Você está na página 1de 24
© MUSEU DO MARAJO: VIAGEM, ACERVO E ENTREVISTA COM GIOVANNI GALLO’ THE MARAJO’S MUSEUM: TRIP, AMOUNT AND INTERVIEW WITH GIOVANNI GALLO Resumo Este texto esté dividido em trés partes. Uma introdut6ria que fala de viagens, sensagdes € dificuldades de travessia, indica cami- hos, percursos. A segunda parte apresen- ta alguns aspectos gerais dO Museu do Maraj6, como a configuracao fisica, 0 acer- vvo exposto e forma inovadora de apresenté lo, os painéis E, finalmente, 0 objeto maior deste estudo, que é uma entrevista inédita € integral com Giovanni Gallo (1927/2003), octiador d’O Museu. Nas referéncias, enu mero uma longa bibliografia sobre Amaz6= nia e Marajé, com o objetivo de contribuir com pesquisacores da matéria. Palavras-chave: Viagem. Museu. Maraj6. Cachoeira do Arari. G. Gallo. * sie antigo € resultado de parte de m Josebel Akel Fares Universidade do Estado do Para Abstract ‘This text is divided into three parts. The first is the introductory one which talks about trips, sensations and passage difficulties, it indicates ways, routes. The second part presents some general aspects of the Marajo Museum, concerning the physical configuration, the exposed amount and the innovative way of presenting it, the panels and, finally, this study main object, which is an unheard-of and com- plete interview with Geovanni Gallo (1927- 2003), the Museum creator. Along the references, | list a long bibliography on Amazon and Marajo, in order to contribute to this issue researchers, Keywords: Trips. Museum. Maraj6. Ca- choeira do Arari. G. Gallo. ha tese de dourorado, “Gartografias marajoaras: cultura, oralidade € comunicacio", defendida na Pontificia Universidade Catolica/SP, em maio 2003, orientada pela professora Jerusa Pires Ferreira.” Na parte seferente aas elementos icdnicos da cultura marajoara relaciono "O Museu do Maré 70 1. Uma viagem & cachoei- ra do Arari e o encontro com Giovanni Gallo {As viagens regulares Belém e Marajé so sempre por via fluvial, Além da pos- sibilidade da viagem direta para alguns municipios, com saida de pequenos por- tos e em barcos menores, no vero, exis- tem outras possibilidades. Para a regido do Arari a entrada é o Porto Camara, em Salvaterra, que se acessa em navios mai- ores ou em lanchas originarios do cais, do Porto de Belém, Galpao 9/10 ou em balsas do Porto de Icoaraci*. No Camara, hd um sistema particular de transportes? ou a conexio com o nibus de linha regular, para as sedes dos municipios de Soure e Salvaterra. Portanto, do Porto para as duas cidades, no hé muitas com- plicagdes, as possibilidades de circula- Go no espaco marajoara reduzem-se quando a proposta é chegar a outras ci dades. Porto Vasconcelos - Cidade Velha/ Belém, fev. 2000. Destino: Cachoeira do Arari. Na sexta a noite saem as embarca- oes! de Belém, com destino a Santa Cruz icourad, distito de Belém, situaco cerea de 25 km. do centro da capital 10s carros tipo vans ou Kombi, apesar de serem meios de transportes mais dispendiosos financeira- mente, proporcionam uma a viagem mais conforts vel. Este tipo de serviga & agendaclo dinetamente com 0s proprietitios dos transports, quando se tem aces- 0, ov nas companhias de turismo. "Gs bareos que visjam pela regito sho comumente chamados dle gaiolas, Embarcagoes de médio porte, om capacidade entre cem a duzeatos passageiros. Nonmalmente, parentes ow pessoas conhecidas dos cdonos da embarcacio visjam no tnico camarote, as ‘demas se acomodam em suas redes, armadas interi= ‘of dos barcos, ¢ deixam suas bagagens embaixo ou Droximo a elas. Em geral, se leva corda para armar as redes, pois, algumas vezes, ou nao hi armadores ‘ou mio disponibilidade de Ingares nestes. AS pesso fs que querem desfrutar dos melhores lugares dos barcos, chegam muito mais cedo. As redes de cores f tragos diferentes formam desenhos de geometrias inusitadas, As embarcages de pequeno porte si0 também conheeidas como popopés.Para algumas egies do Marajo, como Cachoeira, 56 se via — ditetamente, ou em tempo