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CONSELHO EDITORIAL ANTONIO CANDIDO DE MELLO E SOUZA CELSO FURTADO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO MAX DA COSTA SANTOS COLEGAO ESTUDOS BRASILEIROS VOL. 3 DIREGAO: ASPASIA_ALCANTARA DE CAMARGO JUAREZ BRANDAO LOPES LUCIANO MARTINS Fernando Henrique Cardoso AUTORITARISMO £ DEMOCRATIZAGAO 3 Edigao Paz e Terra para que nfo se o exercite em beneficio do imperialismo” (p. 101). Sem temor de chamar as coisas por seu proprio nome, Haya afirma que a nova organizacdo estatal teria algo de capitalismo de estado, Esta “nova organizagio” deveria estar Ponto, nosso Autor passa a defender uma cw sediga, teoria politica pela qual “O Estado Anti-Imperialis- ta que deve dirigir a economia nacional, teré que negar di- reitos individuais ou coletivos de ordem ‘econdmica cujo uso implique num perigo imperialista” (p. 103). Por isto, 0 con- ceito normativo de Estado Anti-Imperialista radica ‘na im- possibilidade de conciliar a liberdade absoluta individual em matéria econémica com a luta anti-imperialista, A ordem pri- vada econémica, sob este aspecto, é falaciosa, porque enco- bre em seus atos a ordem publica: “O proprietario nacional de uma mina ou de uma fazenda, que vende sua proprieda- de ou negécio a um empresério’ yankee, ndo realiza uma acéo contratual privada, porque o comprador nao apenas in- veste dinheiro numa ‘operagéo, mas investe soberania” (p. 103). Por tras do Estado Anti-Imperialista, Haya vé uma clas- se dirigente possivel, “as classes médias”, que tém “maior aptidao para a luta. Ainda vivem sua idade herdica. Tém ainda campo aberto para converter-se parcialmente em grande burguesia; so, por fim, lutadores, Tém capacidade de rebeldia, de beligerancia. Nao suportam o peso rude de uma forte classe superior, nem a presenca hostil e erescente de um grande proletariado” (p. 112). Em resumo, Haya, como Mariategui, néo dissocia a or- dem social do estado ¢ da economia. Ambos, por outro lado, utilizam conceitos normativos, sem disfarces, em suas andli- ses. Para Haya a classe média redentora utilizaré 0 Estado para romper a submissio imperialista. Mariategui vé na li- beragio do indigena a mola do processo politico peruano e, como Haya, no se equivoca quanto a que a Teoria do Esta- do se relé & luz dos objetivos postos pela luta de classes. Por certo Haya desprezou “a Ia legare” a objecéio daque- les que, segun or terem mentalidade alienada & Eu- ropa”, dizia as, se dais um posto no novo Estado & classe média, levais a0 poder com esta classe o embrido da burguesia do futuro; ela vos trairé quando se sentir forte, entregando-se e entregando-nos de novo ao imperialismo”. A objecdo, que Haya considerou “unilateral e desprezivel”,” se fez condicionamento real na histéria mexicana recente. 'Er- rou, pois, nosso autor na avaliacdo politica, ou quica — e sempre havera quem defenda esta explicacdo alternativa — a classe média mexicana nao teve no Estado o contrapeso que Haya (caindo subrepticiamente no argumento de Lom- bardo Toledano) via como necessério para organizar coopera- tivamente a economia mexicana, ‘Meu interesse nesta discussio nao esté, entretanto, em avaliar a adequacdo entre os esquemas de interpretaciio ‘pro- postos, 0 curso histérico e os valores implicitos. Quero apenas chamar a atengdo para um estilo de andlise global, tradi- cional se se quiser assim qualificar, mas que estrututava as diferencas e oposicées existentes entre sociedade, estado e economia, sem dissolvélas na sintese (6). III — Estado e Sociedade Entrelagados Voltemos ao ponto de partida. A primeira dicotomia in- dicada como caracteristica do pensamento politico brasileiro, referente ao predominio do estado ou ao predominio dos gru- pos particularistas enraizados na ordem civil, nfo poderia Ser superada se demonstrado o formalismo ‘da separacdo entre estado e sociedade? Por certo, a verificacdo da hipotese inicial pode ser tentada, como o foi, por exemplo, por Schwartzman em termos ‘de sua “adequacdo