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_HTTPpix _HTTPvideo

Criação e Crítica
nas Redes de Imagens
_Giselle Beiguelman (org.)

Coleção Cultural Instituto Sergio Motta 18

São Paulo
Instituto Sergio Motta
2011
INSTITUTO SERGIO MOTTA

CONSELHO DELIBERATIVO
Presidente | Antonio de Pádua Prado Júnior
Vice-Presidente | Paulo Renato Costa Souza – in memoriam
Presidente de Honra | Wilma Kiyoko Vieira da Motta
Conselheiros | Lídia Goldenstein, José Expedicto Prata, Marcello Borg, Ethevaldo Mello
de Siqueira, Silvia Alice Antibas

CONSELHO FISCAL
Antonio Carlos Bernardo
Maria Helena Berlinck Martins
Teiji Tomioka

DIRETORIA
Diretora-Presidente | Wilma Kiyoko Vieira da Motta
Diretor Financeiro | João Teixeira de Almeida Junior

COLABORADORES
Superintendência | Camila Duprat Martins | @camiladmartins
Coordenação de Projetos | Tetê Tavares | @tetetavares
Coordenação de Produção | Aline Minharro Gambin | @alinegambin
Coordenação de Comunicação | Fernanda Perez | @perez_fe
Controller | Luciana Dacar
Administração | Sadao Kitagawa
Auxiliar Administrativo | Márcio dos Santos

SECRETARIA GERAL
Maria José Tenório Paiva
Festival On-line HTTPpix 2010
Superintendência: Camila Duprat Martins
Direção Geral: Renata Motta
Concepção: Giselle Beiguelman e Raquel Rennó
Curadoria: Giselle Beiguelman
Coordenação do Projeto: Tetê Tavares
Coordenação de Produção: Aline Minharro Gambin
Controller: Luciana Dacar
Identidade Visual: Maurício Trentin
Assessoria de Imprensa: Idearia
Divulgação em Redes Sociais
e Edição do Blog do Festival On-line HTTPpix 2010: Agência Joes

Festival On-line HTTPvideo 2010


Superintendência: Camila Duprat Martins
Direção Geral: Renata Motta
Concepção e Curadoria: Giselle Beiguelman
Coordenação do Projeto: Tetê Tavares
Coordenação de Produção: Aline Minharro Gambin
Controller: Luciana Dacar
Identidade Visual: Maurício Trentin
Assessoria de Imprensa: Idearia
Edição do Blog do Festival On-line HTTPvideo: Marina Torre

HTTPpixHTTPvideo Criação e Crítica nas Redes de Imagens


Organização: Giselle Beiguelman
Coordenação Editorial: Tetê Tavares
Autores: Giselle Beiguelman, Ivana Bentes, Eder Chiodetto, Eduardo de Jesus,
Renata Motta, Abel Reis e Raquel Rennó
Revisão do Português: Dora Helena Feres
Versão para o Inglês: Márcia Macêdo
Revisão do Inglês: Regina Stocklen
Projeto Gráfico: Maurício Trentin
Editoração Eletrônica da Versão em Português: Maurício Trentin
Editoração Eletrônica da Versão em Inglês: Angela Mendes
_HTTPpix _HTTPvideo
Criação e Crítica
_HTTPpix
nas Redes _HTTPvideo
de Imagens
Criação e Crítica
_Giselle Beiguelman (org.)
nas Redes de Imagens
_Giselle Beiguelman (org.)
Coleção Cultural Instituto Sergio Motta 18

São Paulo
Coleção Cultural Instituto SergioSão Paulo
Motta 18
Instituto Sergio Motta
2010
2011
[ficha catalográfica]

Bibliotec Gerenciamento da Informação

H998 HTTPpix HTTPvideo: criação e crítica nas redes de imagens. /


Giselle Beiguelman... [et al.] 1ed. São Paulo: Instituto Sergio
Motta, 2011.
89 p. (Col. Cultural Instituto Sergio Motta, 18)

Festival On line de fotografias e de vídeos


ISBN 978-85-60824-08-3

1. Rede de imagens 2. HTTPpix 3. HTTPvideo Beiguelman,


Giselle II. Bentes, Ivana III. Chiodetto, Eder IV. Jesus, Eduardo de
V. Motta, Renata VI. Reis, Abel VII. Rennó, Raquel IX. Coleção

CDU 004.7
Coleção Cultural Instituto Sergio Motta 18
2010
HTTPs: 2a edição ..............................................08
Renata Motta

HTTPs: festivais de celebração reflexiva .........................................10


Giselle Beiguelman

_criação
HTTPpix

Premiados HTTPpix ..............................................18


Finalistas HTTPpix ..............................................22

Júri HTTPpix ..............................................30

HTTPvideo

Premiados HTTPvideo ..............................................33


06
Finalistas HTTPvideo ..............................................37

Júri HTTPvideo ..............................................45

_crítica
A internet e a nova ecologia das imagens ..............................................49
Ivana Bentes

De Freud ao pixel, as revoluções da fotografia são ................................................56


Eder Chiodetto

Marcas e mundos virtuais ..............................................62


Abel Reis

Para além da Lonelygirl15: o triunfo da estética amadora ...............................................66


Raquel Rennó

Nas tramas do vídeo on-line ..............................................71


Eduardo de Jesus

Imagens do pós-tubo ..............................................79


Giselle Beiguelman

Sobre os autores ..............................................87


HTTPpix
HTTPpix é um festival de fotografia on-line, com o tema Carregue sua marca. O festival
aconteceu no Flickr, de 31 de maio e 14 de junho de 2010, e foi aberto a participantes de
todo o país, sem limite de idade. Três finalistas ganharam prêmios de R$ 1.500,00 cada. O
HTTTpix é uma realização do Instituto Sergio Motta e da Secretaria de Estado da Cultura de
São Paulo, com o apoio do Yahoo e da Agência Click. Saiba mais no blog HTTPpix.

07

HTTPvideo
HTTPvideo é um festival de vídeo on-line, com o tema Em trânsito: mobilidade e entropia.
O festival aconteceu no YouTube, de 5 a 19 de julho de 2010, e foi aberto a participantes de
todo o país, sem limite de idade. Três finalistas ganharam prêmios de R$ 1.500,00 cada. O
HTTTvideo é uma realização do Instituto Sergio Motta e da Secretaria de Estado da Cultura
de São Paulo. Saiba mais no blog HTTPvideo.
HTTPs: 2a edição
Renata Motta

Os Festivais HTTPs foram criados pelo Instituto Sergio Motta (ISM) em 2008. Nesse ano,
Giselle Beiguelman assumiu a direção artística e priorizou, na nossa pauta de trabalhos e de
debates, a internet e a cultura de rede.
Nesse momento, já estavam consolidadas as principais plataformas de compartilhamento
de conteúdos, como o YouTube, o Flickr e o MySpace, e o Brasil já despontava como hard
user das redes sociais como o Orkut e, posteriormente, o Facebook. Trabalhamos, então,
tanto na presença do ISM na internet quanto na elaboração de projetos que contemplassem
essa pauta.
Os Festivais HTTPs são idealizados como ações integralmente associadas à internet, isto é,
festivais de curta duração, que são realizados totalmente on-line, ocupando as plataformas
existentes e aproximando-se do público/usuário das redes.
Em 2008, foram produzidos três festivais consecutivos com enfoque no incentivo e na
circulação da produção brasileira de conteúdo criativo audiovisual na internet: o HTTPvideo,
festival de videoarte on-line na plataforma do YouTube Brasil; o HTTPtags, festival de 08
curadoria on-line na plataforma Delicious; e o HTTPsom, festival de música on-line na
plataforma MySpace.
Essa primeira edição dos Festivais HTTPs proporcionou, de fato, uma aproximação “por
dentro” do próprio fenômeno da internet. A equipe se debruçou no desafio em diferentes
etapas: da operacionalização das inscrições nessas diferentes plataformas à moderação e
ao acompanhamento das inscrições em tempo real, aos debates do júri e à divulgação dos
premiados.
Esse processo ofereceu elementos importantes para dimensionarmos e qualificarmos
as questões que despontavam em torno desses mundos (e vidas) on-line. Entre outros,
cabe destacar o fluxo alto e veloz das inscrições, a ampliação da rede de relacionamento
do próprio ISM (uma vez que a maioria dos inscritos não constava de nosso mailing) e a
diversidade dessa produção criativa.
Em 2010, realizamos a segunda edição dos Festivais HTTPs, com foco na imagem
digital e em temáticas definidas, que fomentaram os debates. O HTTPpix, festival de
fotografia on-line, ocupou a plataforma Flickr. Trouxe o tema Carregue sua marca, discutindo
a presença das marcas no cotidiano dos participantes.
O HTTPvideo, festival de videoarte on-line, ocupou novamente a plataforma YouTube, com
o tema Em trânsito: mobilidade e entropia. Os festivais seguiram a mesma dinâmica da
primeira edição procurando, segundo a diretora artística Giselle Beiguelman, “aderir o
máximo possível à cultura de rede e seus procedimentos mais interessantes: transparência,
bidirecionalidade e imediatismo”.
Este e-book apresenta os selecionados e premiados dos Festivais HTTPpix e HTTPvideo, 09
e também busca ampliar conceitual e criticamente nossa pauta em torno da internet e da
cultura de rede. A organização de Giselle Beiguelman alinhavou essa trama complexa nos
textos de Eder Chiodetto, Raquel Rennó, Abel Reis, Ivana Bentes e Eduardo de Jesus.
Os textos trazem questões centrais do estágio atual desse debate: Eder apontando os
dogmas e fissuras do percurso da fotografia, Raquel nos instigando com o curto-circuito
entre estética amadora e profissional, Abel discutindo o papel das marcas em um tempo
de vida ficcional, Ivana a “über-produtividade midiática” e Eduardo debatendo as formas
espaçotemporais do vídeo on-line.
Desde a primeira edição dos HTTPs em 2008, nesse curto espaço de dois anos, diversos
festivais on-line surgiram: daqueles atrelados a promoções de produtos ao globalizado
YouTube Play, associação do YouTube com o Museu Guggenheim. A disseminação desse
formato reafirma essa “über-podutividade midiática” e a hiperampliação do mundo virtual
on-line.
Nesse sentido, a reflexão é, mais do que nunca, necessária. O Instituto Sergio Motta
mantém como prioridade a sua presença na internet, buscando ampliar e consolidar seus
diferentes canais on-line – site, blog, Twitter, Facebook, YouTube, Flickr etc. E a terceira
edição dos Festivais HTTPs já está prevista, celebrando a cultura de rede, sem deixar de
lado o olhar crítico.
HTTPs: festivais
de celebração reflexiva
Giselle Beiguelman

Os Festivais HTTPpix e HTTPvideo, realizados pelo Instituto Sergio Motta e seus parceiros,
são uma espécie de celebração reflexiva sobre o estatuto e a produção de imagens na
contemporaneidade.
Por um lado, destacam a importância e a relevância de plataformas do tipo YouTube e
Flickr como espaços não só de circulação de imagens, mas também para novas formas de
sociabilidade baseados em comunidades fluidas de consumidores e produtores de vídeos
e fotos. Desse ponto de vista, os festivais são uma celebração da cultura de rede e de sua
capacidade de permitir a configuração de contextos expositivos não institucionais.
Por outro lado, abrem a possibilidade de analisar criticamente a produção que circula nesses
canais, investigando as estratégias de agregar seguidores e construir popularidade, as
tendências estéticas que fomentam e consolidam, e os modos pelos quais se relacionam 10
com o imaginário corporativo que se enuncia nas redes sociais. Nessa perspectiva, os
HTTPs são festivais de e para reflexão.
Em 2010, partimos de dois grandes temas que ancoraram esse processo de celebração e
reflexão. Em HTTPpix, festival de fotografia on-line realizado no Flickr, o tema foi Carregue
sua marca. Em HTTPvideo, festival de vídeo realizado no YouTube, o tema era Em trânsito:
mobilidade e entropia.
HTTPpix: publicidade espontânea e diversidade
de formatos e linguagens

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HTTPpix foi nosso primeiro festival de fotografia na internet. Convidava os candidatos a


inscrever até seis fotos em que aparecessem com as marcas mais presentes no seu dia a
dia, mas que nunca os patrocinaram. Não era obrigatório que as fotos fossem autorretratos,
e sim que contemplassem as marcas no cotidiano pessoal dos participantes, como ocorre
nas fotos de Ismael Monticelli, um dos vencedores.
O pressuposto do tema dessa primeira edição do HTTPpix é o de que cada vez mais
carregamos marcas que se confundem com nossa identidade. Dirigimos carros com
emblemas de montadoras, vestimos roupas nas quais logotipos são sinônimos de estilo
e utilizamos gadgets que anunciam seus fabricantes até por vinhetas sonoras. Isso sem
deixar de lado as próprias marcas das redes sociais, como Twitter, Facebook, YouTube,
Flickr etc., pelas quais nos comunicamos e dinamizamos nossa vida on-line, fato que foi
abordado por Fabio Faria, um dos participantes selecionados do festival.
Ao longo de duas semanas, período de inscrição no HTTPpix, recebemos cerca de 800
imagens de participantes de todas as regiões do Brasil, das quais foram aprovadas mais
de 500, que responderam de maneiras variadas à nossa pergunta: “Quantas marcas de
produtos você está expondo e ‘patrocinando’ agora?”
Essa variedade aparece com toda nitidez nos trabalhos dos dez indicados pelo júri aos três
prêmios do HTTPpix e refletem a diversidade de formatos e linguagens das imagens que
circulam na internet.