de cheia - neste tipo de Smbareagio. Pars outros municipios ou regides hd navios grandes com melhores acomodagoes, apesit de que, em geral, quase sempre hi 0 expago da terceira classe, onde se armam as redes Revista Cocar do Arari com escala em Cachoeira do Arati, Os barcos Aurélio € a Nossa Sra. da Conceigao, ¢ lancha Arua tém o mes- mo destino. No primeiro, nao encontro mais vagas para a rede. Entro, entio, no outro, penso que por ter o nome de san- ta, estaria mais protegida. Armo a rede, arrumo a bagagem, me instalo - minha entrada chama a atengio - sou estranha na comunidade viajante. Rondo 0 barco, procuro um café. No fundo, ao lado da cozinha, arroz com feijio e macarrio é a janta de alguns tripulantes. A maioria dos passageitos jé esta acomodada, o barco sai. Um maru- jo oferece café, aceito Chum...como esta doce!). Na primeira hora, irrompe a maresia provocada pela proximidade da Baia do Guajard, 0 barco joga, as redes balangam e alguém comenta: "POxa ¢ ainda nem chegou a bafa". Meu coracao resfria, relembro outras passagens de vi- agens por gua. Uma hora depois, avi- vam na meméria momentos ja vividos, seria agora o ttimo? Olho os salva-vi das presos no teto do barco: de que eles adiantariam ante a imensidao e braveza daquelas figuas? Ninguém se incomoda, nenhuma crianga chora. As redes, num balango sincronizado de quase 90 graus, avangam umas nas outras, mas como sao armadas em Angulos diferentes, nem se chocam tanto. A direita, sentia uma nos meus pés, enquanto & esquerda me ba- tia, infernalmente, numa viga da embar- caco, Agora, sentada, tento 0 equilibrio: seguro-me em uma rede desocupada, acima da minha, ainda assim o desequilibrio é grande. Entre pensamen- tos funestos, ave-marias, pais-nossos, pedidos de socorro a Nossa Senhora da Conceigio e tentativas vas de acomodar- me melhor, transcorreu-se uma longa hora na baia do Maraj6, por onde nin- guém passa impune. As trés horas se- guintes, ja no rio Arati, o trecho calmo embala a rede e acalenta o sono, alguns jogam dominé na proa da embarcacio. Trés da madrugada. Chegada em Cachoeira do Arari, Poucas pessoas de- sembarcam nesta escala, a maioria ain- da dormira nas Aguas calmas do tio, pot mais seis horas. Placas de "Boas Vindas’ © 0 convite 'Visite O Museu do Marajé" V.01 n°1 Jan/Jun 2007 recebem os viajantes. O trapiche conduz rua, ainda timida das chuvas, da Pou- sada Maraj6. £ hora de ralentar* os com- passos lo coracao. Esta primeira temporada em Cacho- eira acontece no perfodo da cheia e a lama impede os habitantes de circula- rem livremente pela cidade. Atolo-me, contudo insito em conhecer a biblioteca publica’, clubes, feira, mercado. Retenho- me n’O Museu do Maraj6, referencia basica. Entrevisto Giovanni Gallo. Primeiro fizemos uma breve visita a9 Museu, depois fomos ao encontro do seu diretor-criador e marcamos uma en- trevista para o perfodo vespertino. O en- contro com o Gallo aconteceu na casa dele, a0 lado d’ O Museu do Marajé. 14, em 26 de fevereiro de 2000, eu e 0 professor Guilherme Fernandes’ inicia- mos a entrevista que agora apresento. Esta primeira viagem de pesquisa durou uma semana e passei grande parte deste tempo no Museu, ora conhecendo e ano- tando dados, ora desfrutando das agra- daveis conversas com Giovanni Gallo. 2. O Museu do Marajé (© Museu do Marajé € uma criacao de Giovanni Gallo’, inaugurado em San- + Este verbo tem o mesmo significado que saleat ornar ralo, menos compact, menos denso). Em- pprego-o no sentido de diminuito riumo, como tenho ‘ouvido em varias ocasibes, Na visita 8 biblioteca, recolho alguns poucos dados sobre Cachoeira, que preciso anotar, pois nao hi ccopiadoms, ou outro recurso tecnolégico faciliador tna cidade, Impressiona-me, sempre, 0 acervo bibll= grafico de qualidade excelente, mas sem utlidade, ols o municipio nao disponibiiza local para eon- sulla e nem para acondicionar os livros devidamen- te. As prateleiis em compensado vergam, a5 estan tes de madeira de lei sio invadidas pelo cupim, ¢ as estantes de ferro