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ÍNDICE
27 de Fevereiro de 2019 - ano XIX - n° 1043

Cartas Capitais
A nova face do Kremlin
Rosa dos Ventos
A munição de Bebianno

Frases
Do caderninho de Stanislaw
Editorial
Reforma anacrônica

A Semana
A Semana
Guilherme Boulos
Prisão perpétua para Lula?

Editorial
O jantar dos ricos
Reportagem de capa
Quatro cabeças, nenhum governo

Responsive image
Reportagem de capa
Destrambelhado no leme

Seu País Entrevista


Sob as ordens de Tio Sam

Seu País Entrevista


“Um mártir não seria útil”

Seu País Memória


Quão independente é o Comitê Nobel?
Economia Neoliberalismo
Alucinações ministeriais

Antonio Delfim Netto


O fim da democracia plebiscitária
Paulo Nogueira Jr.
A primeira comunhão

Nosso Mundo The Observer


Os estilhaços do Califado
Nosso Mundo The Observer
Washington, Londres, Moscou

Plural Livro
Atração mortal
Bravo!
Bravo!

QI O poder é um deboche
A iconografia do deboche
QI Saúde
Depressão perinatal

QI Estilo
O beijo da vida
QI História
A quem pertence Da Vinci?

Afonsinho
O torcedor é a vítima
Vara
Por Severo
A

NOVA FACE DO KREMLIN

É por estes editoriais do Mino que me tornei assinante de


CartaCapital. Parabéns, Mino.
Solange Maria
(Enviado via Facebook)

ROSA DOS VENTOS

O jornalista Ricardo Boechat criticou com muita razão os acidentes


em Brumadinho e no Flamengo, acidentes causados principalmente
por economia de custos sem levar em consideração os riscos. Na
Colônia Falida do Brasil, tudo anda muito precário.
Ney Pereira
São Paulo, SP
(Enviado via Carta)

FARDA VS. BATINA

O papa Francisco é o pivô das contestações da tropa de choque


deixada no poder por Bento XVI. Este, ao renunciar, fixou sua morada
fora das muralhas do Vaticano, servindo de respaldo aos amotinados
que resistem em deixar seus privilegiados assentos, presumindo-se
guardiões da chave do Reino do Céu.
Elizio Caliman
Brasília, DF
(Enviado via Carta)
ESCOLA SEM NOÇÃO

Vivemos tempos sombrios e obscuros. Tempos de retrocessos e


estupidez. Cegueira e ignorância. Tempos em que pensar pode ser
perigoso, quiçá letal. Nosso presente nos conta uma história de cujo
passado recente devíamos ter tirado lições que nos mostrassem um
futuro melhor e mais promissor, mas não é isso que consta nos autos
do processo do qual o Brasil, mais uma vez, é réu e refém. Triste fim
do país de Policarpo Quaresma.
Carlos Eduardo Simão
(Enviado via Facebook)

O diretor Wagner Moura tem sido criticado por ter escolhido o cantor Seu Jorge para
representar Marighella em seu filme homônimo

MARIGHELLA

Se um personagem é negro e for interpretado por um branco, está


tudo bem. Por que um personagem mestiço, de pai branco e mãe
negra, não pode ser interpretado por um negro?
Didi Rocha
(Enviado via Facebook)

Enquanto estes ministros nos iludem com declarações absurdas, o


governo age metendo a mão no dinheiro da Previdência, criando leis
para cercear a população de baixa renda e retirar os direitos dos
cidadãos. Não se deixem iludir por estas cortinas de fumaça.
Rodolfo Silva
(Enviado via Facebook)

A educação está guiada por quem não entende da matéria. Estamos


iniciando um ano letivo e nada de propostas para a melhora na
qualidade do ensino. Eu, como educadora, vejo tudo com muita
tristeza.
Roseli Moura Luz
(Enviado via facebook)

E qual ministro deste desgoverno não beira a demência? Qual?


Cintia Leme
(Enviado via Facebook)

MORRE BIBI FERREIRA

Bibi Ferreira representava o próprio teatro brasileiro: vedete, atriz e


cantora conhecida pela voz e pelo magnetismo em cena, referência
incontornável para a história do teatro. Será sempre lembrada pelas
grandes atuações, como em My Fair Lady.
José Ribamar
Brasília, DF
(Enviado via Carta)

DE VOLTA AOS MANICÔMIOS

Uma coisa é o que foi feito no passado e outra, bem diferente, é o


uso correto da terapia, que se chama eletroconvulsoterapia, não
eletrochoque. Existe o consumo abusivo de medicamentos
psicotrópicos, mas isso não poderia ser usado como argumento para
a proibição desses medicamentos. Não devemos ser
automaticamente contra ou a favor. Devemos, antes, buscar os dados
concretos e objetivos.
André Paranhos
(Enviado via Facebook)

COMO ELIMINAR TRUMP


Tomara que essa moda pegue por aqui. Será muito difícil aguentar
este presidente até o fim.
Cristiana Ternes Paes
(Enviado via Facebook)

O melhor que a esquerda estadunidense tem a fazer é desistir da


Hillary Clinton e lançar Bernie Sanders à Presidência.
Alexandre Perez
(Enviado via Facebook)

A CARA DO NOSSO TEMPO

Ricardo Darín segue a mesma fórmula, mas sempre dá certo. Um


grande ator.
Fernando Maximino
(Enviado via Facebook)

O DEMÔNIO USA BARBA

Paulo Freire faz pensar. Algo totalmente oposto ao que Jair


Bolsonaro e seu clã fazem.
Julio Cesar Bontorim Rates
(Enviado via Facebook)

Muito injusto o que estão fazendo com a memória desse educador.


Nem sequer conhecem suas obras, sua vida pregressa, suas atitudes
e o julgam da pior forma.
Maria Edith Azevedo Marques
(Enviado via Facebook)

Paulo Freire nos traz entre seus grandes escritos: Pedagogia do


Oprimido, Pedagogia da Autonomia e Educação como Prática de
Liberdade. Esses feitos incomodam o Estado autoritário, dono do
poder e opressor das minorias.
Priscila Dantas
(Enviado via Facebook)

Bolsonaro quer uma nação desigual. Paulo Freire estará sempre no


cerne da educação brasileira. Não existe ninguém melhor do que ele
para nos nortear e levar os professores a desenvolver grandes
reflexões e debates para uma melhor qualidade na educação
libertadora. Para o oprimido não ser o opressor do futuro.
Nilton Santos
(Enviado via Facebook)

QUANTOS MAIS?

A recente tragédia de Brumadinho ainda repercute, pela falta de


perspectiva de solução que leve em consideração não apenas os
interesses imediatos dos moradores da região. É preciso que se
coloquem efetivamente em prática medidas que não se limitem a leis
ou decretos, mas a um efetivo controle de todas as atividades de
mineração em todas as regiões brasileiras.
Uriel Villas Boas
Santos, SP
(Enviado via Carta)

ÍNDICE

CRÉDITO DA PÁGINA: Sergio LIMA/AFP


A munição de Bebianno
Ele não quer sair “com a pecha de bandido, patrocinador de laranjais ou
traidor”. Mas os laranjais espraiam-se

Por Mauricio Dias

Sergio Bermudes, bom amigo e pacato conselheiro

| | |

A demissão do ministro Gustavo Bebianno foi mesmo estranha, muito


estranha, justificada pelo porta-voz do governo, general Rêgo Barros, com
dribles risíveis para repórteres experientes. Não respondia as perguntas para
proteger o compromisso com o presidente da República. Sisudo, fugia da
questão a defini-la de “foro íntimo”. Ao militar é difícil mentir, mas às vezes
pode.

O ato do governo de lhe oferecer uma “saída honrosa” irritou Bebianno.


Primeiro, propuseram uma vaga na Hidrelétrica de Itaipu. Posteriormente, a
embaixada na Itália, belo recanto para morar no Palazzo Doria Pamphili, na
Piazza Navona, no coração de Roma. Pelo que se sabe, Bebianno é
monoglota. Decidiu dizer que não precisava nem de emprego nem de
dinheiro.

“Agora é hora de esfriar a cabeça” (Do ex-ministro Gustavo


Bebianno após espalhar terror no governo)

Vai afastar-se da cena política, da qual só participa há pouco tempo, ou


voltará para o escritório de advocacia no centro do Rio? De lá é possível
apostar nas orientações do esperto e articulado advogado carioca Sergio
Bermudes. Fora dos seus afazeres, ele não é de briga. Se depender de
Bermudes, Bebianno será acalmado, embora acene para o conflito. Vai
organizar papéis ou atenderá solicitação do PT para explicar ou silenciar
sobre o que sabe. E não é pouco. Aí estão as candidaturas laranja do PSL.

Os áudios trocados com o presidente dão indícios de que ele não baixa o
facho para nenhuma autoridade. Deu respostas para Bolsonaro sem
arrogância, mas também sem humildade. Foi fritado mesmo assim. Afastou-
se só depois de ouvir os encômios do presidente visivelmente irritado.
Enalteceu na televisão os méritos de Bebianno, e “seriedade” foi um deles.
Em resposta, prometeu que não sairia com a “pecha de bandido, de
patrocinador de laranjais ou traidor”. Quase ao mesmo tempo teria chamado
Bolsonaro de louco, mas negou a acusação.

Os militares entraram em cena para derramar azeite sobre o mar revolto. O


conflito, porém, não acabou. Basta esperar que Bebianno exiba documentos
para se explicar. E atire em seguida. •

ANDANTE MOSSO

Mais do mesmo
As primeiras linhas do pacote anticrime, resultado das elucubrações de Sérgio
Moro, encantam a muitos curiosos. Foi mais ou menos assim que o autor,
orgulhosamente, encaminhou o anteprojeto levado por ele ao Congresso.
Quem já leu não aplaudiu e concluiu: “É uma dose mortal de mais do mesmo”.

Assim foi recebido no Instituto Carioca de Criminologia, o qual, fora o humor,


está disposto a contribuir para melhorar: “Há cerca de duas décadas a
legislação penal brasileira vem sendo retalhada por reformas que têm
apostado todas as suas fichas na criação de novos tipos de penas (...) Essa
aposta reiterada na chamada ‘guerra às drogas’ é seu exemplo mais
eloquente”.

Segundo o instituto dirigido pelo criminalista Nilo Batista, os indicadores de


violência do período, “apenas para ficar nos dados frios e estatísticos, são a
Batista lança Moro ao espaço
prova do fracasso dessa política”. Assim, quase todas as teses de Moro vão
para o espaço.

Falso regresso
Anunciaram, mas não garantiram, o renascimento da União Democrática
Nacional (UDN), com a bandeira de Carlos Lacerda, apelidado pela esquerda
de “Corvo”. Também anunciaram que a velha sigla já colheu mais de 400 mil
assinaturas.

Um golpe de propaganda que não vai longe. Nessa linha, já basta o PTB falso
de Roberto Jefferson.

Transição 
O general Mourão, vice- -presidente da República, partiu em defesa do
presidente Bolsonaro: “A divulgação dos áudios foi uma deslealdade muito
grande com o presidente. O principal problema foram os áudios, pois isso
rompe a intimidade” Morreu o militar e nasceu o político Hamilton Mourão.

Reparo
O ministro-presidente do Superior Tribunal Militar, José Coêlho Ferreira,
contesta a nota desta coluna e explica: “O Superior Tribunal Militar nega
qualquer pronunciamento neste sentido, por parte de seu presidente, que é a
autoridade investida do papel de falar em nome da Corte”.

Ele explica que apenas constituiu, recentemente, “um grupo de trabalho na


área do Direito Penal Militar, com o intuito de colaborar com as propostas do
ministro Sérgio Moro sobre alterações na esfera penal”.

Enfim, surgiu alguém para dar uma mãozinha ao invencível Moro.

Vaga no governo
Wilson Witzel, governador do Rio, ainda não conseguiu armar a equipe.
Recentemente, ofereceu a Subsecretaria de Trabalho à deputada Flordelis
(PSD), cantora evangélica, eleita com quase 200 mil votos.

Ela recusou. Há quem diga por razão de cisma. Durante anos Roberto
Jefferson controlou a vaga. Pelo jeito, Flordelis não alimenta maior apreço por
Jefferson.

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Reprodução/Mídia Social e Ernesto Carriço/Ag. O Dia


Do caderninho de
Stanislaw

“Perdi. Perdeu, playboy. O pessoal do Congresso não gosta de mim. Se fosse o presidente,
ia passar” - General Hamilton Mourão, vice-presidente da República, ao comentar a
decisão da Câmara de sustar os efeitos do decreto que ampliava a lista de servidores com
poder de classificar documentos como sigilosos, assinado por mourão

“Falei de brincadeira. Derrubaram porque, sei lá, queriam mostrar a posição


deles. Isso é uma democracia”
Mourão, novamente ele, para os que acreditam que está de olho na cadeira
do presidente. Quase todo mundo…

“Comecei o dia treinando com os caveiras e depois tomei café no Bope”


Wilson Witzel, governador do Rio de Janeiro, em vídeo no qual aparece
correndo desengonçado com os soldados do batalhão de operações
especiais da PM. Não fosse pela careca, poderia ser facilmente confundido
com Mister Bean

“Se esta senhora tivesse como se defender, e fosse de sua vontade, uma
arma de fogo legal resolveria justamente este absurdo. Imagine as sequelas
eternas deixadas por esse covarde? A defesa pessoal dentro de sua casa têm
(SIC) que ser prioridade urgente do Congresso Nacional”
Carlos Bolsonaro, filho do presidente e vereador do Rio de Janeiro, ao
repercutir no Twitter a violência sofrida pela empresária Elaine Caparróz em
seu apartamento na Barra da Tijuca, onde foi espancada pelo advogado
Vinícius Batista Serra. Basta se inteirar da notícia para perceber que uma
arma de fogo, legal ou ilegal, teria transformado este CASO absurdo em
feminicídio

“Hoje tive a alegria de almoçar com dois queridos amigos, o Ministro Ernesto
e a Ministra Damares. No cardápio: amor pelo Brasil, fidelidade ao nosso
presidente e uma deliciosa sobremesa via whatsapp com nosso amigo, o prof.
Olavo de Carvalho”
Ricardo Vélez Rodríguez, ministro da Educação, ao informar pelo Twitter o
indigesto cardápio da ala psiquiátrica do governo

“O Brasil deixará de ser o país do futuro e passará a ser o país do presente!”


Eduardo Bolsonaro, filho do presidente e deputado federal, reafirmando no
Twitter que esta terra ainda vai cumprir seu ideal, talvez para tornar-se um
imenso laranjal

“Hoje recebi no ministério o querido maquiador @agustinofficial para


colaborar em uma campanha de combate à violência contra a mulher. Com a
sua sabedoria e estratégia, iremos desenvolver políticas de qualidade para
capacitação profissional das vítimas”
Damares Alves, ministra da Família, da Mulher e dos Direitos Humanos, pelo
Twitter, talvez interessada em maquiar os olhos roxos das vítimas. A conferir.

“Se, num cálculo modesto, três por cento dos brasileiros são gays, eles são
seis milhões de pessoas. Por que então só 24 mil deles votaram no tal Jean
(Willys)? É que, obviamente, ele não representa a população gay. Isso para
mim é o óbvio dos óbvios.”
Olavo de Carvalho, guru e contabilista dos bolsonaristas, pelo Twitter. “Vai ver
não deu pra todo mundo se mudar pro Rio de Janeiro ao mesmo tempo”,
especulou a jornalista Cecília Oliveira

“Assumimos um Brasil ainda em crise em todos os sentidos. Sabemos a


dificuldade que é tentar consertar tudo isso. O sistema não desistirá, mas
estamos determinados a mudar os rumos do país e fazer diferente dos
anteriores, já que são eles os responsáveis pelo que estamos passando”
Jair Bolsonaro, em seu Diário Oficial, o Twitter, creditando aos governos
anteriores a safra recorde de laranjas

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Marcelo Camargo/Abr


O jantar dos ricos
Miúdas considerações a respeito de uma burguesia de caricatura

Por Mino Carta

Retrato implacável de como tudo começou

| | |

Peço licença para abordar um assunto trivial, muito aquém de secundário,


haverá quem diga. Fui jantar, noites atrás, em restaurante fino, felizmente o
anfitrião, ele e a mulher amigos fraternos, pagou a conta. Garçons de roupas
variegadas, frequentadores, a lotarem o local, da chamada classe média
brasileira que de média não tem coisa alguma. Cavalheiros de camiseta e
jeans, estilo PCC, damas empetecadas à desmesura, reluzentes de ouros e
pedrarias. Fiapos de conversas, ao atingirem meus ouvidos, denunciavam o
vácuo de Torricelli a habitar suas cabeças.

Um dos pratos importantes trazia frutos do mar excitados por uma nevasca de
bottarga ralada. Trata-se de um típico produto da Sardenha, onde nasceram,
entre outros, Antonio Gramsci, Enrico Berlinguer e meu avô paterno. Era ele
da região de Oristano, onde se produz a melhorbottarga de toda a ilha e onde
costumo visitar primos muito queridos. Por isso tornei-me perito em matéria
de tainha mediterrânea, forçada a pastar nas lagunas comuns do mar sardo, e
as de Oristano são as mais ricas em pastagens subaquáticas. Os ovários das
fêmeas são retirados na hora certa, colocados debaixo de um peso depois de
salgados. As ovas endurecem envoltas por uma pele finíssima, formam duas
sacolas achatadas unidas no alto, e esta é a iguaria, que tanto pode ser
fatiada quanto ralada.

Para alegria dos nossos abastados a par de novidades gastronômicas mal


digeridas, surge quem afirme que produz bottarga nativa, o que talvez seja
possível em algum recanto do Mediterrâneo ou do Mar Negro capaz de repetir
as condições da Sardenha, por aqui jamais. Consta que o chef Alex Atalla,
colocado entre os melhores do mundo por uma revista da Nestlé que
anualmente se atribui competência para elaborar a classificação, cria tainhas
no quintal, não sei em qual contêiner. Uma piscina? Certo é que existe uma
fábrica de bottarga catarinense. Mastiga deleitada a minoria verde-amarela, a
qual, sublinho, ainda não entendeu que em Paris, Roma, Lisboa, Londres e
outras cidades e vilas europeias será inútil pedir um copo de vinho chamando-
o de taça.

Primeiro: a tainha do Mediterrâneo não é a do Atlântico, a começar pelo


plâncton, que, obviamente, não é o mesmo. Além disso, Santa Catarina ou o
quintal de Atalla não se parecem com as costas sardas. Mas no restaurante
fino o garçom trajado a caráter aproxima-se na ponta dos pés a imitar o
banderillero, munido de um ralador e de uma espécie de grosso e
sinistramente violetado objeto misterioso de formato cilíndrico, e diz ser
bottarga, dulcis in fundo do prato sobre o qual se reclina como se estivesse a
fatiar trufas brancas de Alba. Prepara-se a servir meu anfitrião, e eu não me
contenho: “Não, este troço não”. Em nada se assemelha à bottarga, cor de
âmbar brilhante e feições inconfundíveis.

Cheguei à conclusão de que esta parva categoria social que não justifica o
nome de burguesia seria capaz de comer, perdão, degustar a receita
seguinte: cocô de galgo, ou de outra raça nobre, conforme ela própria
definiria, sobre torradas ao forno de lenha, previamente cobertas por uma
camada de manteiga normanda de Coutances, a inebriar o menino Marcel
Proust só pelo nome. Uma tropa incapaz de perceber o grau atingido de
ridículo exorbitante é altamente representativa daquele 1% da população que
ganha acima de 7 mil reais por mês, e daí para cima.

Tanta parvoíce tem suas raízes antigas. No fundo, a implacável gravura de


Debret que retrata o almoço na casa-grande é um excelente introito aos dias
a seguir tempo adentro. Houve, porém, momentos mais dignos. Lévi-Strauss,
ao fugir da perseguição racial nazista, veio ao Brasil antes da Segunda
Guerra Mundial e sobre a sua passagem pelo País escreveu Tristes Trópicos,
um livro que, certamente, os frequentadores do restaurante fino não leram. A
respeito dos quatrocentões paulistas que lhe deram guarida escreveu: “Eles
se acham refinados e não sabem como são típicos”. Ainda assim, acabavam
de fundar uma universidade onde lecionariam, além de Lévi-Strauss, figuras
do porte de Braudel, Ungaretti, Fantapié, Albanese.

Perdoem se em vez de um editorial escrevi uma crônica. Nestes tempos


dolorosa e gravemente doentes, preferi escapar dos temas habituais, eu
mesmo enfadado pela constatação inevitável da desgraça. •

ÍNDICE

CRÉDITO DA PÁGINA: Um Jantar brasileiro – Jean-Batiste Debret


PSDB/ A assombração do tucanato
Preso novamente pela PF, Paulo Preto ameaça revelar segredos do caixa
do partido e arrasta Aloysio Nunes Ferreira para a mira da Lava Jato

Em uma das milionárias contas de Paulo Preto na Suíça... foi emitido um cartão em nome
de Nunes Ferreira, afirma o MPF

| | |

O ex-diretor da Dersa, Paulo Vieira de Souza, conhecido como Paulo Preto e


apontado como operador de propinas do PSDB, foi preso novamente pela
Polícia Federal na terça-feira 19, na 60ª fase da Lava Jato. Ele é acusado de
manter 100 milhões de reais em espécie que seriam utilizados pela Odebrecht
para pagar propina a políticos e irrigar campanhas eleitorais entre 2010 e
2011.

Nesse mesmo dia, foram cumpridos 12 mandados de busca e apreensão em


quatro municípios paulistas. Alguns dos endereços são ligados a Aloysio
Nunes Ferreira, ex-ministro das Relações Exteriores de Temer e presidente
da Investe SP, agência de estímulo a investimentos no estado de São Paulo.
Logo após a operação, ele entregou uma carta de demissão ao governador
João Doria.
O ex-diretor da Dersa movimentou ao menos 130 milhões de reais em contas
na Suíça de 2007 a 2017, apontam extratos bancários enviados por
autoridades daquele país. Segundo o Ministério Público Federal, em uma
dessas contas foi emitido um cartão de crédito em favor de Nunes Ferreira em
dezembro de 2007, que teria sido entregue a ele em um hotel em Barcelona.

À época, ele era secretário da Casa Civil do governo de São Paulo, na gestão
de José Serra, também do PSDB.

Paulo Preto assombra o tucanato paulista desde as eleições de 2010, quando


se tornou uma pedra no sapato de Serra. Na ocasião, ele foi acusado por
integrantes da legenda de ter embolsado cerca de 4 milhões de reais doados
por empreiteiras para o então candidato tucano à Presidência. Seu poder de
barganha ficou evidente naquele ano: prestes a ser abandonado por seus
correligionários em meio às denúncias, ele fez uma ameaça velada, forçando
o partido a recuar na sua fritura. “Não se larga um líder ferido na estrada”,
disse à Folha de S.Paulo.

