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Diversidade e desigualdade entre pesquisadores e

pesquisados. Considerações teórico-metodológicas


a partir da etnomusicologia
Samuel Araujo

Resumo
O artigo enfoca implicações teórico-metodológicas da virada epistemológica das
humanidades no século XX rumo a abordagem mais autocrítica e politizada da
produção de conhecimento, levando ao reconhecimento das assimetrias de poder entre
pesquisadores e pesquisados como fator inibitório de uma efetiva e inovadora compreensão
da diversidade e da desigualdade. Examina, em particular, seu impacto em disciplinas de
base etnográfica, como a etnomusicologia, propondo que é sentido de modo ainda mais
tenso no trabalho desenvolvido nas próprias cidades em que vivem os pesquisadores e em
que se situam suas instituições de origem. Assim, reporta-se a alternativas metodológicas
para a etnomusicologia e as ciências humanas, como a pesquisa-ação participativa que
abre novos caminhos à colaboração entre perspectivas acadêmicas e extra-acadêmicas,
apoiada em iniciativas em andamento de um coletivo universitário de pesquisa no Rio
de Janeiro, que relevam simultaneamente as dimensões políticas e acadêmicas em nova
perspectiva transdisciplinar.
Palavras-chave: diversidade, igualdade, poder, pesquisa, cidade, etnomusicologia.

Abstract
This article focuses on theoretical and methodological implications of the 20th-century
epistemic turn in the humanities towards a more self-critical and politicized approach
to the production of knowledge in academia, leading to the acknowledgement of power
asymmetries between researchers and researched as a inhibiting factor for an effective
and renewed comprehension of diversity and inequalities. It examines in particular their
general impact in ethnography-based disciplines such as ethnomusicology, arguing that
this is even more tensely felt in the work being done in the cities the researchers live in
and where their home institutions are based. The article then addresses methodological
alternatives for ethnomusicology in the rather conflictive 21st century context, such as
participatory-action strategies eliciting new grounds for collaboration between academic
and extra-academic perspectives, based on ongoing initiatives undertaken by an academic
research collective in Rio de Janeiro, Brazil, which integrate political and academic
dimensions in new disciplinary ways.
Key words: Diversity, inequality, power, research, cities, ethnomusicology.

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Etnomusicólogos trabalhando em cidades ao início da primeira metade do século
XX tiveram que chegar a termos com cânones disciplinares e modelos de pesquisa já então
bem estabelecidos, que relevavam o ponto de vista privilegiado do estrangeiro realizando
trabalho de campo em contextos sociais demograficamente reduzidos e relativamente
isolados das sociedades de origem dos pesquisadores, enquadrados como comunidades,
implicando a existência de visões de mundo supostamente estáveis e amplamente
compartilhadas entre seus supostos membros. Inicialmente tratados com reticência, se
não com manifesto desdém, os estudos de realidades urbanas entre “sociedades complexas”
logo reclamariam relevância equivalente à pesquisa convencional em áreas relativamente
remotas do Globo, embora as questões teórico-metodológicas projetadas por esses estudos
em torno de seus “novos objetos” se remetessem direta ou indiretamente à prática comum
antropológica em contextos rurais ou áreas ainda mais remotas. Esta última talvez possa
ser sucintamente apresentada aqui como centrada na observação participante de uma
sociedade em pequena escala, de um ponto de vista supostamente neutro, produzindo
dados numa dimensão temporal relativamente reduzida, a ser analisada de uma forma
sensível ao contexto em estudo, e a ser apresentada sob alguma forma aceitável de
interpretação acadêmica.
A virada epistêmica acentuada na década de 1980 em Antropologia e demais
disciplinas de base etnográfica oportunamente colocou sob fogo cerrado as construções
fantasiosas e alegóricas de fundo empiricista rodeando os campos de saber aqui em
questão (por exemplo, Clifford, 1981; Clifford e Marcus, 1986; Marcus e Fischer,
1986), apontando sua falência em produzir um efetivo engajamento com as políticas
de diversidade e desigualdade, conformando sua relação com os construtos sociais e
indivíduos pesquisados, em suas lutas concretas, levando a sua representação em uma
perspectiva temporal mistificadora e politicamente desengajada, o “presente etnográfico”
(Fabian, 1985).
Desde seus encontros iniciais com formações sociais pouco ou não afetadas pela
industrialização, pesquisadores de formação acadêmica se defrontaram com a tarefa
de estabelecer em que medida formas de expressão sonora não-verbal estranhas se
aproximavam ou não daquelas que lhes eram familiares como “música”, ao menos
inicialmente (final do século XIX até a primeira metade do século XX) a música de concerto
europeia ou neoeuropeia (Blum, 1991). A história recente de campos disciplinares de
estudo da música registra haver literatura em expansão devotada ao tratamento crítico
das posturas implícita ou explicitamente etnocêntricas nesse tipo de abordagem e das
muitas e evidentes limitações de seus resultados, não raramente gerando ainda mais
preconceito e concepções enganosas acerca da dinâmica da diversidade musical e cultural
pelo mundo afora (Born e Hesmondhalgh, 2000). No entanto, para o bem ou para o
mal, uma considerável literatura foi acumulada na etnomusicologia e outros campos de
saber que tomam a música como objeto por sobre a assunção a priori de que seu objetivo
último seria a compreensão do Outro musical. Tal premissa tem levado, diga-se ainda,