enferryjam. Os livros fecham suas portas, o Estado ¢ indiferente 8 siuacio. A auxiliar fe biblioteca lamenta e espera conformada por so- lugdes externas 70 professor José Guilherme Femandes, da Univer- sidade Federal do Pari, também estudioso das pocticas ors, acompanhou-me nesta primelea vise gem, Naquele momento, ele procurava defini 0 ob- feto de sua wese de doutorado. "A experiéncia de fundador ¢ de administrador do “Museu estérelatada no livro © homem que inplodiu nm ta Cruz do Arar? local onde o pesqui dor inicia a coleta e a pesquisa dados, com a colaboragio decisiva da comuni- dade daquele municipio. © Museu cons- titui o maior acervo sobre o Marajé, exis- tente no Brasil, quigd no mundo. Tem- pos depois da instalacio, devido a pro- blemas politicos, a instituigo tansfere- se para Cachoeira do Arari, a convite da prefeitura da cidade. £ cobicado por Soure. Hoje, ocupa uma extensa frea de bosque ¢ piintanos da Prefeitura Munici- pal de Cachoeira, que também contrata 6s funcionirios do Museu. O municipio se orgulha deste patriménio, mas seu idealizador nao acredita, pois garante que © maior reconhecimento vem das pesso- as de outros lugares do Para, da Amaz6- nia, do Brasil ¢ do mundo. ‘A pesquisadora ali aciona lentes € filmes mais sensiveis, o olhar perscru- tador clica em panordmica e passeia pela cultura marajoara, exposta no enorme salao de exposig6es, que conta a hist6- ria dos indios, que ironiza o branco co- lonizador, que defende os negros, que fala, fala e fala do caboclo marajoa-ra: do vaqueiro, do pescador, da lingua, das linguagens, do modo de vida, dos uten- silios, da tecnologia, dos medos, das len- das e, principalmente, da ceramica mara- joara, (Apesar de toda boa vontade, ne- nhum pesquisador aleanga, mesmo em panorimica, o imenso volume de infor magoes). © material € exposto de forma interativa, Nunca vi maneira mais inven- tiva de apresentago, nem Louvre, nem Prado, nem Museu de Arte de Sio Pau- Io/MASP, nem Goeldi, nem Museu de Arte de Belém/MABE, nem, nem... Por- tas que se abrem, alavancas que rodam, fios que se puxam, tabuletas que viram, pides que giram, tudo feito artesanal- mente, tudo criado para que o visitante » Santa Cruz de Anat, ckladezinha da regio do Acari ‘rarajoara, com 5264 habjeantes, e uma area de 1079.5 kama, Josebel Akel Fares 72 se movimente inteiramente. Por tras dos fios, das portas e das alavancas, a infor- macao € mostrada com simplicidade, se- tiedade e, sempre que a matéria propi- cie, com muito humor, além da instiga- ao constante aos que manipulam os in- formes. No saldo de entrada tem-se uma mostra do que se ver no interior: moti- ‘vos marajoaras em bordado, em serigra- fia, alguns livros a venda, informes - que 86 se tem ao manipular os "computado- res artesanais". Ha ainda cartazes de pe- dido de ajuda, solicitacao de sugestées, ‘um espaco destinado as escolas € 0 bal- cao com os escaninhos para as bolsas e para venda dos ingressos. Os painéis € as plaquetas da entrada esclarecem so- bre 0 acervo e outras questées: © homem € a nossa peca mais sa, A nossa maior preocu- pac é coletar as informagées que esto dentro e atras das pe- gas para descobrir 0 homem marajoara, = Quantas sto as pecas d’ O Museu do Maraj6’? = Desculpe, este no € um acervo de pecas e sim um banco de dados. No painel © Museu comega aqui, uma explicagio inusitada quanto a idade das pecas: = Quantos anos tem a pega mais antiga do Museu? —£ da era mezozéica, perfodo jurissico (escala do tempo geoldgico) = Qual é a peca mais nova do nosso Museu? Para saber a resposta, levanta-se uma tabuleta, onde se encontra um es- pelho e 0 espectador se mira ¢ lé a ins- crigio: "E voce", ‘Ao entrar na primeira parte do sa- lao de exposic&o, o visitante depara-se, entre outras coisas, com informagées sobre vocabuldrio tupi, ainda em uso no Maraj6, com dados de alguns pes- quisadores importantes para a cultura marajoara, € com acervo em ceriimi pecas de varios tamanhos, formas e ida- des, Alcancamse eras indigenas através de sua produgio