Agora, segundo informações vazadas à mídia, Paulo Preto ameaça delatar a


existência de uma “conta-ônibus” na Suíça, em nome de vários titulares, todos
tucanos, entre eles Nunes Ferreira. O ex-chanceler nega as acusações e
disse não saber por que é investigado. “Estou em busca do que existe nesse
inquérito. O delegado que conduziu a diligência não pode me dizer, porque o
inquérito está em segredo, então estou buscando saber o que que há”, disse,
antes de uma palestra na Fundação FHC, em São Paulo.

O crime da homofobia
Em voto de 155 páginas, o ministro Celso de Mello, decano do Supremo
Tribunal Federal, defendeu a criminalização da homofobia. Segundo ele, a
prática deveria ser equiparada ao crime de racismo, enquanto o Congresso
não criar uma legislação específica sobre a discriminação por orientação
sexual. “Sempre que um modelo de pensamento fundado na exploração da
ignorância e do preconceito põe em risco a preservação dos valores da
dignidade humana, da igualdade e do respeito mútuo entre pessoas, incitando
a prática da discriminação dirigida a comunidades expostas ao risco da
perseguição e intolerância, mostra-se indispensável que o Estado ofereça a
proteção adequada aos grupos hostilizados”, disse. Até o fechamento desta
edição, ele foi o único magistrado a proferir o voto no julgamento.

Rio de Janeiro/ Pobres no alvo


A Human Rights Watch pede à PF para investigar mortes
atribuídas a snipers em torre da Polícia Civil
Na segunda-feira 18, a Human Rights Watch pediu à Polícia Federal para
investigar as acusações de que franco-atiradores posicionados em uma torre
da Cidade da Polícia, no Rio de Janeiro, teriam executado ao menos dois
homens da comunidade de Manguinhos, na Zona Norte. No fim de janeiro,
Carlos Eduardo Lontra e Rômulo Oliveira da Silva foram abatidos por snipers,
segundo relatos de moradores ao Ministério Público e à Defensoria.

Testemunhas afirmam que as vítimas, assassinadas em dias diferentes, não


representavam qualquer ameaça quando foram baleadas. O Grupo de
Atuação Especializada em Segurança Pública, constituído por promotores
encarregados de investigar abusos policiais, abriu uma investigação formal
em 14 de fevereiro. “Dada a possibilidade de que o assassino seja um policial
civil, a investigação não deveria ser liderada pela Polícia Civil, mas pelo
Ministério Público do Rio de Janeiro e pela Polícia Federal”, defende Daniel
Wilkinson, diretor-adjunto da divisão das Américas da Human Rights Watch.

Em novembro, o governador Wilson Witzel defendeu o emprego de atiradores


de elite para abater criminosos com armas pesadas, mesmo que eles não
representem iminente ameaça à vida de outra pessoa. “A polícia vai fazer o
correto: mirar na cabecinha e... fogo.” Aparentemente, parte da tropa
entendeu o recado à sua maneira.

Menos um padre abusador


Por ordem do papa Francisco, o goiano Jean Rogers Rodrigo de Sousa, de
45 anos, foi expulso do clero. Acusado de abuso sexual contra ex-freiras e
noviças, ele havia sido ordenado há 19 anos. Deixou de ser padre, a mais
grave punição que a Igreja Católica pode impor a um sacerdote. Citado como
molestador por ao menos 11 mulheres, ele havia sido afastado de suas
funções anteriormente. Após a conclusão de uma investigação conduzida
pelo Vaticano, perdeu definitivamente o seu status eclesiástico. No sábado
16, Francisco também expulsou o americano Theodore McCarrick, de 88
anos, ex-cardeal e arcebispo de Washington, acusado de abusar de menores
e de assediar seminaristas adultos.

Venezuela/ O Vietnã é aqui


Donald Trump dá ultimato aos integrantes das forças armadas que
sustentam Maduro e Bolsonaro contribui para a tensão na fronteira

“Vão perder tudo”, diz o presidente dos EUA aos militares leais a Maduro

presidente dos Estados Unidos, Donald Trump, deu um ultimato aos militares
que sustentam o governo de Nicolás Maduro. Além de exigir o
reconhecimento do opositor Juan Guaidó como presidente interino da
Venezuela, estabeleceu prazo até o sábado 23 para que eles permitam a
entrada de “ ajuda humanitária” no país.

“Vocês podem escolher a generosa oferta de anistia de Guaidó de viver suas


vidas em paz com suas famílias e seus compatriotas”, discursou Trump. “Ou
vocês podem escolher o segundo caminho: continuar a apoiar Maduro. Se
escolherem esse caminho, vão perder tudo.”

”Em recente entrevista ao jornal mexicano La Jornada, Maduro disse que seu
país “se tornaria um Vietnã se um dia Trump mandasse o exército dos EUA
nos atacar”. E citava a existência de 2 milhões de venezuelanos armados e
prontos a defendê-lo. O governo brasileiro está disposto a contribuir para o
barril de pólvora na fronteira. Bolsonaro decidiu participar de uma operação
planejada pelos EUA, iniciativa que não segue regras da ONU e é vista com
desconfiança pela Cruz Vermelha.

De fato, a ação exala politicagem travestida de bom-mocismo. A ajuda


brasileira consiste na doação de alimentos e medicamentos, recolhidos por
caminhões dirigidos por venezuelanos sob as ordens de Guaidó, chefe da
Assembleia Nacional e líder da oposição a Maduro.

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CRÉDITOS DA PÁGINA: CARL DE SOUZA/afp e Nicholas Kamm/AFP - Marcelo


Gonçalves/Sigmapress/Folhapress e Pedro França/Ag. Senado
Prisão perpétua para
Lula?

Julgado por inimigos públicos, completamente silenciado, o


ex-presidente é um preso político

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Lula foi novamente condenado, desta vez a 12 anos e 11 meses de prisão na


ação do sítio em Atibaia. A pena soma-se àquela de 12 anos e 1 mês no
aberrante caso do triplex no Guarujá. Com 73 anos de idade e uma
condenação que totaliza 25 anos, Lula é alvo de uma ofensiva judicial que
não busca a justiça, mas a vingança e seu banimento político. Querem que
ele morra na cadeia.

Ao assumir temporariamente o cargo de Sérgio Moro, a juíza Gabriela Hardt


assinou a sentença do sítio em tempo recorde, logo antes de ser substituída:
precisava entregar o troféu da sua vida. Utilizando o pitoresco conceito de
“atos de ofício inexistentes”, apenas terminou o trabalho iniciado por Moro,
copiando, aliás, partes idênticas da sentença do triplex e ignorando os
argumentos da defesa.

O vício da acusação é o mesmo nas duas ações: onde está a prova de


recompensa? Ou seja, ainda que comprovados os serviços prestados pelas
empreiteiras na reforma do sítio de Fernando Bittar – que Lula frequentava –,
isso não configura crime se não houver uma medida objetiva do ex-presidente
de favorecimento das empreiteiras, o chamado “ato de ofício”.

O malabarismo de Moro e Hardt foi tentar associar essas obras a benefícios


obtidos pelas empresas na Petrobras, sem qualquer prova. Sem
verossimilhança, inclusive. Como disse o jurista Afranio Silva Jardim, “pela
linha argumentativa de Moro e sua turma, Lula teria que ser “o ‘corrupto’ mais
burro da história”. Primeiro, por não aumentar seu patrimômio. Segundo, por
trocar pequenas reformas em imóveis que não eram seus por contratos
milionários na Petrobras. Logo ele, apontado pelo PowerPoint de Dallagnol
como o “chefe do esquema”.

Enquanto isso, figuras “secundárias” teriam obtido recompensas bem


diferentes pelos mesmos benefícios às empreiteiras. Aécio Neves é acusado
de receber 50 milhões de reais só da Odebrecht, sem falar na mesada da
JBS. Cunha é acusado de embolsar 52 milhões só do consórcio Porto
Maravilha no Rio. Já Lula é condenado por uma reforma de 770 mil reais num
apartamento e mais 920 mil num sítio que a própria juíza reconheceu não ser
dele. A conta não fecha. É evidente a forçação de barra para mantê-lo na
cadeia.

O caráter político de sua condenação e prisão foi escancarado ao mundo pela


trajetória de Moro. O homem responsável pela sentença que impediria Lula de
concorrer à Presidência, quando era líder em todas as pesquisas, e que
também tornou pública uma delação antiga de Palocci às vésperas das
eleições para interferir no jogo, tornou-se ministro da Justiça do principal
adversário de Lula.

Em qualquer democracia do mundo essa sequência de fatos seria suficiente


para tornar suspeitas e mesmo anular as decisões judiciais. A repercussão da
nomeação de Moro pelo capitão tomou proporções internacionais. “Bolsonaro
promete alto cargo a juiz que aprisionou seu rival”, apontou o britânico Times,
escancarando o escárnio que mais uma vez foi naturalizado por grande parte
da mídia brasileira.

Não bastasse, ainda é possível ouvir o argumento de que o ex-presidente não


está acima da lei e por isso deve cumprir sua pena silenciosamente. Acima da
lei não está, mas tampouco deveria estar abaixo. É o que ocorre de modo
flagrante: o processo de Lula é tratado como um caso de exceção pela
negativa, quase um homo sacer, na definição de Giorgio Agamben.

Citemos apenas alguns episódios. Logo antes de sua prisão, a ministra


Cármen Lúcia atuou de modo escancarado para impedir a votação sobre a
prisão em segunda instância, na qual havia maioria consolidada para impedir
o arbítrio.

Na véspera do julgamento de seu habeas corpus, o comandante do Exército


intimidou, pelo Twitter, o Supremo Tribunal Federal com palavras ambíguas a
respeito de uma eventual soltura de Lula. As decisões de um desembargador
do TRF4 e de um ministro do STF que permitiam sua liberdade, ainda que
temporária, simplesmente não foram cumpridas e depois rapidamente
suspensas.

Desde que foi preso, uma série de chicanas jurídicas impossibilitam Lula de
conceder qualquer tipo de entrevista, direito estendido a inúmeros presos
brasileiros. No mês passado, o ex-presidente foi covardemente impedido de
comparecer ao velório do próprio irmão. Julgado por inimigos públicos,
completamente silenciado e privado da despedida de um irmão, Lula é um
preso político. Querem fazê-lo morrer na cadeia, situação que ele tem
enfrentado com grande dignidade.

O Supremo tem uma oportunidade de interromper esse absurdo em abril,


quando for julgar o tema da prisão em segunda instância. Basta fazer valer o
que diz a Constituição. E, é claro, não se render a armações casuísticas –
como uma eventual condenação a jato no STJ – para que a definição não
valha para o ex-presidente.

A luta pela liberdade de Lula segue como parte importante das tarefas
democráticas que a oposição brasileira tem diante de si. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


Reforma anacrônica
As medidas propostas não levam em conta as profundas mudanças em curso no
mercado de trabalho

Por Luiz Gonzaga Belluzzo

Bolsonaro está alegre, mas não encara o futuro

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Na embolada do (des)ajuste promovido pelos paladinos do conservadorismo


econômico, a inteligência brasileira, ou a falta dela, está a se afogar nas
esperanças angustiadas da reforma da Previdência.

Entre tantas propriedades milagrosas da Reforma, a mais proclamada é a


volta do crescimento vigoroso amparada nas expectativas favoráveis dos
mercados, embevecidos com a coragem e presteza do novo governo.
Finalmente, dizem, um governo empenhado em exorcizar definitivamente o
demônio do desequilíbrio fiscal.

Os desconfiados que ainda deambulam nos vazios das certezas indagam de


seu bom senso se a badalada Reforma tem mesmo as virtudes apregoadas
urbe et orbi. Não há como negar os propósitos de maior equidade das
reformas propostas, à exceção dos golpes assentados nos miseráveis
amparados pelos Benefícios de Prestação Continuada e nos trabalhadores
rurais.

Os argumentos dos reformistas partem de um fenômeno demográfico, o Brasil


envelheceu. Uma boa notícia: o IBGE informa que a esperança de vida dos
brasileiros e brasileiras alcança 74,4 anos. O envelhecimento juntou-se à
queda acentuada da taxa de natalidade, promovida pela rápida urbanização
que acompanhou a industrialização eloquente das três primeiras décadas do
Pós-Guerra. Se há males que vêm para o bem, há bens que vêm para o mal.
No regime de repartição, já foi dito, os que trabalham financiam os que estão
aposentados. No galope do tempo, a “nova” dinâmica populacional promete
um desequilíbrio perverso entre os que trabalham e contribuem com a
Previdência e aqueles que se aposentam e abocanham os benefícios.

Os estudos sobre as consequências da globalização produtiva e da rápida


introdução das novas tecnologias vislumbram o crescimento dos
trabalhadores ditos independentes, em tempo parcial e a título precário,
sobretudo nos serviços, e a destruição dos postos de trabalho mais
qualificados na indústria. O inchaço do subemprego e da precarização não só
achata, como torna incertos os rendimentos dos trabalhadores, além de
desobrigar os empregadores de prestar suas contribuições.

Na nova economia “compartilhada”, “do bico”, ou “irregular”, prevalece a


incerteza a respeito dos rendimentos e das horas de trabalho. Algumas
projeções estimam que, nos próximos cinco anos, mais de 40% da força de
trabalho global estará submetida a um emprego precário. Essas
transformações nos mercados de trabalho fragilizaram inexoravelmente o
regime de repartição. A carteira verde-amarela de Paulo Guedes vai jogar
mais água na fervura.

“A reforma é um ajuste de contas com o passado”, analisa


José Roberto Afonso

É uma ilusão imaginar que o regime de capitalização, prometido de forma


vaga no texto da reforma, possa remediar os riscos embutidos nas
transformações em curso nos mercados de trabalho. O economista José
Roberto Afonso botou o dedo na ferida: “A reforma é um ajuste de contas com
o passado”. Nos debates que se seguiram à apresentação das medidas, não
há qualquer menção à imperiosa necessidade de uma reforma tributária,
imprescindível para acompanhar as intenções de equidade das alterações na
Previdência.

História antiga. Na década dos 80 do século XIX, Otto von Bismark, o


Chanceler de Ferro, sob o acicate da industrialização e as pressões do
movimento socialista alemão, criou a Seguridade Social fundada no regime de
repartição. Empregados e empregadores passaram a contribuir para o fundo
comum destinado a prover defesas contra os infortúnios do mundo do
trabalho. O Kaiser anunciou o programa em 1881. O auxílio-doença foi criado
em 1883, o seguro contra acidentes do trabalho em 1882, e o sistema de
aposentadorias em 1889. Os proventos dos aposentados eram modestos e o
período de qualificação muito longo.

Nos Estados Unidos, Franklin Delano Roosevelt entregou o Social Security


Act ao povo americano em 1935. Na Inglaterra, na primeira eleição realizada
depois de 1945, o trabalhista Clement Attlee derrotou o grande liberal Winston
Churchill. Acompanhado por Aneurin Bevan, seu Ministro da Saúde, pai do
National Health Service, Attlee desenhou a arquitetura do Estado do Bem-
Estar britânico, inspirado no relatório preparado por outro liberal, Sir William
Beveridge.

Em 1942, na Inglaterra ainda maltratada pela guerra, pelo racionamento e


pela debilidade econômica, Sir William Beveridge, em seu lendário Relatório,
fincou as estacas que iriam sustentar as políticas do Estado do Bem-Estar. O
Relatório Beveridge recebeu a colaboração das concepções da Teoria Geral
do Juro, do Emprego e da Moeda – obra magna do liberal, porém iconoclasta,
John Maynard Keynes.

Beveridge apontou os “Demônios gigantes da vida moderna” que os governos


estavam obrigados a enfrentar: Carência, Doença, Ignorância, Miséria e
Inatividade. Em seu Relatório, proclamou que a ignorância é uma erva
daninha que os ditadores cultivam entre seus seguidores, mas que a
democracia não pode tolerar entre seus cidadãos.

Essa forma de financiamento da seguridade social, o regime de repartição,


conheceu seu auge e glória na posteridade da Segunda Guerra Mundial, à
sombra do Estado do Bem-Estar. O pleno emprego foi colocado como uma
meta a ser perseguida pelas políticas econômicas. Muitas constituições
europeias consagraram esse princípio. A nova Constituição dizia ser a Itália
uma república baseada no direito ao trabalho, assegurado a todos os italianos
no artigo 1º. Os Estados Unidos promulgaram uma lei. No Pós-Guerra, o
rápido crescimento das economias capitalistas esteve apoiado numa forte
participação do Estado, apoiada na elevação da carga tributária abrigada em
um sistema tributário progressivo, medidas destinadas a impedir flutuações
bruscas do nível de atividades e a garantir a segurança dos mais fracos
diante das incertezas inerentes à lógica do mercado.

O Estado do Bem-Estar estava fundado, sobretudo, na articulação de


interesses entre trabalhadores e capitalistas, empenhados na construção de
instituições destinadas a reduzir a angústia de quem se propõe a assumir
riscos e enfrentar os azares do mercado. Os regimes de Seguridade Social
estavam assentados no princípio de solidariedade. Ao reduzir a insegurança
das famílias assalariadas, esses regimes tiveram papel importante na
expansão do consumo das classes menos favorecidas.
As políticas econômicas tinham o propósito de criar empregos e elevar, em
termos reais, os salários e demais remunerações do trabalho. O continuado
aumento da renda e do emprego fazia crescer a receita dos governos. Há
quem diga que o Brasil, ao promulgar a Constituição de 1988, entrou tardia e
timidamente no clube dos países que apostaram na ampliação dos direitos e
deveres da cidadania moderna. É um exagero. •

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CRÉDITO DA PÁGINA: Luis Macedo/Câmara dos Deputados


Quatro cabeças, nenhum
governo
Com um presidente despreparado a manipular filhos falastrões, a queimada do
laranjal alastra-se e deixa o cabaré em chamas

Por Fred Melo Paiva

No bebê conforto do Rolls-Royce, o intruso Zero Dois

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Era melhor que o dia não tivesse amanhecido, mas, sendo impossível,
amanheceu. As ruas da capital encheram-se de camisas da CBF, tapados
acorreram aos melhores postos, a atmosfera preencheu-se da festiva alegria
dos internos de um manicômio enfim emancipados. A “inexorável marcha do
tempo” fez despontar no horizonte o Rolls-Royce conversível modelo 1952. A
despeito da história de que tenha sido presente da rainha Elizabeth II, da
Inglaterra, fora encomendado pela Presidência por Getúlio Vargas, ensina o
biógrafo Lira Neto. Na posse de Collor, transportou o presidente eleito e o
topete indomável de seu vice, Itamar Franco. Na de Fernando Henrique, no
primeiro mandato, a careca de Marco Maciel ofereceu melhor aerodinâmica.
Lula também deu carona ao vice, José de Alencar. Dilma mandou trocar a
placa do carro, de “Presidente” para “Presidenta do Brasil”. Previdente, viajou
com a filha Paula, livrando-se de ser arremessada na pista por Michel Temer,
que se acomodou em um Cadillac logo atrás.

O Recruta Zero e seus Zeros à esquerda, Flávio, Eduardo e Carlos

Por razões de segurança, Gustavo Bebianno preferia o papamóvel, imune a


tiros e laranjas que por ventura pudessem ser arremessadas, embora ainda
não fosse época do cítrico doce. Foi voto vencido. Na manhã de 1o de janeiro
de 2019, coube mesmo ao Rolls-Royce o carreto de Bolsonaro, que fase!
Enquanto o general Mourão deslocava-se pela retaguarda a esmagar os
cocôs cavalares obrados pelos Dragões da Independência, o capitão e a
primeira-dama acenavam aos libertos do sanatório. No banco de trás, para
espanto do cerimonial, havia um intruso: Carlucho ali se aboletara, sabe-se lá
como.

Carlucho é o vereador carioca Carlos Bolsonaro, o segundo filho do


presidente, a quem deve ainda dois outros codinomes, Zero Dois e Pit Bull.
Desprovido de focinheira, mordeu o então secretário-geral da Presidência,
Gustavo Bebianno, cuja fidelidade canina a Bob Pai jamais comoveu Bob
Filho, tretados ambos desde a campanha, coordenada pela vítima.
Supostamente, a razão da cizânia seria a Secretaria Especial de
Comunicação Social, a Secom, almejada pelo Pit Bull, mas abocanhada por
seu desafeto. Tão logo o pomar de laranjas do PSL começou a se revelar um
agronegócio, Bebianno, que presidiu o partido durante a campanha
fraudulenta, foi posto pela imprensa na linha de tiro. Em entrevista ao jornal O
Globo, negou que o laranjal estaria a transformá-lo, com o perdão da
insistência no hortifrutigranjeiro, em espécie de laranja podre dentro do
governo. “Falei três vezes com o presidente hoje”, desdenhou. Com uma
única tuitada em que acusava o secretário-geral de mentiroso, Bob Filho
negou as conversas, incitou a matilha e mordeu-lhe os calcanhares. Bob Pai
terminou o serviço.

Bob filho, o Pit Bull, mordeu Bebianno e incitou a matilha.


Bob pai terminou o serviço

O episódio é apenas o último a envolver em “polêmicas” os patetas Zero Um,


Zero Dois e Zero Três. Mas, pela gravidade de seu desfecho, ainda
imprevisível (ver reportagem à página 24), instalou-se a barafunda: teremos
nós (eu não) eleito Carlucho quando pretendíamos eleger Jair? O colunista
que virou a casaca, Tio Rei, viu no bebê conforto do Rolls- -Royce a chave
para entender o playground em que neste momento nos encontramos, “é
preciso fazer o rapaz apear daquele Rolls-Royce para que este governo
consiga chegar a bom termo”. Outro, na Folha de S.Paulo, sugeriu os
militares, além de Sérgio Moro e Paulo Guedes, como candidatos naturais a
adultos na sala. Enquanto nos assalta a tentação do brado retumbante, “eu
avisei”, perguntamos aos botões: estaria o pai a usar os filhos para dizer o
que pensa, ou seria o pai manipulado por seus “garotos”? “Está claro que eles
são uma coisa só, um clã que age em acordo”, diz o cientista político
Fernando Papaterra Limongi, professor da Escola de Economia de São Paulo
da Fundação Getulio Vargas, em entrevista a Carta Capital. “O problema é
apenas um: o Brasil escolheu dar o poder a um maluco completo, a alguém
que deveria estar internado, uma pessoa totalmente incapaz e despreparada.”
Em editorial, até o alquebrado Estadão desceu a lenha, arriscando-se a juntar
às três cabeças de Cérbero o próprio Diabo: “Não tendo o presidente a
necessária condição técnica e administrativa para substituir Bebianno a tempo
e hora, e muito menos coragem para enquadrar seus meninos, comete o
pecado capital de deixar o Brasil ser governado por um quadrunvirato”.

