Você está na página 1de 6

PARTE I

Introdução
As palavras Bhagavad-gétä significam, literalmente, A Canção do Senhor, e
hoje um bilhão de pessoas ao redor do mundo aceitam-na como tal. Esse texto
elegante e milenar trata das maiores questões da vida: “Quem sou eu?”, “O que
é o Universo?”, “Como posso ser feliz?”, “De onde tudo vem?”, “Para onde
tudo vai?”, “Quem são verdadeiros mestres e como reconhecê-los?” A Gétä,
como costuma ser chamada, distingue-se por suas respostas serenas, racionais e
satisfatórias a essas questões perenes.

Uma breve obra sânscrita de setecentos versos, a Bhagavad-gétä faz parte


do Bhéñma-parva, o sexto livro do Mahä-bharata, uma vasta história sagrada. A
Gétä brilha como o farol espiritual e auge daquela obra bem maior, que, por
inenarráveis séculos, tem desempenhado um papel cultural central no sul da
Ásia e além.

Originalmente, este guia completo para o conteúdo da Gétä destinava-se


a ser apenas uma curta introdução à minha tradução literal da Gétä. Porém, tal
qual a lendária encarnação de Kåñëa como um peixe, que apareceu em tamanho
minúsculo e depois cresceu e atingiu proporções gigantescas, o que começou
como uma mera introdução cresceu, em virtude da necessidade, a ponto de
tornar-se um livro em si mesmo. Tendo lido, estudado e apreciado a Gétä por
décadas aos pés do meu mestre Çréla Prabhupäda, não poderia deixar de
compartilhar as conexões conceituais profundas que tornam esse texto sânscrito
tão mágico. A Gétä é amplamente reconhecida como uma obra de genialidade
espiritual e filosófica, e, desde cedo, apaixonei-me por seu texto sânscrito. Meu
sincero desejo aqui, através da explicação e tradução, é levar o leitor em geral às
profundezas do texto sânscrito original. Espero que você goste da jornada.1

Contexto Histórico
A Bhagavad-gétä inicia-se num campo de batalha momentos antes de justiça
e injustiça (dharma e a-dharma), personificados pelos guerreiros Päëòavas e
Kurus, irromperem na guerra.2 Kåñëa dirige a quadriga de Arjuna, Seu amigo
íntimo e primo, que luta pelo que é correto. Contudo, no instante em que a
batalha está prestes a começar, Arjuna cai em confusão. Alegando compaixão
pelos cruéis usurpadores com quem compartilha laços familiares, ele se recusa a
lutar por justiça. Arjuna reconhece essa emoção como fraqueza [2.7],3 no
entanto, ela o paralisa. Ele não consegue agir. Após tentar defender sua recuada
com argumentos e apelos sócio-morais, Arjuna quase desmorona em ansiedade
e, nesse ponto, termina o primeiro capítulo da Gétä.
No capítulo dois, Kåñëa começa a reavivar, ensinar e iluminar Arjuna, ao
insistir em bases morais, sociais e espirituais, que ele deveria, sim, lutar. Alguns
leitores questionam a espiritualidade de Kåñëa ao instigar Arjuna a lutar na
batalha. Para entender o que está acontecendo, precisamos nos voltar ao cenário
histórico da Gétä dentro da epopeia Mahä-bhärata.

Imagine que você acorda, um dia, com a chocante notícia: usurpadores


apossaram-se de seu governo, revogaram a constituição, expulsaram os
governantes legítimos e impuseram violentamente a lei marcial. Você ora para
que o governo legítimo, os militares e todos os cidadãos leais se oponham aos
agressores e restaurem o estado de direito e a tradição.

O Mahä-bhärata ensina que uma crise semelhante irrompeu na Índia há


milhares de anos. Kåñëa (Deus) veio à Terra para ajudar Seus devotos – Arjuna,
seus irmãos e outros – a restaurar o dharma (justiça, Direito, regulamento
legítimo) na Terra. Assim, na Bhagavad-gétä, Kåñëa incita Arjuna a opor-se aos
Kurus, liderados por Duryodhana, que injustamente usurpou o poder. Kåñëa
afirma que Ele vem especificamente à Terra para restaurar o dharma [4.7-8], e
aqui podemos vê-Lo em ação.

Governantes legítimos esperam que seus generais defendam a lei. Então,


Kåñëa esperava que Arjuna lutasse em Kuru-kñetra em vez de permitir um
governo baseado em fraude, coerção e usurpação.