material, enfileiram-se as nages: uma pesquisa das pegas ar- queologicas e de estudos teéricos acer- ca do assunto. Depois da cer‘imica, assuntos mais variados possiveis: utensilios domésticos de antigamente e suas transformagdes; a imagem do caboclo marajoara, con- feccionado em tamanho natural, com seus equipamentos; 0 vaqueiro mara- joara e 0 nordestino em comparacao, também em tamanho natural; 0 esque- eto de um cavalo; um cavalo embalsa- mado (com a inscti¢ao "este bicho esti ruim, velho, trocaremos em breve"). Os instrumentos de tortura dos negros sobrepdem-se na ala dedicada a cultura afro-brasileira. Utensflios, como (0s usados para os escravos comer, dita dos, relatos, fotos, um dossié sobre a discriminagio contra a raga negra en- contra-se nesta segio. No mezanino, a cosmologia do caboclo abre mais espaco para as curi- osidades: 0 bezerro de duas cabegas, lendas, os orixas, coisas que 0 povo diz... No painel "As Lendas Amaz6ni- cas", pequenas plaquetas, anunciam 0 seu contetido informativo. Ao levanta- las, 0 voco-visual conta as hist6rias por meio de textos escritos e das protago- nistas retratadas em cerdmica, num ce- nario construido com materiais tegionais. Ali encontro uma versio da Vaca bran- ca do Lago Guajara, que procuro e ana- liso posteriormente. No Painel "Homem versus Bicho/ Coisas que 0 povo diz’, vejo explica- ¢6es para cosmogonias inscritas em dis- Cursos como: o jandia vira sapo, 0 bi- cho que nasce do tucuma, caranguejo morto que ressuscita... Registro: Os peixes nascem do limo. £ um. mistério intrigante, para todos os caboclos, € que se repete todos os anos nos campos do Marajé. Como todo mundo sabe, esta rea fica alagada durante o in- verno, quando os peixes vio af desovar, tendo fartura de comi- da e maior defesa contra os pre~ dadores. Chegando 0 verao, a Agua sai dos campos e vai para © lago Arari e os igarapés e rios Revista Cocar V.01n°1 Jan/Jun 2007 vo descer na bafa. Acontece que uns pogos, no meio dos campos, ficam isolados e aos poucos se- cam, até a terra rachar: natural- mente, todos os peixes morrem. No inverno, vem a chuva e os pocdes se enchem d’égua, sem, porém, ter comunicacao com os rios. De repente, aparece 0 mis- tério: nos pogdes aparecem peixinhos novos. E como se €x- plica se ai nao chega peixe para desovar? O caboclo encontrou uma resposta facil: nascem dé limo. Sera que é a verdade? Nao, sim senhor! £ obra dos passari- nhos que tomam banho onde est’io 0s ovos boiando, carregan- do uma parte no corpo, depois vao tomar banho nos pocées € deixam os ovos que eclodem e geram os peixes. Ta claro agora, nao & ‘A Casa do Caboclo Marajoara, ane~ xo 20 Museu, ruiu, resta-lhe apenas 0 ‘esqueleto. Nela, a intencio de registrara cultura material - a casa de farinha, os utensilios domésticos - € a mentalidade do caboclo - mudas de plantas com suas simbologias, como 0 pedo roxo para pro- teger 0 espaco, espantando os malfeito- res, desmoronou junto com as paredes. No interior do Museu, as peas, ainda em exposi¢ao, estio sujeitas as intempé- ries do tempo, o telhado precisa de re- paros urgentes, as goteiras deterioram 0 acervo", Finalizo este brevissimo relato com a transcri¢ao de um lamento encontrado numa das placas do Salio de Entrada: Desculpe-nos por nao podermos © Na viagem de setembro, do mesmo ano, encontto ‘0 telhado do Museu em Obras. Em 2002, a casa do taboclo esti em funcionamento. Além disso, Gallo fnforma-me que ff pode morrer tranguilo, pois © MM, de cera forma, passou a integrar o Museu Emilio Goeldi e j2 havi, inclusive, uma estagiria do MPEG trabalhando 14, como paste do acordo finmado entre as das instiuigdes. 73 apresentar um museu digno da sua visita, pois nZio temos recur- sos proprios, patrocinios ou con- vénios que nos ajudem a sobre- viver. Aproveite bem, pois talvez cesta seja sua tiltima visita. 