Para compreender como se dão as coisas entre os Bolsonaro, voltemos no


tempo. No início da década de 1990, Jair lançou candidata a vereadora a
esposa Rogéria Nantes Braga Bolsonaro, a mãe dos três Zeros à esquerda.
Graças ao sobrenome do capitão, foi eleita e reeleita. Em 1997, no entanto, o
casal se separou. Eis a justificativa do marido para o desenlace, publicado à
época pela revista de fofocas IstoÉ Gente: “O relacionamento despencou
depois que elegi a senhora Rogéria Bolsonaro vereadora, em 1992. Ela era
uma dona de casa. Por minha causa, teve 7 mil votos e foi eleita. Acertamos
um compromisso. Nas questões polêmicas, ela deveria falar comigo para
decidir o voto dela. Mas começou a frequentar o plenário e passou a ser
influenciada pelos outros vereadores. Eu a elegi. Ela tinha que seguir minhas
ideias. Acho que sempre fui muito paciente, mas ela não soube respeitar o
poder e a liberdade que lhe dei”.
Rogéria, o marido e os garotos. Carlos (centro) tomou os votos da mãe depois da separação

Jair sobre a ex-mulher: “acertamos um compromisso. eu a


elegi, tinha que seguir minhas ideias”

Já separada do marido, Rogéria decidiu tentar uma segunda reeleição. E o


que fez Jair? Lançou o filho para tomar os votos da própria mãe. E dessa
forma maravilhosa iniciou-se a carreira política de Carlos Bolsonaro, então um
estudante do Ensino Médio, eleito aos 17 anos o vereador mais jovem da
história do Rio de Janeiro. O caso foi resgatado pelo site DCM em registros e
depoimentos de Rogéria à Polícia Civil, por ocasião do espancamento do
assessor político Gilberto Gonçalves em 2000. Antes aliado de Jair, Gilberto
decidira ajudar na campanha de Rogéria. Foi atacado por três homens,
enquanto distribuía panfletos na Zona Norte do Rio.

A correta compreensão do “quadrunvirato” exige um mergulho nas redes


sociais. “O governo Bolsonaro acontece nas entrelinhas do Twitter”, diz a
jornalista Claudia Castelo Branco, mestre em Comunicação, Tecnologia e
Mercado pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo. Claudia especializou-
se na análise de imagem e desempenho em mídias digitais, e trabalhou para
a Presidência nos governos Dilma e Temer. Debruça-se hoje sobre a incrível
produção de posts da família Adams ora alçada ao poder. Os Bolsonaro
moram no Twitter. Pela espantosa frequência com que dedilham mensagens
no microblog, fica-se a saber se lhes resta tempo para alguma outra atividade.
“A fraqueza de Jair Bolsonaro está nas aparições públicas, em que é
inexpressivo. Em Davos, foi visível seu desconforto, o medo de gaguejar, o
jeito robótico”, analisa. “A partir da rede social, ele pode comandar o Brasil
sem que avaliem seu despreparo ao falar, sem ter de lidar diretamente com a
imprensa e, principalmente, protegido pela imagem que construiu no mundo
virtual, a de homem valente, sincero e autêntico.”
Carlos Bolsonaro, o Zero Dois, é um tuiteiro frenético. Ao que parece, entende
do riscado: foi ele o principal arquiteto da estratégia de campanha do pai nas
redes sociais, motivo pelo qual desejava a Secom, que acabou sob a guarda
de Bebianno. Segui-lo no Twitter, contudo, exige a paciência de Jó, o
autocontrole de Buda e tudo o mais que possa espantar as energias
negativas, folha de arruda, pé de coelho. Suas mensagens são um
compêndio de ódios, rancores, maledicências, insinuações, distorções,
preconceitos. Se o assunto for a rebimboca da parafuseta, ele dará um jeito
de transformá-lo numa intriga odiosa. Há frases desconexas, mensagens
cifradas e paranoias diversas. O português não é o seu forte. De quando em
vez, suas postagens descambam para cenas chocantes, como o vídeo de um
cachorro abatido a pauladas – pelo menos o Pit Bull ficou do lado do
cachorro, ufa, dificilmente seria o mesmo se fosse um ser humano.

No

Para o cientista político Fernando Limongi, Jair é “maluco completo”. Para a analista de
mídias digitais Claudia Castelo Branco, “manipulador”

jogo político, a fama de descontrolado confere ao Zero Dois certas atribuições


na hora de confeccionar suas “tresloucadas” mensagens. “Os tuítes de Carlos
Bolsonaro funcionam como um escudo para a família”, diz Claudia Castelo
Branco. “Ele está ali deliberadamente para se ‘sacrificar’ em nome dos outros,
enquanto busca uma autoafirmação típica de crianças que se habituaram a se
submeter aos pais, desenvolvendo dúvidas sobre a própria capacidade e
vergonha pelos seus fracassos.” Quando a queimada no laranjal do PSL
ameaçou atingir o cabaré, o presidente da Câmara, Rodrigo Maia, elevado a
estadista por comparação com o chefe do Executivo, teve “a impressão de
que o presidente está usando o filho para pedir para o Bebianno sair”. Para
Claudia, bingo!

Cérbero é o monstruoso cão de três cabeças que, na mitologia, guarda a


porta do Inferno. Por óbvio, a primeira delas é o Zero Um, distinção conferida
ao agora senador Flávio Bolsonaro por ser o mais velho dos filhos de Jair.
Zero Um formou-se em Direito, não conseguiu a carteira da OAB, mas, ainda
assim, dedicou-se a uma pós-graduação lato sensu em políticas públicas. Foi
deputado estadual no Rio de Janeiro e candidatou-se à Prefeitura em 2016
tendo como vice Rodrigo Amorim, aquele que se tornou deputado federal
depois de quebrar a placa de rua com o nome de Marielle Franco na
campanha passada (e emoldurar no gabinete em Brasília o pedaço que
sobrou). Durante a disputa, sua performance mais notável foi um desmaio no
debate da Rede Bandeirantes. A médica e deputada federal Jandira Feghali,
então concorrente pelo PCdoB, apressou-se a socorrê-lo, mas foi impedida
por Jair: “Ela vai dar estricnina para o meu filho!” Em tempos de vacas magras
e laranjas com pouco suco, Flávio pintava à mão as camisas de campanha do
pai a vereador. Recorria então às imagens do Recruta Zero, personagem dos
quadrinhos. Advêm daí Zero Um, Zero Dois e Zero Três. Teria ainda o Zero
Quatro, Renan, de 20 anos, jogador de videogame cujo avatar prefere a
alcunha de Bolsokid. Poderia ter havido também o Zero Cinco, se não tivesse
acontecido a “fraquejada” que, segundo o pai, acabou por gerar uma filha
mulher.

“Meu pai sempre nos defendia quando fazíamos alguma arte”, contou o
traquinas Zero Um à revista Piauí em perfil do pai publicado em 2016. “Minha
mãe é que era mais durona.” Considerado a cabeça ponderada de Cérbero,
Flávio foi o pivô do caso Queiroz, o primeiro a indicar a safra recorde de
laranjas. O ex-assessor e ex-motorista Fabrício Queiroz movimentou 1,2
milhão de reais em um ano, de maneira considerada “atípica”, segundo
relatório do Coaf, o Conselho de Controle de Atividades Financeiras. Policial
militar aposentado, Queiroz é amigo de Jair Bolsonaro desde a década de
1980. Trabalhou por mais de dez anos como segurança e motorista de Flávio,
até ser exonerado em outubro do ano passado. Sua filha, Nathalia, também
foi funcionária do Zero Um. Demitida em dezembro de 2016, foi nomeada
para o cargo de secretária parlamentar de Jair em Brasília menos de uma
semana depois. Tinha o dom de estar em dois lugares ao mesmo tempo, visto
que o relatório de presenças no gabinete de Bob Pai não apresenta uma
única falta de Nathalia, que também atuava como personal trainer de
celebridades no Rio de Janeiro. Da conta de Queiroz saíra um cheque de 24
mil reais destinado à primeira-dama, razão pela qual ganhou nas redes o
apelido de Micheque. Segundo o presidente, era parte do pagamento de um
empréstimo que fizera ao amigo no valor de 40 mil, afinal o sujeito que
movimenta 1,2 milhão também tem o direito a estar na pindaíba.

Ainda em dezembro, Quei-roz faltou a dois depoimentos no Ministério Público.


“Deu o Quei-roz”, sumiu, escafedeu-se, virou o novo Amarildo: “Cadê o
Queiroz?” Uma semana depois, apareceu em entrevista no SBT, que
juntamente com a Record forma o pool de assessoria de imprensa do atual
governo. Justificou a movimentação incompatível com a renda, alegando
negócios que teria no ramo de compra e venda de carros usados. “Eu sou um
cara de negócios, eu faço dinheiro, comprava um carrinho, mandava arrumar,
vendia.” É possível que depois da entrevista ninguém mais se aventure a
comprar um carro usado do Queiroz. A convalescer de um câncer tratado no
Hospital Albert Einstein, refugiou-se na comunidade de Rio das Pedras,
dominada pela milícia do Escritório do Crime, suspeita do assassinato de
Marielle Franco. Mãe e esposa do chefe da organização, o PM foragido
Adriano Magalhães da Nóbrega, trabalharam por dez anos no gabinete de
Flávio, na Assembleia Legislativa do Rio. Claro que são apenas
coincidências.

Eis o modus operandi: Carlos morde, Flávio pondera, Eduardo


busca os culpados, Jair manipula

Zero Um alega não ter relação com os negócios do amigo, mas preferiu “dar o
Queiroz” no dia de seu depoimento ao MP. Uma semana depois, pediu a
suspensão das investigações no STF, reivindicando o foro privilegiado. “Deu o
Queiroz” também nas redes sociais. Depois de o Coaf apontar como
suspeitos 48 depósitos em dinheiro na conta do senador em apenas um mês,
a cabeça ponderada de Cérbero saiu de cena ou quase isso. “É possível que
esteja seguindo à risca a estratégia de sair do foco, combinada a uma agenda
de posts vinculados apenas às suas ações”, diz Claudia Castelo Branco. “A
fuga completa das redes não é uma boa estratégia para os políticos. O Aécio
Neves, por exemplo, não tuíta nada desde setembro de 2016.” Aécio é um
deputado-zumbi. Flávio Bolsonaro foi escolhido o 3o secretário da Mesa
Diretora do Senado. “O Brasil está mudando”, tuitou um dia antes o
procurador Deltan Dallagnol, a comentar sobre a eleição do presidente da
casa.

Zero Três em três atos: como “chanceler” em campanha, a destilar ódio com o deputado
Mamãe Falei e no churrascão do Queiroz
Por fim, há o Zero Três, o deputado federal pelo PSL de São Paulo Eduardo
Bolso-naro. Conhecido também como Bolsonarinho, disse bastar um soldado
e um cabo para fechar o STF, o que gerou uma crise com a Corte. Eleito o
Bob Pai, Bob Filho saiu em turnê internacional. Travestido de chanceler,
prometeu a mudança da embaixada brasileira em Israel de Tel-Aviv para
Jerusalém, cidade sagrada em disputa entre judeus e árabes, cumbuca na
qual é prudente não meter as mãos. Foi visto nos Estados Unidos com um
boné que fazia campanha pela reeleição de Donald Trump em 2020. Perto de
sua atuação como embaixador informal, o chanceler de fato Ernesto Araújo
parece uma pessoa razoável, ainda que belisque azulejo e atire pedra em
avião. No Twitter, as publicações do Zero Três são as mais compartilhadas
pelo Recruta Zero. “Sua função é cutucar, mandar indiretas, fabricar intrigas”,
revela Claudia. “Entre os filhos, é o calculista.” Para a analista, está claro que
Carlos morde, Flávio pondera, Eduardo “busca os culpados”, Jair manipula.

“A elite econômica achou que poderia controlar Bolsonaro, e apostou nisso”,


diz Fernando Limongi. “Com um mês e meio de governo, porém, já se espera
que vá emergir alguém com ascendência sobre ele, e que possa encontrar o
seu lugar decorativo.” Entre os que subiram no Rolls--Royce em 1o de janeiro,
talvez o motorista. Desde que não tenha sido o Queiroz. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Bruna Prado/Getty Images/afp e Roberto Jayme/Ascom/TSE,


Reprodução/Mídia social, Reprodução/Mídia social.
Destrambelhado no leme
A primeira demissão ministerial expõe um Bolsonaro paranoico, autoritário e
dependente dos filhos. Mau sinal para um governo ao Deus-dará no congresso

Por André Barrocal

Bebianno cai e a ala militar avança

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Jair Bolsonaro decidiu aderir a um plano dos Estados Unidos de ajuda


humanitária à Venezuela que mais parece um rastilho de pólvora, capaz de
dar início a um conflito a partir do sábado 23, quando caminhoneiros
venezuelanos, sob as ordens do líder oposicionista Juan Guaidó, recolheriam
no Brasil e na Colômbia doações de alimentos e remédios, suprimentos que
Nicolás Maduro não quer deixar entrar em seu país, por ver aí uma ação
desestabilizadora de seu governo, uma desconfiança compartilhada pela Cruz
Vermelha com autoridades americanas no início do mês. Um dia após abraçar
o Tio Sam, Bolsonaro levou ao Congresso sua reforma da Previdência,
destinada a dificultar o acesso dos brasileiros à aposentadoria, pois é assim
que se melhoram as contas públicas na visão do ministro da Economia, Paulo
Guedes. Visita presidencial que teve uma irônica recepção, com deputados
do PSOL com laranjas na mão e avental da cor da fruta no peito, alusões ao
laranjal eleitoral montado do PSL, o partido do presidente.

Ações governamentais à parte, a estrela dos últimos dias em Brasília foi a


personalidade do ex-capitão. A primeira baixa ministerial, a mais rápida
demissão desde o início do governo Fernando Collor em 1990, mostrou um
Bolsonaro dissimulado e fortemente influenciado pelos filhos. Expôs também
um paranoico, autoritário, centralizador, o que não chega a ser surpresa na
pessoa em questão. Alguém viu um presidente desse tipo por aqui
recentemente? Quem sabe uma presidenta? Maus presságios para um
governo que é uma bagunça congressual. E que acaba de sofrer a primeira
derrota parlamentar por obra de gente descontente. E que precisa aprovar a
reforma da Previdência para não perder a confiança do dito “mercado”, um de
seus pilares de sustentação.

O jeitão meio rousseffiano do ex-capitão ficou patente em uns áudios


divulgados por Gustavo Bebianno após este ter recebido o bilhete azul do
cargo de secretário-geral da Presidência. Um total de 13 áudios trocados por
Bebianno com o chefe pelo WhatsApp, nos dias 12 e 13, dos quais 8 com a
voz do presidente. Era uma conversa motivada pelas reportagens da Folha
sobre o laranjal do PSL, sigla que Bebianno comandou em 2018. Em um dos
áudios, Bolsonaro manda o subordinado cancelar uma audiência que teria
com o lobista das Organizações Globo, Paulo Tonet Camargo. “Qual a
mensagem que vai dar para as outras emissoras? Que nós estamos nos
aproximando da Globo (…) Você está trazendo o maior cara que me ferrou
antes, durante e agora após a campanha para dentro de casa. Me desculpa:
como presidente da República, cancela. Não quero esse cara aí dentro e
ponto final.” Estranho. Dois ministros do Palácio do Planalto receberam Tonet
antes. Carlos Alberto dos Santos Cruz, da Secretaria de Governo, em 9 de
janeiro, e Augusto Heleno, do GSI, em 6 de fevereiro. Bolsonaro não se
aborreceu? Ah, eles são generais...

Em outro momento, Bolsonaro acusa Bebianno de vazar à mídia informações


de dentro do governo. Em um terceiro áudio, implica com uma agenda
governamental planejada durante sua internação. “Gustavo, uma pergunta:
‘Jair Bolsonaro decidiu enviar para a Amazônia?’ Não tô entendendo. Quem
tá patrocinando essa ida para a Amazônia?”, afirma. “Essa missão não vai ser
realizada. Eu conversei com o (ministro do Meio Ambiente) Ricardo Salles, ele
tava chateado porque tá com muita coisa para fazer e entendeu como uma
missão minha. Eu conversei com a Damares (Alves, ministra da Família), a
mesma coisa. Eu não quero que vocês viajem por quê? Vocês criam a
expectativa de uma obra, daí vai ficar o povo todo me cobrando.” Na viagem
em questão, autoridades anunciariam a construção de uma ponte e uma
hidrelétrica e a extensão de uma rodovia. Os cabeças da agenda? Militares.
Particularmente, o GSI de Heleno, general convencido de que a Igreja
Católica é inimiga e atacará o Brasil em um Sínodo sobre a Amazônia, em
outubro, daí ser necessário o governo agir na região.
A
ala

Distribuição de laranjas ampla e irrestrita

militar ampliou seu poder com a queda de Bebianno. O novo secretário-geral


da Presidência é outro general, Floriano Peixoto. Bolsonaro agora está quase
sitiado pela turma da farda. O único ministro sem quepe no Planalto é Onyx
Lorenzoni, da Casa Civil, candidato a ser a próxima vítima. Até que ponto
Bolsonaro, apesar de ex-capitão, pode confiar na tropa que o cerca? O vice-
presidente Hamilton Mourão, general de pijama, não para de dar declarações
na contramão do bolsonarismo, embora tenha defendido o chefe no caso da
divulgação dos áudios. “Foi uma deslealdade muito grande com o presidente.
O principal problema foram os áudios, pois rompe a intimidade”, disse à Rádio
Bandeirantes.

Nos últimos dias, circulou na mídia a informação de que um sobrinho de


Bolsonaro, Leonardo Rodrigues de Jesus, já esteve mais no Planalto do que o
próprio presidente: 58 vezes em 45 dias. Só quem tem essa informação
precisa são os militares do GSI, responsáveis pela segurança, e a Secretaria-
Geral, uma espécie de prefeitura do Planalto. Leo Índio, como é conhecido, é
próximo do filho do meio de Bolsonaro, Carlos, vereador no Rio. Atingir Leo é
atingir Carlos. Este publicou em novembro um intrigante comentário no
Twitter: “A morte de Jair Bolsonaro não interessa somente aos inimigos
declarados, mas também aos que estão muito perto. Principalmente após a
sua posse!”

Carlos foi o responsável pela degola de Bebianno, exoneração justificada pelo


presidente, através de seu porta-voz, general Otávio do Rêgo Barros, como
de “foro íntimo”. “O senhor Carlos Bolsonaro fez uma macumba psicológica
na cabeça do pai”, afirmou Bebianno à rádio Jovem Pan no dia em que
entregou os áudios à dupla de entrevistadores, os jornalistas Augusto Nunes
e Felipe Moura Brasil. Carlos havia chamado Bebianno publicamente de
Este tem tudo para ser o próximo expurgado

“mentiroso”, em 13 de fevereiro, pelo Twitter. “Ontem estive 24 horas do dia


ao lado do meu pai (no hospital) e afirmo: É uma mentira absoluta de Gustavo
Bebbiano (sic) que ontem teria falado 3 vezes com Jair Bolsonaro.” Alvejado
no caso do laranjal, o então ministro dissera à mídia que não havia crise no
governo e que falara três vezes com Bolsonaro no dia 12. As conversas
existiram, como se ouve nos áudios. O presidente mentiu. Seu filho, idem.

Pouco antes do tuíte de Carlos, Bolsonaro havia dito à Record, no hospital e


na presença do filho, que mandara a Polícia Federal investigar o laranjal e
que Bebianno era cabra marcado para morrer. “Se (ele) estiver envolvido,
logicamente, e responsabilizado, lamentavelmente o destino não pode ser
outro a não ser voltar às suas origens (demissão).” Mais uma vez, estranho.
Outro caso de tratamento diferenciado. O ministro do Turismo, Marcelo Álvaro
Antonio, chefe do PSL mineiro, é enrolado em candidaturas laranja de
mulheres. Uma destas, Cleuzenir Barboza, havia feito um BO na campanha,
em dezembro foi ao Ministério Público e agora falou à Folha. Segundo ela,
gente ligada ao ministro cobrava uma parte da grana que Cleuzenir recebera
para sua candidatura e que saíra do fundo partidário. Ela até apresentou uma
troca de mensagens de celular com um desses assessores, Haissander de
Paula, como prova. “Nós mulheres iríamos lavar o dinheiro para eles. Esse
era o esquema. O dinheiro viria para mim e retornaria para eles. Esse era o
esquema. R$ 10 mil foi o que me falaram que eu poderia ficar, foi aí que eu vi
que tinha erro. Eles falaram que eu poderia fazer o que eu quisesse. Onde já
se viu isso?”
Vinham desde a campanha as divergências entre Carlos e
Bebianno, o qual acha que o Brasil não pode ser governado na
base do ódio

“O ministro do Turismo é um cara corretíssimo. O Jair deve muito ao esforço


dele”, disse o presidente do PSL, deputado Luciano Bivar, que emprestara a
cadeira a Bebianno na eleição. Para Bebianno, se alguém tem culpa pelo
laranjal no PSL não é ele, Bebianno, e sim Bivar, já que, fora os casos de
Minas, os demais são de Pernambuco, terra de Bivar, um rico empresário do
ramo dos seguros. “Os parlamentares do PSL, sem nenhum demérito aos
outros, são muito qualificados”, comentou Bivar na Câmara na quarta-feira 20,
com o ator pornô Alexandre Frota, deputado do PSL, na nuca. Irritado com a
pecha de partido de laranjas, o bombado Frota outro dia esmagou uma fruta
no plenário, enquanto batia boca com a oposição.

As divergências de Carlos e Bebianno vinham desde a campanha. O vereador


é da confiança do pai para opinar nas redes sociais da internet. Bebianno
acha o rapaz prisioneiro de teorias da conspiração e muito agressivo,
conhecido no Rio como destruidor de reputações, embora às vezes possa ser
“doce”. Para Bebianno, o Brasil não pode ser governado na base do ódio. Ele,
inclusive, chegou a dizer publicamente que a pauta de costumes é “valiosa”
para o governo, mas o que importa mesmo, por ora, é a reforma da
Previdência. Bebianno também teve atritos com o caçula de Bolsonaro, o
deputado Eduardo. Este apoiou a realização, em julho de 2018, vésperas da
campanha, de uma Cúpula Conservadora das Américas. Bebianno convenceu
Bolsonaro a não participar, pois seria arriscar-se a perder a candidatura por
campanha antecipada. A cúpula só foi acontecer em dezembro, para bronca
de Eduardo.

O primogênito de Bolsonaro é outro motivo da desconfiança familiar com


Bebianno. Flávio está enrolado em transações imobiliárias, funcionário com
conta bancária suspeita e milicianos. Se perder o mandato de senador, quem
vai dar risada é um amigo de Bebianno. Dono da casa onde o presidente
gravou sua propaganda eleitoral no segundo turno da campanha, o
empresário Paulo Marinho foi enfiado por Bebianno goela abaixo do clã
Bolsonaro como suplente de Flávio. O clã desconfia que Bebianno e Marinho
possam ter alimentado o noticiário sobre Flávio. Teve jornalista em Brasília
que foi procurado por bolsonaristas após seu veículo ter publicado uma
reportagem a respeito do senador. “Foi o Bebianno que passou essas
informações? Foi o Paulo Marinho?”, conta esse jornalista.

