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GOVERNO DO ESTADO DO PIAUÍ UNIVERSIDADE

ESTADUAL DO PIAUÍ – UESPI CAMPUS PROF.


ALEXANDRE ALVES DE OLIVEIRA
COORDENAÇÃO DO CURSO DE LICENCIATURA PLENA
FILOSOFIA

DANIELE DE ARAÚJO SOUSA

A NOVA SOCIEDADE PANÓPTICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A


CONTEMPORANEIDADE ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
SOCIEDADE DISCIPLINAR E DE CONTROLE

PARNAÍBA – PI
2019
2

DANIELE DE ARAÚJO SOUSA

A NOVA SOCIEDADE PANÓPTICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A


CONTEMPORANEIDADE ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
SOCIEDADE DISCIPLINAR E DE CONTROLE

Monografia apresentada para a disciplina de


Prática de Pesquisa I, como requisito para a
obtenção do título de Licenciatura Plena em
Filosofia pela Universidade Estadual do Piauí.
Professora Orientadora: Ma. Roberta Liana
Damasceno

PARNAÍBA –PI
2019
3

DANIELE DE ARAÚJO SOUSA

A NOVA SOCIEDADE PANÓPTICA: UMA REFLEXÃO SOBRE A


CONTEMPORANEIDADE ATRAVÉS DA COMPREENSÃO DA
SOCIEDADE DISCIPLINAR E DE CONTROLE

Trabalho de conclusão de curso,


apresentado à Universidade Estadual do
Piauí, como parte das exigências para a
obtenção do título de Licenciatura Plena
em Filosofia.

Aprovada em 12/04/2019

BANCA EXAMINADORA

Profa. Ma. Roberta Liana Damasceno Costa


Presidente - Orientadora – (UESPI)

Prof. Dr. Idelmar Gomes Cavalcante


(Membro examinador/UESPI)
Examinador 1

Prof. MS. Thiago Ayres de Menezes


(Membro examinador/UFC)
Examinador 2
4

AGRADECIMENTOS

Queria agradecer a todos que de alguma forma colaboraram para a realização dessa
pesquisa, em especial aos meus estimados pais, Raimunda Elídia e Franklin Véras,
que torceram e me incentivaram durante toda essa caminhada, sem a educação,
ajuda e apoio deles provavelmente eu não chegaria até aqui. Ao meu esposo Vinicius
Marques e ao meu Filho Davi Vinícius, por todo amor, paciência, carinho e
principalmente pela compreensão diária, porque do contrário essa graduação também
não seria possível. A minha grande amiga Débora Andrade, pelo ombro que sempre
esteve disponível nos momentos de angústias, assim como também o seu abraço
acolhedor nos momentos de serenidade. Agradeço a minha orientadora Roberta Liana
Damasceno, pois sem a atenção, disponibilidade e esforço da mesma, esse trabalho
não se converteria em algo concreto.
5

“Não me pergunte quem sou e não me diga


para permanecer o mesmo. (Michel
Foucault)
6

RESUMO

Este trabalho tem o intuito de apresentar uma análise reflexiva e investigativa sobre a
constituição da sociedade e do indivíduo através dos estudos empreendidos pelos
filósofos contemporâneos Michel Foucault e Gilles Deleuze. O texto a seguir, portanto,
sem nenhum tipo de pretensão, por tratar-se de uma exposição conceitual, tentará
demonstrar como a constituição das sociedades disciplinares e de controle através
dos seus mecanismos de vigilância produzem estratégias de dominação e saberes
que apontam na constituição de novas subjetividades. Para tratar dessa temática o
trabalho se subdivide da seguinte forma: a princípio fazemos um exame sobre o
método de análises sobre a compreensão do poder em Foucault e Deleuze a fim de
apresentar como foi possível diante de tais análises formular novas leituras sobre o
poder e sobre o sujeito. Após a apresentação das concepções de sociedade
disciplinar em Foucault, especificamente na obra Vigiar e Punir, e sociedade de
controle em Deleuze, no escrito Post-scriptum, sobre as sociedades de controle,
apreendemos suas características, delimitações e aproximações de ambas
concepções de sociedade no processo de constituição de subjetividades. Por fim, a
reflexão que se persiste em retomar em nossos estudos consistiu na percepção que
os conceitos elaborados por nossos filósofos são de maior relevância para os saberes
das mais diversas áreas do conhecimento dispostos a compreender os movimentos
de mudança e/ou permanência na história humana, e também como estes conceitos
nos apontam o olhar para uma nova constituição de sociedade e de seus novos
mecanismos de vigilância e de controle, que interferem diretamente na constituição e
na produção de novas formas de subjetividades e nas novas formas de governo de
vida do indivíduo contemporâneo.

Palavras-chave: Disciplina. Poder. Vigilância. Controle. Subjetividade


7

ABSTRACT

This paper has as its main intent to present a reflexive and investigative analysis about
the constitution of society and the individual through the studies undertaken by the
contemporary philosophers Michel Foucault and Gilles Deleuze. The following text will
thus attempt to demonstrate how the constitution of the disciplinary society (Foucault)
and the society of control (Deleuze), through their surveillance devices, produce ruling
strategies and knowledges which point to the constitution of new subjectivities. In order
to address such topic, this text is divided as follows: Firstly, we examined the
methodology of the analyses about the comprehension of power according to Foucault
and Deleuze to present how it was possible to elaborate new interpretations of power
and of subjectivity. After the introduction of the concepts of disciplinary society,
especially in Foucault’s Discipline and Punish, and that of society of control from
Deleuze’s Post-script on the Societies of Control, we intend to apprehend their
characteristics, delineations and the approximations of both to the processes of
constitution of subjectivity. In the end, a recurring thought throughout our research
consisted in the perception that the concepts elaborated by our philosophers are of the
upmost relevance to different sciences from varied areas which are willing to
understand the movements of displacement and/or permanence in Human History as
well as how these concepts guide our sight to a new constitution of society and its
surveillance and control devices, which interfere directly in the processes of production
of subjectivity and in the new fashions of government of the life of contemporary
individuals.
Key words: Discipline. Power. Surveillance. Control. Subjectivity
8

SUMÁRIO

INTRODUÇÃO................................................................................... 9

1 POR UMA NOVA COMPREENSÃO DO PODER.............................. 13

1.1 O MÉTODO INVESTIGATIVO DAS PROBLEMATIZAÇÕES EM 13


MICHEL FOUCAULT..........................................................................
1.2 O MÉTODO ARQUEOLÓGICO: O SABER E AS CIÊNCIAS DO 16
HOMEM..............................................................................................
1.3 A GENEALOGIA E A ANALÍTICA DO PODER EM FOUCAULT........ 17

1.4 A MICROFÍSICA DO PODER EM FOUCAULT.................................. 19

1.4.1 Poder disciplinar............................................................................... 22

1.4.2 Biopoder e bioplítica....................................................................... 27

1.4.3 Deleuze e a Compreensão do Poder.............................................. 32

2 DA SOCIEDADE DISCIPLINA FOUCAUTIANA A SOCIEDADE DE 35


CONTROLE DE DELEUZEANA.......................................................
2.1 SOCIEDADE DISCIPLINAR FOUCAULTIANA................................. 36

2.2 SOCIEDADE DISCIPLINAR DELEUZEANA..................................... 38

2.3 A SOCIEDADE DE CONTROLE E A NOÇÃO DE DISPOSITIVO...... 41

3 VIGILÂNCIA CONTEMPORÂNEA E A NOVA 43


CONSTITUIÇÃO DA SUBJETIVIDADE............................................
3.1 A VIGILÂNCIA CONTEMPORÂNEA.................................................. 43

3.1.1 O atual problema do vigiar............................................................... 47

3.1.2 A constituição da subjetividade através da vigilância e do 53


controle..............................................................................................
CONSIDERAÇOES FINAIS............................................................... 57

REFERÊNCIAS.................................................................................. 61
9

INTRODUÇÃO

A pesquisa tem como proposta investigativa analisar as formulações dos


conceitos de poder, sociedade e do dispositivo em Foucault e Deleuze e como através
do dispositivo da vigilância os autores realizam a compreensão da formação da
sociedade e das subjetividades na contemporaneidade.
A importância aqui dada aos referidos teóricos é reconhecida pelas
contribuições dos seus estudos aos mais diversos campos de conhecimento, no caso
de Michel Foucault (1926-1984) suas análises foram de fundamental importância para
compreensão da formação da sociedade moderna até a sociedade contemporânea.
A esse filósofo creditamos a formulação dos conceitos de biopoder, biopolítica,
governamentalidade que contribuíram para leitura das transformações do campo
social e político. No filósofo Gilles Deleuze (1925-1994) nos referimos a leitura política
do poder como potência e a compreensão e produção de subjetividades através de
dispositivos de vigilância, marca característica da sociedade de controle, a
configuração da sociedade na contemporaneidade.
Dessa forma demarcamos nossa investigação, no que concerne aos estudos
em Filosofia, aos campos da Ética e Política. Vale salientar que as reflexões sobre
poder, sociedade, vigilância e sujeito abordadas pelos filósofos mencionados
assumem novas configurações e abordagens a serem questionadas pela
compreensão tradicional da filosofia desses campos.
As configurações da sociedade contemporânea nos mostram através da sua
constituição e de seus indivíduos semelhanças ou processos formadores que se
espelham nas sociedades dos séculos XVII e XVIII. Essa percepção nos leva a
analisar que estamos imersos na atualidade em mecanismos de controle, senão os
mesmos ou então modificados para realizar um controle mais eficiente e sutil. Essas
novas formas de mecanismos de controles ainda presentes na sociedade
contemporânea permanecem imersos e infiltrados em nosso cotidiano, porém, não
mais necessariamente como eram os dispositivos disciplinares do séc. XVII, ou seja,
nos quais os indivíduos eram vigiados somente dentro de prisões ou instituições
normalizadoras. As novas configurações dos dispositivos de vigilância e controle
estão para além dos muros das instituições disciplinares (escolas, exército, igrejas,
hospitais) se fazendo presente em todos os lugares, inclusive por onde andamos
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diariamente e acessamos através de instrumentos tecnológicos e redes sociais.


Dos simples olhares, símbolos ou escritos expostos como meio de informação
que nos convidam a todo momento à uma reflexão sobre aspectos da nossa vida
individual e assim somos minuciosamente controlados. Ou seja, estamos diante de
específicos meios de monitoramento inseridos no âmbito social de maneira sutil que
a cada dia se tornam comuns e imperceptíveis aos tipos mais diversos de vigilâncias.
Citamos como exemplo a recorrente frase: “Sorria, você está sendo filmado!”, é
perceptível que placas com essas frases de efeito induzam os indivíduos a agirem de
um certo modo guiando suas ações em benefício de segurança e são através dessa
imersão de novos dispositivos ou mecanismos que farão com que esses mesmos
indivíduos exerçam uma nova vigilância sobre si. Portanto, nos últimos anos os
dispositivos tornaram-se mais sofisticados a ponto de fazerem parte da vida social da
população sem ser necessariamente identificado como tal e através desses
dispositivos produzimos nosso próprio eu, nossa subjetividade.
Diante disso, nosso caminho investigativo se concretiza em três momentos,
seguindo o seguinte percurso: primeiro momento busca analisar a configuração da
atual sociedade panóptica e seus indivíduos vigiados e vigilantes, dá-se por
compreender em que parte surge no pensamento foucaultiano essas reflexões. Diante
da importância de suas reflexões, no que se configura a sociedade panóptica
perceberemos que foi a partir dessa concepção de sociedade disciplinar que os
conceitos sobre poder disciplinar e práticas disciplinares em Foucault surgiram,
levando-o a afirmar uma nova mudança operacional no que podemos definir o que
seja o poder.
Será no surgimento de novas práticas de punição e vigilância, mecanismos que
o poder utiliza para docilizar e adestrar sujeitos emergentes nos séculos XV, XVI e
XVII, que o filósofo francês reelabora toda a configuração de sociedade e de
indivíduos, de modo que esses se adéquem a essas normas que são estabelecidas
por instituições sociais e seus saberes. Veremos que a vigilância no pensamento do
filosofo francês funciona como uma espécie de tecnologia de poder incidindo sobre os
corpos dos indivíduos, controlando seus gestos, suas atividades, suas aprendizagens,
refletindo diretamente na vida cotidiana do indivíduo. Portanto, neste capítulo
configurado como marco metodológico, trataremos o poder em Foucault a partir de
11

sua analítica e suas formulações de biopoder e poder disciplinar que emerge com a
sociedade disciplinar. Ainda no nosso primeiro capítulo, exploramos os conceitos
centrais como método de análise, apresentamos uma análise de poder como potência
em Deleuze. Justificamos a necessidade da exposição tanto em Foucault como em
Deleuze de suas perspectivas de análise sobre o poder para que possamos
compreender o efeito produtivo e modificador do poder através desses filósofos em
contrapartida as hegemônicas teorias do poder.
No segundo momento, após termos mergulhado de maneira mais profunda sob
uma compreensão de poder entrelaçado com o surgimento da sociedade disciplinar
compreendemos que Foucault concentrou-se principalmente na imanência das ações
e das práticas cotidianas nas quais o poder, saber e corpo se cruzam para produzir
os sujeitos que somos e as instituições e redes sociais que nos envolvem. Analisando,
portanto, estas práticas e técnicas de adestramento assim como também a
regulamentação das ações do corpo, identificamos dispositivos de biopoder, cuja
finalidade parece ser justamente a obtenção desta produtividade mediante a
maximização simultânea de sua eficácia e utilidade, pois o corpo só se transforma em
força útil se for, ao mesmo tempo, corpo produtivo e corpo submisso a esta forma de
exercício de poder capaz de operar na docilização dos corpos, forjando o sujeito
próprio à modernidade. Assim Foucault chamará de disciplina a arte do detalhe que
articulou uma política de coerções com base no fechamento e ordenação dos espaços
e, sobretudo, na vigilância.
Partindo disso tratamos de analisar os principais pontos destes dois tipos de
sociedades (disciplinar e controle) para entendermos de forma mais precisa em que
momento se deu a necessidade de uma transição da sociedade disciplinar para uma
de controle. Além de compreendermos como se constitui essa nova configuração de
sociedade contemporânea e como se dá essa noção de dispositivos de vigilância e
de controle na atualidade, interferindo diretamente na vida do indivíduo. Procuramos
demostrar além da emergência da sociedade e de seus indivíduos disciplinados,
compreender na esteira das análises do Foucault como Deleuze corroborou com suas
análises para diagnosticar a transformação da sociedade disciplinar para uma nova
sociedade de controle até a atualidade.
Nosso terceiro momento, partimos do pressuposto de que as relações de poder
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são contextuais, históricas e em constante transformação refletiremos sobre a


passagem da chamada sociedade disciplinar para a sociedade de controle.
Tomaremos como referência um novo tipo de olhar sobre a vigilância contemporânea,
por entendermos que nela testemunhamos a constituição de um novo processo de
subjetivação em que a disciplina, antes circunscrita em um sistema fechado nos casos
em questão como as fábricas, escolas, hospitais, exército, deu lugar a formas de
controle que se estendem por todas as esferas da vida social. Para nós o suporte
discursivo desse novo dispositivo de vigilância será o indivíduo como “empreendedor
de si mesmo”. Nesse sentido, buscamos refletir sobre a ocorrência de um novo
processo de subjetivação e como novas formas de controle passaram a ser exercidas
na sociedade de controle para, então, demonstrar como a constituição dessas
sociedades e de seus mecanismos de vigilância estão inseridos na produção de
subjetividades e forma de vida na sociedade contemporânea.
Esperamos ter alcançado o objetivo geral da nossa pesquisa que buscou
realizar uma análise reflexiva sobre a constituição da sociedade e do indivíduo na
contemporaneidade através da ótica da vigilância presente nos estudos empreendidos
por Michel Foucault e Gilles Deleuze. Assim como também tencionamos compreender
a formulação das análises Foucaultianas e Deleuzianas dos conceitos de poder, poder
disciplinar, dispositivos, subjetividade e sociedade de controle em torno do eixo central
da vigilância como governo da vida, demonstrando como a constituição das
sociedades disciplinares de controle de seus mecanismos de vigilância estão
inseridos na produção de subjetividades e forma de vida na contemporaneidade,
explicitando análises de possíveis caminhos na acepção de Foucault e Deleuze as do
exercício de práticas de liberdade diante das práticas de governo da vida na
atualidade.
13

1 POR UMA NOVA COMPREENSÃO DO PODER


Nosso primeiro passo em busca de analisar a configuração da atual sociedade
panóptica e seus indivíduos vigiados e vigilantes, dá-se por compreender em que
parte surge no pensamento foucaultiano essas reflexões. Diante da importância de
suas reflexões ao que se configura a sociedade panóptica perceberemos que foi a
partir dessa concepção de sociedade disciplinar que os conceitos sobre poder
disciplinar e práticas disciplinares em Foucault surgiram, levando-o a afirmar uma
nova mudança operacional no que podemos definir o que seja o poder.
Será no surgimento de novas práticas de punição e vigilância, mecanismos que
o poder utiliza para docilizar e adestrar sujeitos, emergentes nos séculos XV, XVI e
XVII, que o filósofo francês reelabora toda a configuração de sociedade e de
indivíduos, de modo que esses se adéquem a essas normas estabelecidas por
instituições sociais e seus saberes. Veremos que a vigilância, no pensamento do
filosofo francês, funciona como uma espécie de tecnologia de poder que vai incidir
sobre os corpos dos indivíduos, controlando seus gestos, suas atividades, suas
aprendizagens refletindo diretamente na vida cotidiana do indivíduo. Neste capítulo,
portanto, configurado como marco metodológico trataremos o poder em Foucault, a
partir dessa analítica e suas formulações de biopoder e poder disciplinar que emerge
com a sociedade disciplinar.

