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Um menino de 12 anos prometeu para si mesmo que nunca faria 0 que seu pai fez: abandonar esposa e flhos. Porém, 30 anos depois, 0 mesmo garoto - agora um homem - deixa sua familia. Uma mulher que terminou um relacionamento destrutivo est agora apaixonada por um homem com as mesmas caracteristicas de seu exnamorado. E um advogado que nunca conseguiu agradar 0 proprio pai tem um chefe que acredita que elogiar ndo é produtivo. Esses sao alguns dos comportamentos repetitivos com os quais 0 psicdlogo Stanley Rosner se deparou ao longo de sua trajetéria profissional Em O ciolo da autossabotagem, Rosner oferece uma analise esclarecedora sobre a compulso por repeticao - a tendéncia a reproduzir atitudes destrutivas. Com a ajuda da escritora Patricia Hermes, Rosner apresenta casos reais que mostram como episédios da infancia podem criar dilemas inconscientes que acabam nos fazendo agir contra nds mesmos. Os autores também explicam como reconhecer esses comportamentos e superé-los. ‘Ao mesmo tempo em que se aprofundam nas causas da autossabotagem e nas diferentes maneiras pelas quais ela se manifesta, 08 autores mostram que a melhor maneira de superé-ia é vencer antigos traumas e buscar novos caminhos. O ciclo da autossabotagem “No Hades, ele [Sisifo] foi condenado, tendo de rolar, por toda a etemidade, uma pedra até o cume de uma montanha, que rolava novamente sobre ele.” Hamilton, E. (1940,1942), Mythology. Timeless tales of gods and heroes. A Mentor Book from New American Library. Nova York & Scarborough, Ontario. “Ha uma vitéria e uma derrota - a maior e a melhor das vitérias, a mais baixa e a pior das derrotas -, que cada homem conquista ou sofre ndo pelas mAos dos outros, mas pelas proprias maos.” Plato, Protagoras Agradecimentos Os anos de estudo, de cursos, de superviséo e de andlise serviram de fundamento para mais de quarenta anos de pratica em psico-terapia e psicandlise. Mas este livo nao teria sido escrito sem a participacao de meus pacientes e de seu grande esforco para reviver pensamentos, memérias e sentimentos, e compartihé-los espontaneamente. A psicoterapia dinémica e a psicanalise ‘840, ao mesmo tempo, arte e ciéncia, e sua esséncia esta nesta relacdo. Parte dessa relagdo consiste na minha habilidade de sintonizar com meus pacientes, exatamente como nos duetos musicais. Sei que perdi algumas deixas e que, algumas vezes, houve dissonancias. Do mesmo modo que na composi¢ao musical, onde a formagao teérica ajuda muito, mas nao garante uma boa miisica, na terapia psicanaltica a formagao também & necesséria, mas ndo é suficiente para um tratamento bem-sucedido. Ela envolve, no minimo, a mesma quantidade de improvisagao, intuigao, sensibilidade e interpretacdo. Sei que nem sempre consegui ser plenamente compreendido e que minhas interpretagdes nem sempre foram perfeitas no papel que desempenhei em varios duetos, e, por isso, tenho alguns arrependimentos. Minha desculpa est no fato de que sempre tentei ficar sintonizado e admitir para mim mesmo e para meus pacientes onde foi que falhei. Usando o maximo de minhas habilidades, estive ao lado dos meus pacientes com profunda consideracao e disposigao para compreendé-los. A eles, expresso minha gratidao. Introdugao E um fim de tarde de fevereiro e estou esperando, do lado de fora de um hotel em Toronto, um taxi para me conduzir a0 aeroporto. Acabei de participar de uma conferéncia da American Psychological Association (Associagao Americana de Psicologia], , como psicoterapeuta com experiéncia clinica, minha mente esta animadamente ocupada, refletindo sobre as ideias que foram discutidas, novas interpretagdes do que toma o individu um ser admiravelmente complexo e interessante. Mas apesar de minha preocupacdo profissionel, ou talvez por causa dela, nao consigo deixar de prestar aten¢ao no encarregado da portaria. Um tipo animado, ele abre e fecha a porta do hotel para clientes; abre e fecha a porta sorrindo e dizendo algo para