Os eventos dessa história sagrada ocorrem em três níveis: terreno, cósmico


e espiritual:

1. Terreno: falamos brevemente sobre isso acima;

2. Cósmico: os ensinamentos da Bhagavad-gétä, e a abrangente história do


Mahä-bhärata, desdobram-se dentro de um cosmos pessoal e com muitas
camadas de mundos superiores, intermediários e inferiores. Justiça e
injustiça (dharma e a-dharma) competem nos mundos superiores tal como o
fazem na Terra. No campo de batalha de Kuru-kñetra, onde Kåñëa fala a
Bhagavad-gétä, Kurus, Päëòavas e todos os demais guerreiros líderes
lutaram como encarnações de heróis e vilões cósmicos (devas e asuras)
dotadas de poder. A Terra tornara-se uma arena de batalha para um
conflito cósmico;

3. Espiritual: quando desce a este mundo, Kåñëa (Deus) projeta Seus feitos,
tal como falar a Bhagavad-gétä, a fim de despertar as almas adormecidas
para sua eterna natureza bem-aventurada e para seu relacionamento
extático com Ele. Toda a história que emoldura a Gétä é um planejado
drama espiritual em que Kåñëa salva os virtuosos, remove os perversos e
restaura o dharma, a lei sagrada que sustenta o Universo [4.8].

As Origens da Gétä

O que diz a Academia sobre a origem da Bhagavad-gétä? Há cerca de mil e


quinhentos anos, o eminente matemático e astrônomo Arya-bhata4 concluiu, a
partir de dados arqueo-astronômicos no Mahä-bhärata, que a Guerra de Kuru-
kñetra, o cenário da Bhagavad-gétä, ocorreu há aproximadamente cinco mil e cem
anos.

Alguns estudiosos modernos, em especial do Ocidente, resistem a aceitar


tal antiguidade por especularem que a Gétä foi composta aproximadamente
entre o quinto e o segundo séculos a.C.5 Semelhantes estudiosos também
costumam duvidar da historicidade da maioria dos eventos do Mahä-bhärata, ao
passo que outros estudiosos (orientais e ocidentais), e a maioria dos hindus,
aceitam tanto sua antiguidade quanto historicidade. Quem está certo?

Evidências empíricas limitadas não permitem que a erudição mundana


afirme ou negue de vez tais proposições, e muito menos fale abalizadamente
sobre a divindade de Kåñëa. Assim como, para declarar uma equação algébrica
certa ou errada, faz-se uma proposição algébrica; da mesma maneira, para
declarar uma afirmação metafísica como certa ou errada, faz-se uma proposição
metafísica. E as regras básicas da erudição mundana não veem com bons olhos
proposições metafísicas.

A conclusão é que, apesar da pletora dos melhores palpites eruditos, falta à


erudição mundana evidência suficiente para provar a data e a origem da
Bhagavad-gétä além de qualquer dúvida razoável. Outras proposições
extraordinárias, como a afirmação de Kåñëa de que Ele originalmente falou a
Gétä para uma deidade do Sol [4.1], não acarreta nenhuma contradição interna
nem outro absurdo lógico, e assim devem permanecer proposições sagradas,
também além do poder da erudição mundana para assinalar certo ou errado.

Estudiosos costumam se perguntar se a Gétä fazia parte do Mahä-bhärata


original ou se foi adicionada posteriormente. Outra vez, uma falta de evidência
historiográfica impede uma resposta acadêmica definitiva. No século XX, os
mais ilustres sanscritistas do mundo tentaram reconstruir o Mahä-bhärata
original a partir de dezenas de versões sobreviventes. Após meio século de
estudo assíduo brilhante, eles admitiram que está além dos poderes da erudição
mundana recriar, e assim identificar conclusivamente, uma versão original
desse texto. Desse modo, a academia não pode determinar se a Gétä faz parte de
um texto original que ninguém pode reconstruir claramente.
Controvérsias acadêmicas costumam arder mais forte precisamente onde a
evidência é mais fraca e deixa mais espaço para opiniões conflitantes. Questões
sobre a data e formação originais da Gétä oferecem ampla oportunidade apenas
para esse tipo de debate acadêmico interminável – o qual pretendo evitar aqui.

O que sabemos, sem sombra de dúvidas, é que a Bhagavad-gétä inspirou e


iluminou um número enorme e crescente de almas. Os devotos de Kåñëa
alegam que temos exatamente a Gétä que o Senhor Kåñëa intencionava para nós.
Na visão deles, em vez de disputar sobre a proveniência da Gétä, deveríamos
tirar proveito de sua profunda sabedoria, que, por muito tempo, tem aliviado
fardos, alegrado corações, estimulado inteligências e guiado almas em sua
busca pelo sentido último.

Na Bhagavad-gétä, Kåñëa ensina que existem três elementos reais


fundamentais: as almas, a natureza e Deus. Ele também ensina que o
relacionamento de Deus com as almas caídas é mediado pelas leis de karma e
que as almas despertas aproximam-se e relacionam-se com Deus através de
yajïa, o processo de oferendas devotadas. Tudo isso será explicado nas
próximas cinco seções.

PARTE XIII
Conclusão
Comecei este ensaio ressaltando que a milenar Bhagavad-gétä é um
pequeno livro que condensa um poder espiritual imenso há milênios. Contida
na epopeia Mahä-bhärata e falada pelo próprio Supremo Deus Kåñëa, a Gétä nos
eleva, de forma sistemática e racional, das profundezas do desespero existencial
para as alturas brilhantes da bem-aventurança eterna.

