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agosto DE 2009 n
PESQUISA FAPESP 162
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humanidades

História

Cálculos
mortais
Estudos sobre a “diplomacia dos campos”
e a “economia do Holocausto” revelam
as sutilezas da banalidade do mal

Carlos Haag
lasar segall, 1891 vilna – 1957 são paulo, pogrom (1937, pintura a óleo sobre tela, 184 x 150 cm – acervo do museu lasar segall – ibram/minc)

M esmo após a “invenção” da banalidade do mal, proposta por Hannah Arendt, é difícil pensar

em campos de concentração, atuais ou passados, como espaços nascidos do pragmatismo.

Pesquisas recentes, nacionais e estrangeiras, porém, revelam que os campos serviram, acima de tudo, a propó-

sitos práticos de governos totalitários, seja como fonte de trabalho forçado em nome da modernização das

sociedades, seja como forma de isolar os elementos considerados “indesejáveis”. Infelizmente, esse não foi um

“privilégio” alemão e também aconteceu no Brasil. “Com a mático “elemento de negociação de interesses entre o Brasil
prática do genocídio nos campos de concentração, o termo e os Estados Unidos no campo das relações internacionais”
passou a representar o ‘inferno’ que foram os campos nazistas e também uma oportunidade para o Estado Novo reforçar a
e stalinistas. Essa representação fixou o nosso imaginário, nos sua política de nacionalismo extremado, excluindo “elementos
impedindo de pensar outros campos de concentração como indesejáveis” de raças que não fossem brancas ou se manti-
limbo ou purgatórios, estágios anteriores, mas de passagem vessem fechadas em suas comunidades estrangeiras. Embora
para o inferno”, avisa a historiadora Priscila Perazzo, cuja tese reconheça a diferença abissal entre os campos de extermínio
de doutorado, defendida na Universidade de São Paulo (USP), europeus e os campos de concentração brasileiros, Priscila
com apoio da FAPESP, Prisioneiros da guerra: os “súditos do Ei- alerta sobre o que chama de “cilada do imaginário”. “Nós que
xo” nos campos de concentração brasileiros, acaba de ser lançada militamos pelos direitos humanos, muitas vezes insistimos que
em livro (Humanitas/FAPESP, 384 páginas, R$ 40). os campos existiram apenas nas terríveis experiências de Hitler
A pesquisadora revela que o internamento de imigrantes e Stalin. Não podemos cair nessa cilada, porque, nessa luta,
alemães e japoneses, no Brasil, durante a guerra, foi prag- não nos cabe dimensionar o sofrimento humano, mas evitá-lo,

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independentemente de sua intensidade”, concentração. Foi a forma encontrada a chamada “economia do Holocausto”,
pondera. Afinal, o Brasil não apenas re- para isolar Fortaleza dos migrantes “in- modelo utilizado pelos nazistas para
correu aos campos como foi precoce em desejáveis”, assim como, entre os anos “modernizar” a Alemanha a partir de
sua utilização. Já em 1915 era inaugu- 1930 e 1940, também funcionou como uma estrutura industrial complexa nos
rado o campo de concentração do Ala- uma boa fonte de trabalho forçado para moldes do capitalismo nazista e a partir
gadiço, no Ceará, onde mais de 10 mil o regime varguista. “E você? Tem visto dos campos de concentração, bem como
retirantes da grande seca daquele ano muito horror no campo de concentra- a maneira de suprir a carência de mão
foram internados entre cercas de arame ção?”, pergunta o sertanejo Vicente, per- de obra para o esforço de guerra. “Os
farpado, recebendo pouca comida e sob sonagem do romance O quinze (1930), benefícios econômicos obtidos com a
a vigilância de soldados, procedimento de Rachel de Queiroz, sobre a seca de apropriação dos bens da comunidade
que foi repetido, em versão racionaliza- 1915, onde a chegada dos retirantes ao judaica e a exploração do trabalho for-
da, na seca de 1932 e durante os anos da seu internamento, saindo dos trens, evo- çado de prisioneiros por várias empresas
Segunda Grande Guerra. ca Auschwitz: “Acharam-se empolgados são fatores que contribuíram para que
“A expressão campo de concentração pela onda que descia, e se viram levados o colapso econômico da Alemanha na
ficou associada apenas à ferocidade do através da praça de areia, e andaram a Segunda Guerra Mundial fosse adiado”,
Holocausto e a força desse imaginário pé por um calçamento pedregoso, e fo- escreve a historiadora Ania Cavalcante
impediu a visibilidade das semelhanças ram jogados a um curral de arame onde em sua tese de doutorado Holocausto e
com os investimentos do Estado brasilei- uma infinidade de gente se mexia”. No capitalismo, recém-defendida na USP.
ro realizadas nos campos de concentra- Alagadiço, os cadáveres se acumulavam “A guerra modificou os objetivos dos
ção do Ceará”, afirma o historiador Fre- à espera de transporte e uma testemu- campos de concentração. O Holocaus-
derico de Castro Neves, da Universidade nha previu: “O campo de concentração to não foi um processo linear, pois não
Federal do Ceará, coordenador do grupo me deu a certeza de que em breves dias havia consenso na cúpula nazista se a
de pesquisa do projeto A seca e a cidade, teríamos ali um campo santo”. política de extermínio dos prisioneiros
que pretende identificar os mecanismos deveria ser priorizada em detrimento
de controle social implementados para Economia do Holocausto - Os estudos do uso do trabalho forçado.”
regular os comportamentos e a circu- nacionais, de certa forma, inserem-se O sistema de campos de trabalho, na
lação dos retirantes durante o período numa tendência acadêmica internacio- Alemanha e nos países ocupados, reuniu
das secas, entre os quais os campos de nal que há alguns anos começa a discutir 2.498 empresas, 20 mil “campos de tra-
balho civil” e entre 10 mi-
lhões e 12 milhões de pes-
soas que, sob condições de-
lasar segall, 1891 vilna – 1957 são paulo, morte (1917, pintura a óleo sobre tela, 92,5 x 104 cm – coleção particular, sp)

