação intelectual do indivíduo.
Schalk (2006) destaca a visão do reformador alemão Martinho Lutero a esse respeito,
enfatizando que este considerava a música como elemento necessário a uma boa educação.
Essa compreensão, no entanto, é focalizada no papel que ela pode desempenhar na formação
11

dos jovens ao participarem do culto. A percepção de Lutero sobre essas questões o levou a
defender e promover a inclusão da música no currículo escolar sempre que lhe foi possível.
Esta preocupação em ensinar música aos fiéis acompanhou as Igrejas Evangélicas
implantadas no Brasil pelo esforço missionário empregado no século XIX, especialmente por
instituições religiosas norte-americanas. A respeito disso, destaca Braga (1960) que a senhora
Sarah Kalley, junto com seu marido, doutor Robert Kalley, fundou a primeira Igreja
Evangélica com cultos realizados em língua portuguesa no Brasil. Sarah Kalley dava aulas de
música para melhorar o canto congregacional desde 16 de setembro de 1863 e possuía uma
lista de frequência em que anotava os atrasados e os faltosos por motivo de doença (BRAGA,
1960, p.113). Robert e Sarah Kalley foram responsáveis pela publicação do primeiro hinário
evangélico no Brasil, uma coletânea de canções religiosas usada na liturgia e no ensino de
música nas Igrejas Evangélicas. O hinário Salmos e Hinos foi publicado em 1861, utilizado
pela primeira vez no dia 17 de novembro (BRAGA, 1960, p.111).
Os evangélicos chegaram a Juazeiro do Norte, extremo sul do Estado do Ceará,
quando a mesma só possuía 50 mil habitantes, intensamente influenciada pelo seu líder
religioso e político Padre Cícero Romão Batista. Sobre a chegada do primeiro líder evangélico
na cidade, Lima escreve que Edward Guy McLain “chegou solteiro no dia 11 de setembro de
1936, menos de nove meses depois de haver desembarcado no Rio de Janeiro” (2011, p. 20).
Depois dele, outros missionários se mudaram para região, com o propósito de irradiar a fé
evangélica pelo interior do país, já que a região do Cariri cearense, onde Juazeiro está
localizada, tem sido reconhecida como geograficamente estratégica.
Como Igreja Pentecostal, a Congregação Cristã no Brasil é “um segmento do
cristianismo que adota uma interpretação e uma prática marcadas pelo que consideram ser
experiência do Espírito Santo, iniciada pelo batismo no Espírito e confirmada pelos dons das
línguas” (PASSOS, 2005, p. 14). Tomando o adjetivo “pentecostal” da celebração judaico-
cristã do Pentecostes, os pentecostais se caracterizam pela “centralidade na experiência
emocional, o culto de louvor efervescente, a tendência à leitura literal dos textos bíblicos e a
prática do exorcismo” (PASSOS, 2005, p. 14).
O início do pentecostalismo tem sido demarcado no ano de 1906 na “Azuza
Street, Los Angeles” numa comunidade de negros “dirigida por William J. Seymour, um
negro ecumênico que animava uma espiritualidade entusiasta acima de raças e classes”
(PASSOS, 2005, p. 50). Os pentecostais “distinguem-se do protestantismo, grosso modo, por
pregar, baseado em Atos 2, a contemporaneidade dos dons do Espírito Santo” (MARIANO,
12

1999, p. 10). O Pentecostalismo chega ao Brasil em três fases. A primeira fase, que vai da
fundação até a década de 1950, é marcada pelo surgimento das Igrejas Congregação Cristã no
Brasil e Assembléia de Deus (PASSOS, 2005, p. 54).
A Igreja Congregação Cristã no Brasil foi fundada no bairro do Brás, na cidade de
São Paulo, incluindo brasileiros e imigrantes italianos em 1910 (SOUZA, p. 122). Segundo
Mariano, é possível classificar a Congregação Cristã no Brasil como Igreja do
Pentecostalismo “clássico”, por conta “do pioneirismo, a transformação da comunidade
sectária em uma instituição com reconhecimento social, liderança estabelecida e
regulamentação de comportamento litúrgico e social dos fiéis” (MARIANO, 1999, p. 24). A
Igreja possui uma liderança constituída de anciãos (líderes regionais) e cooperadores (líderes
locais), tendo como sede administrativa mundial a primeira de suas igrejas em São Paulo. É
conhecida por seus costumes, como uso do véu pelas mulheres nos cultos, a disposição de
assentos exclusivos para homens e mulheres nos templos, bem como o uso de um vestuário
mais tradicional.
Esta Igreja dá importância à execução musical nos seus cultos. Uma igreja da
Congregação Cristã em Juazeiro do Norte, cidade do interior do estado do Ceará, pode possuir
uma orquestra composta por um órgão e por instrumentos de cordas e de sopro. É possível ter,
numa Congregação Cristã, acompanhando a irmandade que canta os hinos, instrumentos
como flauta transversa, clarinete, sax, trompete, trombone, tuba e violino, além do órgão.
Mesmo numa localidade distante de grandes centros e mesmo num bairro pobre, é comum
achar um número razoável de músicos acompanhando as músicas do culto. Para o educador
musical, esta informação se torna mais impressionante quando se considera que a maior parte
desses músicos aprendeu a tocar na própria Igreja, por uma cooperação voluntária de outros
músicos que também aprenderam a tocar no mesmo contexto.
A Congregação Cristã no Brasil possui um sistema relativamente unificado de
formação de músicos e de professores de música em Juazeiro do Norte e adjacências. Esse
sistema inclui uma série de cargos dispostos de forma hierárquica, que inclui os líderes
administrativos, responsáveis pelos assuntos eclesiásticos de modo geral. Além desses líderes,
a Igreja tem os encarregados regionais, responsáveis pelas orquestras das igrejas da região;
tem os encarregados locais, responsáveis pela orquestra de sua igreja; os examinadores,
responsáveis por avaliar os músicos em testes de inclusão nas orquestras, a chamada
oficialização; os instrutores, responsáveis pelo ensino nas igrejas; e os alunos de música. Esse
sistema inclui divisão de tarefas e inclui um processo de avaliação e admissão para se tocar
13

nos cultos. Esse sistema inclui divisão de tarefas e um processo de avaliação e admissão para
se tocar nos cultos, possuindo também uma metodologia de ensino.
As orquestras da Congregação Cristã no Brasil são compostas por homens e
mulheres com divisão de tarefas por gênero. As mulheres tocam órgão e os homens tocam os
outros instrumentos. As organistas têm papel fundamental na execução dos hinos e nos
momentos de louvor, tocando no início e durante os cultos, providenciando o padrão para
afinação dos demais instrumentos musicais. Executam, com a destreza requerida, em dois
teclados e pedais os cânticos congregacionais a quatro vozes, provendo harmonia e uma
atmosfera religiosa para o culto.
É a partir de tal cenário que emergem alguns questionamentos: Que ensino de
música está presente Congregação Cristã no Brasil? Como os valores sociais, religiosos e
culturais dialogam com o ensino de música presente em seus templos? Existem métodos de
ensino tradicionais e/ou inovadores nas igrejas da Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro
do Norte?
Nessa perspectiva, é correto supor que o ensino de música destas igrejas esteja
permeado de “sotaques”, “mundos” e “linguagens” musicais que merecem ser observados à
luz de seus contextos. Esta diversidade merece ser investigada, uma vez que uma educação
musical que pretenda alcançar alunos que vivem num mundo plural deve aprender a dialogar
com contextos diversos e falar a linguagem musical construída naquele meio social. Esse
entendimento pode ser melhor esclarecido como “uma educação que abranja os diferentes
„universos‟ de uma cultura e os distintos discursos e „sotaques musicais‟ presentes em cada
realidade” (QUEIROZ, 2004, p. 99).
Ao se considerar que o ensino formal de música em nosso país ganhou novo
alento desde a promulgação da lei 11.769/08, que torna a Música conteúdo obrigatório, porém
não exclusivo da disciplina de Artes (SANTOS, 2012, p.13), compreende-se a relevância de
um estudo como esse. Desta forma, denota-se a importância de uma pesquisa sobre um ensino
de música em contexto sociocultural específico, como na Congregação Cristã no Brasil em
Juazeiro do Norte, para fomentar a criação de novas ou reformuladas práticas pedagógicas
que visem tornar o ensino de música formal mais significativo, mais tolerante, plural e eficaz.
Esses “universos culturais”, onde ocorrem ensino e aprendizagem de música, fornecem
material para a investigação de diversos estudiosos que atuam em diferentes contextos em
suas pesquisas (QUEIROZ, 2010).
14

É notório, portanto, que os processos de ensino informais, que se realizam no


cotidiano e fora da escola, na socialização primária (BERGER; LUCKMANN, 1983), são
muito importantes para os procedimentos formais de ensino institucionalizados. A educação
escolar pode ter nova perspectiva se a educação não-escolar for desvendada em pesquisas que
reflitam sobre o ensino de música que ocorre fora dos muros das instituições de ensino
estabelecidas (BENEDETTI; KEER, 2008, p. 37).
Diante do que foi exposto, estabelecemos como objetivo dessa pesquisa,
investigar o ensino de música na Congregação Cristã do Brasil em Juazeiro do Norte,
buscando compreender o contexto em que esse processo ocorre e a aplicação das
metodologias de ensino de música ali empregadas. Desta forma, o estudo se propõe a verificar
a existência de diálogos entre valores religiosos, sociais e culturais e o ensino de música da
Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte. Além disso, este estudo busca identificar
a presença de metodologias tradicionais e/ou inovadoras de ensino de música empregados na
igreja.
A presente monografia, diante deste tema, o ensino de música na Congregação
Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte, é a forma escrita de um estudo de caso realizado
durante o curso de licenciatura em música do autor, nos anos de 2010 a 2013, na Universidade
Federal do Ceará, campus Cariri, ora Universidade Federal do Cariri. Neste opúsculo a
princípio se apresenta a fundamentação teórica e a metodologia utilizada na pesquisa. Depois
desse capítulo inicial, os valores sociais e culturais construídos neste universo religioso são
observados em diálogo com questões próprias do ensino de música. No terceiro capítulo, as
metodologias de ensino empregadas na Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte
tornam-se alvo de observação e interpretação. Nestes dois capítulos finais, prevalecem as
falas dos protagonistas do ensino de música da Igreja, entre os quais encarregados,
examinadoras, instrutores e alunos, em constante interlocução com autores da educação
musical. Por fim, considerações finais são feitas na tentativa de fazer um apanhado geral das
contribuições deste ensino, alvo de reflexões e pesquisas.
15