A jornada começa com uma simples distinção que Kåñëa inculca em Seu
perplexo e sofredor amigo Arjuna: “Tu e Eu sempre existimos e sempre
existiremos”. Deus criou um mundo material efêmero, inclusive nossa Terra,
onde almas assim inclinadas podem tentar explorar a matéria tanto quanto
queiram. Fazemos isso ao entrar em corpos mortais, identificando-nos com
esses corpos como se fôssemos matéria e, em seguida, tentando no máximo de
nossa capacidade possuir o que gostamos e evitar o que não gostamos dentre as
ofertas fugazes da natureza.

Presos nessa dualidade mundana, esquecemos por inteiro nossa


identidade eterna. Assim como um homem vaidoso exulta quando bem vestido,
e lamenta quando mal vestido, agarramo-nos à nossa cobertura corpórea como
se fosse nosso eu e, assim, depositamos nossas fortunas nas marés oscilantes de
sucesso e prazer corpóreos.

Então, perambulamos pelo Universo, sob as leis do karma, assumindo


corpos superiores e inferiores de acordo com a virtude ou malícia de nossos
atos, e sofrendo repetidos nascimento, velhice, doença e morte.

Presos na agonia e excitação desta festa a fantasia cósmica, esquecemos


que estamos todos usando máscaras materiais e que nossa identidade real é
incomensuravelmente maior que todos os papéis mortais que desempenhamos
com tanto orgulho.

Para nos despertar e resgatar, o Senhor Kåñëa em pessoa vem a este


mundo e nos ensina. Esse ensinamento é a Bhagavad-gétä. O Senhor Kåñëa nos
estimula a não nos aferrarmos à matéria, a nos desapegarmos de modo que
fiquemos livres para ascender à nossa verdadeira vida espiritual. Para fazermos
isso, precisamos ver que todas as experiências materiais, quer agradáveis, quer
desagradáveis, não passam de produtos de três qualidades primárias, ou modos,
de vida: virtude (mundana), paixão e escuridão. Todas as almas, e o Deus que
as ama, existem além dessas coberturas modais.

Por respeitar nossas naturezas individuais, Kåñëa nos oferece uma


variedade de métodos disciplinados, caminhos de yoga, todos conducentes à
nossa liberação e iluminação. Pessoas “comuns” que trabalham, mantêm
famílias e vivem no mundo podem atingir a perfeição através de karma-yoga, o
yoga da ação. Pessoas inclinadas a uma vida mais retirada de estudo e filosofia
podem alcançar a liberação através de jïäna-yoga, o yoga do conhecimento. Para
os místicos, o cardápio divino da Gétä oferece dhyäna-yoga, o yoga da meditação.
Kåñëa, no entanto, enfatiza que o caminho mais elevado é devotar-se
plenamente a Ele em bhakti-yoga, o yoga do amor puro.

Uma dinâmica comum essencial perpassa esses caminhos: todos devem


ser executados como uma oferenda espiritual (yajïa) ao Supremo. Kåñëa
enfatiza que temos direito de realizar o dever nascido de nossa natureza, mas
não podemos reivindicar o fruto de nosso trabalho – isso pertence a Deus.
Recebemos a própria vida, o poder de raciocinar e o desejo de sermos
produtivos como uma dádiva do Senhor. Assim, por oferecermos de volta os
frutos do trabalho cuja capacitação recebemos de Deus, mantemos uma roda
cósmica a girar – o ciclo de reciprocidade, de receber e retribuir –, que forma a
base da justiça, da civilização e do próprio amor. Desse modo, abraçar qualquer
um dos caminhos de yoga é oferecer a nossa natureza à sua Fonte, tornando
nossas vidas, e o Universo, completos.

Em última análise, somos partes divinas de Deus, mas agora desejos


egoístas cobrem nossa consciência divina. A Gétä nos mostra como podemos
facilmente descobrir – literalmente des-cobrir – nossa consciência pura. Assim
como a água pura é naturalmente clara e higienizante, a consciência pura é, por
natureza, transparente e bem-aventurada.

Quando o mundo, enquanto comunidade global, novamente girar a roda


cósmica, retribuindo os frutos de suas buscas políticas, econômicas, culturais,
sociais e intelectuais à Fonte de tudo, a própria Terra recuperará sua natureza
divina original e as pessoas serão felizes.

Em consciência pura, pode-se, enfim, ver o próprio Kåñëa em Sua incrível


forma espiritual, que é materialmente inconcebível. Arjuna alcançou essa meta
mais elevada mediante plena devoção a Deus. E Arjuna, afinal, é o estudante
ideal da Bhagavad-gétä.

Tentei no máximo de minha capacidade levá-lo a fundo no texto sânscrito


original da Gétä e compartilhar com você as maravilhas a serem vistas lá. Que a
Gétä seja sua amiga vitalícia à medida que você progride em direção à perfeição
pessoal!101

Concluído em 28 de dezembro de 2013


Santa Mônica, Califórnia.

Você também pode gostar