Marinho é lobista no Judiciário. Gostava de cortejar um juiz em particular em


Brasília, Luiz Fux, do Supremo Tribunal Federal. Um filho de Fux, Rodrigo, é
advogado de um setor, o dos “práticos” (guias para navio estacionar em
porto), que encheu de grana a candidatura de Flávio. Foi Fux quem, com uma
liminar já revogada, suspendeu investigações contra Flávio durante as férias
do STF. É também o relator de duas ações penais existentes contra
O ministro Marcelo Álvaro Antônio enrola-se em candidaturas femininas, enquanto
Floriano Peixoto (que não se perca pelo nome) assume a Secretaria-Geral da Presidência

Bolsonaro por incitação ao estupro. Dias atrás, suspendeu as ações, pois um


presidente só pode ser julgado por crimes praticados no cargo. Suspendeu,
mas não arquivou. Bolsonaro esperava mais de seu advogado Bebianno… O
ex-capitão teme que o ex-colaborador resolva lhe cobrar uma bolada. Temor
revelado em outro áudio esquisito que veio a público, o de uma conversa sua
com o ministro Onyx Lorenzoni. A propósito, as ações penais foram
suspensas, mas a ação cível, um pedido de indenização por danos morais à
deputada Maria do Rosário, do PT, não. O STF acaba de manter a
condenação de Bolsonaro a pagar 10 mil reais.

Carlos e seu estranho primo, Leo Índio


Portador de segredos de campanha, Bebianno vai se tornar um homem-
bomba? No Senado, a oposição propôs, e conseguiu aprovar contra o voto
governista, que ele fosse convidado a falar sobre sua saída. “Tenho caráter,
não vou atacar o nosso presidente em absolutamente nada”, disse o
advogado na Jovem Pan. Por via das dúvidas, Bolsonaro fez um agrado ao
ex-colaborador. Gravou um vídeo sobre a demissão e esteve a ponto de pedir
desculpas. “Avalio que pode ter havido incompreensões e questões mal-
entendidas de parte a parte, não sendo adequado pre julgamento de qualquer
natureza.” O vídeo, de pouco mais de um minuto, havia sido uma exigência
de Bebianno, inconformado em deixar o governo com a PF no encalço e o
rótulo de mentiroso na testa, após ter se esforçado para ajudar Bolsonaro a
chegar ao poder. Antes da demissão, foi oferecido a ele a um cargo em Itaipu,
rejeitado, pois Bebianno disse que não queria deixar a impressão de estar
atrás de grana.

Impávido, Mourão conspira contra Lorenzoni

Sem Bebianno, o último ministro civil no Planalto é candidato a ser outro


degolado ou, no mínimo, a uma morte em vida, com os poderes esvaziados,
Onyx Lorenzoni, o homem das relações do governo com o Congresso. O grilo
falante do governo, o vice-presidente Mourão, conspira contra sua
permanência, com o gabinete aberto a quem queira reclamar do colega, caso
de empresários. Bebianno participava da conspiração do general. “Acham que
ele (Lorenzoni) não dá conta do trabalho”, diz um funcionário do Planalto. Ao
Globo do dia 6, Bebianno mostrou sua ambição, apesar do figurino “falsa
modéstia”. “Estou descobrindo, talvez, um talento que não soubesse que
tinha. Tenho colaborado e acho que posso continuar, sim, com essa
interlocução entre o Palácio e o Congresso.”
O utro membro do conciliábulo é o chefe do jurídico, o PM aposentado Jor-ge
Antonio Oliveira Fran-cisco, ex-assessor no gabinete do deputado Eduardo
Bolsonaro, o caçula do presidente. Ao assumir o cargo, Lorenzoni baixou a
guilhotina na equipe, a fim de (palavra dele) “despetizar” a Casa Civil. Queria
fazer o mesmo na Subchefia de Assuntos Jurídicos, área comandada por
Francisco e formalmente ligada ao ministro da Casa Civil, mas o ex-PM não
aceitou. Segundo outra testemunha dos intestinos palacianos, Francisco foi a
Bolsonaro e ameaçou demitir-se, caso houvesse a tesourada em sua equipe
como queria Lorenzoni. O ex-capitão enquadrou Lorenzoni, um gaúcho tido
como arrogante por colegas deputados. A Câmara de hoje é bastante
renovada, mas gente da velha guarda não esquece o papel dele como relator,
em novembro de 2016, de um pacote de dez medidas anticorrupção proposto
pelo Ministério Público e rejeitado pelos parlamentares. Lorenzoni criticou
colegas que se opunham ao pacote (a maioria) e foi hostilizado em plenário.

Onyx é tido como arrogante por colegas deputados, sobretudo


os da velha guarda, a lembrar uma pendenga de 2016

O presidente da Câmara naquela época, Rodrigo Maia, o mesmo de hoje,


vende caro um elogio a Lorenzoni, apesar de também pertencer ao DEM.
Desde a reabertura do Congresso, estabelecera pontes com Bebianno, um
bypass no chefe da Casa Civil. “Chama o Gustavo”, pedia a assessores, se
queria falar no Planalto. Na terça-feira 19, Maia, tido como líder do governo na
reforma da Previdência, comandou a primeira derrota do governo no plenário.
Os deputados anularam um decreto presidencial que incluía 1,2 mil pessoas
na lista de funcionários que poderiam classificar documentos oficiais de
secretos ou ultrassecretos, um carimbo que manteria os papéis escondidos
por 15 e 25 anos, respectivamente. O decreto tinha sido assinado por
Mourão, durante a viagem de Bolsonaro a Davos, para delírio de militares e
diplomatas, as categorias mais desgostosas com a revelação de papéis. A
anulação foi proposta pelo deputado Aliel Machado, do PSB do Paraná, para
quem Bebianno foi peça-chave na vitória de Bolsonaro e guarda segredos
inconfessáveis. “Uma coisa que se fala pouco é que a criação do fundo
partidário deu muita força aos presidentes de partidos, que estavam perdendo
poder.”

A anulação ainda precisa ser votada no Senado, onde Lorenzoni tem um


pouco mais de sorte. O jovem Davi Alcolumbre, que também é do DEM e
emprega em seu gabinete a esposa do ministro, Denise Veberlink, chegou a
presidente graças a uma parceria com Lorenzoni, em uma dura disputa contra
o experiente emedebista Renan Calheiros, para quem Lorenzoni “parece
nome de chuveiro”. Mesmo assim, o ministro precisou reformular a equipe
para lidar melhor com a Casa. Nomeou um senador tucano não reeleito em
2018, o catarinense Paulo Bauer, como um de seus assessores.

Essa equipe tem cada figuraça… Leo-nardo Quintão, deputado do MDB de


Minas, lobista das mineradoras. Laudivio Carvalho, ex-deputado do Podemos
de

Maia comandou a primeira derrota parlamentar do governo

Para ele, agora caixa 2 não é corrupção

Minas, acusado de extorsão por um ex-funcionário de seu gabinete na


Câmara. Carlos Manato, ex-deputado do PSL capixaba, integrante no
passado do Esquadrão da Morte do Espírito Santo, a Scuderie Le Cocq. Na
véspera de Bolsonaro deixar o hospital, Manato disse à Reuters que havia
separado mil cargos federais para entregar a indicados de parlamentares, um
toma lá dá cá (que ele rejeitou ser “toma lá dá cá”) destinado a facilitar a
aprovação da reforma da Previdência. “O Bolsonaro não faz velha política,
não troca cargos por votos”, disse o primogênito do presidente, o enrolado
Flávio Bolsonaro, na quarta-feira 20, logo após o pai entregar a reforma a
Maia e Alcolumbre. “E os mil cargos do Manato?”, perguntou-lhe CartaCapital.
“Desconheço. A imprensa distorce as coisas.”

O ministro da Justiça, Sérgio Moro, foi outro que por esses dias esteve em
posição de adequar-se às conveniências. Primeiro, o ex-juiz teve de engolir
que sua tentativa de criminalizar o caixa 2 fosse excluída do pacote de
combate ao crime que Bolsonaro mandou ao Congresso na terça-feira 19.
Afinal, comentou Moro, “o governo está sensível ao debate e nós queremos
levar os projetos ao Congresso e convencer os parlamentares do acerto”. Só
vai convencer por milagre. O Congresso não vai aprovar uma lei contra si. De
quebra, o ministro Moro minimizou a gravidade do caixa 2. Disse que não é
corrupção. O juiz Moro era bem mais radical. “Caixa 2 em eleições é trapaça,
um crime contra a democracia”, afirmou em uma palestra em Harvard, em
abril de 2017. Causava-lhe “espécie” quem defendesse que grana por fora era
menos grave do que grana no bolso.

O governo Bolsonaro é campo fértil para os interessados na psiquê humana.


ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Sergio LIMA/AFP e Valter Campanato/Abr, Antonio Cruz/Abr,


reprodução/Mídia social e Marcos Corrêa/PR, Marcos Corrêa/PR, Ananda Borges e Sergio LIMA/AFP
Sob as ordens de Tio
Sam
ENTREVISTA De como Moro e Dallagnol serviram aos interesses dos EUA,
denunciam Fábio Konder Comparato e Maria Victoria Benevides

Por Rodrigo Martins

Em movimento. Comparato e Benevides figuram entre os fundadores da recém-criada


Comissão Arns

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Após condenar Lula sem provas e liberar trechos sigilosos da delação do ex-
ministro Antonio Palocci em plena campanha eleitoral, Sérgio Moro recebeu
como recompensa pelos serviços prestados o Ministério da Justiça e a
promessa de ocupar uma cadeira na Suprema Corte. Na avaliação do jurista
Fábio Konder Comparato, professor emérito da Faculdade de Direito da USP
e doutor honoris causa pela Universidade de Coimbra, esse é apenas o
desfecho de um enredo tramado pelos americanos dez anos atrás, quando o
então juiz participou de suspeitíssimo treinamento oferecido pelo
Departamento de Estado dos EUA, conforme revelou um documento vazado
pelo WikiLeaks.

“Esse colóquio falava sobre novas técnicas de combate à corrupção, mas o


real objetivo era desmoralizar certos políticos, vistos como inconvenientes”,
comenta Comparato, para quem a atuação do magistrado e de seu homólogo
no Ministério Público, o procurador Deltan Dallagnol, serviram para desmontar
a política externa independente criada por Celso Amorim, o chanceler de Lula,
e para facilitar a entrega de valiosos ativos a empresas americanas, a
começar pelo pré-sal. “Os EUA não aceitam que a América do Sul deixe de
ser o seu quintal”, emenda a socióloga Maria Victoria Benevides, também da
USP.

Ambos integram o grupo de intelectuais que lançaram, na quarta-feira 20, a


Comissão Arns, dedicada ao acompanhamento de graves violações aos
direitos humanos, sobretudo as cometidas por agentes do Estado. Na
entrevista a seguir, eles falam sobre a iniciativa e as trágicas consequências
da Lava Jato para o País.

Executores. O procurador e o ex-juiz participaram de “suspeitíssimos treinamentos”


proporcionados pelo Departamento de Estado americano

CartaCapital: Qual é o objetivo da Comissão Arns?


Maria Victoria Benevides: Trata-se de uma comissão suprapartidária, a reunir
pessoas com experiência na luta pela democracia e pelos direitos humanos.
Os fundadores são de uma geração que viveu o período da ditadura e viu
com muita apreensão o retorno de um discurso autoritário e de ódio nas
últimas eleições presidenciais. A comissão não vai advogar causas. A ideia é
escolher alguns tipos de violações aos direitos humanos para monitorar e
encaminhá-los aos órgãos competentes do Estado, como as defensorias, as
ouvidorias e o Ministério Público. É um trabalho em rede, buscando articular
os esforços da enorme quantidade de entidades dedicadas à promoção dos
direitos da mulher, dos LGBTs, dos negros, dos indígenas, da população em
situação de rua, das comunidades espremidas entre a violência do
narcotráfico e aquela praticada pela própria polícia.
Fábio Konder Comparato: Como o próprio nome indica, a comissão inspirou-
se nos esforços do cardeal dom Paulo Evaristo Arns para sustentar não só os
desprovidos, mas também aqueles que eram perseguidos pela ditadura. Para
ele, não se tratava apenas de uma atividade de cunho religioso ou canônico.
Costumo sempre lembrar um episódio ocorrido no início dos anos 1970. Fui
chamado ao Palácio Episcopal pelo então arcebispo Arns, que estava criando
a Comissão de Justiça e Paz e pediu a minha colaboração. “Dom Paulo, eu
acho que não sou exatamente um bom católico”, disse. Quando ele
respondeu, quase caí de costas: “Isso não tem a menor importância. Só quero
saber se você está preparado para socorrer aqueles que são perseguidos e
torturados, além de confortar as famílias dos mortos”. Portanto, o principal
objetivo dessa comissão é nos colocarmos ao lado dos que sofrem e também
abrir os olhos do povo.

A prisão de Lula foi decidida em Washington com a dupla da


página ao lado, diz o jurista

CC: Para o que exatamente?


Comparato: No Brasil, temos dois regimes jurídicos. Existe aquele da
Constituição, intocável, perfeito. Como reza a tradição brasileira, costumamos
seguir sempre o melhor caminho oficial. No entanto, esse caminho nunca é
trilhado na prática. Os direitos humanos, por exemplo, são só para inglês ver.
Aqui há uma minoria rica e poderosa que sempre se alia aos grandes agentes
do Estado, desde os tempos da colonização, e uma vasta maioria pobre e
desprezada, em geral de etnia negra, sem qualquer assistência. A Declaração
Universal dos Direitos Humanos diz que todos nascem livres e iguais em
dignidade e em direitos, e muitos dizem defender isso, desde que não mexam
em seus privilégios. Podemos atuar para tornar efetivas certas normas da
Constituição que até hoje aguardam uma aplicação prática.

CC: O senhor poderia dar um exemplo?


Comparato: Leia o artigo 220, parágrafo 5º, da Constituição. O texto diz
claramente ser proibida a formação de monopólios ou oligopólios na
comunicação, de forma direta ou indireta. E o que dizem os magistrados
quando instados a se manifestar sobre o sistemático desrespeito à norma
constitucional? “Sim, mas falta uma lei complementar que dê eficácia a isso.”
Por ação ou omissão, grande parte dos nossos magistrados é cúmplice desse
aviltamento da pessoa humana. Não atuam de acordo com aquilo que está no
espírito das leis. Procuram sempre uma saída literal que preserve os
interesses dos abonados, dos líderes das oligarquias. Todo o ordenamento
jurídico está moldado para preservar essa secular dominação. A gente
esconde isso porque, em nossa mentalidade, não existe o passado. Os
estrangeiros sempre dizem: “O brasileiro vive sempre o presente”. É verdade.
Ele é incapaz de prever o futuro ou de enxergar o passado.

CC: A Declaração Universal dos Direitos Humanos também resguarda a


soberania popular. Mas passamos por um golpe travestido de impeachment e,
nas últimas eleições, o favorito na disputa foi impedido de concorrer, após ser
condenado sem provas...
Comparato: No meu entender, tudo isso foi preparado e organizado pelo Tio
Sam. Em 2009, os EUA patrocinaram um colóquio internacional para juízes,
integrantes do Ministério Público e chefes de polícia, sob o pretexto de
prepará-los para o combate ao terrorismo e à corrupção. Era o penúltimo ano
do governo de Lula, e os EUA estavam perdendo espaço. Embora não tenha
enfrentado os americanos da forma como eu gostaria, o governo não se
curvou. O grande chanceler Celso Amorim seguiu uma política externa
independente. Pois bem, esse colóquio falava em novas técnicas de combater
a corrupção, mas o real objetivo era desmoralizar certos políticos, vistos como
inconvenientes. Bater Lula não era uma tarefa simples. Trata-se do primeiro
chefe de Estado do Brasil oriundo da classe operária, ele não fazia parte do
esquema oligárquico. Então, era preciso desmoralizá-lo. A única forma era
acusá-lo de praticar algum crime. Alguns anos depois, em 2013, esse grupo
americanófilo reuniu-se na Operação Miqueias, precursora da Lava Jato,
deflagrada no ano seguinte.

CC: Quem fazia parte desse grupo americanófilo?


Comparato: O juiz Sérgio Moro, o procurador Deltan Dallagnol. Eles sempre
estiveram muito alinhados ao projeto americano. Lula encerrou o seu
mandato com 80% de aprovação, era invencível. Poderia ter disputado em
2014, mas cometeu o erro crasso de ceder espaço para a reeleição de Dilma
Rousseff. Com a perspectiva de vitória nas eleições de 2018, foi preciso
avançar rapidamente nas acusações criminais ao Lula. Foi o que fez Moro. A
Lava Jato investiga pagamento de propinas imensas a funcionários
graduados e diretores da Petrobras. A empresa foi criada em outubro de 1953
e, já no final daquela década, era conhecida por ser um antro de corrupção.
De toda forma, até onde eu saiba a Petrobras continua sediada no Rio de
Janeiro, não é mesmo? Então por que razão o processo foi aberto na 13ª
Vara Federal de Curitiba? Lá havia um magistrado chamado Sérgio Moro,
ligadíssimo aos americanos, que participou daquele colóquio em 2009 e
viajava para os EUA com frequência, quase todo mês durante um certo
período.

CC: Qual é o interesse dos EUA?


Comparato: Era preciso aproveitar-se daquele momento para desmontar a
ação internacional livre do Brasil. Repare os movimentos após a destituição
de Dilma. A Embraer era a terceira maior companhia em aviação executiva do
mundo, detentora de uma técnica especial para construir caças militares. Foi
vendida para a Boeing, o Brasil não a controla mais. Tão logo assumiu, Michel
Temer desarticulou a política de software livre do governo, substituído por
Alerta. “Vimos com muita apreensão o retorno do discurso autoritário e de ódio nas
últimas eleições”, comenta Benevides

programas da Microsoft.
Benevides: Os EUA não aceitam que a América do Sul deixe de ser o seu
quintal. A descoberta do pré-sal não apenas despertou a cobiça, mas também
toda a arrogância dos americanos. “Não, eles não têm competência para lidar
com tal riqueza.” Mas pior do que isso é a traição de políticos brasileiros que
apoiaram essa entrega, é imperdoável. Fico indignada por ver gente da minha
geração, que quando jovem se dizia progressista, e nessa idade provecta
torna-se entreguista. A Lava Jato é perfeitamente coadunada com esse
projeto, é teleguiada por interesses americanos.

CC: Aparentemente, Moro pode fazer o que bem entender...


Comparato: A respeito disso, gostaria de relembrar alguns fatos. Em março
de 2016, a revista americana Fortune publicou os nomes dos 50 maiores
líderes do mundo, segundo a sua avaliação. O Moro era o único brasileiro da
lista. No mês seguinte a Time publicou a sua lista das 100 pessoas mais
influentes do mundo, e o juiz estava novamente lá. Isso foi criado para colocá-
lo acima dos mortais. Todas as arbitrariedades denunciadas pela defesa de
Lula servem a um propósito, estão em sintonia com os interesses americanos.
Chegamos a incorporar no direito brasileiro o instituto da colaboração
premiada, do plea bargain. As delações desmoralizaram o PT, mas até hoje
não conseguiram abalar a imagem de Lula. Essa é a razão de uma
condenação atrás da outra. Agora, ele já está condenado a mais de 20 anos
de prisão. Não poderá concorrer em 2022 e está com 73 anos. O objetivo era
retirá-lo do combate, transformá-lo em carta fora do baralho.

Coragem. “A Comissão Arns inspirou-se nos esforços de dom Paulo para sustentar não só
os desprovidos, mas também os perseguidos da ditadura”, diz Comparato

CC: Causou surpresa a nomeação de Moro para o Ministério da Justiça?


Comparato: De certa forma, não. Estão preparando a nomeação dele para o
Supremo Tribunal Federal. Vão aguardar a primeira vaga, com a
aposentadoria compulsória do ministro Celso de Mello, para empossá-lo. É
uma recompensa por serviços prestados...
Benevides: Essa nomeação deveria ter a legitimidade contestada, uma vez
que Moro aceitou ser ministro do maior beneficiário de uma causa que ele
julgou. Ao condenar Lula sem provas e retirá-lo da corrida presidencial, abriu
caminho para o Bolsonaro, sem falar do levantamento do sigilo de trechos da
delação do ex-ministro Antonio Palocci em plena campanha eleitoral.

CC: O senhor costuma dizer que a eleição de Lula em 2002 foi acidente de
percurso, porque ele não fazia parte do esquema oligárquico. E o Bolsonaro?
Comparato: Tenho certeza de que ele recebeu apoio dos americanos. É muito
estranho. Ele se dizia um nacionalista e, desde a campanha eleitoral, passou
a defender abertamente os interesses dos EUA. Logo depois de eleito, seguiu
os passos de Donald Trump e transferiu a embaixada brasileira em Israel para
Jerusalém, o que gerou enormes prejuízos às empresas que negociavam com
os países árabes. Também é sintomático o afastamento da China, que até
agora é o nosso principal parceiro comercial.

A Comissão Arns vai monitorar e denunciar graves violações


aos direitos humanos, explicam os fundadores

CC: O senhor enxerga pegadas de Steve Bannon, o assessor de Trump, na


campanha de Bolsonaro?
Comparato: Claro. Bolsonaro não tinha popularidade alguma fora do seu
reduto eleitoral, não era tão conhecido assim, e de repente vira um fenômeno
eleitoral. Beneficiou-se das mentiras espalhadas pelo WhatsApp, com a
conivência dos nossos magistrados.

CC: O que explica a adesão de tantos brasileiros ao projeto representado por


Bolsonaro? Três anos atrás ele não passava de um histriônico parlamentar
que dedicou o voto pelo impeachment de Dilma ao torturador dela...
Benevides: É realmente assustador ver esse personagem eleito pelos
brasileiros, que não podem se escusar da responsabilidade e dizer: “Não
sabia”. Bolsonaro deixou muito claras as suas posições durante a campanha.
Acredito que esse flerte com o autoritarismo é fruto do medo e de uma
situação econômica muito crítica. Muitos brasileiros estão acossados pelo
desemprego, pela violência urbana. Então aparece alguém que promete
melhorar a economia ao mesmo tempo em que combate a bandidagem, sem
dizer que a combaterá de forma seletiva, só de um lado. De toda forma, é um
discurso que atrai. Mas essa vitória também é fruto de uma campanha maciça
de desinformação nas redes sociais, baseada na difusão de mentiras contra o
PT e a esquerda. Entre os candidatos não identificados com o petismo, os
eleitores escolheram o mais radical e também aquele que achavam ser uma
novidade, ainda que Bolsonaro já tivesse mais de 30 anos de atuação
parlamentar. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Wanezza soares, HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO CONTEÚDO, Vidal


Cavalcante/Folhapress e rerpodução/Mídia Social
“Um mártir não seria
útil”
ENTREVISTA Jean Wyllys promete, do autoexílio, amplificar as denúncias dos
desmandos do governo Bolsonaro

Por Fátima Campos de Lacerda, de Berlim

Wyllys esteve em Berlim para a estreia de Marighella

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Depois de uma calculada reclusão, o ex-deputado federal Jean Wyllys deu as


caras em Berlim para prestigiar a estreia de Marighella, filme dirigido pelo
amigo Wagner Moura, no festival de cinema da cidade. O novo corte de
cabelo e o bigode aparado transparecem a leveza de quem recuperou a
liberdade, sem abandonar o ativismo, propósito da renúncia ao mandato na
Câmara e do autoexílio na Europa. “A causa que defendo precisa não de um
mártir, mas de um ativista vivo”, resume Wyllys nesta entrevista exclusiva. O
militante dos direitos humanos promete transformar a temporada no exterior
em uma trincheira de resistência e de denúncia dos ataques às liberdades
individuais durante o governo Bolsonaro. “Farei o possível para que os olhos
das instituições, indivíduos e países democráticos estejam sobre o Brasil.”