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não poucos jovens estudiosos da diversidade musical, em geral advindos de contextos de
hegemonia do capital financeiro-industrial, a iniciar suas respectivas carreiras em locais e
entre populações distantes desses contextos e, ao menos aparentemente, “diferentes” de
seus próprios contextos sociais e locais de residência, uma equação legitimada por seus
centros de formação e pesquisa originários, levando, simultaneamente, à legitimação de
suas respectivas competências e inserção profissional.
Tratando essas questões de um ponto de vista de hoje, seus fundamentos geopolíticos
em relações assimétricas de poder parecem já profunda e suficientemente debatidos em
disciplinas de base etnográfica, incluída aí a etnomusicologia (e.g., Barz e Cooley, 1997), mas
é intenção deste trabalho refletir mais a fundo, tanto teórica quanto metodologicamente,
acerca de um desdobramento significativo desse profundo corte político-intelectual:
trazer a etnomusicologia “para casa”, isto é, para os contextos urbanos em que vivem os
pesquisadores, demanda assumir a dimensão ético-política como fundamental, e não
periférica ou paralela, ao equacionamento teórico-metodológico da pesquisa sobre a
diversidade sonora, e suas raramente assumidas, porém sempre presentes, origens em
relações desiguais de poder.
Examina-se, aqui, portanto, os dilemas e potencialidades de se pesquisar “em casa” a
diversidade e a desigualdade com referência em dois projetos de pesquisa desenvolvidos
na cidade do Rio de Janeiro, através da colaboração entre um coletivo acadêmico e duas
organizações não-governamentais, ambas objetivando requalificar e incrementar os
níveis de inclusão social e consciência sociopolítica entre populações de áreas favelizadas
marcadas de modo perverso e letal pela violência, entre o descompromisso do Estado e
ação ostensiva do crime organizado. Situando historicamente a emergência da pesquisa
etnomusicológica tematizando áreas urbanas e fundamentando-se na experiência do
autor como pesquisador acadêmico e, mais recentemente, como formulador e gestor
de políticas no setor público, se arguirá em favor da necessidade de reconhecimento
da dimensão política da pesquisa acadêmica, repensando suas implicações teóricas e
apresentando respostas metodológicas que devem afetar profundamente as instituições
de ensino e pesquisa envolvidas e a esfera pública em geral.

“Em casa” na grande cidade: alguns possíveis pontos de partida

A questão central, neste trabalho, se projeta da história das disciplinas de base


etnográfica como a Antropologia e a etnomusicologia, em seu dramático deslocamento
de foco do estudo de entidades sociais enquadradas por pesquisadores a elas estranhos
como relativamente circunscritas em termos demográficos, culturalmente coesas, e
isoladas dos modelos de civilização financeiro-industrial, rumo ao trabalho em contextos
predominantemente urbanos, entre indivíduos com grande mobilidade social e espacial,
transitando por identidades variadas de modo fluido, intercambiável, eventualmente
contraditório ou efêmero. Em contraste, a ênfase da etnomusicologia, desde seus

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primórdios, e por quase todo o século XX (hesito, talvez sem motivo, em estender a
afirmativa até os dias de hoje), no estudo de “sistemas musicais” exóticos foi produto de
seu próprio enclausuramento em ideologias e quadros teórico-metodológicos forjados
em centros financeiro-industriais cosmopolitas, assim sendo também, mais que apenas
uma ênfase estratégica, sua dependência ideológica em relação a impressões relativamente
superficiais extraídos de observações empíricas de campos simbólicos. Com ênfase em
tais princípios e procedimentos dispensava-se pouca ou nenhuma atenção aos interesses
políticos e/ou materiais embutidos nos processos em questão, implícita ou explicitamente
tomados como ausentes ou irrelevantes em formas sociais primitivas, não industriais ou
não capitalistas. Comportamentos e ideias exóticas, e não a desigualdade e as relações
assimétricas postas em prática na relação pesquisador/pesquisado, eram então encaradas
como o desafio interpretativo inicial ao se tentar disciplinar a diversidade de um ponto
de vista acadêmico nutrido em contextos urbanos industrializados na Europa ocidental e
seus muitos espelhos em formações sociais distintas ao redor do mundo.
As primeiras etnografias musicais em contextos urbanos industrializados1 enfocaram
tipicamente enclaves étnicos ou nacionais, destacando os processos de adaptação
envolvidos em determinados estudos de caso, incluindo aí a passagem do rural ao urbano,
movimentos migratórios transnacionais, mudanças linguísticas e comportamentais, em
geral procurando estabelecer o que, como e por que mudava ou não em cada processo
específico. Em certo ponto, houve tentativas de se chegar a taxonomias e quadros
interpretativos coerentes que permitissem comparações e mesmo generalizações possíveis
entre a miríade de estudos de caso surgindo entre o final dos anos 1960 e 1970 (ver,
por exemplo, Nettl, 1978, 1985; Kartomi, 1981). Articulavam-se oportunamente com
macroteorias da mudança social em certas correntes da Antropologia (por exemplo,
Redfield e Singer, 1969), simultaneamente aos intensos eventos políticos que afetavam
o coração dos países industrializados em todos os matizes do espectro político, tais como
a Guerra do Vietnam, as barricadas estudantis e trabalhadoras em Paris, os movimentos
pelos direitos civis nos EUA, a Primavera de Praga ou o movimento antiapartheid na
África do Sul.
Este estado de coisas, no entanto, só muito vagarosamente produziria um impacto
mais profundo e amplo em disciplinas de base etnográfica, embora pudesse ser sentido
incipientemente, mas já de modo referencial, em casos como o da combinação heterodoxa
e interdisciplinar de um Pierre Bourdieu (ver, por exemplo, Bourdieu, 1958, 1962;
Bourdieu e Passeron, 1964) e de seus associados. Mas, em sua porção mais representativa,
1
O breve e irônico veredicto, em entrevista publicada postumamente (ver Howard, 1991), do antropólogo
John Blacking sobre estudar “o próprio jardim doméstico”, em oposição a se lançar alguma luz sobre culturas
musicais de resto desconhecidas ou em vias de “desaparecimento”, pode ser tomado como uma reação concisa,
mas não por isso menos representativa, a essa tendência. Estaria implícito em seu argumento um contraste
abrupto e hierarquizante entre as dificuldades ou mesmo agruras do deslocamento socioespacial, típico da
pesquisa etnográfica mais convencional, e o relativo conforto de se realizar pesquisa a uma distância relativa-
mente reduzida em relação a próprio local de residência.