histérica” (7). Para isto seria necessdrio ver em que periodos a ordem es- tatal primou sobre a ordem civil, como e com que resultados. Aqui endosso a alternativa, “tradicional” talvez, mas rica em capacidade explicativa, apontada por Schwartzman: a de considerar as duas tendéncias interpretativas como re- fletindo “um processo simulténeo de desenvolvimento con- traditério”. Entretanto, para pensar o desenvolvimento desta con- tradicao é preciso caracterizar a luta politica como uma pug- na entre grupos e classes com interesses contrapostos. De )__Esté claro que existem autores brasileiroé que busearam re- lagées deste tipo. Mesmo Oliveira Viana e Azevedo Amaral poderiam ser utilizados para ‘exemplificar este procedimento, apesar do ana- eronismo racista de algumas de suas explicagées. (1) Veja-se SCHWARTZMAN, Simén, op. cit. m outra maneira a politica passa a ser um jogo de cabra cega: 0 estado, encapucado, sem que se saiba quem esta por tras dele, se opde.a0 localismo dos donos da terra, dos empresé- i is sej io, simétrica e oposta- "as (quando 'a interpretacdo pri- vilegia a “sociedade civil”) que brincam na gangorra do Poder no puro ludismo de um apetite sem gosto pela comida, sem que se entenda porque algumas faccGes se opdem &s outras. Para dar um_s6 exemplo na literatura recente e toman- do trabalhos cuja utilidade é indiscutivel, no artigo sobre “Atores Politicos do Império” (8) os autores véem, como é ‘ébvio, os Partidos como fatores organizacionais bdsicos da politica imperial, discutem a tese de Faoro — outra vez na moda, et por cause, considerando-se a burocracia autorité- tia do presente — sobre o Partido Liberal como expresséo da oligarquia ‘latifundidria e 0 Partido Conservador como repre- sentante dos interesses da burocracia, Por outro lado, trans- formam a disputa entre centralismo ou federalismo na ques- tao, fundamental da politica, Visando alargar ou corrigir a tese de Faoro sobre o papel predominante da burocracia na politica do Império, os autores sugerem que seria necessario ver “as raizes de- classe” da burocracia. Nao creio que a tese de Faoro seja “falsificdvel” atra- vés da anélise “de classe” da burocracia, pois esta nfio ne- garia necessariamente os interesses especificos da camada burocratica, Entretanto parece-me bem dificil — e Nabuco viu isto com clareza meridiana — explicar a politica do se- gundo império sem considerar como problema fundamental a questo da escravidao. Isto salta aos olhos! Nao obstante, na anélise “ao nivel propriamente politico” os autores sequer mencionam o problema. Assim como Mariategui disse que 0 Peru teria de optar entre os gamonais e os indios, Nabuco e tantos outros viram que a questo politica do Império (ques- téo que 0 derrubou...) era o problema da’ escravidao. A or- dem econémica se fazia elemento condicionante do jogo po- Uitico (sem determind-lo mecanicamente: j4 se escreve es- ‘tas coisas com certa vergonha, de tao Obvias) néo porque a burocracia Imperial tivesse — outra obviedade — origens de (8) LIMA JR, Olayo Brasil de e KLEIN, Lucla Maria Gomes — Atores politicos do Império, DADOS (7) 1970 172 classe (9) mas porque a estruturagdo social e politica do Im- pério 70 seu conjunto & impensavel sem a escravidao, Isto posto, é possivel ver a margem de liberdade que os “atores politicos” tiveram no Império, o papel da burocracia etc... Nao quero estender-me em exemplos. Entretanto, como se pode pensar 0 movimento republicano sem ver as aliancas © oposicoes — simultaneas, do ponto de vista interpretative — entre o “estamento burocrético militar” e os fazendeiros de café do “Oeste Paulista” (10)? Nao teria esta alianga ci- mentado as lutas da Abolicio? Nao teriam as aliancas rom- pido no exercicio do poder pelos florianistas? Pode-se, de fato, explicar a Reptiblica Velha, a oligarquia no Poder, sem re- lacionar estado (burocracia) e interesse “civil”, isto é, inte- \_Tesse dos fazendeiros e comerciantes? No plano mais especifico da organizagio politica, a lite- ratura existente