CartaCapital: Como se sente diante das mentiras sobre a sua decisão pelo
autoexílio?
Jean Wyllys: Não me surpreende.Quem me calunia, quem reproduz e divulga
mentiras a meu respeito não tem escrúpulos. São criminosos. Tudo isso
começou em 2011, quando assumi meu primeiro mandato. Só não fui
destruído pelas fake news porque eu e os assessores que trabalhavam
comigo desenvolvemos um know-how para lidar com a situação. Acusaram-
me de participação na facada em Bolsonaro, fato que ainda está sob
investigação. Quem inventa e compartilha essas mentiras deveria explicar o
motivo de o Adélio Bispo de Oliveira ter sido proibido pela Justiça de falar.

CC: O que precisaria ser investigado?


JW: A Polícia Federal não leva em conta um vídeo de peritos independentes
que analisa a sequência do atentado e mostra relações suspeitíssimas entre o
acusado e gente ligada à campanha do Bolsonaro. Por que a PF e a mídia
nada dizem sobre esse vídeo? Por que ele incomoda tanto? Eles deveriam
buscar entender as recentes declarações da jornalista Eliane Cantanhede,
que se referiu a uma quimioterapia de Bolsonaro. Desde quando uma facada
exige quimioterapia? O que o presidente tinha antes do ataque? Na verdade,
eles foram pegos de surpresa com a minha decisão, que gerou uma comoção
no País e uma intensa repercussão internacional. Diante do fenômeno, eles
só conseguiram repetir mais do mesmo: mentir, caluniar.

CC: Como é possível resistir, fazer oposição, longe do Brasil?


JW: É possível fazer política fora do Parlamento. Sou um ativista de direitos
humanos, intelectual, escritor. Minha voz será propagada dessa maneira. Vou
estar atento, denunciar, escrever sobre o que acontece no Brasil. Irei focar
nas instituições que defendem a democracia em todo o mundo,
comprometidas com os direitos humanos. Farei o possível para que os olhos
dessas instituições, dos indivíduos e países democráticos estejam sobre o
Brasil para proteger os vulneráveis, os milhões que não votaram nesse sujeito
e que agora são tratados como inimigos, sobretudo as populações mais
vulneráveis, entre elas a comunidade LGBT, os pretos, os pobres vítimas da
violência estatal. E não me esqueço dos praticantes de religiões minoritárias,
alvos de intolerância religiosa por parte de fundamentalistas cristãos. Vou
conciliar a militância com o exercício de uma vida livre, que eu não tinha. Era
obrigado a andar de carro blindado.

CC: O que tem a dizer aos eleitores que o levaram ao Parlamento e


assistiram à sua renúncia?
JW: A causa que defendo precisa não de um mártir, mas de um ativista vivo.
A minha atitude foi em defesa da minha vida e em defesa da minha família.
Sacrificar a vida em nome de uma causa é típica de fanáticos e eu não sou
um. Para defender a minha integridade, tive de sair, mas ao sair eu não vou
me resignar a uma vida de estudos e investigação acadêmica tão somente.
Continuarei a ser uma voz da comunidade.

“Vou conciliar a militância com o exercício de uma vida livre,


que eu não tinha”

CC: Quem o substituiu na Câmara dos Deputados foi David Miranda. O que
espera da atuação dele?
JW: Nós dois somos gays, pertencemos à comunidade LGBT, mas somos
diferentes, elaboramos de maneiras diferentes e temos relações diferentes
com o partido. Acho, de qualquer forma, que ele cumprirá um excelente
mandato.

CC: Por que optou por não aparecer no tapete vermelho ao lado da equipe do
filme Marighella?
JW: Era um momento de Wagner Moura e dos atores. Eu sou só amigo do
Wagner e do Bruno Gagliasso. Eu queria ver o filme como um cidadão
comum. E consegui. Queria também prestigiar meu amigo. É o primeiro
longa-metragem dele. O filme me emocionou profundamente. O primeiro filme
de Wagner é inesquecível, uma obra-prima.

CC: E como foi a experiência de estar na plateia?


JW: De imensa felicidade. Por estar livre, seguro, em uma cidade inclusiva,
libertária, apesar dos focos de neonazismo e homofobia. Berlim é uma cidade
acolhedora, no sentido plural, cosmopolita. Em contrapartida, chorei muito
durante o filme. Os personagens me tocaram profundamente. Marighella
reflete parte do que vivemos agora no Brasil. Não é uma ditadura que durou
por 21 anos, mas é uma nova forma.

CC: Os ataques à classe artística são parte deste contexto, não?


JW: Não é novidade a investida contra a educação e a cultura, que promovem
o espírito crítico dos cidadãos. Foi feito antes. Mesmo a parte burra da
sociedade brasileira, que só se interessa por compras em shoppings e não
aproveita as oportunidades e privilégios para ampliar seu repertório, vai sair
derrotada dessa história. Os artistas são responsáveis por colocar espelhos
diante de nós, nos mostrar quão doente estamos. Mas acho que os artistas,
no fim das contas, vão triunfar.

CC: Acredita que Lula será libertado em algum momento?


JW: Gostaria muito. Lamentavelmente, não sei se algum tipo de pressão
internacional vá funcionar. Temo que ele morra na prisão, mas onde eu estiver
nunca deixarei de dizer a verdade: Lula foi o melhor presidente do Brasil de
todos os tempos. •
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CRÉDITOS DA PÁGINA: Márcio Damasceno/RFI


Quão independente é o
Comitê Nobel?
MEMÓRIA Por pressão da ditadura, Dom Hélder foi preterido por figuras
obscuras

Por Leneide Duarte-Plon, de Paris

O arcebispo foi vítima de uma campanha difamatória dos militares, revelam informes
diplomáticos

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Lançada pelo ativista argentino Adolfo Pérez Esquivel, vencedor do Nobel da


Paz em 1980, a candidatura do ex-presidente Lula ao prêmio amealhou mais
de 600 mil assinaturas de apoio em pouco mais de um mês. Diante do
possível boicote do governo Bolsonaro e do estrondoso silêncio da mídia
nativa sobre a campanha, parece improvável que a iniciativa logre êxito, não
importa a quantidade de signatários em seu favor – a menos, é claro, que o
comitê norueguês responsável pela honraria busque reafirmar a sua
independência.
O histórico da premiação sugere, porém, uma postura bem menos altiva.
Indicado ao Nobel da Paz por quatro anos consecutivos a partir de 1970, dom
Hélder Câmara foi preterido todas as vezes. Opositor da ditadura e incansável
defensor dos direitos humanos, o corajoso arcebispo de Olinda e Recife,
falecido em 1999, foi vítima de uma sórdida campanha difamatória teleguiada
de Brasília e executada pelo então embaixador brasileiro em Oslo, Jayme de
Souza Gomes, como comprovam documentos diplomáticos do período. Com
o atual chanceler Ernesto Araújo, ora engajado em sua delirante luta para
libertar o Itamaraty do “marxismo cultural”, não há razões para acreditar em
um desfecho diferente no caso de Lula.

Entre os apoiadores da candidatura do ex-presidente figuram a escritora


Angela Davis, o filósofo e linguista Noam Chomsky e o ator Danny Glover,
além de uma extensa relação de juristas e intelectuais de todo o mundo.
Referência da esquerda francesa, o jornal L’Humanité chegou a dedicar uma
capa em prol de Lula, apresentado como “preso político”. Como mostrou a
reportagem, o Fome Zero e outros programas criados pelo ex-presidente
tiraram 40 milhões da pobreza extrema. Pela primeira vez, o Brasil saiu do
mapa da fome da ONU. “Se um governo nacional se torna um exemplo
mundial de luta contra a pobreza e as desigualdades, contra a violência
estrutural que nos aflige como humanidade, deve ser reconhecido por sua
contribuição para a paz”, escreveu Esquivel.

Somente almas ingênuas acreditam que o Nobel da Paz é um prêmio isento


de pressões ou intenções políticas. Em entrevista publicada
por CartaCapital em 2017, o dominicano francês Régis Mo-relon citou uma
resposta que dera a um jornalista francês sobre a invasão do Iraque em
2003: “Saddam Hussein é um crápula, mas tem mais sangue nas mãos o
Henry Kissinger, que tem um Prêmio Nobel da Paz”. Na ocasião, Morelon
relembrou que o ex-secretário de Estado dos EUA foi um dos principais
responsáveis pelos golpes de Estado no Chile, pela Operação Condor das
ditaduras sul-americanas, pela invasão da Indonésia no Timor-Leste, entre
outras intervenções em nome dos interesses americanos.

Diante da sabotagem contra o arcebispo, é difícil acreditar em


um desfecho diferente para a candidatura de Lula ao Nobel da
Paz

De passagem por Paris, Celso Amorim, ex-ministro das Relações Exteriores


do governo Lula, minimiza o poder de influência do governo Bolsonaro. “No
caso de Dom Hélder, eram outros tempos. O governo atual não goza de
grande prestígio internacional”, diz. “O mais provável é que os opositores
tentem inventar outro candidato brasileiro ou latino-americano, que não
ganhará, mas poderá enfraquecer a candidatura de Lula. Parece que já
sugeriram os bombeiros que trabalharam em Brumadinho...”
De fato, o atual governo não goza de prestígio internacional. É o mínimo que
se pode dizer para a total degradação da imagem do Brasil um mês e meio
após a posse de Jair Bolsonaro. Mas a ditadura tampouco gozava de muita
estima. Se, no Brasil, muitos veículos de comunicação apoiavam a ditadura e
apenas a revista Veja e os alternativos, chamados de nanicos, eram
ferozmente censurados, os jornais europeus publicavam com frequência
denúncias de torturas, desaparecimentos e execuções sumárias.

Em suas viagens para a Europa, onde era ouvido e respeitado, Dom Hélder
não se cansou de denunciar os crimes da ditadura. Em 1970, para citar um
exemplo, discursou para 14 mil estudantes, professores e intelectuais no
Ginásio de Esportes, em Paris. Neste mesmo ano, foi sordidamente atacado
por dossiês montados pela ditadura para denegrir sua imagem junto ao
Comitê Nobel.

A Comissão da Memória e Verdade Dom Helder Câmara, de Pernambuco,


levantou toda a história dos bastidores do boicote e da agitação diplomática
para impedir que o Nobel da Paz fosse atribuído a Dom Hélder. No
documento de 229 páginas produzido pela comissão, há depoimentos de
diplomatas, ofícios e telegramas que provam a ação do governo durante a
ditadura para impedir que o arcebispo recebesse o Nobel da Paz nos anos
1970.

Os diplomatas trabalharam para convencer os integrantes da Fundação Nobel


e a opinião pública europeia de que o prêmio traria “um desconforto ao
governo brasileiro”, à época sob o comando do ditador Emílio Garrastazu
Médici. Em um dos ofícios, o embaixador Jayme de Souza Gomes fala
abertamente sobre um “programa de ação contra a candidatura do arcebispo
de Olinda e Recife”. Os generais chegaram a ameaçar empresários de
companhias nórdicas.

Em sua biografia, o ex-embaixador Vasco Mariz, então chefe do


Departamento Cultural do Itamaraty, reconhece que convocou os
embaixadores dos países escandinavos para comunicar o “desconforto” do
governo brasileiro. Ao receber a resposta de que não poderiam interferir em
temas ligados ao Nobel, a ditadura resolveu aumentar as pressões. Segundo
Mariz, presidentes e diretores de empresas escandinavas no Brasil, como
Volvo, Scania, Ericsson e Nokia, chegaram a ser convocados para uma
reunião sobre o assunto. Ao ouvir que seus interlocutores não podiam fazer
nada, um general teria esmurrado a mesa e anunciado: “Se Dom Helder
receber o Prêmio Nobel da Paz, suas empresas no Brasil não poderão
remeter um centavo de lucros para suas matrizes”.

De acordo com Mariz, esse encontro lhe foi relatado por Alarico Silveira,
então chefe do Serviço de Informações do Itamaraty. Até um padre belga foi
mobilizado para analisar cada texto escrito pelo arcebispo e apontar o
perigoso comunista que se escondia sob a batina.
Atualmente domiciliado em Paris, o jornalista e escritor José de Broucker,
biógrafo de Dom Hélder, continua na luta pela preservação da memória do
brasileiro. Recentemente, ele escreveu o prefácio de um livro que reúne
cartas escritas pelo arcebispo durante o Concílio Vaticano II. “As
circunstâncias deram-lhe estatura e audiência internacional, por sua coragem
na defesa dos direitos humanos. E ele pagou um preço alto.”

Em 1970, Dom Helder foi preterido para o Nobel da Paz por um desconhecido
biólogo americano, Norman Borlaug, pesquisador de cereais para a Fundação
Rockefeller. Em 1971, o chanceler alemão Willy Brandt foi o escolhido. Em
1972, o Nobel da Paz não foi atribuído e, em 1973, Henry Kissinger dividiu o
prêmio com o norte-vietnamita Le Duc Tho, pelas negociações de paz para o
Vietnã. Este último recusou o prêmio, ao observar que a paz ainda não tinha
sido restabelecida na região. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: MICHEL GANGNE/AFP


Alucinações ministeriais
NEOLIBERALISMO O ministro da Economia, Paulo Guedes, informa que o
Chile virou a Suíça graças à ditadura de Pinochet

Por Carlos Drummond

Descabimento. Produção de máquinas-ferramentas na Suíça igualada não se sabe como à


do Chile pelo ministro Guedes, que tem Pinochet como ídolo

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A viagem do governo Bolsonaro à irrealidade ganhou nova escala na


segunda-feira 11, quando o ministro da Economia, Paulo Guedes, em
entrevista ao Financial Times, igualou o Chile à Suíça. “Eu vi o Chile mais
pobre que Cuba e a Venezuela hoje e os garotos de Chicago consertaram
isso. O Chile é agora como a Suíça”, disse Guedes, ele próprio um Chicago
Boy, referindo-se ao período de condução da economia chilena pelos
egressos daquela escola americana que integraram o governo do ditador
Pinochet. A analogia sucede iniciativas e afirmações despropositadas feitas
repetidamente por vários ministros, sobre assuntos diversos.

Avessa ao bom senso e ao senso comum, a similaridade não é confirmada


pelas informações econômicas e sociais das principais agências e bancos de
dados internacionais acreditados. O PIB do Chile, segundo o Banco Mundial,
chegou a 277 bilhões de dólares em 2017 em dólares correntes e o da Suíça,
a 679 bilhões. Considere-se ainda o fato de o Chile ter, segundo a
Organização das Nações Unidas, população de 18,05 milhões de habitantes e
a Suíça, apenas 8,48 milhões, o que acentua a distância entre os dois países
no caso de comparação do PIB per capita.

De acordo com a publicação Industrial Development Report, de 2018, da


ONU, a indústria da Suíça é a 6ª mais competitiva do mundo e a do Chile, a
51ª. Entre os países integrantes da Organização para a Cooperação e
Desenvolvimento Econômico (OCDE), a Suíça é o 11º país menos desigual,
segundo o índice de Gini, e o Chile, o 37º, portanto, o mais desigual de todos.

Como explicar a comparação feita sem base em dados econômicos? A pista


talvez esteja nas entrevistas e iniciativas de Guedes, Jair Bolsonaro, seu filho
Eduardo e o ministro da Casa Civil, Onyx Lorenzoni, elogiosas tanto à
condução da economia imposta por Pinochet quanto ao modelo previdenciário
adotado posteriormente. Como o Chile, segundo Guedes, igualou-se à Suíça,
se o Brasil adotar a política econômica do vizinho vai se equiparar, por tabela,
ao país europeu.

Na primeira grande crise, entre 1982 e 1983, o laboratório


neoliberal explodiu

A família presidencial faz a sua parte e intensifica a aproximação entre os


países, mostra a reunião, em dezembro, em Santiago, do deputado Eduardo
Bolsonaro e José Antonio Kast, tido por alguns como o “Bolsonaro chileno”,
candidato à Presidência derrotado em 2017 por Sebastián Piñera e irmão de
Miguel Kast, do grupo dos Chicago Boys e que foi ministro e presidente do
Banco Central sob Pinochet.

Considerar exequível a adoção do modelo do Chile no Brasil faz tanto sentido


quanto igualar Chile e Suíça. O país andino tem PIB, população e área dez
vezes menores que o Brasil, superfície equivalente à metade do Estado do
Amazonas, economia bem menos complexa e indústria menos competitiva,
na 51ª posição no Industrial Development Report, de 2018, da ONU,
conforme relatado acima, enquanto a do Brasil ocupa a 36ª colocação.

Chama atenção ainda o absurdo de cogitar transpor ao Brasil a mesma


orientação que só emplacou no Chile porque imposta a ferro e fogo pela
ditadura implantada em 1973 com apoio total dos EUA e que resultou em 3
mil cidadãos assassinados pelos militares, dos quais 1.102 estão
desaparecidos.

O maior mito quanto ao percurso do Chile desde Pinochet talvez seja a


afirmação assumida pelo establishment e alardeada pelo governo brasileiro
de que aquela experiência prova o acerto das propostas neoliberais. Os fatos
mostram que a pequena economia só avançou a partir da redemocratização,
à custa de reestatizações e da adoção de outras políticas típicas do
desenvolvimentismo.

A recessão do início da década de 1980 foi um divisor de águas, como explica


o cientista político e ex-ministro do governo Eduardo Frei, Juan Gabriel
Valdés, no livro Pinochet’s Economists – The Chicago School in Chile: “Em
1981, havia claros sinais da aproximação de uma recessão internacional. Os
Chicago Boys explicitamente deixaram claro que a melhor política era ‘fazer
nada’, pois a recessão internacional seria curta e todos os problemas básicos
já haviam sido encaminhados. Essa passividade derivava de um conceito
teórico dogmático, a abordagem monetarista do balanço de pagamentos, a
qual era usada para argumentar que a economia chilena possuía um
mecanismo automático de ajuste: a taxa de juros. Em 1982, o Chile
mergulhou na crise. Com a contração na economia mundial, os preços do
cobre caíram de 99 centavos de dólar por libra em 1980 para 67 centavos em
1982”.

Dada a preponderância do metal nas exportações chilenas, o efeito foi


devastador, detalha Valdés: “A deterioração na balança comercial tornou-se
insustentável. Em consequência, o PIB caiu 15% e a indústria e o setor de
construção contraíram em mais de 20% em 1982. O desemprego efetivo
bateu 30% em 1983. As falências triplicaram em 1982. O sistema financeiro
privado sofreu perdas de, em média, duas vezes seu capital. O Banco Central
perdeu mais de 45% das suas reservas internacionais. O Chile entrou na pior
recessão desde 1930. Em abril de 1982, o general Pinochet convidou o
ministro da Economia Sergio de Castro a renunciar, marcando o fim da fase
‘primitiva’ dos Chicago Boys no poder”.

Segundo descreve Karin Fischer, professora de Desenvolvimento


Internacional da Universidade de Viena no texto The Influence of neoliberals
in Chile before, during, and after Pinochet, “A liberalização financeira
descontrolada, combinada ao endividamento pesado dos conglomerados, foi
o principal fator interno na recessão, com declínio rápido da economia, déficit
crescente do balanço de pagamentos, escalada das taxas de juros e
insolvência de centenas de empresas no setor manufatureiro. Dezesseis
instituições financeiras privadas de um total de 50 quebraram. Alguns dos
conglomerados mais endividados desapareceram do mapa. A alta expressiva
do dólar forçou o governo a intervir em fundos de pensão e no sistema
bancário. Os dois maiores bancos, BNC e Banco de Santiago de Cruzat-
Larraín, foram estatizados. No início de 1983, três instituições financeiras
foram liquidadas, cinco estatizadas e dois bancos sofreram intervenção.
Grandes montantes de dívida privada foram transferidos para o Estado.
Considerado a grande ameaça à humanidade nas críticas neoliberais e
conservadoras ao Estado de Bem-Estar Social, o Estado salvou a classe
capitalista privada no país e no exterior”. O fabuloso experimento neoliberal
no pequeno país-laboratório, conclui-se, não resistiu à primeira grande crise.
A

Pacto. O deputado Eduardo Bolsonaro com o “Bolsonaro chileno”, José Antonio Kast, à
procura de um modelo num país que ainda depende do cobre

volta ao crescimento só ocorreria com a redemocratização, destaca o


professor Ricardo Ffrench-Davis, do Departamento de Economia da Univer-
sidade do Chile, no texto Chile en la Economia Internacional: Trayectoria
reciente y desafios, publicado em 2017. Em moeda comparável ajustada pela
paridade do poder de compra (PPA), o PIB per capita do país era de 22.346
dólares em 2014, superando em 43% a média da América Latina e sendo o
maior na região. No fim da ditadura, entretanto, era inferior à média latino-
americana. “Esta evolução ocorreu inteiramente no período excepcional de
crescimento com redução da desigualdade no retorno à democracia a partir
do governo Patricio Aylwin, em 1990”, dispara o economista.

A recuperação da economia após a ditadura, sublinha Karin Fischer, deveu-se


em muito a numerosos recuos da política neoliberal, como a desvalorização
da moeda e a adoção de medidas de proteção às empresas locais logo após
a crise de 1982-1983, estabelecimento de preços mínimos para o trigo e
outras culturas-chave, crédito subsidiado aos produtores rurais, renegociação
de dívidas em termos altamente favoráveis para promover a produção
agrícola voltada para a exportação, aumento temporário das tarifas de
importação sobre produtos agrícolas e seu redirecionamento para subsidiar
as exportações, substanciais incentivos estatais como linhas especiais de
crédito para exportações não tradicionais (vinho, frutas, celulose e peixes,
entre outras).

A previdência fracassada aplica no exterior 60 bilhões de


dólares
A reforma da Previdência de 2008 é um fracasso no país andino. Segundo o
professor da Faculdade de Economia e Negócios da Universidade de Chile,
Andras Uthoff, quando da primeira reforma da então presidente Michelle
Bachelet, em 2008, metade dos adultos mais velhos estavam sem nenhuma
previdência. O Estado passou a prestar assistência aos idosos mais pobres,
mas, mesmo com essa ajuda, 79% das pensões no Chile estão abaixo do
salário mínimo, equivalente a 420 dólares, e 44% são inferiores à linha da
pobreza. De acordo com Ffrench-Davis, “o sistema de capitalização privado
gerido pelas administradoras de fundos de pensão tem mais de 60 bilhões de
dólares investidos no exterior. É poupança nacional que se esvai e o fez
várias vezes de maneira pro-cíclica”, dispara Ffrech-Davis. Esse dinheiro,
prossegue, deveria ser investido em equipamentos, maquinarias,
infraestrutura, construções comerciais e residenciais, de modo a produzir um
aumento acelerado da formação de capital, meio mais tradicional e
insubstituível para o crescimento da economia.