1.1 O MÉTODO INVESTIGATIVO DAS PROBLEMATIZAÇÕES EM MICHEL


FOUCAULT

Podemos dizer que se entendermos “método” como sendo uma ordem que se
segue a uma procura absoluta da verdade ou até mesmo para procura de um
determinado fim através de instrumentos operados mediante uma sequência de
procedimentos executados numa pesquisa, fica nítido que para Foucault não existe
um método (único). O autor vai considerar método aquilo que deve ser analisado caso
a caso, a partir de uma construção do problema ou objeto a ser pesquisado. Esse
deve direcionar o pesquisador na escolha das estratégias, instrumentos e arranjos.
Em decorrência disso, o método entendido como caminho para se chegar a um
resultado não é um a priori da pesquisa, pelo contrário é algo que pode ser revisto,
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retificado ou alterado durante o seu processo de investigação.


Dessa perspectiva podemos afirmar que Foucault trabalhou com um método
consagrado por outra área de conhecimento, a História. Entretanto não se trata de
situar Foucault como um historiador, mas de reconhecer que seu trabalho filosófico
estava firmado em pesquisas históricas ou como ele mesmo define: “Meus livros não
são tratados filosóficos nem estudos históricos; no máximo fragmentos filosóficos em
canteiros históricos”. (FOUCAULT, 1978, p.21)
Foucault nos desaconselha a adotar saberes universais ou verdades absolutas
sobre os seres humanos que vigoram em todas as culturas ou tempos históricos, ele
insiste, porém, em uma genealogia que deve ser desprovida de constantes, pois do
contrário isso implicaria em uns ceticismos sistemático em relação a esses universais
antropológicos. Percebemos então que seu trabalho nunca foi o de um historiador,
mas sim de um filósofo que buscava colocar problemas a partir de “suas formas mais
singulares e concretas”, e por isso tratava sempre de “questões localizadas e
particulares”.
Para compreendermos a filosofia de Foucault partiremos de uma ontologia
histórica, ou seja, uma espécie de aproximação teórica a certas problematizações de
época, pensando a partir de acontecimentos de dados empíricos de documentos
ocupando-se principalmente dos entes e da realidade, do que ocorre. Foucault em
seus diferentes momentos tem como principal referência os processos de constituição
do sujeito.
Tanto na arqueologia1 como na genealogia2 Foucault procurar fazer uma
ontologia histórica de nós mesmos e dos nossos modos de sujeição 3, sendo que na

1
Segundo DIAZ (2012, p.6) para Foucault a Arqueologia trata-se de elaborar uma história dos a priori
que são estabelecidos em uma época determinada. Para realizar essa história, Foucault parte da noção
de “problematização”. Isto é, a partir do objeto de estudo escolhido, pergunta-se como e porque, em
um momento dado esses objetos têm sido problematizados através de determinada prática institucional
e mediante quais aparelhos conceituais. (DÍAZ, 2012, p.6)
2
A genealogia é centrada sobre questões relativas aos mecanismos do poder. Segundo afirma Roberto
Machado: “o que faz a genealogia é considerar o saber -compreendido como materialidade, como
prática, como acontecimento - como peça de um dispositivo político que, enquanto dispositivo, se
articula com a estrutura econômica. Ou, mais especificamente, a questão tem sido a de como se
formaram domínios de saber - que foram chamados de ciências humanas - a partir de práticas políticas
disciplinares.” (Machado, 1979, p. XXI).
3
Foucault buscou compreender de que forma se dá a sujeição, o processo de tornar-se sujeito, tornar-
se indivíduo, na Idade Moderna. Para ele, as instituições nos controlam segundo os critérios de
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primeira ele faz essa ontologia do ente em relação a verdade mediante a qual nos
constituímos em sujeitos de conhecimento. Enquanto na genealogia tenta produzir
essa ontologia histórica a partir dos nossos modos de sujeição em relação ao campo
do poder por meio do qual nos constituímos em sujeitos que agem sobre os demais.
Sabendo disso, Foucault, em outro momento, dentro do campo da Ética, elabora uma
ontologia histórica de nossas subjetividades em relação com os questionamentos
pelos quais nos convertemos como agentes morais.
Diante disso, entendemos que Foucault se ocupa nesses três momentos das
formas de subjetivação como produções históricas com influência direta de suas
pesquisas no que se diz respeito a loucura, a doença, a vida, o trabalho e a linguagem,
assim como também não podemos nos esquecer de seus estudos sobre o
aprisionamento, a anormalidade, a sexualidade e as técnicas de si.
A especificidade da filosofia de Foucault não se define pela investigação de
novos territórios, mas pela maneira como ele os percorre e os torna problemáticos e,
portanto, objetos para o pensamento. A preocupação de Foucault em seus livros
jamais foi a de um historiador, pois sua participação a partir de exercícios filosóficos
foi a de refletir em que medida o trabalho de pensar sua própria história poderia liberar
o pensamento daquilo que ele pensa silenciosamente, permitindo-lhe pensar
diferente. Existem diferentes maneiras de resistir, dessa forma Foucault resistiu
pensando e a partir de uma educação rica, coercitiva e conflitiva pensou o saber. A
começar por uma sociedade atormentada por reações contraditórias, pensou o poder.
Finalmente, a partir de sua própria problemática sexual pensou o desejo. E por último,
ao enfrentar a iminência da morte, pensou a Ética.

distribuição, controle de tempo e controle das gêneses. O objetivo destas intervenções das instituições
sociais (religiosas, esportivas, escolares, militares e familiares) é nos constituir como sujeitos da
maneira com o as instituições querem. Para Foucault, não somos frutos de teorias, mas de práticas
(mesmo que influenciados por algumas teorias). VIGIAR e PUNIR são ações que favorecem o controle
dos corpos, e para o efetivo adestramento dos corpos, são utilizados como recursos a sansão, a
vigilância e o exame. (Foucault,1987, pag.164)
16

1.2 O MÉTODO ARQUEOLÓGICO: O SABER E AS CIÊNCIAS DO HOMEM

Foucault se preocupa pelo saber, pela verdade e pela episteme. A arqueologia


no autor citado trata-se de elaborar uma história dos a priori que são estabelecidos
em uma época determinada. Para realizar essa história, Foucault parte da noção de
“problematização”, isto é, a partir do objeto de estudo escolhido pergunta-se como e
porque em um dado momento esses objetos têm sido problematizados através de
determinada prática institucional e mediante quais aparelhos conceituais.
Entendemos então que a solução de uma problemática não se transmite de
uma época a outra, mas um problema novo pode reativar os dados de uma velha
problemática. Essa investigação arqueológica se orienta em uma análise de certos
aspectos culturais de períodos históricos, compreendidos desde o renascimento até o
século XIX.
Nesse período a arqueologia privilegia as temáticas da loucura, da doença e
do surgimento das ciências sociais, seguido de uma reflexão sobre o método do
trabalho. Foucault considera que a história não reflete um processo de razão e a partir
da arqueologia descobre diferentes formações históricas. Nelas podem surgir
elementos de camadas anteriores dispostas de outra maneira, integrando uma nova
composição. Não obstante, nada autoriza supor que as camadas de uma época sejam
“progresso” ou “aperfeiçoamento” das anteriores. Por meio de elementos reais, de
práticas discursivas e não discursivas, são compostas figuras ou estratos que a
arqueologia pode chegar a objetivar em sua pluralidade multifacetada.
O arquivo define o sistema de sua enunciabilidade e o sistema de
funcionamento dos diferentes discursos determina o nível da prática que possibilita
surgir os enunciados como acontecimentos. A arqueologia não mostra processos
dialéticos e assina violência entre o discursivo e não discursivo. Nesta defasagem
entre ambos os âmbitos se produzem problematizações, das quais surgirão os efeitos
de verdade. A tarefa da arqueologia consiste em descobrir uma forma de expressão
que não se identifique com “significante” nem “palavra”, nem “frase”, nem sequer
“enunciado”, no sentido que comumente tem esses termos. “Enunciado”, em Foucault,
faz referência a algo totalmente diferente daquilo que, em geral, é entendido por
enunciado. Trata-se de uma função que atravessa um domínio de possibilidades
17

estruturadas e singulares. Esse domínio faz surgir conteúdos concretos em um tempo


e espaço determinado, mas o próprio enunciado não é estrutura conforme delimitado
por Foucault. O arqueólogo busca aquilo que lhes permitiu emergir, como se
relacionaram com outras coisas e objetos, como se justapuseram entre elas, como
conseguiram imprimir sua diferença a partir de um espaço de exterioridade. A análise
arqueológica faz surgir as condições de possibilidade das coisas.

1.3 A GENEALOGIA E A ANALÍTICA DO PODER EM FOUCAULT

O projeto de uma genealogia do poder surgiu no pensamento de Foucault a


partir da década de 1970, principalmente com a publicação de Vigiar e Punir (1975) e
da História da Sexualidade I: A Vontade de Saber (1976), complementando o projeto
de uma arqueologia do saber. O que passa a interessar Foucault é o poder enquanto
elemento capaz de explicar como se produzem os saberes e como nos constituímos
na articulação entre ambos. A grande diferença entre arqueologia e genealogia é que
a arqueologia pretende alcançar um modo de descrição (liberado de toda sujeição
antropológica) dos regimes de saber em domínios determinados e segundo um corte
histórico relativamente breve; a genealogia tenta recorrendo à noção de relações de
poder, o que a arqueologia deveria contentar-se em descrever.
Enquanto a arqueologia (Ser-Saber) procurou analisar as gêneses e as
transformações dos saberes no campo das ciências humanas, a genealogia (Poder-
Saber) procurava analisar o surgimento dos saberes, que se dá a partir de condições
de possibilidade externas aos próprios saberes, ou melhor, imanentes a eles, pois não
se trata de considerá-los como efeito ou resultante e sim os situarem como elementos
de um dispositivo de natureza essencialmente estratégica.
Foucault mostra que não existem sociedades livres de relações de poder, os
indivíduos são o resultado imediato dessas relações. O que a genealogia do poder
operada por Foucault se propõe é desenvolver uma concepção não-jurídica do poder,
ou seja, não se pode dar conta do poder se ele é caracterizado como algo que
fundamentalmente diz respeito à lei e à repressão.

Foucault foi levado a distinguir no poder uma situação central e periférica e


um nível macro e micro de exercício, o que pretendia era detectar a existência
e explicitar as características de relações de poder que se diferenciam do
18

Estado e seus aparelhos. O interessante da análise é justamente que os


poderes não estão localizados em nenhum ponto especifico de estrutura
social. Rigorosamente falando, o poder não existe; existem práticas ou
relações de poder. O que significa dizer que o poder é algo que se exerce,
que se efetua, que funciona. (FOUCAULT, apud MACHADO, 1979, p. XIV)

Como podemos ver, a crítica de Foucault se dirige principalmente a duas


direções: a primeira está relacionada as teorias dos filósofos do século XVIII, que
definem o poder como direito originário, cedido para se constituir a soberania e que
tem como objeto o contrato social. Segundo, as teorias que fazem a crítica do abuso
do poder, caracterizando o poder não somente por transgredir o direito, mas o próprio
direito por ser um modo legal de exercício da violência e o Estado, cujo papel central
é realizar a repressão, isto é, o poder como uma espécie de violência legalizada .
Na realidade, o que Foucault procurou demonstrar em suas obras Vigiar e Punir
(1975) (com o estudo das instituições carcerárias) e em A Vontade de Saber (1976)
(a partir do estudo da constituição da sexualidade) é mostrar que existe um equívoco
em procurar qualificar o poder como fundamentalmente repressivo, dizendo “não”,
castigando, impondo limites, etc.
Tal análise configurou-se em oposição a concepção negativa do poder,
característica das teorias dos filósofos contratualistas do século XVIII, que identificam
o poder com o Estado (ou o Estado como foco central do poder) e considera-o
essencialmente como aparelho repressivo, na medida em que seu modo de exercício
sobre os cidadãos se daria essencialmente por meio de violência, de coerção, de
opressão, da imposição de limites, etc. Foucault, em sua proposta de análise do poder,
acrescenta uma concepção positiva4 do poder, que justamente tem por objetivo
compreender o poder livre de termos como dominação e repressão lançando como
proposta a analítica do poder que irá elaborar uma diferenciação das leituras feitas
em âmbito macro para o micro do poder.

4 O Filósofo francês faz oposição aos teóricos contratualistas. “Se o poder fosse somente repressivo,
se não fizesse outra coisa a não ser dizer não você acredita que seria obedecido? O que faz o poder
se manter, que seja aceito, é simplesmente que não pesa somente como uma força que diz não, mas
que, de fato, circula, produz coisas, induz ao prazer, forma saber, produz discurso; é preciso considera-
lo como uma rede produtiva que atravessa todo o corpo social muito mais do que uma instância
negativa que tem como função reprimir”. (FOUCAULT, APUD MACHADO, 1979, p.8)
19

1.4 A MICROFÍSICA DO PODER EM FOUCAULT

A partir de uma microfísica do poder, Michel Foucault abordará temas de


fundamental importância para entender como se dá as manifestações de saber/poder
dentro de uma sociedade. O autor faz uma análise acerca de variados temas, como
as prisões, casa dos loucos, hospitais, sexualidade e etc. aqui iremos nos debruçar
sobre algumas abordagens em relação aos quais o autor escreveu ao longo da sua
carreira, principalmente no que se diz respeito as relações de poder, verdade e saber.
Foucault não parte de uma análise sob um contexto inédito ou jamais visto, porém
surge com novas reflexões e questionamentos sobre temas distintos, tratando cada
abordagem a seu modo.
Roberto Machado (1979) é bem mais preciso quando se refere a principal
preocupação de Michel Foucault que foram compiladas em a “Microfísica do poder”.
Na compreensão do estudioso em Foucault, este tinha como seu principal objetivo
uma reformulação de objetivos teóricos e políticos (histórico e da época). É perceptível
as diversas formas de produção do conhecimento quanto ao poder em Foucault diante
de métodos históricos e analíticos estruturais em relação aos campos escolhidos. Ao
mesmo tempo que o autor utiliza metodologia histórica para o entendimento de um
determinado tema, ele também fundamenta seus estudos através da análise do poder,
podemos perceber tais métodos na sua microfísica do poder. Verificou-se também
que Foucault produziu seus próprios métodos pela busca do conhecimento,
desenvolvendo a arqueologia do saber e evoluindo para uma genealogia do poder.
Ainda na introdução da coletânea Microfísica do poder, Roberto Machado faz
uma distinção das fases do pensamento de Michel Foucault na qual em sua primeira
fase ele se dedicou a entender o que é uma arqueologia do saber e em uma segunda
fase aquilo que é uma genealogia do poder intensificando a origem do termo
genealogia e fazendo uma ligação direta a Nietzsche, bem como admite que Foucault
pensa o poder como aspecto fundamental no desenvolvimento das relações,
principalmente sendo de natureza política.