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A seleção abrange de fotografias propriamente ditas, como as dos selecionados Alexandre


Guapyassu e Marco Del Fiol, à captura de telas, como no caso já citado de Fabio Faria,
passando pela pós-produção em Photoshop, que marca o trabalho de uma das premiadas,
Samantha Santos, ensaios narrativos, como o de Carlos Magno, e técnicas de escaneamento,
presentes na imagens inscritas por Amanda Amaral de Oliveira.
Esses formatos são uma amostra interessante dos sentidos e direções da imagem digital
hoje. Não menos diversificadas são as linguagens das marcas e suas abordagens, indo de
flagrantes do cotidiano a situações elaboradas especialmente para a composição da imagem.
A unidade da seleção e também da premiação ficou por conta da postura crítica e criativa
dos indicados com relação ao tema dessa edição de HTTPpix (Carregue sua marca).
O festival aconteceu de ponta a ponta na internet absorvendo e utilizando os recursos
disponíveis no próprio Flickr, facilitando a participação da enorme comunidade de amantes
de imagens que frequenta a plataforma. Com tempo curto (duas semanas), aderia à dinâmica
do “buzz” que permeia a internet e às possibilidades de participação que a estrutura
on-line viabiliza. Corrobora essa hipótese o fato de um dos vencedores do HTTPpix, o chef
de cozinha Ricardo Morais, ter efetuado sua inscrição às 23h53, nos momentos finais da
data-limite, levando ao extremo o dito popular de que os últimos serão os primeiros...
No que diz respeito às marcas mais citadas pelo público, algumas surpresas e expectativas
foram confirmadas. A marca recordista nas inscrições do festival foi All Star. Aliás, os tênis
em geral, foram bastante citados pelos participantes. Nikes e Adidas foram dois outros
produtos intensamente “flicados”. Bebidas - águas, whisky, várias marcas de cerveja, muitas
Coca-colas e algumas doses de vodka, sempre Absolut - apareceram bastante entre nossos
concorrentes. Como não poderia deixar de ser em um festival on-line, marcas de tecnologia
foram constantes, com destaque para iPhone, Macs, Nokias, Windows e Google.
Para avaliar esse multitemperado caldo cultural, convidamos jurados e críticos especializados
em fotografia em redes sociais. Do júri, participaram: a musa do web-entretenimento nas 13
redes sociais, Bia Granja; o crítico e curador do Clube de Colecionadores de Fotografia
do MAM-SP, Eder Chiodetto, que assina um dos ensaios deste catálogo; o coordenador
do Centro de Inovação e Criatividade da ESPM, Gil Giardelli; o fotógrafo Caio Reisewitz,
nome referencial da fotografia artística contemporânea, e o sociólogo e midiativista Sergio
Amadeu.
Para os ensaios, além de Eder, que trata das transformações da fotografia ao longo da história
e dos impactos da digitalização na produção atual, convidamos a teórica da cibercultura
Raquel Rennó, que discute a estética amateur que prevalece nas redes de imagens, e o
filósofo, engenheiro e CEO da Agência Click, Abel Reis, que reflete sobre as marcas e a
subjetividade na era das redes.
HTTPvideo: as estéticas do trânsito e da lentidão

14

O tema da edição 2010 do HTTPvideo foi Em trânsito: mobilidade e entropia. Partimos


da ideia de que a popularização das câmeras portáteis e dos celulares com recursos de
gravação tem influenciado a conformação de uma estética do deslocamento. Essa estética
está relacionada a contextos tanto de aceleração quanto de estagnação e congestionamento.
Como em todos os festivais on-line promovidos pelo Instituto Sergio Motta, as inscrições
foram abertas por um período-relâmpago, de duas semanas. Dos mais de 300 vídeos
inscritos, 103 foram pré-selecionados, dentre os quais o júri indicou os dez finalistas e
os três vencedores. Os vídeos recusados na pré-seleção não atendiam aos pré-requisitos
estabelecidos no regulamento – pertinência ao tema, duração de até 5 minutos e data de
criação (2008 em diante).
Esta foi a segunda edição do festival de videoarte on-line que promovemos. Diferentemente
do que ocorreu na anterior, para esta, além de definir um recorte temático preciso, criamos
um hotsite exclusivo para o festival, em formato de blog. Isso permitiu o estabelecimento
de uma linha editorial integralmente voltada para o conteúdo do festival, com notas sobre
projetos inspiradores, e um trabalho mais intenso com os jurados, que foram apresentados
por meio de entrevistas, aproximando a equipe do público e vice-versa. O blog do HTTPvideo
apresentava, também, repetindo a experiência que havíamos feito no do HTTPpix, notas e
comentários sobre os pré-selecionados, no período das inscrições.
Importante frisar que uma das diretrizes dos festivais on-line que promovemos é procurar
aderir o máximo possível à cultura de rede e seus procedimentos mais interessantes:
transparência, bidirecionalidade e imediatismo. Não só todo o processo é feito na internet,
por meio das plataformas em que os festivais se realizam – YouTube ou Flickr, no caso –
como também sua dinâmica é derivada desse ambiente. Assim, inscrição feita, inscrição
aprovada, inscrição disponibilizada publicamente. Ou seja, não há espera até o fim das
inscrições. Os resultados vão sendo publicados em paralelo às inscrições, sem deixar
dúvidas com relação ao andamento do processo, e seguindo o ritmo dado pelo público
participante.
Aberto a brasileiros e estrangeiros residentes no Brasil, os vídeos desta edição apresentaram
uma abordagem particular do tema Em trânsito: mobilidade e entropia, enviando muitas
imagens mais relacionadas a fenômenos entrópicos e situações de imobilidade do que de
deslocamento, como ocorre de forma explícita no caso do vídeo f.lux, do coletivo Zilch, um
dos ganhadores desta edição.
Tempos lentos, como no finalista Crash course, e abstrações geométricas da paisagem 15
urbana – verdadeiros videodesenhos de linhas que atravessam o entorno – foram também
marcas desta edição, como se pode ver em Linhas sólidas, pré-selecionado, e em O desenho
nas cidades, um dos vencedores, e nos finalistas, Rua e Movimento retilíneo uniforme.
Um raro caso de projeto que soube elaborar esteticamente os recursos do YouTube na
criação merece destaque. Trata-se de YouToRemix_Bike C-Mapping_YouTubeMix, do
coletivo Manifesto21, um dos finalistas do festival. O vídeo aborda o alarde midiático em
torno da mobilidade e é mixado em tempo real pelos usuários do YouTube, na própria
plataforma, com base na playlist elaborada pelos membros do coletivo.
Um time de pesquisadores, críticos, artistas e curadores, especialistas em audiovisual e
reflexões sobre as cidades contemporâneas, compôs o corpo de jurados e o grupo de
ensaístas que escreve neste catálogo.
Do júri, fizeram parte o filósofo Nelson Brissac, autor de Cenários em ruínas e
Paisagens urbanas, além de organizador e curador do projeto Arte/Cidade; o cineasta,
designer e artista Ricardo van Steen, que dirigiu o longa-metragem Noel - poeta da vila;
o artista experimental no campo da videoarte, performance e novas mídias luiz duVa; o
jornalista, produtor cultural e autor de ficção científica Guilherme Kujawski e o curador
e gestor cultural Fernando Oliva.
Para os textos críticos, chamamos Ivana Bentes, um dos principais expoentes da 16

produção teórica sobre audiovisual e artemídia, e o curador, realizador e pensador das


imagens técnicas Eduardo de Jesus.
Ivana problematiza as ambivalências da “über-produtividade” midiática e nos impõe
“um esforço ‘ecológico’ para não sucumbirmos ao fluxo indiferenciado de imagens, ao
tubo digestivo por onde tudo flui: as redes.”
Já Eduardo faz uma instigante reflexão sobre como o audiovisual on-line vem
reconfigurando nosso modo de ver, que passa a ser mediado “por todo um aparato
interativo que pode ajudar nas escolhas e formas de busca (...) fazendo com que
alguns vídeos sejam acessados ‘sem querer’”. Cria-se aí, diz Eduardo, “uma espécie
de jogo de situações entre audiência e interatividade” que quebra o fluxo contínuo da
transmissão televisiva e impõe outra cultura das imagens.
É essa outra cultura das imagens, para a qual chamam a atenção Ivana e Eduardo,que
passa por emergentes estéticas amadoras, como afirma Raquel Rennó;
pelas estratégias de ficcionalização do real que pautam boa parte da produção
contemporânea, como mostra Eder Chiodetto; e pelas táticas de colonização de
sensibilidades pelas imagens-marca, como mostra Abel Reis, que as reflexões dos
Festivais HTTPpix e HTTPvideo celebram criticamente.
_HTTP://criação

17
_Premiados HTTPpix

18
Sem título 6, da série “Gaveta”, 2010

Isma monticelli | Ismael Agliardi Monticelli (1987) | RS 19

Estuda Artes Visuais na UFRGS e Arquitetura e Urbanismo na Unisinos. Integra a equipe


da Fundação Vera Chaves Barcellos, Porto Alegre/Viamão. Participou da Mostra Coletiva
Olheiro da Arte, curadoria de Fernando Cocchiarale, CCJE/UFRJ, 2010, e da 8ª Mostra
Experimental de Vídeos Vagalume, Pinacoteca IA/UFRGS, 2009.

Links:
ismaelmonticelli.wordpress.com
Flickr
Visa no vermelho, da série “Agourado dia”, 2010

samydevil | Samantha Alvares da Silva Campos (1980) | MG 20

Artista visual e fotógrafa. Cursa a pós-graduação em Arte e Contemporaneidade na Escola


Guignard/UEMG, onde graduou-se em Artes Plásticas. Integra o coletivo IRA e já expôs
no Centro de Cultura de Belo Horizonte, Galeria da Escola Guignard e Galeria da Escola de
Belas Artes da UFMG, entre outros.

Links:
Flickr
Just do it, 2010

ricardo morais | Ricardo Luiz de Morais (1982) | SP


21

Cursou o segundo grau técnico em Publicidade e Propaganda pensando na graduação em


cinema. No fim, estudou gastronomia no Senac e chefiou uma pequena cozinha de grill.
Hoje trabalha com pequenos eventos e estuda fotografia.

Links:
Flickr
_Finalistas HTTPpix

22
M&M, 2010

Aalexcarioca | Alexandre Guapyassu(1965) | RJ 23

Formado em Biologia pela Universidade Celso Lisboa, tem dez anos de experiência em
mídia on-line.

Links:
Flickr
Z Iron star 04, 2010

carlosmagnoRODRIGUES | Carlos Magno Oliveira Rodrigues (1972) | MG 24

Graduado em Artes Plásticas e Cinema de animação pela UFMG. Seus vídeos já foram
exibidos em diversos festivais e exposições, nacionais e internacionais. É consultor na
implementação da Prefeitura de Betim/MG. Orienta jovens realizadores em seu ateliê
Andrômeda - Filme & Design.

Links:
http://carlosmagno-film.blogspot.com/
Flickr
No Blog do HTTPpix
Flickr, 2010

damzk | Fabio Faria (1974) | SP 25

Graduado em Artes Plásticas pela FAAP. Realizou uma exposição individual na Galeria
Thomas Cohn (São Paulo, 2000) e participou de coletivas com destaque para III Bienal
Mercosul, Rumos da Nova Arte Contemporânea, Grau Zero, Recortar e Colar / Ctrl_C+Ctrl_V,
Comunismo da Forma, afotodissolvida e Lord Palace Hotel.

Links:
@Damzk
Flickr
Sem título, da série “Telhados”, 2010

ditacuja | Amanda Amaral de Oliveira (1986) | SP 26

Estudante de Audiovisual exerce atividades em cinema e vídeo (produção, cinematografia,


direção de arte e assistência de direção), mas tem na fotografia still seu principal campo de
interesse e pesquisa autorais.

Links:
qualquerquadrado.blogspot.com
ditacuja.tumblr.com
Flickr
Carrego minha marca no peito_2, 2010

ducamendes | Eduardo Pereira Mendes (1980) | SP 27

Diretor de Arte, webdesigner e fotógrafo. Trabalha desde 1996 com criação e desenvolvimento
de mídias on-line e off-line, com experiência profissional em agências e produtoras.

Links:
ducamendes.com.br
Flickr
Smells like teens spirit, da série “Logolife”, 2010

jhows | Jhonatas Jesus Silva (1991) | SP 28

Sonhador de nascença, publicitário de profissão, artista por insistência, fotógrafo por paixão.
Estudante de Publicidade e Propaganda na Universidade Anhembi Morumbi, fotografa há
três anos buscando criar um olhar particular do cotidiano e da realidade.

Links:
resistenciadesarmada.blogspot.com
Flickr
Spam, 2010

marco fiol | Marco Aurélio Del Fiol (1971) | SP 29

Trabalha como documentarista e aproveita as brechas de gravação para fotografar.