mostra com relativa consisténcia o arranjo que prevaleceu na Republica Velha (mas que, decompondo- se, estendeu-se durante os governos de Vargas e o periodo pos 45 até 1964) entre estado e sociedade, entre executivo central e poder local. Os documentos deixados por Campos Salles sobre a “politica dos governadores” mostram o fun- damental do jogo politico neste aspecto: embora a “verda- deira forca politica” do regime residisse nos Estados, cabe- ria ao Executivo Nacional coordenar e manter o equilibrio entre os poderes. Na ausénela de partidos, 0 compromisso entre os “‘chefes naturais”, locais, e 0 Chefe do Executivo ga- ‘Mesmo porque, gracas & “indeterminaggo relativa da ordem " -— expresso vaga e contraditéria que tem a magia de “co- far a mensagem” — os burocratas podem em eircunstancias da- das fazer seu jogo proprio, apesar de suas ligagdes de classes, (40) Outra vez, a expressio Oeste Paulista — que, diga-se de passagem, geograficamente nao esté no Oeste propriamente — enco- bre (ou resume, depo's que se explica 0 que esté encoberto) relacées sociais de produedo determinadas, Trata-se de fazendeiros-empresd- rios que substituiram a mao-de-obra escrava por trabalhadores imi- grantes. Por tras deste processo existe outro, mais geral, de reorga- nizagio da divisio social do trabalho, quebrando a autarquia dos fazendeiros, criando teias comerciais e financelras, Politicamente, por seu turno, este processo assonta num controle da‘Provineia e depois do Estado de Sio Paulo, pelos fazendeiros de café. Gragas a isto SO Paulo (quer dizer, os fazendetros) importaram imigrantes e, muito depois, usaram o estado para fazer especulagées mercantis e finan- eelzas no mercado mundial (proceso arqui-conhecido) . 173 rantiria a continuidade politica. O presidente arbitraria en- tre disputas, apoiando-se, por certo, nas “maiorias regio- nais” (11), Tratava-se de ‘um “governo de notaveis”, oligér- quico, onde a oposicéo entre Executivo Central e Poder Local estava sanada no fundamental: 0 chefe indicava autoritaria, mas tradicionalmente. Indicava, se possivel, o “mais igual entre os iguais”... Por certo, havia lutas entre facgdes, mas © Regime as absorvia. Quando, porém, a oposi¢do assumiu caracteristicas distintas da luta entre iguais denotando a presenca de novas forcas sociais e pds em xeque as “chefias naturais” em nome do “interesse nacional”, do sufrégio uni- versal, ou de qualquer outro prinefpio universalista, o regi- me foi incapaz de incorporar e controlar a oposicao. O re- curso politico que possufa para estas circunstancias era a exclusdo violenta da oposicao, Vé-se, portanto, que na Re- ptiblica Velha o autoritarismo do chefe — inclusive do Che- ivo Nacional — era controlado tradicionalmente. vis” nao se opunham aos “politicos”, nem os “locais” go “central”; uns eram a continuagao dos ou- tros, Estado e sociedade entrelacavam-se (12). Entéo, por que tanta tempestade num copo de agua? Possivelmente porque & pergunta “o que é 0 estado?” (nos paises latino-americanos) nao se tém seguido respostas se nao as dicotomias ja referidas: um “aparelho” controlado pelo estamento burocratico, ou, no pélo oposto, “o comité executive” das classes dominantes. Sendo ambas as carac- terizagdes simplistas e insatisfatdrias, os analistas ficam girando como mariposas em focos de lanterna de pilha. (11) " Sobre este ponto ver o artigo recente de FRANCO, Celina do Amaral Peixoto M, OLIVEIRA, Lucia Lippi de, e HIME, Marla Aparecida Alves — “O contexto politico da revolugao de Trinta”, DA- Dos (7) 1970. (12) _A este respelto o depoimento de Lenido Coelho reproduzido por FLEISCHER, David — O recrutamento politico em Minas 1890/ 1018, REVISTA BRASILEIRA DE ESTUDOS POLITICOS, 1971, p. 55, ¢ flustrativo: “O chefe do Governo (de Minas) que sempre do PRM. sugeria 0 nome ou nomes dos candidatos. O Presidente tinha o cul- dado de, escolhendo os nomes de influéncia politica no Estado, orga- nizar umas listas destes"nomes ( Comentando 0 processo de selegio politica em Minas, TORRES, ‘O entao ccupante da governance z ges, caindo a escolha em alguém de sua confianga, mas que fosse também aceito pelos grandes chefes”, Estratificaedo social no Brasil, ‘So Paulo, Difusio Européia do Livro, 1965, p. 107. 