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FICHA CATALOGRAFICA ELAHORADA PELO SISTEMA DE BIBLIOTECAS DA UNICAMP DIRETORIA DE TRATAMENTO DA INFORMAGAO Bibliotecdvia: Maria Luicia Nery Dutra de Cascro = CRB» / 17240, P216F Patés, Luis Nicolau, A formaséo do Candomble: histéria ¢ ritual da nagio jeje na Bahia / Luis [Nicolau Parés.—3¢ed. rev. e ampliada ~ Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2018 1, Candomblé — Bahia, 2. Vodu — Bahia. 3. Etnicismo. I. Titulo cpp - 299.6098142 ISBN 978-85-268-1464-6 -390 Copyright © Luis Nicolau Parés Copyright © 2018 by Editora da Unicamp Dircitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19.2.1998, proibida a reprodusto total ou parcial sem autoriza¢a0, por escrito, dos detentores dos direitos Princed in Brazil. Foi feito o depésito legal. 24 edigio revista, 2007 Direitos reservados & Ediora da Unicamp Rua Caio Graco Prado, 50~ Campus Unicamp cep 13083-892 — Campinas ~ sp — Brasil Tel Pax: (19) 9921-7718/7728 woweditoraunicampcom.br — yendas@editora.unicemp br DO CALUNDU AO CANDOMBLE: 0 PROCESSO FORMATIVO DA RELIGIAO AFRO-BRASILEIRA A WACAO “ETHICA” A NAGAO DE CANDOMBLE | inimica dialégica de diferenciagio étnica entre as diversas nagées que vie- ‘4 analisando encontrou desde o principio um contexto privilegiado de ex- jyosio nos ajuntamentos festivos dos negros nas praticas religiosas de origem ‘siicana. Jano século XVII, numa carta bastante citada de Martinho de Mello + { stro, conde de Povolide, datada em 10 de junho de 1780, fala-se das festas Jy Iyreja do Rosario, no Recife, onde “os pretos divididos em NacGes e com ‘etrumentos préprios de cada uma dangam”.! Como acontece até hoje no J sndomblé, as nagées se dividiam e sc diferenciavam por meio de diversos sleientos rituais como lingua, cantos, dangas ¢ instrumentos, especialmente » (ambores. No natal de 1808, na vila de Santo Amaro, no Recéncavo Baiano, peintia a distingao dos batuques por nacoes.? Naqueles ditos dias Santos do Natal, desceram dos engenhos do distrito desta vily virios escravos de todas a nag6es, ¢ unindo-se em trés corporagdes com muitos Jou vila, segundo a sua nagdo, formaram trés diferentes ranchos, de atabaques € Fieerum os seus costumados brinquedos, ou dancas: a saber os geges, no sitio do Ssipimirim, os angolas por detras da capela do Rosério, e os nagds ¢ haussds na rua Je detris, junto ao alambique que tem de renda Thome Corréa de Mattos, sendo ete pineho o mais luzido.* Vemos, assim, como as identidades étnicas sempre encontraram no ritual formas de expressio e diferenciagio, De igual modo, as praticas de cardter idas como calundus, € depois como candomblés, foram um teligioso conhes slo expagos de contraste e diferenciagio dos mais importantes para a demar- vagio dos limites day diversas nagdes afticanas, ‘Tanto é assim que o conceito Wh LUIS NICOLAU PARES de nagdo foi, aos poucos, sendo limitado ao ambito dessas praticas religiosas e das congregagdes organizadas em torno delas. Quando, na segunda metade do século XIX, com o fim do tréfico eo decrés- cimo progressivo de afticanos no Brasil, as denominagées étnicas dos grupos afticanos deixaram de ser operacionais para a classe senhorial, clas persistiram entre os africanos e seus descendentes crioulos no Ambito de suas redes de so- lidariedade familiar e, sobrecudo, de praticas religiosas. A identidade étnica foi sendo acomodada Aquele territério de sociabilidade que era controlado exclusi- vamente pela populag4o negro-mestiga, em que ainda era possivel estabelecer relages de contraste internas. Vivaldo da Costa Lima, no seu ja classico artigo “O conceito de nagao nos Candomblés da Bahia”, foi o primeiro autor a chamar a atengdo sobre como, aos poucos, o termo “nag4o” “foi perdendo sua conotacio politica para se transformar num conceito quase exclusivamente teolégico. Nagao passou a set, desse modo, 0 padrao ideoldgico ¢ ritual dos terteitos de candomblé da Bahia’. Em outras palavras, nag4o passou a designar uma “modalidade de rito”, ou uma “forma organizacional definida em bases religiosas”.* Progressivamente, as denominagées de nacao deixaram de designar indivi duos compartilhando uma mesma terra de origem ou ascendéncia africana. pertencimento de uma pessoa a uma nao passou a depender do seu envol- vimento, normalmente marcado pela iniciagéo, com um terreiro onde, no culto, predominavam elementos rituais ¢ miticos originarios de uma determi nada terra africana, Como bem notou Lima, o parentesco biolégico foi subs- tituido pelo parentesco do santo, decorrente de processos inicidticos. Conse= quentemente, 0 conceito de nagio “religiosa” ficou estreitamente rclacionado com as diversas linhagens ou genealogias da familia de santo, através das quais “a norma dos ritos e 0 corpo doutrindrio” s4o, de uma forma ou de outray transmitidos.* Ora, devido & fluidez ¢ ao movimento de especialistas religiosos € praticas rituais de uma casa para outra, ¢ & possibilidade de um individuo ser parcial ou sucessivamente iniciado em terreiros de diversas ascendéncias, ¢ dificil acel- tar a ideia das nacdes de Candomblé como unidades estanques, homogéneas ¢ mutuamente exclusivas. Carneiro, em 1937, jd notava a crescente interpene= tragio das priticas religiosas: “hoje muitos candomblés nao mais se dedicam 2.uma s6 magéo, como antigamente, seja porque o chefe atual tem nagao dift- rente da do seu antecessor, ¢ naturalmente se dedica As duas”, seja pelas visitag dos especialistas religiosos de uma casa a outta, “o que fir que se homenageiem tais pessoas, tocando e dangando & mancira das suas reapectivas nagdes, JA nO é raro tocar-se para qualquer nagdo em qualquer eandomble”.' DO CALUNDU AO CANDOMBLE Essa flexibilidade levou a um grande ecletismo, sendo frequente um terreiro \lentificar-se com varias nagoes hipoteticamente exclusivas (i.¢., nagdo ketu- ingola-caboclo). Hoje, também é comum um terreito identificar-se com a uigto das casas “tradicionais” socialmente mais visiveis ¢ prestigiadas (i.e., hetu), independentemente de qualquer vinculo ritual de iniciagéo. Cada vez fais, a categoria de nagao é utilizada de forma ideoldgica, como uma estraté- it que responde a interesses de legitimacao social ¢ através da qual o grupo pode estabelecer aliancas com congregacoes prestigiosas ou dinamicas de con- {hupte com congrega¢Ges concorrentes, Nessa perspectiva, a categoria de nacao de Candomblé, embora associada | uma “modalidade de rito”, funciona como um importante fator de identi- ‘lade coletiva, tanto nas casas “tradicionais” como naquelas de fundagao mais tecente, Implica, portanto, ainda numa conotagio de cardter politico (no sen- io mais amplo do termo), ao mesmo tempo em que reproduz mecanismos ‘le competitividade e alinhamento solidério paralelos aos que operam nas dind- wleas de identificagéo étnica. O argumento que intentarei sustentar nos préximos capftulos, através do wano jeje, équea identidade das nagées “religiosas” de Candomblé, baseada na wticulagio de uma série de sinais diacriticos, compartilha a mesma ldgica lwimica de contraste inerentes aos processos de diferenciagao étnica. Mas jor fundamentar essa ideia € preciso melhor compreensio do processo for- juitive do Candomblé, assunto principal das proximas secdes. ALOUMAS CONSIDERACOES SOBRE AS INSTITUICOES RELIGIOSAS NA AREA VODUM Mux Weber sustentava que uma das principais funcionalidades da religiao é jovidenciar um sentido & existéncia do sofrimento ¢ algum meio para superé- Jo ou uanscendé-lo. Também Malinowski apontava para a religiio como aju- ly para suportar “sicuag6es de pressio emocional”. Num desenvolvimento linha interpretativa, pesquisadores da Africa central propuseram, nos dew a » 1960-1970, o modelo teérico conhecido como “complexo fortuna-infor- Wio” ou “Ventura-desyentura”, segundo o qual a atividade religiosa tem por uhjetivo nao s6 “a prevengio do infortiinio”, mas também “a maximizagio da hou sorte”, Perante os conflitos ¢ os “tempos de