Links:
Flickr
_JúriHTTPpix

30
Considerações do júri
A seleção das obras premiadas pelo júri no Festival HTTPpix contempla a variedade de
formatos e linguagens da fotografia e da imagem digital presentes na internet. Criatividade
e abordagem crítica do tema desta edição – Carregue sua marca – foram os critérios
fundamentais para a escolha dos premiados entre os dez indicados. Para o júri, o conceito
de “aparecer” na imagem é mais que a presença física do fotógrafo. Acredita-se que o
fotógrafo pode e deve aparecer por meio de sua subjetividade e de sua expressão única do
olhar.

31
Bia Granja @biagranja é curadora do YouPix, entre outros projetos e ações da webesfera.
Entrevista com Bia Granja.

Eder Chiodetto foi editor de fotografia da Folha de S.Paulo, é autor de O lugar do escritor
(Prêmio Jabuti 2004) e curador do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP.
Entrevista com Eder Chiodetto.

Gil Giardelli @gilgiardelli é especialista em mídia digital e um dos coordenadores do Centro


de Inovação e Criatividade da ESPM.

Caio Reisewitz é nome referencial da fotografia artística contemporânea. Participou da


51ª Bienal de Veneza e da 26ª Bienal de São Paulo, entre outras exposições nacionais e
internacionais. Entrevista com Caio Reisewitz.

Sérgio Amadeu @samadeu é sociólogo e midiativista, professor da UFABC e autor de


Exclusão digital: a miséria na era da informação, entre outros.
Entrevista com Sergio Amadeu.

Bastidores do júri HTTPpix. 32


_Finalistas HTTPvideo

33
Blanche neige rouge, 2009, 2’39”

34
Sinopse:
Infância - espera - conto de fadas: na cidade, a espera é puro olhar sobre o movimento.
Numa esquina, uma criança com sua avó remete à Chapeuzinho Vermelho. Sob a chuva, os
signos urbanos e suas cores se transformam em um carrossel.

Ivan Claudio | Ivanildo Cezar Claudio (1956) | SP

Jornalista, roteirista de cinema e realizador de vídeos. Coautor do vídeo Ana Horta. Autor
do vídeo Faux Rapport, exibido na mostra Observatórios (Itaú Cultural, 2009).

Links:
YouTube
O desenho nas cidades, 2009, 4’10”

Sinopse: 35
Quando eu era pequeno, deitava no banco de trás, nas longas viagens de carro. Enquanto
não pegava no sono, olhava os fios de energia, serpenteando e dançando sobre mim, como
se tivessem vida própria. Decidi fazer um vídeo desta lembrança. Escolhi um dia nublado,
deitei no banco de trás e gravei o movimento dos fios. O vídeo quase se faz sozinho,
durante o deslocamento.

Rodrigo Born | Rodrigo Montandon Born (1986) | SC

Estuda Artes Visuais na Udesc. Foi finalista do Festival Conexões Tecnológicas com o
trabalho Verbum, 2010.

Links:
YouTube
F.lux, 2010, 4’46”

Sinopse: 36
Neste vídeo, a decomposição do tempo é representada pela decomposição da imagem,
num fluxo contínuo que se repete e se esgota, pois não consegue se completar.

Zilch | Karina Montenegro (1976), Muepetmo (1977), Mirella Brandi (1968) | SP


Zilch é um coletivo audiovisual formado por:
Fabio Barioni Villas Boas Torres a.k.a. Muepetmo: músico compositor e engenheiro de som
pela SAE Institute Áudio Engineering/Holanda.
Karina Montenegro: graduada em Matemática pela PUC-SP e Moda pela FAAP. É
programadora, videoartista e especialista em Cor pelo New York Fashion Institute of
Technology.
Mirella Brandi: diretora artística, artista plástica e designer de luz desde 1990. Graduou-
se em Artes Plásticas pela Faculdade de Belas Artes de São Paulo, Artes Cênicas pela
Universidade São Judas e Designer de Luz pela City Lit London.

Links:
zilch.com.br/
mtv.uol.com.br/pixelblob/blog
YouTube
_Finalistas HTTPvideo

37
Curso de colisão, 2008, 4’01”

Sinopse: 38
O ponto de partida para este vídeo foi o protesto na praça Tiananmen em 1989 na China,
principalmente a cena na qual um dos protestantes confronta um tanque de guerra. No
vídeo, transportei essa confrontação para o contexto urbano. O tanque de guerra foi
representado pelo Hummer, um veículo de batalha que na verdade foi convertido para uso
civil. O protestante é o pedestre, mas se apresenta vestido para uma disputa bíblica. O que
se segue é uma série de situações na quais o pedestre ataca o Hummer com a intenção
quixotesca de reverter uma situação de poder na qual ele representa o ponto mais fraco.

Alex Villar | Alexandre Villar (1962) | RJ


Mestre em Fine Arts pela Hunter College, estudou no Whitney Museum Independent
StudyProgram em 2000. Participou do Panorama da Arte Brasileira (MAM-SP) e de
exposições no Paço Imperial e Funarte (RJ), Museu da Cidade (Lisboa), MASS MoCa, New
Museum of Contemporary Art e Apexart (EUA), Iniva e Friedericianum (Europa).

Links:
de-tour.org
YouTube
Uma breve óptica através do copo, 2010, 57”

Sinopse: 39
Vídeo experimental sobre uma breve reflexão óptica de uma cidade.

David D’Visant | David De Visant Soares Soltoski (1976) | PR

Trabalhou como artista plástico e fotógrafo e, aos 23 anos, deu início à sua carreira no
cinema.

Links:
YouTube
Sem título, da série “Corpoabandono”, 2009, 3’07”

Sinopse: 40
Fazia um tempo que a questão do abandono - no sentido afetivo - rondava meus
pensamentos. Perguntava-me: “Se meu corpo tivesse que somatizar esse abandono, como
ele o faria? Em quais situações ele se colocaria?”. Respostas imagéticas a essas perguntas
se materializaram em vídeo e compartilham com o público as respostas poéticas que recebo
aos questionamentos que faço não só a mim mesmo, mas ao mundo.

Davi Flores | Davi de Aragão Santos (1985) | SP

Nasceu em Santo Antônio de Jesus (BA), vive e trabalha em São Paulo. É bacharel em Artes
Visuais pelo Centro Universitárias Belas Artes de São Paulo.

Links:
daviflores.com.br
YouTube
Movimento retilíneo uniforme, 2008, 1’04”

Sinopse: 41
Nesse vídeo, a câmera segue o trajeto de uma sombra projetada por um poste, fincada
no Plano Piloto da cidade de Brasília. No final da trajetória, um ciclista repousa sobre essa
sombra e a câmera continua seu movimento retilíneo, desta vez, acompanhando o formato
do poste, de forma vertical, até atingir seu topo.

Júlio Leite | Júlio Cesar Leite Imperiano (1969) | PB

Graduado em jornalismo pela UEPB, foi professor substituto do Departamento de Artes da


UFCG. Criador do projeto Galeria Cilindro, que contou com a participação de Paulo Bruscky,
Carmela Gross, Regina Silveira, Guto Lacaz entre outros. Participou de várias mostras no
Brasil e no exterior, entre elas, a X Bienal de Havana e da V Bienal do Vento sul.

Links:
YouTube
YouToRemix_Bike-C-Mapping_YouTubeMix (teste02), 2007-2010, 1’57”

Sinopse: 42
Remix interativo feito especificamente para ser “tocado” no YouTube. Apresenta samples
retirados do próprio YouTube e do vídeo Audiovisual rhetoric: bike c-mapping part#03,
propondo ao internauta que refaça seu próprio percurso. Os fluxos de uma cidade acontecem
para além de seus espaços físicos, em espaços invisíveis, em espaços informacionais.
Quais são os rastros que deixamos pelo espaço e que alimentam os bancos de dados sobre
nosso cotidiano?

MANIFESTO21.TV | Mariana Kadlec (1981) e Milena Szafir (1977) | SP


MANIFESTO21.TV nasceu em 2004 da intersecção entre high e low tech mídias a partir
de propostas artístico-conceituais. Torna-se pontoTV em 2006 com o projeto Manifeste-se
[todo mundo artista] - mobile webtvlive broadcast, realizado durante um ano. Atua na área
de cultura digital: vj’ing, webTV e telefonia móvel.

Links:
manifesto21.TV
blog.manifesto21.com.br
YouTube
Rua, 2010, 3’51”

Sinopse: 43
Cai a noite nas ruas de Parauapebas.

Marco Del Fiol | Marco Aurélio Del Fiol (1971) | SP


Marco Del Fiol trabalha com vídeo, gosta de gravar cidades e pessoas.

Links:
YouTube
maodireita.com.br
PassingBy #2, 2010, 1’40”

Sinopse: 44
Things that we see passing by. Life passing by.
Coisas que vemos ao passar. A vida passando.

Miro Soares | Almiro Soares Filho (1981) | ES

Mestre em Arte Contemporânea pela ESAG e Artes e Mídias Digitais pela Université
Paris 1, onde é doutorando em Artes e Ciências da Arte. Realizou residências nos Países
Baixos, Finlândia, Alemanha, Noruega, Eslovênia e Lituânia. Participou de exposições e
festivais em diversos países, com destaque para Centre Pompidou e Forum des Images
(Paris).

Links:
mirosoares.com
YouTube
_Júri HTTPvideo

45
Considerações do júri

Os trabalhos de Ivan Claudio, Zilch e Rodrigo Born, premiados nesta edição do HTTPvideo,
souberam tirar partido dos limites de tempo e espaço de disponibilização na tela do
computador e do celular. Exploraram de formas diversificadas as estéticas do deslocamento
propondo abordagens criativas e soluções originais para o tema do Festival (Em trânsito:
mobilidade e entropia).

46
Nelson Brissac é doutor em Filosofia pela Universidade de Sorbonne e trabalha com
questões relativas à arte e ao urbanismo. É autor de Paisagens urbanas, entre outros.
É organizador e curador de Arte/Cidade.

Ricardo van Steen é cineasta, designer e artista plástico. É fundador e diretor da Tempo
Design e integra o coletivo SX70. Foi residente da Fundação Recollets em Paris e dirigiu o
longa-metragem Noel - Poeta da Vila. Leia entrevista com Ricardo van Steen.

luiz duVa @livecinema é artista experimental no campo da videoarte, performance e novas


mídias. Desde o ano 2000, dedica-se ao liveimages. É também o idealizador e diretor artístico
da Mostra Live Cinema. Leia entrevista com luiz duVa.

Guilherme Kujawski @kuja é jornalista de tecnologia, autor de ficção científica e produtor


cultural. Atualmente, concebe e organiza eventos para o Itaú Cultural, onde também edita a
revista Cibercultura. Leia entrevista com Guilherme Kujawski.
Guilherme Kujawski faz uma reflexão sobre o festival.

Fernando Oliva atua na área de curadoria, gestão cultural e edição. É professor da FAAP,
integra a Comissão Curatorial do Videobrasil e da agência de projetos Pequeno Comitê.
47

Saiba como foi o julgamento do HTTPvideo.

[HTTP://crítica]
_HTTP://crítica

48
A internet e a nova ecologia das imagens
Ivana Bentes

A imagem pode ser pensada hoje não como a representação de algo, mas como um campo
de forças, um “complexo” que se relaciona com diferentes campos e assume diferentes
funções na arte, no teatro, na ciência, na vida social.

49

Nunca a imagem foi investida de tanto valor: valor real e simbólico – da imagem publicitária,
da imagem-capital, da imagem produzida no campo da arte, que pode atingir patamares
irracionais –, e também valor afetivo incomensurável, como de certas imagens com as
quais nos relacionamos, que têm duração e sobrevivem ao fluxo aniquilante, ao “esgoto
público das imagens” que nos atravessa.
Há uma potência nas novas imagens – a eletrônica, as digitais ou as desterritorializadas nas
redes – que ainda precisa ser pensada do ponto de vista estético e econômico, e como
modo de produção de uma nova sociabilidade pautada por relações influenciadas por elas.
Acredito que não se pode refletir sobre a produção das imagens sem colocar em pauta a
relação direta com seu “meio ambiente”, o campo da comunicação, um campo definido,
por exemplo, pela chamada mídia-arte, que é exatamente o confronto da própria arte, do
devir estético das imagens e do fazer artístico com a quantidade enorme, proliferativa e
gigantesca de imagens constantemente produzidas pelos meios de comunicação e pelos
mais diversos dispositivos que assumem outras “funções”.
É preciso entender que esse novo ambiente cognitivo é marcado por uma “über-
produtividade” midiática, da qual não é possível mais nos distanciarmos, mas, ao mesmo
tempo, é necessário um esforço “ecológico”, para não sucumbirmos ao fluxo indiferenciado
de imagens, ao tubo digestivo por onde tudo flui: as redes.
Se a imagem é uma “forma que pensa e um pensamento que forma” – segundo a bela
definição (moderna demais?) de Jean-Luc Godard (1999), em História(s) do cinema –,
que pensamentos, que energia, que temporalidades produzem esse fluxo incessante das
imagens?
A imagem pode ser entendida hoje como algo “vivo”, como energia apontando para
novas potencialidades da imagem não narrativa, não representativa, não artística. A ideia
de uma bioestética parece-me extremamente sugestiva para compreendermos essa
nova configuração, mais do que isso: uma nova “ecologia” das imagens, na qual as redes
eletrônicas têm papel decisivo.
Então, quando nos propomos a refletir sobre a “convergência das mídias” ou os processos
de criação em torno das imagens desterritorializadas, podemos pensar mais radicalmente
em um drama das imagens, uma performance/vida das imagens entendidas como “bios”,
vivas, vitais. Imagens que coevoluem conosco!