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a etnomusicologia da época se manteve empregando derivações de métodos “pastorais”
e aparatos descritivos, seguindo o empirismo ainda dominante em teorias de mudança
elaboradas a partir da Antropologia, ao mesmo tempo em que concedia legitimidade
acadêmica a objetos até então ou totalmente negligenciados, ou mesmo desdenhados como
predatórios, tal qual a música popular consumida massivamente, boa parte da qual baseada
em repertórios criados entre os grupos de pequena escala estudados prioritariamente
pela disciplina, repertórios esses agora destilados por via de procedimentos industriais
relativamente estandardizados.
Como disciplina de inserção mundial sob a hegemonia de instituições localizadas
nos Estados Unidos, a etnomusicologia teve que se defrontar com os fortes ventos críticos
dos anos 1980, quando a Antropologia em geral, mas particularmente alguns de seus
representantes na América do Norte, desvelaram um patamar elevado de desafios aos
cânones disciplinares herdados às relações centro-periferia em situações coloniais. Esta
emergente autocrítica suscitou não poucas reações exaltadas de autoridades estabelecidas
em todos os campos de base etnográfica, mas tornou evidente que alternativas aos antigos
índices de pertinência disciplinar, como a centralidade da tradução cultural entre um
Nós idealizado e um Outro estereotipado, intermediada pela autoria individual do
etnógrafo, ou o impulso empirista em produzir uma pretensa “objetividade” em análise
social, já encontravam expressão na práxis de pesquisa em algumas partes do mundo,
incluindo a América Latina. Um efeito particular desse deslocamento de foco disciplinar,
a ser destacado aqui, foi precisamente a crítica à virtude epistêmica do distanciamento
socioespacial entre pesquisadores e pesquisados, ou, como será proposto neste artigo, da
relação construída entre sujeitos e objetos politicamente legitimados na pesquisa social
(ver Fals Borda, 2000, para exemplo de uma perspectiva contra-hegemônica na América
Latina).
Um problema, porém, persistia nessa crítica, nomeadamente a reificação de uma,
já à época, dificilmente generalizável “prática antropológica”, ainda que minimamente
unificada em termos teórico-metodológicos. Em outras palavras, a autocrítica centrada,
como foi, na antropologia norte-americana, ou mais precisamente estadunidense, já se
mostrava incapaz de se remeter de modo razoavelmente abrangente à diversidade de
fundamentos e abordagens no campo antropológico mais amplo em termos mundiais.
Sumariando a argumentação acima, é oportuno perguntar se os desafios mais fundamentais
da assim chamada Antropologia pós-moderna aos antigos cânones disciplinares, isto
é, aqueles que questionavam as profundas desigualdades e assimetria de poder entre
representantes e representados, redundaram, efetivamente ou não, em novos modelos e
quadros de referência à pesquisa (Hale, 2007).

Etnomusicólogos trabalhando nas cidades em que residem

Em meados do século XX os etnomusicólogos passaram a dispensar atenção crescente

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a comunidades migrantes, em paralelo ao ativismo de muitas dessas comunidades por
reconhecimento sociocultural e político. Isso produziu uma mudança simultânea de foco
nos estudos etnomusicológicos rumo ao estudo de processos de mudança e adaptação
culturais, em contraste com a ênfase até então predominante numa estabilidade, em grande
medida, idealizada. Como sugerido pelo etnomusicólogo norte-americano Bruno Nettl
(1978), conquanto o novo objeto de estudo demandasse mutação nos quadros conceituais
até então vigentes, devido, entre outros motivos, à evidente interseção e negociação do
objeto pesquisado com valores advindos dos locais de origem do próprio pesquisador,
as abordagens adotadas em estudos de caso ainda espelhavam as técnicas interculturais
(observação participante, apreciação não-valorativa do não-familiar, tradução sensível
ao contexto etc.) do trabalho de pesquisa em área rural ou ainda mais remota, até então
estandardizado. Este foi (e, em muitos casos, ainda é) também o caso quando o pesquisador
trabalhava numa cidade — ou, para mais coerência metodológica, em qualquer local —, que
não a de sua moradia. Em tal situação, o pesquisador ainda experimenta, ainda que, de fato,
somente como parte de seu imaginário (Anderson, 2006), um senso de distância, como se
seus próprios antecedentes socioculturais não estivessem ali implicados por sua própria
presença. No entanto, essa exposição à diversidade na desigualdade se expõe ainda mais
quando o pesquisador lida com indivíduos, coletivos e instituições que residem na mesma
área urbana que ele, também engajados em muitos dos processos em que o pesquisador se
encontra implicado numa perspectiva cotidiana, e não por alguns meses, ou mesmo anos,
mas por um período aberto, em geral dilatado, não raro, por toda uma vida.
Se tomar o contexto urbano como objeto de pesquisa, em qualquer circunstância,
já coloca em xeque alguns dos pilares de campos de conhecimento de base etnográfica,
desenvolver pesquisa na cidade em que se mora certamente desafia os princípios e
métodos convencionais dessas disciplinas ainda mais. Esta afirmativa deve, no entanto,
ser mais qualificada, pois, se o que se destaca como diferencial complicador dos estudos de
contextos urbanos é que se caracterizam por serem multiétnicos, compreendendo relações
de antagonismo de classe e abrangendo vastos contingentes populacionais, devemos
reconhecer que em muitos aspectos essas diferenças em relação a estudos de sociedades
de contingente populacional reduzido serão mais em grau que em sua natureza. Por
exemplo, em ambos os casos, o uso de uma língua estranha ou o emprego diferencial de
uma língua em princípio comum entre pesquisador e pesquisados poderão ser não apenas
entendidos como uma sequência sonora impossível ou de difícil decifração, mas também
como um meio comunicativo opressivo, potencial ou efetivamente, tanto em situações
urbanas ou rurais, espacialmente próximas ou distantes. O mesmo poder-se-á dizer de
posturas corporais, códigos de vestuário ou gostos musicais, aspectos que tendem a ser
neutralizados como índices politicamente carregados em situações de distanciamento
expondo o pesquisador em posição mais frágil vis-à-vis seus interlocutores, mas que estarão
operando nessas situações tanto quanto em local próximo à moradia do pesquisador.
Um ponto que deve ficar claro é que não se argumenta aqui ingenuamente a favor