experiéncia dificil” (i.e., doen- «4 esterilidade, fracasso, destruigio, morte etc.), almeja-se propiciar “sauide, fecuindidade, seguranga psiquica, harmon poder, stazus e riqueza”, A abrangéncia conceitual do modelo “fortuna-infortinio”, também apli- Hivel ao estudo da religito da Africa ocldental, do “eatolicismo popular” ¢ das LUIS NICULAU FAKES religioes afro-brasileiras, questiona sua utilidade heuristica e seu interesse ana- Iftico, se ele nado consegue distinguir entre as diversas modalidades de religiao citadas. Entretanto, esse modelo ajuda a destacar e caracterizar um tipo de religiosidade que se preocupa com a sustentabilidade da vida neste mundo, ante a énfase das religides de revelagao (Cristianismo, Isla, Judaismo), mais interes sadas na salva¢ao eterna da alma no além.” Nao é aqui o lugar para fazer um repasse das teorias da antropologia da religido. Para fins expositivos, basta clarificar que neste trabalho a religiao send concebida como aquele conjunto de praticas que estabelecem uma interagao entre “este mundo” (dos humanos) e 0 “outro mundo” invisivel, habitado (ge= ralmente) por uma série de “entidades espirituais” responsdveis pela sustenta: bilidade da vida. O ritual, por sua vez, é definido como o meio estruturado € comportamental que viabiliza essa interacao.* Esse conceito de religiao tem a vantagem de incluir toda uma série de praticas, como a producao de amuletos, rituais de cura ou atividades de “feiticaria”, que desde o ponto de vista da tradi¢ao antropoldgica e também da ortodoxia das religides de revelacao difi- cilmente seriam cabfveis sob 0 rétulo de religiao. No entanto, nas sociedades africanas clas constituem parte integrante, as vezes central ¢ nao apenas peri> férica ou marginal, do sistema religioso. Podemos agora abordar o problema da institucionalizacao das praticas re ligiosas, entendendo instituicdo, conforme Mintz e Price, como “qualquer interagdo social regular ou ordenada que adquire um cardter normativo e que, porcanto, pode ser empregada para enfrentar necessidades recorrentes”.? Nas sociedades africanas diversas formas de atividade religiosa foram progressiva~ mente institucionalizadas, isto ¢, os valores ¢ praticas que visam 4 comunicagid com 0 “mundo invisivel” foram acomodados a certas formas de organizagad social relativamente estaveis que se perpetuaram para fins recorrentes. Para fins anal{ticos, podemos estabelecer uma polaridade distinguindo, por um lado, aquelas institui¢6es religiosas que contribuem para reforcar as estruturas de poder e o desenvolvimento de mecanismos de controle ¢ integrag4o social (no sentido durkheimiano) e, por outro, aquelas mais dinamicas ¢ transformativas (no sentido turneriano) que surgem, normalmente, na marginalidade social ¢ comportam um discurso contra-hegeménico. Utilizando a terminologia que Ioan M. Lewis usa no ambito dos cultos de possessao, poderfamos chamar as primeiras, instituicdes centrais, ¢ as segundas, instituigdes periféricas."” Consideremos, como exemplo de instituigao religiosa “central”, o culto de voduns no reino de Uida (Fida, Juda, Whydah), com eapital em Savi, nas tiltie mas décadas do século XVII, do qual existem varios relatos, como os de Bosman ¢ Barbot. Nesse reino, como no vizinho reino de Aludi (Ardea), 0 culto de wa BU CALURDU AU CARDUMDLE voduns estava indissociavelmente imbricado na organiza¢4o sociopolitica ¢ sancionaya a autoridade legal e moral do rei e dos chefes das linhagens. Em- bora 0 culto dos ancestrais, e em especial o dos reis, parega ter sido central, Hosman identifica trés “divindades publicas” principais: a serpente, as Arvores 0 mar, “Cada uma delas [...] tem a sua provincia particular [...] com esta diferenga apenas, que o mar eas drvores n4o podem interferir com aquile que ( responsabilidade da serpente, enquanto esta tem um influente poder sobre iqueles.” Isso significa que as divindades tinham Ambitos de atuagao especia- lizados, mas também que 0 corpo sacerdotal estava organizado e dividido se- undo uma estrutura hicrdrquica, provavelmente bastante competitiva. Dangbe, a serpente piton, divindade real e suprema em Uida, era responsé- vel, por exemplo, pela chuva e era invocada ‘para obter uma boa colheita”. As \rvores eram cultuadas e recebiam oferendas, “em tempos de doenga, especial- mente febres, para restabelecer a satide aos pacientes”, embora Dangbe também pudesse cumprir essa funcao, O mar era invocado “quando se enfurece € im- pede de trazer as mercadorias 4 costa, quando nao vém navios por um longo periodo e eles os esperam com impaciéncia’, Nessas ocasides, eram realizados jjrandes sactificios, jogando no mar todo tipo de oferendas, inclusive seres hu- tmanos. Norris, em 1789, também mencionou a intervengao dos sacerdotes nos oniculos e decisbes concernentes 4 guerra, Portanto, 0 corpo sacerdotal, tendo cm vista seu poder real ou imaginado sobre os ciclos agricolas, a satide, 0 co- inércio € a guerra, eta investido do mais alto status social, o que, de seu lado, |he permitia estabelecer um pacto social com o poder politico ou civil, 0 rei e 04 chefes dos diversos clas familiares, de forma que os tiltimos estavam obri- jados a providenciar os recursos necessirios para a subsisténcia dos primeiros."" Para isso, 0 rei de Uidd organizava procissées anuais ao templo de Dangbe, jas imediages de Savi, gascando grande fortuna em oferendas. Nessa dinamica, oy sacerdotes atuavam em alianga com membros da nobreza, que também tecebiam presentes do rei. O poder civil, representado pelos chefes das diversas coletividades familiares, tinha claro interesse em sustentar 0 culto religioso, que lhe petmitia recuperar parte dos pesados impostos cobrados pelo rei. A \nstituigdo religiosa funcionava como um mecanismo econdmico compensa- rio diante do poder absoluto da monarquia. As oferendas para as divindades (i.e, os sacerdotes) consistiam normalmente em “dinheiro, pecas de seda ou panos, todo tipo de mercadorias europeias ¢ afticanas, gado, produtos alimen- 2 tures ¢ bebids Ao mesmo tempo, 0 pacto social entre o poder civil € 0 religioso garantia {vel de devotos con- vo corpo sacerdoral um contingente humano nada despre No caso do templo sagrados as divindades, entre eles wna parte de escrave LUIS NICULAU PARES de Dangbe, em Savi, Bosman estimaya mais de mil vodiinsis ou esposas do yodum. A instituicao religiosa, portanto, estruturava-se em grande medida no rectutamento periddico dessas yodtinsis, recrutamento que se justificaya com base em princfpios religiosos, tendo por finalidade principal consagrar ritual- mente essas mulheres ao servigo das divindades através de complexos processos de iniciagéo. Mas, além da dimenséo religiosa, esse recrutamento tinha uma motivasao de ordem material, sendo que essas mulheres, ou seus parentes, contribufam “com todo tipo de produtos” para as atividades do templo, e “isso de forma téo abundante que os sacerdotes podem viver com fartura”.’