50

Por exemplo, o uso das imagens nas telas urbanas, ou as produzidas, transmitidas e
compartilhadas pelas mídias móveis, comunicadas em tempo real pelas redes. Uma
incorporação das imagens técnicas nas artes presenciais, por exemplo, o teatro e as
performances, em que a “presença”, o ao vivo, o drama performatizado no aqui-agora pode
se abrir para outras temporalidades e espacialidades, como a simultaneidade, a cartografia
em tempo real, a realidade aumentada, destituindo o “dentro” e o “fora” das redes.
Ou seja, as imagens que representavam algo ganham as qualidades do “vivo”, tornam-
se sujeitos. A imagem, que no senso comum ainda é uma representação do mundo, a
duplicação de algo, torna-se atuante, torna-se sujeito, “forma que pensa”, afeta e é afetada.
Penso no ecossistema das imagens em rede ou na rede. Imagens das centenas de
fragmentos de filmes da história do cinema de todos os tempos, da publicidade, da
televisão, dos arquivos pessoais e das corporações, e da história da arte captadas com
celulares e dispositivos digitais. Imagens e arquivos banais, descartáveis e, ao mesmo
tempo, portadores de “comunicação”, de uma potência secreta e misteriosa de expressão.
Imagens que, pelos procedimentos atuais de busca, ranqueamento, tracking, apropriação,
remix, cartografia, georreferenciamento etc., podem se constituir em comunicação interativa
entre díspares associando imagens de procedência, de tempos, de gêneros e de grandezas
diferentes.
Estamos diante de uma dimensão nova, capaz de potencializar imagens? Novo ecossitema
no qual as imagens convocadas formam um conjunto singular que reconfigura a própria
história das imagens? Fluxo intempestivo que gera novas relações, associações, analogias,
metáforas? Podemos ver apenas “imagens banais e descartáveis”, mas também uma
operação extraordinária, que libera uma nova energia, um campo de forças poderoso, a 51
possibilidade de “fissão” que produz a liberação da energia de ligação entre essas imagens.
São tantas as imagens que circulam na internet, nos fotologs, no celular, no YouTube que já não
podemos considerar a comunicação por meio das imagens como “acessória”. Produzimos
imagens e as enviamos a longa ou pequena distância, por meio delas comunicamos estados
de coisas, estados de mundo. Uma parte dos relacionamentos acontece pela troca de
imagens, do partilhar e do compartilhar de imagens.
A imagem é um valor em si. Podemos entendê-la como capital real e simbólico. O capitalismo
contemporâneo é audiovisual, trabalha a partir da inflação de imagens, de um fluxo de
imagens tão poderoso quanto o fluxo financeiro. Basta observar a publicidade, a produção
audiovisual, o cinema, a arte contemporânea e os usos cotidianos das imagens. Valores
incomensuráveis, simbólicos e afetivos circulam através das imagens.
As imagens que circulam hoje nessa rede audiovisual em fluxo são também imagens
clichê, imagens pobres. Como sair dos clichês e experimentar outras sensações, estímulos,
pensamentos?
A função estética e política das imagens é a de provocar esse deslocamento, essa perturbação
da percepção, da sensação, do pensamento. Então, nesse momento, acredito que sofremos
com as imagens-clichê, e podemos produzir e experimentar imagens potentes.
Entretanto, será necessário ainda liberar essa nova energia da imagem comum, pois são
imagens compartilhadas com uma multidão, capazes de circular velozmente por diferentes
dispositivos, mas têm vida curta, são descartáveis, vagam pelo esgoto público das imagens: 52
as redes.
Isso é fundamental: pensar uma sobrevida para as imagens, um devir, digamos, estético,
artístico-político dentro do próprio campo ampliado da cultura contemporânea. O capitalismo
atualmente é estético, trabalha com formas, afetos, design. É o mundo de imagens associado
aos produtos que vai agregar valor a ele e torná-lo desejável.
A imagem é o novo capital: capital real/simbólico, potência estética e disruptiva, força de
resistência e criação. Então, acredito nas imagens, e essa crença tem a ver com suas
diferentes funções, inclusive com essa relação cotidiana que provoca a dessacralização das
imagens, das quais cada um de nós pode ser o criador; uma imagem especial, capaz de se
associar a outras e gerar novas imagens.
Pensar a “convergência das mídias” vai muito além da convergência tecnológica, da
fusão dos dispositivos, da potencialização e da mutação das mídias clássicas pelas mídias
móveis e locativas. Trata-se de pensar uma espécie de teoria “revolutiva” das imagens, um
campo das imagens hiperdimensionado, em que podemos também nos perguntar sobre
as diferentes experiências com o tempo, a “performação”, a experiência de copresença e
simultaneidade.
É preciso estar atento, nesse contexto que estamos analisando, para as “dramaturgias”
do tempo real – apontadas pelos reallity shows televisivos e performances em rede que
surgem entre a encenação e o acontecimento, como experiência diferencial de tempo e
espaço – mas também é importante analisar o impacto “revolutivo” dos dispositivos de
territorialização e desterritorialização, como as experiências do Google Earth, Google Street
View, Google Maps, que estão criando uma nova cartografia visual sobre os territórios. 53
Trata-se de uma capa de informação, dados e imagens que cobrem todo o planeta. Uma
nova “pele” da cultura. Nova “natureza”.
Os dispositivos de criação de copresença e correalidades – estou aqui e lá – propiciados
pelas webcams, GPS e dispositivos de telepresença e rastreamento, abrem um campo
vastíssimo para estéticas e dramaturgias on-line, ou melhor, cenas e situações virtuais,
ambientes de copresença que provocam distúrbios perceptivos e outras experiências de
continuum espaçotemporal.
Os “ambientes” são amplificados para se conectarem a espaços vivos produzidos pela
telepresença, numa “ficcionalização” do presente e do espaço que produz o tempo real
da cena e da experiência compartilhada. Quais as qualidades desse “tempo real”? Tempo
produtor de experiências e imagens fluidas, que estão sempre passando, abertas ao acaso
e ao acontecimento, mas que são também passíveis de controle e monitoramento?
Temos hoje uma percepção exacerbada da experiência da simultaneidade: a possibilidade
técnica da experiência de um continuum espaçotemporal, por blocos de espaço e tempo,
que duplicam o aqui e o agora, e o “complicam”.
Estou aqui nesse quarto, mas posso me conectar, consumir e me instalar com certa
facilidade em outros ambientes. A câmera de vigilância e a webcam, os dispositivos GPS
e os mapas dinâmicos são formas mais simples de experimentar isso, o consumo de
ambientes simultâneos através de câmeras e canais abertos com um “fora”, não mais
como simples janelas, e sim como espaços de visualização e ação nesse mundo ampliado,
em um presente dilatado.
Estamos começando timidamente a explorar esse presente dilatado. É uma tentativa de criar
dispositivos, “narrativas” que explorem e enfrentem os limites dessa operação perceptiva
que é acompanhar vários canais, várias histórias, vários fluxos e fragmentos simultâneos, e
perceber o tempo dilatado, bifurcado, expandido ou se contraindo e convergindo para um
só ponto, experiências possíveis através das webcams, do Skype, celular, GPS, das janelas
de simultaneidade de “presentes”.
É a simultaneidade entre presente, passado e futuro, ou os “posicionamentos globais”, que
torna complexa a nossa percepção do tempo e do espaço e a reinventa. E se o tempo e o
espaço estão sendo reinventados é porque eu o experiencio e a vida inteira está implicada
nessas mudanças.

54

Quando falamos de um novo “bios” das imagens, não podemos nos esquecer das
tecnologias do “afeto”. Se os dispositivos audiovisuais são moduladores de tempo e de
espaço, também são “tecnologias do afeto”, de produção de contato e aquecimento das
relações pessoais e sociais, e de produção de coletivo.
As plataformas, as tecnologias de comunicação e a produção de redes e mediação social,
além dos dispositivos (blog, fotologs, videologs, Orkut, Multiply, Friendster, Facebook,
YouTube, Twitter e tantos outros), não param de se proliferar. Programas de sociabilidade
exponenciais. Dispositivos que configuram, classificam e modificam as formas de
relacionamento. Dispositivos de organização espacial, temporal e mental que trazem
potencialidades estéticas, sociais, políticas e de organização e controle.

55

O capitalismo imaterial tem captadores instalados em todo o corpo social, corpo vivo que
monitora por meio da vigilância a céu aberto, do rastreamento dos hábitos de consumo, das
senhas, dos códigos de barras, dos rastros deixados na internet, nos celulares etc. Entretanto,
os mesmos dispositivos de controle são dispositivos que colocam os consumidores em
contato, criam redes e, mais do que isso, organizam os consumidores e os transformam
em interatores e “performadores”. De controle e consumo, os dipositivos midiáticos
podem passar a ferramentas de resistência, organização e mobilização, num corpo social
que reage, interage e produz, estimulado e excitado pelo próprio biopoder, mas capaz de
criar biopolíticas. Esse “bios” político das imagens, ou bioestéticas – quando a vida das
imagens e as imagens-vidas se tornam a carne, o cerne dos processos de produção, criação
e comunicação – aponta para a necessidade de mutação na própria teoria das imagens.
De Freud ao pixel, as revoluções da fotografia são
Eder Chiodetto

Toda e qualquer fotografia já foi contemporânea no momento em que foi realizada, assim
como toda tecnologia foi nova um dia. Dessa forma, é muito instigante revisitar o “antigo
contemporâneo” e as “velhas novas tecnologias” para perceber que esses avanços na
sociedade se dão passo a passo. O que hoje parece ter sido inventado num passe de
mágica, na verdade é a decorrência de tudo o que formatou o desejo e o pensamento
humano até hoje.

56

Desde os primórdios de sua invenção, em 1839, a fotografia sempre esteve às voltas com
as revoluções causadas pela mudança de suportes, pela intriga entre ser testemunha do
real e uma livre interpretação dele. A verdade é que a fotografia, como linguagem, não tem,
em sua perspectiva histórica, um momento sequer de sossego.
É exatamente essa porosidade, essa incapacidade de enquadrar sua função na sociedade
que faz com que a fotografia seja uma das linguagens mais vivas, mutantes e sedutoras há
171 anos.
Nos primeiros anos, a invenção desse processo mágico, que podia estancar o tempo com grau
de realismo jamais visto, levou muitos pintores que faziam retratos à falência, obrigando-os
a adotar a câmera fotográfica como ferramenta. Fato que tirou deles o estatuto de artistas.
Afinal, agora uma máquina se interpunha entre eles e o mundo, diziam os positivistas da
época. Além disso, a imagem que saía da câmera poderia ser copiada infinitas vezes. E uma
obra de arte deveria ser única.
Para a população, essa discussão não fazia sentido. Todos queriam ser retratados pela nova
e intrigante invenção. A possibilidade de ter a própria imagem e semelhança eternizada para
o todo e sempre virou febre. A mesma febre que perdura hoje quando jovens na balada se
autofotografam incessantemente com seus celulares para abastecer seus blogs e perfis
nas redes sociais.

Maquiagem do real
Foi justamente o retrato que levou o fotógrafo (ou o artista) a dar mais um passo fundamental
e irreversível: a tentação de manipular seu conteúdo. Se por um lado obter seu retrato por
meio da fotografia era algo muito mais moderno do que ficar horas posando para um pintor,
o fato é que as fotografias, que ainda exigiam a imobilidade do modelo por longos minutos,
findava por revelar todos os defeitos que a pintura sorrateiramente ocultava.

Na Exposição Universal de Paris, em 1855, o alemão Hampfstangl aplacaria essa angústia da


humanidade inventando o retoque na cópia fotográfica. Seu invento criou alvoroço quando
ele exibiu, lado a lado, o mesmo retrato sem retoques e sua versão manipulada por meio
da mistura de tintas branca e preta que oferecia toda a gama da cor cinza necessária. Sim,
Hampfstangl pode ser chamado hoje de pai do Photoshop...
Curioso perceber que, apenas 16 anos após sua invenção, a fotografia precisou inventar 57
uma estratégia para maquiar a realidade, nem sempre bem-vinda, que ela teima em revelar
sem nuances. Fotografia e manipulação nunca estiveram dissociadas na história.
Os ex-pintores, por sua vez, estavam ainda às voltas com o problema de não serem
mais reconhecidos como artistas. Muitos começaram, então, a lançar mão de diversas
estratégias de intervenção física e química sobre suas imagens para obter obras únicas e
que escapassem do realismo. Surgiu assim o pictorialismo na virada dos séculos XIX e XX.
No entreguerras, as vanguardas europeias se rebelaram com esse tipo de fotografia que, no
limite, estava calcada nos preceitos da pintura acadêmica. “A fotografia só será autônoma
quando encontrar sua própria gênese”, bradavam dadaístas e surrealistas.
Eis que a fotografia, pelas mãos, imaginação e olhos de artistas como Man Ray e Lázló Moholy-
Nagy, experimentou uma vertiginosa viagem para dentro de si mesma, transformando-se
assim numa potente maneira de investigar os desvãos do inconsciente, dos desejos e
contradições que abalam desde sempre o homem social em conflito com o ser instintivo.
Ponto para Sigmund Freud, que pautou essa investida a partir da qual a fotografia jamais
voltaria à ingenuidade de seus primórdios. Sim, Freud também é uma espécie de pai da
fotografia “contemporânea”.
Visão extra-humana
Avançando no tempo, em meados de 1930, a câmera Leica é introduzida no mercado.
Adaptando o filme então criado para o cinema, o engenheiro óptico alemão Oskar Barnack
foi responsável por uma das maiores revoluções do meio: uma câmera que abdicava de
tripé, era leve o suficiente para ser carregada num bolso, prescindia do flash a maior parte
do tempo e podia fazer até 36 fotografias sem precisar trocar o filme! Além disso, tornou
possível, em virtude da sensibilidade do filme, cenas em flagrante e o congelamento do
movimento!