A constituição histórica das ciências humanas é uma questão central das


investigações de Foucault. Vimos como ela aparece e é tematizada, em seus
primeiros livros na perspectiva de uma arqueologia dos saberes. Mas ela é
retomada e transformada pelo projeto genealógico. (FOUCAULT, APUD
MACHADO, 1979, p. XX)
20

Portanto, Foucault vai trabalhar essas duas fases da sua teorização acerca de
certas perplexidades sociais. Dos escritos que compõe a Microfísica do poder,
identificaremos uma evolução e compreensão da arqueologia do saber que se dá por
uma tentativa de entender como os saberes surgiram historicamente e como ocorreu
as suas transformações e modificações, inclusive os próprios saberes em si mesmos
dentro do contexto histórico em que eles se encontram.
A arqueologia do saber é uma tentativa mais descritiva de como surgiram os
saberes, fazendo um retrato histórico da origem do desenvolvimento desses saberes.
Enquanto a genealogia do poder é vista com um olhar mais amplo, pois além de tentar
entender como os saberes surgiram, a genealogia vai querer entender também o
porquê o saber surgiu e porquê exatamente esse saber específico pode ser visto como
algo legítimo e um outro pode ser deslegitimado.
A fase da genealogia do poder na verdade é uma relação entre o próprio saber
e poder, entendendo qual relação existe entre saber e poder que inclusive está em
selecionar esses saberes justificando o porquê desses saberes surgiram em
detrimento de outros. Dessa maneira, desde o poder considerado soberano
existentes nas monarquias e no sistema feudal até o poder chamado disciplinar que
vai se instaurar dentro das prisões assim como pelo panóptico existente na sociedade.
Neste momento, nos dedicaremos a explicitar de forma mais precisa o que seja
a microfísica do poder em Foucault. Percebemos então que o poder abordado por
Foucault e apresentado em momentos do texto na Microfísica do Poder em primeiro
momento não é mais visto como aquela ideia clássica de poder em que ele está
centralizado especificamente ao estado ou o poder é algo que somente alguns
privilegiados possam ter e outros não. Foucault entende o poder como algo que pode
ser exercido como existência da ação e não o poder como algo que apenas pode ser
objetivado ou naturalizado, algo da natureza do poder.
Pelo contrário, o poder para Foucault é algo que se dá dentro da ação humana,
é algo exercido como se fosse uma rede com vários pontos de fontes de interligação
que vai se modificando e se desviando, ou seja, algo que possui um certo fluxo. A
ideia neste primeiro momento não é entender o poder como uma rede que esteja
direcionada ou localizada especificamente a um estado, porém é valido ressaltar que
em nenhum momento Foucault afirma que o poder não possui nenhuma relação com
21

o estado, essa relação evidentemente existe, contudo é fundamentalmente necessário


pensar agora como se dá o poder em seus aspectos mais capilares, nas extremidades
e principalmente em seus aspectos mais microfísicos, no que se diz respeito as mais
variadas esferas sociais.
Contrapondo a ideia “macrofísica” de um poder que está situado apenas nas
relações de força existentes nas altas classes e no Estado, Foucault formulou a ideia
de “microfísica” afirmando que o poder está diluído em todos os setores da sociedade
sob a forma de relações. Desse modo, para mostrar a importância do conceito de
genealogia nas investigações sobre a funcionalidade do poder, Foucault afirma o
seguinte:

A genealogia exige, portanto, a minúcia do saber, um grande número de


materiais acumulados, exige paciência. Ela deve construir seus ‘monumentos
ciclópicos’ não a golpes de ‘grandes erros benfazejos’ mas de ‘pequenas
verdades inaparentes estabelecidas por um método severo’. Em suma, uma
certa obstinação na erudição. A genealogia não se opõe à história como a
visão altiva e profunda do filósofo ao olhar de toupeira do cientista; ela se
opõe, ao contrário, ao desdobramento meta-histórico das significações ideais
e das indefinidas teleologias. Ela se opõe à pesquisa da ‘origem’.
(FOUCAULT, 1979, p. 16)

É importante entender o poder dentro dessas estruturas microfísicas e como


ele se dá dentro delas. Após essa análise é possível perceber que o poder existe
dentro de várias instituições microfísicas e não somente vinculado a um estado. O
Estado não é o ponto de partida necessário, o foco absoluto estaria na origem de todo
tipo de poder social e do qual também deveria partir para explicar a constituição dos
saberes nas sociedades capitalistas, pelo contrário, muitas vezes fora dele que se
instituíram as relações de poder, essenciais para situar a genealogia dos saberes
modernos, que, com tecnologias próprias e relativamente autônomas, foram
investidas, anexadas, utilizadas, transformadas por formas mais gerais de
denominação concentradas no aparelho do Estado.
Podemos dizer que em seus estudos Foucault foi levado a distinguir no poder
uma situação central periférica e um nível macro e micro de exercício, o que pretendia
era detectar a existência e explicitar as características de relações de poder que se
diferenciam do estado e seus aparelhos. Mas isso não significava, em contrapartida,
querer situar o poder em outro lugar que não o estado, como sugere a palavra
22

periferia.
O interessante da análise é justamente os poderes não estarem localizados em
nenhum ponto específico da estrutura social. Funcionam como uma rede de
dispositivos ou mecanismos a que nada ou ninguém escapa, não existindo exterior
possível, limites ou fronteiras. Rigorosamente falando o poder não existe, existem
práticas ou relações de poder. Isso significa dizer que o poder é algo que se exerce,
que se efetua, que funciona. E funciona como uma maquinaria, como uma máquina
social que não está situada em um lugar privilegiado ou exclusivo, mas se dissemina
por toda estrutura social. Não é um objeto, uma coisa, mas uma relação.

1.4.1 Poder disciplinar

Após esse momento de apresentação do método investigativo e de breves


noções sobre a compreensão da analítica do poder em Michel Foucault, iremos nos
ocupar das explicitações sobre os conceitos que emergem no pensamento
foucaultiano sobre o poder. Para tanto, o momento será de exploração sobre os
estudos de Foucault e seus questionamentos sobre o poder, levantar refutações sobre
como o poder se dá, se estabelece, se prolifera. A partir de questionamentos como: o
que é poder? Quais são seus mecanismos? Quais seus efeitos em suas relações?
Que ou quais tipos de dispositivos de poder que exercem em níveis diferentes de
sociedades em domínios em com extensões tão variadas? O autor traz como sua
primeira tese que o poder não é algo estático, central, mas sim dinâmico, ramificado
e capilar.

Em primeiro lugar: não se trata de analisar as formas regulamentares e


legitimas do poder em seu centro, no que possam ser seus mecanismos
gerais e seus efeitos constantes. Trata-se, ao contrário, de captar o poder em
suas extremidades, em suas últimas ramificações, lá onde ele se torna
capilar; captar o poder nas suas formas e instituições mais regionais e locais,
principalmente no ponto em que, ultrapassando as regras de direito que
organizam e delimitam, ele se prolonga, penetra em instituições, corporifica-
se em técnicas e se mune de instrumentos de intervenção material,
eventualmente violento (FOUCAULT, apud MACHADO, 1979, p.182)

O poder opera de modo difuso, capilar, espalhando-se por uma rede social que
inclui instituições diversas como a família, a escola, o hospital, a clínica. Ele é, por
assim dizer, um conjunto de relações de força multilaterais. Agora apresentaremos de
23

forma específica a questão da disciplina, refletindo sobre como o poder se mantem,


se estabelece e exerce o controle.

A disciplina “fabrica” indivíduos; ela é a técnica específica de um poder que


toma os indivíduos ao mesmo tempo como objetos e como instrumentos de
seu exercício. Não é um poder triunfante que, a partir de seu próprio excesso,
pode-se fiar em seu superpoderio; é um poder modesto, desconfiado, que
funciona a modo de uma economia calculada, mas permanente.
(FOUCAULT, 1987, p.195)

A disciplina como instrumento de poder pode chegar a extremos peculiares de


aniquilação da individualidade pela imposição de hábitos que interessam ao poder.
Essa imposição acontece quando o poder se utiliza da disciplina para se fortalecer e
se sustentar de modo que somos afetados pelo veículo da obediência quando somos
submetidos às regras e normas instauradas dentro das instituições, como podemos
citar a escola, o quartel, a igreja ou até mesmo quando frequentamos um espaço
social no qual se classifica indivíduos, seja controlando as atividades cotidianas ou
organizando a gênese. O poder e a disciplina deixam de ser definições teóricas e
estáticas e passam a ser mecânicos, dinâmicos e capilares, onde a disciplina fortalece
o poder e ele se faz necessário dentro dessa complexa rede controladora em que
vivemos.
Na concepção foucaultiana de poder, existem poderes disseminados em toda
a estrutura social por intermédio de uma rede de dispositivos da qual nada e nem
ninguém escapa. O poder único não existe, mas, sim, práticas de poder, ele não é
algo que se possui, mas algo que se exerce. Além disso o poder funciona a partir de
relações, não se constituindo especificamente por apenas uma classe dominante, mas
da relação que se estabelece também com os seus dominados, pois se o poder
apenas se exercesse de modo dominante e opressivo se perderia na fragilidade, ele
é forte porque produz efeitos positivos a nível conhecimento.
Nesse sentido, o poder atua não em conformidade a lógica binária dos
dominadores versus dominados. Não é da onisciência de um soberano-que-tudo-sabe
que o poder emana ou conserva-se. Ele irradia-se de modo microfísico, sem possuir
um centro permanente. As relações de força são móveis e suscetíveis de se
modificarem, compõem arranjos transitórios dados a uma constante transfiguração.
Tal mobilidade permitirá Foucault contemplar a possibilidade de resistência face ao
24

controle, reconhecendo-a enquanto elemento indissociável de seu exercício.


Igualmente, o filósofo contesta a ideia consagrada segundo a qual o poder agiria por
meio da supressão, da repressão, coibindo e impedindo a manifestação de condutas
indesejáveis. Ele atuaria, ao contrário, de maneira a produzir, incitar comportamentos.
Para Foucault o poder produz saber, então pode-se dizer que não há relação
de poder que não seja intrinsecamente vinculada a um campo de saber. Do mesmo
modo que não há saber que não corresponda a um determinado poder. Foucault
preocupou-se em analisar o surgimento dos saberes situando-os como elementos de
um dispositivo da natureza essencialmente estratégica, ou seja, como dispositivo de
poder. Nessa ordem de entendimento, é o poder-saber seus processos e as lutas que
o constituem determinam as formas e os campos possíveis do conhecimento.
Percebe-se que Michel Foucault faz uma análise histórica-filosófica sobre o
poder em “Vigiar e punir”5. Para esta análise Foucault centra seus estudos no sistema
de punição presente desde a Idade Média. Ele situa seu estudo percebendo a punição
como uma função social complexa, na qual ele faz uma análise dos métodos punitivos
como técnicas de poder. Colocando a tecnologia do poder no princípio da
humanização da penalidade e do conhecimento do homem. Nota-se que Foucault
analisa a transformação dos métodos de punição tendo como pressupostos uma
tecnologia política do corpo em que se poderia ler uma história comum das relações
de poder e das relações de objetos.
Dessa forma ele descreve algo em comum: a forma como o poder se efetiva,
como se forma, qual espaço e quais dispositivos dos quais ele se utiliza. Em “Vigiar e
Punir” Michel Foucault aborda a temática das relações do poder disciplinar, que
expressam a forma como o poder era exercido na sociedade Moderna (século XVI e
XVII). Foucault analisa em que medida o exercício do poder é visto como uma
microfísica, cujas relações funcionam como exercício de poder e produção de saber.

5
Em “Vigiar e Punir” Michel Foucault aborda a temática das relações do poder disciplinar, que
expressam a forma como o poder era exercido na sociedade Moderna (século XVI e XVII). Foucault
analisa em que medida o exercício do poder é visto como uma microfísica, cujas relações funcionam
como exercício de poder e produção de saber.
25

O poder disciplinar e suas práticas disciplinares para Foucault, a punição e a


vigilância são mecanismos de poder utilizados para docilizar e adestrar as pessoas
para que essas se adequam às normas estabelecidas nas instituições. A vigilância é
uma tecnologia de poder que incide sobre os corpos dos indivíduos, controlando seus
gestos, suas atividades, sua aprendizagem, sua vida cotidiana. O pensador francês,
afirma que nos séculos XVII e XVIII o poder era, sobretudo, o direito de apreensão
das coisas, do confisco do tempo, dos corpos e da vida o qual tinha o privilégio de se
apoderar da vida para suprimi-la. Esse confisco passa a ser uma entre outras funções
do poder, entre as quais se destacam a função de controle, de vigilância, de majoração
e de organização das forças.
O poder disciplinar é fruto de transformações da sociedade burguesa do
deslocamento do poder soberano para o corpo social. A partir de então, o poder se
exerceria na forma de micropoderes ou de uma micropolítica. Tal poder se exerce
sobre os corpos individuais por meio de exercícios especialmente direcionados para
a ampliação de suas forças, eles tinham como objetivo o adestramento e a docilização
dos corpos. É dócil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeiçoado.

A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A


disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e
diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma
palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma “aptidão”,
uma “capacidade” que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a
energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de
sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do
trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo
coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada.
(FOUCAULT, 1987, p.165)

Na concepção foucaultiana, os dispositivos do poder disciplinar caracterizam-


se pela minúcia e pelo detalhe. Nesse sentido, o corpo será submetido a uma forma
de poder que irá desarticulá-lo e corrigi-lo através de uma nova mecânica do poder.
As práticas disciplinares permitem o controle das operações dos corpos e a sujeição
constante de suas forças, impondo-lhes uma relação de docilidade e utilidade.
Na obra Vigiar e Punir, Michel Foucault tenta demonstrar a criação do
Panoptismo como sistema de vigilância e controle exercido sobre os presos, os
operários das fábricas e também nas escolas e nos conventos. O Panoptismo é o
26

princípio geral de uma nova “anatomia política” cujo objeto e fim não são a relação de
soberania, mas as relações de disciplina. Desta forma, o referido autor observa a
formação de uma sociedade disciplinar, nos séculos XVIII e XIX, a qual se expandiu
até o início do século XX.
Na sociedade disciplinar os indivíduos sentem-se controlados pela força do
olhar, uma vez que no poder panóptico o observador está permanentemente presente
a observar e a vigiar os indivíduos. Sendo assim, o filósofo considera que: “O
panóptico é uma máquina de dissociar o para ver - ser visto” (Foucault, 1987, p. 225).
A efetividade desse dispositivo ocorre graças aos seus mecanismos de observação,
ganha em eficácia e em capacidade de penetração no comportamento dos homens.
Um aumento de saber vem se implantar em todas as frentes do poder, descobrindo
objetos que devem ser conhecidos em todas as superfícies onde este se exerça.
O panóptico permitiu aperfeiçoar o exercício do poder no final do séc. XVIII. O
poder disciplinar panóptico, por meio da visibilidade, da regulamentação minuciosa do
tempo e na localização dos corpos no espaço, possibilitou o controle sobre os
indivíduos vigiados, de forma a torná-los dóceis e úteis à sociedade, instaurando,
dessa forma, uma nova tecnologia do poder.

Duas imagens, portanto, da disciplina. Num extremo, a disciplina-bloco, a


instituição fechada, estabelecida à margem, e toda voltada para funções
negativas: fazer parar o mal, romper as comunicações, suspender o tempo.
No outro extremo, com o panoptismo, temos a disciplina-mecanismo: um
dispositivo funcional que deve melhorar o exercício do poder tornando-o mais
rápido, mais leve, mais eficaz, um desenho das coerções sutis para uma
sociedade que está por vir. O movimento que vai de um projeto ao outro, de
um esquema da disciplina de exceção ao de uma vigilância generalizada,
repousa sobre uma transformação histórica: a extensão progressiva dos
dispositivos de disciplina ao longo dos séculos XVII e XVIII, sua multiplicação
através de todo o corpo social, a formação do que se poderia chamar grosso
modo a sociedade disciplinar. (FOUCAULT, 1987, p.232)

Se as disciplinas exerciam um poder sobre os corpos dóceis, corpos


submissos, mas, também, corpos úteis e aperfeiçoáveis ao biopoder (poder de fazer
viver) muda de registro, porque ele trabalha não no nível individual, mas sim, no nível
do indivíduo enquanto espécie, ou seja, a massa, a população. O primeiro diz respeito
a anatomopolítica 6 e o segundo a biopolítica. Assim o biopoder, para Foucault,

6
As disciplinas fazem nascer a “anatomia-política” do corpo humano que é, ao mesmo tempo, uma
27

aparece no final do século XVIII com toda uma gama de regulamentações,


principalmente, no âmbito da saúde e da educação, e este poder é interessante
porque poderíamos ver nele outro elemento de uma passagem para as sociedades
de controle, posto que não há somente uma análise dos arquipélagos carcerários, dos
ambientes de confinamento, mas há com este conceito uma expansão da análise que
perpassa demais elementos, desde a educação a saúde, a importância da seguridade
social ao problema do racismo, da exclusão de determinados grupos etc. Foucault,
portanto, ao pensar a mudança operacional do poder na modernidade vai apontar para
emergência de um novo poder e novos mecanismos e tecnologias, explanando em
sua obra conceitos imprescindíveis como os de Biopoder e a Biopolítica.