? Podemos supor que no caso das vodtinsis escravas a sua contribuicao se desenvolvia em trabalhos de lavoura, servico doméstico ou outros. Portanto, a instituicgao do culto de voduns, baseada em oferendas as di- vindades ¢ em processos de iniciagao dos devotos, encobre uma dinamica de troca de recursos econémicos que justifica a sua existéncia e perpetuagao; € esse fato nao difere muito de certa dinamica inerente aos cultos de voduns contemporaneos, tanto no Benim como no Brasil. O processo de iniciagao em muitos casos, um dos meios mais importantes de subsisténcia de uma con gregagao religiosa. No caso de Uida, Bosman supée que o rei recebia dos sacer= dotes uma parte dos beneficios obtidos das familias das vodiinsis. Isso sugere uma circularidade dos recursos dos sacerdotes ao rei ¢ do rei aos sacerdotes. A percepgao iluminista, entre irénica ¢ sarcéstica, de Bosman sobre o fun- cionamento da instituicao religiosa em Uidd, que poderia ser chamada de pré-marxista por sua énfase em desmascarar as motivacées pecunidrias subja~ centes 4 dindmica do culto (“a religiao parece fundamentada apenas no prin= clpio do interesse”),"4 no deveria, no entanto, fazer-nos esquecet outras di- menses complementares. Embora a instituicdo funcionasse como um meca- nismo de controle ¢ exploragio - “o épio do povo”, como Marx chamava a religiao —, ela também garantia processos de integracdo social e oferecia assis- téncia, solucdes e referéncias conceituais e morais coerentes com as necessida- des bisicas da populacio diante dos “tempos de experiéncia diffcil” (secas, guerras, enfermidade, morte etc.). O que me interessa destacar aqui ¢ que certas sociedades da Africa ociden- tal, especialmente aquelas localizadas perto do litoral, desenvolveram pro gressivamente complexas instituicées religiosas, fundamentais para sua or- ganizacao sociopolitico-econdmica e, portanto, “centrais” no sistema de relagoes sociais. O caso do culto de voduns, em Uidd, no século XVII, é um exemplo desse tipo instituicio religiosa complexa, entendendo por complexidade um ados hs. divindades (templos com altares); 2) um corpo sieerdonil hietarquizado, na sistema organizado com base em: 1) espagos sagrados estiveis dedi FRE Sm eee: maioria homens, no comando; 3) uma coletividade de devotos ou yodtinsis, a maioria mulheres; 4) uma série de atividades rituais periddicas, como procis- oes anuais, toques de tambor ¢ dangas puiblicas com manifestacoes das di- vindades no corpo das vodiinsis; 5) um culto inicidtico e 6) oferendas as divin- ades, sendo que essas duas tltimas caracteristicas encobrem a estratégia de roca de recutsos entre o poder civil e o poder religioso. Paralelamente a essas instituicées religiosas “centrais”, podem aparecer os cultos que Lewis chama de “periféricos” ¢ que estabelecem relacées dialéticas, ou de contraste, com os primeiros. De acordo com esse autor, os cultos de possessdo centrais, cujos participantes so normalmente homens competindo pelo poder ¢ autoridade, funcionam como instrumento de controle social, enquanto 08 cultos periféricos, cujos participantes so normalmente grupos subalternos — como mulheres ou homossexuais — funcionam como uma forma titualizada de protesto ou rebeliao."® Se esse modelo n4o se aplica com facili- dade a todos os contextos, ele serve, por outro lado, para destacar a possivel simultaneidade, ¢ até complementaridade, numa mesma sociedade, de varias instituigées teligiosas concorrentes € as consequentes negociacées € conflitos entre seus agentes sociais. Para ilustrar essa dinamica podemos tomar o caso do culto do vodum Sak- jpata, no reino do Daomé. Apés a conquista dos reinos de Aladé ¢ Uida, na década de 1720, Agaja € © seu sucessor, Tegbesu, adotaram uma politica de \propriacao dos cultos dos povos submetidos, levando muitas vezes seus alta- tes ¢ sacerdotes a Abomé, a capital do reino. Essa politica de importagao de cultos alheios estava baseada numa estratégia de acumulagio de poder religioso, nas visava também aplacar a possivel cdlera e vinganca das divindades dos povos vencidos, Ao mesmo tempo funcionava como forma de manter um controle efetivo sobre essa pluralidade de congregagées religiosas, algumas \lelas percebidas como uma ameaca ¢ potencial foco de contestagio ao poder central de Abomé. O rei Tegbesu foi responsdvel pelo estabelecimento do udjaho (ajaxo), ministro dos cultos de voduns e chefe da policia secreta do rei Como diz Maupoil, foi elaborado um “plano de submissio dos altares a0 tro- ho”, ou, em termos de Maurice Gléla, os cultos de yoduns foram sujeitos a ‘am controle de policia administrativa’.!° Esse processo foi acompanhado de rganizacio hierarquica das miltiplas divindades existentes de acordo légico, colocando no nivel maximo o culto dos ancestrais Lo do culto do casal Mawu-Lissé, a0 qual os cultos res- um: com um modelo genea reais (Nesuhue), ao tantes estavam subordinados (yer cap, 7). Desse modo, pretendia-se neutralizar 0 poder de cercas instituigdes religio- neagar o poder central. O caso mais ou “cultos periféricos” que pudew LUIS NICOLAU PARES notdvel foi o do vodum Sakpata. Com a aparigéo da variola na 4rea gbe, tral zida pelos europeus no inicio do século XVII, esse vodum, originalmente liga~ do ao culto dos ancestrais ¢ da terra, foi progressivamente associado as epide mias dessa doenga que assolatam regularmente o Daomé. Os sacerdotes de Sakpata eram as nicas pessoas capazes de intervir em casos de epidemias, sendo responsdveis pelas curas individuais, pelos rituais para aplacar a célera da divindade ¢ pelas festas de agradecimento para aqueles que escapavam da morte ¢ que, alids, passavam a ser adeptos do vodum. Isso fez com que as con~ gregacoes de Sakpata conhecessem uma grande expansio ¢ popularidade. Se a isso adicionarmos a ctenga de que os sacerdotes de Sakpata eram decentores do conhecimento esotérico para castigar com a varfola, podemos entender por que esse culto de temido poder foi percebido como uma ameaga para a mo» narquia daomeana. Como aponta Claude Lepine, Sakpata apareceu aos poucos como o tinico ¢ verdadeito “tei da terra”, contestador do poder dos usurpadores daomeanos que néo respeitavam os reis ou “donos da terra” dos povos veneidos, Tradicdes daomeanas reportam que nos tempos de Agaja houve “numerosag conspiragées lideradas por sacerdotes de Sakpata, muitos deles sendo expulsos do pais; muitos trabalhos magicos cram realizados nos templos de Sakpata com © fim de acabar com Agaja”. Apenas no século XVII, dos cinco reis agassuvi que reinaram no Daomé quatro pegaram a varfola, sendo que trés morreram) dela, Sakpata “tornou-se rapidamente uma espécie de simbolo para todos aque= les que estavam descontentes com a monarquia de Abomé”. Os reis do Daomé nunca accitaram casar com uma mulher consagrada @ esse vodum, nunca atribuiram qualquer cargo a um adepto desse vodum ¢ varios deles mandaram tirar todos os altares de Sakpata da cidade de Abomé e instald-los fora dos muros. Oscilavam entre a vontade de exterminar 0 culto 0 medo de nao poder lidar com as epidemias sem a ajuda dos seus sacerdotes, Como observa Lepine, durante o reinado de Agongolo (1789-1797) as epidemias de varfola foram muito violentas ¢ os sacerdotes de Sakpata ganharam considerével importincia, tanto que o rei seguinte, Adandozan (1797-1818), mandou expulsé-los e levd-los acorrentados até Adamé, declarando que no Daomé nao podia haver dois reis. Mas Ghezo (1818-1858), diante da gravidade das epidemias que se succdiam, mandow trazer Sakpata de volta, apés ter consultado Fa, Sob o reinado de Glele (1858-1889) 0 culto de Sakpata foi proibido.'” Esse exemplo mostra como, diante de uma instituigio religiosa centraliz, dae hierdrquica, surgem instituigées periféricas, contrahegemOnicas, concor rentes ¢ complementares, que historieamenté podem mudar sua posigao de \lades € instituicées religiosas ¢ que, civilizagdes ou superestruturas, nos termos de Bastides eva nos termos de Durkheim). Isto é, na forma de meméria e de experiéncia indi- vidualizada, os esctavos levaram “fragmentos de cultura’, porém desprovidos das instituig6es sociais que Ihes davam expresso. Como apontam Mintz ¢ DO CALUNDU AU CANDUMBLE marginalidade adquirindo maior centralidade, ou vice-versa. Além da relativa cstabilidade de um sistema religioso legitimado pelo poder politico, as insti- \uig6es religiosas estéo sempre sujeitas a dinamicas internas de mudanca. No entanto, fica claro que as praticas religiosas se organizam ¢ desenvolvem a partir da existéncia de instituicdes so is que garantem a sua expresso. AS PRATICAS RELIGIOSAS DE ORIGEM AFRICANA NO BRASIL DO SECULO XVIII No caso da didspora forgada da populacéo afticana no Brasil temos uma situa- gio singular na qual diversos grupos humanos foram deslocados de suas socie- no entanto, trasladaram para 0 novo es- saco social uma pluralidade de culturas (valores e préticas, nos meus termos: representacécs coletivas, Price, seguindo de perto a ideia geral de Bastide, a formagao de uma socieda- de afto-brasileira 56 se deu quando se reconstrufram noyas instituigdes ou, nas palavras de Bastide, com a criagéo de estruturas sociais complexas (infraestru- {uras) que acomodassem as miiltiplas culturas africanas (superestruturas) tra- sidas por individuos ou grupos de escravos."