cada um que passa por ali. Eu o observo nesta tarefa repetitiva, e fico pensando como ele consegue permanecer t&o bem disposto. Em um rapido intervalo, ele vem até a calgada e comecamos a conversar. Depois de conseguir um taxi para mim, disse num tom confidencial: “Eu me pergunto como esses motoristas conseguem. A mesma coisa, dia apés dia: dirigir até o aeroporto e voltar, até 0 aeroporto e volta. Isto me deixaria louco.” Sorrimos um para o outro, um sinal de camaradagem, de concordancia. Mas estou pensando que reparar no outro aquilo que no conseguimos perceber em nés mesmos é algo bem comum, como se fizesse parte da natureza humana - pelo menos é isso que observo no trabalho com pacientes. E, geralmente, quando chegamos a esse mesmo ponto - comportamentos repetitivos. O que vemos no outro com tanta clareza oculta-se de nés préprios. Por que isso acontece? Acho que por varias raz5es. Talvez porque nossos comportamentos repetitivos estejam enraizados, sejam instintivos. O porteiro, cujo dia gira em tomo de abrir e fechar a porta, ndo vé nenhuma contradigao em lamentar o destino do motorista de taxi que tem de fazer viagens de ida e volta ao aeroporto dia apés dia - porque ele ndo enxerga o proprio comportamento como repetitivo. E claro, esse & um exemplo simples, provavelmente uma contradigao superficial, e talvez, até, de autoprotecdo. Por que admitir que 0 que eu fago a maior parte do tempo, dia apés dia, é insuportavel e inconcebivelmente repetitive? Negando-o, talvez a pessoa se sinta mais suscetivel de desempenhar seu trabalho diariamente. Ou talvez a natureza do porteiro seja tal que o simples contato ‘com aquelas pessoas represente um estimulo, uma mudanga, fazendo que o trabalho nao seja percebido como repetitivo. Ou, por outro lado, talvez ele perceba. Como é possivel estar ciente disso? E isso é importante? Nas pequenas e corriqueiras questdes da vida, no, isso ndo tem a menor importancia. A maioria das pessoas faz tudo igual, dia apés dia, tanto no nosso trabalho, como fora dele. Talvez vocé goste do ovo preparado em trés minutos toda manha - no em dois ou em quatro minutos. Ou talvez vocé opte, dia apés dia, ano apés ano, por ndo tomar o café da manha, ‘Aiguns de nossos padrdes repetitivos sao claramente irracionais. Tive um paciente que sempre calgava o pé esquerdo primeiro - to compuisivamente que se, por engano, calgasse antes 0 pé direito, ele parava, tirava 0 sapato e comegava tudo de novo com o pé esquerdo. Conheco uma mulher que sai tropecando pelo quarto escuro para acender a luz - porque ela nao quer, no consegue, acender a limpada acima da cabeceira. E dai? O homem do sapato pode chegar um pouco atrasado ao trabalho. A mulher pode dar uma topada com 0 dedao do pé. Qual a importancia disso? Nenhuma, a ndo ser que esses comportamentos sejam sintomas de algo mais sério. Nao, essas repetigoes, e até essas ‘compuisées, nao chamam a minha atenc&o para a questéo da repeticao. O que me seduz é detectar a extensao de certos tipos de ‘comportamentos repetitivos - repeticoes que destroem vidas, repetigdes que levam individuos @ beira da loucura, repetigdes que podem terminar até em suicidio. Muitos, ou a maior parte, desses frustrantes e destrutivos comportamentos esto quase que totalmente fora do dominio da consciéncia. Isto é que mais me atai ‘Assim, depois que comecei a considerar sobre essa questo, recebi em meu consuitério um homem para quem tudo parecia correr bem. Louis era um quarentao, um homem de negécios que aparentava ser bem-casado, o pai de um “grande garoto”, como chamava o filho de 10 anos, bem-sucedido na vida pessoal e profissional. Mas me procurou porque estava inquieto, pensando no sentido da vida. E, como revelou depois de algumas sessOes, estava tendo um caso com uma mulher que, admitiu, ndo amava Mas, mesmo sem amé-la, estava prestes a deixar sua familia. Ele ndo entendia 0 proprio comportamento, mas sabia que algo estava errado. Além disso, havia jurado que nunca faria com sua familia 0 que