A incorporação das AFP ao sistema financeiro internacional é uma faceta do


“atrelamento do país à globalização e à volatilidade financeira, o que
contribuiu de maneira determinante para que a economia nacional se situasse
em um patamar de crescimento de 4%, muito abaixo dos 7% dos anos 1990”,
analisa o economista. O cobre, diz, reduziu sua participação nas exportações
de 75% no início dos anos 1970 para menos de 50% no fim da década de
1980. A participação das vendas externas do metal no PIB aumentou de 10%
para 20%, enquanto os itens com maior valor agregado continuaram com
menos de 5% das exportações de bens.

Apesar de a economia chilena ser efetivamente aberta, pondera Ffrench-


Davis, a produção externa está muito longe de representar a maior parte do
PIB, limitando-se a 30%, e isso significa que, para aumentar a renda, o
emprego e os salários, ao lado das vendas externas “é imprescindível contar
com dinamismo da produção voltada para os mercados internos, como se
conseguiu fazer entre 1990 e 1998, quando eles contribuíram com 5,1 pontos
porcentuais do crescimento anual do PIB em 7,1%”. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Ivan Alvarado/retuers/fotoarena e istockphoto - Sergio LIMA/AFP e CRIS


BOURONCLE/afp
O fim da democracia
plebiscitária

Com o protagonismo das mídias sociais, corremos o risco de


regredir para uma aventura controlada por líderes tuiteiros

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Em 1895, um psicólogo francês, Gustave Le Bon, publicou um livro que na


época fez grande furor: Psicologia das Multidões, onde anunciava que “a era
em que estamos entrando será, verdadeiramente, a era das multidões”. Na
sua opinião, pouco importam as instituições em que vivemos, a voz da
multidão será mais decisiva mesmo quando se sabe que ela é irracional,
impulsiva, incoerente, impermeável à argumentação e mais próxima da
animalidade, o mesmo que pensavam os clássicos gregos que estudaram a
democracia direta.

Pouco depois um jurista francês, Gabriel Tarde, publica o seu A Opinião da


Multidão, 1901, onde sugere que existe um instinto de “imitação” que através
da comunicação comum (todos recebendo a mesma informação) cria-se uma
coesão mental que faz nascer uma “opinião pública”. Esta seria uma espécie
de campo de força que, através das comunicações pelos jornais, liga os
cidadãos com normas e valores comuns, o que tornaria mais eficiente o
funcionamento da democracia. Desde Pareto, Durkheim e Weber, sabemos
que existe vida social além dos mercados (economia), da moral (religião) e
das leis (política). A sociedade existe porque há respeito a um sistema de
valores, de cultura de costumes coletivamente aceitos. As ações individuais
podem coordenar-se porque os agentes sociais obedecem a elas. Os
movimentos sociais, por sua vez, são ações coletivas que atuam fora dos
canais institucionais para resistir ou promover modificações nas instituições
vigentes.

A história revela que conhecer e respeitar o que é “próprio para hoje” tem sido
importante para viver com relativo conforto em todos os momentos de todas
as sociedades. As consequências desse mecanismo sobre a conduta das
multidões só começaram a ser analisadas por psicólogos e juristas, no fim do
século XIX, com o aumento da velocidade da difusão das informações pelos
jornais. O “próprio de hoje” são as “modas”: do pensamento (as ideologias),
da moralidade, da manifestação artística, da participação nas mídias sociais
e, talvez, a mais visível, o que e como nos vestimos. Tal comportamento
talvez seja a procura de conforto individual num mundo onde a insegurança
nos ameaça.

A experiência sugere, entretanto, que na multidão o indivíduo tende a perder


o sentido da sua individualidade, o que o leva, às vezes, a comportamentos
irresponsáveis e antissociais. O estudo antigo de Le Bon sugere que a
transformação psicológica do indivíduo imerso na multidão é produzida
quando ele entra numa “onda” protegida pelo anonimato e induzida pela
sugestibilidade e pela homogeneização de crenças e costumes. Pode
transformar-se num instrumento capaz de perpetrar os mais irracionais e
bárbaros sofrimentos aos que insistiram em conservar a sua “individualidade”.
Visto sob o ângulo do politicamente correto, Le Bon seria, hoje, condenado
por seu elitismo e racismo. Nos últimos 130 anos, as pesquisas empíricas
relativizaram suas conclusões e deram origem a uma sofisticada psicologia
das multidões. Creio, entretanto, que ele ainda contém um resíduo
infinitesimal de verdade, principalmente porque no nosso “tempo próprio” as
“novas multidões” reveladas nas mídias sociais assumiram um poder virtual
que nenhum poder real constituído pode controlar.

De fato, o espantoso protagonismo das mídias sociais nas eleições


democráticas e nos plebiscitos recentes – produto do avanço da tecnologia –
sugere o nascimento de um novo “tempo próprio”, no qual o mundo corre o
risco de regredir a uma trágica aventura de democracia direta, controlada por
líderes tuiteiros que mal disfarçam a aparentemente nova, mas velhíssima
ideologia de que a igualdade deve preterir a liberdade. Platão e Aristóteles, há
2.400 anos, e Tocqueville há 190 já sabiam para onde leva tal “progresso”.

A história, particularmente a francesa, está aí para mostrar o desastre que


uma multidão sofrida e desejosa de vingança pode autorizar quando
estimulada pelo anonimato. Ela revela onde termina o poder absoluto quando
ele tenta, generosamente, construir políticas sociais radicalmente
democráticas e republicanas inspiradas no “amor à igualdade” de bem-
intencionados e incorruptíveis Robespierres.

Destruída a “civilização injusta” e esgotado o movimento sob o peso da


desgraça, sempre chegam os Napoleões... •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


A primeira comunhão

Conto a história de uma criança atormentada, mas o que


somos senão o resultado de embates e sofrimentos desde a
infância mais profunda?

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Gosto de recontar episódios de infância. Quem não? Peço ao leitor licença


para me dedicar a isso hoje. Bem sei que pode parecer irresponsabilidade, no
meio de uma crise nacional, voltar-se para assunto tão trivial. Mas,
convenhamos, nem só de economia ou política vivemos, mesmo nós,
economistas.

A pequena história que vou contar é de uma criança atormentada – mas não
me queixo, de jeito nenhum. O que somos senão o resultado de embates e
sofrimentos que vivenciamos e superamos (ou não) desde a infância
profunda? Há que valorizá-los e guardá-los carinhosamente no coração. Por
outro lado, é triste, sem dúvida, ver uma criança sofrer. Dostoievski, que era
um defensor ardoroso das crianças, disse certa vez que o sofrimento delas é
o argumento mais poderoso contra a existência de Deus. Enfim, deixo o leitor
com essa dúvida, e começo.

O ano é 1962. Brasília começava. Aos 7 anos, estava matriculado em uma


pequena escola católica à beira do Lago Paranoá. Naquela época, as
crianças faziam a primeira comunhão já nessa idade. Era um acontecimento
importante, antecedido de preparação. Preparação precária, porém. No fundo,
era muito cedo.

Aqui entra em cena um personagem que poderia ter saído diretamente de O


Primo Basílio, do Eça de Queirós: uma babá portuguesa, Maria Helena, que
era perversa e sabia apavorar com histórias fantasiosas. É a velha história,
comum em famílias brasileiras de classe média e alta: os pais, muito
ocupados, deixavam as crianças à mercê de empregadas, por vezes,
tenebrosas. Certo dia, pouco tempo antes da cerimônia, Maria Helena lançou
a advertência sinistra: “A hóstia é o corpo de Cristo – se você mastigar, vai
para o inferno!”

Instalou-se um drama que duraria vários anos. Outra criança, mais


despreocupada, poderia até tirar de letra. Mas eu não. Passei a viver um
duplo problema – sofria com a ameaça levantada pela babá, mas tinha ao
mesmo tempo vergonha de estar sofrendo, e não conseguia falar com
ninguém a respeito. Ainda ensaiei insinuar o problema para a minha mãe: “Já
sei como comungar sem mastigar a hóstia – vou engolir direto”. Não deu
certo. Ela não percebeu a angústia do filho.

Chegou o dia – meninas e meninos, de branco, recebiam a primeira


comunhão, solenemente, das mãos do padre. Igreja lotada por familiares. Dei
um vexame. Tentei engolir a hóstia e engasguei. Tive que ser socorrido com
tapas nas costas e outras providências. Pior: acabei mastigando a hóstia! Ao
constrangimento público somou-se o medo do inferno.

A partir de então, a cada domingo, o mesmo drama. Não encontrava meio de


comungar sem mastigar a hóstia. Mudamos para Nova York (meu pai era
diplomata) e a novela continuava. Tentava novas técnicas: por exemplo,
deixar a hóstia dissolver, mas, nervoso, a boca ressecada, a hóstia acabava
grudada no céu da boca! Passei a não me confessar para ter pretexto para
não comungar. Mas fugir da confissão dava lugar a novos dramas de
consciência.

Acredite, leitor, o problema, aparentemente ridículo, era verdadeiramente


enorme. Ainda me lembro da seguinte situação tragicômica, quando nos
mudamos para Ottawa, no Canadá, creio que em 1966. Minha mãe chega
feliz em casa e anuncia que, em recepção diplomática, conhecera o Núncio
Apostólico (embaixador da Santa Sé), Monsenhor Pignedoli: “Meu filho, você
vai ser o coroinha nas missas que ele reza para o corpo diplomático todo
domingo”. Entrei em pânico. Não sei se o leitor sabe, mas o coroinha é
sempre o primeiro a comungar! Segundo minha mãe, Pignedoli era um
possível futuro papa, o que só aumentava a minha responsabilidade.

Tudo isso a criança enfrentava sozinha, agora já com 10 ou 11 anos, sem


coragem de compartilhar com ninguém. Mais tarde, ainda, em Ottawa, uma
prima, chamada Marília, que teria uns 18 ou 19 anos, passou algum tempo
hospedada lá em casa. Aproximei-me dela aos poucos e resolvi, então, abrir
para ela o coração de par em par, esperando talvez que ela intercedesse
junto à minha mãe. Mas, provavelmente inibido e envergonhado, com
dificuldade de me expressar, não consegui transmitir à prima a dimensão do
problema. Marília era ótima, carinhosa, mas não deu bola. Fiquei na mesma.
De retorno ao Brasil, por volta de 1968, ainda lembro dos padres do Colégio
Santo Inácio, no Rio de Janeiro, reclamando que eu era um dos poucos que
nunca se confessavam...

Minha mãe, para quem acabo de ler o artigo e que, em outros tempos, talvez
discordasse veementemente, disse, com um sorriso cético: “O passado
somos nós que fabricamos, com as recordações que nos agradam ou não”. E
acrescentou: “Vão pensar que você está biruta”. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Ilustração: Baptistão


Os estilhaços do Califado
THEOBSERVER As potências ocidentais têm dificuldade em lidar com os
reféns e os combatentes do Estado Islâmico

Por Simon Tisdall

Libertação. Mulheres e crianças antes sob o tacão do EI são encaminhadas a um campo de


refugiados na Síria

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O colapso do último enclave do Califado do Estado Islâmico na Síria tem


causado abalos sísmicos em toda a região, modificando os cálculos das
grandes potências que competem por vantagem. O triunfalismo em
Washington, Moscou e Damasco apresenta o risco de obscurecer o custo
humano de uma “vitória” que pode rapidamente se mostrar passageira.

A preocupação imediata é o destino dos civis, principalmente mulheres e


crianças, deslocados de áreas antes controladas pelo EI, onde muitas foram
mantidas contra a vontade. A Comissão Internacional de Resgates, uma
organização independente, diz que até 4 mil indivíduos rumam em direção ao
campo de refugiados de Al-Hawl, no nordeste da Síria.
“A maioria sofreu quatro anos sob os horrores do EI e agora chega a Al-Hawl
extremamente faminta e desidratada. Muitos também sofreram ferimentos que
mudam a vida. Há diversos relatos de violência contra mulheres e meninas e
de famílias separadas durante a viagem”, relata em comunicado a comissão.

Também é de urgente preocupação o que será feito com os jihadistas do EI


capturados. Os chamados “combatentes estrangeiros” e seus apoiadores
poderão tentar voltar a seus países de origem, deixando a Grã-Bretanha e
outros governos com opções incômodas.

Crescem, porém, os temores de que um grande número de combatentes


sírios do EI possam se deslocar para a província de Idlib, no noroeste da
Síria, a última grande área populosa não controlada pelo regime de Bashar al-
Assad. Nos últimos dois anos, Idlib foi o último porto seguro para rebeldes em
retirada e militantes islâmicos. Também abriga 3 milhões de civis sírios, a
metade dos quais está deslocada internamente.

“Distribuir combatentes sírios entre os civis em Idlib significará que a verdade


sobre os que eles mataram, sequestraram e fizeram desaparecer nunca será
revelada. Esses combatentes devem ser levados aos tribunais para revelar o
que sabem sobre as atrocidades que o EI cometeu”, disse Laila Kiki, do grupo
de direitos humanos Campanha Síria. “Ainda há um número enorme sem
paradeiro conhecido. Segundo a Rede Síria de Direitos Humanos, 8.349
indivíduos foram detidos pelo EI e desapareceram em todos os seus
territórios.”

Idlib, no noroeste da Síria, é um possível destino dos soldados


do EI. Teme-se o surgimento de um novo enclave terrorista

A transferência de combatentes do EI complicaria os esforços para suprimir a


Hayat Tahrir al-Sham, afiliada da Al-Qaeda que hoje controla a maior parte de
Idlib. Ativistas disseram que isso poderá dar às forças de Assad, apoiadas por
russos e iranianos, uma muito desejada desculpa para lançar uma ofensiva
para recuperar a província, potencialmente provocando um êxodo maciço de
refugiados para o norte e a Turquia.

O desejo da Turquia de impedir esse resultado temperou as comemorações


em Sochi, quando os principais apoiadores de Assad se reuniram para
discutir as consequências da derrota do Califado. Explorando o momento com
o apoio do presidente do Irã, Hassan Rouhani, o russo, Vladimir Putin, pediu
“medidas concretas... para destruir completamente esse criadouro de
terroristas (em Idlib)”. Mas o presidente turco, Recep Tayyip Erdogan,
bloqueou uma nova operação militar lá, ao menos por enquanto. O foco de
Erdogan está em outro lugar, nas fronteiras do nordeste da Síria controladas
pelas forças curdas aliadas dos EUA, que ele considera inimigos mortais. A
derrota do EI aumentou as chances de uma intervenção militar turca
semelhante à invasão de Afrin no ano passado. Erdogan quer criar “zonas de
segurança” na Síria para empurrar os curdos e supostamente garantir sua
fronteira sul.

Em contraste, Assad, com apoio da Rússia, quer reafirmar a soberania por


todo o território sírio, incluindo o deixado pelo EI. Mas Erdogan não se importa
muito. O principal motivo pelo qual ele não agiu ainda é Donald Trump.
Contrariando o conselho de seus generais e dos aliados na Otan, Trump
ordenou que as forças americanas na Síria saiam até a primavera. Quando
elas partirem, Erdogan fará seu próximo movimento.

O colapso do EI traz duras implicações para o Iraque. O Exército iraquiano,


com apoio internacional, expulsou os jihadistas de Mosul e outras cidades em
2017. Mas agora eles estão se reagrupando em áreas sunitas e poderão em
breve representar uma perigosa nova ameaça, segundo um relatório do
Pentágono publicado no mês passado.

“O EI está regenerando funções-chave e capacidades mais depressa no


Iraque do que na Síria”, disse o relatório, salientando a tese para a
continuação das operações antiterroristas nos dois países. “À falta de pressão
sustentada, o EI poderá ressurgir na Síria em 6 a 12 meses e recuperar
território limitado.”

Os líderes xiitas do Iraque, enquanto isso, estão alarmados pela sugestão de


Trump de que as tropas dos EUA liberadas na Síria poderão ser enviadas
para lá, não para impedir uma volta do EI, mas para “manter sob vigilância” o
Irã. “Não sobrecarreguem o Iraque com seus próprios problemas... nós
vivemos aqui”, disse a Trump o presidente iraquiano, Barham Salih. As
Brigadas Hezbollah do Iraque, pró-Irã, advertiram que o plano poderá tornar
“as forças americanas alvo legítimo para a resistência iraquiana”.

A ideia de que o Iraque poderá ser usado como plataforma de lançamento


para uma nova guerra dos EUA, desta vez contra o Irã, preocupa os políticos
democratas em Washington e os governos europeus. Eles preferem manter o
foco em combater o terrorismo jihadista e pensar que Trump pode deixar a
bola cair. O Irã, enquanto isso, tem peixes maiores para fritar, notadamente
confrontar Israel no oeste da Síria e a Arábia Saudita no Iêmen. Teerã teme
mais a mudança de regime, a desestabilização e planos de sabotagem
encobertos pelos norte-americanos do que teme o EI. “Os americanos têm de
sair da Síria”, disse neste mês Ali Akbar Velayati, assessor sênior do líder
supremo do Irã – e de preferência sair totalmente do Oriente Médio. •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Delil souleiman/AFP


Washington, Londres,
Moscou
THEOBSERVER A colaboração com a Justiça de uma diretora da Cambridge
Analytica aproxima Trump da espionagem russa

Por Carole Cadwalladr

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Uma diretora da polêmica firma de dados Cambridge Analytica, que apareceu


com Arron Banks no lançamento da campanha Leave.EU, a favor da saída do
Reino Unido da União Europeia, foi intimada pela investigação dos Estados
Unidos sobre a possível cumplicidade entre a campanha presidencial de
Donald Trump e o governo russo.

Um porta-voz de Brittany Kaiser, ex-diretora de desenvolvimento de negócios


da Cambridge Analytica– que faliu depois que The Observerrevelou detalhes
sobre o mau uso de dados do Facebook –, confirmou que ela foi intimada pelo
procurador especial dos EUA, Robert Mueller, e tem cooperado plenamente
com a investigação.

Ele acrescentou que Kaiser auxilia em outras investigações do Congresso e


da Justiça dos EUA sobre as atividades da empresa, e entregou
voluntariamente documentos e dados.

Kaiser, que deu evidências ao Parla-mento britânico em abril passado de que


a Cambridge Analytica realizou trabalho em profundidade para a Leave.EU, é
o segundo indivíduo ligado à firma intimado pelo procurador especial. A
Comissão Eleitoral disse que sua investigação da Leave.EU não encontrou
evidências de que a campanha “recebeu doações ou pagou por serviços da
Cambridge Analytica... além de trabalho de sondagem inicial”.

Damian Collins, presidente do inquérito do Parlamento britânico sobre fake


news, disse que “não causa surpresa” que Kaiser seja investigada por
Mueller, porque “seu trabalho a conectava à WikiLeaks, à Cambridge
Analytica e (sua empresa matriz) SCL, à campanha de Trump, à Leave.EU e
a Arron Banks”.

Brittany Kaiser tornou-se testemunha da investigação sobre a


interferência da Rússia nas eleições dos EUA em 2016

Ele disse que agora é vital que a Grã-Bretanha tenha seu próprio inquérito
sobre interferência estrangeira: “Não devemos deixar isso para os
americanos”.

Tom Watson, vice-líder do Partido Trabalhista, fez eco à declaração de


Collins: “Esta é a primeira evidência de que um ator importante na campanha
Leave.EU tem interesse para o inquérito global de Mueller. As pessoas ficarão
atônitas se o governo britânico não tiver interesse por estabelecer os fatos do
que aconteceu”.

Em agosto, Sam Patten, consultor político americano que trabalhou para a


Cambridge Analytica em campanhas nos EUA e em outros países, fechou um
acordo com Mueller depois de admitir que deixou-se registrar como agente
estrangeiro para um oligarca da Ucrânia.

Ele tornou-se o tema de um inquérito do procurador especial por causa do


trabalho feito com Paul Manafort, o diretor da campanha de Trump, na
Ucrânia. Ele também tinha criado uma empresa com Konstantin Kilimnik,
figura-chave que, segundo Mueller, tem ligações com a inteligência russa e
enfrenta acusações de obstrução de Justiça. Em uma declaração de 2017 ao
The Washington Post, Kilimnik negou qualquer conexão com serviços de
inteligência. Kaiser, porém, é a primeira pessoa diretamente ligada às
campanhas do Brexit e de Trump que foi sabidamente questionada por
Mueller.
A

Seria Trump uma marionete de Putin?

notícia veio à luz em um documentário da Netflix, The Great Hack, que


estreou no festival de cinema de Sundance no mês passado e deverá ser
lançado nesta primavera. Os cineastas acompanharam Kaiser durante meses
depois que ela procurou The Guardian, inclusive momentos depois que
recebeu a intimação.

Ela afirma que a intimação veio depois de o Guardian revelar que ela visitou o
fundador do WikiLeaks, Julian Assange, enquanto era funcionária da
Cambridge Analytica, em fevereiro de 2017, três meses depois da eleição dos
EUA.

Uma parte da investigação de Mueller concentra-se em se a campanha de


Trump tentou influenciar o momento da divulgação de e-mails do WikiLeaks
antes da eleição. Investigadores examinam as comunicações entre eles. No
filme, Kaiser diz que passou de uma testemunha colaboradora a sujeito da
investigação por causa de seu contato com Assange.

Em outubro de 2017, foi revelado que Alexander Nix, executivo-chefe da


Cambridge Analytica, tinha contatado Assange em agosto de 2016 para tentar
obter e-mails da campanha presidencial de Hillary Clinton, que, segundo
denúncias da equipe de Mueller, foram obtidos pela inteligência militar russa,
para usar na campanha de Donald Trump. Quando Kaiser deu evidências ao
Parlamento no ano passado, foi perguntada sobre seu relacionamento com
Assange e o WikiLeaks, mas não revelou que tinha encontrado Assange.

No documentário, Kaiser é mostrada depois de receber um e-mail de The


Guardian em junho passado perguntando sobre o encontro com Assange e
supostas doações em criptomoeda ao WikiLeaks. Kaiser não respondeu ao e-
mail na época, mas, diante da câmera, diz: “Ela sabe que me encontrei com
Assange. E sabe que doei dinheiro para o WikiLeaks em bitcoins”.

Seus representantes jurídicos escreveram mais tarde ao jornal afirmando que


as alegações, dizendo que ela havia canalizado doações ao WikiLeaks, eram
falsas. Kaiser disse que recebeu um pequeno presente em bitcoins em 2011 –
muito antes que trabalhasse na Cambridge Analytica – e, sem saber o que
fazer com elas, as deu ao WikiLeaks porque havia se beneficiado do material
que ele divulgou ao longo de anos.

Seu advogado disse a The Observer que a reunião com Assange ocorreu
depois de um encontro casual em Londres com conhecidos comuns. Ele
durou 20 minutos e consistiu principalmente em Assange lhe falar “sobre sua
visão de mundo”. Ele disse que não falaram sobre a eleição dos EUA.