1. COTIDIANO E ENSINO DE MÚSICA: CONTRIBUIÇÕES


TEÓRICO-METODOLÓGICAS PARA A ANÁLISE DOS DADOS

1.1. O enfoque sociológico e etnomusicológico

No estudo do ensino de música no cotidiano da Congregação Cristã no Brasil é


sensato valer-se de contribuições teóricas desenvolvidas em diversas áreas do conhecimento,
que corroborem entre si, de modo a formar um sistema, entretecido e coeso para entendimento
do objeto em questão. Reck chega a propor uma fundamentação teórica que utilize três
ciências: Sociologia, Antropologia e Etnomusicologia (RECK, 2011, p. 13).
No desenvolvimento da pesquisa o conceito de cotidiano mostrou-se útil para o
entendimento das categorias analisadas. Para tanto, utilizou-se a contribuição de Berger e
Luckmann em seu livro A construção social da realidade (1983). Para estes autores, a vida
cotidiana “é um mundo que se origina no pensamento comum e na ação de homens comuns,
sendo afirmado como real por eles” (BERGER; LUCKMANN, 1983, p. 36). Ainda que a vida
social seja caracterizada pela multiplicidade de realidades, ela “se apresenta como sendo a
realidade por excelência”, é vivida no “aqui e agora”, é “meu mundo por excelência”, é
compartilhada de modo intersubjetivo, sendo considerada real pelos indivíduos envolvidos na
teia de relacionamentos sociais (BERGER; LUCKMANN, 1983, p. 38). Para estes autores, a
realidade da vida cotidiana “não requer maior verificação, que se estenda além de sua simples
presença” (1983, p. 40). A realidade social da vida cotidiana é distinta da realidade vivida na
contemplação teórica ou religiosa, para que se deve empreender uma “extrema transição”
(BERGER; LUCKMANN, 1983, p. 41). As atividades realizadas na vida cotidiana foram
rotinizadas, tornaram-se não problemáticas e foram absorvidas fazendo-se corriqueiras por
processos de apreensão. “Outras realidades aparecem como campos finitos de significação,
enclaves dentro da realidade dominante marcada por significados e modos de experiência
delimitados”, a exemplo, a experiência estética e experiência religiosa (BERGER;
LUCKMANN, 1983, p. 42-43).
Ligados ao conceito de cotidiano e ao processo de tornar o indivíduo um membro
da sociedade estão os conceitos de socialização primária e socialização secundária. De acordo
com Berger e Luckmann, “o indivíduo não nasce membro da sociedade”, mas com “a
predisposição para a sociabilidade” (BERGER; LUCKMANN, p. 173). O indivíduo passa por
16

um processo de aprendizagem inicial que o faz compreender o outro e apreender a realidade


social de modo significativo. Este processo, chamado pelos autores socialização primária,
tem as seguintes características: é experimentado na infância; é mais importante; funciona
como filtro da realidade; é mais do que meramente cognoscitivo, é afetivo e emocional; é
dialético e intersubjetivo; gera uma identidade socialmente construída; cria “o outro
generalizador”; não tem problemas de identificação, por ser compulsório; interioriza valores
peculiares de uma sociedade; interioriza “os rudimentos do aparelho legitimizador”, isto é, os
porquês para as regras sociais (BERGER; LUCKMANN, 1983, p. 174-181). O processo de
socialização secundária, que acontece depois da primária, seria “a interiorização de
„submundos institucionais‟ ou baseados em instituições” (BERGER; LUCKMANN, 1983,
p.184). Este processo é baseado na “complexidade da divisão do trabalho” e na “concomitante
distribuição social do conhecimento” (BERGER; LUCKMANN, 1983, p.185).
Benedetti e Keer demonstram que este conceito possui relevância para a educação
musical. Fazendo menção às contribuições de Souza (2008), Benedetti e Keer afirmam que
“nenhum processo de educação formal, institucionalizado, enquanto processo de socialização
secundária, pode negligenciar o valor fundamental da aprendizagem cotidiana dos alunos”.
Além disso, existe “a necessidade de se tomar o cotidiano, com suas aprendizagens e práticas
musicais espontâneas, como perspectiva para a educação musical escolar” (BENEDETTI;
KEER, 2008, p. 37). De igual modo, Paul e Ballantine afirmam:

Educação pode ser tanto formal como informal. Crianças têm aulas de
música formais e aprendem a respeito da música na escola. Entretanto, tão
importantes quanto às aulas de música são as experiências informais que elas
têm ao ouvir os vários tipos de música, relacionados à subcultura que elas
representam, que incluem vestimentas e comportamentos, as mensagens
contidas nas letras, sendo estas igualmente influentes. (...) Isso ilustra o
ponto que a aquelas experiências musicais estão relacionadas estreitamente
não só a educação, mas também a afiliação a um grupo, família e processo
dessocialização, aprendizado religioso e status socioeconômico ou político
(PAUL; BALLANTINE, 2002, p. 566 – tradução minha).
O conceito de ensino de música no cotidiano aqui utilizado pode ser relacionado
às possibilidades de educação alistadas por Libâneo (2008). Para este autor, a educação não
está atrelada exclusivamente às instituições tradicionais de ensino, ainda que as mesmas
tenham um papel importante no desenvolvimento humano. Libâneo afirma que há “ações
pedagógicas não apenas na família, na escola, mas também nos meios de comunicação, nos
movimentos sociais e outros grupos humanos organizados, em instituições não escolares”
(2008, p. 3). A educação se impõe como “prática social que atua na configuração da
17

existência humana individual e grupal, para realizar nos sujeitos humanos as características de
„ser humano‟” (LIBÂNEO, 2008, p. 22).
Pensando na educação assim, o ensino das artes, em especial, o da música, é
imprescindível ao lidar com a sensibilidade estética, sendo os espaços tradicionais não
detentores da exclusividade deste ensino. Como afirma Penna, “ser sensível à musica não é
uma questão mística ou de empatia, não se refere a uma sensibilidade dada, nem a razões de
vontade individual ou de dom inato. Trata-se, na verdade, de uma sensibilidade adquirida num
processo” (PENNA, 2008, p. 29). Penna também destaca que esse processo de aquisição da
sensibilidade “é socialmente apreendido – pela vivência, pelo contato cotidiano, pela
familiarização – embora também possa ser aprendido na escola” (PENNA, 2008, p. 29).
Como mencionado acima, estudos na área de Educação Musical apontam para
importância do ensino de música em contextos não-escolares, no que seria considerado ensino
informal. Mesmo que haja muita organização e até uma tentativa de reproduzir, em certa
medida, a realidade escolar, é possível afirmar que o ensino de música realizado nos templos
das Igrejas Evangélicas, em especial na Congregação Cristã no Brasil, seja um ensino contido
na realidade da vida diária. Pesquisas no ensino de música nas igrejas evangélicas ou em
outras igrejas tendem, como esta pesquisa, a localizar este ensino dentro da educação
vivenciada no cotidiano (FREITAS; 2008; RECK, 2011; LORENZETTI, 2012).
O conceito de cultura aqui adotado é o modelo proposto por Clifford Geertz. Para
este autor, “o homem é um animal amarrado a teias de significado que ele mesmo teceu”,
sendo que a cultura é este entremeado de teias. Geertz defende, portanto, que a Antropologia é
uma ciência interpretativa e não uma ciência “experimental em busca de leis” (GEERTZ,
2008, p. 4). Para Geertz, “a cultura consiste em estruturas de significado socialmente
estabelecidas, nos termos das quais pessoas fazem certas coisas como sinais de conspiração e
se aliam ou percebem insultos e respondem a eles” (GEERTZ, 2008, p. 9). Deste modo a
descrição etnográfica caracteriza-se por ser “interpretativa; o que ela interpreta é o fluxo do
discurso social e a interpretação envolvida consiste em salvar o „dito‟ num tal discurso da sua
possibilidade de extinguir-se e fixá-lo em formas pesquisáveis” (GEERTZ, 2008, p. 15).
Da Antropologia é possível chegar à Etnomusicologia, uma vez que as duas
disciplinas foram desenvolvidas praticamente ao mesmo tempo (MERRIAM, 1964, p. 4). A
Etnomusicologia auxilia a entender a Educação Musical em seu contexto cultural,
considerando a música produzida em contextos particulares e diversos. Queiroz, citando
18

Bresler, destaca o entrelace da Educação Musical com a Etnomusicologia e a colaboração


mútua destas áreas do conhecimento quando escreve:

O trabalho de campo nas duas áreas se assemelha em muitos aspectos.


Todavia, a autora [Bresler] destaca que “a principal diferença é que a
etnografia na educação musical é centrada em torno de questões
educacionais, questões diretamente relacionadas com o ensino e a
aprendizagem da música”. Já na etnomusicologia o trabalho etnográfico
pode até ser focado em questões relacionadas à transmissão musical, mas
também pode ter como foco diversas outras facetas da música: estrutura
sonora, processos composicionais, execução, performance em geral, etc.
(QUEIROZ, 2010, p.118).
Como visto na citação de Queiroz acima, a diferença entre Educação Musical e
Etnomusicologia, ainda que ambas se proponham a considerar os contextos culturais nas suas
análises, é o foco. A Educação Musical está mais interessada no ensino da música e a
Etnomusicologia está mais interessada na música que ali é ensinada. Estas áreas, portanto, não
se contradizem, ambas se alimentam, uma a outra, com informações que podem incrementar o
entendimento do ensino e da cultura musical. Este trabalho está mais interessado no ensino da
música do que na música ensinada.
Na área da Educação Musical, o teórico que guia basicamente este trabalho é
Swanwick. Para este autor, ensino de música deve ser determinado por características
intrínsecas da música e não, a princípio, por características fora da música. De acordo com
Swanwick, a música transmite mensagens de modo significativo de forma acurada, ainda que
misteriosamente, uma vez que a música é mais do que sons organizados, mais do que um
“prazer inocente” e mais do que um simples jogo divertido (SWANWICK, 2003a, p. 2-47).
Nesse sentido, ele considera que a música deve ser ensinada, porque é uma forma
simbólica do discurso, constituindo-se num meio de articular as ideias. Swanwick percebe a
importância que a linguagem possui de produzir metáforas e, sendo a música a arte mais
abstrata, a mesma tem condições naturais de transformar sons em melodias e transformar
melodias em experiência vivida, fazendo uma dissolução da dicotomia entre o afetivo e o
cognitivo. No entendimento desse pedagogo musical, na música, materiais sonoros se tornam
formas expressivas, as formas expressivas adquirem vida própria e esta vida própria renova os
seus próprios sotaques (SWANWICK, 2003, p. 36). A respeito da amplitude do ensino de
música escreve Swanwick (2003):

Atualmente há um aumento do “alcance” educacional da música, projetado e


iniciado por agências de artes, orquestras, casas de ópera, grupos
19

comunitários, centros musicais e muitas outras instituições (SWANWICK,


2003, p. 98).
Para Swanwick, a música deve ser entendida num contexto cultural. Os sotaques
musicais devem ser levados em consideração, uma vez que os mesmos dão ao observador a
dimensão das diferenças encontradas em outros sotaques e reforça o entendimento do sotaque
que o observador carrega em sua própria música de modo inevitável. Para o autor, “é óbvio
que toda música nasce em um contexto social e que ela acontece ao longo e intercalando-se
com outras atividades culturais” (SWANWICK, 2003, p. 38). Segundo Swanwick (2003, p.
37), “todos os músicos têm um „sotaque‟” e este sotaque diz respeito a particularidades locais,
culturais e educacionais. Torna-se, portanto, importante estudar o ensino de música nos
diversos espaços sociais, dentre tantos, os ocupados pela Congregação Cristã no Brasil, como
espaços educacionais em constante aprimoramento.
O entendimento da música como linguagem simbólica e da música como
atividade cultural conduz Swanwick a três princípios da educação musical: considerar a
música como discurso, considerar o discurso musical dos alunos e promoção da fluência no
ensino de música.
Utilizando-se destas ideias de Swanwick quanto à cultura e educação musical, e
usando suas ideias relativas à prática pedagógica em ensino de música, considerando o foco
da pesquisa, é possível afirmar que a Igreja Evangélica Congregação Cristã no Brasil, em suas
manifestações musicais na cidade de Juazeiro do Norte, constitui um mundo musical local,
evidenciado num sotaque musical particular. Sendo assim, seus valores, sua música e o ensino
de música praticado em seus templos possuirão características próprias que devem ser
entendidas em seu entorno. Esse entendimento se dará pelo conhecimento desses valores na
análise das falas e na observação das práticas pedagógicas e musicais dos sujeitos.