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de uma simples inversão de um modelo datado, ou seja, que pesquisar próximo ao
local de moradia mais fixa dos pesquisadores é uma vantagem incondicional, e não um
obstáculo, à objetividade possível, e daí que pesquisadores que não residam próximo às
respectivas áreas em estudo estejam peremptoriamente condenados à superficialidade em
seu trabalho analítico. O que se propõe aqui é que, quaisquer que sejam seus respectivos
objetos, os pesquisadores deveriam estar cônscios, em sentido crítico estrito, desde o início
das implicações de seu estar ou não no campo das lutas cotidianas de seus interlocutores,
como um índice de engajamento para o bem ou para o mal. Assim como nada há de
neutro acerca dos métodos e ações em campo do pesquisador acadêmico, como relevado
pela Antropologia pós-moderna e outros campos disciplinares de base etnográfica (Hale,
2007), nada há de neutro, tampouco, em se pensar reflexivamente sobre a realidade em
seus muitos desdobramentos (Araujo, 2008).
Em muitos casos, etnomusicólogos trabalhando nas cidades em que vivem (e.g.
Reyes-Schramm, 1987; Shelemay, 1988, 2008; Cragnolini, 1999; Araujo, 2006;
Reyes-Schramm e Hemetek, 2007) tornaram manifestas suas próprias negociações de
lugar e agência nos processos de pesquisa em que se engajaram. As muitas e intricadas
questões políticas em jogo em cada caso demonstram as limitações de pesquisas com
objetivos de curto prazo quando os processos que interpelam são de longo prazo. Por
outro lado, demonstram como algumas dessas pesquisas tornaram claros os potenciais
de novos quadros teórico-metodológicos de pesquisa em abrir perspectivas inéditas e
enriquecedoras à etnomusicologia. Estas podem abranger desde formas distintas, e por
vezes combinadas, de colaboração entre interlocutores acadêmicos e não-acadêmicos,
tais como a organização de festivais em meio a lutas por reconhecimento sociopolítico
(Hemetek, 2007), pesquisa compartilhada resultando em textos de natureza acadêmica
ou não em co-autoria (Araujo, 2006a, 2006b), formulação e implementação de políticas
públicas, trabalho advocatício de curto, médio ou longo prazos em processos legais
ou para-legais (Impey, 2002; Newsome, 2008), ou estímulo à participação em fóruns
acadêmicos (Silva et alii, 2008) etc.
Ao passo que a colaboração entre acadêmicos e não-acadêmicos em projetos comuns
de produção de conhecimento é inequivocamente uma tendência em expansão na
etnomusicologia,2 não há qualquer consenso, mesmo entre seus adeptos, sobre se se pode
considerá-la legitimamente como pesquisa, no sentido acadêmico mais convencional,
que geralmente classifica, quando não desclassifica, trabalhos de pesquisa colaborativa
como atividade educacional ou de extensão.3 O termo “aplicado” tornou-se um índice de
2
Ver, por exemplo, o estabelecimento de uma Seção de Etnomusicologia Aplicada da Society for Ethnomusi-
cology, sediada nos Estados Unidos, e de um Grupo de Estudos de Etnomusicologia Aplicada no âmbito do
International Council for Traditional Music, com sede na Austrália.
3
O próprio autor deste texto já se defrontou, não poucas vezes, com tal postura, defendida por alguns ilustres
colegas, mesmo após a constatação de que artigos e apresentações orais produzidos por coletivos de pesqui-
sa heterodoxos (i.e., compreendendo acadêmicos e não-acadêmicos), submetidos anonimamente a pareceres
qualificados, têm sido veiculados em periódicos e fóruns acadêmicos seletivos, em âmbito internacional.

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que o “verdadeiro conhecimento” foi produzido na universidade (ou, em certa medida,
entre a própria população-alvo), mas não resultou da colaboração propriamente dita.
Em contraste a essa perspectiva, argumentar-se-ia (Araujo, 2008) que mesmo pesquisas
mantidas no silêncio das estantes universitárias podem ser consideradas “aplicadas”, ainda
que a propósitos bem limitados.
Se o status do conhecimento na etnomusicologia contemporânea almejar seu
deslocamento de ideais românticos ou modernos de “objetividade” (Pelinski, 2000), a
disciplina deveria abrir espaço a tomadas de posição ainda mais radicais, superando sua
reivindicação de neutralidade (Araujo, 2008), e se engajando em novos experimentos em
pesquisa intra e intercultural (Nettl, 2004), encarando seus muitos dilemas internos em
interação com seus muitos interlocutores pelo mundo afora.
Procurando responder à demanda por novas equações e práticas de pesquisa, à
altura dos desafios inerentes à pós-modernidade, Pelinski (2000) esboça sete direções
básicas possíveis: 1) o reconhecimento de contínuos entre músicas territorializadas e
desterritorializadas, assim como entre contextos reais e virtuais de produção, difusão e
consumo de música, permitindo a emergência de novas identidades; 2) a reconceituação
da etnografia musical, distanciando-se do “colecionismo em campo” do desvelar de
sistemas e taxonomias nativa rumo à reflexividade, promovendo escrutínio agudo das
relações e de papéis entre pesquisadores e pesquisados; 3) crítica à fetichização do estudo
do “outro distante”, revalorizando o estudo do “outro entre nós”, entre as fraturas das
formações sociais hegemônicas, i.e., formações mais intensamente ligadas à trajetória de
vida dos pesquisadores (como seus respectivos locais de residência); 4) reconhecimento
da crise da autoridade etnográfica, levando ao questionamento constante de “quem
representa quem”, e das novas políticas de representação que exigem a explicitação,
nos textos, da subjetividade dos autores; 5) o acionamento de texturas polifônicas nos
textos, pela justaposição de posições diferentes, e eventualmente contraditórias sobre
temas-chave; e 6) a escritura de textos colaborativos, envolvendo co-autorias e múltiplas
negociações com os atores sociais implicados na pesquisa; a intensificação de abordagens
interdisciplinares4.
O antropólogo Charles Hale (2007) também nos faz lembrar o quão simultaneamente
difícil e estimulante pode ser a experiência do pesquisador em colaboração radical com
instâncias extra-acadêmicas da sociedade, abrigando estas, em si próprias, interesses
contraditórios, alguns dos quais igualmente conflitantes com os interesses e expectativas
do pesquisador. Argumenta o autor que, na prática, tais conflitos emergem muito
frequentemente quando os propósitos de lastro político das instâncias extra-acadêmicas
colidem com os postulados de objetividade e neutralidade, embutidos como ícones de
4
Embora não seja minha intenção confrontar a sugestão de Pelinski de que os estudos interdisciplinares re-
presentam uma resposta ao descrédito de teorias totalizantes, creio ser importante lembrar que abordagens
interdisciplinares foram de importância capital para as teorias totalizantes às quais ele parece se referir, o que
talvez nos permita pensar que tanto teorias totalizadoras quanto outras quaisquer, hoje diante de interroga-
ções sem precedentes, ainda devem se considerar formulações em aberto.