3. Entrevista com Giovanni Gallo Nome: Giovanni Galo" (Itélia/1927 - Cachoeira do Arari /PA 2003); Atividade: Diretor do Museu do Maraj6; Local da entrevista: Residencia do entrevistado, 0 lado dO Museu do Maraj6 Data: 27/ 02/2000, das 16:00 as 17:00h. Entrevistadores: Josebel Akel Fares (JF) José Guilherme Fernandes) Transcrigio: Josebel Akel Fares com revisio de Giovanni Gallo. ‘JG: Na condigio de estrangeiro e ob- servador atento da cultura marajoara, como é que o senhor vé a Cultura Marajoara, a cerdimica, a cultura do caboclo, qual importancia do que foi deixado pelos indigenas marajoara e como isto € visto hoje em dia? \cho que fica dificil individuar uma certa cultura marajoara, porque o in- fluxo dos indios, acho que € muito remoto ea gente tem idéia muito vaga, no se tem nenhuma referéncia. De vez em quando aparecem artigos, como um no "Liberal" que dizia ter em Cachoeira uma velhinha que pos- suia uma fotografia de "gente pela- ' Criador do Museu do Marajé, em Sta Cruz do ‘Arai transferido depois, por problemas poltcos, para ‘Cachoeia do Arar. laliano de nascimento, ele mora ‘no Marajé hi 28 anos, porcanto, veio em 1972. Pu- blicou duas obras em que analisa sua Fungo pasto- rule aua experiencia no Marjé: Marajé: A ditdura dlas fguas (Belém/PA: Secult,1980) e O Homem que implodiu (dem, 1996). Josebel Akel Fares 74 da", ha poucos anos atrés. Perguntei, ninguém sabia de nada. Tinha um velho que dizia que era. indio, filho de indio. Mas, praticamente, acho que isso tudo desapareceu. Por exemplo, uma técnica de cerimica nao existe, aqui nao tem ceramistas, ha pessoas que se lembram que em casa faziam algumas cerimicas, com estes elemen- tos naturais. Agora, nds estamos pes- quisando, procurando recuperar, mas no tem uma continuidade, uma liga- ¢do. E como costume? Nao sei, s6 aquela mentalidade caracteristica no 86 dos indios, mas um pouco do am- biente primitivo: na economia, que 10 tem planejamento a longo prazo, pelo fato que ele, o indio, nio preci- sa, ele vai dia por dia, nao entendem porqué devem guardar as coisas, ele pode até entender, mas esti acostu- mado assim. Ento, o pescador na sa- fra ganha, ganha bem, daria nao para viver de luxo 0 ano inteiro, mas para sobreviver decentemente, mas no dia que termina a safra, ele j4 nao tem mais dinheiro. Agora, pode ser, mas ‘o que tenho na minha lembranga, que j4 € um pouco ultrapassada, porque acho que isso é bastante forte € nao tem mais aquela fartura de antigamen- te, Mas, no meu tempo, quando esta- va no Jenipapo, acontecia durante o Cirio, bebia, bebia, quando nao ca- bia mais dentro tomava um banho de cerveja, acho até que hoje ja niio se faz mais. Isto porque além da coisa do pasado, hé o interesse para assi- milar o que vem de fora. As tradigdes, as festas, como um conjunto de pau- e-corda tocando, ninguém aceitaria uma coisa dessas, agora se tem uma ambico que é para o "treme-terra’ Comegou com a vitrola e j tem apa- relhagem, para voltar atrés e ver como se fazia as festas no interior, tomava- se cerveja ao natural, agora ninguém faria mais isso, porque ja se tem ou- tros meios...Uma caracteristica exclu- siva, eu nao sei se existe. JG: Ainda hoje existe o simbolismo do homem face 4 natureza. Como € que caboclo vé essa inseparabili- dade homem X meio, isso ainda exis- Revista Cocar te, isso é forte? G. Acho que diminuiu muito. Esse fa- to, do amor com a natureza, € mais um esterestipo. Por exemplo, quantas vezes discutia sobre 0 desperdicio, quando estragava muito peixe, ¢ che- gavam me diziam: " vocé nao é da- qui, vocé nao entende, o peixe nun- ca acaba’. Ento, esta coisa que digo agora, esti no livro de Joao Viana", de mais de 50 anos atris, conta a his- t6ria de um pescador que pegou um pirarucu, e 0 colega disse: "esse nao, € um peixinho", Depois, é uma men- talidade muito individualista, no sen- tido que nao existe uma colaboragio automitica. Ha um ditado que diz que "dois japoneses fazem uma coopera- tiva, trés alemies fazem a guerra ‘quatro brasileiros fazem uma escola de samba’, Aqui, na necessidade da pesca, tem que se pescar juntos, mas hd todo um jogo de empurra, de um enganar o outro. No meu livro® tem um capitulo Todo mundo enrolando, pois em