sumanas, foram obrigadas


a exercer trabalho forçado
para a economia de guerra
alemã. “Assim, em 1944,
quando a Alemanha sentiu
que estava perdendo a guer-
ra, houve uma diminuição
do extermínio massivo em
razão das necessidades do
esforço bélico.” Auschwitz
foi o símbolo da “economia
do Holocausto”. “Esse cam-
po de concentração e exter-
mínio representava, por um
lado, um aspecto produtivo
de uma estrutura industrial
e bancária associada ao tipo
de capitalismo pregado pe-
lo nazismo. A sua estrutura
industrial fundamentava-
-se no trabalho forçado
dos prisioneiros para em-
presas alemãs (IG-Farben,
Siemens e Krupp), sobre-
tudo de borracha sintética
produzida pela IG-Farben,
o maior cartel químico eu-
ropeu da época, cuja firma

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associada, Degesh, produzia não era matéria de discussão

lasar segall, 1891 vilna – 1957 são paulo, desenho original do caderno visões de guerra (1940-1943,
tinta preta a pena e pincel e aquarela sobre papel, 15,6 x 19,5 cm – acervo do museu lasar segall – ibram/minc)
o gás Zykon B usado nas câ- de direitos humanos. Foram
maras de gás do campo”, nota os horrores da Segunda
Ania. “A estrutura bancária Guerra que deixaram para a
de Auschwitz, por sua vez, posteridade a preocupação
baseava-se no financiamento com as garantias individuais,
bancário feito pelo Deutsche embora ao longo desses úl-
Bank para a construção de timos 60 anos continuemos
estruturas do campo, como a enfrentar essas situações”,
a fábrica de Buna, os crema- nota Priscila. O conceito
tórios e galpões das SS. Os de campo de concentração,
crematórios do campo foram aliás, nasce de uma prosaica
fornecidos pela Topf & Söh- necessidade pragmática. “A
ne, sendo planejados pelos ideia de internar civis, ditos
engenheiros dessa indústria ‘indesejáveis’, em campos
para eficiência máxima, uma de concentração surgiu na
relação direta entre tecnolo- Guerra dos Bôeres (entre
gia, modernidade e assassi- 1899 e 1902), entre ingleses
nato em escala industrial, o e africaners, na África do Sul,
aspecto destrutivo do qual quando pela primeira vez se
Auschwitz também é sím- adotou a prática da custódia
bolo”, diz a pesquisadora. em moldes ‘industriais’, sob a
Em fins de 1944 estima-se justificativa de que se tratava
que os campos de Himmler de pessoas ‘cujas ofensas não
proveram a máquina de guer- se podiam provar, e que não
ra nazista com pelo menos podiam ser condenadas pelo
500 mil trabalhadores. “Para processo legal comum’, como
tanto, controlou-se mesmo a observou Hannah Arendt.”
mortalidade nos campos que, Quase 30 mil bôeres, en-
até 1942, era assustadora a ponto de im- “A liderança do Terceiro Reich tre homens, mulheres e crianças, mor-
pedir as SS de atingir os objetivos exigi- improvisou uma nova estratégia que reram de doen­ças e fome nesses campos
dos por Himmler. O serviço médico dos combinava o esforço de expansão da que Lord Kitchner, o comandante das
campos foi reativado e aumentaram as mobilização industrial com alguns dos forças britânicas na África do Sul, justifi-