1.2. Metodologia da Pesquisa

A metodologia adotada nesta pesquisa é de natureza qualitativa, já que envolverá


uma reflexão dos dados que foram colhidos, procurando enxergar o objeto de estudo em seus
aspectos múltiplos, por via da subjetividade característica das ciências humanas. Como
relatado por Kleber:

O processo interpretativo, nessa abordagem, conduz o pesquisador a uma


relação íntima com o tema e com seus informantes ou atores da pesquisa
ensejando um envolvimento com o mundo social desses. Isso significa
entender o pesquisador historicamente situado, o que confere a ele uma
20

condição apropriada para compreender, com mais profundidade, certos


fenômenos humanos. Significa, ainda, que sua história de vida e sua
perspectiva reflexiva condicionam o que pergunta, como pergunta e como
interpreta os fatos. Assim, o pesquisador ocupa posição e observa de um
ângulo particular. Os imbricamentos não são apenas de caráter social, ou
seja, as relações com os outros, mas também subjetivo na capacidade de
compreender a experiência do outro (KLEBER, 2006, p.48).
Não é correto afirmar que o pesquisador, seja nos atos múltiplos de coleta de
dados nos locais da pesquisa, seja na interpretação desses dados, transitava num espaço
neutro, abrigado por uma pretensa imparcialidade e objetividade. Sua História de vida,
entretecida do meio evangélico em sua formação musical, pessoal e docente, esteve presente
em todos os momentos da pesquisa e ainda está presente enquanto se encerra uma primeira
fase do entendimento do objeto pesquisado. Desta forma, os imbricamentos são de caráter
subjetivo, como afirma Kleber (2006, p. 48), ainda que estes se imponham presentes no
entendimento do outro. Essa História de vida, entretanto, não parece ter nublado seu olhar
crítico nem o fez mergulhar num universo inverossímil, mas o conduziu aos questionamentos
que não se calam, mesmo quando um evangélico se submete a estrutura social de que faz
parte por tradição ou por opção.
Apesar do notório caráter interpretativo, a pesquisa também se mostrou descritiva,
já que envolve a “descrição do objeto por meio da observação e do levantamento de dados ou
ainda pela pesquisa bibliográfica” (BARROS, 1990, p. 34).
Deste modo, a presente pesquisa é um estudo de caso. De acordo com Gil (2009,
p. 7), o estudo de caso é um delineamento de pesquisa. Isto quer dizer que o estudo de caso
não pode ser entendido apenas como método, técnica ou tática de coletar dados. Este
delineamento vê o objeto de pesquisa como unitário, estudando o mesmo como um todo,
possuindo assim uma natureza holística. O estudo de caso investiga um fenômeno
contemporâneo, não separando o fenômeno do seu contexto e é realizado em profundidade.
Ele requer múltiplos procedimentos de coleta de dados, como meio de garantir a qualidade
das informações obtidas. Falando sobre a flexibilidade metodológica do estudo de caso, Gil
comenta:
Como os estudos de caso enfatizam mais a exploração e a descrição do que a
explicação e a predição, os pesquisadores sentem-se muito mais livres para
definir os procedimentos a serem adotados na coleta de dados. Embora
técnicas mais adotadas sejam a observação, a entrevista e a análise
documental, os estudos de caso podem valer-se do uso concomitante de
múltiplas técnicas, cuja aplicação pode dar-se de forma diferenciada ao
longo do desenvolvimento da pesquisa. O pesquisador pode, por exemplo,
alterar o roteiro da entrevista à medida que for avançando na coletada de
21

dados (GIL, 2009, p. 16).

Sendo assim, o estudo de caso é o delineamento de pesquisa que favoreceu um


melhor entendimento do ensino de música da Congregação Cristã no Brasil, em Juazeiro do
Norte. Considerando a relação desse ensino com o contexto, observando a necessidade de se
valer de vários meios de coleta de dados, e, por fim, compreendendo a possível aplicação
diferenciada de técnicas no decorrer da pesquisa, o estudo de caso é a opção metodológica
mais adequada.
A coleta de dados se deu através da pesquisa bibliográfica, buscando
fundamentação teórica para tratamento do assunto e pesquisa documental, recolhendo avisos e
partituras, visando entender a dinâmica do ensino de música nas igrejas pesquisadas. Um
autorização foi dada pelos líderes da instituição estudada para realizar esta pesquisa.
Além disso, foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com protagonistas do
ensino de música da Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte. Esses protagonistas
foram os professores de música dessas igrejas, alunos e instrumentistas que estão exercendo
alguma atividade musical dentro ou fora da igreja. Alguns deles são encarregados das
orquestras ou líderes eclesiásticos, responsáveis pelo ensino de música. Todas as entrevistas
foram gravadas em áudio, a fim de que o conteúdo das falas fosse interpretado. Depois desse
registro, todas as entrevistas foram transcritas pelo pesquisador, procurando não realizar
qualquer tipo de alteração ao conteúdo das falas dos entrevistados, adequando, contudo, as
falas às normas cultas da língua. Para algumas expressões, foi necessário descrever, por meio
de notas explicativas inseridas no texto da fala, alguma observação de gestos ou de expressões
julgadas importantes para o entendimento do sentido da fala.
Foram gravadas em vídeo aulas ministradas pelos instrutores no ato do ensino de
música. No entanto, houve certo grau de dificuldade na obtenção de autorização, uma vez que
a Congregação Cristã é conhecida por sua discrição e seu cuidado de não expor sua prática
religiosa em vídeo. Além do registro em vídeo, foram feitas anotações durante as aulas,
deixando sempre suas impressões do processo ali apresentado.
O método para análise dos dados foi o etnográfico, segundo os pressupostos de
Geertz, de que a cultura é uma teia de significados e que a etnografia deve ser eminentemente
interpretativa (GEERTZ, 2008, p. 4). Esse método é utilizado em “pesquisas que tenham
como objeto a cultura de um grupo, de uma organização ou de uma comunidade” (GIL, 2009,
p. 95), sendo assim um método apropriado para investigação do processo de ensino e
aprendizagem de música na igreja evangélica Congregação Cristã no Brasil. Este modo de
22

analisar os dados é também apropriado para a pesquisa, porque a análise etnográfica envolve
um “estudo das pessoas em seu próprio ambiente mediante a utilização de procedimentos
como entrevistas em profundidade” (GIL, 2009, p. 95).
Na redação da monografia, procurou-se destacar os aspectos centrais do ensino de
música a partir das falas de seus protagonistas, das gravações das aulas em vídeo e da
discussão teórica publicada sobre o mundo musical em questão. Foram salientadas as
estruturas do ensino e aprendizagem de música dentro do contexto social, cultural e religioso
estudado. Também foram inseridos os dados provenientes da pesquisa bibliográfica e
documental na tentativa de tratar do assunto de forma verossímil e compromissada.
23

2. VALORES E ENSINO DE MÚSICA DA CONGREGAÇÃO CRISTÃ


EM JUAZEIRO DO NORTE
Neste capítulo, são discutidos os valores sociais, culturais e religiosos que
dialogam com o ensino de música praticado dentro da Congregação Cristã no Brasil em
Juazeiro do Norte. Aqui, principalmente os protagonistas desse ensino ganham voz,
expressando a visão de seu entorno numa perspectiva de dentro para fora. Mesmo que se
reconheça que a disposição dos dados, sua seleção e sua categorização sejam fruto de uma
interpretação, houve a intenção de fazer com que os sujeitos falassem por si, sem serem
dissecados de modo presunçoso por uma mente científica e analítica que estivesse acima
deles. Preferiu-se a postura de ouvir e aprender, permitindo que alunos, instrutores,
encarregados, cooperadores e anciãos se expressassem livremente sobre o ensino de música
por eles vivenciado. Na citação das entrevistas, para salvaguardar a identidade dos sujeitos da
pesquisa, foi preferido citá-los apenas como entrevistados, numerando-os pela ordem em que
as entrevistas aconteceram no decorrer do tempo da pesquisa.
Os itens no presente capítulo incluem uma História do ensino de música na
Congregação Cristã no Brasil, especialmente o que se crê ter sido o início das escolinhas de
música dentro dessa denominação evangélica. O capítulo também inclui um relato de crenças
ligadas à educação musical, especialmente a discussão que toca no assunto do dom para
música. Inclui-se ainda uma menção aos valores religiosos e culturais pertinentes a este
ensino de música, bem como à divisão de ensino de instrumentos musicais por gênero que
ocorre dentro da Igreja.
Ficou muito claro na pesquisa ser impossível desvencilhar o ensino de música que
ocorre na Congregação Cristã no Brasil dos valores compartilhados por esse grupo social. O
propósito central do ensino de música na Igreja, declarado por todos os entrevistados, é
formar músicos para orquestra, constituída com o intuito de ajudar a irmandade a cantar os
hinos. Nas palavras dos entrevistados, o propósito final do ensino de música é “louvar a
Deus”. Esta motivação é a mola propulsora de todo o ensino. Como o “louvar a Deus” seria a
execução dos hinos contidos no hinário oficial da Igreja no momento do culto enquanto toda
irmandade canta, então todo o ensino é formulado para capacitar os músicos a tocarem aquele
repertório. Desse modo, partiu-se dos valores sociais, culturais e religiosos, procurando
entendê-los, para então descrever e interpretar os métodos e metodologias de ensino
propriamente ditos, o que será feito apenas no próximo capítulo.
24

2.1. História do Ensino de Música na Congregação Cristã no Brasil

De acordo com os dados colhidos nas entrevistas, o ensino de música,


especialmente montado para suprir a necessidade de músicos para as orquestras da Igreja, foi
uma construção histórica que se iniciou na fundação da Congregação Cristã no Brasil. Ao que
parece, foi sentida pela liderança uma dificuldade da Igreja cantar de forma apropriada os
hinos. Esta necessidade levou a liderança a promover um ensino de música realizado em
sistema de cooperação voluntária. Este ensino se destinou especialmente aos jovens, mas foi
estendido a todas as faixas etárias. Uma entrevistada destacou:

De acordo com o que eu sei, quando começou a surgir a Congregação, os


hinos eram cantados em italiano, então tinha essa dificuldade da irmandade
cantar. Então começou a se admitir músicos pra auxiliar a irmandade. Aí
partiu: “Quem tem interesse em aprender? Aprender pra louvar a Deus?”. Aí
começou o ensino passado de um para o outro (ENTREVISTADA 1).
Outro entrevistado fez um relato semelhante:

Isso é muito antigo. Essa aí já vem... A parte musical veio assim de uma
necessidade. A Congregação eu acho que ela foi criada, ela foi fundada, em
1910. Pelo Luiz Franciscon. Ele foi fazendo aquele... Foi ministrando o
culto, tal. E aí, quando chegou, eu não lembro o ano exatamente, mas parece
que foi em 1950 ou foi 36, mais ou menos aí, eu posso verificar pra você
depois... Eles perceberam que a irmandade, no cântico, tinha dificuldade de
acompanhamento musical. E aí, segundo esse Luiz Franciscon, teve a
revelação de convidar os jovens para ver o que eles falavam, se eles tinham
prazer em aprender a música. E foi feita uma reunião, onde juntou vários
jovens, adultos ali. Mostrou aquela necessidade de criar-se uma orquestra na
Congregação pra auxiliar a irmandade no cântico. Então, todos que foi
unânime, ali, naquele momento. Sentiram alegria da música. E foi criada a
primeira orquestra da Congregação. Foi em São Paulo. Foi criada aquela
turminha, daquela turminha foi expandindo (ENTREVISTADO 2).
A impressão que se transmitiu desse início de ensino de música é de uma
espontaneidade, de um ensino não planejado, mas que foi ganhando forma com o passar do
tempo, numa cooperação coletiva. Não parece ter havido um líder dentro da Igreja que fosse
reconhecido como fundador ou idealizador do ensino de música dentro da Congregação Cristã
no Brasil, apesar de ter havido uma iniciativa do fundador da Igreja, o Luiz Francescon.
Perguntada sobre a existência de um idealizador do ensino de música na Congregação, uma
entrevistada respondeu:

Como a Congregação não tem esse princípio de destacar nomes... Aí esse


idealizou, foi esse que fez, porque a gente tem um cuidado em tudo que é
movido e guiado pelo Espírito Santo, o homem não deve aparecer, eu nunca
encontrei algo que dissesse: “Não, foi Fulano de Tal que teve essa ideia”. Foi
25

mais assim mesmo. Surgiu essa necessidade, começou-se a admitir, aí eu sei,


eu ensino você, você já vai ensinando outro e aí foi crescendo. Não tem esse
idealizador. Pode ter tido, não tem esse interesse em... Como é que diz?
...Em resgatar essa memória, em cultuar essa memória. Então, eu não sei te
afirmar por conta disso (ENTREVISTADA 1).
Nota-se, na fala da entrevistada, um valor presente no ensino de música da
Congregação Cristã no Brasil, que parte do princípio de humildade cristã, que seria um
cuidado por não alimentar a arrogância pessoal, não destacando os feitos individuais, mas
coletivos. Dessa forma se pretende atribuir a Deus tudo que acontece de benfeitoria dentro
desse ensino e assim a cooperação mútua, sem visar reconhecimento individual. Apesar disso,
a entrevistada destaca um nome influente entre as organistas da Congregação Cristã no Brasil:

A irmã Nispina, que ela é a examinadora mais antiga do Brasil. Então, a


maior parte dos hinários, que teve as reformulações, que teve as criações das
melodias, ela tava presente, ainda garotinha. Hoje ela é uma senhora idosa.
Acredito que ele deve ter uns 80, 90 anos. Então, ela tomou parte nessas
decisões. Então, ela é como se fosse a nossa representante lá no conselho.
Tem esse conselho. Então, o que eles decidem lá, então vai sendo repassado
(ENTREVISTADA 1).
Um processo histórico influente para o ensino de música na Congregação Cristã
foi o da publicação de hinários. Hoje a Congregação conta com a 5ª edição de seu hinário
oficial, o Louvores a Deus. Como o ensino de música se presta a tornar o músico da Igreja
apto a tocar o hinário, uma nova versão do mesmo acaba por gerar novas demandas de ensino
nas escolinhas de música e nas orquestras. Como é bem explicado pela entrevistada 1:

Então quando foi em janeiro, esse ano, o Brasil inteiro se reuniu no Brás, no
dia 19 de janeiro desse ano pra receber essas orientações. Aí foi bem bonito
porque, no início, ele foi mostrar a História dos hinários, ele mostrou o
hinário 1. E as melodias, a estrutura, a construção da música, elas eram
influenciadas pela música da época. E aí a gente foi ver, o hinário 1 tinha
uma estrutura, o 2 já foi se tornando mais sacro, porque as primeiras
melodias tinham ritmo de marcha mesmo. E aí depois foi ficando mais sacro,
e foi mostrando as mudanças. O primeiro hinário da gente era italiano,
porque os primeiros crentes da congregação, eles eram italianos. Então tinha
muitas melodias no italiano. Aí o hinário 2 já foi em português. E aí ele foi
se modernizando.
Esses processos de modernização e sacralização das músicas contidas no hinário
são fatores preponderantes para o ensino de música na Congregação Cristã no Brasil, porque,
para que os músicos das orquestras tenham condições de tocar as novas edições dos hinários,
os mesmos devem se adaptar às novas publicações. Um exemplo muito claro é de um
encarregado de orquestra que aprendeu a transpor no sax alto o que estava escrito no hinário,
por conta de a publicação do hinário não fornecer uma versão transposta para seu instrumento
26

em mi bemol. Com a nova publicação do hinário, esta necessidade de aprendizado deixou de


se apresentar, porque, na nova publicação, uma versão do hinário para instrumentos em mi
bemol foi posta à disposição. Sobre a necessidade de adaptação das organistas, uma
entrevistada ressaltou:

O quatro era o mesmo hinário para todos os instrumentos e para a organista.


Para organista era diferente assim, por que tinha o dedilhado, mas não havia
mudança na estrutura musical. Nas notas, era a mesma coisa. Só que o nosso
hinário vinha com dedilhado para mão esquerda e pra mão direita. Era o
hinário de organista. Foi a primeira mudança. Quando eu ingressei na
música, o nosso hinário era igual ao dos irmãos. Aí a gente copiava o
dedilhado de uma pra outra, pegava emprestado da colega e ia passando ali,
450 hinos, escrevendo o número dos dedos. Aí, logo que eu ingressei, acho
que uns dois anos depois, saiu o hinário de organista, que já vinha com o
dedilhado. A gente já não tinha mais esse trabalho. Aí no hinário 5, veio o
hinário com os três sistemas. Aí “quebrou as pernas‟ de todo mundo. Pra
quem tá ingressando, quem ainda não pegou o hinário antigo, então não vai
sentir mudança nenhuma, mas pra gente que já vinha do costume de um
hinário 4, a gente teve mais dificuldade (ENTREVISTADA 1).
Como se pode notar as três edições do hinário, conforme citado pela entrevistada,
geravam uma demanda de ensino e aprendizado para as organistas. Esta demanda acaba
criando novas dinâmicas entre instrutores e alunos da educação musical praticada na Igreja.

2.2. Crenças sobre educação musical

Num ensino de música, há sempre crenças imbuídas nos sujeitos que participam
dele. Daqueles que se constituíram professores por vias formais, nos cursos de licenciatura,
esperam-se crenças definidas pelos teóricos da educação estudados durante o curso, bem
como a reprodução de metodologias aprendidas no decorrer da formação prática e
profissional. Daqueles que se constituíram professores de modo informal, esperam-se crenças
que estão presentes no senso comum. A pesquisa revelou que o ensino de música presente na
Congregação Cristã pode trazer à tona discussões teóricas complexas e pertinentes para o
entendimento da capacidade de aprender música pelos alunos.
A discussão que veio mais à tona nas falas dos entrevistados relaciona-se a crença
de que alguém possui um talento natural para música e, por isso, pode se dedicar
satisfatoriamente ao aprendizado de um instrumento musical versus a crença de que esse
talento natural não existe e, por isso, aqueles que se dedicarem de modo suficiente poderão
chegar, em seu tempo, a tocar seu instrumento musical.
27

Uma entrevistada afirmou que, como modo de orientar o aluno que deseja
ingressar no programa de ensino, ressalta-se o fato de que uns são dotados de uma
musicalidade. Nas suas palavras, “geralmente quando eu vou pra uma escolinha, que vai abrir,
uma escolinha nova, eu vou pra aconselhar e falar sobre essas coisas. Que a pessoa, ela tem
que ter a consciência de saber se música é pra ela ou não”. Explicando mais detalhadamente a
mesma ideia, a entrevistada disse:

Às vezes, a gente vê que a pessoa tem desejo de aprender, tem aquela


vaidade, mas muitas vezes ela não tem aquele interesse mesmo e, às vezes, a
própria aptidão. A gente sabe que todos nós, não que nós nascemos com
papel definido, mas que você tem uma aptidão pra determinadas coisas que
eu não tenho. E, às vezes, a pessoa acha música bonita, aí quer ingressar, aí,
muitas vezes nem tempo não tem pra dedicar à música e, muitas vezes não
vai ter nem condições pra aprender (ENTREVISTADA 1).
As dificuldades de aprendizado da pessoa não são encaradas como dificuldades
metodológicas, levando o professor a modificar seu esquema de ensino, mas como evidência
de que o aluno não tem este dom. Descrevendo a dificuldade de assimilação de uma aluna,
uma entrevistada afirmou que uma aluna conseguia fazer bem as lições de solfejo, mas não
conseguia transferir esses conhecimentos aprendidos para o instrumento musical. Esta lacuna
de aprendizado não é encarada como dificuldade de método, mas como uma falta de aptidão
da aluna.
A ideia de que uns nascem com talento natural para música é completamente
rejeitada por Shinichi Suzuki. Bem no início do seu livro Educação é Amor, ele afirma:
“talento não é um acaso do nascimento”. Para Suzuki, “todo ser nasce com tendências
naturais para aprender” (SUZUKI, 2008, p.70). Ainda que Suzuki não negue que haja fatores
com que o indivíduo não possa lidar, como a família em que nasce ou a região do mundo onde
nasce, para Suzuki, com o método correto todos podem aprender a tocar o seu instrumento
musical. O educador japonês parte do pressuposto que, se uma pessoa tem a grande
capacidade de aprender a sua língua materna apenas de ouvir seus pais e familiares falarem,
todos têm capacidade de aprender a tocar um instrumento musical e não somente isso, mas no
ambiente e condições corretas, tornarem-se um ser humano pleno, apto para buscar a verdade,
o amor e a beleza. O que separa uma pessoa comum do instrumentista é a prática disciplinada
e repetida da música a ser aprendida (SUZUKI, 2008, p. 53-54).
Há uma aproximação dessa visão do empenho do indivíduo no aprendizado da
música e a possibilidade de ele conseguir bons resultados. Falando de uma pessoa que vem
insistindo no aprendizado do instrumento há muito tempo, mas não chegou ainda a se
28

oficializar na igreja, isto é, não ganhou a liberdade de tocar em todas as Congregações Cristãs
espalhadas pelo mundo, a entrevistada afirmou: “Só que eu acredito também, se ela se
dedicasse ao máximo, ela poderia melhorar, mas não muita coisa, porque já é uma senhora
idosa, já tem 60 anos, os dedos já não ajudam mais” (ENTREVISTADA 1).
Outras visões sobre o talento são encontradas na Congregação Cristã no Brasil em
Juazeiro do Norte. Um dos entrevistados afirmou:

Eu acho que se o dom for a vontade... Todos têm. Se você tiver o desejo de
aprender, eu acho que todas as pessoas têm a capacidade de aprender
música. Todos. Minha visão. Minha visão é essa que todos conseguem, têm
a capacidade. Um surdo tem a capacidade. Agora nós é que... Nós é que
fazemos as limitações (ENTREVISTADO 3).
O mesmo entrevistado relatou que, como instrutor, procurava sempre adaptar seu
ensino para atingir seus alunos, mesmo os que tinham mais dificuldades. Em seu relato
também salientou a ação de outros instrutores que, segundo ele, sabiam “fazer a ponte” entre a
música e o aluno, em suas limitações. Para esse entrevistado, o aprendizado da música podia
levar mais tempo para uns, fazendo com que o aluno tenha que percorrer uma distância muito
longa, como quem vai de uma cidade a outra, mas com limitações de locomoção. Apesar de
levar um tempo maior, a persistência faria com que esse aluno percorresse todo esse caminho.
É sensato afirmar que uma visão equilibrada das características herdadas e da
influência do ambiente na aprendizagem seja mais verossímil. É fato que nascemos com
predisposições para essa ou para aquela atividade, mas que o ambiente é decisivo para moldar
essas predisposições. Um modelo interacionista de aprendizagem, como o proposto por Jean
Piaget, é preferido ao inatista e ao determinista.