* Paralelamente, podemos dizer duc a constituigéo de uma comunidade religiosa “afto-brasileira’, 0 que hoje chamamos povo de santo, é resultado do processo de reconstrucdo de novas instituigdes teligiosas por essa pluralidade de fragmentos culturais, Mas quais so essas “instituig6es”? Bastide fala de um primeiro estagto de adaptagaa ao tedor dos bacuques, cantos ¢ irmandades catélicas, ede um se- jundo estagio de criagdo correspondente a forma¢io de estruturas sociais com- jlexas como calundus e candomblés, proceso no qual, aponta o autor, 95 li- \hertos tiveram um papel decisive. Na verdade, como veremos, 0s dois estigios jnarecem sobrepor-se, sendo que os calundus de origem africana se organizaram paralela ou simultaneamente aos batuques de divertimento ¢ as folias das ir- swandades catélicas. Bastide também nota que esse processo se deu sobretudo ho contexto urbano ou nas plantagdes de acticar, onde se concentrava grande quantidade de escravos, em contraste com as Zonas de smi; ide sertéo (onde predominava a economia pec uiria) ou das plantagdes mais tardias de café no sul do pats,” ine Se retomarmos o argumento inielal do “complexo fortuna-infortinio”, diremos que essa reconstrugaoy relnvengio ou reinstitucionali: agao das reli- EU!) MICULAU PARES gides africanas no Brasil ocorreu nao s6 como uma forma coletiva de resistén- cia cultural (assistematica na maioria dos casos e consciente em certos indivi | duos ou circulos relativamente restritos), mas, em primeira instncia, como uma necessidade para enfrentar o infortiinio ou os “tempos de experiéncia dificil”, dos quais a escravidao é sem diivida um dos casos mais extremos, A. reatualizagao parcial de préticas religiosas de origem afticana, com a sua longa ¢ variada tradic40 no Ambito da cura, ou do que hoje chamarfamos trabalho assistencial, tornou-se, assim, inevitdvel. Nao foi por acaso que as praticas de “curandeitismo” ¢ os rituais funerdrios foram alguns dos aspectos religiosos africanos que com mais persisténcia se reproduziram nas Américas. Também nao foi por acaso que a populacao negra recorreu as irmandades catélicas que, além de outras vantagens ¢ fangées, garantiam, sobretudo, assistéencia aos enfermos ¢ um enterro decente, Além dos aspectos terapéuticos e funerdrios envolvidos na atividade reli- giosa, encontramos nas congregacées, quer fossem irmandades catdlicas ou calundus, um fator de integragéo ou coesio social que se tornou um elemento cada vez mais significativo ¢ determinante para a perpetuacao dessas organi- rages coletivas. Estariamos aqui no outro polo do “complexo fortuna-infor- tiinio”, que visaria 4 “maximizacao da boa sorte”. Tanto as festas e folias das irmandades catdlicas aceitas oficialmente como os batuques ou calundus semi- clandestinos, mas relativamente tolerados, constituiam atividades coletivas voltadas ao piiblico. Eram eventos espetaculares que favoreciam a visibilidade social de certos individuos ou grupos e ofereciam um espaco institucionalizado para a concorréncia na procura de status e poder. Como sabemos, na cosmo- logia afticana a acumulagao de poder ¢ riquezas materiais era interpretada € alorizada como sinal do favor dos deuses ¢ prova da “forga” do individuo, Nas malhas da complexa estrutura do clientelismo existente nas irmandades, em que 0 patrono branco estabelecia um sistema de troca de favores com os seus protegidos escravos ¢ libertos, oferecia-se um espaco para a ascensio social ea procura de poder.*” Também no ambito restrito da comunidade negro-mestiga, ha organi agio de batuques ¢ calundus existia um espaco para dinamicas mi- cropoliticas com criacao de hierarquias c formas de clientelismo negro para- entelismo oferecido pelos brancos nas irmandades. Essa procura de visibilidade social ¢ poder, um dos grandes drive: ou impulsos humanos que fesponde por uma parte importante da dindmica social, contribuiu, sem dtivi- da, para reforgar o funcionamento de instituigées que permitiam sua expressio, lelas ao cl As irmandades de homens negros foram um espago de sociabilidade, uma forma institucionalizada de organi io dos pretos, aceita e até encorajada pelas classes dominantes, Certamente, como apy ta Karasch em relagio aos Wo UU LALURUU AU CAND UMpER: escravos do Rio de Janeiro, uma parte dos africanos, fosse por wi i be bida na propria Africa ou na sua chegada ao Brasil, podia oe Mis sae tlico e atuar com uma devocio “sincera” motivada por esses re ie a turais. De fato, a devogao catdlica dos santos, baseada no eaniplexo dap 7 messa” e na relac4o interpessoal do individuo com intermediarios ee capazes de resolver os problemas do cotidiano, ee eae. Jhanga com as dinamicas estabelecidas entre dlevetos c divin les i ar F'ssa homologia certamente facilitou a conversao religiosa, aa ee profunda, de certos individuos, ¢ nao ha motivos para duvidar da e: : licos convictos." tnaioria, n4o sofria uma conversao tao radical. Eles pecans sa ean vores de forma apenas superficial, certas crengas ¢ habitos catolicos a a com os quais foram educados na Africa, estabelecendo ee fe a conceituais, por vezes até identificagées, entre os dois ee rel ee ae cumulagao de recursos espirituais diferenciados, alids caracter! Le ee teligides africanas e também do catolicismo popular, a ce es ar rlamente como uma contradigao, mas como uma estrategia elicaz, ne 2 coma adversidade ¢ propiciar a boa fortuna. Para esvae Pespanolt He an para parte delas, a participagéo nas irmandades nao cra apenas uma ie a ou uma estratégia de ocultago de suas “verdadeiras eee age . ie dios santos constitufa também parte integral da sua religiosidade. es os significa que nao existisse outra parte de afticanos que Stel Bae a efetivamente para encobrir da camada senhorial suas “yerdadeiras . : 1 priticas, Tanto num caso como no outro, nos bastidores das irmandades, barroca expressio catdlica, essas pessoas encontravam um espago ee para a perpetuagao de valores, disposigoes aoa cae aa a concepgées sobre a pessoa, formas de expressio, gestuali ta oe Pe ie culturas afticanas, aspectos esses que se imbricavam indissociavelmen ere mul cacn Quit Fatta gad nade coor pies «ue nao se ajustavam aos canones ¢ regras da teologia catélica: os ae oe tedes sociais dos negros que se articulavam nas itmandades a y provayelmente as mesmas que podiam garantir a organizacao de ae e ‘outras praticas religiosas que aos olhos dos afticanos ae ae a - « para alguns até mais ~ quanto a devogao aos santos catélicos. A dup ae crioulos nos desfiles e procissées das irmandades : i icanos ¢ cipagio de muitos aft nos des ve ae tundus ou dangas “supersticiosas” nao era vivida, como ja foi di 5 benéfica de recursos con- © nos como uma contradigho, mas come una justaposi EARS ceituais para lidar com a adversidade do cotidiano. O sincretismo afro-catélic do Candomblé contemporaneo encontra as suas raizes nessa duplicidade praticas surgidas ainda no século XVII e que se desenvolveram principalment no século XVIII. Quando, em 1765, a Confraria do Senhor Bom Jesus dos Martirios de H mens Pretos de Nagao Gege de Cachoeira encaminhou a peticéo para a con firmagao do seu compromisso 4 Mesa de Consciéncia e Ordens em Lisboa, ay autoridades eclesidsticas locais foram contrarias a constituigao da “agremiagao!) A petigao foi acompanhada de uma nota que recomendava as autoridades por tuguesas rechagarem a confirmagao, sob a alegacao de que os jejes “so tirados do paganismo de Africa e sempre lhes fica uma propensao para coisas supers- ticiosas”, sendo, por isso, conyeniente manté-los sujeitos a disciplina do ordind- tio (bispo). Esse “paganismo” e essas “coisas supersticiosas” exam