toda cadeia de produgao um € preocupado de enganar o outro, no existe uma solidariedade, quan- do vocé vai tentar fazer uma horta comunitéria, em todos 0s casos que eu vi, nunca deu certo. Tenta freira, tentam... é 0 ambiente aqui, eles no sentem essa coisa. JG: Essas coisas passaram a acontecer porque, provavelmente, o homem fi- cou mais urbano e, com isso, mais capitalista G: Eu disse uma frase que depois foi citada por uma jornalista, eu até tinha esquecido, 0 Marajé ainda esti em fase de gestagio, mas j4 comecaram as dores do parto. Parece uma con- tradiclo, mas representa bem esse cl o pasado e o presente se misturam, se chocam e acaba mio sendo nem ® Refere-se a obra “A Fazenda Aparecica", I.ed. Beléi/PA; Falangols, 1955/ 2, ed. Belém: Secul, 1998. ‘3 “Marajé: a ditadura das dguas” Belém: Secdet, 1980, V.01 n°1 Jan/Jun 2007 uma coisa, nem outra. Agora muitas coisas mudaram, por exemplo: 0 sen- timento de rejeigio aos negros que +havia antigamente, agora esta diferen- te. Quando eu fazia um desfile da patria, era impossivel eu pegar um negro, um pretinho que fizesse 0 pa- pel de escravo, no aceitavam, tinham vergonha, tinha que pegar o branco e pinté-lo de preto. Uma moga que ia para festa, necessariamente, se borri- fava de talco para parecer branca, aquela mania de alisar 0 cabelo, ago- ra esta j ndo tem mais. Vocé vé as duas culturas, a de ontem e a de hoje, a cultura do interior e da cidade atra- vés da televisio. No meu tempo" nao existia televisiio, chegou muito mais tarde, depois de dez anos e tanto. sim, quando me mudei de li, jé tinha aparecido, mas s6 nos tiltimos anos. Ento, o pessoal ja assume outras ati- tudes, pensa que as coisas que faco no Museu nao tém uma grande acei- tag&o, porque o pessoal pensa... - a nao ser umas pessoas mais escla- recidas, que trabalham mais comigo; que aceitam - acham que é tudo bo- bagem: "Negocio de botar uma poronga... 0 que? Isto é uma coisa velha". "Ora uma coisa velha... Essa € a nos- sa historia” Para eles, nao interessa mais. Ha uma separaco, uma rejeicao do pasado procurando ser moderno. Entao, voce vé, essa pessoa no tem comida, mas quer aquele produto, aquele cosméti co que viv a propaganda na televi- sao. Hii uma confusio de valores. JG: E nessa relacio o antigo € 0 novo, ‘onde ficam as historias populares, como € que o Sr. observa a persistén- ‘ou no delas? G:E dificil, porque praticamente falta o ambiente para contar histérias, a te- levisio matou tudo, ninguém mais se W Refere-se & época em que chegou ao Marajé € a0, tempo que viveu em Sta. Cruz 75 fala. Antigamente, como dizia Paulinho, 0 pai dele botava crianga para dormir, chamava alguém para contar hist6rias. Agora, nao € mais necessirio isso. Também se ainda exis- tisse este homem com um repert6rio fantastico, néo saberia a quem con- tar, pois ninguém o escutaria. Eu digo: ‘o.meu problema psicol6gico neste am- biente, qual €? O isolamento. Eu te- nho amizade, mas agora estou isola- do, porque estou com perna bamba, porém, eu digo, podia entrar em qual- quer casa, mas acontece que quando eu entro numa casa: "Giovanni senta ali, senta na poltrona, essa aqui que é mais cOmoda, vamos ver a novela’ Nunca pensaram em desligat, isso € um absurdo. Eu conhego uma ou duas pessoas, que freqiientava mais por causa disso, nao e: fadas em no- velas, dava para conversar. Entao, fal- tou o pressuposto para contar hist6ri- as, as histérias sao histérias do Vapt- Vupt, histéria do Chico Anisio e as piadas que dizem 14. Por exemplo, quando cheguei aqui, eu tive a im- pressiio que nao existisse esse mode- lo literario da piada, nao entendiam piada, tinham algumas, mas eram pia- das grosseiras. Um cara que me im- pressionou aqui: tinha um colega que era baiano, era um tipo muito c6mi co, ¢ teve um encontro de comunida: de e ele foi 1d contar hist6ria e foi um gelo, na hora de sair ele tropecou, caiu e af foi um....