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legitimidade na prática acadêmica desde os cursos de graduação até as esferas de poder
das agências de fomento à pesquisa. Como sugerido por Hale, o papel do “antropólogo
ativista” é, nesse caso, não apenas afirmar a implicação política presente em cada ato de
conhecimento, mas também debater a fundo o salto de qualidade teórico-metodológico
proporcionado pelo envolvimento ativo da pesquisa acadêmica, através da colaboração
radical, com a realidade social. Em suas palavras,

[…] nós [nos EUA] procuramos e imaginamos uma relação de convergência absoluta
entre antropólogos e seus aliados. Quando a contradições vêm à tona, têm causado
desilusão, e mesmo o abandono desse empreendimento. Defendo, alternativamente, que
a antropologia ativista colhe melhores resultados precisamente porque seus praticantes
são obrigados a viver e se engajar em meio a essas contradições em grau mais intenso que
aqueles que praticam métodos convencionais de pesquisa. (Hale, 2007:104-105)

Tal situação tende a apresentar desafios verdadeiramente dramáticos tanto à


estabilidade quanto ao reconhecimento de experiências colaborativas, mas, creio, não
podem ser obliterados no cenário político globalmente integrado, e muito menos em
instâncias, como o caso de pesquisadores que pesquisam em cidades de sua residência
fixa, nas quais os vários atores do processo de busca de conhecimento (pesquisadores,
comunidades, instituições) interagem com posições politicamente interessadas, em geral,
em processos de longo prazo. Novos sujeitos de pesquisa, estratégias interdisciplinares,
colaboração intersubjetiva e interinstitucional, a criação de novas instituições, mas acima
de tudo a consciência macropolítica das assimetrias, hierarquias e formas de exploração,
são aspectos-chave dessa grande guinada em teoria e prática.
A proximidade e a interação de pesquisadores acadêmicos e seus interlocutores
não-acadêmicos, mesmo que apenas tacitamente, pressionam de modo mais acentuado e
sistematicamente as premissas e manifestações concretas com os indivíduos de instâncias
sociais envolvidos, demandando disposições intelectuais e materiais que vão além daquelas
usualmente exercidas nos âmbitos relativamente controlados pela razão acadêmica. Este
quadro exige atenção a uma miríade de interesses, alianças e estratégias em constante
recriação, em contextos complexos e rapidamente mutáveis, revelando a urgência de
experimentos metodológicos não-ortodoxos afinados com as mudanças politicamente
sensíveis observadas nas ciências humanas. Nas seções seguintes, abrem-se à discussão
alguns experimentos.

Fundamentando teoria e prática em estudos de caso

Compreendendo desde pesquisadores seniores, alunos de pós-graduação e graduação,


o Laboratório de Etnomusicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro desenvolve
duas pesquisas distintas com duas organizações não-governamentais (doravante ONGs)