114 IV — Natureza ¢ Legitimidade do Estado Que a anélise do estado em termos da expressio ime- diata da pura dominacao econémica de classe nao satistaz aos Tequisitos das mentes menos simplificadoras parece evi- dente. Mas, o risco maior de engano na caracterizacio do Estado nas sociedades latino-americanas parece ir para 0 outro extremo: vé-lo como o Produtor de todas as classes. De fato, a teoria do estado implicita em boa parte das and- lises parece ser a que o considera como um estranho Le- viata anti-hobbesiano. Nao existe na consciéncia social 0 pro- blema da “political obligation” nos termos em que a filosofia do século XVII deixou como heranga para a teoria democré- tica do Estado. O texto de Haya indica isso. A viséo impli- cita do problema do Estado existente nos textos da CEPAL, se 0s tomarmos como indicadores do grau de “consciéncia social” dos problemas latino-americanos, aceita, da mesma maneira, dois prineipios cuja contradico formal néo assus- ta aos que pensaram os problemas politicos da regio: o es- tado deve mediar entre os interesses, em beneficio dos des- possuidos, embora dentro dos limites da democracia, se pos- sivel liberal (13). Parece que, no caso das sociedades latino- americanas (e a brasileira, no particular, nao escapa a re- gido), o estado ¢ recorrentemente pensado como mediador, como’ Poder Moderador, situado entre as classes. A aceitacao do poder do estado pelos grupos dispensaria 0 mercado como seu fundamento: nao é 0 interesse racional do individuo que, numa “sociedade possessiva” baseada no mercado, im- pée'a norma da soberania como garantia de sobrevivéncia. Assim, na América Latina, mesmo a teoria democratica do Estado'parece ter fundamentos distintos daqueles que na liberal democracia saxénica asseguravam o dever da obedi- éncia ao estado, Ele decorreria da necessidade de sobrevi- veneia de todos, da Nacéo, e nao de cada individuo. Entre- tanto, 6 dificil justificar em termos no ideologicos este es- tilo de discurso, Sua seqiiéneia logico-politica desemboca no (18) Veja-se El pensamiento de la CEPAL, Santiago, Editorial ‘Universitria, 1970 (selegio de textos da CEPAL). ‘Ver também PREBISOH, Raul — Transforniacién y desarrotto, ‘Washington, BID, 1970, Hélio Jaguaribe fez um extenso comentario deste e de outros documentos de Prebisch, salientando o mesmo pon- to a que me refiro acima (In JAGUARIBE, Hélio — Enfogues sobre a : andlise critica de recentes relatérios) (mimeo). 175 autoritatismo. Como poderia o Estado mediar entre as clas- ‘ses se néo fosse mais forte que elas? A teoria da representatividade politica, segundo este ti- po de tradicao latino-americana, perderia’ também sentido pois, mesmo se’a pensarmos nos limitados termos do século XVI, ou seja, em funcdo da representatividade dos proprie- tarios, o Poder Soberano do Estado Moderador nao decorre da delegacdo e investidura vindos “de baixo” e de cada com- ponente da sociedade politica, mas sim da prépria “‘consti- tuéncia” da sociedade. A existéncia e sobrevivéncia das par- tes (isto é, das classes, proprietérias e ndo proprietdrias) 6 que requer ab initio um arbitro que Ihes sopre o animo da convivéncia dirigida e compartida. Sem ele ndo haveria so- ciedade civil. Mais curioso ainda, embora explicdvel, é 0 fato de que a teoria do Estado Moderador dispensa o apoio de Maquiavel. Nao se trata de pensar um Estado-Principe em que a légica | do Poder sobreleve a tudo o mais. Como a necessidade do Estado-Protetor deriva “estruturalmente” do equilibrio “ne- cessario” entre as classes, a dominagao faz-se mais “técnica” do que “politica”. A hatmonia democrdtica, naturalmente, informa os atos do Poder, num arranjo de corte “democratico- funcional”, na expresséo antiga de Haya de la Torre. Argumentacao deste tipo poderia