1.4.2 Biopoder e biopolítica

Foucault identifica, inicialmente, como os filósofos clássicos buscavam justificar


o poder a partir da soberania. Pois, o soberano detinha o direito de “deixar viver” ou
“fazer morrer”. São, pois, nas sociedades europeias do século XVIII o contexto no qual
surgem novas tecnologias de poder. Elas só serão possíveis com o advento da
categoria “sujeito” e são os corpos físicos das pessoas o primeiro espaço no qual fora
exercida uma nova forma de poder. (FOUCAULT, 2007)
Isso ocorre com a institucionalização das escolas, dos hospitais, dos quartéis,
das prisões entre outros ambientes denominados como instituições de “sequestro”.
Esta denominação é utilizada pelo fato de individualizar o sujeito e usar técnicas
disciplinares para docilizá-lo. Ao lado do poder disciplinar, surgirá no final do século
XVIII um tipo de poder que será nominado por Foucault de biopoder. É no contexto
daquelas sociedades que surge o poder disciplinar, que nasce como uma tecnologia
de poder tratando o corpo do homem como uma máquina, objetivando adestrá-lo para
transformá-lo em um instrumento útil aos interesses econômicos.
Concomitantemente surge o biopoder, cujo foco não é o corpo individualizado,
mas o corpo coletivo. O biopoder não se diferencia somente do poder disciplinar, como

“mecânica do poder” que permite perceber como se pode obter o controle dos corpos não para que
façam o que se quer, mas para que operem como se quer, segundo a rapidez e a eficácia exigida.
Pode-se dizer “[...] que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão
aumentada e uma dominação acentuada” (FOUCAULT, 1987, p. 119)
28

também também do poder soberano, pois enquanto na soberania havia um direito do


soberano “deixar viver” ou “fazer morrer”, no biopoder haverá uma tecnologia de poder
voltada para o “fazer viver” e o “deixar morrer”, sendo um poder que vai se encarregar
da preservação da vida, eliminando tudo aquilo que ameaça a proteção e o bem estar
da população.
É nessa leitura produtiva do poder que Foucault, em contraste com o Poder
Soberano, apresenta no curso Em defesa da sociedade, ministrado em 1976, bem
como no primeiro volume de História da sexualidade: a vontade de saber (1976), o
problema do biopoder. Nessas circunstâncias, o filósofo investiga a configuração nas
sociedades ocidentais de um poder que toma a vida como objeto de sua regulação,
analisando a transformação pela qual passou esse poder a partir do século XVII. Uma
transformação consistente na inclusão de processos biológicos nas operações do
poder soberano.
Conforme a teoria clássica da soberania, o soberano é aquele cujo poder reside
fundamentalmente no direito sobre a vida e a morte dos homens. A fim de assegurar
a defesa incondicional de sua pessoa ou território, era-lhe permitido valer-se de seus
súditos, mesmo que os conduzindo ao aniquilamento. Estava igualmente ao seu
alcance aplicar castigos a infratores, punindo-os com a execução. Entretanto, se o
direito do soberano sobre a morte dos súditos é imediato, seu poder sobre a vida não.
Quando age sobre esta é porque lhe é lícito matar ou deixar de fazê-lo.
Por sua vez, de acordo com Foucault, desde o século XVII vê-se surgir uma
nova organização do poder. Nesse sentido, o direito de morte tenderá a se deslocar
ou, pelo menos, a se apoiar nas exigências de um poder que gere a vida e se ordenar
em função dos seus reclames. Se outrora vigorou o princípio segundo o qual era
legítimo provocar a morte ou deixar viver, agora, invertendo-se a esta equação, os
mecanismos de poder visam produzir a vida, articulados a possibilidade de se deixar
morrer. O poder que assim se exerce atua não mais em termos de confisco, subtração,
extorsão, tal como se passava no regime de soberania. Agindo sobre a vida, ele visa
ao seu contínuo e incansável melhoramento, multiplicação, incitação (FOUCAULT,
1976/2010).
Essa transformação em que a civilização ocidental assistiu não significaria,
contudo, o desaparecimento ou neutralização das batalhas e genocídios que a
29

acompanham. Ao contrário, declara Foucault, os confrontos travados ao longo dos


dois últimos séculos testemunham a favor de crueldades sem precedentes.
Massacres e extermínios são complementares a um poder que busca aperfeiçoar
processos vitais. Se antes guerras eram iniciadas a fim de proteger o soberano, na
era do biopoder a morte de uns assegura a existência de todos.
A partir do século XVIII o homem passa a perceber que é de fato possuidor de
um corpo e com isso se reconhece como alguém que pertence a uma espécie. Essa
iluminação deu origem a questões que envolvem a vida do homem como algo que
deve ser preservado. Esse novo cenário abriu espaço para uma biopolítica voltada
para a regulamentação dos processos das massas. Consequentemente a biopolítica
carecerá de uma tecnologia que deve estar direcionada para dispositivos que devem
assegurar a vida da população, pois sua meta é controlar aquilo que possa limitar a
vida do homem não em particular, mas no conjunto da espécie humana. Para que isso
aconteça será usado um dispositivo de poder que Foucault chamará de “Biopoder”,
uma ferramenta fundamental para a tecnologia de poder que irá controlar as massas.
A respeito do biopoder Foucault diz o seguinte:

(...) Essa série de fenômenos que me parece bastante importante, a saber, o


conjunto dos mecanismos pelos quais aquilo que, na espécie humana,
constitui suas características biológicas fundamentais vai poder entrar numa
política, numa estratégia política, numa estratégia geral de poder. Em outras
palavras, como a sociedade, as sociedades ocidentais modernas, a partir do
século XVIII, voltaram a levar em conta o fato biológico fundamental de que
o ser humano constitui uma espécie humana. É em linhas gerais o que
chamo, o que chamei, para lhe dar um nome, de biopoder. (FOUCAULT,
2008, p. 03)

Em Vigiar e punir, Foucault havia oferecido uma extensa descrição dos


mecanismos disciplinares que se dedicam a repartir os espaços, ordenar os
indivíduos, treinando-os e mantendo-os sob permanente vigilância. Corpos
obedientes e medicalizados, punidos, se preciso, cuja força produtiva disponível
oferece-se à utilização. Ao longo do século XVIII, porém, as técnicas de adestramento
dos corpos se articularão a dispositivos que atuam sobre os indivíduos, agora
contemplados enquanto “corpo-espécie” (Foucault, 1976/2010a).
Foucault denomina “biopoder” o outro polo complementar do biopolítica. A
biopolítica tem como seu objeto a população de homens viventes e os fenômenos
30

naturais a ela subjacentes. Regula e intervém sobre taxas de natalidade, fluxos de


migração, epidemias, longevidade. Não é um poder individualizante, como as
disciplinas, mas massifica os indivíduos a partir de sua realidade biológica
fundamental (FOUCAULT, 1976/2010). A anatomia política do corpo encontra a
biopolítica da população. Na intersecção formada pelo cruzamento das duas linhas de
força está a sexualidade. Enquanto elemento político e vital, a sexualidade remete
tanto ao homem em sua dimensão corporal, quanto ao homem como membro de uma
espécie que se reproduz (FOUCAULT, 1976/2010, p.151).
Nas palavras de Foucault, o homem durante milênios permaneceu o que era
para Aristóteles: um animal vivo e, além disso, capaz de existência política; o homem
moderno é um animal, em cuja política sua vida de ser vivo está em questão. Objeto
privilegiado do biopoder, a sexualidade, ao longo do século XIX, será tema de uma
profícua produção de discursos, os quais se dispõem a enunciá-la naquilo que seria
sua natureza esquiva, fugidia, perscrutando sua presença nos recônditos das
condutas, em sonhos, na etiologia da loucura, na vida das crianças.
A sociedade do biopoder é uma sociedade do sexo, na qual tornou-se a chave
da individualidade, ao mesmo tempo, o que permite analisá-la e o que torna possível
constituí-la. Se o poder se ocupa da sexualidade, é menos para reprimi-la que para
suscitá-la. Através de infinita verbalização, de um permanente fazer falar, o sexo é
controlado mediante sua inserção no discurso.
Dessa forma, por biopolítica entendemos que Foucault vai designar o
movimento segundo o qual, a partir do século XVIII, a vida biológica começa a se
converter em objeto da política, ou seja, a vida biológica passa a ser produzida e, além
disso, administrada com a particularidade de que, mesmo sendo objeto de
normalização, a vida biológica nunca fica exaustivamente retida nos mecanismos que
pretendem controlá-la, pois sempre os excede e deles, por fim, escapa. A morte,
nesse sentido, representa justamente um fato intrínseco ao “biológico” que escapa
completamente ao biopoder, demonstrando um dos seus limites, já que representa,
na leitura foucaultiana, o momento mais “privado” da existência de uma pessoa.
É no livro “História da Sexualidade I – A vontade de saber” que Foucault se
refere pela primeira vez ao termo biopolítica em seus escritos. No capítulo que encerra
a obra, intitulado “Direito de morte e poder sobre a vida”, ele faz a seguinte
31

observação: “o homem, durante milênios, permaneceu o que era para Aristóteles: um


animal vivo e, além disso, capaz de existência política” (FOUCAULT, 2012, p. 156).
No entanto, a partir do momento em que se descortina aquilo que ele denomina como
“limiar de modernidade biológica” o homem passa a ser “um animal cuja política sua
vida de ser vivo está em questão”. Essa implicação da vida biológica nos cálculos e
nos mecanismos de poder é que será denominada biopolítica.
Nesse sentido, que a biopolítica não se apropria da vida para suprimi-la, mas
sim para administrá-la em termos regulativos, ou seja, trata-se de distribuir o vivente
em um domínio de valor e de utilidade. É neste movimento que Foucault evidencia
como a potência da vida humana passa a ser aproveitada pelo Estado e pelas
instituições como elemento de poder, isto é, passa-se a incluir a vida humana nos
cálculos do poder. Afinal, a lógica do biopoder é justamente essa: cuidar/maximizar a
vida humana para que ela seja produtiva.
A biopolítica se encontra em uma perspectiva diametralmente oposto à inflexão
predominantemente negativa do poder soberano: se este “se exercia em termos de
subtração, de tributação – dos bens, dos serviços, do sangue – dos próprios súbditos”,
aquela, pelo contrário, volta-se “para a vida deles não só no sentido da sua defesa
mas também no do seu desenvolvimento, da sua potenciação, da sua maximização.”
Se o poder soberano “tolhia, refreava, até aniquilar”, a biopolítica “solda, aumenta,
estimula.”
Considerando que a partir das investigações de Foucault e depois toda a
problemática apresentada é possível afirmar que o poder existe nas relações de poder
e são praticadas em cada setor da sociedade. Essa ideia de que o poder é uma
propriedade do Estado, das instituições e das altas classes sociais é uma
interpretação limitada. Para Foucault, o poder está em todas as áreas da sociedade –
infiltrado nas relações entre as pessoas – e por isso o poder consegue desfiar-se em
todo o tecido social, sendo uma prática social comum entre qualquer pessoa que viva
em sociedade.
O poder é ato, não algo que se pode ser transferido e sim que deve ser
exercido, por isso ele é algo que se sofre, se pratica, sendo assim ele é intrínseco as
relações sociais. Foucault não tem a intenção de criar uma teoria do poder, pois ele
acredita que é algo em constante movimento. Não há nas suas pesquisas uma
32

negação da existência do poder nas sociedades modernas, o que ele apresenta de


novo é o modo como esse poder deve ser analisado. Com isso, gerou-se uma nova
maneira de se entender o poder como uma força diluída nas relações sociais e sua
ocorrência é constante e em todos os setores da vida.

1.4.3 Deleuze e a compreensão do poder

Deleuze7 ensina as concepções gerais do poder na perspectiva de Foucault,


sempre com seu método de levar os enunciados do autor original a outros campos.
Desse modo, discorreremos sobre os principais aspectos que Deleuze traça sobre a
concepção de poder em Foucault, compreendendo o poder como uma relação de
forças, de modo que toda relação de forças é uma relação de poder. “A força não está
nunca no singular ela tem como característica essencial estar em relação com outras
forças, de forma que toda força já é relação, isto é poder. ” (DELEUZE, 2005, p. 78)
Do ponto de vista de Deleuze, Foucault amplia a perspectiva do que é o poder.
Inverte a perspectiva de análise, entendendo que o poder não é substância, forma,
ente ou estrato; diferentemente do que entendemos anteriormente por (saber), poder
é uma prática, exerce-se e está disseminado por todos os lados. Diante disso é válido
ressaltar que existe uma diferença de natureza entre poder e saber, porém, nada que
os impeça de uma imanência mútua, pelo contrário, para Foucault, tudo é prática.
Todavia a prática do poder permanece irredutível a toda prática do saber.
Para o pensador francês o poder, portanto, assume uma grande plasticidade
em suas configurações, ele não está totalizado numa Instituição como o Estado ou
nas mãos de um soberano, muito pelo contrário, está descentralizado, capitalizado,

7
DELEUZE, Gilles. Nasceu em Paris e ali passou a maior parte de sua vida. Reputado como um dos
Filósofos mais importantes da Contemporaneidade dedicou seus esforços para esclarecer as noções
superiores da Filosofia, que é, segundo ele, um Processo contínuo de “Criação de Conceitos (e, do
significado de uma palavra, de uma frase.)” e não só uma tentativa de descobrir e de refletir a “Verdade
do Mundo e da Vida”. A maioria de sua obra enfocou a “História do Pensamento Filosófico”, mas ao
contrário de outros eruditos, ele não se propôs a desvendar “a verdade” de cada um dos Filósofos que
estudou. Não se deteve na tentativa de revelar, por exemplo, o “verdadeiro Nietzsche”. Em vez disso,
seus estudos buscaram ofertar uma nova forma de se analisar os Conceitos que o filosofo estudado
dera a determinado tema. Quiseram oferecer uma nova visão sobre como foi o processo de produção
das Ideias do Pensador analisado, abrindo, desse modo, novas rotas para o Pensamento.
33

regionalizado em relações móveis e instáveis, disseminado em inúmeros pontos,


portando relações desiguais. O estado para Foucault é apenas o resultado dessa
multiplicidade de relações de poder microfísicos.

É por essa razão que as grandes teses de Foucault sobre o poder


desenvolvem-se em três rubricas; o poder não é essencialmente repressivo
já que (incita, suscita e produz); ele se exerce antes de se possuir (Já que só
se possui sob forma determinável – classe - e determinada - Estado); passa
pelos dominados tanto quanto pelos dominantes (Já que passa por todas as
forças em relação). (DELEUZE, 2005, p. 79)

Dessa forma, o poder constitui-se tanto nos grandes conjuntos sociais,


instância molar, como nos microconjuntos ou instância molecular situados em níveis
diferentes. Para Foucault, o poder é local e não global, molecular e não estático, é o
resultado das multiplicidades de vários mecanismos aliados as relações de poder
disseminadas em nosso cotidiano. Portanto, não se deve explicar o poder pela ação
das instituições, mas sim as instituições pelas relações de forças que aí se atualizam.
Deve-se, assim, realizar antes uma microfísica do poder do que uma
macrofísica. Roberto machado em sua tradução de a Microfísica do poder traz um
diálogo denominado os intelectuais do poder no qual Foucault explica sua concepção
de poder na seguinte afirmação: “onde a poder, ele se exerce. Ninguém é,
propriamente falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada
direção, com uns de um lado e outros de outro; não se sabe ao certo quem o detém;
mas se sabe quem não o possui”. (FOUCAULT, apud MACHADO, 1979, p. 75)
Deleuze reafirma tal pensamento mais uma vez com a seguinte citação:

(...) as relações de poder não emanam de um ponto central ou de um foco


único de soberania, mas vão a cada instante “de um ponto ao outro” no
interior de um campo de forças, marcando inflexões, retrocessos, retornos,
giros, mudanças de direção, resistências. (DELEUZE, 2005, p. 81)

As relações de poder estão presentes em todas as esferas sociais e não


somente dentro de uma infraestrutura ou local privilegiado da qual detém poder sobre
seus dominados. Foucault acredita que essas relações de forças não se dão somente
por uma classe dominante, mas que também a classe dos dominados exercem
relações de poder sobre essa superestrutura que é o estado. De modo que toda
relação de força não está fora do corpo de produção, ela acontece principalmente
34

dessa troca de forças, independente da classe que esses corpos estejam inseridos.
“O poder investe (os dominados), passa por eles e através deles, apoia-se
neles, do mesmo modo que eles em sua luta contra esse poder, apoiam-se por sua
vez nos pontos em ele os afeta” (DELEUZE, 2005, p.37). Podemos entender esse
pensamento foucaultiano a partir dos escritos de Deleuze em sua obra sobre Foucault
(2005), Deleuze trata aqui o exercício do poder como uma espécie de afeto, já que ele
entende que a própria força se define pelo poder de afetar outras forças incitando,
suscitando e produzindo, além de constituir afetos ativos no intuito de um efeito útil,
afetos reativos.