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na capital carioca, também cidade-sede da referida instância acadêmica. Cada uma das
pesquisas foi negociada previamente com as ONGs em questão, em consequência de
reflexões prévias internas à instância acadêmica e de uma série de debates públicos por esta
promovida em torno das relações entre pesquisadores universitários e seus interlocutores
em contextos de pesquisa musical. Ambas as ONGs, o Centro de Estudos e Ações Solidárias
da Maré (CEASM), com parceria iniciada em 2003, e o Instituto Trabalho e Cidadania
(ITC), desde 2006, direcionavam suas ações a populações de favelas: respectivamente, a
Maré, a segunda maior área contígua de favela no Rio, e, no caso do ITC, as dos morros do
Salgueiro e da Formiga, na área da Grande Tijuca, estas últimas reputadas historicamente
como espaços referenciais do universo do samba carioca. Enquanto o CEASM mantém
um foco mais acentuado em atividades educacionais (cursos preparatórios para acesso
a escolas públicas e universidades de qualidade) e culturais, o ITC enfatiza a formação
do jovem para o trabalho. Uma vez iniciadas, os termos das parcerias em questão têm
variado de acordo com circunstâncias tais quais as respectivas histórias e conjunturas
políticas locais (ver Araujo et alii, 2006a, 2006b; Araujo 2008; Barros e Silva 2008),
mas, em comum, ambas as iniciativas se propuseram ao estabelecimento de grupos de
pesquisa que tivessem sede de trabalho nos locais pesquisados, e que fossem grupos
mistos, compreendendo uma maioria de integrantes residentes nas áreas mencionadas e
um número mais reduzido de participantes não-residentes, selecionados entre alunos de
graduação e pós-graduação da universidade. Os moradores da Maré foram selecionados
entre estudantes de graduação e alunos de escolas de nível médio, enquanto no Salgueiro
e na Formiga foram selecionados alunos de escolas de nível médio e das últimas séries do
ensino fundamental. Seguindo princípios de construção participativa de conhecimento
formulados por Paulo Freire (1970), em ambas as situações, os estudantes da universidade
não-residentes, com formação básica anterior em pesquisa convencional e mais
familiarizados com a literatura acadêmica, vêm atuando como mediadores de discussões,
das mais básicas às progressivamente mais complexas, entre os membros de cada um dos
grupos (cerca de 25 pessoas na Maré, e 12 na Formiga e Salgueiro). Esta mediação tem
envolvido desde perguntas enganadoramente simples como “o que é música para você?”
ou “o que você tem escutado ultimamente?” a indagar o que os residentes, do grupo e
fora dele, achavam interessante em músicas localmente disponíveis, ou mostrar e debater
vídeos enfocando algum tipo de atividade musical local ou alhures.
Mesmo não estando familiarizados com discussões acadêmicas sobre o poder da
representação, ou sobre as lutas discursivas da pós-modernidade, os participantes em
tais discussões assimilam muito rapidamente a complexidade do processo em que se
veem engajados, e os resultados, em termos de verbalização, são muito ralos por meses
a fio. Vivenciando diariamente experiências opressivas entre o fogo cruzado nas áreas
marginalizadas da cidade em que vivem e sujeitas ao quase completo abandono de
alternativas societárias, poucas pessoas nos respectivos grupos se aventuram inicialmente
a um comentário mais reflexivo, isto é, além das reações imediatas esperáveis (risos,

182
bocejos etc.). Durante o processo, em cada um dos casos, alunos de pós-graduação agiam
como mediadores, atentando para as estratégias participativas mais bem-sucedidas a
cada encontro coletivo dos respectivos grupos. As impressões colhidas eram, a tempo,
transformadas em anotações escritas que alimentariam discussões metodológicas em
encontros entre os mediadores e o coordenador do projeto (este autor) nos interstícios
dos dois encontros semanais do grupo mais amplo. Nestes, o conteúdo dos debates
poderia variar, por exemplo, de uma análise explícita e detalhada de uma festa dançante
promovida por um morador, a menções indiretas, comumente cifradas, à “guerra” de
invasão de uma das comunidades por determinada facção criminosa. Observando esses
quadros, os mediadores universitários desenhavam, em debate com o coordenador,
estratégias de estímulo à reflexão no encontro seguinte, ou voltando a tópicos anteriores,
abrindo novas questões a seu respeito, ou se direcionando a novos tópicos, quase sempre
como desdobramentos das discussões anteriores.
Paulo Freire destaca, em várias passagens de seu trabalho, o “silêncio significativo”
(Freire, 1970), produto da vivência oprimida continuada em posições sociais subalternas.
Uma vez ultrapassado, em ambos os casos aqui enfocados, as diferenças no interior de
cada um dos grupos, inicialmente por meio de curtas intervenções verbais, pouco a pouco
através de discussões acaloradas que progressivamente reduziam o tempo e modificavam
a natureza da intervenção dos mediadores externos5, as mesmas jamais se dissiparam,
mas passaram a ser, na medida do possível, justapostas de modo construtivo.6 As relações
internas entre os membros desses microcosmos sociais se desdobraram, assim, de certa
insegurança inicial a alianças interpessoais mutáveis, como também as relações entre
os indivíduos concretos que tomaram parte dos grupos de pesquisa respectivos e suas
respectivas relações com o espectro sonoro disponível à sua volta.
Uma experiência de campo em particular, na Maré, talvez possa ilustrar esse processo.
Nossas discussões iniciais, bastante abertas em termos de focos e questões, deram margem
à identificação de alguns temas centrais (ou temas gerativos, nos termos de Freire), tais
quais as formas hoje hegemônicas de representação musical das favelas, como certas
tendências do funk ou do rap, que expõem a violência das facções criminosas e da polícia,
impondo limitações ostensivas à apropriação do espaço por seus moradores. À medida que
as discussões em torno do tópico progrediam, o grupo de pesquisa em questão identificou
e procurou referências, através das raras imagens em vídeo sobre a história local7, sobre a
5
Os mediadores, obviamente, tinham menos tempo para falar na medida em que outros membros do grupo
começaram a deflagrar, eles mesmos, determinadas discussões. As intervenções dos primeiros passaram a se
limitar ao oferecimento de alternativas sempre que se chegava a um impasse mais estagnante, como a sugestão
de informação sobre algum assunto ou a moderação em conflitos com potencial fragmentador.
6
É difícil, muitas vezes impossível reconciliar posições contraditórias em coletivos cujo principal desafio é
permanecer vivendo em sociedade dividida por partilha profundamente desigual de poder e propriedade,
desigualdade essa ainda entrecortada por linhas de diferenciação como sexo, raça e outras.
7
Produzidas pela TV Maré, uma das iniciativas pioneiras de militância cultural que levaram à fundação do
CEASM em 1997.