Patten e Kaiser estiveram envolvidos em uma campanha eleitoral controversa


na Nigéria em janeiro de 2015, que, segundo ex-funcionários da Cambridge
Analytica, tiveram paralelos “perturbadores” com a eleição presidencial
americana.

The Guardian revelou que a empresa de dados tinha trabalhado na campanha


lado a lado com uma equipe de agentes de inteligência israelenses não
identificados. Ex-funcionários da Cambridge Analytica descreveram como os
israelenses saquearam os e-mails do atual presidente da Nigéria e divulgaram
informação prejudicial sobre ele à mídia semanas antes da eleição. •

Tradução: Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Omer Messinger/ZUMA Wire/fotoarena


Atração mortal
LIVRO Em História do Suicídio, o francês Georges Minois propõe um passeio
pela trajetória das pulsões de morte na humanidade

Por Pedro Alexandre Sanches

A Lamentação sobre o Cristo Morto (de Andrea Mantegna) pranteia um suicida, segundo
Minois; Hamlet (interpretado no cinema por Laurence Olivier) indaga-se sobre ser ou não
ser e decide continuar a viver

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”Cristo sabe exatamente o que o espera quando sobe a Jerusalém para a


Páscoa; ele caminha deliberadamente para a morte, e, durante seu processo,
não faz nada para evitá-la”, escreve o francês Georges Minois, historiador das
mentalidades religiosas, na principal das várias provocações contidas em
História do Suicídio – A Sociedade Ocidental Diante da Morte Voluntária
(Editora Unesp). “O evento fundador do cristianismo é um suicídio, e os textos
dos discípulos exaltam o sacrifício voluntário”, ele afirma nas primeiras
páginas do livro, já disposto a mergulhar num dos temas-tabu cruciais da
humanidade, desde Jesus Cristo até os dias atuais. O líder que se entrega
voluntariamente ao inimigo é um suicida? Nesse ato ele impele também os
discípulos à pulsão de morte? Minois não chega a responder dilemas como
esses, mas conduz um passeio fascinante pela história da morte voluntária.

Para o historiador, “a guerra é, ao mesmo tempo, um derivativo essencial de


pulsões suicidas e uma proteção contra o suicídio direto” – os tempos bélicos
veem cair pronunciadamente as taxas de suicídio. Os índices entre militares
são dos mais altos, e são bem menores entre filósofos, que refletem e falam
muito sobre o tema, mas matam-se bem menos. O autor justifica as origens
do fenômeno entre militares: “Os rigores do regulamento e da vida militar em
geral, elementos de frustração e medo, quanto aos motivos; a convivência
com a violência e a posse de uma arma de fogo, quanto aos meios”. E
filosofa: “Uma das explicações psicológicas clássicas do suicídio é que, na
maioria dos casos, o indivíduo volta contra si mesmo uma agressividade que
ele não pode liberar contra os outros nas sociedades civilizadas”.

De Cristo, o historiador pula a Santo Agostinho (354-430), que determina a


interdição de quaisquer tipos de suicídio. Em resposta ao ato de Jesus Cristo,
o sistema tranca-se e faz da morte autodeterminada o inimigo maior. “O
religioso odeia o mundo e a vida, anseia pela morte e pelo além, ao mesmo
tempo que não se permite dar o passo final”, Minois traduz o que chama de
suicídio espiritual, substituto das vias de fato. “Vivendo no mundo, mas
recusando todos os prazeres que ele pode lhe oferecer, ele parece um morto-
vivo; ele deve se aproximar o máximo possível da morte, sem nunca abraçá-
la.”

“O evento fundador do cristianismo é um suicídio”, provoca o


historiador

Deus, sob essa ótica, é patrão. Os fiéis têm de preservar a própria vida como
a um bem de consumo devotado à sociedade. “Os interesses de Deus são
semelhantes aos dos proprietários: dispor da própria vida é usurpar tanto os
direitos de um como os direitos dos outros”, narra. A proibição do suicídio é
sincronizada à servidão humana. “Aquele que se priva da vida peca contra
Deus, do mesmo modo que aquele que mata um escravo peca contra o dono
do escravo”, afirma São Tomás de Aquino (1225-1274). O mundo medieval
reserva todo tipo de punição ao cadáver do suicida supostamente demoníaco,
que deve ser arrastado e proibido de merecer enterro cristão. O confisco de
bens será outra punição exemplar ao morto (ou melhor, aos parentes do
morto). “A execução do cadáver é ao mesmo tempo um ritual de exorcismo e
um tratamento com propósito dissuasivo.”

A reação ao suicídio é um problema de classe social, insiste Minois em


diversas passagens. Entre os medievais mais privilegiados, “o torneio, a caça,
a guerra e a cruzada são ocasiões para se fazer matar ou para sublimar
tendências suicidas, ao passo que o camponês e o artesão só dispõem da
corda ou do afogamento para pôr fim aos seus sofrimentos”. A certa altura,
uma estatística impõe-se (no intervalo 1485-1714) e desnuda uma dupla
moral: 67% dos fidalgos suicidas são condenados, contra 99% dos criados.
Em 1650, a punição aos fidalgos cai a 51%.

Da

Idade Média, Minois recua ao antes de Cristo. No século XV, “os homens
redescobrem, com admiração, o passado greco-romano e seus grandes
homens, e não sabem o que fazer diante do suicídio de Aristodemo,
Cleômenes, Temístocles, Isócrates, Demóstenes, Pitágoras, Empé-docles,
Demócrito, Diógenes, Hegésias, Zenão, Cleanto, Sócrates, Lucrécio, Ápio
Cláudio, Crasso, Caio Graco, Mário, Catão, o poeta Lucrécio, Antônio,
Cleópatra, Brutus, Cássio, Varo, Pisão, Coceio Nerva, Silano, Sêneca,
Calpúrnio Pisão, Otão e muitos outros. Será que a morte voluntária de tantos
personagens tão respeitáveis pode ser qualificada indistintamente de covardia
indigna que leva à condenação eterna?”

O Renascimento corresponde à redescoberta do suicídio (“Brant avalia que é


preciso estar louco para se suicidar; Erasmo, que é preciso estar louco para
continuar vivo”), de que o Hamlet de William Shakespeare (1564-1616) é
marco indelével, em 1600. “Ser ou não ser – eis a questão”, formula o
príncipe, em referência direta ao dilema entre seguir vivendo e dar cabo da
vida. Como demarca Minois, Hamlet opta por prosseguir (mas Ofélia, não).
Minois contabiliza 52 suicídios shakespearianos. A influência exercida por
eles traz à luz uma suposta “doença inglesa”. Nesse contexto, nasce a
palavra “suicídio”, por volta de 1640, “do latim sui (de si) caedes
(assassinato)”. O termo “suicidar-se”, aponta o autor, consiste pleonasmo e
redundância adotados (apenas no século XVIII) no francês (e no português).

A Morte de Werther, de F. C. Baude, emoldura o suicídio romântico, por amor, do


personagem de Goethe

caso inglês ajuda a tornar público o debate e a descriminalizar a morte


voluntária, e o Século das Luzes é decisivo para encaminhar a humanidade
nessa direção. O autor parece alinhar-se ao pensamento iluminista de
Montesquieu (1689-1755), Voltaire (1694-1778), Rousseau (1712-1778) e
Diderot (1713-1784), este último o mais contrário ao suicídio entre eles.
“Esses autores que se dizem livres das superstições, que não param de falar
em morte voluntária, quase nunca põem fim à vida. Será que devemos
enxergar nessa dialética atração-aversão uma forma de exorcizar a tendência
ao suicídio de alguns autores?”, pergunta, como se respondesse a si mesmo.
Diz Voltaire: “Somos formigas continuamente esmagadas e substituídas; e
para que essas formigas reconstruam suas casas, e para que elas inventem
algo que se pareça a uma polícia e uma moral, quantos séculos de barbárie!”
Minois atalha: não são os que criticam o absurdo do mundo os que tendem
mais a se matar, mas antes aqueles mais apegados aos valores tradicionais.

Sem pretender analisar os séculos XIX, XX e XXI, o autor chega por fim ao
suicídio romântico à moda do jovem Wer-ther de Goethe (1749-1832). Entram
em cena casos como o de dois militares aparentemente homossexuais que se
matam juntos na véspera do Natal de 1773. É a única menção que o autor faz
à sexualidade masculina como motivo suicida (fora esse momento, o tema só
aparece, sempre entre mulheres, como um ato de expiação do estupro).
Werther mata-se por amor a uma mulher casada, e deflagra suposta epidemia
suicida entre fãs de Os Sofrimentos do Jovem Werther (1774). Goethe como
que se retrata com o dilema filosófico de Fausto (1806-1834), que responde a
Hamlet, também diante de um crânio vazio. “Os suicidas filosóficos vão para o
nada, os suicidas românticos vão para o céu e os suicidas comuns vão para o
inferno”, Minois provoca mais uma vez.

O historiador rechaça nossa propensão a acreditar que os suicídios crescem


de modo alarmante na linha do tempo. Os índices, segundo ele aponta,
tendem à estabilidade, seja entre ingleses que falam abertamente do assunto
a partir da herança shakespeariana, seja entre franceses que tendem a abafar
o tabu. Descrevendo superficialmente retrocessos nos séculos XIX e XX,
Minois defende a pertinência do debate que a religião prefere jogar ao
interdito e ao silêncio sepulcral: “Seria muito melhor se as pessoas
aprendessem a não ter medo da morte. É na exploração desse sentimento
que se baseiam todas as tiranias e todas as situações de injustiça. Só é livre
quem não tem medo da morte”.

Minois não trata da pulsão suicida que parece nortear líderes atuais como
Trump e outros menos cotados, mas os atos deles e de seus súditos
aparecem inscritos na fala do poeta francês Alain Chartier (1385-1430): “Teu
tempo já vai chegando ao fim e as desgraças de tua nação mal começaram.
O que pensas ainda ver na vida senão morte dos amigos, rapina dos bens,
campos devastados, cidades destruídas, senhorio imposto, país desolado e
servidão geral? (...) Deves te arrepender um pouco por continuar vivo
enquanto teu país sucumbe diante de teus olhos e a Fortuna retira a
esperança e o prazer de tua vida”. O rei faz os súditos, ou os súditos fazem o
rei? •

HISTÓRIA DO SUICÍDIO – A SOCIEDADE OCIDENTAL DIANTE DA MORTE


VOLUNTÁRIA
De Georges Minois. Editora Unesp, 414 págs., 74 reais.

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA:
EXPOSIÇÃO A forja de símbolos de
Leonilson
Uma mostra do artista cearense na Fiesp reúne mais de 120 obras, várias delas
inéditas em São Paulo

Por Jotabê Medeiros

O crânio aberto jorra castelos e uma joia de bijuteria, na obra sem título que compõe a
mostra Leonilson: Arquivo e Memória Vivos
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Há um desenho bordado de Leonilson, intitulado O Que Ele Está Fazendo,


que mostra um homem em posição horizontal, como se fizesse flexões, e um
corte longitudinal revela o que ele carrega em seu interior: um vulcão e um
violão, uma garrafa de bebida, uma boia salva-vidas, uma ponte levadiça.
Três grandes buracos equidistantes e vazios pontuam o corpo dessa figura
azul, desenhada com o tradicional hachuramento infantil do artista.

O que Leonilson diz tem uma qualidade universal, mas é nesse pequeno
artesanato desconcertante que ele causa o maior efeito: a costura quase
insignificante, a atenção convocada para um certo garimpo visual, emocional,
a autossuficiência dos seus objetos. O artista cearense José Leonilson (1957-
1993) morreu precocemente, com apenas 36 anos, tempo no qual ilustrou
artigos de jornal, tornou-se um dos destaques da chamada Geração 80,
flanou pela metrópole e fez incontáveis amigos. Mas deixou principalmente
uma obra de notável originalidade e frescor, coisa que poderá ser conferida
de forma ampla na exposição Leonilson: Arquivo e Memória Vivos, no Centro
Cultural Fiesp, até 19 de maio.

Com curadoria de Ricardo Resende, a exposição vem de Fortaleza (Ceará) e


reúne mais de 120 obras, várias inéditas, entre pinturas, desenhos e
bordados, muitas vindas de coleções particulares e institucionais, pouco ou
nunca antes vistas em São Paulo. A seleção apresentada, informa a
organização, é resultado da pesquisa e publicação do catálogo raisonné do
artista, lançado em 2017. Por ocasião da exposição, será lançado e
comercializado pelo espólio do artista, o Projeto Leonilson, um trabalho
inédito, de edição póstuma: uma linoleogravura sobre papel japonês, com
cem exemplares numerados.

Garrafas de coquetel molotov em chamas com amantes diluídos no fogo,


crânios abertos jorrando castelos e uma joia de bijuteria, uma metrópole
envolta num fog azul, garrafa-pulmão cercada de incisões e sangue: as visões
de Leonilson são interiores, mas de grande impacto político e
comportamental. “O trabalho de Leonilson é excepcionalmente sensitivo. É no
uso do repertório gráfico que ele expressa a sua visão de mundo,
inconfundível no manejo dos símbolos, no desenho das palavras, no formato
dos textos e nas histórias que criava”, afirma o curador em texto de
apresentação da exposição. “Ao mesmo tempo que toca pela delicadeza e
simplicidade dos materiais utilizados, por outro lado fere como uma punhalada
com suas verdades incontestes”, diz Resende.

QUADRINHOS O adeus de Ken Parker


Uma revista cult dos anos 1970 conhece finalmente sua conclusão,
após 45 anos da criação do personagem original
Por Jotabê Medeiros

O caubói Western Spaghetti foi criado pelos italianos Giancarlo Berardi e Ivo Milazzo

Diga-me até onde vai o amanhecer. Essa frase, tirada de um verso de um


poema de Emily Dickinson (1830-1886), batiza a última cavalgada de um
herói cult dos anos 1970, Ken Parker, que se despede finalmente dos
quadrinhos após 45 anos de sua criação. Venerado por cartunistas e
roteiristas, o caubói Ken Parker foi criado pelos italianos Giancarlo Berardi e
Ivo Milazzo, em 1974, como um antídoto para a barbárie anti-humanista de
seu tempo, personificada no ambiente em que o herói se movia, o Velho
Oeste selvagem.

Lançado finalmente no Brasil após quatro anos de sua publicação na Itália,


Até Onde Vai o Amanhecer, o derradeiro gibi de Ken Parker, é um esforço do
Clube dos Quadrinhos, que manteve aceso o culto pela história em
quadrinhos desde a sua interrupção na Itália, em janeiro de 1996. Livremente
inspirado no personagem Jeremiah Johnson, do filme Mais Forte Que a
Vingança (1972), de Sydney Pollack, Parker, entre tiros secos de um velho
rifle Kentucky, poemas de Walt Whitman, versos de Shakespeare e canções
de Woody Guthrie, alfabetizou milhares de leitores mundo afora acerca do
valor da cultura e do fortalecimento do espírito em face da miséria humana
mais desalentadora.

Como num autêntico Western Spaghetti, as histórias alimentam-se de toda a


cultura mítica do Oeste americano, mas elas vão muito além em termos de
recursos gráficos, que são revolucionários (a angulação estava mais para o
cinema do que para os quadrinhos da época, e as aquarelas de Ivo Milazzo
são primorosas). Também inovou nas temáticas, que iam do feminismo ao
universo gay. Tem fãs em todos os quadrantes, do cantor e compositor Arrigo
Barnabé à cartunista Laerte. O último episódio é, como não poderia deixar de
ser, melancólico. Parker, que cumpriu pena em um presídio, reencontra ex-
colegas de cela em uma cruzada de morte, estupro e assassínio. Ele é o
oposto de tudo que eles representam, mas se vê obrigado a acompanhá-los e
negar sua personalidade para poder conhecer o futuro.

Num mundo de infâmia e conflagração, o destino de um homem ético pode


residir numa pequena confusão de papéis – pode acontecer de ter de
mergulhar no abismo para resgatar a si mesmo. É o que acontece com Ken
Parker. A narrativa não é fácil, é entremeada por flashbacks e exige do leitor
um prévio conhecimento do que aconteceu antes. Mas é, como diria Parker,
uma travessia necessária.

ATÉ ONDE VAI O AMANHECER


De Ivo Milazzo e Giancarlo Berardi. Clube dos Quadrinhos, 144 págs., 100 reais.

STREAMING A manipulação Britânica


Por Eduardo Nunomura
Brexit, HBO, 92 minutos.

É cada vez mais claro que fomos (e estamos sendo) dragados por algoritmos
em escolhas que vão desde o café da manhã à eleição presidencial, seja no
Brasil, seja nos Estados Unidos, na França, na Índia. Esta é a parte podre das
manipulações das redes sociais, mas, antes de atribuir toda culpa a nerds de
olhos vidrados nos computadores, é bom ouvir o que o estrategista político
britânico Dominic Cummings tem a falar. Baseado em fatos infelizmente reais,
o filme Brexit, em exibição desde o início do mês na HBO, gira em torno
desse personagem de bastidor que liderou a campanha pela saída do Reino
Unido da União Europeia, em 2016. O filme, com direção de Toby Haynes e
roteiro de James Graham, enfrenta o desafio de tratar de um tema em
andamento – os ingleses ainda estão batendo cabeça sobre qual caminho
seguir.

Vivido pelo ator Benedict Cumberbatch (o ), Cummings percebeu que


parcelas significativas da população inglesa estavam ausentes das
preocupações das elites econômicas e políticas, sejam elas progressistas,
sejam conservadoras. O estrategista não só chegou até elas por meio das
redes sociais, com o uso de iscas como um aplicativo enganador de captura
de dados, como também soube orientar os britânicos abandonados à própria
sorte a canalizarem sua fúria “contra tudo o que está aí” no referendo de
2016. Troque o país e os personagens, e a realidade brasileira parece saltar
da tela.

TEATRO Um trio fraterno


Por Eduardo Nunomura

A Ponte. De Daniel Maclvor. No CCBB-SP (Rua Álvares Penteado, 112, Centro), sexta, sábado e
segunda-feira, às 20 horas, e domingos, às 18 horas. Até 25 de março. Ingressos a 30 reais.

Três irmãs, que se presume um dia terem sido muito unidas, reencontram-se
anos depois sob o mesmo teto para cuidar da mãe que, acamada e à beira da
morte, vive à base de morfina e rabisca garranchos em post-its para se
comunicar. A mais velha, Theresa (Bel Kowarick), é freira e mora numa
colônia religiosa; Agnes (Debora Lamm) vive na capital e é atriz; a caçula
Louise (Maria Flor) é quem cuida da matriarca, mas a primeira imagem que
nos transmite é a de uma jovem avoada viciada em séries de tevê.

A maioria das cenas acontece na cozinha, predominantemente vermelha, cor


quase sempre associada ao perigo, à força, ao poder, à paixão e à guerra. É
um pouco de cada um desses elementos que se passará na história de A
Ponte, texto do canadense Daniel Maclvor e sob direção de Adriano
Guimarães. As três personagens travam diálogos entre ácidos e cômicos,
dramáticos e emotivos, sinceros demais. É como se, naquele reencontro
forçado, todos os sentimentos voltassem à tona como ressentimentos que
precisam ser passados a limpo. Em vez de amor fraterno, a montagem trata
do complexo fraterno, a difícil relação psicológica de amor e ódio entre
irmãos.

As interpretações e os diálogos precisos das três atrizes ajudam a compor


uma história que nos fará alternar, em instantes, riso e choro, angústia e
compadecimento. Cada uma delas terá um momento solo, introdutório, que
revela as nuances dos papéis que cada uma exerce sobre essa família. Mas é
em sua totalidade que a montagem nos ensina a perceber a inexorável
finitude das relações, sejam elas boas ou más.

LIVROS Os Bolsonaros do Brasil


Duas obras recém-lançadas tentam explicar, a quente, por que o país
mergulhou no conservadorismo
Por Eduardo Nunomura

O estado de bestialidade em que o Brasil mergulhou é o tema de Democracia em Risco? e O Ódio


como Política

A primeira obra saiu pela Boitempo, em setembro de 2018, antes mesmo de


Jair Bolsonaro ser eleito presidente do Brasil. A segunda, concebida a menos
de dez dias do segundo turno das eleições, foi concluída em dezembro. Dois
livros, portanto, escritos “a quente”, no calor dos acontecimentos, e que não
se furtam a considerar a última disputa eleitoral como sendo um marco
histórico, mesmo que caracterizado pela involução da democracia e pela real
ameaça às conquistas populares.

Democracia em Risco? (Companhia das Letras) e O Ódio como Política


(Boitempo) reúnem vários autores de diferentes matrizes ideológicas. No
primeiro livro, destaque para André Singer, Boris Fausto, Celso Rocha de
Barros, Daniel Aarão Reis, João Moreira Salles, José Arthur Giannotti,
Ronaldo Lemos e Sérgio Abranches. A segunda obra, organizada por Esther
Solano, apregoa não contar com nenhum “autor de direita”, mas seus autores
procuraram mergulhar nesse universo. Entre os 18 nomes, estão Gilberto
Maringoni, Luis Felipe Miguel e Rosana Pinheiro-Machado.

Algumas lições emergem dos textos: as redes sociais criam “milhões de teses
e de antíteses, mas não há síntese”, diz o advogado Ronaldo Lemos, no livro
da Companhia das Letras, acrescentando que para vencer uma eleição no
Brasil é preciso recorrer a “ficções sociais”, como, por exemplo, “escolher
inimigos que sejam bons de odiar”. A construção de uma narrativa polarizada
favoreceu a ascensão de Bolsonaro, que abusa de um “vocabulário limitado,
palavras de ordem fortes e adjetivos agressivos”, afirma Abranches. Carlos
Melo menciona que a “inflexão política” rumo à “insensatez” ocorreu por haver
“muito descontentamento e crítica armazenados”, mas também por erros
políticos continuados, que flanavam em torno da “falsa polarização” entre o
PT e o PSDB.

Na obra da Boitempo, Rosana Pinheiro-Machado e Lucia Mury Scalco


revelam que, em pesquisas de campo feitas por elas nas escolas desde 2016,
já despontava uma juventude de viés bolsonarista marcada pela “perda de
protagonismo social e a sensação de desestabilização da masculinidade
hegemônica”, uma clara resposta de aversão à proliferação de coletivos
negros, LGBTs e feministas no Brasil pós-2013. Henrique Vieira, em outro
artigo, assinala que a concepção fundamentalista cristã não é perigosa, ao
contrário do extremismo religioso, que é “mais agressivo e com disposição
consciente de atitudes de violência ou de interferência direta no Estado”. Luis
Felipe Miguel alerta que a má vontade da classe média com os governos do
PT foi canalizada por meio de um noticiário enviesado, um articulado
movimento anticorrupção e o martelado discurso da meritocracia, que
ressuscitou nesse segmento social “o eterno receio de perder a diferença em
relação aos mais pobres”. Duas obras complementares e que, se não nos
ajudam a sair deste estado de bestialidade política, nos fazem enxergar as
peças do tabuleiro.

DEMOCRACIA EM RISCO? – 22 ENSAIOS SOBRE O BRASIL HOJE


Vários autores, Companhia das Letras, 378 págs., 55 reais.