2.3. Valores socioculturais e gênero

Desde a década de 1960, igrejas evangélicas têm adotado um estilo musical mais
contemporâneo e incorporado práticas em seus momentos de louvor que os tornam
semelhantes a shows de artistas da música popular. Como afirma Mendonça:

Os artistas e empresários do mercado fonográfico evangélico,


acompanhando a tendência de divisão de espaço midiático dos estilos
musicais globalizados com as culturas musicais nacionais, passam a
introduzir novas práticas litúrgico-musicais, que englobam o pop/rock e o
baião, o hip-hop e o sertanejo, o funk e a axé-music (MENDONÇA, 2009, p.
1).
29

A Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte permanece tradicional. Ao


que parece, o entendimento acerca de sua música e de seu hinário é que o mesmo está se
tornando menos contextualizado e assim “mais sacro”. Falando sobre reformulação do
hinário, uma entrevistada afirmou:

A gente teve uma reformulação agora, em janeiro. Estamos no nosso quinto


livro. Foram acrescentadas trinta novas melodias e modificou alguns, que
tinham alguns hinos com muito ritmo de marcha. Aí os nossos hinos, como
são sacros, aí eles tiveram alguma modificação na harmonia de forma que
ele tem a tendência de ser mais lento. Assim, que a gente chama assim que
traz mais comunhão. Aquela melodia mais pra meditar e não festiva
(ENTREVISTADA 1).
Desse modo, o hino ter um “ritmo de marcha”, associaria a música da Igreja a um
gênero musical não religioso e, sendo de ritmo bem marcado, tornaria o hino “mais festivo”.
Nas observações, observou-seque havia uma preocupação nos ensaios em tocar no andamento
certo. O andamento é indicado nos hinos como nas demais partituras de escrita convencional.
Apesar disso, no cântico do hino com a irmandade, nota-se um atraso ou uma fermata sempre
colocada no fim das frases. Essa prática acaba quebrando aquela marcação mais rígida do
tempo. Como acontecia no cantochão, o interesse maior não é o fluxo temporal ou o
movimento, mas a possibilidade de meditar, de refletir de modo religioso na letra da canção
religiosa. Esse valor quanto à música sacra acaba se refletindo no ensino e na performance da
mesma.
Outro valor sociocultural relacionado ao ensino de música na Congregação Cristã
é a existência de requisitos morais para que o membro se torne um aluno. Nesse item, é
importante salientar que o ensino de música é destinado especialmente aos membros da Igreja
ou àquelas pessoas que estão mais ligadas à comunidade, seja por parentesco com um
membro, seja por estar assistindo a seus cultos. É importante salientar também que o ensino se
destina a suprir as necessidades musicais encontradas na orquestra da Igreja. Caso haja
necessidade de mais violinos naquela orquestra, por exemplo, vagas de ensino desse
instrumento ficam abertas para que irmãos da Congregação possam ocupá-las. Há, entretanto,
a exigência de que o aluno tenha uma conduta moral que o faça um bom representante dos
valores cristãos. Sobre isso uma entrevistada expressou:

Aí o ingresso, se a gente não conhece a pessoa, então a gente vai procurar o


cooperador daquela igreja, que conhece a pessoa, pra saber se ela tem bom
testemunho. Que assim, todo mundo serve pra ser crente, mas pra tocar na
igreja, tem a questão do bom testemunho. Ela não pode estar envolvida com
coisa do mundo, tem aqueles requisitos. A gente conversa com o cooperador
30

pra saber se ele sabe de alguma coisa da conduta daquela pessoa, mas se não
houver nenhum impedimento... (ENTREVISTADA 1).
Requisitos morais e educação musical não são fatores que andam juntos somente
na Congregação Cristã no Brasil, nem é algo novo. Quando Johann Sebastian Bach assumiu o
cargo de chantre da Igreja de São Tomás e de diretor de música da cidade de Leipzig, na
Alemanha, em maio de 1723, além de ter passado por uma sabatina doutrinária para verificar
se ele não era um herege, ele tinha de se comprometer a dar quatro horas de aula por dia, “a
levar uma vida exemplarmente cristã e a não abandonar a cidade sem autorização do prefeito”
(GROUT; PALISCA, 2007, p. 450). Lembro-me também que, na lotação em uma escola
pública de ensino fundamental para estágio supervisionado, a única exigência feita pela
diretora da escola que nos recebeu foi dada às mulheres do grupo, que as mesmas não viessem
para o estágio com roupas curtas. Ainda que estas observações, uma histórica e uma empírica,
não justifiquem a rigidez moral do ingresso no ensino de música da Congregação Cristã no
Brasil, as observações são exemplos de como o ensino de música pode exigir mais do que
apontamentos musicais, mas também de conduta.
A pergunta mais latente da pesquisa diz respeito à questão de gênero e ensino de
música. É alvo de curiosidade, porque é percebida logo ao se entrar numa escolinha de
música. De um modo geral, quando se visita uma escolinha de música na Congregação Cristã
no Brasil em Juazeiro do Norte, ou estão presentes apenas mulheres ou estão presentes apenas
homens. Nos cultos realizados nesta Igreja Evangélica, diferente de todas as outras Igrejas
Evangélicas conhecidas pelo pesquisador, todas as mulheres sentam ao lado esquerdo de
quem olha para o púlpito e todos os homens sentam ao lado direito. As mulheres tocam órgão
e o mesmo fica posicionado à esquerda e os homens que tocam ficam sentados na bancada
destinada aos músicos, mais próximos à bancada dos homens. Ainda que este fator já mereça
um estudo à parte, a questão levantada na pesquisa é: por que às mulheres o órgão é ensinado
e aos homens são ensinados outros instrumentos?
Prevaleceu especialmente uma resposta mais ligada à estrutura já estabelecida da
Congregação Cristã no Brasil. Uma vez que o órgão está posicionado na bancada das
mulheres e, geralmente, há mais mulheres do que homens assistindo aos cultos, então ficaria
difícil ser permitido aos homens que tocassem o órgão. Além disso, se fosse permitido às
mulheres tocarem outros instrumentos, não haveria mais lugar para a irmandade sentar,
porque, já que o número de músicos da orquestra é grande e os mesmos têm lugares
reservados, os que não são músicos teriam que ficar em pé durante a celebração. A mesma
31

resposta estrutural é dada para a não permissão de certos instrumentos na orquestra, como o
acordeom, que ocuparia muito espaço nos bancos. Todos os entrevistados ressaltaram que, em
outros países, é permitido que mulheres toquem outros instrumentos da orquestra, mas que
esta permissão ainda não foi concedida no Brasil. Também é permitido que todos aprendam
qualquer instrumento musical fora da Igreja e esta restrição se aplica apenas ao ensino de
música realizado dentro da Igreja e a participação do membro da Congregação Cristã no
Brasil nas orquestras da Igreja. Um homem, por exemplo, membro da Congregação Cristã no
Brasil, poderia aprender a tocar órgão para executá-lo em casa, sem problema.
Quando perguntados sobre uma razão mais profunda, teológica ou moral, desta
prática, os entrevistados revelam não terem nenhuma além da tradição eclesiástica e da
determinação da liderança da Igreja. A seguinte fala de um entrevistado demonstra isso:

Sinceramente, eu sou membro da Igreja, mas não... Até agora, ainda não
entendi por quê, por que tá bloqueado. Tem hora até que a gente fica meio...
Alguém já perguntou e a gente fica até meio constrangido. Quer dizer que
você é membro da Igreja e não sabe! Mas em outros países existem irmãs
tocando outros instrumentos (ENTREVISTADO 4).
Outra entrevistada aponta para uma razão mais cultural que foi construída no
decorrer do tempo e consolidada pela liderança da Igreja. Quando perguntada se havia uma
razão religiosa para que às mulheres fosse permitido tocar apenas o órgão na Igreja, ela
respondeu:

Bíblica? Que esteja justificada na Bíblia? Cultural, mas que esteja justificada
na Bíblia, não. Né? Eu pelo menos eu nunca nem vi, falando na Bíblia que as
Igrejas deveriam ter orquestras e que a organista deveria ser mulher, não
tem. Mas virou uma questão cultural e depois doutrinária. Que a própria
Igreja vai tendo os costumes. Né? Tem aquela doutrina que é bíblica, que tá
justificada na Bíblia, mas outras foram se criando do hábito e do costume.
Né? E acabou virando lei. Né? Aí ninguém questionou, né? Também não sei
se vai resolver muita coisa (ENTREVISTADA 1).
Com muito cuidado, é possível afirmar que a Congregação Cristã no Brasil evoca
nessa divisão de tarefas e de ensino por gênero a tradição judaico-cristã, especialmente aquela
que é encontrada em alguns textos do Novo Testamento. Nas cartas de Paulo, encontram-se
expressões como “toda mulher, porém, que ora ou profetiza com a cabeça sem véu desonra a
sua própria cabeça, porque é como se a tivesse rapada‟ (BÍBLIA SAGRADA, 2008, p. 1511).
Também encontramos a orientação quanto ao culto dada pelo mesmo apóstolo: “porque para a
mulher é vergonhoso falar na igreja” (BÍBLIA SAGRADA, 2008, p. 1516).
32

É necessário ressaltar que esses valores religiosos esboçados nos textos sagrados
para os cristãos e, conseqüentemente, para as igrejas evangélicas tradicionais, foram
produzidos dentro de um contexto histórico. Falando sobre o cotidiano familiar, baseado nos
escritos rabínicos, Daniel-Rops escreve:

As mulheres não comiam com os homens, mas ficavam em pé enquanto eles


comiam, servindo-os à mesa. Nas ruas e nos átrios do Templo, elas ficavam
a uma certa distância dos homens. Sua vida se passava em casa, e com
frequência as janelas que davam para a rua tinham grades, para que não
fossem vistas. Nos primeiros tempos elas nunca saiam sem véu, e este era o
costume entre os observadores particularmente estritos da lei (DANIEL-
ROPS, 2008, p. 147).
Entendendo que o papel do pesquisador é principalmente entender a prática de
ensino de música dentro do seu entorno sociocultural e não julgá-la, é possível afirmar que a
divisão de gênero estabelecida no ensino de música na Congregação Cristã no Brasil pode ter
suas raízes históricas e conceituais numa interpretação literal dos textos bíblicos. Estes textos
refletem a tradição judaico-cristã que tem sido questionada na atualidade desde o Iluminismo
do século XVIII. Apesar disso, esta tradição ainda é muito influente e tem servido como
âncora para muitos que, rejeitando a fluidez e a leveza da sociedade pós-moderna, desejam se
abrigar nas metas-narrativas supostamente ultrapassadas.
33