183
importância dos blocos carnavalescos, hoje desativados, em termos da organização social
dos moradores da Maré em outros tempos. De fato, como levantado pelo grupo, o único
agrupamento carnavalesco ainda ativo quando tal tema veio à tona (2004) era a Escola de
Samba Gato de Bonsucesso, originária do bloco Mataram Meu Gato, fundado por um
núcleo de moradores removidos na década de 1960 da Praia do Pinto. A passagem do
Gato a Escola de Samba, foi vista por alguns de seus membros como um passo em direção à
aderência dos moradores em geral e a sua consolidação como entidade representativa, mas
ambas jamais se consumaram em termos mais de acordo com a densidade demográfica da
Maré8 em função, segundo membros do mesmo agrupamento, das limitações ao trânsito e
identificação, real ou presumida, dos moradores com símbolos de comunidades controladas
por facções rivais à hegemônica em seu próprio lugar de moradia (ver Duque, 2007).
A primeira experiência de pesquisa de campo do grupo teve lugar precisamente na
quadra do Gato, expondo de variadas formas algumas das questões acima levantadas: a)
sua localização em área controlada por facção específica foi vista por alguns membros do
grupo como impeditivas à sua participação; b) em tal contexto, é mais que potencialmente
problemática a presença de jovens, ainda que identificados como moradores locais,
portando duas câmeras de vídeo e um gravador de áudio para entrevistas, o que demandou
intensas negociações diretas de coordenador e participantes do grupo com a diretoria da
Escola, não descartando que outras negociações, inacessíveis ao grupo, tivessem lugar; c)
enquanto os ensaios ocorriam aos domingos, tendo início após as onze horas da noite,
se prolongando até às seis horas da manhã do dia seguinte, a maioria dos membros do
grupo era constituída por menores de idade, levantando preocupações justificadas
entre seus respectivos responsáveis, alguns dos quais se recusaram a assinar autorizações
individuais por escrito previamente preparadas pelas duas instituições parceiras (o
Laboratório de Etnomusicologia e o CEASM); e d) alguns dos membros do grupo de
pesquisa mantinham, por motivos diversos e em diferentes graus de intensidade, relações
de oposição à participação no mundo do samba, demonstrando em que medida o termo
“comunidade” era acionado de modo ambíguo, o que nem sempre se toma em consideração
em análises acadêmicas da vida social na favela. O envolvimento de parcela significativa
do grupo foi, portanto, difícil, mas, ao final, conseguido, e, se não se pode dizer que
todos os obstáculos que lhe foram antepostos se dissiparam, nenhum deles remanesceu
intocado ou parcialmente superado, observando-se, em alguns casos, até mesmo reversão
de posições muito fechadas com relação a determinados temas. A explicitação de tais
obstáculos levou o grupo à compreensão coletiva de quão complexa era a situação comum
que os reunia. E talvez o resultado mais significativo de todo esse processo tenha sido que
chegar a atender os objetivos propostos pelo próprio grupo através do esforço coletivo
abriu caminho à futura participação futura em pesquisa de campo de membros do grupo
que não participaram da primeira experiência do gênero.
O Censo da Maré, produzido em parceria pelo CEASM e IBGE, registrou uma população de cerca de 135
8

mil habitantes.

184
Mais tarde, após o período do carnaval, a diretoria da Escola de Samba solicitou
ao grupo que mostrasse seus vídeos, mesmo ainda não editados, a alguns membros da
Escola. Finda a exibição, alguns dos diretores criticaram algumas das tomadas feitas pelos
pesquisadores iniciantes, muitos dos quais eles reconheciam como vizinhos, por ignorarem
pontos de interesse para a avaliação do desfile da Escola. Sugeriram, então, eles próprios
ministrarem ao grupo de pesquisa uma espécie de curso preparatório à documentação do
desfile do ano seguinte, de modo a que o resultado final atendesse também ao interesse
da Escola em possuir um documento que lhes permitisse melhorar seu desempenho na
competição anual do grupo em que desfila (4º). Outra ideia levantada na ocasião foi a
criação, com apoio do grupo de pesquisa, de um centro de documentação da Escola de
Samba. Com a mudança de diretoria antes do carnaval seguinte, nenhuma dessas ideias se
materializou, como era nossa expectativa, mas, mesmo assim, o grupo de pesquisa voltou
a documentar o Gato de Bonsucesso no ano seguinte, atento às observações feitas pelos
integrantes da Escola no ano anterior. Ficou, portanto, claro aos membros do grupo os
potenciais de estratégias participativas para a subversão de visões de mundo aparentemente
acomodadas a situações opressivas.
É igualmente importante pontuar aqui que todo esse sensível processo, afetando
este trabalho colaborativo em expansão por cerca de seis anos, dependeu em muito das
relações previamente negociadas entre a universidade e sua parceira institucional, uma
ONG, e do fato de que a equipe de pesquisa provém de duas instituições estabelecidas
na mesma cidade, ambas permanecendo responsabilizáveis por suas ações conjuntas,
permitindo simultaneamente contato fácil entre uma e outra em qualquer ponto crucial
do processo por elas compartilhado.

Do ativismo em colaborações pontuais à formulação de políticas públicas

Outro aspecto do engajamento do etnomusicólogo em pesquisar a cidade em que


reside a ser tratado aqui é o de que esse impulso de transformar uma realidade próxima
através de ativismo reflexivo (Fals Borda, 2000; Hale, 2007) pode demandar assumir
novas funções que desafiam a produção de conhecimento acadêmico a demonstrar
sua pertinência em meio a lutas e conflitos pelo poder. Desde janeiro de 2009 assumi
a coordenação da área de música — incluindo aspectos como performance, pesquisa
e formação — da Secretaria Municipal de Cultura da cidade em que resido, o Rio de
Janeiro, um desafio enorme, mas simultaneamente uma oportunidade única de colocar em
prática, como política pública, os princípios e métodos acionados nos projetos isolados do
Laboratório de Etnomusicologia já citados. Dentre as várias ações em andamento dessa
coordenação, destacarei aqui apenas duas por suas relações prospectivas com a discussão
acima e por permitir ligações entre as tendências assim chamadas pós-modernas nas
humanidades, estratégias participativas e o trabalho na gestão pública.
A secretaria em questão exerce a gestão de um Centro de Referência da Música Carioca