o pai fizera com ele. O que se manifestou nas sessdes seguintes produziu forte impacto - nao necessariamente em mim, mas certamente em Louis. Ao conversar, ele revelou que © pai havia abandonado a familia quando ele tinha a mesma idade do filho -10 anos. Além disso, 0 avé patero de Louis, também largou a familia quando o filho tinha 10 anos. Louis estava para se tomnar 0 terceiro pai na familia a abandonar a mulher e os filhos. Tudo isso ficou arquivado na mente de Louis, mas sem nenhuma conexao. Somente quando chamei sua atengdo para a idade dos meninos que foram abandonados por seus pais - 10 anos, a mesma idade do fino de Louis - que ele disse: "Vocé acha que eu estou agindo da mesma maneira?” Decidi nao responder, porque, as vezes, 0 siléncio € a resposta mais eficaz. Mas Louis ndo carecia da minha resposta. Lagrimas brotaram de seus olhos ¢ ele precisou de um tempo para se recompor. Mas este era 0 objetivo do nosso trabalho: fazer Louis perceber o que estava acontecendo e, o mais importante, por que estava acontecendo. Encarar o ciclo da repeticao foi o primeiro passo para ter algum controle sobre o que ele estava provocando inconscientemente. Talvez vocé pense que 0 caso de Louis seja excego. O niimero de pessoas que repetem constantemente comportamentos auto-destrutivos nao é grande. Seria sensato perguntar Se eu ndo estou exagerando. Afinal, se os seres humanos séo movidos pelo prazer, como sugeriu Freud, entéo certamente bom sexo, boa comida, diverséo e conforto deveriam nos seduzir. Logo, pode parecer implausivel acreditar que um individuo continue agindo exatamente da maneira que 0 faz softer. Concordo que seja um contrassenso. No entanto é plausivel e possivel. E ocorre constantemente. Nao é preciso ser profissional para perceber como isso se desenrola no dia a dia. Basta ler o jomal, ligar a televiséio, conhecer historia. Muitos de nés conhecem alguns exemplos da repeticao de temas autodestrutivos. Consideremos 0 homem de negécios bem-sucedido que arrisca repetidamente a reputacdo eo capital em altos investimentos, inclusive em apostas ilegais, até ser finalmente descoberto. E perde tudo. Ou - muitos jé ouviram falar em algo semelhante - 0 homem que se casa pela segunda, terceira e, até pela quarta vez, com o mesmo tipo de mulher que nao o agradava ou satisfazia. Nés, vizinhos e amigos, talvez consigamos perceber que a nova mulher é exatamente como as outras - mas, ainda assim, ele se casa com ela. Ele nao tem consciéncia dessa repeticao, até que ela também deixa de agradar. E a mulher que cresceu tendo um tirano como pai, um homem que foi fisica e talvez até sexualmente abusivo, escolhe o mesmo tipo de homem para se casar e, muitas vezes, acaba indo parar na emergéncia de um hospital. Ela, no entanto, ndo vé nenhuma conexdo entre 0 pai abusivo € 0 marido abusivo, © que dizer da crianga cuja mae cometeu suicidio na meia-idade, quando ela ainda era muito pequena, que, ao chegar A meia- idade, decidiu abreviar a propria vida. O suicidio é contagioso? Ou essa também 6 uma forma de repetigéio araigada e desconhecida - impingir aos outros aquilo que eu mesmo sofri? © que é importante sinalizar aqui é que essas vidas so infernizadas e destruidas pela compulsdo a repetigéio. Quando digo. “compuls4o”, ndo estou me referindo apenas a classica compulsdo a repetigo definida por Freud. Para ele, a classica compulsdio & repeticao era tdo instintiva que seria virtualmente impossivel exteriorizé-la, praticamente impossivel de ser encarada e transformada Estou me referindo aqui a um tipo de repetigao menos instintiva, mas igualmente insidiosa, uma necessidade inconsciente de repetir muitas vezes um comportamento, um impulso de levar adiante um ato, néio importando as consequéncias, mesmo que destrua a vida e a felicidade de alguém. Lembro-me agora de uma jovem e atraente mulher, Cory, que foi ao consuitério com uma preocupagao bastante pratica. Ela queria que eu a ajudasse a organizar seu tempo, suas tarefas. Ela queria estruturar