(...) sobretudo se considerarmos que a força afetada não deixa de ter uma
capacidade de resistência. Ao mesmo tempo, é cada força que tem o poder
de afetar (outras) e de ser afetada (por outras, novamente), de tala forma que
cada força implica relações de poder; e todo campo de forças reparte as
forças em função dessas relações e de suas variações. Espontaneidade e
receptividade adquirem agora um novo sentido- afetar, ser afetado.
(DELEUZE, 2005, p. 79)

O poder não tem uma essência definida, ele acontece a partir de minuciosas
singularidades. Cada relação de poder, por menor que seja, implica na relação com o
outro, e esse conjunto de relações de força afeta diretamente as grandes instituições
sócias que nos norteiam. Sendo assim, Deleuze constata que o poder não é uma
forma fixa, mas sim uma função não-formalizada, é uma física da ação abstrata, as
categorias do poder são então as determinações, características de ações
consideradas como “quais quer” que surgem a partir de singularidades diversas e
microfísicas.
Entre o poder e o saber existe uma heterogeneidade, já que o poder não passa
por formas, mas o saber diz respeito a matérias formadas (substâncias). Diante dessa
afirmação o panóptico traduz esse exemplo, pois o mesmo atravessa todas as formas
de educar, punir ou fazer produzir, ele aplica-se a todas estas substâncias o que o
torna uma pura função disciplinar, uma espécie de diagrama de relação de forças que
caracterizam uma formação, é a repartição dos poderes de afetar e dos poderes de
ser afetado. “O poder ele é diagramático: mobiliza matérias e funções não
estratificadas, e procede através de uma segmentaridade bastante flexível. Com
efeito, ele não passa por formas, mas por pontos, pontos singulares que marcam,
cada vez, a aplicação de uma força, a ação ou reação de uma força em relação as
35

outras, isto é, um afeto como um estado de poder sempre instável.” (DELEUZE, 2005,
p.81)
Deleuze, portanto, nos oferece um ponto de vista ampliado sobre sua
concepção de poder, descartando uma possível hierarquia dominante e absoluta que
governe apenas sob um único modelo de poder, ele estabelece uma visão ampla e
microfísica a partir de suas leituras sobre o pensamento de Foucault, entendendo que
“ os centros de poder e as técnicas disciplinares formam outros tantos segmentos que
articulam uns nos outros, e pelo quais os indivíduos de uma massa passam ou
permanecem, de corpo e alma (família, escola, caserna, fabrica ou prisão)”.
(DELEUZE, 2005, p.37)

2 DA SOCIEDADE DISCIPLINAR FOUCAULTIANA A SOCIEDADE DE


CONTROLE DELEUZIANA

Neste segundo momento, após termos mergulhado de maneira mais profunda


sob uma compreensão de poder entrelaçado com o surgimento da sociedade
disciplinar, compreendemos que Foucault concentrou-se principalmente na imanência
das ações e das práticas cotidianas onde o poder, saber e corpo se cruzam para
produzir os sujeitos que somos e as instituições e redes sociais que nos envolvem.
Analisando, portanto, essas práticas e técnicas de adestramento assim como
também a regulamentação das ações do corpo, identificamos dispositivos de biopoder
cujo fim parece ser justamente a obtenção desta produtividade mediante a
maximização simultânea de sua eficácia e utilidade, pois o corpo só se transforma em
força útil se for, ao mesmo tempo, corpo produtivo e corpo submisso a esta forma de
exercício de poder capaz de operar na docilização dos corpos, forjar o sujeito próprio
à modernidade. Foucault chama de disciplina, a arte do detalhe que articulou uma
política de coerções com base no fechamento e ordenação dos espaços e, sobretudo,
na vigilância.
Partindo disso trataremos de analisar os principais pontos desses dois tipos de
sociedades. Para entendermos de forma mais precisa em que momento se deu a
necessidade de uma transição dessa sociedade disciplinar para uma de controle, além
de compreendermos como se constitui essa nova configuração de sociedade
36

contemporânea e como se dá a noção de dispositivos de vigilância e de controle na


atualidade interferindo diretamente na vida do indivíduo. Compreenderemos ainda na
esteira das análises do Foucault como Deleuze corroborou com essa transformação
da sociedade disciplinar para uma nova sociedade de controle até a atualidade.

2.1 SOCIEDADE DISCIPLINAR FOUCAULTIANA

O panoptismo tornou-se base central de alguns aspectos do pensamento


político de Foucault no ano de 1970. Nesse período o pensador francês parte para
uma análise sobre o panóptico8 de Jeramy Bentham (1748) através de três aspectos
complementares (vigilância, controle e correção) que segundo ele vão caracterizar as
chamadas relações de poder que existem por toda nossa sociedade.

Daí o efeito mais importante do Panóptico: induzir no detento um estado


consciente e permanente de visibilidade que assegura o funcionamento
automático do poder. Fazer com que a vigilância seja permanente em seus
efeitos, mesmo se é descontínua em sua ação; que a perfeição do poder
tenda a tornar inútil a atualidade de seu exercício; que esse aparelho
arquitetural seja uma máquina de criar e sustentar uma relação de poder
independente daquele que o exerce; enfim, que os detentos se encontrem
presos numa situação de poder de que eles mesmos são os portadores.
(FOUCAULT, 1987, p.224)

Em sua obra Vigiar e punir, Foucault reinscreve sua concepção daquilo o que
seria a prisão como instituição normalizadora e de que modo ela implicaria nos
panoptismos sociais a partir de seus próprios aspectos disciplinares, descrevendo-a
como um dos efeitos mais duradouros de uma sociedade disciplinar girando em torno
do panóptico através de poderes e saberes emergentes nas sociedades modernas,
culminando no processo de desenvolvimento das ciências humanas.

8 O Panóptico de Bentham é a figura arquitetural dessa composição. O princípio é conhecido: na


periferia uma construção em anel; no centro, uma torre; esta é vazada de largas janelas que se abrem
sobre a face interna do anel; a construção periférica é dividida em celas, cada uma atravessando toda
a espessura da construção; elas têm duas janelas, uma para o interior, correspondendo às janelas da
torre; outra, que dá para o exterior, permite que a luz atravesse a cela de lado a lado. Basta então
colocar um vigia na torre central, e em cada cela trancar um louco, um doente, um condenado, um
operário ou um escolar. Pelo efeito da contraluz, pode-se perceber da torre, recortando-se exatamente
sobre a claridade, as pequenas silhuetas cativas nas celas da periferia. Tantas jaulas, tantos pequenos
teatros, em que cada ator está sozinho, perfeitamente individualizado e constantemente visível. O
dispositivo panóptico organiza unidades espaciais que permitem ver sem parar e reconhecer
imediatamente.
37

Essa sociedade disciplinar surge, portanto, numa estrutura. Primeiro de uma


arquitetura (panóptico) que se transforma em arquétipo para um tipo de sociedade. O
homem inventa o espaço de excelência disciplinar, onde o olho do poder está sempre
atento, o espaço da disciplina é recortado, imóvel, fechado, o tempo é medido,
cronometrado, repetido, fiscalizado. Cada qual prende-se ao seu lugar e sua rotina,
permanentemente fiscalizados e vigiados. Foucault descreve metaforicamente esse
novo tipo de sociedade a partir da seguinte citação expressa na sua obra Vigiar e
punir:

O Panóptico é um zoológico real; o animal é substituído pelo homem, a


distribuição individual pelo grupamento específico e o rei pela maquinaria de
um poder furtivo. Fora essa diferença, o Panóptico, também, faz um trabalho
de naturalista. Permite estabelecer as diferenças: nos doentes, observar os
sintomas de cada um, sem que a proximidade dos leitos, a circulação dos
miasmas, os efeitos do contágio misturem os quadros clínicos; nas crianças,
anotar os desempenhos (sem que haja limitação ou cópia), perceber as
aptidões, apreciar os caracteres, estabelecer classificações rigorosas e, em
relação a uma evolução normal, distinguir o que é “preguiça e teimosia” do
que é “imbecilidade incurável”; nos operários, anotar as aptidões de cada um,
comparar o tempo que levam para fazer um serviço, e, se são pagos por dia,
calcular seu salário em vista disso. (FOUCAULT, 1987, p.226)

Por outro lado, o panóptico utiliza-se de uma série de recursos para o bom
adestramento disciplinar. “Ele pode ser utilizado como máquina de fazer experiências,
modificar o comportamento, treinar ou retreinar os indivíduos. Experimentar remédios
e verificar seus efeitos. O panóptico é uma máquina de dissociar o para ver - ser visto.”
(Foucault, 1987, p.225) Tenta diversas punições sobre os prisioneiros, segundo seus
crimes e temperamento e procurar as mais eficazes.
Além disso, “ensinar simultaneamente diversas técnicas aos operários,
estabelecer qual é a melhor”. (Foucault, 1987, p.227) O que nossa sociedade produz
de melhor? Indivíduos produtivos, claro. Dispusemos nossas instituições para a
formação de uma fábrica de subjetividades obedientes. A disciplina não quer, jamais,
reduzir as forças, ela quer selecioná-las, torná-las mais efetivas. Adestrar é dispor as
forças de um corpo para um determinado destino, fazê-lo responder à vigilância, à
punição e ao exame.

O exame está no centro os processos que constituem o indivíduo como efeito


e objeto de poder, como efeito e objeto de saber. É aquele que, combinando
vigilância hierárquica e sanção normalizadora, realiza as grandes funções
38

disciplinares de repartição e classificação, de extração máxima das forças e


do tempo, de acumulação genética contínua, de composição ótima das
aptidões. (FOUCAULT, 1987, p.216)

A sociedade disciplinar do ponto de vista econômico é produtivista, pois a partir


de suas normas condiciona e determina o uso da força produtora, disciplinando essa
força do trabalho através das instituições normalizadoras, transformando a força
corporal em força de produção, manipulando corpos e constituindo novas formas de
subjetividades, sequestrando o indivíduo da sua liberdade e fixando-o à norma, e essa
norma é o próprio instrumento através do qual os indivíduos são ligados aos aparelhos
de produção.
Foucault, fez uma análise sobre as instituições normalizadoras com um olhar
amplo e genealógico, buscando um entendimento sobre essa forma moderna de
reclusão e desse novo tipo de controle social que se exerce por meio da disciplina.
Nessa sociedade disciplinar os indivíduos são controlados pela força do olhar e a
efetividade desse dispositivo de vigilância (Panóptico) acontece graças aos seus
mecanismos de observação constituindo-se através de uma vigilância individual e
continua que controla e pune, tentando corrigir e transformar os indivíduos em função
de normas punitivas.
Fica evidente, portanto, que essa sociedade disciplinar veio fabricar regimes
normalizadores sobre o indivíduo, ganhando eficácia e capacidade de penetração no
comportamento dos homens, expandindo-se a regimes produtores de novos saberes
no que se diz respeito a todas frentes de poderes, formando novas formas de
subjetividades através de instituições normalizadoras, punitivas e vigilantes.

2.2 SOCIEDADE DE CONTROLE DELEUZEANA

Deleuze afirma que entramos em sociedades de controle que já não são


exatamente disciplinares. Entretanto, Foucault tinha afirmado que as sociedades
disciplinares são aquilo que estamos em vias de deixar para trás, aquilo que estamos
a deixar de ser. Isso quer dizer, o encerramento enquanto técnica principal das
sociedades de disciplina deixa de ser predominante. Deleuze chama atenção para
uma transformação específica. A sociedade disciplinar operava pelo encarceramento,
isto é, pelo confinamento massivo, o espaço fechado era o lugar da disciplina. A
39

generalização social da disciplina depende, no entanto, de alguma abertura. É preciso


que os fluxos de disciplina corram pelos espaços. Assim se apresenta a tendência da
disciplina em tornar-se Controle. Nesse sentido, a escola deixa de ser apenas o
espaço da educação das crianças, ela passa a envolver também a família, bem como
o hospital. Foucault já tinha apontado para isso com a biopolítica, enquanto um tipo
de gestão da vida como um todo. Por isso mesmo, Deleuze diz que Foucault já sabia
que as sociedades marcadamente disciplinares estavam chegando ao fim.
A sociedade de controle nasce da combinação entre disciplina e biopolítica.
Deleuze enxerga, portanto, um processo de refinamento da disciplina que acaba por
transformá-la em controle. A delimitação rigorosa das sociedades disciplinares ao
espaço e ao tempo soma-se ao controle da criação e do acontecimento. A invenção
só deve acontecer em horário comercial, a criatividade tem a empresa como lugar
definido, a diferença vale tanto quanto vende, a conceito é um comercial na televisão.

[...] As antigas sociedades de soberania manejavam máquinas simples,


alavancas, roldanas, relógios; mas as sociedades disciplinares recentes
tinham por equipamento máquinas energéticas, com o perigo passivo da
entropia e o perigo ativo da sabotagem; as sociedades de controle operam
por máquinas de uma terceira espécie, máquinas de informática e
computadores, cujo perigo passivo é a interferência, e o ativo a pirataria e a
introdução de vírus. Não é uma evolução tecnológica sem ser, mais
profundamente, uma mutação do capitalismo. É uma mutação já bem
conhecida que pode ser resumida assim: o capitalismo do século XIX é de
concentração, para a produção, e de propriedade. Por conseguinte, erige a
fábrica como meio de confinamento, o capitalista sendo o proprietário dos
meios de produção, mas também eventualmente proprietário de outros
espaços concebidos por analogia (a casa familiar do operário, a escola).
Quanto ao mercado, é conquistado ora por especialização, ora por
colonização, ora por redução dos custos de produção. Mas atualmente o
capitalismo não é mais dirigido para a produção, relegada com frequência à
periferia do Terceiro Mundo, mesmo sob as formas complexas do têxtil, da
metalurgia ou do petróleo. É um capitalismo de sobre-produção. Não compra
mais matéria-prima e já não vende produtos acabados: compra produtos
acabados, ou monta peças destacadas. O que ele quer vender são serviços,
e o que quer comprar são ações. Já não é um capitalismo dirigido para a
produção, mas para o produto, isto é, para a venda ou para o mercado. Por
isso ele é essencialmente dispersivo, e a fábrica cedeu lugar à empresa.
(DELEUZE, 1992, p. 219)

A questão é que a disciplina tem seus pontos-cegos. Ela confina forças, mas
não fluxos. Encarcera corpos, mas não ideias. Assim, a sociedade disciplinar entra
em crise porque é impossível conter a multiplicidade, o melhor jeito de escapar do
monstro enquanto modalidade de subjetivação é pela afirmação.
40

O controle é a nova maneira pela qual se exerce o poder e ele se afasta da


disciplina no que concerne à disposição do tempo e também do espaço. Se a disciplina
marcava o espaço por territorializações, o controle marca por processos de
desterritorialização9. Não se trata mais de capturar o virtual, como o “fora” entre corpo
e a potência. Não há mais fora. Para que o Controle seja contínuo ele não deve
apenas interferir na passagem do Virtual ao Atual, precisa represar a passagem. A
condução dos fluxos numa sociedade de controle é canalizada, sintonizada, por que
não se constitui um território onde a ação passe por um filtro, mas faz-se uma
introjeção do filtro. O Virtual deve ser tomado pela desterritorialização, isto é, a
potência de um corpo deve ser controlada a partir de dentro. Dá no mesmo dizer que
o que se deve capturar é o desejo.
Se a disciplina marcava o tempo pelo relógio, o controle percebe que o tempo
cronológico é, na verdade, pouco produtivo. É mais inteligente pensar qual o melhor
momento. Em que momento pode-se extrair mais de cada tipo de corpo? Para cada
corpo, uma medida. A captura do tempo se dará no campo da heterogênese. Você
rende mais à noite? Fique à vontade para fazer seu horário. A produção não se dá
mais em turnos, ela acontece o tempo inteiro.
É preciso falar também da mudança na produção de subjetividade. O normal é
produzido em espaço aberto. Não há mais passagem entre a escola, a faculdade e o
trabalho. Há uma espécie de conturbação afetiva, bem monótona. O controle
atravessa as paredes pelas ondas eletromagnéticas para fazer circular um número
ínfimo de afetos. Deleuze fala que o plano da vez é a educação nacional, isto significa,
precisamente, a entrega da escola à empresa. Nossas escolas devem produzir bons
“empreendedores de si”.