rações para os prisioneiros.” A indústria componentes mais destrutivos da ideo­ cava como “necessidades práticas”, longe
privada alemã “convidou” as SS a uma logia nazista. Ao mesmo tempo, num de condená-los como ações desumanas.
parceria com a provisão de internos dos paradoxo terrível, o trabalho forçado Os campos de concentração nacionais,
campos, na medida em que a relação de prisioneiros de campos de concen- definidos abertamente pelas nossas
custo-benefício do trabalho forçado, tração, ao mesmo tempo que matou mi- autoridades como tais, igualmente fo-
mesmo com as “taxas” cobradas pelas SS lhares de exaustão, permitiu que muitos ram criados por questões pragmáticas.
e a produtividade dos internos, era muito sobrevivessem ao extermínio, destino “Oficialmente, os campos surgiram por
favorável ao empregador, embora o Reich certo de todos aqueles que não fossem causa da impossibilidade dos governos
exigisse que os empresários não ficassem considerados aptos para o trabalho federal e estadual de acomodar todo o
com todo o lucro extra. Seguindo a de- forçado”, analisa Gruner. “Claramente contingente de estrangeiros presos a
manda de mão de obra das empresas, as encontraram-se meios de reconciliar os partir de 1942. Foram sempre deno-
SS aumentavam as deportações em massa impulsos genocidas ideológicos com o minados pelo discurso oficial como
dos países ocupados para oferecer cada sistema racional de exploração, total- campos de concentração. Afinal, após
vez mais trabalhadores e para substituir mente funcional do ponto de vista do serem considerados pelo Estado como
os prisioneiros mortos por exaustão ou empregador individual, ainda que não prisioneiros de guerra, os chamados
doenças. “É impressionante verificar es- para a economia como um todo.” Desse ‘súditos do Eixo’ precisavam ser inter-
sas concessões pragmáticas feitas pelos esquema nasceu um sistema de cam- nados como ‘inimigos’ nesses espaços
nazistas em detrimento dos imperativos pos de trabalho que beneficiou 2.500 de reclusão, embora as condições desses
ideológicos pelos nazistas quando as cir- empresas alemãs com a escravidão de lugares estivessem longe das preconi-
cunstâncias o exigiram, um compromis- 12 milhões de pessoas. Assim, preocu- zadas pela Convenção de Genebra de
so entre trabalho e destruição”, afirma o pações estratégicas e econômicas foram 1929”, explica Priscila. Houve mesmo
historiador Wolf Gruner, da University importantes na implantação dessa po- um grande esforço em veicular, no Bra-
of Southern California, autor do estudo lítica e até mesmo tiveram prioridade sil e no exterior, uma imagem de hu-
Jewish forced labor under the nazis: econo- sobre o assassinato em massa racial. “Até manitarismo que, ao contrário do que
mic needs and racial aims, recém-editado a primeira metade do século XX a situ- faziam os alemães em seus campos, era
pela Cambridge University Press. ação de civis durante conflitos bélicos dispensada aos prisioneiros no Brasil,