sua vida profissional. Parecia um pedido singular para uma mulher jovem, brilhante e capaz. Cory cursara uma étima faculdade de direito e conseguira um emprego, depois de uma rigorosa selegao, em uma grande e prestigiada firma de advocacia. Mas, depois de um tempo, comegou a enfrentar dificuldades para cumprir cronogramas e priorizar seu tempo, e, finalmente, soube que as chances de se tomar uma associada eram nulas. E, assim, saiu do emprego. Agora ela abrira sua propria firma de advocacia, mas estava com os mesmos problemas que enfrentara - planejamento, tempo. Quando tentei investigar mais profundamente sua hist6ria, ela se impacientou: “S6 quero me ater ao problema que tenho aqui e agora’, disse. “Como administrar o tempo. Nao tem nada a ver com o passado.” Embora eu nao concordasse com ela, lembrei-me do que frequentemente considero sobre os pacientes iniciantes - Vooé age como se tivesse nascido ontem, como se simplesmente tivesse surgido aqui, saido da casca do ovo. Mas Cory acabou falando do seu passado. E logo ficou claro que, no seu caso, um exemplo classico de escolha inadequada a tinha conduzido ao papel de advogada superpoderosa. E, inconscientemente ou ndo, ela estava sabotando a si mesma. O pai havia decidido transformé-la em alguém “bem-sucedido’, na verdade no filho que ele nao teve. Concentrou toda a sua energia em fazer de Cory uma pessoa de ‘sucesso no “mundo masculino”. E embora tudo levasse a crer que era aquilo que Cory desejava para si, ndo era este 0 caso. Cory tinha outros objetivos, inclusive alguns que sé conseguiu perceber depois de muitas sessdes. Por qué? Porque os confitos do passado nao foram resohidos. Cory e a figura intemalizada do pai estavam brigando, numa triste repetigao do que havia comegado bem antes. Mas ela nao sabia disso, pelo menos nao de modo consciente, e, assim, estava condenada a repetir aquilo Existe um momento em que a pessoa consegue reconhecer essas repeticies? E possivel se dar conta disso? E 0 ciclo & rompido realmente? Questées dificeis. Mas acredito que as respostas sejam ‘sim’. E “as vezes’. Embora eu admita que nao é facil. inividuos que passaram a vida construindo uma concepeao sobre si e sobre o mundo ao redor de uma determinada percepgo equivocada podem ter medo de contestar aquela visdo, e isto é compreensivel Essie veio até mim pela primeira vez em 11 de setembro de 2001. Muitos de nés, provavelmente o mundo inteiro, ficaram traumatizados com os acontecimentos daquele dia assombrosamente terrivel. Certamente aqueles que estavam ld, que foram feridos, e que perderam entes queridos foram os mais traumatizados. Mas Essie ndo estivera no Marco Zero. Ela ndo conhecia ninguém que havia estado la. Mas quando o World Trade Center transformou-se em cinzas, o mundo ao seu redor também virou cinzas. Ela ficou traumatizada, aterrorizada. E 0 pior de tudo: ficou praticamente incapaz de agir. Até 0 percurso de casa ao consuttério transformou-se numa barreira quase intransponivel para ela. Mas ela chegou. Depois de algum tempo e de algumas sessdes, ficou claro que Essie se via como uma pessoa medrosa, incapaz de lidar com 0 mundo como uma aduita, do tipo que se queixava mas ndo ia adiante, apavorada com os acontecimentos mais corriqueiros. Este era o seu modo de ser, antes daquele dia. Mas, agora, com esses terriveis acontecimentos, ela havia chegado as raias do desespero. ‘Aiguns insights surgiram com clareza nos meses que trabalhamos juntos. Um deles foi particularmente comovente. Essie decidiu enfrentar uma situagao que se recusara a admitir havia muito tempo: o pai manteve relagdes sexuais com ela dos 9 aos 14 ‘anos, quando, entao, estava suficientemente crescida para exigir que ele parasse. Ela nunca contou nada a me, por achar que ela nAo iria acreditar. Quando, finaimente, conseguiu me contar isso, seus olhos encheram-se de lagrimas. Ela empalideceu. Respirei fundo, perguntando-me como ela iria lidar com isso, com o fato de que toda a sua vida, todo o sentimento de