[...] Os diferentes internatos ou meios de confinamento pelos quais passa o


indivíduo são variáveis independentes: supõe-se que a cada vez ele

9 HARDT, M. A sociedade mundial de controle. In:ALLIES, Éric (org.). (2000), Gilles Deleuze: uma vida
filosófica. Rio de Janeiro, Editora 34, p. 361. Segundo a ótica apresentada por Deleuze e Guattari, o
capitalismo contemporâneo vive em um processo intenso de desterritorialização. O ter-ritório, a partir
desse contexto, não deve ser confundido com um mero espaço geográfico. Ele pode ser compreendido
por uma etnia, uma identidade ou mesmo um simples modo de conceber a vida, apropriado
existencialmente por um sujeito ou grupo. Significa dizer que o sistema capitalista é capaz como
ninguém de liberar desejos e ações para, em seguida, controlá-los (descodificação e
desterritorialização de um lado e sobrecodificação reterritorializante de outro).
41

recomece do zero, e a linguagem comum a todos esses meios existe, mas é


analógica. Ao passo que os diferentes modos de controle, os controlados,
são variações inseparáveis, formando um sistema de geometria variável cuja
linguagem é numérica (o que não quer dizer necessariamente binária). Os
confinamentos são moldes, distintas moldagens, mas os controles são uma
modulação, como uma moldagem auto-deformante que mudasse
continuamente, a cada instante, ou como uma peneira cujas malhas
mudassem de um ponto a outro. Isto se vê claramente na questão dos
salários: a fábrica era um corpo que levava suas forças internas a um ponto
de equilíbrio, o mais alto possível para a produção, o mais baixo possível para
os salários; mas numa sociedade de controle a empresa substituiu a fábrica,
e a empresa é uma alma, um gás. Sem dúvida a fábrica já conhecia o sistema
de prêmios, mas a empresa se esforça mais profundamente em impor uma
modulação para cada salário, num estado de perpétua metaestabilidade, que
passa por desafios, concursos e colóquios extremamente cômicos. Se os
jogos de televisão mais idiotas têm tanto sucesso é porque exprimem
adequadamente a situação de empresa. A fábrica constituía os indivíduos em
um só corpo, para a dupla vantagem do patronato que vigiava cada elemento
na massa, e dos sindicatos que mobilizavam uma massa de resistência; mas
a empresa introduz o tempo todo uma rivalidade inexpiável como sã
emulação, excelente motivação que contrapõe os indivíduos entre si e
atravessa cada um, dividindo-o em si mesmo. O princípio modulador do
"salário por mérito" tenta a própria Educação nacional: com efeito, assim
como a empresa substitui a fábrica, a formação permanente tende a substituir
a escola, e o controle contínuo substitui o exame. Este é o meio mais
garantido de entregar a escola à empresa. (DELEUZE, 1992, p. 226)

2.3 A SOCIEDADE DE CONTROLE E A NOÇÃO DE DISPOSITIVO

A chamada sociedade de controle se torna uma extensão da sociedade


disciplinar principalmente dentro do campo social de produção. Essa transição vai
envolver uma subjetividade que não está mais fixada na individualidade, ou seja, o
indivíduo não pertence a nenhuma identidade e pertence a todas. Mesmo fora do seu
local de trabalho, continua a ser intensamente governado pela lógica disciplinar. Essa
forma circular de iniciação de sociedades modernas dá lugar a modulação das
sociedades de controle contemporâneas nas quais nunca se termina nada, mas exige-
se do homem uma formação permanente.

As sociedades disciplinares são aquilo que estamos deixando para trás, o


que já não somos. Estamos entrando nas sociedades de controles, que
funcionam não mais por confinamento, mas por controle contínuo e
comunicação instantânea (DELEUZE, Conversações 1992, p. 220).

O ponto de partida para a compreensão do conceito de dispositivo buscamos


em Michel Foucault. Para ele, o dispositivo consiste numa rede que pode ser
estabelecida entre diferentes elementos, tais como: o poder em relação a qualquer
42

formação social, a relação entre fenômeno social e o sujeito e a relação entre discurso
e a prática, as ideias e as ações, atitudes e comportamentos. Para o filósofo francês,
o dispositivo é um mecanismo de poder com múltiplas dimensões em jogo e que
podiam ser percebidas no panóptico. Deleuze diz que um princípio geral de Foucault
é: “toda a forma é um composto de relacionamentos de forças”. (Foucault, 1987, p.
167) Assim os dispositivos sociais se multiplicam em nosso meio. Para Foucault, os
dispositivos são máquinas abstratas10 que com as relações que estabelecem se
misturam, geram sentidos na sociedade.
Em relação aos discursos na sociedade, Michel Foucault afirma que existem
procedimentos de exclusão e de controle (FOUCAULT, 1997) fazendo com que os
eles só possam ser compreendidos em relação ao meio em que se encontram. Para
além disso, existem também os procedimentos internos de seleção e controle, que
deixam as suas marcas. Nesse sentido, um determinado discurso para ser
compreendido necessita que seja explicitado o dispositivo, envolvendo os seus
contextos e seus códigos de linguagem. Para Foucault o mais importante nos
discursos é o fato de constituírem os seus objetos.
Eles são práticas que sistematicamente dão forma aos objetos sobre os quais
falam. Em relação ao panóptico, uma norma é imposta sem ser resultado da imposição
da vontade de ninguém. No dispositivo, entendido por Foucault, não contam as ações
individualizadas dos sujeitos envolvidos, mas sim as ações relacionadas e os
resultados do conjunto. Assim, as ações sociais não podem ser compreendidas como
dos indivíduos, como também dos dispositivos, em que cada um opera uma parte do
conjunto de ações que o constituem.
Na sociedade de controle os dispositivos funcionam na fluidez. A sua vigilância
acontece fora dos muros, ela atua de maneira livre em todas as esferas sociais. O
controle se mantém disciplinador, porém é contínuo e nômade, a vigilância da
atualidade se concretiza através da propagação de dispositivos tecnológicos
presentes em todos os lugares, através de câmeras ou redes de informação. O

10
Máquinas abstratas são os diagramas. Trata-se do mapa de relacionamentos de forças, mapa da
densidade, da intensidade, que procede por ligações primárias não localizáveis e que passa a cada
instante por todo e qualquer ponto, ou antes por toda e qualquer relação entre um ponto e outro
(Foucault, 1987, p. 61).
43

panóptipo contemporâneo permite uma vigilância mútua em que todos podem vigiar e
serem vigiados.
Nesse momento, a disciplina encontra-se incorporada no próprio indivíduo e
não mais punindo-o através de adestramento de corpos como acontecia na sociedade
disciplinar. Os novos dispositivos surtem efeitos espontâneos e a necessidade de
repressão ou autoritarismo impostos por um poder único já não existem mais. Na
atualidade o poder se revela a partir das relações diárias, assim como também nos
modos de sujeição de um indivíduo com o outro.

3 VIGILÂNCIA CONTEMPORÂNEA E A NOVA CONSTITUIÇÃO DA


SUBJETIVIDADE

Partimos agora do pressuposto de que as relações de poder são contextuais,


históricas e em constante transformação, refletiremos sobre a passagem da chamada
sociedade disciplinar para a sociedade de controle. Tomaremos como referência um
novo tipo de olhar sob a vigilância contemporânea na atualidade, por entendermos
que nela testemunhamos a constituição de um novo processo de subjetivação em que
a disciplina, antes circunscrita em um sistema fechado no caso em questão, a fábrica,
deu lugar a formas de controle que se estendem por todas as esferas da vida social.
Para nós, o suporte discursivo desse novo dispositivo de vigilância seria o
indivíduo como “empreendedor de si mesmo”. Nesse sentido, refletiremos sobre a
ocorrência de um novo processo de subjetivação e como novas formas de controle
passaram a ser exercidas na sociedade de controle, além de demonstrar como a
constituição dessas sociedades e de seus mecanismos de vigilância estão inseridos
na produção de subjetividades e forma de vida na sociedade contemporânea.

3.1 A VIGILÂNCIA CONTEMPORÂNEA

As configurações da sociedade contemporânea nos mostram através de sua


constituição e de seus indivíduos semelhanças ou processos formadores que se
espelham nas sociedades dos séculos XVII e XVIII. Como vimos anteriormente, o
conceito de vigilância no pensamento do filosofo francês Foucault, funciona como uma
44

espécie de tecnologia do poder que incidi sobre o corpo humano controlando seus
movimentos, suas atividades, seus aprendizados interferindo diretamente na vida
cotidiana de cada indivíduo vigiado e punido por tal mecanismo de controle. Diante
disso, partindo de um ponto de vista contemporâneo, percebemos que Foucault no
percurso de seus estudos sobre Vigiar e punir faz uma espécie de quase previsão
contemporânea dos dias atuais, identificando em sua sociedade moderna uma
problemática bastante semelhante e ao mesmo tempo distinta do que vivenciamos
hoje. O controle através de seus mecanismos de vigilância continua fazendo parte de
nosso cotidiano de maneira muito mais tecnológica e sofisticada, o que demonstra
uma evolução e o surgimento de novos dispositivos de controle na
contemporaneidade.
Foucault faz uma analogia a partir de um sistema de vigilância denominado
Panóptico. O mesmo sistema no qual Deleuze vai definir em seu livro sobre Foucault
como um regime de luz antes de ser uma figura de pedra, isto é, um agenciamento
visual e um meio luminoso do qual o vigia pode ver sem ser visto, no qual os detidos
podem ser vistos a cada instante sem verem a si próprios, uma espécie de torre central
e células periféricas. (Deleuze, 2005, pag.42). Esse tipo de mecanismo de poder ainda
que nos dias atuais esteja longe de ser apenas uma arquitetura de enclausuramento
fechado e disciplinador do século XVIII, permaneceu como uma extensão evoluída de
vigilância sob a configuração de diversos dispositivos espalhados onde quer que vá.
Das sociedades disciplinares que Foucault se debruçou é evidente que
sobraram resquícios de política de coerções com base em fechamentos e ordenação
dos espaços e sobretudo na vigilância.

As instituições controlavam segundo os critérios de distribuição, controle de


tempo e controle das gêneses, assim como também o objetivo destas
intervenções institucionais (religiosas, esportivas, escolares militares e
familiares) eram de constituir sujeitos da maneira como as instituições
queriam. (Foucault, 1987, pag.164)

Nos dias atuais, essa coerção não se dissipou completamente. É perceptível


que nossos corpos permanecem adestrados ainda que sob um novo olhar, pois na
sociedade contemporânea estas instituições sociais atravessaram os muros fechados
do século XVIII e o ato de vigiar e punir continuou produzindo novas formas de
subjetivação a partir de novos recursos impostos sobre o sujeito, por meio de sanções
45

normalizadoras, vigilâncias e exames através de instituições que regem a sociedade.


A vigilância contemporânea funciona agora de modo sorrateiro a ponto de tal
mecanismo fazer parte da vida social da população sem ser identificada. A relação
entre subjetividade e visibilidade ganha uma nova leitura com ajuda de novas
tecnologias comunicacionais, o olhar antes totalmente punitivo 11 e disciplinador se
transforma em um olhar altamente tecnológico capaz de produzir diversas formas de
modulações e subjetividades, principalmente no modo de como os indivíduos se
constituem na atualidade na relação um com o outro e consigo mesmo.
É perceptível que esses novos dispositivos de vigilância apenas deram
continuidade, ainda que de maneira distinta, há uma tendência que já havia sido
inaugurada na modernidade por Michael Foucault com objetivo semelhante de
produzir e moldar corpos a partir de novas formas de subjetivação por meio do controle
sobre o indivíduo vigiado. É valido ressaltar, que esses modos de dominação
chamado pelo pensador francês de mecanismos de vigilância se mantiveram
presentes desde a sociedade disciplinar, perpassando pela sociedade de controle de
Deleuze até chegar na sociedade contemporânea do século XXI. Intrinsicamente
incorporada na vida e na cultura dos homens, cada vez mais institucionalizado pelas
relações dominantes que os cercam em todos os setores socias da sociedade.
Podemos citar como exemplo os entretenimentos comunicacionais e vigilantes
da atualidade, que surgem como possíveis modos de segurança sobre a vida do
indivíduo, diferenciando-se veementemente daquela exposição teatral de julgamentos
e retaliações sobre o sujeito existente no poder de soberania12. Esse tipo de poder

11
No antigo sistema, o corpo dos condenados se tornava coisa do rei, sobre a qual o soberano imprimia
sua marca e deixava cair os efeitos de seu poder. Agora, ele será antes um bem social, punitivo, porém
disciplinador objeto de uma apropriação coletiva e útil. Que os condenados a alguma pena abaixo da
morte sejam condenados às obras públicas do país, por um tempo proporcional a seu crime. No suplício
corporal, o terror era o suporte do exemplo: medo físico, pavor coletivo, imagens que devem ser
gravadas na memória dos espectadores, como a marca na face ou no ombro do condenado. O suporte
do exemplo, agora, é a lição, o discurso, o sinal decifrável, a encenação e a exposição da moralidade
pública. Não é mais a restauração aterrorizante da soberania que vai sustentar a cerimônia do castigo,
é a reativação do Código, o reforço coletivo da ligação entre a ideia do crime e a ideia da pena.
(FOUCAULT, Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 129-130)
12 Poder soberano é um ritual público de dominação pelo terror: o objeto da pena criminal é o corpo do

condenado, mas o objetivo da pena criminal é a massa do povo, convocado para testemunhar a vitória
do soberano sobre o criminoso, o rebelde que ousou desafiar o poder. O processo medieval é
inquisitorial e secreto: uma sucessão de interrogatórios dirigidos para a confissão, sob juramento ou
sob tortura, em completa ignorância da acusação e das provas; mas a execução penal é pública, porque
o sofrimento do condenado, mensurado para reproduzir a atrocidade do crime, é um ritual político de
46

antes repressivo é, portanto, substituído por mecanismos de controle que governam


e asseguram a vida dos sujeitos, através de codificações de dados e transmissões
tecnológicas ligadas a uma rede mundial de computadores (Internet). Observamos,
pois, que houve uma extensão de modelos de sociedades que vão para além somente
de um campo repressivo e punitivo de maneira mais ampla e fora de um controle
restrito somente ao poder disciplinar.
O biopoder e a bioplítica foram imprescindíveis neste pontapé inicial de
transformação dos modelos de sociedades disciplinares para sociedades
disciplinadas e vigiadas, porém, não mais necessariamente violenta, carcerária ou
repressiva. Estas novas tecnologias de poder apareceram no final do século XVIII e
trouxeram uma extensa gama de regulamentações sobre a vida dos indivíduos, cujo
foco passou a não ser mais o corpo individualizado, mas sim o corpo coletivo.
Encarregando-se da preservação da vida e eliminando tudo aquilo que ameaçava o
bem-estar da população. Existe neste momento uma consciência de que o corpo do
homem deve ser preservado e não mais aniquilado, reconhecendo-se como alguém,
pertencente a uma espécie. Este novo cenário abriu espaço para uma biopolítica
voltada para a regulamentação dos processos das massas.
Desse modo a sociedade disciplinar de Foucault se expande para uma
sociedade de controle onde a relação de seus domínios, no que se diz respeito a
vigilância, o controle e o método, determinam agora novas formas de poder, em que
nesse momento o indivíduo passa a ser controlado mediante a novas formas de
subjetivação, em que o olhar sob o outro e o olhar sobre si mesmo está em toda parte
e não somente sob uma arquitetura de vigilância encarcerando sujeitos e dociliza
corpos.
A sociedade contemporânea está vigiada 24h por dia, o olhar do Grande
Irmão 13 (Big Brother) tomou conta dos nossos dias. Somos vigiados desde nossa casa

controle social pelo medo. (FOUCAULT, Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1987, p. 33-61)
13
Big Brother literalmente quer dizer Irmão Grande ou, segundo a tradução do nome na obra de George
Orwell, que citaremos a seguir, o Grande Irmão. Em inglês, o termo é uma referência ao irmão mais
velho e sugere, ao mesmo tempo, que este seja superior aos demais para proteger os ‘irmãozinhos’
menores. Há uma imagem do Grande Irmão, descrita no início de 1984, como o “rosto de um homem
de, aproximadamente, 45 anos, com espesso bigode preto e traços rústicos, mas atraentes”. Mais
adiante, a descrição é complementada: “um rosto pesado, calmo, protetor, com um sorriso escondido
por trás dos bigodes”. Essa imagem está em todos os cantos da sociedade na qual vive o herói Winston,
47

por meio de câmeras de segurança, nos bancos, hospitais, lojas, até mesmo no
tráfego de trânsito por dispositivos de monitoramento espalhados em toda cidade.
Esta nova tecnologia de poder, que é a vigilância da atualidade, obteve uma
evolução incomparável ao que estudamos até aqui sobre as sociedades disciplinares
e de controle, permitindo-nos entender que a disciplina repressiva sob o indivíduo
sofreu modificações bruscas, permanecendo eficaz através da coerção
institucionalizada dos olhares tecnológicos vigilantes, fazendo-se imprescindíveis nos
dias atuais principalmente no que se refere a produção de subjetividades
contemporâneas em que o indivíduo se deixa adestrar sem perceber os meios que o
controlam, de modo que o olhar do vigia, que via sem ser visto (Panóptico), permanece
vigilante, agora de maneira sutil e quase imperceptível.

