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Thaiane Mendonça1
Resumo
Desde o final do século passado, nota-se que o comércio ilegal de drogas passou a ser uma questão vital de soberania
para países como os Estados Unidos. Seguindo a lógica estadunidense e suas políticas repressivas, países como México,
Colômbia e Brasil vem desde aquela época engajando-se nesta “guera às drogas” através da militarização do combate a
este inimigo e de sua identificação como problema de segurança nacional que não respeita fronteiras. No caso particular
brasileiro, a atuação militar no combate a este inimigo é sensível, o que pode representar um grave problema para o
país. Tendo estas considerações em mente, o presente artigo pretende fazer uma análise das definições de inimigo
interno no país considerando esta definição durante a Ditadura Militar no país (1964-1985) e o momento atual com o
combate ao narcotráfico, tendo em vista especialmente o exemplo do Rio de Janeiro como caso empírico para análise.
Como marco teórico será utilizado a ideia de “estado de exceção” como proposta por Carl Schmitt e também por seus
críticos.
Introdução
De acordo com Beck (2011), o mundo vive hoje de acordo com a lógica do bode expiatório,
segundo a qual pessoas ou grupos específicos da sociedade são considerados culpados por
problemas de ordem interno, não porque são de fato origem do problema e representam uma
ameaça à segurança, mas porque há todo um discurso e ações políticas que os constróem desta
forma. Há, portanto, a construção de elementos indesejáveis dentro da sociedade que passam a ser
considerados fontes de insegurança que, como tal, precisam ser administrados com algum modelo
de segurança pública capaz de contê-los. Este discurso de segurança ou insegurança pública faz,
portanto, com que certos grupos sejam coniderados como ameaças à ordem vigente ou por
representarem uma possível nova ordem ou por representarem a destruição de fato das estruturas
que mantém o ordenamento vigente.
1
Mestranda em Estudos Estratégicos no Instituto de Estudos Estratégicos da Universidade
Federal Fluminense. Vinculada ao projeto “Narcotráfico e militarização no entorno estratégico
nacional: lições para o Brasil”, financiado pelo Instituto Pandiá Calógeras/Ministério da Defesa e
CNPq. Contato: thaiane.cm@gmail.com
Após o fim da Segunda Guerra Mundial os conflitos internacionais em raras ocasiões são
travados entre Estados. Geralmente, eles são travados entre um Estado e atores não-estatais armados
que possuem seus próprios objetivos, sejam eles religiosos, étnicos ou políticos. Em considerável
parte dos casos, estes atores são bem organizados e bem armados, além de terem como
característica não estar restritos a um só território. Um dos grandes problemas, portanto, destas
organizações é de muitas serem capazes de realizar operações militares sofisticadas sem seguir as
regras de conflitos internacionais. Ainda, a aceleração do processo de globalização e a consequente
transnacionalização destes grupos facilita a organização entre eles e dificulta a ação dos Estados
contra eles.
Ademais, deve-se frisar que o caráter transnacional destes grupos e o fato de não possuírem
um exército facilmente identificado nem um líder específico, dificulta a identificação de quem é
combatente de quem não é, mesmo pelo fato de muitos destes grupos se utilizarem de crianças-
soldado e de se aproveitarem da própria população para se defender. Por esta razão, o número de
civis mortos nesses conflitos atinge números exorbitantes.
Dentre estas novas ameaças que passaram a chamar a atenção tanto da literatura sobre
conflitos internacionais quanto do mundo como um todo principalmente a partir do fim do século
XX está o narcotráfico. O problema tomou proporções tão consideráveis em algumas partes do
globo que passou a ser tratado como uma verdadeira guerra que ficou conhecida como Guerra às
Drogas.
É importante ressaltar que as favelas onde hoje existe Unidades de Polícia Pacificadora são a
configuração contemporânea de um fenômeno de ocupação urbana começado ainda no século XIX.
Ainda, a criação destas comunidades já se deu afastado do poder do Estado e cresceram, portanto,
sem o controle disciplinar do Estado. Por conta disto, tornaram-se ambiente propício para o
crescimento de vida econômica e social com características próprias relacionadas com grupos
dedicados tanto a atividades legais como ilegais (Serra e Rodrigues, 2014. Por conta de sua
geografia e da configuração de suas ruas e casas, as favelas também acabam por se tornar lugares
onde criminosos podem facilmente se esconder.
Ao crescerem desordenadamente foram sendo cada vez mais abandonadas pelo poder
público. Por conta deste abandono e da consequente proliferação de atividades ilegais nestes
territórios, a mídia, o governo e a própria sociedade passam a compreender estas comunidades de
2
A descrição completa pode ser encontrada em
<http://www.upprj.com/index.php/o_que_e_upp>. Acesso em 4 ago 2015.
3 A lista com as localidades de todas as UPPs implantadas no Rio de Janeiro pode ser
encontrada em <http://www.upprj.com/index.php/historico>. Acesso em 4 ago 2015.