talyez uma. alusao aos batuques de divertimento que acompanhavam as folias e prociss6es catélicas, com as suas dangas, cantos ¢ instrumentos préprios de cada nagdo, Contudo, era mais provavel que fizessem referéncia a praticas clandestinas envolvendo formas de “idolatria” que a Igreja Catélica vinha demonizando desde o século anterior e que eram, normalmente, referidas como “feiticaria’.!! A Igreja nao estabelecia qualquer distingao entre aquelas prdticas com fi- nalidades preventivas, propiciatérias ¢ terapéuticas, como a produgao de amu» letos ou os processos de cura, ¢ as praticas que, embora semelhantes as primel- tas na sua manipula¢ao de complexos materiais (fcitigos), tinham uma inten cionalidade de carater maléfico ou antisocial, que poderiam ser classificadas de “feiticaria” stricto sensu, Cabe notar que a ameaga real ou imaginada da feitigaria (no seu sentido agressivo e antisocial) jogou um papel importante nas relagdes entre senhores ¢ escravos, mas também intervinha amidde nas esferas micropoliticas dos africanos, por exemplo, nas rivalidades pelo poder nas irmandades,™* A possibilidade de ser atingido por praticas de feitigaria, ou 0 desejo de se vingar de uma suposta agressao mistica propiciavam uma ambigua mistura de atitudes defensivas ¢ ofensivas. O medo era 0 substrato psicolégico que sus- tentava a feiticaria ¢ podia ser sabiamente manipulado pelos especialistas reli- giosos, grandes especialistas também da mente. Como eles tinham conhecimen- tos de farmacopeia e uma longa tradicao na producéo de venenos, os medos nao eram sempre infundados, Nesse sentido, a feiticaria dos jejes foi sempre uma das mais reputadas e temidas. Como veremos nos proximos capitulos, a dinamica imposta pela ameaca da feiticaria persistin ao longo dos séculos no Ambito das congregagées religiosas jejes, aparecendo especialmente nos moe mentos das disputas sucessdrias pela lideranga dessas comunidades, DU CALUNUU AU LANDUMBLE No inicio do século XVII falava-se da eficacia dos “escravos feiticeiros” no \wo de ervas, Em 1728, Nuno Marques Pereira, o Peregrino das Américas, es- ‘\eveu sobre “ritos supersticiosos e gentilicos” dos africanos e em 1761 um suvidor de Ihéus mandava prender “pretos feiticeiros”, especialistas nas “artes diabélicas? de adivinhar e curar.2° Outro termo, de origem angola, frequente- inente utilizado nos autos da Inquisigao dos séculos XVII e XVIII para designar «sas praticas, era “calundu”. Laura de Mello e Souza estudou em detalhe essa slocumentagao, registrando em Minas Gerais, entre 1725 e 1750, nove casos le acusacao de calundu.2’ Na Bahia, ja no século XV, Gregério de Mattos ia: “Que de quilombos que tenho/ Com mestres supetlativos/ Nos quais rsina de noite/ Os calundus € feitigos”. Em 1685, a parda Clara Garcez, vitiva, cra denunciada por ter em casa um culto de criatura ou de pau de barro”, em torno do qual vivia “curando a todos que a sua casa vinham doentes, usando de calundus e bonifrates”. Entre \) piticas de cura havia, por um lado, atividades apenas preventivas — como \ claboragao de amuletos ou bolsas de mandinga —, outras propriamente tera- jluticas — envolvendo a elaboragao de remédios (externos € internos) — e, subretudo, a pratica do exorcismo, referida amitide como “tirar 0 diabo do corpo”. Técnicas como o sopro, a sucgao, esfregas ou outras formas de fazer expelir (vomitar, defecar) eram usadas para expulsar do corpo humano os es- piritos malignos, considerados como causa da doenga. Embora 0 exorcismo foyse comum as tradic6es amerindia, catélica e africana, somente aqueles casos que envolyiam “deménios africanos” ou praticantes africanos eram designados como calundus. Na década de 1740, em Salvador, o carmelita frei Luis de Na- sang, ele préprio exorcista, recomendava que escravos trazidos a cle fossem {iitar-se em “calundus”, pois “os deménios africanos” nao faziam parte da sua especialidade.?” No Rio, em 1772, nos autos do processo contra uma calunduzeira de nome \na Maria da Conceicao, define-se calundu como 0 ato de “pular de varias dungas”. Em 1753, por exemplo, a escrava Maria Canga ganhava algum ouro adivinhando de forma ritual; “inventava uma danga de batuque, no meio da «ual entrava a sair-lhe da cabega uma coisa, a que se chamava vento, ¢ entrava 4 adivinhar © que queria”, As praticas de adivinhagao foram, ¢ continuam sendo, atividades centrais da religido, As técnicas oraculares permitem predizer, diagnosticar e prescrever a melhor estratégia a ser seguida diante de um deter- sentido, so um complemento imprescindivel das minado conflito ¢, ne priticas de cura, No século XVII, adivinhar ou “dar ventura” ocorria geral- mente por meio de experiénelas de mediunidade, “possessdo” ou outras técni- cas como olhar na dgua, ¢ somente Ho wetilo XIX aparece registrado o uso do LUIS NILULAU FAKES sistema de Ifi ou jogo de biizios. Em 1739, na vila de Sabaré, em Minas Gerais, ¢€acusada uma outra “calunduzeira, curandeira e adivinhadeira’, a liberta ane gola Luzia Pinta, Ela fazia “aparigées diabélicas por meio de umas dangas [ia posta em um altarzinho com seu dossel ¢ um alfanje na mao, com uma fita larga amarrada na cabeca lancadas as pontas para trds, vestida a modo de anjo”, ao som de uns tamborzinhos ou timbales (cimbalos, segundo a verso de Souza) que trés pretos, seus escravos, tocavam em volta dela ¢, ficando “como fora do seu juizo, falando coisas que ninguém lhe entendia, deitavam as pessoas que curava no chao, passava por cima delas varias vezes, € nestas ocasides é que dizia que tinha ventos de adivinhar” Embora Laura de Mello e Souza chame a atengao para a semelhanga desse ritual com 0 Candomblé contemporaneo — 0 que parece pertinente apenas em relagéo aos elementos do vestudrio, como a fita amarrada na cabeca eo sabre -, cabe notar que essas dancas ¢ experiéncias de mediunidade estavam geralmente restritas ao oficiante do ritual e que a sue finalidade principal era a adivinhacao ¢ a cura. Ao mesmo tempo, Luzia Pinta se deslocava ali onde seus servicos eram requeridos, sem ter um espago fixo para seus rituais. Como argumento em deralhe mais adiante, essas caracteristicas diferenciariam os ca lundus coloniais dos candomblés mais tardios inspirados nas tradic6es da Costa da Mina, onde as dangas ¢ experiéncias de “possessao” cram coletivas, oficiadas por individuos ritualmente iniciados para esse fim, envolvendo uma dimensio. essencialmente de celebragao e adoracao de divindades, sem intervengao tio evidente de outras finalidades mais pragméticas, a exemplo da cura ¢ da adivi- nhagao. Nesse sentido, a tradicao de adivinhagéo e cura dos calundus do sécu- !o XVIMI parece apresentar uma forte influéncia das tradicées da Africa central,2? No entanto, essa tendéncia nio significa que nao existisse na Africa ociden tal uma tradicao igualmente importante de “curadores-adivinhos” ou “feiticel tos”, As fontes inquisitoriais do Arquivo Nacional da Torre do Tombo, estur dadas por Luiz Mott, em sua maioria nao identificam a etnia dos denunciados. ‘Todavia, esse autor localizou o caso de Tereza, “preta, mina gegs, forra que fol escrava do Capito Manoel Barbosa”, denunciada ¢ presa na Bahia (Recéncavo), em 4 de fevereiro de 1778, enquanto 0 “seu amésio Luis, crioulo”, fugiu, A denominagao “mina gegé” prova a existéncia de espccialistas religiosos jejes que, do mesmo modo que os congo-angolas, dedicavam-se a atividades rell- giosas relativamente individualizadas. No caso de Tereza, “geralmente tida, havida, reputada e temida por feiticcira”, trarava-se de priticas antissoci pois “com seus maleficios tinha morto muita gente causando-lhes enfermida des incognosciveis da arte da Medicina, ficando despovoadas pela mortandade algumas familias inteiras’. J4 no inicio do séeula XIX, em 1807, na vila de Aid sees DO CALUNDU AO CANDONBLE io Francisco do Conde, foi preso Francisco Dosst, “gege forro”, também “insigne curador [que] dava venturas”, No seu depoimento declarou “que a ele recorriam muitas pessoas, brancos, pardos, pretos de um ¢ outto sexo para dar venturas e curar” e confessou “que ele danga tabaques muitas veres, assim como que para curar, andava em muitas partes deste Reodncavo”.?! ‘Vemos, assim, como no século XVIII “calundu” foi um termo genérico uti- lizado para designar atividades religiosas de varias indoles, porém de origem africana, em oposigao as praticas catdlicas ou amerindias. Embora as dancas € tambores fossem parte da atividade ritual, a sua funcionalidade era essencial- mente terapéutica e oracular, sendo que “calunduzciro” podia ser utilizado como sindnimo de curador ou adivinho.2? Essas priticas eram oficiadas por um especiallista religioso, as vezes com um ntimero reduzido de assistentes que, secundado ou “incorporado” por “entidades espirituais”, em muitos casos “al- mas dos seus parentes”, interagiam numa relagio interpessoal com o “cliente” ou paciente, “dizendo venturas”, prescrevendo remédios ou fazendo curas, assim como “maleficios”. Também & importante notar que 0 “calunduzeiro” deslocava-se para onde seus servicos eram requeridos, scm ter normalmente um lugar fixo para a realizacéo de suas praticas, Essa forma de atuagio relati- vamente independente era operacional ao facilitar a mobilidade ¢ 0 acesso do especialista religioso 4 sua clientela, que, alids, ndo se restringia & populacéo sta, podendo incluir pardos e brancos. neg ALIARES E OFERENDAS: ALEM DOS CURANDEIROS E ADIVINHADORES Contudo, os calundus podiam, em alguns casos, designar grupos organizados com praticas rituais coletivas, que envolviam mais participantes do que sim- plesmente 0 curador-adivinho e seus clientes. Em 1738, 0 prior dos beneditinos di Bahia comentava que os escravos “tetinem-se em sociedades para fazer seus cilundus”.%9 Essa alusao a “sociedades” ¢ significativa, Em relagao as festas dos hiegros surgidas em volta das irmandades do Recife, 0 conde de Povolide, na carta de 1780 j4 citada, fazia diferenca entre “dancas que ainda nao sejam as is santas nao as considero dignas de uma total reprovagao”, ja que “sao como os fandangos de Castela, e fofas de Portugal, e os lundus dos brancos e patdos daquele Pais”; ¢ aquelas outras “dangas supersticiosas” ou “bailes que entendo serem uma total reprovagio", Os tiltimos Conta da Mina fazem a escondidas, ou em casas ou queles que on pretor d fogax com uma Preta Mestra com altar de idolos adorando bodes vivos, ¢ outros LUTS NICULAU FARES feitos de barro, untando 5 tus corpos com diversos dleos, sanguc de galo, dando a comer bolos de milho depois de diversas beng6es supersticiosas fazendo crer aos rdsticos que naquelas ungées de pio dio fortuna, fazem querer bem mulheres a homens, ¢ homens a mulheres, Esses “bailes” realizados as escondidas nas casas ¢ rogas, com “altares de idolos”, sactificios de animais ¢ oferendas alimenticias, parecem ir além de sim- ples praticas de curandeirismo ou adivinhagao ¢ so os antecedentes dos fururos candomblés do século XIX. Os sacrificios animais e as oferendas de comiday tituais nos altares dedicados as divindades constituem a base da religiosidade africana, especialmente das tradicées da Africa ocidental.” E importante notar que na carta de Povolide essas praticas eram associadas explicitamente aos “Pre- tos da Costa da Mina”, sem mengao aos grupos da Africa central. Essa comple xidade do ritual, envolvendo “idolos” ¢ oferendas, era replicada na danga de ‘Tundé ou acotund4, ocorrida em Paracatu por volta de 1747 ¢ documentada por Luiz Mott, Esse ritual, praticado pelos cour (courano, curd, curano), um grupo da Costa da Mina, envolvia, junto com experiéncias de possessio, a presenga de um “boneco [...] Santo de sua terra”, a0 qual “obsequiavam” com diversas panelas de ervas cruas ¢ cozidas ¢ em torno das quais dangavam,* As praticas de cura e feitigaria cram condizentes com a produgio de amu- letos, patuds, gris-gris ou bolsas de mandinga, objetos méveis, individualizados ou personificados, concebidos como instrumentos mediadores para a obtengio de algum fim € que, entre outros, encontrariam antecedentes africanos nos 60 daomeanos. Jé na articulagao do sistema altar-oferenda — que poderiamos cha mar também de “complexo assento-ebd” — se deu um salto qualitative, Os assentos ou altares sto “complexos materiais sacralizados” relativamente fixos (enterrados, muitas yezes) e de propriedade familiar ou coletiva; concebidos como /abitar ou residéncia de divindades nomeadas ¢ bem definidas, que comportam normalmente a iniciacio de devotos.”” A minha hipétese é que foi a partir das tradigdes da Costa da Mina que, no século XVIII, comegaram a se organizar alguns calundus que iam além da mera funcionalidade de cura ¢ adivinhasao, sem, no entanto, prescindir delas, Cabe lembrar que nesse século os jejes compunham o grupo demografica- mente mais importante daquela parte da costa africana na Bahia. O culto ou adoragao de “Idolos” ou “figuras” com a presenga de altares impli es. sidade de espacos relativamente estaveis para a pritica religiosa. Foi provavel: va an mente a partir dessa tradigao da Africa ocidental, em oposigao as tradigées congo-angola, mais | seadas nas atividades individuuiy dos curadores-adivie nhos, que se organizaram os primeiros ctiltos domeésticns, em “casas ¢ rogas’, DU CALUNDU AU CANUUMBLE com uma estrutura social ¢ ritual mais complexa, que poderfamos chamar de tipo “celesial”. No capitulo 2 j4 mencionet a repressio ao calundu da Rua do Pasto, em Cachoeira, em 1785, onde foram presos trés mulheres ¢ trés homens, 2 jejes, 2 mahis, 1 dagomé ¢ 1 tapa, aparentemente constituindo trés casais. Esse ca- jundu era aparentemente um culto doméstico, organizado em trés quartos de uma casa alugada pelo africano liberto Jodo do Espirito Santo ao afticano ae José Pereira, também liberto. O lider do calundu, Sebastiéo de Guerra, teria, por sua vez, sublocado um dos quartos a Jodo do Espirito Santo. Como apon- ta Joao José Reis, esse tipo de arranjo de moradia era comum entre a populacao negra de Salvador ¢ implica a existéncia de redes estratégicas de solidariedade © cooperagio entre africanos. Com antecedentes penais por praticas de “feiti- garia” em Jacufpe, Sebastido era conhecido como um poderoso curador de {citigos, mas, além disso, ele conseguiu organizar, em Cachoeira, uma inci- picnte congregagao de participantes em volta de um culto que funcionava eon certa regularidade, pois era “publico e notério” que ali se “dangavam calundus Reis define esse calundu como “uma comunidade religiosa em formagao”.”* Aquele caso exemplifica como os curadores-adivinhos, que em alguns casos atuavam com relativa independéncia, conseguiam uma minima infraestrutura coletiva para conduzir suas atividades religiosas. Embora no momento da invasio policial os seis africanos estivessem dor- mindo, exceto um, que estava comando banho, uma das testemunhas declarou que ali “se ajuntavam bastantes negros ¢ negtas [...] que todos armayam uma danga dentro da diva casa ¢ cantavam em lingua de jeje, e tocavam o instru- mento de um ferrinho, e em lugar de tabaque na boca de um pote tocavam € era ptiblico que a dita danga era de calundus”. Como bem aponta Reis, aau séncia de “tabaque” poderia estar relacionada com a necessidade de discrigao, \egra essencial no clima de repressio existente, embora a descri¢éo pudesse jludir também a um ritual funerdrio. Sabe-se que na tradigéo jeje é utilizado para esse fim um instrumento chamado zen-li, em que o som é obtido baten- do um abano de couro ou palha na boca de uma jarra.” No quarto de Sebastiéo também foi encontrada “uma flechinha em pécom uma agulha em cima, e da dita flecha desciam duas pontas para baixo, e em cada uma delas um penachinho, e estava bulindo sem coisa em que sc scgu- tinse”, Quando o negociante branco Manoel de Almeida Cardoso, participante da ronda contra o calundu, quis pegar a flecha, esta caiu no chao, sem que ele conseguisse armécla de novo, Esse