ser usada para fun- || damentar no plano da filosofia politica a téoria do papel do } © estamento burocrético na vida politica brasileira. Os fatos, naturalmente, teriam de ser um tanto distorcidos para dar- Ihe fundamento empirico.... A esse estilo de argumentacéio se contrapée, além da visio monista da determinaeao econémica de um’ marxismo mal digerido que ndo faz a distingdo entre estado e classe do- minante, a anélise liberal. Nesta, a teoria da representacdo, com os supostos filoséficos anteriormente aludidos, ¢ os as- pectos organizatérios do poder, encarados juridico-institu- cionalmente, transformam-se nos ingredientes fundamentais Para responder o que é o Estado. Por certo, com excecio de uma visio totalmente alienada da matéria, ndo ocorre, mes- ‘0s liberais extremados, pensar, no caso do Brasil, uma Politica de contracao do estado nas suas funedes econémicas @ sociais, Antes, 0 problema se restringira forma politica de controle do Estado e as disputas de filosofia politica: por qué e para qué?, sem jamais discutir “para quem?", que é a verdadeira questiio. Por necessidade l6gica o pensamento liberal tende a aceitar a tese da independéncia da sociedade civil — das classes — diante da ordem politica e a por o peso da critica nos problemas da cidadania e da representacio. O robus- cimento destas permitiria o controle do estado; a delega- g&o que legitima o Poder estabelece ao mesmo tempo os li- mites da soberania: ela deve reiterar-se para que a sobe- rania mantenha-se legitima. Na prdtica, raramente os liberais tém aceito o énus do liberalismo. Seria fastidioso relembrar os momentos em que, derrubados regimes ou governos considerados pelos liberais como autoritérios (como o de Vargas em 45) ou burocratico- Populistas (como o de Vargas em 54 e Goulart em 64), eles proprios foram os primeiros a apelar e confiar na qualidade mediadora das Forgas Armadas e do estado — e em sua ca- pacidade repressiva — reforcando, assim, na pratica, a con- eepedo do Estado protetor. Isso levaria a crer que a critica autoritdria a liberal-de- mocracia e, com igual razdo a critica de esquerda, encon- tram, pelo menos no Brasil, fundamento nas coisas. O idea- lismo” das Constituicdes, 0 utopismo como estilo de andlise, @ prevaricacéo cotidiana dos ideais para a manutencdo de uma parcela de poder, caracterizam o liberalismo caboclo. Liberalismo castrado, porque temeroso quase sempre da. li- berdade, da organizacdo efetiva da sociedade civil e da par- ticipacio. ‘Tudo isso, naturalmente, indicaria que no plano da or- dem social e da ordem econémica existem fatores que rede- finem o Estado e as classes, obrigando o pensamento politico liberal a contorcer-se para propor fins desejaveis porém, ao mesmo tempo, vidveis. Nao é meu propésito nesta discussdo ir além da indica- ¢éo de certos problemas da relacdo entre estado e sociedade no Brasil. Com os paragrafos anteriores quis mostrar apenas que a relagdo das classes entre sie com o estado tanto ndo € simples que a teoria do estado tem sido incapaz de propd- Jas sem confundir-se com a ideologia: ou se pensa, como os autoritarios, que o estado é protetor e coordena o “organismo coletivo”, obscurecendo-se a exploracao de classe e o conflito entre classes, ou, como no caso dos liberais, se apela a0 uto- 17 | pismo de um estado sob o controle politico de uma vaga inexistente cidadania. Quando esta comeca a existir e apa. rece como o que € nas condigdes brasileiras (populismo, sin. dicalismo associado’ ao Estado, Politizagio do exército, mo- vimento estudantil etc.) os liberais so os primeiros a pedir a intervengdo das forcas corretoras. esquerda, por sua vez, repete o refréo a guisa de explicagao: “estado burgués". Com isso nao acrescenta, muito 4 compreensao do estado ou da burguesia, ‘Nao € pois uma tempestade num copo d’dgua a algazar. ra feita em torno da “questdo do estado” na sociedade de classes no Brasil. % um problema que requer reflexdo e and- lise, V — 0 Estado Brasileiro Post-1964 e as Classes