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Para São João Paulo II, o ser humano só pode se entender em relação a Cristo, fim
último da vocação1, daí a importância de nos questionarmos sobre nossa identidade. Se
levarmos em conta que a espiritualidade monástica é um meio que nos permite responder à
pergunta “quem sou eu?”, poderíamos afirmar que o monge que acede às sagradas ordens
teria de fazê-lo com maior maturidade, pois, como o Papa Bento XVI diz, a identificação com
Cristo nos leva a deixar de lado o desejo de auto-realização2.
Isto adquire relevância se considerarmos a “crise” pela qual o clero de nosso tempo está
passando, e que é constantemente apontado pelo pouco testemunho que dão de serem
1
Cfr. João Paulo II. Homilia na praça da Vitória, Varsóvia, Polônia, 2 de junho de 1979.
2
Cfr. Bento XVI. Homilia na Santa Missa Crismal, Basílica Vaticana, Quinta-feira Santa, 5 de abril de 2012.
verdadeiramente homens de Deus, isto é, pela falta de identidade sacerdotal e inclusive pela
espiritualidade deficiente que refletem.
Seria irresponsável demais da minha parte afirmar que tal déficit de espiritualidade e
de identidade sacerdotal se deva à falta de vocação daqueles que são ordenados. Não
podemos fechar os olhos e negar que o trabalho pastoral na Igreja tenha aumentado nos
últimos anos. Embora seja verdade que o número de católicos tenha minguado, também é
verdade que o número de seminaristas, para não falar do número de ordenações, diminuiu ao
longo do tempo, o que complica o cumprimento das tarefas próprias das comunidades
paroquiais.
Contra o dito acima, o monge que acede a uma ordenação sacerdotal conta com a
base sólida fornecida pela conversatio morum suorum, que promove na pessoa a necessidade
de alimentar a vida interior através da prática de ações que protegem a separação do mundo,
a vida de oração, a vida comunitária, a austeridade e a penitência.
O Monge-Sacerdote, então, torna-se uma pessoa capaz de dar uma resposta clara e
consciente ao chamado que Deus lhe faz, fazendo da experiência de cada dia uma
oportunidade para ser verdadeiros homens de Deus e colaboradores eficazes de sua obra
salvadora.
Agora, para S.S. Bento XVI é claro que tomar Cristo como modelo fundamental de toda
vocação não é uma tarefa fácil, porque, à primeira vista, a figura de Cristo aparece grande
demais para ser tomada como medida referencial3. No entanto, em outro momento, o mesmo
Pontífice fala da importância e necessidade da prática da Lectio Divina4, pois é através da
leitura da Sagrada Escritura que temos acesso ao Cristo casto, pobre e obediente.
Tal aproximação de Cristo deve levar o sacerdote a um discernimento sério que lhe
permita identificar se está vivendo seu ministério de maneira plena ou se está caindo em
3
Cfr. Bento XVI. Homilia na Santa Missa Crismal, Basílica Vaticana, Quinta-feira Santa, 5 de abril de 2012
4
Cfr. Bento XVI, Exortação apostólica pós-sinodal Verbum Domini, num. 83. Citada na celebração das Vésperas
da Festa da Apresentação do Senhor, 2 de fevereiro de 2011.
erros, resultados de auto-engano, que o levam a uma espécie de idolatria da qual ele é o
centro.
Vemos isto definido no voto de stabilitas professado pelo monge, que o insere numa
íntima relação com Deus e com seus irmãos, relação que tem como pano de fundo o sentido
de fidelidade e de veracidade visando uma autêntica comunhão de fé e amor (casto, sincero e
inquebrantável).
Tudo isso deveria nos levar a refletir sobre o papel formativo de nossas comunidades
monásticas, perguntando-nos sobre o que estamos dando mais valor nas aulas: uma séria
formação espiritual-monástica (que abrange não apenas o âmbito intelectual, mas também o
aspecto humano) ou uma simples formação intelectual que fique do âmbito do racional.
Nesse sentido, não devemos esquecer que o monge é aquele que é chamado a
manter-se em um constante discernimento sobre a vontade de Deus e, portanto, em uma
constante revisão de sua vida, de modo que a vontade de Deus e sua própria vontade sempre
andem de mãos dadas. Daí se pode afirmar que a vida do monge é uma luta constante por
configurar sua vida à vida de Cristo, um requisito indispensável, como vimos algumas linhas
acima, para exercer um autêntico sacerdócio.
Assim, na minha opinião, aos jovens que batem às portas de nossas comunidades não
devemos apresentar-lhes a ordenação sacerdotal como o “objetivo a ser alcançado”. O
objetivo do monge é, no início e durante toda a sua vida, a permanência em seu ser monge.
Por isto, para nós, a formação permanente não termina com votos solenes ou a ordenação
sacerdotal. A formação permanente do monge dura toda a sua vida e é dirigida pelo próprio
Senhor Jesus Cristo, de tal forma que as experiências, gratas e ingratas, de todos os dias sejam
uma oportunidade para se exercer um ministério vivo, apaixonado e preocupado com as
necessidades do Povo de Deus.
Concluo esta reflexão com algumas linhas que o Papa Bento XVI escreveu por ocasião
do 150º aniversário do nascimento do Santo Cura d’Ars:
Atualmente, como nos tempos difíceis do cura d’Ars, é necessário que os sacerdotes,
com suas vidas e obras, se destaquem por um vigoroso testemunho evangélico. Paulo
VI observou oportunamente: "O homem contemporâneo ouve de melhor grado
aqueles que dão testemunho do que aqueles que ensinam, ou, se ouve aqueles que
ensinam, é porque dão testemunho". Para não ficarmos existencialmente vazios,
comprometendo assim a eficácia de nosso ministério, devemos nos perguntar
constantemente: “Estamos realmente impregnados da palavra de Deus? É ela
realmente o alimento do qual vivemos, mais do que o pão e as coisas deste mundo
podem ser? Nós realmente a conhecemos? Nós a amamos? Ficamos com essa palavra
interiormente, a ponto de realmente deixar uma marca em nossa vida e formar nosso
pensamento?” Assim como Jesus chamou os Doze para estarem com Ele (cf. Mc 3,14),
e somente depois os enviou a pregar, também em nossos dias os sacerdotes são
chamados a assimilarem o "novo estilo de vida" que o Senhor Jesus inaugurou e que os
apóstolos fizeram seu5.
5
Cfr. Bento XVI. Carta para a convocação de um ano sacerdotal por ocasião do 150º aniversário do dies natalis
do Santo Cura d’Ars, 16 de junho de 2009.