estranho objeto, sustentado em si mesmo por efeitos aparentemente mAgicos, foi o que mais chamou a atengao das tes- ‘omunhas, Em volta daquela misterioga flecha, encontraram no chao moedas, w LUIS NIGULAU FAKES buzios, cabacinhas, folhas, unguentos, ferrinhos, outros penachinhos, uma garrafa de aguardente, cuias com sementes e outros ingredientes rituais, e “ca- vando-se na terra apareceram varias mestrias como foram uns ferrinhos, uns bolos de cera da terra cravadas de feijao, de arroz ¢ [ilegivel]”.” Os objetos enterrados indicavam a presenga de um assento ¢ os objetos no chao, as oferendas arriadas diante da “flecha”, seguramente uma representagio material do poder da divindade ali assentada. Além das praticas de cura ¢ adi« vinha¢ao, encontramos aqui um elemento de aparente devocao ou adoracao) de entidades espirituais. A tradicao jeje desenvolve, no Brasil, a pratica do es tabelecimento do pejis (altares) ou complexos materiais consagrados as divine dades, em que a dinamica cerimonial das oferendas ¢ complementar e carace terfstica. Alguns dos objetos encontrados no calundu, como folhas, biizios & aguardente, persistem nos candomblés contemporaneos como elementos cen= trais do sistema de oferendas. Nao hd evidéncias, na documentagao, da existéncia de processos de inicia- go de devotos ou vodtinsis consagrados ao culto das divindades, mas 0 fato de tratar-se de uma congregacdo minimamente organizada, com um espago’ proprio, deixa supor que ja nesse contexto poderiam desenvolver-se tais rituals, Em resumo, essas informagées sugerem que no dltimo quartel do século XVIII os jejes, além de se organizarem em irmandades catélicas ¢ de funcionarem individualmente como curadores-adivinhos, jd tinham a capacidade de se es tabelecer em incipientes congregac6es religiosas, de Ambito doméstico, presu- mivelmente, na sua maioria, em volta de uma unica divindade. Podemos agora encarat o problema central do processo de institucionali- zacdo ou reinstitucionalizacao das formas de organizacées religiosas negras no Brasil e da constituicao de uma “teligiéo afro-brasileira”. A minha tese de base para entender o problema sustenta que esse processo se deu através de um progressivo nivel de complexidade social e ritual. De um estdgio inicial, em que “fragmentos de cultura religiosa” foram retomados e postos em pratica por pessoas carismaticas que atuavam de uma forma relativamente individual ¢ independente (em interagdes pessoais, visando principalmente a fins de cura e adivinhacao), passou-se pela formacao das primeiras congregagées religiosay de cardter familiar ou doméstico, geralmente dedicadas ao culto de uma sé divindade, até se chegar 4 formagio de congregacées extrafamiliares, social- mente ainda mais complexas nas suas estruturas hierdrquicas e praticas ricuais, que com o tempo chegaram a funcionar com certa estabilidade em espagos préprios, com um calendario litirgico recorrente ¢ dedicadas ao culto de uma pluralidade de divindades, “assentadas” em altares ou espagos sagrados indivi dualizados. DU CALUNDU AU CANDUMBLE Cabe enfatizar que esse processo, que para fins analiticos caracterizei como (endo uma natureza evolutiva e linear, indo da simplicidade 4 complexidade, da dimensao individual 4 coletiva, nado deve ser entendido como seletivo ou exeludence, Em outras palavras, simultaneamente 4 progressiva instituciona- liragdo dos cultos mais complexos persistiram, ¢ de forma muito expressiva, as priticas individuais ¢ as congregagées de porte menor. Como veremos adiante, durante o século XIX as congregacées extradomésticas eram ainda relativa- mente escassas ¢ funcionavam, como acontece ainda hoje, paralelamente as priticas individuais e aos cultos restritos ao Ambito doméstico. Alids, segundo \) circunstancias ou necessidades, um mesmo especialista religioso podia fun- clonar alternativamente ora de forma individual, ora inserido numa congrega- cio mais ampla. O cardter esquematico ¢ “evolutivo” que atribut ao processo tio deve, portanto, minimizar a complexidade do problema. Outro aspecto a destacar é que, como vimos no caso da danga do Tundé, \\ no século XVIII funcionavam congregacées religiosas extradomésticas com strutura “eclesial”, e nao é impensdvel que elas fossem mais numerosas uma slo que a documentagio existente deixa entever. Poder-se-ia até especular que \lyumas delas apareceram bem cedo, quase simultaneamente a proliferagao de priticas individuais de cura e adivinhag4o, negando, portanto, a dimensao evolutiva’ ou linear do processo. Ora, 0 silencio documental leva a pensar que © possivel funcionamento dessas congregacoes extradomésticas no século XVIII devia ser esporddico e pouco estével. Nesse sentido, vale lembrar a adverténcia de Bastide contra modelos expli- cativos da formagio do Candomblé que postulam a existéncia de cultos pri- mordiais que sobreviveram sem mudanga ao longo dos séculos. Ele argumen- (i a “ideia de uma proliferagao cadtica de cultos ou fragmentos de culto, que hilo nasciam sendo para extinguir-se ¢ que se viam substitufdos por outros, & iiedida que se iam produzindo as chegadas de noyas remessas”.“' Em sintonia som essa ideia, acredito que foi s6 num estdgio mais tardio, provavelmente no inicio do século XIX, que se consolidou uma rede social de congregagdes ex- cas. S6 quando essas congregagées, em niimero suficiente, comega- sam a estabelecer entre si interagées de cooperagao, complementaridade e con- Hlito, poderiamos falar de uma “comunidade religiosa afro-brasileira” e do sur- gimento do Candomblé. Outro problema se coloca em relagio aos antecedentes africanos que pude- fim intervir nesse processo. Como foi sugerido, considero que as praticas de gnificativos, poderiam tradomés une adivinhagao, ou alguns dos seus elementos m ter sua origem tanto na Africa central como na Africa ocidental, embora as tiadigdes da Africa central paregam neare aspecto dominantes, Ora, na Bahia LUIS NICOLAU FARES: do século XVIII as bases da organizacao de tipo “eclesial”, que permitiram a formagado das congregagoes extradomésticas descritas acima, encontram ante- cedentes nas tradicées dos grupos vindos da Africa ocidental e, muito espe- cialmente, dos jejes. E isso porque os jejes, nesse perfodo, eram o grupo afti- cano demograficamente majoritério e, sobretudo, pelo fato de ter os jejes, como. ja foi descrito em relagao aos reinos de Uidé ¢ Daomé, claros precedentes institucionais nesse dominio, 0 que nao se comprova de forma tio cvidente nos grupos da Africa central. Com isso nao estou sugerindo que o processo formativo do Candomblé deva explicar-se exclusivamente em fung4o de uma transferéncia direta e li- near de elementos da Africa ocidental para o Brasil. Parece-me fora de ditvida’ que, na reinstitucionalizagao dos valores ¢ das praticas religiosas dos africanos no Brasil, houve uma reconfiguracao ¢ ressignificagao de elementos africanos de uma multiplicidade de origens (os da Africa central incluidos), de elementos nio africanos, assim como a “criag4o” de outros elementos, resultado do novo contexto social e do mesmo processo formatiyo. No entanto, a criatividade na “bricolagem” € quase sempre resultado da combinacio ou transformacio de elementos preexistentes. Em relago & organizacao de tipo “eclesial” que deu lugar aos candomblés do século XIX, tem-se arguido a possivel influéncia de modelos como as irmandades catolicas ou até as sociedades ma¢6nicas.” To- davia parece-me que os escravos vindos da Africa ocidental, com a sua memé- ria viva das instituicées religiosas que ali funcionavam, tiveram maior proba- bilidade de contribuir de forma direta, embora também criativa, no processo, Mas poder-se-ia ainda argumentar que a semelhanga entre certas praticas, valores e formas de organizagao teligiosa da Africa ocidental ¢ do Brasil foi o resultado nao apenas de influéncias lineares, mas também de respostas paralelas, embora independentes, a condigoes e dinamicas sociais