3. MÉTODOS E METODOLOGIAS NO ENSINO DE MÚSICA DA


CONGREGAÇÃO CRISTÃ NO BRASIL EM JUAZEIRO DO NORTE
Tendo tratado dos valores socioculturais ligados ao ensino de música da
Congregação Cristã em Juazeiro do Norte no capítulo anterior, neste capítulo apresenta-se o
ensino propriamente dito. O olhar da pesquisa se volta para o local de ensino e para os
recursos didáticos utilizados pelos protagonistas desse ensino. Um olhar é direcionado sobre a
estrutura do ensino, sua liderança, sobre os cargos e sobre os papéis exercidos pelas pessoas
que ocupam esses cargos. As discussões também focalizam o currículo, o conteúdo do ensino
e seus valores. No decorrer deste capítulo, são tratados também os assuntos ligados à
avaliação dos alunos, à formação do professor e à metodologia utilizada.
Diante da grandeza dos assuntos ligados à metodologia de ensino da Congregação
Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte, esse capítulo faz um apanhado geral dessa
metodologia, sem se aprofundar em cada item proposto, uma vez que tal procedimento pediria
um tratamento mais extenso das questões levantadas. Um dos objetivos dessa pesquisa é
verificar a existência de metodologias de ensino de música tradicionais e/ou inovadoras
dentro desse ensino. Esse capítulo demonstra que, apesar dos esforços significativos do
sistema de ensino da Igreja de tornar a música mais acessível a sua comunidade, o ensino é
eminentemente tradicional, baseado nas metodologias formuladas no século XIX, antes do
surgimento dos métodos ativos de educação musical. O fato de o ensino de música ser
eminentemente tradicional não deixa de torná-lo bem adaptado à realidade musical da Igreja,
fazendo com que essa capacidade de contextualização seja um valor preponderante do ensino
de música da Congregação.
3.1. Local de ensino e recursos didáticos
No diário de campo, anotei durante uma das visitas que o ambiente da aula tinha
as seguintes características: limpo, organizado e com um estilo simples. É importante salientar
que as aulas da escolinha e música da Igreja são realizadas no Templo, não em salas
adaptadas, com quadros brancos, carteiras, ou qualquer disposição que lembre um ambiente
formal de ensino. Sendo no Templo, todos os envolvidos no ensino, instrutores e alunos, se
acomodam nos bancos da Igreja durante a aula. O horário é o mesmo para todos. Na comum,
nome que se dá às igrejas locais da Congregação, do bairro do Romeirão, a escolinha de
música é das 14h às 16h. A maioria chega às 14h e todos têm aula, nesse período de duas
34

horas, cada um a seu tempo, de acordo com a disponibilidade dos instrutores presentes. Não é
dada uma palestra com apenas um professor, nem todos os alunos estão no mesmo nível de
aprendizado. No mesmo lugar, um aluno pode estar fazendo uma lição de solfejo, outro pode
estar tocando seu instrumento musical em preparação para apresentar um hino a um instrutor
e outro instrutor pode estar tirando a lição de um método com um aluno. A diversidade de
instrumentos musicais pode tornar o ambiente ainda mais plural. Um aluno pode estar tocando
sax, outro violino, outro bombardino e outro clarinete. Para mim, o pesquisador que
observava as aulas, era difícil manter a concentração, mas para os instrutores e alunos, aquele
ambiente parecia não atrapalhar o aprendizado.
Alguns dos bancos da Igreja possuem estantes de música acopladas,
demonstrando o lugar em que os músicos da orquestra sentam durante os cultos. Estas
estantes acopladas são utilizadas durante as aulas, onde métodos e hinários são colocados, o
que torna o ensino mais prático e direcionado. Nos templos visitados havia órgãos eletrônicos,
mas os mesmos não são usados nos momentos de ensino se os homens estão tendo sua aula.
Na aula das organistas, enquanto uma aluna está passando sua lição ao órgão, as outras estão
passando as lições de solfejo.
Chama atenção o fato de que todos os alunos trazem seus instrumentos musicais
para a aula. Alguns desses instrumentos são caros, considerando a classe social de muitas
pessoas que estão envolvidas no ensino de música da Congregação Cristã no Brasil. A igreja
fornece esses instrumentos musicais para os alunos das escolinhas de música, por tempo
indeterminado, e possui um sistema de coleta que proporciona a compra e a manutenção
desses instrumentos. Sobre esse sistema, um entrevistado explicou:

Aí existe o setor musical, onde eles compram esses acessórios, e deixam lá.
Então, a gente, como encarregado, conhece a necessidade da igreja, a gente
chega lá pra eles e “preciso de tantas cordas, tantas palhetas” e eles cedem
pra gente retribuir, distribuir para os alunos. Até porque eles são comprados
através de uma coleta que existe dentro dos ensaios. Então, termina o ensaio,
eles cooperam. E aquela coleta, junta toda região, e cria um fundo. Chama
coleta do fundo musical. E é para comprar instrumentos, é pra comprar
acessórios, reformar instrumentos. Têm instrumentos que, às vezes, você já
pega ele já usados, e com um certo tempo de uso, dois ou três anos, ele já
não tá tão bom, tá com vazamento... Aí, a gente repassa um instrumento
melhor para o aluno, recolhe aquele lá e manda para reforma. Então esses
instrumentos são reformados, é dado outro banho neles, eles voltam em
condição de novo para orquestra (ENTREVISTADO 2).
Segundo explicou o mesmo entrevistado, aqueles que têm condições de comprar
seu instrumento, de mantê-lo e até de doar outros instrumentos para a Igreja podem fazê-lo e
35

todos são incentivados a isso. Ao que parece, porém, a Congregação Cristã no Brasil se
predispõe a não deixar seus alunos sem métodos, sem instrumento ou sem a manutenção do
instrumento por falta de recursos pessoais.
3.2. Estrutura, hierarquia, cargos e papéis
O fato de a Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte possuir um
sistema de ensino de música estruturado em cargos dispostos de forma hierárquica é muito
claro. Se os cargos forem dispostos do que possui maior autoridade até o aluno, que teria que
se submeter a toda essa estrutura, poder-se-ia apresentar a seguinte ordem: São Paulo (Igreja
Central no Brás), encarregado regional, encarregado local, instrutor e aluno. Para o ensino das
mulheres teríamos também a examinadora e a instrutora, ambas submetidas à autoridade dos
encarregados, que são homens.
Como diria um professor do curso de licenciatura em música da UFCA: “Não
chove de baixo para cima, chove de cima para baixo”. A Igreja fundadora da denominação
evangélica Congregação Cristã tem a palavra final no que diz respeito ao ensino de música
entre todas as outras igrejas espalhadas pelo mundo. Sobre esse poder de decisão, vários
entrevistados se pronunciaram. Falando sobre a prática de se não admitir mulheres tocando na
Igreja outro instrumento que não seja o órgão, uma das entrevistadas disse:

Então, eu não veria nenhum problema. É minha opinião pessoal. Não vai
mudar em nada lá, como eu te falei, eu não tenho poder de decisão, porque
tudo tem que ir lá pra São Paulo. E eu, chegar lá, quem que eu sou? Não sou
nada. Aí é uma opinião pessoal (ENTREVISTATADA 1).
A reformulação do hinário e a consequente preparação de materiais adaptados
para as necessidades de ensino da Igreja, como hinários publicados para instrumentos de
transposição, a formação do programa mínimo de estudos para ingresso dos alunos nas
orquestras, os procedimentos de avaliação e os requisitos a serem cumpridos pelos envolvidos
no ensino da Igreja são igualmente estabelecidos pela sede da Congregação Cristã em São
Paulo, no bairro do Brás. Esta Igreja se constitui, como em outros ramos do cristianismo, uma
sede administrativa em que se consolidam práticas e crenças que são irradiadas para os outros
pólos da denominação. Sendo um centro administrativo, é vital para o funcionamento do
ensino de música, proporcionando a este unidade e caráter. Ao que parece, a Igreja também
possui sedes regionais. Em Juazeiro do Norte, de acordo com informações fornecidas pelos
entrevistados, a sede fica no bairro do Triângulo, onde se localiza um templo mais amplo, que
comporta uma quantidade maior de músicos.
36

Além dessas sedes administrativas, há cargos exercidos pelos que estão


envolvidos no ensino e na execução da música na Igreja. Na Congregação Cristã no Brasil, há
músicos encarregados de dar assistência à música das Igrejas de uma região e de reger os
ensaios regionais. Estes músicos são chamados “encarregados regionais” ou somente
“encarregados”. Há também aqueles músicos que lideram a orquestra da igreja que
frequentam. Estes músicos são chamados “encarregados de orquestra”. O encarregado de
orquestra está envolvido diretamente com o ensino de música, trabalhando também como um
instrutor. Falando sobre o papel do encarregado da orquestra, um entrevistado relatou:

Então, o encarregado de orquestra é responsável pela parte musical. Então,


tudo que acontecer dentro da música, dentro dessa igreja, ele é responsável.
Então, nos cultos, acompanhamento, o músico, ele não faz nada, se não for
através de um encarregado. Então, o encarregado é como se fosse um
maestro de orquestra. A gente orienta. Se precisa a gente recolocar as
vozes... Por exemplo, um instrumento que, às vezes, faltou, um trombone
que faltou, um tenor ali, então, a gente pode colocar outro instrumento, pra
fazer aquela voz do tenor, pra poder preencher melhor a orquestra
(ENTTREVISTADO 2).
Além dessa função de liderança na orquestra, que possui por si algumas
implicações didáticas, o encarregado lidera o ensino dentro da Igreja. Ele está ali para notar as
necessidades da a escolinha que funciona na Igreja e para atendê-las dentro do sistema de
ensino. Ele ensina, avalia, nota a carência de um instrumento, a necessidade de manutenção, a
possibilidade de haver mais um instrutor e rege a orquestra quando isso for requerido. Por
vezes, o encarregado conhece o funcionamento de vários instrumentos e orienta aqueles
alunos que desejam estudá-los. O encarregado regional atua por um tempo como encarregado
de orquestra, para depois ser nomeado a um cargo com mais responsabilidade.
Ao encarregado de orquestra segue o instrutor, um professor nomeado dos
músicos da orquestra, músico já oficializado, de quem se exigem outras qualificações, além
das que são exigidas dos alunos e dos músicos. Sobre o assunto, falando de uma instrutora de
órgão, uma das entrevistadas relatou:

Então, como é o procedimento? Dentre aquelas organistas, tem aquela que


vai se destacar, que ela domina bem o conteúdo de teoria, solfejo, de órgão,
e, além disso, ela deve ter outros requisitos como ter bom testemunho. Né?
Então, é uma pessoa que tem que ter uma conduta ilibada. Não pode tá
envolvida em confusão. Tem que ter paciência. Tem que gostar de ensinar. E
ela tem que andar dentro da doutrina (ENTREVISTADA 1).
Neste caso, o instrutor ou a instrutora, terão qualificações que os deixam em
evidência, dentro dos valores contidos no meio social da Congregação Cristã no Brasil. Esses
37

valores são tanto morais como pedagógicos. Alguns entrevistados expressaram a crença na
existência de um dom de ensinar, que levaria o professor a identificar as necessidades dos
alunos e a transmitir os conhecimentos musicais ao aluno de forma inteligível, chegando onde
ele está.
Esta estrutura não é, entretanto, hermética nem baseada num princípio de
autoridade absoluta. Nas falas de entrevistados, a expressão “passado em reunião” é
recorrente. A expressão quer dizer que existem momentos em que membros desses níveis
funcionais podem se reunir e tomar uma decisão em conjunto. Também ficou claro que
existem reuniões de instrutores, de encarregados de orquestra e de encarregados regionais, em
que os problemas que surgem no ensino são discutidos e, pela troca de ideias, soluções são
encontradas. A estrutura de comando esboçada também não quer dizer que os agentes desse
ensino se submetem às normas de forma mecânica e inquestionável. Como já foi demonstrado
na questão de valores socioculturais, membros da Congregação Cristã no Brasil podem não
concordar com certas normas estabelecidas pela liderança da Igreja, demonstrando assim
autonomia de pensamento e atitude.
3.3. Formação do professor
Nesse sistema em que os alunos e instrutores fazem parte da Igreja, fica patente
que os professores têm como formação musical e pedagógica inicial as escolinhas de música
da própria Congregação Cristã no Brasil. Uma das entrevistadas notou que a exigência feita às
alunas, especialmente as solteiras, é necessária, porque as mesmas podem se tornar
instrutoras. Ela esclareceu:

A gente cobra mesmo, porque uma pessoa que não tem responsabilidades de
lar, de família, vive para o estudo, então a gente exige mais. Até mesmo,
porque a pessoa, ela pode ser futuramente uma instrutora. E aí, se ela passar
com deficiência nos testes, ela não vai ser uma boa instrutora. Então a gente
leva em consideração essas coisas (ENTREVISTADA 1).
Como os instrutores têm que lidar com o ensino de diversos instrumentos, eles
adquirem conhecimentos diversificados. Um encarregado de orquestra pode vir a ensinar sax,
violino, trompete e ter também que desenvolver conhecimentos de regência e manutenção de
instrumentos musicais. Sobre essa polivalência, um encarregado se expressou:

A gente é assim, um polivalente. Porque assim, nós sentimos dificuldade de


ter um instrutor para cada categoria. Às vezes quando nós temos um aluno...
Por exemplo, trompa. É o caso que chegou pra nós uns alunos recentes que
não tinha conhecimento e nós também não tínhamos, porque não sabia. Mas
aí, o que a gente vai fazer? Vai buscar livros, métodos e vai pegando
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orientação. Liga pra quem sabe. “Como é que funciona? Assim, você vai
trabalhar desse jeito”. Chama ele uma vez para vir aqui. Às vezes não
precisa ser nem instrutor. Mas ele já toca aquele instrumento? Chama ele
duas, três vezes na escolhinha, e vai pegando as dicas ali. Já vai orientando
aquele aluno, e vendo aquelas dicas, e acaba ensinando também
(ENTREVISTADO 2).
Na fala desse entrevistado, podem-se notar dois itens importantes na formação dos
professores que protagonizam o ensino de música da Congregação Cristã no Brasil em
Juazeiro do Norte: a prática autodidata e a cooperação. Como o entrevistado expressou com
clareza, uma necessidade que surge dentro da escolinha de música, como a vontade de um
aluno de estudar um instrumento não conhecido, leva o instrutor a procurar métodos e, com o
conhecimento prévio, o instrutor orienta o aluno no aprendizado daquele instrumento. Desse
modo, o instrutor, sem ter tido nenhum professor daquele novo instrumento, aprende-o para
poder ensiná-lo.
Nota-se também na fala do entrevistado que a quantidade considerável de
músicos, nas diversas comuns da Igreja, espalhadas em vários bairros, pode proporcionar uma
cooperação que vise ao ensino de música. O entrevistado expressou que chega a solicitar
ajuda de outros músicos de outras comuns, para que venham à escolinha de música e orientem
alunos que estejam começando a aprender instrumentos musicais novos para sua orquestra.
Essa dinâmica de cooperação, nem sempre presente em círculos artísticos
musicais, é significativa dentro do ensino da Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do
Norte. Este dado se torna ainda mais relevante quando se considera que nenhum dos que
fazem parte dessa estrutura recebe qualquer ganho financeiro para realizar esse trabalho.
Todos são voluntários e encaram o ensino de música como uma missão religiosa, o que pode
torná-los ainda mais dedicados a tarefa.
3.4. Currículo e Métodos de ensino
Para Silva (2003), não é tão importante saber o que currículo é, porque cada teoria
de currículo dará à palavra a definição que melhor lhe cabe. Entretanto, de acordo com Silva:

A questão central a qual serve de pano de fundo para qualquer teoria do


currículo é a de saber qual conhecimento deve ser ensinado. De uma forma
mais sintética a questão central é: o quê? Para responder a essa questão, as
diferentes teorias podem recorrer a discussões sobre a natureza humana,
sobre a natureza da aprendizagem ou sobre a natureza do conhecimento, da
cultura e da sociedade. As diferentes teorias se diferenciam, inclusive, pela
diferente ênfase que dão a esses elementos. Ao final, entretanto, elas têm que
voltar à questão básica: o que eles ou elas devem saber? (SILVA, 2003, p.
14).
39

Nas falas dos entrevistados, notaram-se definições muito claras de “o que


ensinar?”, para chegar a um propósito bem estabelecido. Como que expondo um “passo a
passo” da iniciação musical de uma aluna de órgão, uma entrevistada relatou:

O primeiro dia de aula é voltado pra esse conhecimento da música, do que é


a música, as partes da música, a gente procura ilustrar harmonia, melodia e
ritmo, o que seria isso dentro do hinário, pra ela poder começar a entender a
música de uma forma prática. Depois a gente ensina a questão dos sons, as
propriedades do som e aí a gente vai pra o ensino das notas. Nas linhas e nos
espaços. Geralmente a gente desenha a mão da pessoa, pra ela poder fazer de
conta que a mão dela seria o pentagrama, pra ela ter essa mobilidade, onde
ela estiver, poder treinar. Os cinco dedos sendo as cinco linhas e os espaços
sendo os espaços lá da pauta. A gente manda pra casa e ela vai passar uma
semana estudando aqui e ali, pra na próxima aula ela dizer todas as notas de
cor e salteado. Aprendendo isso, a gente vai pra o Bonna. Aí vai dizer: “Oh!
Sua mão são as cinco linhas, os seus espaços são os espaços aqui. Agora
você vai olhar a pauta como se fosse a mão. A primeira linha, qual é a
nota?”. Aí faz a sabatina. Ela aprendendo, a gente vai pra o solfejo da
primeira lição, pra ensinar a divisão do compasso, o valor da nota. E assim
ela vai avançando. Então, cada aula no princípio, cada aula vai ter a aula de
solfejo e a parte teórica junto até ela chegar na lição 90 (ENTREVISTADA
1).
O conceito de música encontrado na fala da entrevistada é tradicional, ligado ao
fazer musical da tonalidade e do sistema encontrado na música erudita europeia. Este conceito
é pertinente ao ensino proposto, porque ele se destina a familiarizar o aluno com o fazer
musical contido nos hinários de igual tradição. Conceitos musicais como harmonia, melodia e
ritmo são expostos em definições meramente teóricas, procurando exemplos contidos no
universo musical da Congregação Cristã no Brasil, encontrado nos hinos utilizados nos cultos.
Além do conceito de música ser tradicional, a abordagem a ela também o é.
Ensinar música, neste contexto, significa tornar o aluno hábil a ler a partitura, a escrita da
música convencionada pela tradição da música ocidental. Essa habilidade, de acordo com o
método exposto, deve preceder toda a habilidade instrumental. O instrumento só poderá ser
ensinado ao aluno depois que o mesmo tiver condições de executar satisfatoriamente uma
quantidade de lições de solfejo. Além disso, passar a lição de solfejo, disposta em ordem de
dificuldade, significa executar a lição de acordo com o tempo e a sílaba da nota. Dependendo
do instrutor, foi observado que se pode não cobrar o cântico das notas em suas respectivas
alturas, tornando o solfejo ainda mais mecanizado.
Todos esses procedimentos caracterizam a metodologia de ensino de música da
Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte como tradicional, seja pela música
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ensinada, seja pelos caminhos utilizados para levar o aluno a esta música. Sobre a condução
da aluna de órgão para executar o instrumento, uma entrevistada disse:

A gente trabalha com o primeiro Schmoll... Você conhece? Primeiro


Schmoll e o Köhler, o Köhler, o pequeno pianista. São 40 lições bem fáceis.
É tanto que no Köhler, a partir da lição 18, já entra a clave de fá. O primeiro
Schmoll, ele é todo em clave de sol. Então, quando a aluna começa a entrar
na clave de fá, já não tem mais dificuldade na leitura. Ela consegue ler as
duas claves ao mesmo tempo, porque já estudou no Bonna as duas claves.
Aí, quando ela termina o primeiro Schmoll, a gente coloca pra repassar e
entra o segundo Schmoll, que é um método que já tem clave de Fá e já tem
um grau de dificuldade maior. O Köhler, quando ela terminar a primeira vez,
a gente repete mais uma vez o repasse, aí a gente encosta. Vamos trabalhar
mais com o primeiro Schmoll, segundo Schmoll, quando ela termina, a gente
inclui o Georges Bull, porque o Georges Bull tem um nível de dificuldade
mais fácil do que o segundo Schmoll. Aí, quando ela termina o Georges
Bull, aí ela está apta pra fazer o primeiro teste, que é o de reunião de jovens
e menores. Nesse percurso, quando ela começa a estudar os acidentes, que é
no segundo Schmoll, lições em Sol Maior, que têm um sustenido... Ré
maior, que tem dois... Quando ela começa a ter contato, com os acidentes, aí
a gente começa o estudo do hinário. A gente vai pegar aqueles hinos
naturais, hinos que só têm um sustenido pra ela poder começar a treinar
(ENTREVISTADA 1).
É notável no ensino de música da Congregação Cristã no Brasil a preocupação
com a execução de peças para o instrumento de modo gradativo, indo das músicas mais fáceis
para as mais difíceis. No caso do órgão, o estudo da clave de sol no método de solfejo
encaminha a aluna para um método para instrumentos de tecla, que utiliza inicialmente apenas
a clave de sol. Posteriormente, quando a aluna passa a solfejar em clave de fá, um método
utilizando esta clave lhe é apresentado. Quando acidentes musicais são introduzidos nos
métodos, a aluna passa a estudar os hinos que possuem os acidentes já aprendidos. Toda a
metodologia se encaminha para a execução dos hinários. Pensando em outros instrumentos da
família das cordas, madeiras e metais, o procedimento é semelhante. Depois do solfejo, o
aluno começa a aprender a tocar seu instrumento musical através de método específico. A
partir de uma determinada lição desse método, o aluno começa a tocar os hinos partindo do
soprano, passando então para o contralto, tenor e baixo de cada hino. Esse processo é seguido
pelo instrumentista até que ele chegue a tocar todo o hinário.
Nesse processo, os testes feitos pelos músicos para ingressar nas orquestras da
Igreja são importantes. Jovens não casados podem preparar os 50 hinos de jovens para tocar
na reunião de jovens e menores, um dos cultos realizados pela igreja durante a semana.
Posteriormente, o músico pode se preparar estudando todos os hinos do hinário, cumprindo o
41

programa mínimo, que inclui os métodos para seu instrumento, e seguir para oficialização.
Sobre essa oficialização, uma entrevistada esclareceu:

O encarregado, ele faz um pré-teste, que a gente chama, que, pra ele, só é
obrigação dele, dever dele, cobrar os hinos. Então ele vai pegar os hinos e
ver se ela sabe tocar mesmo os hinos. Alguns gostam de pedir método e
Bonna, mas não é necessário. Ele vai examinar nos hinos se ela tem
condição de acompanhar a orquestra. Aí, ela passando, aí tem uma carta que
chama carta de apresentação, com ela, ele vai preencher aquela carta, que é o
pedido de teste. Coloca com o nome dela e ele marca lá qual teste que ela vai
fazer e assina. Aí ele vai coletar as assinaturas do cooperador, do ancião
daquela região. Aí, estando assinada,eles enviam a carta pra mim. Aí eu vou
preenchendo já os relatórios, pra poder, no exame, levar a aluna para lá. Aí
lá tem o ancião que vai presidir, geralmente a instrutora acompanha a aluna
dela. Aí lá vão ser feitos os exames de prova de teoria, prova mesmo, por
escrito e o órgão. O órgão a gente geralmente pede duas, no máximo, três
lições, dependendo da aluna, porque, às vezes, no próprio desenrolar de uma
lição você já vê que realmente ela tá preparada, não é necessário você pedir
duas, três lições (ENTREVISTADA 10).