desamparo e medo e até de desespero baseara-se em ter de se submeter, j& que nao havia escolha; no ter como lutar, nem alguém que a defendesse. Tanto a vida interior quanto a exterior fundamentaram-se nesse terrivel acontecimento, nessa sensagao de nao ter controle, que moidou sua vida. Neste ponto, eu jé havia me dado conta de fatos que Essie ainda teria de perceber - que ela havia sido abusada ‘sexualmente por seu pai na infancia e que sua vida sexual adulta foi destruida por ele, e, talvez, pela cumplicidade silenciosa de sua mae. Nao de estranhar que os acontecimentos de 11 de setembro a tenham levado ao estado de panico e desespero. Foi a sensago de total desamparo, que tomou conta da maioria naquele dia fatidico, que reacendeu nela os terriveis sentimentos de que era a crianga que nao tinha vez. O reconhecimento foi um momento doloroso, amargo. Foi doloroso para nés dois, © que aconteceu a Essie - sepultar sentimentos traumaticos, experiéncias e memérias - acontece a muitas pessoas. Eniretanto, enterrar essas experiéncias nao significa que elas estejam mortas. Ao contrario, elas se incorporam, tornam-se parte indelével da imagem que as pessoas tém de si. Essie era a crianga indefesa que se sentia fragil, exposta a um mundo perigoso. Ela carregava essa imagem na vida adulta no modo de se ver e de se relacionar com os outros. Ela nao sabia por que, e néo conseguia explicar isso. Havia uma lacuna entre o que sentia e a base de tais sensagbes. Sob varios aspectos, as criangas ndo controlam a vida delas, e Essie permanecia nesse ponto da infancia, Por mais surpreendente que seja, para mim também é dificil tomar parte dessa exumagao de emogées e memérias dolorosas ja sepultadas. Como posso justificar a retirada de dados do inconsciente, elementos que 8s vezes o paciente trabalhou a vida toda para ocultar, néio apenas do mundo exterior, mas de si proprio? Se estava escondido, havia, sem duvida, uma boa razao para isso. ‘Como me atrevo a desenterrar, a mexer em algo que talvez seja a causa de grande sofrimento, levando-o para a consciéncia? Além do mais, se 0 passado nao pode ser mudado, entéo qual a finalidade disso? Fazer que chegue consciéncia. Mas é, também, bem mais que isso. A crianga que vive no aduito, a crianga que sepuitou seu passado traumético» revive esse fato varias vezes, tentando inconscientemente dominar aqueles eventos incontroléveis. A finalidade, portanto, é facilitar a mudanga, ajudar a crianga indefesa a ‘se tornar 0 adulto livre, com 0 controle da prépria vida. Com consciéncia e meméria, esses eventos podem ser encarados de modo diferente. E mudanga e consciéncia esto intrinsecamente ligadas. Mas aqui reside a arte e a ciéncia da psicoterapia -e, sim, ela é uma arte. Para explorar os eventos, tenho de ter certeza que minha relagdo com o paciente é de plena confianga e suficientemente sélida. A escolha do momento é fundamental. Um dos objetivos da psicandlise & tomar consciente 0 que esté inconsciente. Mas isto @ algo que s6 deve ser levado adiante se howver uma sélida conexao, pois fere 0 paciente e, as vezes, até o terapeuta. J que assim, entao nao é melhor deixar como esta? Alguns individuos podem dizer que sim. E alguns disseram sim - e fugiram da terapia. Estavam no seu direito. No cabe a mim julgar se alguém deve ou nao se submeter a terapia. Mas se o individuo vem ao meu encontro esperando por mudangas, se a questo que o trouxe é delicada, dificil - como foi para Essie -, entao talvez valha a pena o soffimento, 0 medo e a confusdo, a sensagao amarga de que uma boa parte da vida foi desperdicada. S6 quando esse material chega a consciéncia que as coisas mudam. Segredos provocam sintomas, como aconteceu com Essie. Eu posso e frequentemente digo a um paciente que “tarde” é melhor que ‘nunca’. Mas nds, dois sabemos que continua sendo amargo. Quanto a mim, néo sinto nenhum prazer em ver os pacientes soffendo, consumindo-se em lagrimas, expondo que passaram uma vida inteira sendo reprimidos. Mas s vezes € preciso chegar ao softimento, para que 08 problemas sejam resolvidos, ¢ ajudar a elaborar essas questies 6 0 meu trabalho. Expor winerabilidades e encarar questdes desagradaveis que foram sepultadas hd muito tempo é uma etapa preliminar necessaria e, AS vezes, a parte mais facil. O que vem a seguir é a parte mais dificil do processo - transformar aquele reconhecimento em uma mudanga de comportamento -, porque a mudanga nao é um exercicio intelectual. Se o reconhecimento nao for intemalizado, sentido e elaborado, nada vai mudar. Relembrar experiéncias, sensagdes e memérias, que muitas vezes foram reprimidas, e das quais tinha-se apenas uma vaga lembranga, pode, realmente, levar 4 mudanga, a um novo modo de perceber o eu @ 0 mundo? Isso pode ser 0 comego de uma nova percepcao do eu, live das distorgdes e dos sintomas inexplicaveis que persistiram desde a infancia’? Como posso tomar 0 processo de mudanga mais facil? A verdade & que os analistas também sao seres humanos; os analistas também tm sentimentos. Embora tenha, algumas vvezes, me referido a mim como um dinossauro, alguém que segue um estilo terapéutico mais tradicional do que muitos atualmente, no sou um mero espectador do proceso. A nogao de que 0 analista ndo se evolve e que dorme nas sessdes, ou que simplesmente murmura "Hmm" e “Ah”, &, em sua maior parte, uma ficgéio dos velhos filmes e dos maus programas de tevé. Sim, no passado o analista se mantinha mais afastado do paciente, e até hoje, em certos tipos de analise, parte dessa distancia ainda & mantida. Atualmente ha tantas formas de terapia quanto hd de analistas, e a maioria delas envolve-se muito mais com o paciente. No meu caso, prefiro 0 que Freud chamou de “atengdo flutuante uniforme’. Isto, no entanto, no significa atengio sem envolvimento. ‘Ao contrério, quer dizer ateneao direcionada, consciéncia do que e como esta sendo comunicado. € chamar a atengao do paciente para o que realmente é expressivo. Em geral, logo depois que algo foi dito, eu pergunto: O que vocé disse? Isto nao significa que no oui, mas funciona para encorajar 0 paciente a escutar 0 que disse e a perceber suas implicagdes. A livre expresséio de pensamentos e sentimentos, que chamamos de livre associagéo, pode soar como uma série de divagagdes. Entretanto, esses pensamentos sao tudo, menos isso. Minha fungo é salientar e articular as conexSes, conduzir a novos insights, revelar sentimentos @ disposigao de nimo. E, sim, tenho compaixdo. E medo. E fico triste. Ocasionalmente, sinto a alegria da descoberta, a satisfagdo de dois individuos {que estdo no caminho da renovagao, duas pessoas que compartitham uma experiéncia que tem 0 poder de mudar a vida delas. Eu me preocupo. Eu sinto. Intensamente Mas também posso ficar aborrecido, entediado, inquieto. Certa vez tive como paciente Betty, uma mulher cujo marido abusava dela - tanto verbal quanto fisicamente. Semana apés semana, Betty comegava a sessdio dizendo: “Vocé nao vai acreditar no que ele fez essa semanal” Semana apés semana, eu ouvia; semana apés semana, ela dizia que ndo aguentava mais. Semana apés ‘semana, concordavamos que ela ficaria melhor sem ele. E semana apés semana, apés semana, Betty voltava para ele -e vinha a mim com o mesmo refréo: Vooé ndo vai acreditar no que ele fez essa semana. Pouco depois, descobri que, como Betty, eu estava dizendo as mesmas coisas. E percebi que, por algum tempo, eu é que havia me tomado repetitivo. As vezes, eu tinha vontade de chacoalhé-la, e gritar: Por que vocé ainda esta com ele, se jé disse uma centena de vezes que iria deixé-1o? Néo consegue ver 0 que esté fazendo? Mas nao é assim que a terapia funciona. De vez em quando, nas horas negras da alma, fico pensando se a terapia funciona mesmo em casos como o de Betty. Mas nés dois perseveramos. Porque Betty é, sob varios aspectos, uma crianga {que mantém em segredo 0 fato de sofrer abusos sexuais do pai. Ela sabe que fora isso, a tnica alternativa 6 0 abandono total, ou, mesmo, 0 aniquilamento, Entao, se