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‘ Num paradoxo terrível, o trabalho forçado salvou a vida
de milhares de prisioneiros que teriam sido enviados
para os campos da morte

forma de agradar aos americanos, peça Estado Novo.” Para Priscila, da mesma que seu encarceramento obedecesse às
fundamental, e muito prática, na cria- forma que é impossível ter certeza de normas internacionais que o governo
ção dos campos. “O governo brasileiro que os imigrantes japoneses confinados Vargas alegava fazer questão de cumprir,
assumiu a repressão ao nazifascismo em campos americanos (cerca de 110 deixando-os menos vulneráveis às de-
para endossar a direção assumida com mil deles foram presos pelos americanos cisões arbitrárias da política interna do
o alinhamento aos Aliados e o trata- sob a alegação de “necessidade militar”) Estado Novo”, diz. Uma notável analogia
mento aos ‘súditos do Eixo’ deixou de teriam cometido atos de traição se per- com a sobrevivência de prisioneiros dos
ser apenas questão nacional para pro- manecessem em liberdade, internar os campos alemães em razão da sua utili-
jetar-se como elemento de negociação “súditos do Eixo” teve um significado zação como escravos. Também é preci-
internacional”, observa. O tratamento político pragmático, voltado tanto para so lembrar que esse “cuidado” com os
desses estrangeiros como prisioneiros o campo das negociações entre Brasil e prisioneiros era algo para “americano
de guerra era a força que movia o diá- Estados Unidos como para dar vazão às ver”, muito diferente da crueldade tí-
logo com os Aliados, um elemento de políticas perseguidas pelo Estado Novo pica com que os prisioneiros políticos
negociação da inserção brasileira no antes de 1942, mais do que propriamen- brasileiros eram tratados, por exemplo,
contexto mundial. “O que se desejava te uma necessidade de reclusão desses na Ilha Grande, prisão adaptada para a
era a possibilidade de o país contar com estrangeiros em campos de concentra- internação de alguns “súditos do Eixo”;
o apoio americano para conquistar uma ção como prática de repressão. ou, ainda, nada coerente com a cruel
posição de hegemonia na América do política antissemita da seleção de estran-
Sul, um páreo disputado também pela Iniciativa do governo - “A criação dos geiros que podiam ou não se refugiar
Argentina, que rejeitou a aproximação campos de concentração brasileiros, no Brasil, praticada pelo Estado Novo.
de Washington. Vargas tinha consciência adaptando presídios e colônias penais Mesmo o qualificativo “súditos do Eixo”
de que poderia tirar vantagem das dis- já existentes em São Paulo, Rio, Pernam- deixa entrever interesses mais diretos do
putas no continente para a construção buco e Rio Grande do Sul, representa nacionalismo varguista, pois, além de
de um Estado nacional-moderno com uma iniciativa do governo brasileiro em um jargão de propaganda de guerra, ele
projeções internacionais”, analisa. corresponder aos anseios e às pressões evidenciava que aquelas pessoas eram
Ao mesmo tempo, segundo a pesqui- dos americanos sobre a América Latina.” obedientes a outro poder que não o do
sadora, para o nacionalismo perseguido Isso fica evidente nos cuidados legais ditador brasileiro e, por isso, precisavam
pelo governo Vargas, esse internamento tomados pelo governo Vargas. “Era ne- ser apartadas, por questões políticas, da
foi igualmente interessante, já que per- cessário que não houvesse incompatibi- sociedade totalmente brasileira que se
mitiu a efetivação das políticas naciona- lidade entre as medidas legais internas pretendia reinventar. Os campos se con-
listas, tirando de circulação os elementos relacionadas aos estrangeiros dos países vertem em plataforma de um projeto
que o Estado via com desconfiança, já em guerra com o Brasil e as disposições nacional e internacional.
que, em geral, relutavam em abrir mão internacionais da Convenção de Gene- A experiência, como já se falou, não
dos seus valores nacionais ou não es- bra de 1929. Se o país queria conquistar era nova, tendo sido empregada no Cea-
tavam nos planos varguistas de um o apoio americano como potência na rá durante as movimentações sociais de-
Brasil “branco”. “Se a perseguição aos América do Sul, era preciso respeitar as correntes das secas. “Mas, em 1932, pela
alemães foi parte integrante do projeto instituições e normas.” primeira vez a intervenção do Estado em
étnico-político do governo Vargas e, até Daí a necessidade, continua Priscila, período de seca no semiárido cearense
1942, pouco teve a ver com a guerra na de lidar com os “inimigos” como inter- ocorreu de forma coordenada e centra-
Europa, os japoneses foram vítimas da nos civis e fazê-los receber, por extensão, lizada. Entre 1877 e 1932 gestou-se uma
política interna que pretendia conter o o mesmo tratamento dado aos prisio- nova estrutura de como tratar a pobreza
‘perigo amarelo’. Desde 1934, eles não neiros de guerra, o que se constituiu nu- a que a seca dava visibilidade e se esta-
eram mais imigrantes ‘desejáveis’, já que ma condição para que o país pudesse se beleceu um novo relacionamento entre
se queria reconstituir a raça brasileira projetar “com dignidade” entre as gran- retirantes, governantes e habitantes das
por meio do seu ‘branqueamento’. Isso des potências. “Com isso, os estrangeiros cidades”, analisa Neves. Assim, obser-
também explica por que os italianos passaram a receber proteção internacio- va ele, um amplo programa de criação
foram menos perseguidos, já que, na nal, à revelia das intenções brasileiras. de campos de concentração, em que os
maioria dos casos, estavam muito inte- Se a guerra, de um lado, prejudicou es- retirantes fossem induzidos a entrar
grados ao país e dentro dos padrões do ses estrangeiros, de outro ela garantiu e proibidos de sair, foi implementado