A associação feita entre a pobreza com a criminalidade e a violência faz com que a visão
que a sociedade tem da favela seja extremamente negativa, como se estes lugares fossem próprios
da ilegalidade e das ações violentas. Assim sendo, a transformação do Rio de Janeiro em uma
“cidade de negócios” capaz de atrair investidores e de abrigar os megaeventos que vem para a
cidade exige que se executem quaisquer medidas que se considerem necessárias para controlar a
violência urbana, característica que mancha a imagem da cidade e pode impedir seu
desenvolvimento (ALMENDRA, 2014). Portanto, a Guerra às Drogas se torna legítima para
grandes setores da cidade que entendem que este problema deve ser combatido tomando qualquer
medida considerada necessária para resolvê-lo.
Como aponta Almendra (2014), ainda que a mídia não seja a responsável pela opinião
pública, ela ainda assim possui influência na formação da opinião pública. Como exemplo, pode-se
citar a divulgação de uma notícia, em maio do presente ano no site do jornal O Dia, sobre jovens de
Por conta desta “guerra às favelas”, qualquer um pode ser considerado um inimigo e, como
inimigo, este deve ser eliminado. Isso porque, de acordo com a obra de Schmitt, o inimigo
representa uma ameaça ao seu modo de vida e este pode ser tanto um ator externo, um Estado, ou
um ator interno. Neste sentido, o Estado possui a prerrogativa de suspender os direitos destes
cidadãos em prol da manutenção de seu controle sobre um pedaço do território. Ainda, estas
violações de direitos são consideradas válidas e justas por grande parte da mídia e da sociedade,
exatamente por causa do discurso, disseminado e incentivado entre eles, de que a favela e seus
moradores são figuras de segunda classe na vida política, como figuras descartáveis.
No que diz respeito à identificação do inimigo, pode-se citar dois casos de assassinatos
ocorridos em favelas do Rio de Janeiro em 2015. O primeiro foi em janeiro do ano em que este
artigo foi escrito quando um menino de 11 anos foi morte na Zona Norte do Rio em uma
comunidade pacificada. A alegação é de que o menino estava envolvido em um tiroteio entre os
policiais e um grupo de traficantes. Segundo os policiais, o menino portava uma arma e rádio
transmissor5. A família nega que a criança tinha qualquer envolvimento com o tráfico e ninguém foi
preso. O segundo ocorreu em abril, quando um menino de 10 anos foi morto com um tiro de fuzil
4
Notícia disponível em <http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-03-27/jovens-de-
classe-media-sao-presos-com-300-quilos-de-maconha-na-tijuca.html> Acesso em 4 ago 2015.
5
Notícia disponível em <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/01/familia-de-
menino-morto-em-area-de-upp-nega-que-ele-estivesse-armado.html> Acesso em 4ago 2015.
Ainda com relação à arbitrariedade da decisão sobre a questão do tráfico de drogas e sobre a
criminalização dos moradores da favela, é importante destacar que na Lei de Drogas de 2006 consta
que o juiz determinará se a droga apreendida é para consumo próprio ou para tráfico considerando a
quantidade, o local, as condições da ação, as circunstâncias sociais e pessoais e a conduta
antecedente do agente envolvido (BRASIL, 2006). Esta diferenciação entre o consumidor de drogas
(que não pode ser preso no Brasil) e o traficante (que sofre duras penas) é de extrema importância,
pois geralmente está relacionada a preconceitos sociais e raciais, tanto por parte dos policiais que
fazem a apreensão, quanto por parte dos juízes que determinam a diferença e por parte da imprensa
ao divulgar o caso. Como exposto na reportagem de Marcelo Pellegrini publicada no site da revista
Carta Capital em julho do presente ano7, pode-se observar um aumento da população carcerária
especialmente por conta da prisão de pessoas envolvidas com o tráfico. Já que não há estabelecido
um valor exato que diferencie a quantidade para consumo pessoal e a quantidade que corresponde
ao tráfico, nota-se que as prisões estão mais relacionadas realmente às questões sociais e raciais que
à droga por si só.
Tendo em vista a discussão prévia, o espaço de atuação das UPPs pode ser considerado um
espaço de exceção. Dentro deste espaço, o ator soberano, temporariamente representado pelas
forças policiais e militares, detém o poder de decisão sobre a vida que pode ser exterminada, sobre
seu futuro e seu tratamento, prescindindo da aplicação do ordenamento jurídico padrão. As favelas
onde atuam as UPPs constituem, dessa maneira, o “campo”, o nomos do espaço político moderno,
nos termos agambenianos. Neste espaço, os cidadãos acabam reduzidos à condição do homo sacer,
6
Notícia está disponível em <http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/mae-de-
morto-no-alemao-acusa-nunca-vou-esquecer-o-rosto-do-pm.html>Acesso em4ago 2015.
7 Notícia disponível em <http://www.cartacapital.com.br/sociedade/sob-a-lei-espanhola-69-
dos-presos-por-trafico-no-brasil-estariam-livres-3087.html> Acesso em 11 ago 2015.
Considerações Finais
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