hd tantas repetic&es, e nés lutamos para entendélas e vencé-las, é razoavel perguntar-por qué? Existe uma ‘compuisdo a repeticdo, um instinto que nos faz repetir um comportamento, tal como sugeriu Freud?1 E, se é assim, por que existem as repeticdes autodestrutivas? Como explicar, além da repeticao de atos autodestrutivos, a repeticao de experiéncias dolorosas em sonhos e memérias? Seria isso uma tentativa de aleangar algum dominio de mudar as consequéncias pelo menos uma vez7. Qua repeticao em si, ainda que dolorosa, oferece algum ganho particular? Freud pensou ter equacionado essa questéo em seu trabalho ‘com os veteranos da Primeira Guerra Mundial. Ele descobriu que aqueles homens reeditavam e sonhavam com suas terriveis experiéncias de guerra, 0 que 0 levou nogao de ténatos, a pulsdio de morte - uma ideia controvertida tanto naquela época quanto hoje. Ainda que eu acredite que a ideia da pulsdo de morte é questionavel, a compulséo para repetir atos e pensamentos autodestrutivos no é, de modo algum, contestada Mas, mesmo tendo de aceitar as coisas dessa maneira, retomo a questo principal: Esse comportamento pode ser mudado? Existe esperanga para aqueles que sofrem profundamente, talvez inconscientemente, com esses comportamentos repetitivos? Existe esperanca para Betty, Cory, Louis e todos os que vieram me procurar ao longo dos anos, atormentados por comportamentos repetiivs inconscientes? A mudanga ocorre? E realmente possivel? Penso que sim. Esse é 0 meu trabalho e o tema deste live. Uma tentativa de mostrar como esses comportamentos repetitivos podem ser revelados, apreendidos e até modificados, Sim? Mas como? ‘Anna O., uma paciente de Freud, cunhou a expressao “cura pela fala”. A “cura pela fala” de Freud, se podemos chamar assim, influiu inegavelmente na nossa cultura, nas nossas crengas, e até no nosso vocabulario. Todas, ou quase todas as psicoterapias modemas devem muito aos principios freudianos, Quando conhego um novo paciente, sempre fico um pouco ansioso. Sera que conseguitei ajudéto a alcangar algum tipo de cura? Estabeleceremos uma relacao de confianga, um bom nivel de comunicacao? Qu esse encontro estara destinado ao fracasso? No inicio, néio dé para saber. E, embora haja quem, ocasionalmente, afime que o objetivo é este ou aquele, mesmo isso ndo esté claro no comego. Algumas pessoas tém ideias preconcebidas do que é a terapia. Elas querem respostas. Elas querem conselhos. As vezes querem, como Cory, agir como se tivessem nascido ontem - como se os sentimentos e traumas do passado nao tivessem nenhuma relagéo com os problemas atuais. Ha técnicas de terapia que nao investigam o passado. Indicacdes, baseadas em evidéncias empiricas, sugerem que algumas dessas técnicas sao bem eficazes. Elas lidam somente com 0 aqui e o agora, e tém por objetivo dar aos pacientes oportunidade de expressar seus sentimentos. Os pacientes conseguem efetivar mudangas porque percebem as consequéncias de seu comportamento autodestrutivo. Essas técnicas podem ajudar a aplacar medos, a resolver problemas de relacionamento, e atenuar ansiedade e depressao. Podem, até, ter um efeito propagador, quando as mudangas em comportamentos aparentes atingem o inconsciente, fazendo com que alguns problemas mais profundos sejam resolvidos. Eniretanto, é bastante improvavel que alguma dessas técnicas funcione com os comportamentos repetitivos de autodestruigao mencionados. A solucdo para esse padrao de repeticao mais profundo e inconsciente esta no passado. E preciso descobrir a origem dos conftos inconscientes, entender as raz5es subjacentes aquele comportamento, tomar consciente o que esta inconsciente, auxiliar 0 individuo a perceber a si mesmo e o mundo a sua volta de maneira diferente. Esse & 0 objetivo supremo e a solugdo - dar aos individuos a liberdade de escolher 0 que querem. Um pressuposto basico é que 0 comportamento & motivado por fatores dinamicos que geralmente fogem consciéncia. Nosso objetivo é trazer esses fatores & consciéncia, a