(risos). Quando fa- ziamos as pecas de teatro, a preocu- pacio era, o modelo era torta na cara e queda e 86, tudo ia acabar li, 0 pastelio. Entao, eu digo no existe ‘mais o ambiente nem para contar, nem para ouvir e falta também o tempo, a televisto nao desliga nunca. O pro- blema aqui, nestes lugares, € que a televisio chegou antes do sanititio. A parabélica agora é muito banalizada. Paulo Camara, funciondrio do Museu do Mara No dia anterior, conversou conosco sobre sua expe- riencia de ouvinte de histérias na infancia, Josebel Akel Fares 76 JF: Mas nesta relagio com a natureza ‘como ficam os medos, os tabus, eles ainda existem? G: Ah, sim, af é um submundo, todo mundo acredita, mas nao se manifes- tam. Aqui, os meus colaboradores parecem pensar como eu, mas quan- do tem um problema, levam pro pajé. Ainda acreditam. (J: £ uma sobrevivéncia entao? G: Uma sobrevivéncia latente, disfarcada, mas exite muito. No Ma- 1aj6, existe muito, a mulher que puxa a reza para N, Sra. quando tem um bate pé, ela vai lé com o pajé. Eu posso dizer o nome: Fulano, Fulano, Fulano...., mas € um mundo que nao se revela muito, de fato, em certas coisas. Eu passei anos em Sta. Cruz e nao compreendia a existéncia do pajé em Sta, Cruz. Sea gente pergunia, eles dizem nao. Mas, depois, voce vé que na hora ‘aga", ele vai, tem a filha...Agora interveio outro fator, so os crentes, que € um outra forma de pajelanga. Tinha uma moga af, uma miezinha nova, inexperiente, nao es- vaziou bem 0 seio de leite, entio deu aquela reagio, apodreceu um seio, ela nao sabia tirar todo o leite, era 0 pri- meiro filho, apodreceu. E era uma coi- sa horrivel, veio 0 pastor da igreja, alias assembléia, e disse: uma espécie de virus do cincer"(ora, © cancer nao tem virus), "uma espé- cie de virus do cAncer € foi introdu- zida por uma agio ruim, de diabo etc’, Ele disse: "se foi introduzido por uma pajelanga, eu vou fazer outra paje- langa’. Eu disse: agora no pode mais, mio tem mais reza... Peguei, botei ela no carro, levamos para Belém, fize~ ram o tratamento, ela ficou boa. Aqui, esse submundo tinha, existe. Por exemplo, 0 tajé-soldado, 0 peio-toxo, eles acreditam, eu tenho 0 pedo por brincadeira, eles tém para se prote- ger. JF: E por que eles no se manifes- tam? Medo? Vergonha? G: Nao. Veja bem, eu sou sempre um ser estranho, um homem que veio de fora e eles tém medo. Na pesquisa, eu tenho uma vantagem, posso fazer comparagoes. Ento, se vejo uma coisa que me estranha, pergunto. Senhora, 0 que quer dizer nasceu ‘empelicado? (pergunta A pesquisado- ra) JF: Coma placenta, G: E quais sio as conseqiiéncias? JF: Ah, tem muitas. Eles nascem com poderes. A pessoa vira bruxa, as ‘matintas pereras podem ser mulheres que nasceram empelicadas:Tem mui: tas explicagées. G: Aqui no. Aqui, quem nasceu em- pelicado, é uma pessoa que tem sor te, € um tipo meio desaparafusado, que arruma confusao, mas sempre se salva numa boa. Ora, se € por causa da placenta, toda crianga nasce com a placenta, antes ou depois de sair. Entéo, eu fui ver em italiano uma ex- pressfo nato con la camisa @) , nas- ceu coma camisa. E, [4 na Itdlia, quer dizer homem de sorte. De fato, tinha um comercial que dizia: "Vocé nas- ceu com a camisa, mas, desculpe, nas- ceu com a camisa desta marca € no empelicado". Somente que l4 na Ité lia - fui depois procurando para fazer a comparaco - nato con la camisa é fa pessoa que tem a capacidade de ser curandeiro, de curar as doengas, aquele que costura rasgadura, a mes- ma coisa daqui. JF: Por isso que falei da relagio com ‘as bruxarias, com a pajelanga, G: Esse tipo de coisa que s40 o mal olhado, olho-gordo, que nto pode olhar para crianca que € perigoso, que a crianga adoece. E essas pessoas que aparentemente se dizem j "curadas", comigo, em um minuto de descuido, se revelam. Agora, é preciso para f zer isso, nao eu, de fato eu insisto muito. La em Jenipapo, me ajudava muito com as pessoas. Eu vou per- guntar (dirigindo-se a mim): Senhora, € possivel fazer um remédio com coc6? (risos). E 0 jasmim de cachorro, 0 cocé de cachorro branco que fica no sol, é um remédio que toda a ve- Iha geragio tomou, remédio contra sarampo, contra