em que se apéia Deixemos um pouco & margem digressées histéricas ou teéricas para pensar o presente. Qual é 0 carater do estado ( brasileiro atual? Como se relacionam hoje estado e sociedade? Se seguirmos a andlise de Haya (que de resto, neste aspecto, ( prende-se ao paradigms marxista) conviria comecar a res- Posta pela caracterizacio do “movimento” da sociedade bra- sileira. Neste ponto ndo ha como esconder que o estado atual, “da Revolugao de 64”, bem como as Constituigdes que 0 defi- nem (a de 1967 ¢ a atual) indicam o nome de seus criadores: -.allanca empresariado-classe média, Que empresariado e que setores da classe média? Sinteticamente: os chamados “ res modernos” de ambas as classes. Dito sem 0 adjeti setor da burguesia empresarial que se organizou na Grande Empresa e os setores da classe média que se escudam no Es- tado Empresarial e na Grande Empresa, inclusive e princi- palmente os militares que assumiram como misséo propria aleancar e fortalecer 0 desenvolvimento capitalista. No vem a0 caso repisar 0 j4 dito e sabido co Por certo, os que iniciaram o movimento de 64 baseavam-Se em all distinta, apoiando-se em boa medida nos setores “tradicio- nais” da classe média, organizados na Igreja e nos Partidos, bem como nos setores que a literatura chamava de “agro- latifundistas”. Estes grupos foram, entretanto, Remeto aqui a meu artigo sobre “O modelo j4 eltado, gressivamente das posi¢es de poder dentro do estado, em beneficio dos ja referidos grupos “modernos”. A expresso visivel destes é a “tecnocracia”, da empresa piiblica, da em- Presa privada e do préprio estado. Como facgiio hegeménica. dirigente destes grupos encon- tram-se as Forcas Armadas. 96m néo vem ao caso repetir 0 ébvio: nao se trata do caudilhismo militar, mas do controle do_aparelho do estado pela Corporagao Armada, transfor- mada_simultaneamente em foco de poder politico e-de-con- trole_burocratiea. Este eixo de poder, se é certo que implementa metas es- truturalmente compativeis com a dominaco burguesa (am- plia as condigées de acumulacao de capital), ao nivel da po- Uitica propée objetivos e implementa medidas que vdo além desta base estrutural. Nem a origem do estado em sua forma atual, nemo condicionamento estrutural das classes que 0 sustentam, séo suficientes — embora sejam necessérios — para explicar o sentido, o alcance e os limites das politicas emanadas do estado. Para delimité-los é preciso ir além do reconhecimento estrutural da determinacdo de classe. Esta claro que esta “determinacdo de classe” implica (sem 0 que a referéneia politica as classes perde sentido) em que no geral o estado atual garante a dominacao do empresariado Sobre as de outras classes e assegura a reconstituicao e o fun- cionamento dos mecanismos de acumulagdo. Neste aspecto, no s6 0 estado liquidou ou controlou as organizacées de classe (sindicatos, partidos) e os meios de expresso de opo- sico (Congreso, Imprensa) que poderiam ser utilizados pe- los setores de classe derrotados em 64 (inclusive a parte do empresariado e das classes médias ligadas ao populismo), como assegurou uma politica econémica que, as expensas dos trabalhadores (arrocho salarial), de parte ‘da classe média (funcionalismo ete.) e mantendo a exclusdo social e econd- mica que herdara do Regime anterior (no campo e nas ci- dades), permitiu a reconstituigdo dos mecanismos de acumu- laco,,Os instrumentos para isto foram criados desde 0 go- ‘verno Castelo Branco, encontram-se cudificados na Consti- tuigio de 1967 e obrigaram a uma modernizagio do aparelho do estado, bem como & adogdo de politicas econémicas clara- mente favoraveis 4 acio empresarial, ~ Como compatibilizar a fungio do estado, de assegurar 0 erescimento econémico nos termos de uma agressiva politica 119 capitalista, com o fato de que as Forgas Armadas constituem © setor politicamente hegeménicd no estad nao quiser: mos cair no simplismo de pensar que “no fundo” existe uma coincidéncia de interesses entre os militares e a burguesia (a defesa da ordem, por