3.1.1 O atual problema do vigiar

A vigilância na contemporaneidade contrasta diretamente com os dispositivos


vigilantes da modernidade em que a visibilidade sobre o indivíduo se tornou um
aspecto necessário na produção e na formação de novas identidades. Anteriormente,
verificamos que as instituições disciplinares se utilizaram do modelo panóptico como
máquina de vigilância para produzir modos de sujeição. “Constituindo individualidades
e subjetividades através de técnicas que permitem ao olho que ver sem ser visto,
efeitos de poder sobre o indivíduo em troca de coerção, a partir da exposição do seu
corpo encarcerado”. (Foucault, 1987, p.153)
Essa vigilância permanece na passagem da modernidade para a
contemporaneidade de maneira contínua, ainda que completamente distinta
comparada a toda trajetória desses mecanismos de vigilância. Desde o surgimento
dos meios de comunicação em massa ao tão idealizado acesso à rede mundial de
computadores, a internet. Diante de tais fatos aqui demarcados, compreendemos que
durante o processo de passagem temporal das sociedades anteriores até a atualidade
houve uma série de inversões, desvios e deslocamentos intrinsecamente,

publicada em cartazes imensos (espécies de outdoors), com olhos que, por todos os cantos,
perseguem aquele que o olha. ( CARLA MILANI DAMIÃO, Quem é o Grande Irmão?)
48

principalmente na relação entre os indivíduos, a subjetividade e a visibilidade.


Um dos grandes problemas atuais da vigilância contemporânea sobre a vida
do indivíduo, começa a partir de uma transição do enclausuramento completo dos
tempos modernos para uma espécie de controle aberto e continuo dos dias atuais, em
que o próprio indivíduo se mantém livremente controlado virtualmente por uma rede
ilimitada de comunicação manipulando modos de vida, abstraindo mentes e ao
mesmo tempo produz novos tipos de subjetividades através de uma exposição
induzida que escraviza o homem, seduzindo-o virtualmente por meio de diversos
atrativos espalhados na internet.
A liberdade nos vai sendo retirada sutilmente a ponto de não mais parecer um
valor predominante na cultura do indivíduo contemporâneo. Percebemos que existe
uma naturalização na produção de sujeição dos dias atuais transformando o indivíduo
sem que ele perceba que está sendo modificado. O olho do vigilante, que na
modernidade necessitava ser visto para obtenção de coercitividade e produção dos
sujeitos, hoje vigia na imanência de seus dispositivos tecnológicos manipulando
corpos sem ser notado.
Ao que no passado já nos referimos como espetáculos e arquibancadas com
plateias produzidos pelos reis soberanos, no qual o foco estava baseado
principalmente na visibilidade como dominação do corpo para o exercício repressivo
do poder, em contraposição, na atualidade, os espetáculos teatrais do século XXI
transformaram-se em câmeras tecnológicas que promovem uma exposição
generalizada dos indivíduos, dando visibilidade contínua aos modos de vida, roubando
de cena o principal foco da era da modernidade. A tal coerção disciplinadora para
transformar o sujeito em alvo de um poder sedutor, virtual e superficial. O controle,
neste momento, apodera-se da vida social do indivíduo, não se restringindo somente
ao tempo e ao espaço dedicado a dominação do corpo do homem, como foi visto na
sociedade disciplinar, agora o sujeito além de ser utilizado como mão de obra
capitalista, também está sujeitado a consumir os produtos fabricados por essa nova
sociedade de controle. Deleuze, em sua obra Conversações, reconhece como esse
novo regime de poder produz novas formas de subjetivação sobre o indivíduo
contemporâneo, afirmando:
49

O controle é de curto prazo e de rotação rápida, mas também contínuo e


ilimitado, ao passo que a disciplina era de longa duração, infinita e
descontínua, o homem não é mais o homem confinado, mas o é homem
endividado (DELEUZE, 1992, p.224)

Enxergamos até aqui características de uma continuidade ao que se passou


nas sociedades disciplinares da modernidade para a sociedade de controle da
contemporaneidade, assim como também veremos descontinuidades dos dias atuais
sobre os dispositivos modernos utilizados na era panóptica. Partimos, portanto, do
princípio de que na modernidade eram produzidas subjetividades interiorizadas no
indivíduo, de si para consigo mesmo, dentro de confinamentos com existência de
muros que separavam o lado de dentro das instituições de seu exterior.
Na contemporaneidade os dispositivos de vigilância contribuem para novas
formas de constituição do sujeito, sem que haja a necessidade de prisões ou
instituições fechadas. Eles agem de maneira exteriorizada, aberta e continua sob o
alcance de diversos tipos de olhares, com um intuito de um reconhecimento sobre a
vida do sujeito, monitorando e controlando o indivíduo sem que ele perceba que está
sendo vigiado. A vigilância é contínua através de monitoramento por câmeras, o que
afeta diretamente a sua privacidade, assim como também manipula o comportamento
ético e moral de cada indivíduo que está sujeitado a essa vigilância normalizadora.
Na contemporaneidade, a vigilância permanece presente em todos os lugares
do mundo, de modo sutil e, às vezes, quase imperceptível, principalmente depois do
surgimento da internet. Agora o indivíduo que antes na modernidade era vigiado e
manipulado em prol de um exame normalizador agindo sob sobre a vida dele, hoje
encontra-se também escravizado por uma rede poderosa de computadores, ainda que
não seja mais em um espaço fechado ou carcerário.
Um novo olhar vigilante liberta e ao mesmo tempo manipula o homem através
de seus novos dispositivos de poder. Esse poder atual ao mesmo tempo que assegura
a identidade do sujeito por trás de suas maquinas de controle, o expõe ao perigo
deixando-o a mercê de perfis falsos e informações vulneráveis existente na própria
rede tecnológica da atualidade. Lentamente a liberdade do indivíduo vai sendo
retirada e esse valor cultural da contemporaneidade vai sendo substituído por uma
estima necessária que é a sua própria segurança.
Esses novos dispositivos de vigilância além de trazerem uma sensação de
50

segurança a esses modos de vida, facilita a comunicação, aproximando pessoas


independente do seu espaço geográfico numa rapidez quase simultânea, porém
também distância e enquadra indivíduos em um mundo virtual solipsista ou em uma
espécie de confinamento contemporâneo. Fato esse que vem acarretando diversos
problemas sociais no que se refere o chamado mal do século XXI 14, e afeta milhões e
milhões de pessoas em todo o planeta, um tipo de enclausuramento mental do
indivíduo consigo mesmo, podendo ser também denominado como a depressão dos
dias atuais. Tal patologia chama atenção pra um número significativo de pessoas que
se isolam do mundo e sentem a necessidade de estarem sozinhas ainda que estejam
conectados virtualmente com um grande número de pessoas nessa gigantesca rede
de comunicação que é a internet.
Outro problema inquietante, dos tempos atuais, está baseado em como somos
afetados subjetivamente enquanto indivíduos por esta vigilância contínua nas nossas
vidas. Tal reflexão nos leva a pensar nessa pesquisa sobre alguns questionamentos
relevantes, como: de que maneira esse poder disciplinador interfere essencialmente
na vida de cada indivíduo e de que modo nos comportamos humanamente quando
percebemos que somos vigiados? Como agimos, mesmo estando conscientes dessas
diversas formas de vigiar em nosso cotidiano? Será que realmente existe uma
modificação ontológica quando estamos expostos a esses dispositivos vigilância?
Buscamos aqui um possível esclarecimento de como a exterioridade
contemporânea, através do uso dessas câmeras de videomonitoramento, podem
controlar e interferir, constituindo novas formas de produção de subjetividades.

14
Um elemento relevante a ser mencionado se refere à ocorrência de comorbidades nos usuários
patológicos de jogos eletrônicos e internet. Há um número crescente de pacientes dependentes
associados a depressão, suicídio, transtorno de ansiedade social, transtorno de ansiedade
generalizada40, transtorno obsessivo-compulsivo e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade
(TDAH). Os pesquisadores acreditam na possibilidade de que os usuários dependentes e com
depressão utilizem a tecnologia para aliviar os sintomas depressivos, tendo, por isso, maior chance de
serem acometidos por uma dependência tecnológica do que pessoas que não apresentem depressão.
Usuários com a autoestima comprometida também podem estar com maior risco de desenvolver tais
dependências. Isso pode ser devido ao fato de a internet (e jogos on-line com possibilidade de
conversação) possibilitar oportunidades de comunicação com menor risco de rejeição comparado aos
encontros face a face, implicando um possível efeito potencializador no desenvolvimento e manutenção
da psicopatologia. Vale salientar que o tempo gasto na internet para aqueles que apresentam
dependência normalmente é utilizado para sites de relacionamentos ou programas de bate-papo,
contudo não é incomum que eles também utilizem a internet para os jogos eletrônicos em rede. ( IGOR
LINS LEMOS, SUELY DE MELO SANTANA, Dependência de jogos eletrônicos: a possibilidade de um
novo diagnóstico psiquiátrico. 2011)
51

Portanto, o que nos move diante dessa problemática é refletir de que maneira estamos
sendo dominados e sujeitados por esses mecanismos de vigilância na
contemporaneidade. Deleuze (1925), em sua obra denominada Foucault, descreve
brilhantemente como se dá esse processo de subjetividade no que se refere as
relações formadas a partir dos estratos do saber, poder e pensamento, nesse
movimento intrínseco com o lado de fora, em uma relação absoluta que é também
não-relação. Quer dizer que não há um lado de dentro?

(...) Foucault não deixa de submeter a interioridade a uma crítica radical. Mas
um lado de dentro que seria mais profundo que todo mundo interior, assim
como o lado de fora é mais longínquo que todo mundo exterior? O lado de
fora não é um limite fixo, mas uma matéria móvel, animada de movimentos
peristálticos, de pregas e de dobras que constituem um lado de dentro: nada
além do lado de fora. As Palavras e as Coisas desenvolviam esse tema; se o
pensamento vem de fora e se mantém sempre no lado de fora, por que não
surgiria no lado de dentro, como o que ele não pensam e não pode pensar?
Também o impensado não está no exterior, mas no centro do pensamento,
como impossibilidade de pensar que duplica ou escava o lado de fora. Que
exista um lado de dentro do pensamento(impensado), é o que a era clássica
já dizia ao invocar o infinito, as diversas formas do infinito. E, a partir do século
XIX, que passam a ser dimensões da finitude que vão dobrar o lado de fora,
constituir uma “profundeza”, uma “espessura recolhida em si”, um lado de
dentro da vida, do trabalho e da linguagem, no qual o homem se aloja, ainda
que pra dormir, mas inversamente também, que se aloja no homem em vigília
“enquanto ser vivo, individuo no trabalho ou sujeito falante (DELEUZE, 2005,
p.103 e 104)

Percebemos em Deleuze que essa relação de exterioridade e interioridade é


uma dobra do infinito, uma prega da finitude que dá uma curvatura ao lado de fora e
constitui o lado de dentro. Deleuze em seus escritos sobre Foucault expõe a seguinte
citação na sua obra: “Em O Nascimento da Clínica Foucault já mostrava como a clínica
operava um afloramento do corpo, mas também como a anatomia patológica ia em
seguida, introduzir aí profundas dobras, que não ressuscitariam a velha interioridade
e constituiriam novo lado de dentro desse lado de fora”. (Deleuze, 2005, p.104).
Sabendo, portanto, que na contemporaneidade essas novas forma de produzir
subjetividades estão diretamente relacionadas com essa exterioridade dos
dispositivos vigilantes, pensamos que existe uma vulnerabilidade de exposição dos
indivíduos a partir de um controle de banco de dados que acessam uma identidade
pré-definida, adquirida por esse movimento existente do lado de fora, processando e
fazendo cruzamentos de conjuntos de informações, inicialmente impessoais,
52

possibilitando a identificação de tipos de populações, categorias, contextos etc. O que


ao mesmo tempo afeta a privacidade e o lado de dentro de cada sujeito imergindo-o
nesse dentro que seria uma espécie de prega do fora, produzindo novas
subjetividades nesse movimento do governo da vida.
Dessa maneira, panóptico Benthaniano, do século XIX, reinventou-se na
contemporaneidade pela necessidade de uma vigilância continua, que agora atua com
um objetivo transformador extensivo e intensivo no modo de viver, pensar e agir dos
indivíduos. Portanto, das categorias mencionadas acima, podemos citar as
constituídas em função de espaços geográficos, períodos de tempo, faixa etária,
hábitos de consumo, dados biológicos, genéticos e até criminais. Logo o indivíduo
permanece controlado através da antecipação de informações prévias sobre sua vida,
resultado da exterioridade dessa ação de vigilância que afeta diretamente no
comportamento do próprio indivíduo, podendo extrair ou projetar um novo tipo de
subjetividade, agora, talvez, com uma identidade e uma individualidade que não
estavam previamente presentes no mesmo.
Essa manipulação de corpo nos remete à sociedade de controle de Gilles
Deleuze na qual o indivíduo libertou-se de instituições fechadas, mas ao mesmo
tempo continuou sendo controlado por um poder disciplinar sem rosto e altamente
tecnológico. Na contemporaneidade, esse controle se mantem ainda dominante,
porém, agora, somos nós mesmos que nos deixamos sermos vigiados, consentindo
com este novo modo de vida oferecido pela sociedade atual, deixamos de ser apenas
vítimas ou marionetes deste jogo de forças para sermos conscientes de nosso silêncio
e de nossa omissão por conta da naturalidade e assim encaramos o que nos é imposto
nesse novo governo da vida. É perceptível que nesse momento existe uma troca de
movimento entre o sujeito e aquilo que naturalmente lhe é necessário nos dias atuais,
o meio social e suas tecnologias de vigilância agem sobre o indivíduo modificando-o,
produzindo novas formas de subjetividade contemporânea.
Do ponto de vista filosófico do autor francês Félix Guattari, sobre o conceito de
subjetividade apresentado em sua obra Micropolítica Cartografia dos Desejos, traz a
seguinte concepção.

A subjetividade não é passível de totalização ou de centralização no


indivíduo. Uma coisa é a individualização do corpo. Outra é a multiplicidade
53

dos agenciamentos da subjetivação: a subjetividade é essencialmente


fabricada e modelada no registro social. (Guattari & Rolnik, 1996, p. 31)

Ou seja, o autor relata ainda que com outras palavras a importância dessa
dobra de movimentos, em que o lado de fora nessa relação com o lado de dentro é
fundamental para a constituição do sujeito, de modo que

Na produção da fala, das imagens, da sensibilidade, na produção do desejo


não se cola absolutamente a essa representação do indivíduo. Essa
produção é adjacente a uma multiplicidade de agenciamentos sociais, a uma
multiplicidade de processos de produção maquínica, a mutações de
universos de valor e de universos históricos” (Idem. 1996, p. 31).

Pensamento semelhante ao que já mencionamos anteriormente, uma vez que


visto do ponto de vista Deleuzeano o que fundamenta a ideia do indivíduo não se
constituir somente a partir de sua interioridade, pelo contrário, essa constituição de
sua subjetividade está intrinsecamente relacionada com suas vivências sociais,
difundidas através de inúmeras características de subjetividade existentes dentro
desse imenso campo social em que vivemos.