papeira. Havia um. cha, cha de barata...Ento, esse tipo de conversa, eu nunca posso fazer, Revista Cocar V.01 n°1 Jan/Jun 2007 porque eu sempre sou considerado aceito € nao aceito, para mim, para poder ter mais entrada, preciso de uma situagio diferente. Como, por exem- plo, na pesca: a gente ia ld pescar no interior, nos campos, passava 22 dias num barquinho nés trés, dia e noite, entio, a gente se abre. E tinha lé quem contasse de fantasma, de visagem etc. Por ali, no ha mais a barreira do des- taque, naquele momento nds nos sen- timos da mesma categoria, af nao é dificil que se abram. JG: O Sr. percebe que hé sempre uma ‘explicaco cientifica para aquilo que supostamente € sobrenatural? G: Ha sim, eu acho que em todas as coisas. Vou lhes contar um negécio, que no fundo € um fato magico: bo- tar a vela dentro da cuia e soltar na correnteza para encontrar um afoga- do. Explica-se pelo fato de que ha correnteza em cima correnteza em- baixo, se tem um remanso em cima, 6 facil que a corenteza embaixo te- nha um remanso € 0 corpo ficou la, apesar de que nfo seja universal a resposta, porque, por exemplo, se 0 corpo ficou engatado num galho lé no fundo e a vela continuow andan- do... Mas telacio existe, € 0 fato de saber interpretar. Na cosmologia do caboclo, ele inventa coisa, porque nao tem capacidade de encontrar uma explicago cientifica, por exemplo: 0 jandié que vira sapo. Eu digo que se © jandid vira sapo, eu nao tenho de estranhar que o boto vire gente, por- que eu vejo que o jandié vira sapo, pelo contrario é um elo de salvacao que 0 sapo jui € uma coisa € 0 sapo é outra coisa, que aquele que vocé con- sidera de sapo jut, de jandi4, nio € 0 jirino do sapo juf, que € um jirino es- pecial, que em lugar do @), na forma de adulto quando crescer e continua na forma larval até este tamanho, aquele ponto entio encolhe 0 rabo, e aparecem as pernas e depois eles @, mas ele vé um fato, entao faz a comparacao: se acontece ali, aconte- ce aqui. O caso da geragio esponta- nea, como falava dos peixes na la- goa, no pogo, para eles é uma expli- 7 cacao, porque nao tem outra. E, tam- bém, a arraia, eu ouvi na televisio, outro dia, algo que dizia: "a arraia, devia se permitir 2 exportagio, por- que nao serve a nada, s6 faz mal a gente e no se come", Se come sim, 86 que o pobre é luxento por nature- za,-se vai a um curso, a um hospital, quem se queixa da comida € 0 po- bre. Uma vez, fiz uma viagem 3 In- glaterra, estava em Londres, com pou- co dinheiro € pensei: vou ao porto. Cheguei l4, tinha uma baiuquinha, vi © cardipio, no entendia nada, pe- ‘guei o prato mais caro, era arraia. Mas, quando lanceava aqui, pegava 20/30 arraias e jogava todas na beira para o urubu comer. Quando penso até 30 anos, agora é pouco, volta hd uns 50 anos atrds, o pessoal nado comia tamuati, simplesmente jogava fora, depois com uma certa luta, os geleiros comecam a aceitar, com uma condi- Ao: vocé trazia uma tonelada de aracu e trés de tamuaté, pegava uma uma, as duas jogava na beira. Ago- fa que comem, comem até rabeca, came de jacaré, no tempo do exter- minio, nao comiam, no maximo um pedaco de rabada e nada mais, o que € isso? Uma vez, eu preparei um mugum, o mucum é parente da cobra-d’agua, enguia na Europa é um prato muito apreciado, e 0 mugum tem um pa- rente parecido com o de lA, 0 capito- ne, capitone quer dizer cabecao, de fato, o mugum tem a cabeca grande. Eu disse que tinha recebido um pa- cote da Italia, que tinha um enlatado e todo mundo comeu, dois dias de- pois disse 0 que era e era mais quem queria vomitar, é uma rejeigao, sio 0s tabus, né? Na nossa terra, quando crianga j4 nao havia mais, devia ter antes, por exemplo, no se podia be- ber agua depois do sorvete, depois de ter comido cereja. Aqui tém mui tos, ento, tem que ter um certo cui- dado, falando com eles, de nao fazer Desteira, porque pode fazer mal, mas por causa da auto-sugestio. Eu ia vi- sitar um doente que estava na boca do lago e terminando a missa, botava Josebel Akel Fares

Você também pode gostar