58

É por essa época que fotógrafos como Henri Cartier-Bresson começam a fotografar e a
perceber, nas palavras deste, que a vida observada nas ruas pelo visor da Leica “era como
uma dança”. Congelar cenas em movimento consistia em revelar um mundo tal qual o
próprio olho humano não era capaz de perceber.
O homem havia inventado, enfim, um equipamento capaz de enxergar mais que ele próprio.
“Isto sim é surreal”, comentava um animado Cartier-Bresson, enquanto ajudava a criar e
perpetuar a “street photography” que o imortalizou.
Pouco mais de uma década depois, outro salto tecnológico: chegaram ao mercado os filmes
coloridos que, no início, traduziam as cores do mundo de modo bastante errático. A mimese
com o real chegaria em pouco tempo ao seu ponto máximo, causando ainda mais confusão
entre signo e representação. “Isto não é um cachimbo”, nos alertaria o preciso e atento
René Magritte.
A partir dos anos 1960, teóricos da comunicação começam a desconfiar da fotografia como
linguagem capaz de testemunhar o espaço-tempo de maneira fidedigna. O espelho do real
passa a apresentar suas trincas e os artistas a perceber, nesses paradoxos da linguagem, a
possibilidade de explorar o filão entre realidade e ficção.
Os fotojornalistas, por sua vez, sem poderem abdicar da ideia da fotografia como documento
comprobatório dos fatos, refugiam-se nas trincheiras de uma racionalidade que vai se
mostrando cada vez mais vulnerável.
Depois da metade da década de 1990, com a chegada das câmeras digitais e da internet,
essas barreiras de contenção do realismo, que já estavam com diversas fissuras, solapam
de vez.

A ficcionalização da fotografia
A massificação em escala global da fotografia, que teve seu custo diminuído drasticamente
a partir do momento em que filme e cópia em papel não eram mais necessários, levou a
linguagem a se reconfigurar por completo.
Ao descarregar suas imagens em seus computadores caseiros, os amadores começaram
a perceber quão simples era intervir de diversas formas no registro fotográfico, criando
ficções, falsas verdades, mentiras, invenções – cada um se apropria da classificação que
melhor lhe convém – etc.
Só então as teorias que apontavam para esse processo natural de “ficcionalização” da 59
fotografia foram, enfim, assimiladas pelos profissionais, ainda que áreas como o jornalismo
resistam da maneira como podem.
A verdade é que, a partir desses novos estatutos, a fotografia voltou a ter um grau de
experimentalismo que historicamente só foi observado no início do século passado, durante
o entreguerras.
Justamente quando muitos apontaram para o fim da fotografia em virtude da perda do
negativo, da facilidade em manipular seu conteúdo, da massificação e da inflação de sua
circulação na internet, ela se mostra ainda mais vigorosa, passando a dominar há duas
décadas as principais mostras de arte pelo mundo.
Mesmo no fotodocumentarismo, a fotografia se reinventou libertando profissionais – de
vanguarda, claro – para construírem a leitura do visível, pautados mais pela subjetividade
que pela ideia generalizante e vazia de um real único a ser abordado e representado.
No Brasil, podemos perceber essa linhagem em trabalhos do coletivo Cia de Foto e de
artistas como Breno Rotatori, Sofia Borges, Fabio Messias e João Castilho, entre outros,
que souberam incorporar e dar nova dinâmica aos trabalhos de artistas como Miguel Rio
Branco, Mario Cravo Neto e Claudia Andujar, por exemplo, fundamentais para se perceber 60
a linha evolutiva da fotografia por aqui.
As múltiplas possibilidades oferecidas por essa nova semântica que cerca a fotografia
contemporânea a têm levado a lugares nunca antes imaginados. Para citar um exemplo
emblemático, podemos nos deter em apenas uma série, das mais inquietantes, realizada
pelo casal de artistas Leandro Lima e Gisela Motta, representados pela Galeria Vermelho,
em São Paulo.
Na série “Dê forma”, eles convidam um casal que gostaria de ter um filho. Esse casal deve
ter grande afinidade e a impossibilidade de ter um filho real. Podem ser amigos, casais
gays, estéreis ou em idade que não permite mais a fecundação. Eles realizam, então, um
retrato de cada um dos futuros “pais”.
De posse dos dois retratos, o casal de artistas trata a imagem em várias etapas que levam 61
ao rejuvenescimento de ambos, seguido por uma fusão das feições, num processo que
une fotografia, pintura, conhecimento de anatomia etc. No final do processo, é gerado um
retrato. Um filho adolescente com feições semelhantes às dos pais. Uma única cópia é
dada para o casal, que passa a ostentar o retrato de seu filho junto com os outros porta-
retratos da família. Que fotografia é essa? Quem é esse sujeito que surge da somatória
dos pixels que formam a imagem de seus pais? A fotografia não foi, afinal, inventada para
registrar o que existe? Não, a fotografia foi inventada para ser reinventada sempre. Quanto
mais caem os dogmas que a cercam, mais intensamente ela representará as fissuras, os
desejos, a inconsistência, os temores e a poética que cercam a vida.
Marcas e mundos virtuais
Abel Reis

Houve um tempo em que marcas publicitárias eram apenas nomes e rótulos, um recurso
conveniente para que consumidores pudessem distinguir o produto “A” do produto “B”.
Nesta condição, marcas atuavam como índices de características técnicas, de procedência
e de qualidade, porto seguro num mercado competitivo e inseguro.
No entanto, o mundo mudou, o capitalismo mudou, o consumo cresceu espetacularmente
e as mercadorias, ainda que submetidas às constantes renovações tecnológicas, sofrem da
permanente ameaça de “comoditização”. Por comoditização compreende-se a dificuldade
de diferenciar produtos, tanto técnica quanto funcionalmente, e mesmo esteticamente, aos
olhos do consumidor.
Dos automóveis às pastas de dentes, dos alimentos aos medicamentos, todos “os gatos
parecem destinados a ficar pardos”. Neste contexto, a guerra econômica por mercados
tende a comprimir preços e reduzir margens de lucro. Nomes, rótulos e políticas de preço
62
ou de distribuição já não parecem armas suficientes ou adequadas.
De outro lado, os formatos tradicionais de comunicação publicitária entraram em crise. A
propaganda de massa para audiências anônimas passa a ter sua eficiência questionada;
relacionamento, segmentação e personalização são os conceitos-chave do novo repertório
da comunicação publicitária. Ponto da ruptura: a subjetividade torna-se o novo campo de
batalhas. As guerras econômicas tornaram-se guerras estéticas, guerras pela “colonização”
dos modos de percepção. Trata-se assim de formar e disseminar valores que norteiem
opções e ações dos consumidores.
As marcas assumem aqui outro papel, o papel de fabricar sensibilidades; vale dizer, de
difundir conhecimento, enfatizar valores éticos, propor crenças e instilar desejos. Desse
modo, marcas já não são apenas referências de confiança, elas passaram a ter a missão de
construir a atmosfera ideológica e cultural propícia ao consumo. E logo, ao fazê-lo, forjam as
próprias condições de possibilidade da produção econômica.
Marcas configuram-se, portanto, como máquinas abstratas, orientadas eficazmente para
a produção de significação de enunciados imperativos, de signos capazes de mobilizar e
capturar a atenção, a afeição e a memória dos consumidores. Pode-se então dizer que, nesse
novo espaço das guerras estéticas, marcas vencedoras serão aquelas que efetivamente
construírem “mundos”, mundos de enunciações – símbolos, atitudes, gestos, palavras e
omissões que façam, do ato individual de consumir, um ato de pertencer. 63

Tem dúvida? Então lembremos slogans, novos ou nem tanto, que repousam em nossa
memória e que, como tal, expressam juízos, interesses e comportamentos que adotamos
e cultivamos: “Just do it”, “Think different”, “Write the future”, “Open happiness”.
As guerras estéticas
Na economia de mercado das guerras estéticas, novas armas e táticas são necessárias.
Mas quais serão esses novos recursos? Como propiciar aos consumidores um renovado
sentimento de pertencer? Como capturar sua fragmentada atenção? Como sobressair-se
na saturação de signos e superar um inevitável ceticismo? Como transmitir autenticidade na
forma de experiências consistentes, engajadoras, fluentes e memoráveis? Muitas perguntas,
poucas respostas definitivas, várias tentativas. Não são fáceis para os estrategistas de
marcas esses dias em que vivemos.
Não obstante, cabe-nos aqui endereçar um questionamento anterior: se vivemos em meio
às guerras estéticas pela subjetividade dos consumidores, o que então caracteriza essa
mesma subjetividade? Que fio tece esse mundo interno que nos torna predispostos a
sermos agenciados pela comunicação das marcas? Quais são as condições que possibilitam
a produção e a reprodução dessa subjetividade?
Nesse sentido, não encaramos a subjetividade como uma “dimensão psicológica”, a
esfera do que é próprio, único em cada indivíduo; queremos focar nas práticas culturais
historicamente determinadas, no interior das quais e pelas quais indivíduos se constituem
em agentes consumidores nas economias de mercado. Chegamos assim ao conceito de
vida ficcional.
64
A vida ficcional
Vivemos vidas cada vez mais “ficcionalizadas”. E são muitos os sintomas: o cuidado
narcísico de si; o corpo físico como território livre para interferências e intervenções médicas
e estéticas; a firme recusa da angústia; a busca por oportunidades de reafirmar e estender
nossa identidade e marca próprias; a tribalização das relações sociais como resposta
ao esgarçamento dos laços familiares e de consanguinidade; a obsessão pela fama ou
ainda a fúria confessional dos blogs e das redes sociais, da qual o “like”, do Facebook, ou
“what’s happening”, do Twitter, são sintomas. Resumo: estamos à procura de cosméticos
e fármacos para o corpo e a alma.
Ao mesmo tempo, apreciamos narrativas sobre origens, fantasias sobre tempos remotos,
tramas misteriosas. Os híbridos de ficção/sonho e realidade nos encantam. Estamos em
busca de projeções físico-simbólicas aperfeiçoadas. De certa forma, estamos em busca
de nosso avatar. E é sintomático que seja este o título de uma das mais espetaculares
obras do cinema hollywoodiano, como também o termo que designa os participantes de
alguns ambientes e comunidades virtuais on-line: ao fim e ao cabo, perseguimos algo que
transcenda a imanência do cotidiano, novas camadas de sonho (como no filme A origem, de
Christopher Nolan) que abram novos espaços narrativos – novas vidas possíveis.
Nesse sentido, redes sociais e mundos virtuais on-line – dos videogames ao Second Life,
passando pelo Simcity, Farmville e muitos outros – são autênticos palcos para a vida
ficcionalizada, plataformas para o exercício da subjetividade contemporânea. São vastos
territórios icônicos, máquinas abstratas oferecendo uma miríade de imagens, diagramas 65
e metáforas que produzem experiências desmaterializadas, porém únicas, imersivas,
cativantes da memória e da atenção dos consumidores.
Mundos virtuais oferecem uma “física”, uma “metafísica”, uma estética e um socius
próprios que ensejam percursos, aventuras e narrativas para seus habitantes ou players.
Essas ricas experiências singulares constituem um locus extremo de (re)produção da
subjetividade do consumo.
A intensidade icônica presente nesses territórios torna a vida virtual uma projeção ficcional
da vida real, on-line e no tempo do relógio real. Se a vida real insiste porque a ela estamos
atados biologicamente, a vida virtual seduz, pois nela agimos como atores e diretores de
labirínticas narrativas de vida. Essa energia criativa é produtora de uma subjetividade amena
à dinâmica de obsolescência contínua do mercado capitalista. O cinema e a publicidade já
descobriram isso. Proteja seus sonhos.
Para além da lonelygirl15: o triunfo da estética amadora
Raquel Rennó

O trabalho de um fotógrafo amador é frequentemente associado à dependência técnica, isto