185
(CRMC), criado em 2005 pela administração anterior à atual, em torno da ideia de
preservação e promoção de um dos mais eficazes construtos ideológicos gerados em torno
da cidade do Rio de Janeiro, a percepção de sua música como distinta e mundialmente
reconhecida.9 Como entre as atribuições da nova coordenação de música recaiu a
tarefa de reequacionar as metas e políticas de referenciamento do CRMC, a primeira
iniciativa foi alinhá-lo com os princípios e métodos de uma etnomusicologia ativista,
inevitavelmente colocando em questão sua fabricação ideológica originária. A nova
gestora de documentação deu início a esta reorientação10, definindo como metas centrais
a colaboração conceitual e metodológica do Centro com iniciativas de mapeamento e
documentação musicais adotadas por indivíduos ou instituições, completadas ou em
andamento, desde que identificadas como relevantes com a discussão em torno da cidade
e sua gente, em seus tempos passado, presente e futuro, seus contornos, potenciais, e
dilemas. Os grupos de pesquisa mistos já referidos, que trabalhavam em projetos pontuais
anteriores envolvendo parcerias entre a universidade e as ONGs, foram prontamente
convidados pela nova gestão a compartilhar sua experiência teórico-metodológica
acumulada na etapa de planejamento pelo CRMC da formação de novos grupos ainda
não familiarizados com estratégias participativas de pesquisa.
Simultaneamente a essa ações, em outra esfera do poder municipal, a Secretaria de
Educação organiza, para o primeiro semestre de 2009, com colaboração da pasta da Cultura,
um programa de tempo integral nas escolas da rede pública de ensino fundamental (idades
de 4 a 15 anos), no contraturno dos atuais turnos únicos. Abrangendo inicialmente 150
escolas em áreas em que foram registrados os mais baixos Índices de Desenvolvimento
Humano (IDH)11 na cidade, esse programa se propõe e oferecer “oficinas culturais”
dirigidas por voluntários credenciados, alguns dos quais indicados pela Secretaria de
Cultura a partir de oficinas sugeridas por seu corpo técnico. Tomando parte no grupo
misto governamental que trabalha no projeto piloto, sugeri a inclusão, no rol de oficinas,
de uma, enfocando o mapeamento e a documentação musicais dos entornos de escolas
contempladas, em que sejam empregadas estratégias participativas amadurecidas nos
projetos pontuais da universidade e suas entidades parceiras, e agora com a possibilidade
de um aporte mais sistemático do próprio poder público municipal, via CRMC. As
experiências nas escolas poderão, a tempo, envolver os próprios professores, em várias
especialidades, não somente em música, e podem ser desenvolvidas sem que sejam
9
Interessante observar que o termo “carioca”, curiosamente uma palavra nativa para designar “estrangeiro não-
indígena”, ou “homem branco”, foi histórica e significativamente ressignificado para representar o oposto, o
“nativo do Rio de Janeiro”. Em conformidade com um construto socialmente produzido de mais de um século
de existência, samba, a bossa nova e o choro foram os gêneros que vinham sendo postos em evidência nas
atividades anteriores do Centro.
10
As atividades de documentação lá realizadas eram limitadas a registros em áudio ou vídeo de shows em seu
próprio espaço.
11
Índice adotado pelo Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas em 1990, obtido de uma
combinação de indicadores econômicos, educacionais e de saúde.

186
requeridas instalações especiais, em geral indisponíveis próximas às escolas em questão.
O CRMC, por sua vez, e de acordo com seus recém-adotados objetivos, estará apto a
agir como colaborador, atendendo as necessidades (formação técnica, empréstimo de
equipamentos, seminários etc.) dos núcleos descentralizados de referência.

Considerações finais

Etnomusicólogos trabalhando nas cidades em que residem deveriam estar sempre


cientes e responsivos à base política da representação e do trabalho de campo em curso,
tanto quanto seus colegas trabalhando em lugares distantes. No entanto, por viverem
próximos a seus interlocutores, aqueles serão exigidos não apenas a pensar e escrever
permanente e dramaticamente de modo reflexivo, mas também a agir incisivamente junto
às instâncias sociais e aos indivíduos que direta ou indiretamente alimentam seu trabalho
de pesquisa. Na história das disciplinas de base etnográfica essa questão foi inicialmente
equacionada como uma exigência de dupla face, assumindo-se a linha divisória implícita
entre, por um lado, o trabalho “legitimamente acadêmico”, produtor de conhecimento, e,
por outro, os imperativos ético-políticos da aliança implícita entre pesquisadores e seus
interlocutores, frequentemente resultando em formas de ativismo paralelas à ciência,
deixando pretensamente imaculada a “pesquisa propriamente dita”. Tal equação foi
oportunamente criticada nos campos de conhecimento de base etnográfica, como uma
alegoria pastoral que mantinha intacta tendência a reificar as complexas realidades em
foco, ao passo que mantinham os privilégios do estrangeiro informado, de trajetória
universitária.
Os estudos etnográficos de realidades urbanas, e notadamente aqueles realizados
nas cidades em que moravam os próprios pesquisadores, ofereceram, assim, uma ampla
gama de possibilidades para o exercício da reflexão? simultaneamente ao engajamento
sociopolítico, não como aspectos separados do processo de construção de conhecimento,
mas como um processo integrado a ser vivido reciprocamente em teoria e prática, como
práxis produtora de conhecimento.
Compreendendo cooperação estável e de longo prazo entre acadêmicos e não-
acadêmicos em coletivos de pesquisa cujos membros residem na mesma cidade,
compartilhando alguns pontos de vista sobre seu território comum, enquanto
simultaneamente se confrontam em torno de determinado aspectos da realidade,
estratégias participativas como as comentadas acima abrem um sem-número de
perspectivas à representação textual de instâncias sociais e de suas respectivas práxis, assim
como sobre a dimensão política do trabalho acadêmico. Enfrentando os desafios e riscos
implicados nesses processos, o acadêmico deveria estar igualmente aberto e preparado a
assumir novos papéis — dos quais o trabalho em gestão pública é apenas um exemplo —
que demandam o conhecimento reflexivo qualificado a tomar parte em processos mais
amplos, aprofundando e refinando, ao invés de arrefecendo, suas premissas críticas.

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