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lasar segall, 1891 vilna – 1957 são paulo, desenho original do caderno visões de guerra (1940-1943,
tinta vermelha, preta e amarela aguada sobre papel, 19,5 x 15,6 cm – acervo do museu lasar segall – ibram/minc)
com total apoio da Interventoria Fede- os retirantes viraram força de trabalho, mesmo tempo, novos campos de con-
ral do Ceará. Para prevenir a “afluência mas, ao contrário da precisão germâni- centração foram organizados na capital,
tumultuária” de retirantes famintos a ca, houve um excesso de trabalhadores, procurando evitar o trânsito indesejado
Fortaleza, cinco campos localizavam-se provocando distúrbios inesperados na dos retirantes e, em outubro, o campo
nas proximidades das principais vias de rotina dos trabalhos. “Era o confronto do Alagadiço foi reaberto.” Entre 1930 e
acesso à capital, atraindo os agricultores entre uma racionalidade técnica volta- 1945, observa o historiador, o padrão de
que perdiam suas colheitas. Dois cam- da para a alta produtividade e melhor relacionamento entre retirantes interna-
pos menores se localizavam em locais aproveitamento dos recursos com me- dos e autoridades se pautou pelos prin-
estratégicos de Fortaleza, conectados às nor custo e uma necessidade de atender cípios do liberalismo econômico, pelo
estações de trens que traziam os famin- à ‘intensificação dos socorros’.” “mercado livre”, combinando elementos
tos, impedindo que circulassem livre- do paternalismo autoritário (presença
mente. “Uma vez no campo, o retirante Amazônia - Entram em cena os téc- das autoridades nos locais, controle do
era obrigado a permanecer nele por to- nicos. “Segundo a visão desses, os re- mercado de trabalho, práticas seme-
do o período da seca e submeter-se às tirantes deveriam ser distribuídos pelo lhantes à “proteção aos pobres”) com
condições de moradia, comportamento território em obras e serviços a serem a abordagem clássica liberal. Na diplo-
e trabalho, ditadas pelos dirigentes.” O definidos exclusivamente pelo órgão macia ou na economia, os campos de
maior campo, na cidade do Crato, che- técnico competente”, observa o pesqui- concentração cumpriram suas funções
gou a abrigar 60 mil pessoas. A possi- sador. Surgiu dessa percepção racional o práticas e produtivas. Aos prisioneiros
bilidade de envolvimento do Brasil na “exército da borracha”, com o desloca- o único consolo em ter tamanha “uti-
Segunda Guerra agravou a forma de mento dos migrantes nordestinos para lidade forçada” talvez se expresse nos
intervenção direta do Estado. “Era um as regiões produtoras de borracha na versos da Balada dos mortos nos campos
elemento que agia de forma a favorecer Amazônia dentro do melhor espírito do de concentração, de Vinicius de Moraes:
uma intervenção direta no mercado de “esforço de guerra” com mão de obra “Cadáveres de Belsen e Buchenwald!/
trabalho e alimentos, como ocorreu em barata ou gratuita. Os embarques só fo- Vós sois o húmus da terra/ De onde
1932. O clima de guerra favorecia solu- ram suspensos após o torpedeamento a árvore do castigo/ Dará madeira ao
ções autoritárias”, afirma Frederico. De de navios brasileiros, forma de trans- patíbulo/ E de onde os frutos da paz/
maneira semelhante ao padrão europeu, porte desse trabalho quase forçado. “Ao Tombarão no chão da guerra!”. n

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