é, uma imagem que não sai do modo planejado seria, pelo ponto de vista do amador, culpa
da máquina, assim como um equipamento profissional ou tecnologicamente sofisticado
seria a garantia de imagens de boa qualidade.
Outra das características relacionadas ao fotógrafo amador seria a busca da “representação
fiel” da realidade experimentada. O fotógrafo profissional, por outro lado, dominaria e
reconstruiria a realidade, deixaria clara sua ideia e visão do objeto fotografado.
Se por um lado estas afirmações podem ser contestadas (muitos fotógrafos jornalísticos
defendem uma abordagem neutra da realidade, enquanto muitos fotógrafos amadores são
grandes conhecedores dos conceitos, técnicas e equipamentos fotográficos profissionais),
não podemos ignorar que, nos últimos anos, sites de hospedagem, como o Flickr, ao
permitirem visualizar a enorme produção de fotógrafos amadores e profissionais (no
sentido estrito do termo que separa os que vivem da fotografia e os que não vivem dela),
possibilitaram repensar as diferenças citadas anteriormente entre a estética da fotografia 66
amadora e a da profissional.
Por outro lado, sites de compartilhamento de vídeo, como o YouTube, ao receberem
milhares de visitas a vídeos caseiros, inauguraram o que, em parte, poderia ser chamado de
linguagem, que vem sendo explorada pela publicidade. Daí decorre o uso de uma estética
amadora, mesmo na produção de imagens profissionais, como estratégia de aproximação
a um tipo de “realismo”.
A câmera que se move, a iluminação dura, as sombras mal trabalhadas, os cortes e as
transições desconectados, entre outros elementos, seriam paradoxalmente um modo de
trazer o real para a imagem.
Um dos exemplos mais conhecidos ocorreu em 2006. Uma jovem de 16 anos, chamada
Bree, publica seu primeiro vídeo no YouTube com o nome de Lonelygirl15. Trata-se do
monólogo de uma adolescente que se dirige ao mundo através de sua webcam e fala sobre
sua vida, blogueiros do YouTube etc.
Mais tarde, descobriu-se que Lonelygirl15 era uma obra de ficção criada por Ramesh
Flinders, roteirista e diretor de cinema, e Miles Beckett, cineasta. A ideia dos autores era
inventar uma história que se desenvolvesse no tempo e que fosse interativa, quer dizer,
os “capítulos” iam sendo contados com base nos comentários dos visitantes no YouTube,
além dos conteúdos paralelos criados pelos fãs.
67
É como se todo o aparato metodológico do fotógrafo e videasta profissional, levado ao
extremo com o advento de softwares como o Photoshop ou After Effects, por exemplo,
fosse gerador de pura ficção e a estética amadora representasse a possibilidade da volta às
origens.
De modo geral, a influência da estética publicitária na produção de imagens midiáticas criou
um ambiente tão limpo e superproduzido que as imagens já perdiam sua relação com o
referente e se transformavam em abstração total.
Durante certa época, muitos projetos de videoarte buscavam estabelecer um contraponto
a isso fazendo uso de câmeras mal posicionadas, imagens que se moviam, cenas mal
iluminadas, como um modo de estar do lado oposto das imagens perfeitas da publicidade.
No entanto, as novas possibilidades de registro, criação, edição e tratamento digital da
imagem levam a outro impasse. No momento em que a própria publicidade se apropria
da estética amadora, já não há espaço para um formato que, em si, seja anticomercial ou
publicitário. Dessa forma, a produção amadora distribuída na internet interfere não somente
nos produtos do mercado de entretenimento, como também na arte.
Curto-circuito entre profissionais e amadores
Talvez isso explique, em parte, declarações como a de Keen (2009, p. 8-14), em seu livro
O culto do amador, em que, utilizando o “teorema do macaco” (“Se fornecermos, a um
número infinito de macacos, um número infinito de máquinas de escrever, alguns macacos,
em algum lugar, vão acabar criando uma obra-prima”), ele declara que “no atual culto do
amador, os macacos é que dirigem o espetáculo”.

68

Esta declaração exemplifica o incômodo que causa a invasão da estética amadora no âmbito
“profissional”. Como menciona Bentes: “As imagens de vídeos amadores, as fotos em
sites na internet, os relatos em blogs, as imagens de web câmeras e câmeras de vigilância
alimentam cada vez mais a produção broadcasting, comercial e os circuitos de arte, num
curto-circuito entre o profissional e o amador, entre artistas e não artistas”.
Booth comenta que a própria dicotomia entre consumidor e produtor revela uma metáfora,
em sua opinião, mais adequada à gastronomia que à produção de imagens, em que falamos
dos meios como se falássemos de comida, o que invariavelmente traz uma visão negativa
da audiência: “Se as empresas midiáticas produzem e o público consome, logo o que os fãs
criam por meio da reescritura e o remix é lixo (para não dizer algo pior)”.
Essa visão, ainda muito presente entre teóricos e críticos dos meios, ignora que, além do
fator lúdico, do tom de paródia que vemos em muitos dos vídeos e fotos presentes no
YouTube ou Flickr, tem como base uma interpretação crítica da produção mídiática em geral,
além de indicar a familiaridade com os meios digitais que ainda representam um mistério
para muitos profissionais.
Assim, vídeos como Cala boca, Galvão alcançam uma repercussão internacional ao combinar,
de modo extremamente hábil, o uso de ferramentas, como Twitter, e a difusão, em blogs e
YouTube, gerando convites profissionais ao seu autor, Fernando Motolese.
Howe acredita que esse exemplo é parte de uma tendência crescente e que “o futuro
da indústria do entretenimento será encarregado, pelo menos em parte, aos usuários”
(HOWE, 2009, p. 75-76).
A estética amadora oferece uma elaboração da mensagem “de baixo para cima”, na qual
o espectador que gerou um material que ascende à categoria de conteúdo midiático nos
sugere que todos nós também podemos fazer o mesmo.
O filme de Michel Gondry, Be kind, rewind (2008), trata desse tema ao contar a história de
dois funcionários de uma videolocadora que, ao apagarem acidentalmente as fitas da loja,
tentam solucionar o problema gravando versões próprias dos filmes.
Essas versões caseiras acabam gerando mais clientes que nunca à videolocadora e se
transformam em homenagem à criação coletiva. O diretor apresentou na galeria Deitch
Projects, de Nova Iorque, uma exposição com trechos e materiais relacionados ao filme,
além de mostrar versões de filmes criadas pelos usuários no extinto site Be Kind Movie e
no canal do filme no YouTube.
Ao contrário dos criadores de Lonelygirl15, a intenção de Gondry nunca foi emular os vídeos
do YouTube nem entrar no mundo dos conteúdos gerados pelos usuários, e sim evocar 69
a capacidade criativa sem amarras, substituindo a limitação dos meios disponíveis pela
imaginação. Como ele mesmo menciona no texto da exposição da galeria Deitch: “Minha
intenção é demonstrar que as pessoas podem se divertir sem ser parte de um sistema
comercial e estar ao seu serviço”.
Talvez não seja o caso de buscar alternativas ao sistema comercial, que é um elemento
fundamental nesse novo sistema de produção (ainda que as relações entre mercado e
público, na utilização dos conteúdos, seja motivo de ferrenhas discussões e processos
judiciais), e sim de repensar uma estrutura que já deu e continuará dando várias mostras de
que vem mudando e evoluindo.
70
Em última instância, o que vem sendo produzido atualmente pelos chamados amadores
nos permite observar mais facilmente um cenário extremamente diverso, no qual
dicotomias como profissional versus amador e consumidor versus produtor já não são
suficientes para compreendê-lo.

Referências
BENTES, Ivana. Midia-Arte ou as estéticas da comunicação e seus modelos teóricos. In:
FATORELLI, Antonio; BRUNO, Fernanda (Org.). Limiares da imagem: tecnologia e estética
na cultura contemporânea. Rio de Janeiro: Mauad X, 2006. p. 91-108.
HOWE, Jeff. Crowdsourcing. Why the power of the crowd is driving the future of
business. Nova York: Crown Business, 2009.
JENKINS, Henry. ARGS, Fandom, and the Digi-Gratis Economy: An interview with Paul
Booth (Part One). Disponível em <http://henryjenkins.org/2010/08/args_fandom_and_the_
digi-grati.html>
KEEN, Andrew. O culto do amador. São Paulo: Zahar, 2009.
Nas tramas do vídeo on-line
Eduardo de Jesus

Desde os anos 1960, quando surgiu a primeira câmera portátil, o vídeo mostrou-se
um dispositivo de difícil apreensão e definição conceitual. Podemos perceber isso pela
diversidade de propostas em torno do vídeo e também pelas diversas reflexões teóricas
que, ao longo dos últimos anos, tentaram defini-lo: estética do narcisismo (Rosalind Krauss),
passagem (Raymond Bellour), ruído (Fargier), retórica da metamorfose (Arlindo Machado),
estado (Philippe Dubois), entre outras.
Os esforços teóricos – todos pertinentes, cada um em seu tempo – de certa maneira
desenharam uma espécie de história dos modos de ser do vídeo durante os últimos anos.
Isso parece demonstrar a intensa vitalidade desse tipo de imagem técnica em dialogar
com outras manifestações artísticas e explicita ainda a própria situação instável e aberta
da produção artística contemporânea que desafia os usos dos suportes, as formas de
exposição, as conexões com o entorno e a multiplicidade de apropriações e subversões.
Se até os anos 1990 o vídeo ainda ocupava um lugar mais periférico no circuito tradicional
da arte, hoje ele é quase onipresente. Mudanças substanciais no circuito da imagem em
movimento, em diversos níveis e intensidades, ocorreram desde os primeiros experimentos 71
de Nam June Paik e Wolf Vostell, nos anos 1960.

As inovações no modo de construção das imagens reverberaram em outras formas imagéticas


trazendo reformulações de toda ordem nos contextos audiovisuais, que influenciaram desde
o grande cinema narrativo até o videoclipe e a publicidade. Procedimentos e elaborações
estéticas, típicos das articulações da imagem eletrônica, vêm sendo incorporados por outras
manifestações e banalizados, ao longo do tempo, em razão de suas inúmeras repetições.
Tudo muito rápido e operado em um sistema tecnológico que, cada vez mais, torna fáceis
as técnicas de gravação, edição e difusão da imagem em movimento, como podemos ver
agora com os celulares ligados facilmente em rede.
Além disso, as plataformas de visualização e armazenagem de vídeo on-line, como o YouTube
e o Vimeo, tornaram corriqueira e cotidiana a circulação de imagens em movimento. Nesse
circuito: compartilhar, comentar e curtir1 são formas de criar outras circulações que vêm
alterando progressivamente tanto os sistemas de comunicação quanto as nossas formas
de experimentar essas imagens que circulam incessantemente.
Certamente o modo de operação do atual circuito midiático não revela total liberdade e,
nem tampouco a ausência de mediações sociais legitimadoras – deslocadas de instituições
e centradas no sujeito – como os mais otimistas acreditaram no início dos anos 1990. Havia
uma esperança e um desejo, talvez ainda moderno, de substituir e colocar imediatamente os
atuais dispositivos tecnológicos em uma situação que, de maneira espetacular, explicitasse
o novo. Tudo seria substituído. Frases de efeito propagandeavam: “do mimeógrafo para o
mundo”, tentando alardear o inédito alcance de um sistema de atuação global, liberando a
emissão e prometendo uma comunicação absolutamente transparente, sem mediações. 72
Ao contrário, os dispositivos e seus recentes universos de conexão, aproximação,
filtragem, controle e afastamento se entranharam na paisagem midiática existente gerando
continuidade e ruptura em relação aos sistemas vigentes. Surgem processos de acoplagem
entre os sistemas de comunicação de massa já estabelecidos, com seus desdobramentos
na rede, e o ambiente digital, com suas formas de comunicação distributiva e coletiva. Dos
blogs de jornalistas hospedados para dar continuidade e ampliar o jornal impresso até o
envio de vídeos para os programas de ampla audiência, tudo mostra formas de visibilidade
que estabelecem outros processos de subjetivação e interação.
A novidade talvez esteja justamente na acoplagem entre esses sistemas de comunicação,
trazendo tensões, desgastes e algumas formas de descontrole que acabam por configurar
outra paisagem midiática. Uma configuração que promove maneiras inéditas de
agenciamento em uma multiplicidade de mediações que oscilam entre controle e potência.
Tudo isso pilhado pela atual forma do capitalismo que opera justamente no campo
da subjetividade, no domínio da chamada biopolítica. Por isso, temos essas formas
despretensiosas que permitem apropriações criativas do meio (que muitas vezes também
acabam se referindo ao sistema massivo) e também as diversas formas de aproximação e
cooptação entre o sistema massivo e esses mais emergentes.

1 No Facebook, esses são os tags permitidos para interagir com os vídeos das plataformas compartilhadas nos perfis e redes de

amigos
Se notarmos essas mudanças nos sistemas de comunicação, também é possível perceber
um deslocamento e alargamento dos modos de ver. Não se trata mais de assistirmos a
um vídeo, e sim de entrarmos em contato com um complexo sistema de enunciados,
organizados em uma interface que agencia nossos modos de ver. Inevitavelmente, junto com
o vídeo, vemos também comentários, número de acessos e algumas outras informações.