exemplo), convém especificar mais a anillise. Nao € dificil pereeber que toda a politica econémi- ca post 64 (apesar de suas variantes) orientou-se no sentido do ortalecimehto da Grande Unidade da Producdo, Neste sentido, tanto @ Empresa Publica como a Empresa Privada beneficiaram-se com as politicas adotadas. Por outro lado, 0 estado fortaleceu sua capacidade de regulamentacio, apro- ximando-se, formalmente, dos desejos de Haya de La Torre Para 0 Estado Mexicano, sem endossar a politica anti-impe- Tialista do tipo preconizado por Haya (15). Nao obstante, o fortalecimento do Estado incentiva sem- pre as esperancas e o medo da instauragao do que ja se cha- mou de um “socialismo dos tolos”. A direita e & esquerda, Por motivos distintos, vé-se no fortalecimento do Estado (“acima das classes”) a_possibilidade de organizar a Nacdo sob 0 controle do estamento burocratico-militar. Estas espe- ‘rangas existem também para as Borcas Armadas. Alguns . grupos militares se propdem a desencadear processos que, segundo créem, garantirio o fortalecimentd auténomo da , Nagao. O crescimento_da_Kimpresa_ptiblica e o fortale- | gimentoda_capacidade_regulamentadora do Estado pas- { ‘Sama “Ser_Encarados, nesta_perspectiva, como contrapeso | 4_expansfo_da_economia_privada_tanto nacional como es | ‘trangeira.|, O.dinamismo simulténeo da Empresa Publica e da Em) Privada, permitiu que os militares definissem sua politica de defesa da Nacéio, sem que o empresariado se sentisse coibido economicamente, alicergando as bases da (15) Nisto radica a diferenea essencial entre 64 e a Revolugio ‘Mexicana. Nao se trata apenas de que uma fol uma Revolugio de ites), mobilizadora da massa rural e 6 que se a revoluedo Mexicana fot Inioialmente anti-imperialista e popular (classes médias, campesi- nato ¢ operarlado), a de 64 fol um movimento que encontrou Iealda~ des das classes médias para cima e nunca teve um programa (embora 180 Néo importa agora verificar os limites dessa. © decisive € mostrar que pode ressurgir_no novo estado ‘conflito politico, Noutros termos, o estado esta expressando Uma alianca contraditoria de grupos. Nao quero desmentir, ao mencionar esta contradicdo, o carater burgués do Estado, como € dbvio, Desejo apenas dizer que este é insuficiente para explicar tanto as politicas que esto sendo implemen- tadas, como as lutas de poder. Neste sentido, podem ocorrer, como j4 tem ocorrido, cho- ques entre os interesses de grupo da_burguesia e os interes- ses politicos dos demais setores que controlam o estado, A vitéria de uns 0 outros grupos, isolados ou em alianga, de- penderaé — dentro dos limites jé assinalados — do conflito politico e néo pode ser deduzida, a priori, exclusivamente das determinagoes abstratas de classe. Além disso estes con- flitos s6 em conjunturas excepeionais podergo por em causa de forma global o arranjo politico que sustenta o regime..No cotidiano eles aparecerao como oposicdes tépicas e laterais as grandes questées do Poder. .Embora nem por isso sejam “secundarios”. & da repeticdo e acumulacdo de desgastes ocasionais ¢ conjunturais que se criam as condigoes — ao nivel da politica de ciipula — para as crises de poder., Se isto é certo, ou seja, se no se pode pensar na homo- geneidade do estado e se esta heterogeneidade tem raizes na ordem social e politica (quer dizer, no fato de que uns so produtores privados e outros controlam parte do Estado e da producéo sem possuir aquela qualidade), como se expressa © conflito e quais séo as organizacées que o viabilizam? VI — Partidos, Anéis e Luta Politica em Estados Autoritérios Classicamente se pensa nos Partidos como o instrumen- to pelo qual os grupos sociais agem com vistas a0 Poder. A titulo de palpite, eu diria que no caso brasileiro as pré organizagées do estado (inclusive as Empresas Puiblicas) so utilizadas pelos grupos como aparato politico. Esta_si- (16) Remeto, outra vez, a meu artigo sobre “O modelo politico brasiieiro”. 1st

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