Esse exame de oficialização, realizado em Juazeiro do Norte duas vezes por ano,
em janeiro e julho, é o marco final do percurso de ensino e aprendizado da Congregação
Cristã no Brasil. Nesse exame são cobrados conteúdos ligados aos métodos de instrumentos
musicais e, especialmente, os hinos, que, segundo a mesma entrevistada, “devem ser tocados
com perfeição”. Nota-se na fala da entrevistada um envolvimento de toda a estrutura
organizacional de ensino: a aluna, a instrutora, o encarregado, o regional e a examinadora.
Falando sobre a aprovação, a entrevistada afirmou que dificilmente uma pessoa é reprovada
nesse exame, ainda que isso possa acontecer. A dificuldade de reprovação se dá por conta do
aval dado pela instrutora e pelo encarregado. Ambos são como filtros que só permitem a
participação de pessoas que já estejam bem preparadas para o teste.
Desse modo, o egresso desse sistema de ensino de música é aquele capaz de tocar
escalas e aquele que tem condições de tocar os cânticos de adoração. Esse sistema tem forte
capacidade de adaptação a uma realidade singular. Possui valores que poderiam ser
transpostos para outras realidades, mas não pode ser reproduzido fora de seus templos. Por
fim, é também evidente que o músico que aprendeu a tocar nesse sistema, também absorverá
muito conhecimento musical com seus colegas de escolinha de música, com a execução de
hinos durante os cultos e com a música do seu entorno não-religioso, misturado à música de
sua herança familiar.
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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os valores socioculturais estão fortemente atrelados ao ensino de música da


Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte. Esse entrelace de valores socioculturais e
o ensino de música está presente no ensino de música em todo modelo de ensino. O ensino
formal, por exemplo, por mais que tenha a pretensão de ser imparcial, neutro e democrático,
por admitir diversas crenças e valores no universo escolar, está certamente comprometido
com uma ideologia, não só de ensino, mas de orientação política, econômica e social. Por
vezes, a escola é um instrumento do Estado, cujo objetivo é, através do ensino, perpetuar a
hegemonia de um segmento da sociedade, que detém o controle da máquina estatal. Com
relação à Congregação Cristã no Brasil isso não seria diferente. Em vários momentos da
pesquisa se demonstrou que os valores socioculturais da Congregação no Brasil permeiam
todo o seu sistema de ensino. Desde o ingresso de um novo aluno numa escolinha de música
em uma das comuns, passando por todo o processo de aprendizado desse aluno, que inclui
uma capacitação sistemática para tocar as músicas do hinário, até a oficialização desse aluno,
o ensino está repleto de valores que vão além da pedagogia musical. O seguir a orientação da
liderança, a submissão a uma série de normas de conduta e a restrição de repertório aos hinos
sacros e às músicas dos métodos, são alguns exemplos de como esses valores socioculturais se
manifestam dentro do ensino.
Apesar do recorrente atendimento às normas, que seriam consideradas muito
rígidas em certos círculos, o entrelace de valores socioculturais e do ensino de música da
Congregação no Brasil em Juazeiro do Norte possui destacáveis valores. Ao que parece, para
a música que é ensinada na Congregação Cristã no Brasil, com seus hinos e cânticos de
adoração, os valores religiosos e sociais são um fator motivador. Uma pergunta sempre me
acompanhava enquanto presenciava os alunos das escolinhas, passando por todo aquele
processo maçante de "bater" o solfejo, de ter que tocar todas as vozes de todos os hinos e de
ter que passar por todas as lições do método de seu instrumento musical, um método
destinado a formar intérpretes e nem sempre seres humanos. A pergunta era: Como alguém
pode ter energia para passar por tudo isso? A resposta a essa questão veio de um instrutor:
"Para que maior motivação do que louvar a Deus?!".
Fica claro que o evangélico que está aprendendo a tocar um instrumento musical
na orquestra de sua igreja, sendo ensinado por seus líderes, encara a música como mais do que
uma fonte de entretenimento ou de formação intelectual. Para estes, a música será uma forma
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de se engajarem numa batalha espiritual pelo bem. A música fará parte de sua prática
religiosa. No mesmo fervor daqueles que fazem suas orações, o aluno de uma escolinha de
música da Congregação no Brasil leva o estojo de seu instrumento ao Templo no horário
marcado e espera o dia em que fará o teste de oficialização, para ter liberdade de tocar em
todas as Igrejas de mesma fé e ordem. Numa sociedade em que o ensino escolar tem se
tornado apenas um meio de ingressar numa profissão rentável, de acordo com os ditames do
mercado, o ensino de música da Congregação Cristã no Brasil mostra que a educação pode
sobrepor uma lógica meramente utilitarista.
Algumas questões emergem dessa discussão. Quando valores socioculturais estão
atrelados a um ensino numa comunidade onde os valores são diversificados, como lidar com
essa diversidade? Numa Igreja em que todos parecem pensar de modo semelhante a respeito
da vida e têm um comportamento adequado à doutrina religiosa, parece ser mais fácil
estipular um ensino. O que dizer do ambiente escolar? Como um ensino de música,
certamente consequente de uma ideologia, poderá atender às diversas ideologias ali presentes?
Além disso, a homogeneidade de pensamento dentro de uma Igreja Evangélica
pode ser ilusória, uma vez que nenhuma Igreja está imune aos efeitos da pós-modernidade,
que se destaca pela atitude de pluralidade de pensamentos e atitudes. Foram constatadas nesta
pesquisa divergências de opinião das pessoas envolvidas no ensino de música em relação à
posição oficial da Igreja. Como garantir que alunos e instrutores sigam sempre os mesmos
caminhos de ideia e de metodologia, se os mesmos estão inseridos numa sociedade de valores
plurais?
O ensino de música na Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte se
demonstrou, entretanto, padronizado. Esta padronização é observada numa unidade de regras,
de procedimentos de ensino e numa estrutura funcional bem definida. É evidente que esta
padronização não é mecânica, inconsequente e desumana. Adaptações são feitas para chegar
aos alunos e o ensino varia de comum para comum, de professor para professor.
Esta padronização tem um lado positivo e outro negativo. Por um lado, a
padronização do ensino de música da Congregação Cristã no Brasil em Juazeiro do Norte
proporciona um controle e uma manutenção da qualidade desse ensino. Regras e padrões
ajudam a garantir que os músicos que estejam naquele nível formalizado possam executar as
mesmas músicas quando isto for requerido. Regras e padrões comuns ajudam a fazer com que
o professor se esforce para atingir uma determinada meta de aprendizado. Regras e padrões
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também impulsionam o aluno a alcançar aquele ideal bem definido, dando-lhe algo material
com que ele possa trabalhar.
Por outro lado a padronização do ensino faz com que o mesmo tenha dificuldade
de sofrer qualquer melhoria, maior adaptação e venha atender de modo abrangente as
necessidades do grupo social que visa atender. Será que outra metodologia de solfejo seria
mais apropriada para o ensino de música da Congregação Cristã no Brasil? Os métodos de
instrumentos musicais utilizados seriam suficientes para suprir as carências de uma produção
musical mais estética? O que dizer da inclusão da composição no ensino de música da
Congregação Cristã, item tão popularmente divulgado como essencial à Educação Musical
pelos teóricos da atualidade, como o próprio Swanwick? Estas e outras melhorias no âmbito
do ensino de música teriam muita dificuldade de serem implementadas na Congregação Cristã
no Brasil, porque seu governo centralizado padroniza as ações de ensino, tornando as
adaptações às necessidades mais sonhos do que possibilidades.
Por fim, não há como negar a grande contribuição dada pela Congregação Cristã
no ensino de música do povo brasileiro, ainda que no contexto religioso de uma Igreja
evangélica pentecostal. Quantas pessoas teriam sequer condições de entrar em contato visual
com alguns instrumentos se não fosse pelos cultos e escolinhas de música da Congregação
Cristã no Brasil! Pessoas que pertencem a classes subalternas que jamais teriam condições de
comprar um trompete ou uma tuba se não tivessem recebido uma doação de um membro da
Igreja para poderem aprender a tocar esses instrumentos. Ainda que a metodologia possa ser
questionada, como toda metodologia deve ser sempre questionada, um ensino de música está
efetivamente sendo realizado em uma quantidade considerável de templos espalhados pelos
recônditos do nosso país. Além disso, esse ensino não é considerado apenas um emprego,
apenas diversão, apenas uma obrigação da lei, apenas um mal necessário. Este ensino, nas
palavras dos fiéis, é a “obra de Deus”, uma crença no transcendente aplicado ao ensino de
música, algo que leva o aluno, o instrutor, o encarregado e a examinadora a sacrificar seu
tempo, seus recursos financeiros, no afã de transmitir vida através do som. Deste modo, a
Congregação Cristã e seus heróis anônimos, anônimos por opção e não por opressão, ajudam
a pintar um cenário nacional com cores ainda mais vivas, cheio de notas e ritmos, regando a
planta da nossa religiosidade, fazendo-a ainda mais viçosa e frutífera.
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48

APÊNDICE A – PERGUNTAS DA ENTREVISTA SEMI-


ESTRUTURADA

1. Como é seu nome completo?


2. Que função você exerce dentro do ensino de música da Congregação
Cristã no Brasil?
3. Como funciona o ensino de música na sua Igreja?
4. Quem pode participar desse ensino?
5. Que instrumentos musicais são ali ensinados?
6. Como esses instrumentos musicais são ensinados? Que métodos são
utilizados?
7. Quais são as etapas pelas quais cada aluno passa até chegar ao fim do seu
curso na escolinha da Igreja?
8. Quanto tempo leva para o cumprimento dessas etapas?
9. O que leva os alunos a se submeterem a todo esse processo de ensino e
aprendizado?
10. Por que as mulheres aprendem a tocar somente o órgão e os homens tocam
outros instrumentos?
49

APÊNDICE B – FICHA DE CONTROLE DO ALUNO


50

APÊNDICE C – TERMO DE RESPONSABILIDADE PARA RECEBER O


INTRUMENTO FORNECIDO PELA IGREJA
51

APÊNDICE D – ORIENTAÇÃO PARA OS MÚSICOS


52

APÊNDICE E – TABELA DE TESTES E PERMISSÕES

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