73

Além disso, há um aparato interativo que pode ajudar nas escolhas e formas de busca. Os
tags tanto sinalizam e facilitam a busca quanto confundem sugerindo conteúdos inexistentes,
mas muito atrativos, para as buscas mais populares, o que faz alguns vídeos serem acessados
“sem querer”. É uma espécie de jogo de situações entre audiência e interatividade que
tende para um quase descontrole desses modos de indexação. Incrustrados na interface e
prontos para serem compartilhados, esses vídeos apontam para outras formas de percepção
que experienciamos agora, ampliando os modos e circuitos de exibição.
Nesse contexto, experimentamos as imagens por meio de outra lógica espaçotemporal.
Não estamos filiados a um fluxo informacional, como se estivéssemos assistindo a uma
transmissão televisiva.
As maneiras de usar a interface e as informações que obtemos na interação ampliam e
reconfiguram as relações espaçotemporais que atravessam as imagens em movimento
disponíveis on-line. Além disso, a possibilidade de enviar, compartilhar e comentar o vídeo
indica outra forma de duração do fluxo audiovisual que, em temporalidades próprias, aciona
o conteúdo a ser visto pelo receptor.
No sistema massivo, percebemos, como afirma Weissberg, que “no plano temporal – e
não semiótico ou afetivo –, a recepção acompanha o escoamento linear da informação”
(WEISSBERG, 2004).
Primeiramente, podemos pensar que o uso da rede envolve uma temporalidade ucrônica,
como defende Couchot (2007):

O tempo u-crônico é o homólogo do espaço virtual no qual está mergulhado o operador, o espaço
u-tópico – este espaço sintetizado matematicamente, que não pertence a nenhum lugar próprio,
que se estende em todas as dimensões, que obedece a todas as leis possíveis de associação, de
deslocamento, de translação, de projeção e que pode simular todas as toplogias possíveis.

74

Essa temporalidade definida por Couchot aponta para duas questões centrais, para
analisarmos em que medida a rede solicita outras relações espaçotemporais. Inicialmente,
podemos perceber que esses canais de acesso são abertos ao tempo presente e incorporam,
a cada momento, um grande número de vídeos postados na urgência do tempo presente,
do agora. Podemos escolher ao que assistir baseados nesse parâmetro temporal: os vídeos
publicados mais recentemente. O jogo do tempo começa associando aquilo que vem
sendo acumulado diariamente, ao longo do tempo, e o que acabou de ser publicado. Uma
temporalidade, como afirma Couchot (2007), “caracterizada tecnicamente pelo tempo real
que permite ao computador responder quase que instantaneamente aos gestos e comandos
do operador”.
No entanto, não há filiação a um fluxo, já que existem inúmeras maneiras desses vídeos
entrarem na trama midiática atual. Eles solicitam outros modos de explorar o tempo em
regimes diferidos, já que os acessos se estruturam em uma duração “que não é mais
programada por um fluxo independente dos atores, mas que depende do jogo da interação
(WEISSBERG, 2004).
Temos assim o encontro entre duas formas temporais: uma ligada ao processamento, que
se estrutura em torno da postagem constante de vídeos, e outra de uma duração construída
com as informações e possibilidades de navegação abertas pelas interfaces, além das
formas de compartilhamento e ampliação da recepção.
O encontro entre essas duas temporalidades produz ritmos e frequências muito distintas,
especialmente porque, ao vermos vídeos on-line, estamos ligados a uma tradicional forma
de interação atrelada diretamente à duração.
Nesse caso, certamente a temporalidade se expande em torno de outro arranjo, definido
por Weissberg como temporalidade fendida, que associa tanto as urgências do tempo real
quanto as aproximações com as durações típicas, por exemplo, da leitura e da contemplação.
75
Em situações como essa, ao contrário de estarmos somente ligados ao tempo real, como
normalmente se acredita, estamos mais próximos de uma multitemporalidade, até mesmo
porque YouTube e Vimeo, entre outras plataformas menos conhecidas de difusão de vídeo
on-line, são também poderosos modos de acúmulo de imagens e também de veiculação de
imagens antigas, vindas do universo doméstico e do circuito midiático. Podemos ver, lado a
lado, o antigo VHS e a imagem que acabou de ser gravada e postada. As plataformas de vídeo
on-line, nesse sentido, podem ser consideradas situações de confronto e tensionamento
entre essas duas maneiras de tornar visível o passado no tempo presente.
Ultimamente, tornou-se comum, por exemplo, durante um show, o público postar
no YouTube ou no Facebook trechos do que acabou de acontecer. O tempo aqui se transforma
em matéria maleável para abarcar distintas dimensões do passado (do mais recente ao
mais remoto).
Trata-se de um jogo de temporalidades que transcende as tradicionais dimensões que
frequentemente caracterizam o tempo. O passado torna-se um passado do presente,
orientado pelo agora.
Tudo está disponível misturando as múltiplas temporalidades associadas ao tempo real da
interação, o momento no qual o sujeito interage com a máquina e escolhe o que ver.
Se estivermos no domínio de temporalidades fendidas, múltiplas em seus desdobramentos,
em relação ao espaço, a situação não é diferente.
Primeiramente, houve uma radical discussão em torno das relações espaciais com a chegada
das redes telemáticas. O dito ciberespaço aniquilaria o espaço físico e real.
Era comum ouvir que as relações baseadas no aspecto físico do espaço perderiam o sentido, afinal
estávamos, como acreditavam alguns teóricos, afundados na total imaterialidade da rede.
Estávamos trancados em casa, como um “paralítico tecnologizado” (Virilio), e naquele
momento o conceito de “desterritorialização”, apropriado de forma completamente indevida
de Deleuze e Guattari, apontava para o quase abandono do espaço físico em favor da total
virtualidade.

76

Atualmente, pensamos em espaço-tempo. As temporalidades emergentes suscitam


novos arranjos espaciais e vice-versa. A dinâmica é intensa. As experiências vão desde o
Google Earth até o modo como usamos as redes sociais e plataformas de vídeo on-line nos
smartphones.
Tudo isso reposiciona o modo como experimentamos o espaço atravessado pela densidade
do tempo local. Estamos no meio da rua, inseridos no espaço físico, mas agora percebemos
de outro modo nosso entorno. Temos informações e imagens, dos mais diversos tipos,
alinhados em torno das múltiplas temporalidades permitidas pelas formas de acesso.
Pensar as formas espaçotemporais típicas do vídeo on-line ainda poderia nos levar a refletir,
mesmo que brevemente, sobre as heranças dos primeiros tempos do vídeo com as câmeras
de circuito fechado.
As instalações abriam o fluxo de imagens solicitando uma espécie de “presentidade”
(presentness), explicitando os polos de emissão e recepção, talvez já anunciando o tempo
real das telecomunicações que dominaria a cena midiática nos anos seguintes.
Projetos como Live-Taped Video Corridor (1969), de Bruce Nauman, parecem nos remeter
ao desafio de novas formas de presença, visibilidade e maneiras de experimentar um
espaço-tempo alterado.
Nessa obra, Nauman coloca, no fim de um longo e estreito corredor, duas TVs que exibem
imagens do próprio espaço. Em uma delas, a imagem é gerada através de uma câmera,
colocada acima, mostrando o visitante; a outra exibe uma imagem pré-gravada do corredor
vazio.
Ao visitar a instalação, o espectador se confronta com sua presença/ausência no espaço, o
que gera uma experiência ambígua de pertencimento/ausência, como comenta Margaret 77
Morse (1990):

Essa experiência, por exemplo, de Bruce Nauman pode ser impressionante. Para mim, era como
se eu estivesse com o meu corpo despregado da minha própria imagem, como se o chão da minha
orientação no espaço fosse puxado por debaixo de mim.2

Há o confronto entre o tempo real e o passado nessa obra de Nauman, numa situação
espacial específica. Em certo sentido, herdamos, no atual contexto, essas formas pioneiras
de tensionamento entre espaços-tempos mediados por máquinas e dispositivos imagéticos.

2 Tradução do autor.
Podemos ver o mesmo em obras como Present Continuous Past(s), de Dan Graham (1974),
ou mesmo TV-Buddha, de Nam June Paik (1974).
Esses trabalhos, heranças dos pioneiros, nos permitem reafirmar o paradoxo ruptura-
-continuidade que caracteriza a produção atual e os modos de reverberação entre os
sistemas midiáticos, os dispositivos, os processos de subjetivação e o modo como
experimentamos as diversas tecnologias.
Longe de qualquer conclusão, definir as relações espaçotemporais no vídeo on-line é tentar
trazer fragmentos da complexidade da vida social contemporânea, construída em múltiplas
emissões e ecos entre os sistemas comunicacionais e tecnológicos.
Estamos experimentando um contexto com muitas alterações em torno dos tensionamentos
desses sistemas, e, assim como ocorre a liberação da emissão, também são geradas 78
formas sofisticadas de controle, monitoramento e cooptação.
Tudo no jogo da interação com sujeitos envolvidos por relações espaçotemporais de
outros tipos, que misturam filiação ao fluxo informacional, duração, interseção real-virtual e
compartilhamento generalizado em outro arranjo comunicacional, imagético e informacional
que se transforma o tempo todo.

Referências
COUCHOT, Edmond. Reinventar o tempo na era do digital. Interin, n. 4, dez. 2007.
Disponível em: <www.utp.br/interin/revista_interin.htm>.
MORSE, Margaret. Video installation art: the body, the image, and the space-in-between.
In: HALL, Doug; FIFER, Jo Sally (Org.).Illuminating video, an essential guide to video art.
New Jersey: Aperture, 1990.
WEISSBERG, Jean-Louis. Paradoxos da teleinformática. In: PARENTE, André (Org.).
Tramas da rede. Porto Alegre: Editora Sulina, 2004.
Imagens do pós-tubo
Giselle Beiguelman

Falar em produção audiovisual hoje impõe ir além das noções tradicionais de imagem que
nos permitiam perceber com clareza os limites entre a fotografia, o vídeo e o cinema, a fim
de reconhecer o novo estatuto das imagens.

79

Produzimos com os mesmos equipamentos diversos tipos de imagens, e isso não diz respeito
apenas à cena amadora, catapultada por celulares e pequenas câmeras multifuncionais.
Basta lembrar a câmera fotográfica profissional Canon 5D Mark II, que teve, como marco
de lançamento, o último episódio da sexta temporada da série de TV House, da Fox,
inteiramente gravado com esse equipamento (ZHANG, 2010).
Não só produzimos imagens com os mesmos equipamentos, como também as editamos
com os mesmos recursos. Os programas de edição de vídeo possibilitam a edição de
fotogramas como stills, assim como os programas de edição de fotos possibilitam a
animação de imagens em sequência.
Entretanto, não são apenas as formas de produção de imagens que mudaram
substancialmente nos últimos anos, mudaram também suas formas de circulação e a escala
de sua produção.
O Flickr, principal plataforma de publicação de fotos, mas não a única, registra uma média
de upload de 5 mil fotos por minuto, o que equivale a 720 mil fotos por dia, disponibilizadas
publicamente somente em um serviço on-line (FLICKR, 2010).
Nada que se compare com o YouTube, que registra o envio de mais de 35 horas de vídeo
por minuto. Isso é o mesmo que 176 mil filmes de longa-metragem por semana. Outra
comparação possível: se as três principais redes de TV dos EUA estivessem transmitindo
“24 horas por dia, 7 dias por semana, 365 dias por ano, durante os últimos 60 anos, ainda
não teriam transmitido tanto conteúdo quanto o que é carregado no YouTube a cada 30
dias” (WALK, 2010).
Isso posto, podemos dizer que nunca foram colocadas tantas imagens em circulação. Mas
podemos dizer mais: nunca as imagens foram tão decisivas no nosso processo de
operação do cotidiano. E isso é o mais relevante no que se refere à nossa discussão sobre
o novo estatuto das imagens.

80

A disseminação dos sistemas de Realidade Aumentada, a popularização de produtos


pensados sob as regras do design sensorial e as novas formas de sociabilidade
baseadas em comunidades fluidas de consumidores e produtores de vídeos e fotos são
indícios consistentes desse processo que converte as imagens no dispositivo central da
contemporaneidade.
Antes de descrevermos as características desses formatos para avançar na discussão, é
importante frisarmos o caráter de dispositivo que assinalamos aqui.
Dispositivos, conforme lembrou Agamben, interpretando Foucault, não são apenas
aparelhos, são também uma rede de tensões e positividades entre práticas, mecanismos
(linguísticos, não linguísticos, jurídicos, técnicos, militares etc.), saberes e instituições
que nos orientam, controlam, governam e organizam determinado contexto histórico
(AGAMBEM, 2009).
Esclarecido esse ponto, resta-nos comentar alguns formatos de imagens emergentes que
conferem à imagem um novo estatuto na cultura contemporânea e a coloca em posição de
centralidade na experiência contemporânea.

Formatos emergentes de imagens


Um dos formatos emergentes de imagens mais importantes é a Realidade Aumentada
(RA). Trata-se de um processo que, diferentemente da Realidade Virtual, suplementa o
mundo físico com informações, em vez de substituí-lo, fazendo com que objetos virtuais e
reais coexistam no mesmo espaço (AZUMA, 1997).
A importância desse tipo de tecnologia é revalidar a noção de virtualidade, inserindo-a não
mais como potência do real, e sim como uma das camadas que o constituem.
Atualmente, com celulares 3G equipados com programas específicos combinados ao GPS
do aparelho, é possível, por exemplo, visualizar objetos virtuais que acrescentam dados a
um local determinado, por meio de animações em computação gráfica que se superpõem,
em tempo real, às imagens enquadradas pela câmera.