OESTE
Funk de Chicago
O ÓDIO COMO POLÍTICA: A REINVENÇÃO DA DIREITA NO BRASIL
Vários autores, Boitempo, 128 págs., Boitempo, 15 reais.

Ausente das gravações por 12 anos, a diva do suingue Chaka Khan volta com
o CD Hello Happiness, ode a uma felicidade plástica, menos orientada ao
funk de raiz que às modernidades velhuscas da house music.

Country do Mississippi
A banda roqueira nova-iorquina Mercury Rev faz tocante homenagem a uma
diva country no doce Bobbie Gentry’s,The Delta Sweete Revisited, todo
cantado por vozes femininas como Hope Sandoval, Norah Jones, Laetitia
Sadier e Beth Orton.

Electro britânico
O que era alegria electro na virada do século dissolveu-se na melancolia e
nos climas soturnos do CD homônimo de volta do grupo britânico Ladytron, de
temas como “The Mountain”, que em nada lembram a velha diversão de
“Playgirl” (2001).

Folk do novo México


O folk sulista estadunidense é a moeda da banda Beirut, que lança o
desértico e lírico Gallipoli, compêndio de canções antimuro com títulos que,
traduzidos, se chamariam “Variáveis do Exílio”, “Quando Eu Morrer” e “Nós
Nunca Vivemos Aqui”.

Faroeste brasileiro
Por razões que a razão desconhece, os EUA descobriram o sanfoneiro
forrozeiro pernambucano Camarão (1940-2015) e lançam a coletânea The
Imaginary Soundtrack to a Brazilian Western Movie 1964-1974. Só Freud
poderia explicar.

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Rubens Chiri/Perspectiva, NICK WALL, flavia canavarro e Carl DE


SOUZA/AFP
A iconografia do
deboche
Reparem nas imagens produzidas pelo novo poder. O show de horrores é
proposital, distrai do vazio de ideias ao de pudor

Por Nirlando Beirão

A máquina de lavar, assim como o personagem da foto, é meramente decorativa

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Noam Chomsky, linguista e militante, anda dizendo que as pessoas já não


acreditam mais nos fatos e que a verdade não interessa mais nas
interlocuções sociais. Na política, então, menos ainda. Umberto Eco assinaria
embaixo. Em desabafo que virou testamento, Eco defendeu que “as mídias
sociais deram o direito à fala a legiões de imbecis que antes falavam só no
bar, sem causar dano à coletividade. Diziam a eles para calar a boca,
enquanto agora eles têm o mesmo direito à fala que um ganhador do Prêmio
Nobel. O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a portador
da verdade”.
Em certo caso, o idiota da aldeia pode ser o próprio presidente da República.
Uma análise do áudio e vídeo que seus asseclas vêm produzindo mostra que
o idiota decidiu debochar de todos nós – inclusive dos que se identificaram
nas urnas com seu blá-blá-blá de bobalhão agressivo.

As

Pé de chinelo. No Alvorada, de costas para o safado Di, sozinho no bandejão de Davos e


com a camisa pirata do Palmeiras

primeiras semanas do mandarinato Bolsonaro surpreenderam, até mesmo os


que já esperavam o pior, com um festival de barbaridades, tolices,
incompetência, mentiras, maracutaias, confusões e trapalhadas. Por vocação
e por interesse, o jornalismo camarada-e-Camaroti tenta conferir ao imbróglio
todo a maior das naturalidades. A cobertura amiga age como se houvesse
método na loucura – e um mínimo de seriedade nas intenções.

Por outro lado, erram os adversários ao analisarem o governo rastaquera à


luz dos instrumentos da razão. A cultura do ódio irracional, caótico, que
intoxicou a campanha prevalece no período pós-eleitoral, mesmo porque esta
é a tônica de um governo sem tônus e sem rumo. À falta de news, a fake
news é a regra. Nada pertence à realidade, a começar pelos inimigos
imaginários que o bloco do poder se obstina em criar.

Seria demais atribuir ao dirigente pé de chinelo – que comanda o País em


trajes de colônia de férias dos caminhoneiros – a habilidade de arquitetar uma
estratégia de factoides que despistasse o deserto de ideias, de projetos e de
princípios. Mas a Commedia dell’Arte ora encenada na ribalta de Brasília e
redondezas basta a si mesma, em trambolhões que arrancam gargalhadas
propositais.
O discurso da farsa não reivindica coerência alguma. Os ministros, a pastora
Damares, o deseducador da Educação, o vira-lata das mineradoras, o
chanceler serviçal, o justiceiro covarde, todos eles, estão a serviço de um
script no qual o projeto de poder é o ridículo e a estupidez, a norma. São bois
de piranha do matadouro palaciano. O elenco bufo entretém a plateia parva.
O ministério é um freak show permanente. Horrorizar faz parte do enredo
diversionista. Os filhos cafajestes proporcionam uma figuração ruidosa.

Não há de se esperar arrependimento dos que o idolatram. A semiótica do


bolsonarismo é primária. Aquela imagem do mandatário de uma das dez
maiores economias do mundo esgueirando-se, solitário, numa lanchonete a
quilo em Davos, em pleno Fórum Econômico Mundial, aspira a uma
mensagem dupla. É claro, sim, que, no ambiente de figurões cosmopolitas, a
criatura suburbana entrou em pânico. Por outro lado, comportou-se da mesma
forma que se comportaria, em tal situação, o rebotalho jeca que o elegeu.
Buscou, na identificação, a indulgência.

De volta de uma longa internação hospitalar, durante a qual não poupou a


nação de cenas de um naturalismo grotesco e francamente forjado, o
indigitado compareceu a uma reunião engravatada envergando a camisa
pirata de um time de futebol, calça de moletom e sandálias Rider, capazes
estas de exibir o panorama mimoso de eventuais unhas encravadas. O
espetáculo deu-se no Palácio da Alvorada, residência do primeiro mandatário.
O escracho era tão estudado que um fotógrafo foi convocado a documentar a
cena de autoescárnio, cuidando o protagonista de jogar um paletó ensebado
por cima da nada protocolar vestimenta. Onde muitos viam esculhambação,
outros eram iludidos a enxergar “um presidente do povo”, na sua mais
molambenta acepção.

Barbarizar faz parte do enredo. Não é possível buscar lógica


no que é farsa

Por ironia involuntária posam os neomandatários diante de um mural


assinado por um comunista convicto – Di Cavalcanti. Trata-se de uma obra de
alta densidade erótica, sugerindo a barafunda de sexo coletivo, com duas
senhoras se comprazendo a si mesmas. Só faltou a Di Cavalcanti antecipar a
lendária mamadeira de piroca.

Da pequena estirpe de políticos que trilhou a vertente dessa embromação,


Jânio Quadros foi o mais notável. Mas, ao contrário do atual inquilino do
Alvorada, Jânio primava pela inteligência, a bordo da qual se consagrou como
um embusteiro convincente, ainda que temperamental. Galgou os andares da
política, até o pináculo da Presidência, pregando contra a corrupção,
enquanto se locupletava com o dinheiro dos empresários a que seu poder
chantageava. Nesse quesito fez escola, ainda que colhendo discípulos – não
é, Sérgio Moro? – que não lhe chegam aos pés. Jânio convenceu que era um
trabalhador feroz “administrando” a cidade de São Paulo, quando prefeito,
desde um hotel de Londres.

Jânio era também carnavalesco em suas vestimentas e sua linguagem


corporal. Aos comícios que eram shows, comparecia com paletós negros que
ressaltavam a caspa que lhe caía dos cabelos. Foi flagrado com boné de
motorneiro de bonde e um de seus adereços persuasórios era o sanduíche de
mortadela, embrulhado em papel seboso, que ele tirava do bolso do paletó,
sem nenhum constrangimento, enquanto brandia para o público suas
enigmáticas mesóclises.

Na

Jogo de cena. Um vendia a imagem de atleta; outro capitaliza o estilo Vuitton; o mestre
dominava os artifícios

contramão do estilo populacho de Jânio, mas com o mesmo despudor na


embromação, trafega o (a)celerado governador de São Paulo. João Doria
tenta seduzir os facilmente iludíveis com seu modelito Vuitton-e-Vacheron, de
cashmere abóbora ou amarelinho-canário jogado sobre os ombros e com
aquela expressão de quem está sempre com o pé no jatinho a caminho de
Dubai ou de Key Biscaine. Faz sucesso junto à plebe.

Para encarnar o mocorongo que ensaia ser, o capitão Jair tem, portanto,
muito a aprender. Fernando Collor bem que tentou vestir o figurino de
impostor, convenceu, mas durou pouco. O capitão do mato e o caçador de
marajás, os dois mais o Jânio, têm em comum a crença na supremacia infinita
da trapaça e na ignorância abúlica da audiência. Tanto a política despreza a
verdade que a mentira passou a ser o grande eleitor. A mentira, o boato e a
calúnia excitam – e o poder de excitar prevalece hoje sobre a cabeça fria e a
reflexão responsável de que a democracia faz atributos.
Jânio, Collor, Doria creem na supremacia da trapaça e na
inércia abobalhada da plateia

Ensinar uma criança a fazer “arminha”. Prometer fuzilar os adversários. Ter


como ídolo um torturador selvagem. Açular a truculência dos covardes. O
reality show do bolsonarismo alimenta-se de um exibicionismo entorpecente.
Provocar, mentir, debochar – impossível medir o entretenimento dos
usurpadores pela régua da lucidez e do bom senso. As redes sociais, que o
golpe manipulou a seu favor, fazem o jogo sujo. O Brasil está drogado. A
iconografia escrachada do chinelo Rider só acentua o desprezo dessa gente
pela decência, pela compostura e pela liturgia do cargo. A tigrada, vítima do
embuste, orgulha-se alegremente de ser manipulada. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Mídia Social, Mídia Social e Alan Santos/PR, Lula Marques/Folhapress e
Aloisio Mauricio/Fotoarena
Depressão perinatal
É um erro esperar que os sintomas apareçam. O aconselhamento prévio evita
situações extremas

“Tudo se quebrou no mundo. Só resta o silêncio” - García Lorca

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Depressão perinatal é um dos mistérios da maternidade.Conforme as


estatísticas, 50% a 80% das puérperas apresentam crises de irritabilidade e
disforia que se iniciam dias depois do parto, mas regridem espontaneamente
em duas ou três semanas. Esse estado é atribuído às alterações hormonais
desencadeadas pela proximidade do parto, entre outros fatores.

No entanto, 10% a 15% das mulheres que dão à luz caem numa tristeza que
não tem fim, sem entender o que se passa nem identificar a causa de tanta
infelicidade, num momento que julgavam lhes trazer muita alegria.

É uma das principais complicações do parto. Seus efeitos adversos são


múltiplos: aumento do risco de prematuridade, crises de choro, apatia,
sonolência ou insônia, anorexia ou compulsão alimentar, perda de libido,
ansiedade, crises de pânico, desleixo nos cuidados com o recém-nascido,
alterações emocionais que interferem no relacionamento mãe-filho e causam
desentendimentos familiares.

O impacto emocional da depressão materna pode prejudicar o


desenvolvimento neuropsicomotor da criança, com consequências a médio e
longo prazo. Nos casos extremos existe até risco de suicídio.

O United States Preventive Services Task Force (USPSTF) acaba de publicar


as recomendações para que médicos clínicos e obstetras encaminhem para
aconselhamento psicoterápico pacientes grávidas ou no pós-parto que
apresentem risco aumentado para desenvolver depressão.

Diversos fatores clínicos e sociodemográficos estão associados ao aumento


desse risco. Entre eles, violência doméstica, dificuldades financeiras, gravidez
não planejada ou indesejada, falta de apoio familiar e social, histórico de
sintomas depressivos ou episódios de depressão no passado.

O USPSTF considera que a fase perinatal é especialmente oportuna para


intervenções preventivas, porque a mulher está motivada a adotar
comportamentos que promovam seu bem-estar pessoal e do bebê.
Recomenda que os profissionais procurem consultar o Antenatal Risk
Questionnaire ou o Postpartum Depression Predictors Inventory, para ajudá-
los a identificar outros fatores de risco.

Os médicos não devem esperar até que os sintomas se instalem para


recomendar a intervenção. Estudos mostram que o aconselhamento precoce
está associado a 39% de redução na probabilidade de surgir depressão no
período perinatal. Os métodos mais estudados têm sido a terapia cognitivo-
comportamental e a psicoterapia interpessoal.

Infelizmente, o número de mulheres que necessitam de cuidados


psicoterápicos perinatais é muito maior do que a disponibilidade de acesso
aos serviços do SUS em condições de atendê-las.

A identificação dos fatores de risco, dos primeiros sintomas e do histórico de


quadros depressivos anteriores é fundamental para a prevenção da doença.
Quanto mais precoce o acompanhamento psicoterápico, através da terapia
cognitivo-comportamental ou da psicoterapia interpessoal, melhores serão os
resultados. •

ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Istockphoto


O beijo da vida
Menos de um minuto que se eternizou num clique. E que deu longevidade a
greta e a George, morto esta semana aos 95 anos

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Um beijo pode ter o poder de assegurar a longevidade. Em especial se o beijo


ganhar um estardalhaço público e um significado mítico como aquele,
espontâneo, inesperado, que o marinheiro George Mendonsa roubou da
enfermeira Greta Zimmer Friedman no dia em que o fim da Segunda Guerra
Mundial foi anunciado, 14 de agosto de 1945. Nova York foi em peso festejar,
como é ainda praxe, na Times Square. Mendonsa vinha caminhando,
levemente alcoolizado, como confessaria depois, quando, de surpresa, se
atracou com a desavisada Greta. Menos de um minuto durou o arrufo
amoroso e não há notícia de que o meteórico casal tenha jamais se
reencontrado. Mas o clique do fotógrafo Alfred Eisenstaedt ficou para a
posteridade. O marinheiro George acaba de morrer, aos 95 anos. A
enfermeira Greta, que nasceu na Áustria, chegou aos 92.
Costurando fantasias
Karl Lagerfeld costumava costurar sua biografia em tecido de lenda, assim
como inventava, a cada saison, suas criações de passarela. “Meu pai era um
barão sueco”, disse, certa vez, ao Le Monde. “Sou filho de um antigo
governador da Westphalia”, afirmou ao mesmo jornal. A mãe podia ser, de
acordo com as circunstâncias, “uma magnífica violinista” ou então “uma
corajosa pilota, dona de seu próprio avião”. Se Lagerfeld não tinha nenhuma
fidelidade à verdade – e é a fantasia, não a realidade, que interessa a um
estilista de primeiro time –, à Chanel e à família Wertheimer, dona da grife de
8 bilhões de euros, ele se manteve fiel desde 1983. Outra de suas paixões
era a fotografia. Em janeiro, não compareceu ao desfile que ele próprio
concebera. O porta-voz da Chanel comentou: “Karl está apenas cansado”. O
estilista – que na verdade nasceu em berço plebeu em Hamburgo – morreu
na terça 19, aos 85 anos, no Hospital Americano de Paris.

O Club 16, na Praia da Pipa, Rio Grande do Norte, gosta de se apresentar


como uma “pousada liberal”. O carnaval é uma excepcional oportunidade para
exemplificar o que vem a ser isso. Para casais adeptos do suingue, é um
convite para cair na folia. A casa avisa que “a utilização da roupa é opcional,
mantendo o conceito de que tudo é permitido e nada é obrigatório”. Com café
da manhã incluído, o pacote de quatro diárias para casal custa R$ 3.600,00
(chalé simples), R$ 3.800,00 (apartamento) e R$ 5.400,00 (chalé duplo).
www.club16.com.br.
O carnaval endiabrado...

... e o carnaval purificado


Carnaval e zen são duas palavras que se repelem mutuamente, mas é isso
que propõe o Templo do Ser, espaço de retiros e bem-estar localizado em
Ilhabela, litoral de São Paulo. Ficam de fora da pousada o cigarro, as bebidas
alcoólicas e, com certeza, os pecados: em compensação, os convivas
ganham aulas de ioga, massagens relaxantes e Reiki Xamânico, seja lá o que
isso signifique. Tipicamente, o café da manhã é vegetariano e os ingredientes,
orgânicos, também no restaurante Mana Bistrô, com vista para a Mata
Atlântica. Reservas para os quatro dias de carnaval podem ser feitas pelo
telefone (12) 99736-3846 e pelo e-mail info@templodoser.org.
ÍNDICE

CRÉDITOS DA PÁGINA: Alfred Eisenstaedt, Patrick KOVARIK/AFP e reprodução


A quem pertence Da
Vinci?
RENASCIMENTO A França tenta apropriar-se do legado do gênio italiano,
nos 500 anos de sua morte. Mas a Toscana responde com grande programação

Florença, no século XV, epicentro da Renascença. Já a França prefere o Loire

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Uma batalha histórica será travada nos próximos meses entre França e Itália,
mas, ao contrário dos conflitos do passado, se tiver que verter alguma coisa,
será vinho, não sangue. O pretexto são os 500 anos do Renascimento, data
meio arbitrária que pelo menos evoca o gênio dos gênios do período,
Leonardo da Vinci, morto em maio de 1519.

Mais arbitrária ainda, hão de reclamar os italianos, é a decisão dos franceses


de se apropriarem do multimídia toscano como se fosse um de seus,
aproveitando-se da circunstância de Da Vinci ter passado seus últimos três
anos de vida como pensionista de Francisco I e de ter morrido num puxadinho
– Clos Lucé – do castelo real de Amboise, no Vale do Loire.

O turismo francês, aliás, entrou agressivamente no tema Renascimento, tanto


que agregou ao pacote Da Vinci outro personagem de
origem meridionale que, assim como o pluriartista, foi dar com seus costados
na França: Catarina de Medici, de berço florentino, como indica o nome, filha
de Lorenzo II e rainha de França de 1547 a 1559 pelo seu casamento com
Henrique II. Catarina nasceu em abril de 1519, poucos dias antes da morte de
Da Vinci.

Leonardo viveu seus últimos três anos no castelo de Amboise,


a convite de Francisco I

Para não ficar excessivamente escandalosa a apropriação e conferir algum


sotaque local ao cardápio, a França incorporou às celebrações renascentistas
a instalação da pedra fundamental do castelo de Chambord, a mais luxuosa
das residências monárquicas do Loire.

A Itália naturalmente também se prepara para brindar Leonardo com uma


programação extensa e o melhor Chianti da Toscana. O circuito começa em
Vinci, a uma hora de Siena, cujo Museu Leonardiano
(www.museoleonardiano.it) mantém em sua biblioteca uma das coleções mais
extensas e originais, com manuscritos, desenhos, invenções e obras literárias
de Leonardo da Vinci. – inclusive as reproduções de sua bicicleta e da
precursora “máquina voadora”.

A cinco minutos de Vinci, na aldeia de Anchiano, fica a casa onde Leonardo


nasceu. Mas o epicentro dos festejos do quinto centenário de morte do mestre
será, muito adequadamente, Florença, onde floresceram tanto a arte de Da
Vinci quanto o melhor do Renascimento. No Museu Leonardo da Vinci
(www.mostredileonardo.com), próximo ao centro storico e à Catedral Santa
Maria del Fiore, 40 máquinas construídas em tamanho real dão vida a
projetos do visionário artista e arquiteto. •

ÍNDICE
O torcedor é a vítima
O

massacre que se vê por todo lado ganha imagens dramáticas


no Maracanã, em dia de disputa de Taça

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Não adianta insistir, por mais que tentem nos humilhar, espezinhar mesmo,
não vamos desistir, aqui é a terra do Conselheiro e de Lampião, Zumbi dos
Palmares, do futebol, do Carnaval, somos assim até para falar das maiores
tristezas – nossa música é um samba-canção.

Fiquem pra lá com seu ódio, seu rancor; hora de se juntar, de se unir para
avançar no rumo da fraternidade, da solidariedade, isolar e afastar para bem
longe essas cabeças dançadas, cegas pelos privilégios que as mantêm
aprisionadas no obscurantismo da Idade Média.

Os últimos acontecimentos, de fato aterradores, deixam cada vez mais claro


esse descompasso.

As barbaridades do jogo Vasco e Flu-minense bem que poderiam ser a gota


d’agua. A montanha já veio abaixo, as condições de mudança estão mais que
explicitadas, vamos ver em que ponto se encontra a organização da nossa
sociedade nesse momento crucial da Humanidade, em que a tensão se faz
sentir globalizada.

Em nosso caso, as provas da falência desse modelo estão escancaradas, no


Executivo, no Legislativo e no Judiciário, urgente aproveitar esse tempo de
limbo para atingir, em consonância com todos os povos do mundo, o maior
alcance possível de conquistas nas mudanças que forçosamente vão
acontecer.

A situação da Venezuela já ganhou os contornos internacionais que apenas


fermentavam, hora grave com as ameaças insanas do desajustado americano
se concretizando às portas da Amazônia.

Em tempo de tamanho desacerto parece natural mesmo que as pedras rolem


morro abaixo, mas o dirigente do Atlético Mineiro agora prefeito de Belo
Horizonte não poderia ter sido mais infeliz em sua declaração – “pobre assiste
jogo pela televisão, rico é que pode ir ao estádio” (arena neste caso) – no
mínimo ingrato com o povo que o elegeu.

Inconsequente, já tivera uma lição quando contratou o Ronaldo Gaúcho e


disse que o jogador, no Atlético, não iria botar as mangas de fora. Queimou a
língua, Ronaldinho divertiu-se muito no clima das Alterosas, ajudou o Galo a
conquistar a Libertadores e o “cartola” teve de renovar o contrato do craque
genial, que depois pisou na bola.

Entre os clubes, a situação chega a ser um descaramento, embora bastante


coerente com tudo que vem acontecendo, clubes tradicionais e grandiosos
em sua história devendo salários, que são despesas fixas, alguns devendo
férias e o 13o de 2017.

Enquanto isso, os torcedores ficam a ver, voando para lá e para cá, cifras
inimagináveis, que ao fim das contas eles é que produzem.

Ainda sobre a final da Taça Guana-bara, os clubes deixaram de arrecadar


uma renda correspondente a 60 mil torcedores. A expressão da mulher
desnorteada vendo o noticiário da tevê define bem: “Acho que os fatalistas
têm razão, o mundo esta perto de se acabar”.

Os desportistas chamados olímpicos sofrem toda sorte de desacertos por


parte das federações, quase todas objeto de investigações policiais. O
Ministério do Esporte foi extinto virando secretaria, aguardamos o rumo que
vai tomar.

Enquanto esses valores descontrolados continuam voando, todos os tipos de


esporte cujo benefício maior é promover saúde mental e física vão ficando
mais e mais desamparados e sujeitos às consequências lógicas, as pessoas
definhando e custando mais aos cofres públicos.

Em resumo, vamos seguindo ao sabor das vagas do mar tocado pelos ventos
incertos e tem gente que acompanha esses movimentos como se não fosse
outra forma de ditadura, e a cada dia vai aumentando o número de “sinistros”
militares, até que seja fechado o Congresso ou haja uma reação organizada
da sociedade brasileira.

LULA LIVRE !!! •

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CRÉDITOS DA PÁGINA: Baptistão e Nayra Halm/Fotoarenaw


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