3.1.2 A constituição da subjetividade contemporânea através da vigilância e do


controle

As instituições sociais da modernidade produziram sujeitos normalizados a


partir de uma vigilância fechada, roubando a liberdade do homem através de prisões
ou instituições normalizadoras, tornando-o submisso de um “poder disciplinar que
fabrica corpos através de uma técnica especifica de poder tomando o indivíduo como
objeto e instrumento de seu exercício”. (Foucault, 1987, p.195) Esse tipo de
constituição de subjetividade na modernidade se deu principalmente ao utilizar o
poder disciplinar em prol do fortalecimento do poder governante, submetendo o
indivíduo a regras e normas instauradas dentro das instituições espalhadas em toda
sociedade, por exemplo a escola, a igreja, o quartel etc. Pensar a liberdade na
contemporaneidade é ao mesmo tempo refletir sobre todas as sociedades que
estudamos até agora em nossa pesquisa, é olhar para atrás e recapitular sobre o
modo de como cada indivíduo sobreviveu a cada uma delas a partir das suas
punições, vigilâncias, disciplinas e controles.
54

Na contemporaneidade esse modo de constituição de subjetividade através da


vigilância deu continuidade a tudo que constatamos até aqui, porém, as instituições
dos dias atuais produzem indivíduos sociais livres de encarceramentos, mesmo que
ainda exista uma lógica disciplinar atuante sobre a vida de cada um deles. O indivíduo
contemporâneo continua governado por mecanismos de vigilância, em todos se
vigiam e tudo é vigiado através de inúmeros dispositivos presentes em toda
sociedade. Essa exposição diária atingiu um alcance incalculável, comparada a era
da sociedade moderna de Foucault. O principal olhar do vigilante tornou-se invisível,
ele é onividente e onipresente, domina a partir de um olhar multiforme de câmeras,
esses dispositivos, por sua vez, intensificaram-se, evoluíram-se, constituindo novas
formas de subjetividades em que o lado de fora (exterioridade) de modo sútil consegue
fácil acesso ao lado de dentro (interioridade) provocando uma dobra de movimentos
de sujeição na vida de cada sujeito exposto a essa visibilidade contínua do século
XXI.
Percebemos que houve uma transição e uma continuidade dos modos de
vigilância, desde a sociedade disciplinar até a sociedade contemporânea o sujeito que
era antes submetido a um encarceramento de repressão, vê-se hoje diante de uma
vigilância livre, aberta e contínua, em que o poder se exerce não somente na relação
com o outro, mas também na relação do sujeito consigo mesmo. A autovigilância se
constitui a partir desses novos mecanismos de poder que molda subjetividades,
despertando um efeito disciplinar sobre a vida do homem e do meio em que ele vive.
Neste momento, o indivíduo passa a ser monitorado a partir de seus pequenos gestos,
atitudes, hábitos, discursos, tarefas cotidianas e etc.
Tudo é controlado a partir de leis penais existente dentro do campo social em
que vivemos, ou seja, será penalizado aquele que for contra as regras e normas que
esse novo dispositivo de poder impõe, o que se pune na atualidade é tudo aquilo que
está inadequado a regra, o não conforme, o desvio e o considerado não normal.
Percebemos aqui uma continuidade do que já vimos na sociedade disciplinar de
Foucault, em “Os aparelhos disciplinares hierarquizam, numa relação mútua, os “bons
e os “maus” indivíduos. Através desta microeconomia de uma penalidade perpétua,
opera-se uma diferenciação que não é a dos atos, mas dos próprios indivíduos”
(Foucault, 1987, p.162).
55

A vigilância da sociedade contemporânea ultrapassa muros, ela é fluxo, móvel


e funciona também através de ondas eletromagnéticas proporcionando ao indivíduo
vigiado uma sensação de “falsa liberdade”, livres de amarras ou instituições fechadas.
Alguns exemplos desse tipo de vigilância dos dias atuais são os meios de
comunicação de massa, podemos citar: a TV, o rádio, a telefonia e principalmente a
internet. Esses veículos de comunicação contribuem como principais mecanismos de
controle social do século XXI, a partir deles estamos informados 24h por dia sobre os
principais acontecimentos existentes no mundo e ao mesmo tempo monitorados por
essa rede de conexão invisível e constante através dos computadores e das redes
sociais que dominaram a vida cotidiana de cada indivíduo.
Na atualidade, o mundo virtual confunde-se com o real, de tal modo que nos
uma mesma pessoa pode possuir diversos perfis diferentes. Assim sendo a tecnologia
abriu um leque de possibilidades no cotidiano e na vida do homem, a originalidade
perde força e dá espaço ao superficial. A exposição diária passa a ser uma
necessidade contínua, a rede social torna-se uma espécie de documento digital para
identificação de cada sujeito, o respeito pela privacidade do outro está ficando cada
vez mais escasso e o ser humano naturalmente passou a submeter-se a uma
exposição invasiva, diária e sem limites por meio de seu próprio consentimento.
Nessa problemática dos dias atuais, nos chama atenção para uma reflexão
sobre até que ponto os meios de comunicação e a internet ocuparam-se da vida de
cada sujeito e de que modo esses dispositivos de controle afetam na produção de
subjetividade de cada pessoa. Para nos ajudar nessa compreensão de dominação
tecnológica sobre o governo da vida do homem, apresentamos a seguir uma
concepção psicológica do ponto de vista da psicanalista e psicóloga Viviane Mosé, no
quadro Ser ou não ser?, apresentado pelo programa Fantástico, exibido no ano de
2006 em uma emissora de TV local, explicou como se dá o domínio desses
dispositivos tecnológicos na vida do homem através das câmeras e mecanismos de
controle infiltrados em toda sociedade 24h por dia. A psicanalista e psicóloga afirma:

Do satélite à ultrassonografia temos nossas vidas vigiadas desde o útero por


olhos sem rosto. O dia a dia registrado como num imenso Big Brother. E o
que tudo isso tem a ver com o poder? Vigilância e disciplina... E, então, com
essa consciência cada vez mais autocrítica, o homem torna-se seu próprio
carrasco... esta é a forma de tortura moderna. Mas a constante vigilância que
56

vivemos não é tudo. Mais do que vigiar, era preciso construir um sistema de
poder capaz de moldar um homem passivo, útil, disciplinado... o filósofo
francês Michel Foucault (1926-1984) chamou este processo de ‘poder
disciplinar’. O poder disciplinar é, antes de tudo, uma forma de organizar o
espaço físico e utiliza uma técnica que busca separar, dividir, para melhor
controlar... quando você ganha uma identidade, um CPF, um endereço onde
recebe conta de água, luz e telefone, passa a ser um ponto no mapa capaz
de ser rastreado, vigiado. Quanto mais um homem ganha cidadania, mais
exposto fica à vigilância... se antes o poder fazia valer sua força pelo
sofrimento físico, pela tortura, hoje ele não tem rosto. Não é mais o rei nem
o carrasco que detém o poder. Agora, ele está em todos os lugares: na
arquitetura, no sistema de educação, no olhar do outro sobre nós. Quanto
mais escondido, disfarçado, mais eficiente é o poder. Olhá-lo de frente, saber
como atua, é uma maneira de diminuir sua força.
(https://www.youtube.com/watch?v=HOkh4ia4Znk)

Diante disto, percebemos um desdobramento da sociedade disciplinar de


Foucault para a de controle de Deleuze até chegarmos na contemporaneidade que
nada mais é de que uma continuidade tecnológica evoluída do que já vivenciamos no
século XVIII. A vigilância sobre o homem sempre existiu, porém, é a forma de como
ela se manifesta em cada época que ocorre de maneira distinta, dependendo dos
meios e ferramentas existentes em cada período. Como vimos anteriormente não é
mais o rei soberano, nem o carrasco do tempo da soberania que detém o poder, nem
muito menos o olho do vigia, que vigiava sem ser visto. Agora o olho vigilante do poder
está em todo lugar e quanto mais invisível e disfarçado esse olho é, mais eficiente é
o seu poder, fato esse que diferencia completamente a contemporaneidade do
pensamento Foucaultiano da modernidade, em que o olhar central do modelo
panóptico representava o olho normalizador garatindo o funcionamento automático do
poder. Esse olhar do vigia era o grande olho público inscrito a uma ordem social de
normas e leis da qual ninguém estava plenamente livre.
57

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste ensaio monográfico, foi possível observar que somos constituídos e


produzidos subjetivamente por essa dobra de movimentos, que é aquilo que já somos
interiormente enquanto indivíduos e o que nos transformamos a partir de do que
vivenciamos na exterioridade e abstraímos do mundo durante a vida. Somos seres
humanos constantemente vigiados, nas ruas, por instituições disciplinares, pela
vizinhança, familiares, nos elevadores do shopping e não importa onde quer que nós
vamos. Pois existe uma relação de poder exercida a todo instante através de um
sistema que controla e manipula o no nosso dia a dia de maneira quase imperceptível.
A liberdade existe e é acessível sim a cada um de nós, porém ao mesmo tempo
existe uma prisão invisível que nos manipula sorrateiramente diante de nosso próprio
consentimento. Estamos cegos por uma busca incessante de realizar desejos,
conquistar o inatingível ou até mesmo por uma tentativa de exibir a vida perfeita e
ostentar bens materiais, o que importa nessa era é nos sentirmos aceitos ou nos
considerarmos “normais” diante dessa sociedade preconceituosa e altamente
capitalista.
Na sociedade contemporânea, o indivíduo sobrevive para o trabalho e vive para
o consumo de diversos tipos de mercadorias, sua vida resume-se em uma grande
empresa de negócios. Não temos mais tempo para refletirmos sobre nós mesmo ou
sobre o outro, estamos dominados por essa teia controladora e ao mesmo tempo
consumista. A sociedade do século XXI nada mais é que uma extensão tecnológica
sofisticada das sociedades disciplinares e de controle que estudamos aqui.
Pensamento que nos leva ao entendimento de que não houve, portanto, uma
ruptura definitiva na sucessão dos modos de vida de cada sujeito, mas sim uma
transição extensiva e evolutiva nos processos de constituição desses novos tipos de
subjetividades, assim como também houveram grandes transformações tecnológicas
em cada tipo de sociedade de acordo com seu tempo, espaço e períodos históricos
vivenciados em cada época.
Fica perceptível então, que desde o início das sociedades modernas, houve
uma revolução extraordinária no que se refere aos dispositivos tecnológicos e na
forma de sujeição dos seres humanos. Na modernidade os meios de comunicação
contribuíram para uma evolução ontológica dos indivíduos, o processo de
58

subjetivação da espécie humana se consolidou diante de uma sociedade tecnológica


e capitalista, desse modo as redes de informação dominaram a sociedade de controle
e se expandiram para sociedade contemporânea invadindo diretamente a vida
cotidiana de cada indivíduo sem pedir licença, trazendo uma gama de dispositivos
tecnológicos e assim afetando e sujeitando todos aqueles que estão em volta desse
mar virtual de vigilância da atualidade.
A realidade que vivenciamos é incomparável ao que já se experimentou nas
sociedades passadas ainda que possamos comparar semelhanças em alguns
aspectos. Todavia esse impacto tecnológico no que se diz respeito aos mecanismos
de vigilância da contemporaneidade vai de encontro a interioridade do indivíduo
produzindo novos saberes e novas processos de subjetivação, implicando
diretamente no modo de ser, de viver, de relacionar e de interagir socialmente.
Fica evidente que os indivíduos da atualidade mesmo de maneira livre e
espontânea continuam sendo moldados e transformados todos os dias diante dos
dispositivos de poder que regem a sociedade. Permanecemos influenciados por
mecanismos que controlam e governam a vida, e até mesmo modificados por relações
de forças microfísicas que um indivíduo passa a ter sobre o outro. É preciso, portanto,
que o ser humano saiba lidar com o fluxo intenso de instituições normalizadoras as
quais o cercam durante sua vida, com a finalidade de não se sintam excluídos e
separados dos padrões que a sociedade panóptica da contemporaneidade os impõe
ou tornarem-se marionetes nas mãos do olho vigilante que tudo ver.
Um exemplo de como essa sociedade se dá na atualidade é a imposição de
uma existência que precisa está vinculada a visibilidade, ou seja, atualmente é preciso
ser visto para ser notado, porque do contrário se corre o risco de ser menos aceito
diante da sociedade panóptica da contemporaneidade, a moda agora é ter o perfil da
rede social mais visitado, conseguir milhões de seguidores, possuir muitos likes e ser
o mais engajado da rede social.
Essas novas ferramentas virtuais estão incorporadas na vida cotidiana de cada
indivíduo promovendo novas formas de constituição de subjetividades cada vez mais
exteriorizadas, visando principalmente uma espécie de aceitação nas redes sociais
das quais o sujeito pertence. Todas essas práticas contemporâneas fazem com que
se amplie cada vez mais o modo de vigilância e ao mesmo tempo o controle constante
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sobre a vida de cada indivíduo. Portanto, existe uma grande necessidade de


compartilhamento social e de interatividade na vida desses indivíduos
contemporâneos, o que também de certa forma facilita a comunicação e a
possibilidade de estar cada vez mais visível pelo outro. Dessa forma, mesmo existindo
uma precaução dessas ferramentas no que se refere a privacidade, ainda assim o
mais interessante neste mundo virtual é estar exposto intimamente para que se possa
obter êxito em visibilidade tanto no setor pessoal como também no profissional.
Este olhar onipresente sobre o outro pode ser também chamado de
superego15, e um de seus principais atributos é vigiar e punir o modo de vida de cada
indivíduo. A sociedade, ao utilizar esta estrutura subjetiva, multiplica os seus
dispositivos de vigilância eletrônica e transforma-nos em objetos vistos e controláveis.
Então, por mais que estejamos enquadrados nos padrões de modos de vida impostos
pela sociedade, mais estaremos vigiados e controlados por essa rede de relação onde
poucos vigiam muitos, o que também reforça um novo olhar tecnológico dos atuais
mecanismos de vigilância. Percebemos, então, que essa vigilância da era digital
contrapondo com a disciplinar de Foucault, ela não somente domina corpos e adestra
sujeitos, mas, também, detém um grande domínio tecnológico sobre qualquer tipo de
banco de dados, através de coletas, registros ou classificação de informação deixados
naturalmente pelos próprios usuários dessa rede de relações.
Diante disto, constatamos que a vigilância já é um confinamento determinante
uma forma de ser, uma nova subjetividade, desencadeada através de diversas
relações de poder e saber. O poder na atualidade não busca mais somente adestrar
comportamentos. Entretanto, o poder continua buscando a produção de novos
saberes e essa produção ainda se dá pela vigilância, óbvio que não mais a partir de
adestramentos repressivos e punitivos, mas sim de ações praticadas pelos próprios
usuários dessa tecnologia digital, uma vez que é sob esse olhar discreto de quem nos
vigia, deixando passar desapercebido dados e informações pessoais que facilitam o
controle de nossas vidas.

15Superego designa na teoria psicanalítica uma das três instâncias dinâmicas do aparelho psíquico. é
o aspecto moral da personalidade do indivíduo, de acordo com a Teoria da Psicanálise de Sigmund
Freud. É a parte moral psique e representa os valores da sociedade. O superego divide-se em dois
subsistemas: o Ideal do ego, que dita o bem a ser procurado; e a consciência moral, que determina o
mal a ser evitado.
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É diante dessa vigilância virtual e contínua da contemporaneidade que nos


potencializamos e nos modificamos enquanto indivíduos e vivenciamos uma
sociedade com novas características tecnológicas de vigilância. Porém ainda com o
mesmo proposito que verificamos anteriormente na sociedade moderna de Foucault,
que visava o poder de controlar seus indivíduos em prol de novos saberes e de novas
constituição de subjetividades. É nítido que tal vigilância afeta subjetivamente o
indivíduo, provocando uma transmutação de um ser pensante que está sendo
observado em seu exterior para um ser que já é no íntimo da sua origem modificado
e sujeitado por essa nova rede de poder controladora e governadora de vidas.
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REFERÊNCIAS

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1996.

FOUCAULT, Michel. (2010a). História da sexualidade: A vontade de saber (Vol.


1). São Paulo: Edições Graal. (Originalmente publicado em 1976).

________, Michel. “Tabela ronde du 20 mai 1978”. Em: Provérbios e Escritos, t. III,
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Tradução de Horacio Pons. Buenos Aires: Fundo de Cultura Economica,
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Janeiro: Edições Graal, 2012.

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Microfísica do poder. Organização e tradução de Roberto Machado. 24 ed. Rio de
Janeiro: Graal,1979.

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