fim de faciltar a mudanga de personalidade. A mudanga de comportamento acompanha a mudanga de personalidade. Somente assim os ciclos repetitivos de autossabotagem poderao ser decifrados. A pratica da psicoterapia dinamica é empolgante e espantosa. Independentemente do nimero de pacientes atendidos e das centenas de horas de dedicagao, fico assombrado com a capacidade da humanidade de procurar maneiras de proteger e defender sua integridade. A necessidade de sobrevivéncia, de testar limites, de encontrar desculpas e racionalizagdes para ter controle S40 tao variadas quanto sao as pessoas. Nao ha dois seres iguais, no tocante a constitui¢éo psicologica. Cada um traz uma historia singular. Cada um tem uma hist6ria para contar. Cada um tem suas proprias defesas. Os pacientes podem ser muito ricos ou muito pobres, fisicamente fortes ou fracos, brilhantes ou mediocres. Podem ter formaco cultural e étnica distintas e temperamentos profundamente diferentes. Fatores hereditarios podem estabelecer limites importantes no modo de ver e lidar com as adversidades e soffimentos. © temperamento pode determinar 0 modo de reagir, mas a biologia nao deve ser desconsiderada. Até alguns distirbios psiquicos podem ser determinados pela genética. Mas, além das limitagdes impostas por um desses fatores, somos afetados significativamente por nossa criagdo, histéria e meio. Duas pessoas nao experimentam a mesma ambiéncia, pois 0 mundo esté em constante mudanga. Herdclto disse que & impossivel um homem se banhar duas vezes no mesmo rio. Embora tenhamos indmeros rétuios, diagnésticos e categorias, nao ha uma tnica pessoa que se encaixe em um deles. Mas, no fim, as pessoas sdo semelhantes, pois nés somos humanos e tnicos. Cada problema é unico. Cada modo de lidar com 0 passado nico. E desconcertante apreciar a ampla variedade de maneiras que os individuos encontram para lidar com sucessos e fracassos, com vitérias e decepgdes, com ameagas e medos. As diferencas ultrapassam em muito as semelhangas, e cada paciente novo representa um desafio nico. © caminho é arduo. Na maioria das vezes, fico pensando se nao ha um meio de separar os softimentos humanos comuns, os que atormentam a todos nés, dos softimentos perversos, nocivos, que habitam as almas sofredoras. Geralmente, digo aos pacientes que s6 posso lhes oferecer a mudanca. Mas isto ndo é verdadeiro. O que tenho a oferecer & a oportunidade de efetivarem a mudanga. De vez em quando acontece de, durante a terapia, a oportunidade nao surgit. As vezes, & porque o paciente é incapaz ou reluta ‘em mudar ou entéo ndo quer se lembrar ou acessar sentimentos que poderiam auniliar na mudanga. Outras vezes & porque tm medo. Eles vém ao meu enconiro porque superficialmente querem mudar, mas ha outra parte deles que teme a mudanca. E é esta outra parte que vence a batalha Mas sempre acabo me perguntando: Onde estou falhando com esse paciente? O que estou deixando de levar em consideragao? Estou demasiadamente silencioso? Ou, ao contrario, estou falando demais? Com certeza, em todas as sessdes, pistas estéio sendo oferecidas, mensagens sao erviadas, as vezes pela propria aparéncia do paciente. Ele esté com uma aparéncia desleixada hoje? Os ombros estao curvados? Esta incomumente animado? Ele esta pronto - pronto para dar aquele salto? Porque, certamente, & um salto de f8 que leva alguém a verdadeiramente dar inicio a essa viagem muito, muito assustadora ‘Sim, ir ao consultério de um terapeuta é um comego, mas é apenas o comego. Pode levar muitos, muitos meses - até anos -, para que uma relagao verdadeira se estabeleca. E é na relagao que a mudanga ocorre. Acredito que minha psicoterapia tem de ser quase que constantemente reinventada. Porque, apesar de toda a literatura sobre a ciéncia da psicoterapia, ela é, afinal, uma arte subjetiva e criativa E, da mesma forma que é improvavel que cheguemos a unanimidade sobre 0 que constitui a boa arte, também é improvavel

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