81

A popularização dos celulares e do acesso móvel à internet tende a disseminar o uso de


aplicativos instalados em celular, como leitores de QR-Code, e de programas, como o
Layar ou Wikitude. Esses aplicativos tiram a Realidade Aumentada dos círculos científicos
especializados e a implantam no cotidiano, tornando essa tecnologia literalmente acessível
à palma da mão. Outra evidência de novos formatos de imagem que passam a fazer parte
do cotidiano são os produtos baseados em design sensorial. Esse tipo de design fundamenta-se
principalmente na exploração de diversos sentidos no processo de interação (visualidade,
olfato, audição, tato).
Produtos como o Wii e o iPad são exemplos quase autoexplicativos dessa linhagem de 82
produção, convertendo-se, dado ao seu sucesso de público, em uma espécie de exercícios
de sinestesia para as massas ao explorar a combinação de sentidos, como a visão e o tato,
que converte as imagens em interfaces imersivas e de interação.
Relevantes também para compreender a profundidade de transformações culturais que se
anunciam com os formatos emergentes de imagens são as novas formas de sociabilidade
que trazem consigo.
Basta lembrar aqui plataformas como YouTube e Flickr, que, mais do que terem se
transformado nos mais importantes veículos de imagens, alargaram as formas de diálogo
e trocas interpessoais mobilizando milhões de criadores, remixadores e visualizadores a
configurar espaços de relacionamento baseados em vídeos e fotos.
Todos esses formatos de mediação fundamentados em conteúdo audiovisual indicam que
as imagens deixaram de ser superfícies emolduráveis e tornaram-se as interfaces de
comunicação mais importantes da contemporaneidade.
A presença das imagens, no entanto, não diz respeito apenas às revoluções das formas de
comunicação. Diz respeito também a uma nova compreensão do corpo, agora entendido
como um campo de escaneamento e digitalização de informações.
Tomografias computadorizadas, ressonância magnética, mamografia e vários tipos de
ultrassonografia são alguns dos métodos mais corriqueiros desse processo de intelecção
da biologia como um campo de incursão do audiovisual contemporâneo.
Cada um desses tópicos poderia ser o tema exclusivo de uma apresentação, tese, livro ou
ensaio. Eles envolvem tecnologias de produção, distribuição e consumo distintas, bem como
colocam em circulação novos modos de ver e perceber que são particulares às situações a
que estão relacionadas – localização em contextos urbanos, por exemplo, no caso da RA;
lazer e informação, no que se refere ao Wii e ao iPad; entretenimento, jornalismo-cidadão
ou experimentação artística, no que diz respeito ao YouTube e ao Flickr; e investigação 83
biomédica, no que tange à medicina diagnóstica.

Hibridação homem-máquina
É tempo de pensar, como sugere Ivana Bentes neste livro, a ecologia das imagens digitais
refletindo sobre suas cadeias de produção e consumo em relação às estéticas que
engendram e aos seus contextos de recepção.
Trata-se de uma ecologia que tem como pilar de sustentação a hibridação homem-máquina,
nos termos propostos por Bruno Latour, considerando que não somos apenas funcionários
das máquinas, como em certa medida propôs Flusser, tampouco as máquinas são nossas
extensões, tal qual McLuhan formulou (LATOUR, 2001; FLUSSER, 1985; MCLUHAN, 2003).

Antes, somos modificados pelas máquinas, assim como as modificamos. Seguindo a linha
de reflexão de Guattari em Caosmose, Latour lembra que, assim como somos modificados
por uma arma na mão, também modificamos uma arma, que longe de nós, não passa de
um minúsculo objeto.

Essa hibridação homem-máquina se realiza, como vimos, no campo da produção, consumo


e publicação das imagens, mas também por meio de novos formatos de telas, que têm
apontado para uma nova compreensão da imagem, para muito além do sentido tradicional 84
da cultura multimídia de combinação entre som e visão.
As pesquisas na área de nanotecnologia e sensores mostram que, em breve, as telas serão
maleáveis, redimensionáveis, multifuncionais, e os dispositivos de projeção, aderentes a
superfícies diversas, conforme a necessidade.
A intensificação da vida em rede, em contextos de constantes deslocamentos, tem
impulsionado a pesquisa científica, em diálogo com o design, relacionada a objetos
inteligentes e interativos.
Bom exemplo aqui desse processo é o protótipo de celular Nokia Morph. Dotado de
microssensores flexíveis, esse celular tem tela autolimpante, reage a estímulos ambientais
de luz e se adéqua a diferentes formas, podendo ser manipulado como um fino tablet ou
ser atrelado ao corpo, na forma de uma pulseira ou brinco (NOKIA, 2008).

Projetos como as Telas do Futuro, desenvolvidos pela empresa sueca TAT, exploram
recursos de telas em estado de conexão permanente, que aderem a superfícies diversas,
como espelhos, e recursos de compartilhamento da informação que devem liberar os
usuários das tarefas de infinitos cliques, permitindo a fruição dos conteúdos, pela simples
aproximação dos aparelhos (ERICSSON, 2010).
Notáveis, nesse ramo de pesquisa, têm sido as atividades do projeto Six Sense, desenvolvido
no MIT (Massachusetts), onde o designer e arquiteto indiano Pranav Mistry vem se
destacando como um dos mais criativos pensadores e desenvolvedores de projetos da
atualidade, pelas suas interfaces gestuais e vestíveis.
Mistry parte do pressuposto de que, apesar de usarmos sempre nossos cinco sentidos
para perceber as informações que estão ao nosso redor, cada vez mais essas informações
demandam informações e conhecimentos on-line, implicando conhecimentos que não são
naturalmente perceptíveis pelos nossos cinco sentidos. E frisa que, “embora a miniaturização
de dispositivos de computação nos permita levar os computadores em nossos bolsos,
mantendo-nos continuamente ligados ao mundo digital, não existe qualquer ligação entre
os nossos dispositivos digitais e nossas interações com o mundo físico” (MISTRY, s.d.).
Esse é o mote da série de experimentos interligados no projeto Six Sense, que procura
adaptar câmeras miniaturizadas, com sistema de rastreamento de posição e lugar e conexão
à internet, à interação individual, permitindo projeção de navegação em qualquer superfície
e captura e visualização de imagens sem manipulação de aparelhos específicos.

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O aprofundamento dessas investigações, no campo do design de interfaces, orientado para


equipamentos capazes de adaptar-se ao corpo e reagir ao ambiente, indica que o processo
de “cibridização” da experiência cotidiana é irreversível.
Por cibridização, entendemos aqui a compreensão de situações resultantes de experiência
de interconexão de redes on-line e off-line, que acontecem no trânsito e em trânsito,
mediadas por sistemas de gerenciamento de tráfego, painéis eletrônicos, celulares, PDAs
e agentes inteligentes.1
Nesse contexto de emergência da cultura cíbrida, somos “ciborguizados” por aparelhos de
diferentes portes e nos transformamos em um híbrido de carne e conexão, mediados pelas
imagens além-tela da era pós-tubo.

Referências

1 Nessa perspectiva, atualizamos o conceito, originalmente formulado por Peter Anders, que define cibridismo como projeção do

mundo virtual no real (ANDERS, 2002).


AGAMBEN, Giorgio. O que é um dispositivo? In: O que é o contemporâneo? e outros
ensaios, Trad. Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó-SC: Argos, 2009. p. 25-51.
ANDERS, Peter. Toward an architecture of mind. Artnode, abr. 2002. Disponível em:
<http://www.uoc.edu/artnodes/espai/eng/art/anders0302/anders0302.pdf>.
AZUMA, Ronald T. A Survey of Augmented Reality. Presence: teleoperators and virtual
environments 6, n. 4, p. 355-385, ago. 1997.
ERICSSON, Marcus. Future of Screens – Experience video. The Astonishing Tribe, 1 set.
2010. Disponível em: <www.youtube.com/watch?v=g7_mOdi3O5E>.
FLICKR. Flickr: Photos & video from everyone in Flickr. Flickr, 17 nov. 2010. Disponível
em: <www.flickr.com/photos/ >.
FLUSSER, Vilem. Filosofia da caixa preta – Ensaios para uma futura filosofia da fotografia.
São Paulo: Hucitec, 1985.
LATOUR, Bruno. A esperança de Pandora: ensaios sobre a realidade dos estudos
científicos. Trad. Gilson César Cardoso de Sousa. Bauru: Edusc, 2001.
MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem. 13. ed.
Trad. Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 2003.
MISTRY, Pranav. SixthSense – a wearable gestural interface (MIT Media Lab). SixthSense.
Disponível em: <www.pranavmistry.com/projects/sixthsense/#ABOUT>.
NOKIA Research Center. Nokia Morph Concept. Nokia Research Center, 2008. Disponível 86
em: <http://research.nokia.com/morph>.
WALK, Hunter. YouTube Blog: Great Scott! Mais de 35 horas de vídeo enviados a cada
minuto no YouTube. YouTube Blog, 10 nov. 2010. Disponível em: <http://youtube-global.
blogspot.com/2010/11/great-scott-over-35-hours-of-video.html >.
ZHANG, Michael. House Season Finale Filmed Entirely with Canon 5D Mark II. PetaPixel,
9 abr. 2010. Disponível em: <www.petapixel.com/2010/04/09/house-season-finale-filmed-
entirely-with-canon-5d-mark-ii/ >.
Sobre os autores

Abel Reis é presidente da AgênciaClick e atua no mercado de comunicação há 18 anos.


É doutorando em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP, tem estudos em Filosofia e
Informática e obteve o M.Sc. em Engenharia de Sistemas pela COPPE-UFRJ.

Eder Chiodetto é mestre em Comunicação e Artes pela ECA-USP, jornalista, fotógrafo,


curador independente e autor, entre outros, de O lugar do escritor, vencedor do Prêmio
Jabuti 2004. É curador do Clube de Colecionadores de Fotografia do MAM-SP. Em 2009,
realizou a curadoria das mostras Olhar e Fingir - Fotografias da Coleção Auer (MAM-SP);
Henri Cartier-Bresson: Fotógrafo (Sesc Pinheiros) e A Invenção de um Mundo - Acervo da
Maison Europeénne de laPhotographie (Itaú Cultural).

Eduardo de Jesus é graduado em Comunicação Social pela PUC-Minas, mestre em


Comunicação Social pela UFMG e doutor pela ECA-USP. É professor na Faculdade de
Comunicação e Artes da PUC Minas. Atua na diretoria da Associação Cultural Videobrasil. 87
Coordenou o evento Arte e novas espacialidades: relações contemporâneas reunindo um
seminário, mostra de vídeo e exposição.

Giselle Beiguelman é midiartista e professora universitária. Atua nas áreas relacionadas à


criação e crítica de artemídia. Foi professora da pós-graduação em Comunicação e Semiótica da
PUC-SP (2001 a 2011) e é professora da FAU-USP. Foi curadora do Nokia Trends (2007 e 2008) e
Diretora Artística do Instituto Sergio Motta (2008-2011). Informações sobre suas obras artísticas
e trabalhos críticos estão disponíveis no seu site: http://www.desvirtual.com.

Ivana Bentes é professora e pesquisadora do Programa de Pós-graduação em Comunicação


da UFRJ. É autora de Joaquim Pedro de Andrade: a revolução intimista e organizadora de
Glauber Rocha: cartas ao mundo. É coeditora de Cinemais: revista de cinema e outras
questões audiovisuais e Revista Global (ativismo, política e arte). É também curadora na
área de arte e mídia, cinema e audiovisual.
Raquel Rennó é doutora em Comunicação e Semiótica pela PUC-SP. Atualmente,
é professora adjunta do Departamento de Artes e Design da UFJF, consultora para
os cursos de extensão universitária em Arte e Tecnologia da Universitad Oberta de
Catalunya, pesquisadora do Institut Català D´Antropologia (ICA, Barcelona) e membro
do comitê científico do festival FILE (SP) e do International Center for Info Ethics (ZKM,
Karlsruhe). Participa de projetos de pesquisa e experimentação em cultura digital com
artistas e pesquisadores na Associação Cultural ZZZINC(Barcelona).

Renata Motta é bacharel em arquitetura, além de mestre e doutora pela FAU-USP. Entre
2004 e 2007 foi docente da Escola da Cidade. Desenvolve pesquisa na área de museus e
patrimônio, com foco nos aspectos de política pública e de gestão de instituições culturais.
De 2007 a 2011 foi diretora do Instituto Sergio Motta. Desde fevereiro de 2011, é Diretora do
Sistema Estadual de Museus (SISEM-SP) da Secretaria de Estado da Cultura de São Paulo.

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HTTPpix e HTTPvideo são festivais online de fotografia
e vídeo, realizados pelo Instituto Sergio Motta e seus
parceiros. Produzidos integralmente na internet, os
festivais são uma celebração da cultura de rede e de
sua capacidade de permitir a conformação de contextos
expositivos não-institucionais. Este livro apresenta os
resultados das edições realizadas em 2010 e ensaios
críticos sobre a cultura digital e as reconfigurações do
estatuto das imagens na contemporaneidade.

Autores: Giselle Beiguelman, Ivana Bentes, Eder


Chiodetto, Eduardo de Jesus, Raquel Rennó e Abel
Reis. Apresentação: Renata Motta.

_HTTPpix _HTTPvideo
Criação e Crítica nas Redes de Imagens
_São Paulo _Coleção Cultural Instituto Sergio Motta 18 _2010

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