semelhantes. Por exem~ plo, a comum estrutura do sistema escravista favorecendo a confluéncia de grupos etnicamente heterogéneos em cidades como Salvador e Uidd poderia ter gerado processos semelhantes, mas independentes, na reconfiguragio ¢ agregacao de cultos. No capitulo 7 analiso essa hipétese em relagéo a0 sure gimento dos cultos de multiplas divindades na Africa ocidental e no Candom= blé, A semelhanga de contextos sociais pode gerar dinamicas colctivas ou ins titucionais parecidas, mas quando os sistemas resultantes em varias areas geo” giificas apresentam configuragGes de elementos particulares recorrentes — como. acontece, por exemplo, nos pantedes di s culos de voduns da drea ghe eda Candomblé jeje — é mais dificil justificar as “convergéncias” apenas em termos de um paralelismo nas condigdes de partida, Nessex casos, nto podemos negli« fenciar a importincia das influéncias lineares ¢ prechamos avaliar que grupos 00 eee, DU LALUNDU AU LANUUMBLE Africanos, pelos antecedentes das suas sociedades de origem, teriam maior probabilidade de ter atuado como agentes da transferéncia, sem esquecer que qualquer elemento, uma vez implantado no novo contexto, estava sujeito a daptagées, transformagées, ressignificacées ¢ apropriagdes por parte de outros grupos. NOTAS ! Carta manuserita depositada na Biblioteca do Estado de Pernambuco em “Correspondéncia da Corte, 1780-1781”, fl. 23-23v, apud Soares, Devotos, pp. 158-59. Para outro caso seme- \hante na Bahia, em 1786, ver Verger, Flsivo..., p. 531; Reis, “Identidade...”, p. 26. “Batuque” é um termo frequentemente utilizado no século XVIII com referéncia aos ajunta- mentos de negros que envolvem dangas ¢ toques de palmas, tambores ou outros instrumen- tos. Indicava, indistintamente, rituais religiosos ou divertimentos seculares. Outras expressoes utilizadas no século XIX cram “brinquedo”, “tambaque” ou “batucajé”. ‘Correspondéncia do capicdo José Roiz de Gomes para o capitao-mor Francisco Pires de Cavalho ¢ Alburquerque, 20 de janciro de 1809”, Capitées mores, Santo Amaro, 1807-1822, magos 417-21, Apa. Esse documento foi analisado em detalhe por Reis: “Identidade...”, pp. 7-9, ¢em “Tambores...”, pp. 104-9. Ver também Harding, Candombié.., pp. 286-87. \ Lima, A femilia..., p. 21. Esse trabalho foi primeiramente apresentado como uma comuni- cagio, no encontro organizado pelo governo do Senegal juntamente com a Unesco, Négri- tude en Amérique Latine, celebrado cm Dakar, em janciro de 1974. Foi publicado pela pri- meira vez na Affo-Asia, n® 12, em junho de 1976, e, posteriormente, revisto € publicado como parte do capitulo introdut6rio da sua dissertacao de mestrado A familia de santo nos Can- domblés Jeje-Nagés da Bahia: Um estudo de relagdes intragrupais, em 1977. Em 2003, a editora Corrupio publicou esse texto, Neste livro, as referéncizs & paginagio do trabalho de Lima correspondem & edigao de 1977. Lima, A familia... p. 20. Carneiro, Candomblés, pp. 44, 46. Cabe notar que Carneiro foi o primeiro autor a falar de nagdes referindo-se aos diversos titos praticados no Candomblé. Rodrigues utiliza 0 termo agao” como grupo de procedéncia, enquanto, no contexto teligioso, refere-se apenas a sliversas “confrarias” ou “colégios” distinguidos por “preceitos especiais relativos 4 alimenta- (jlo, s vestimentas, aos deveres religiosos peculiares 20 culto deste ou aquele santo ou orixd” (Os afficanes..., pp. 101, 234) Weber, “The soci pp. 271-75; Malinowski, Magic... p. 67. Pata 0 “complexo fortuna- infortinio: Turner, The drums. Janzen, The quest.., idem, Ngoma; Cracmer, Vansina ¢ Fox, “Religious...” pp. 460-61, 463, 475, Karasch (A véda..., cap. 9, pp. 354-56) e Slenes (Na wensula.... p- 143) adotam a perspectiva de Craemer et al, para 0 estudo da religiosidade brasileira, los pelo curso “Religions of Africa”, mi- jcana, prof. lisses conceitos de eeligito © ritual foram inspir nistrado no Sas da Universidade de Londres, pelo historiador da rel wi LUID NILULAU FARES Louis Brenner, no qual colaborei como professor assistente, no perfodo 1997-1998. Para um discusséo mais abrangente do tema ver, entre outros, Durkheim, Les formes..., pp. 31+ Geertz, A interpretapao.... pp. 101-42, Spiro, “Religion...”, pp. 187-222. " Mintz e Price, The birth..., p. 23. " Durkheim, Les formes... p. 60; Turner, The rimal..., cap. 3; Lewis, Betase.... pp. 32-36. uma anilise dos cultos periféricos como discurso contra-hegeménico, Boddy, Womb pp. 156-58; Stoller, Embodying.... pp. 23-26. "' Bosman, A new..., pp. 368a, 369, 382-83; Norris, Memoirs... pp. 45, 54. " Bosman, A sew... pp. 371, 369. ' dem, pp. 371-72. \\ Idem, p. 3674. " Lewis, Extase.... pp. 32-36, Para uma critica das “teorias da marginalidade”, ver Giles, “Pos. pp. 234-57. "© Maupoil, La géomaneie..., p. 64; Gla&le, Le Danxomé.... p. 76. "’ Lepine, “As metamorfoses...”, pp. 134-36; cf. Le Herissé, ’Ancién..., p. 128; Herskovits, Dahomey... vol. 1, p. 20; Verger, Notas... pp. 244-45, "' Mintz ¢ Price, The birth.... pp. 18-19; Bastide, Sociolygta..., pp. 92-93, 107. ° Bastide, Sociologia... pp. 314-16. "® Para uma interessante anélise do clientelismo nas irmandades catlicas, ver Silveira, Yyiuun pp. 45-51. "! Karasch, A vida..., pp. 342-505 Reis, “The politics...”, p. 15. * Mulvey, The black..., p. 149. * Para uma discusséo da construgao do conceito de fetichismo, derivado do termo portugues “feitigo”, ver William Pietz, “The problem of the fetish...”, vols. I, Ile Illa. * Ver, por exemplo, Soares, Devoios..., cap. 6, especialmente pp. 206 ¢ 217. Reis, “Nas malhas...", p. 41. Esse artigo foi ampliado e publicado sob o titulo “Nas malhas do poder escravista, A invaséo do Candomblé do Acct”, in Reis Silva, Negociarao e conflito.., pp. 32-61, Doravante, referéncias a esse trabalho aparecerto como Reis ¢ Silva, Negociapao,.. ® Souza, O diabo...s pp. 263-69, 385. " Idem, p. 263; Reis, “Magia...”, p. 62, * Sousa, O diabo..., pp. 264-67; Mott, “O calundu...”, pp. 73-82. ” Mott mostra a grande semelhanga entre o calundu de Luiza Pinta, em Sabaré, com os cultox dos winguilas (curadores-adivinhadores) de Angola, descritos pelo capuchinho italiano Joio Antonio Cayazti de Montecucculo, na segunda metade do século XVII; também nota ay diferengas estraturais com as tradig6es religiosas da Africa ocidental. Numa das audiéneias do Inquérito, Luzia Pinta declara, em relagio a suas experiéncias de mediunidade, que “a ditt doenga the chamam na sua terra calundus ¢ que esta se pega de umas pessoas a outras [...] € que 96 a havia de curar e ter remédio mandando tocar alguns instrumentos e fazendo [algu> coisas) mais entre as quais estariam esfregas € uso externo ¢ interno de pé, visande ae preismo da doenga (Mott, “O calundu..”, pp. 75, 80-81), Experiéncias de mediunidade com sintoma de doenga, que precisa ser curada através de rituals que envolvem toque de tambores e priticas de exorcismo e nos quais o doente passa, depois da cura, a funcionar _ DU CALUNUU AU LANUUMBLE como curador, so caracteristicas reconhecidas em muitos cultos da area banto, aos quais Janzen chama, de forma genérica, ngoma (Janzen, Ngoma...; Turner, The drums of affliction...) Caderno do Promotor, n® 129. Lisboa, ANTT, fl. 490. Agradeco a Luiz Mott por ter generosa- inente cedido cpia dessa documentagio, e a Tania Pinto por ter inicialmente chamado minha atengao para o caso citado. " Harding, A refuge... pp. 81-85, 177-86. " Souza, O diabo..., p. 263. Reis, “Magia...”, p. 62. % Carta manuscrita depositada na Biblioteca do Estado de Pernambuco em “Correspondéncia da Corte, 1780-1781”, fs, 23-23v, apud Soares, Devotos..., pp. 158-59. A pritica de sactificios animais est4 documentada no Brasil desde os primérdios do século XVI. Em 1618, quando da visita da Inquisicao 4 Bahia, Sebastien Barreto denunciava “o costume que tinham os negros de matar animais quando em luto para lavarem-se em seu sangue, dizendo entio que a alma deixava 0 corpo para subir a0 cfu” (Bastide, Sociologia... p. 2495 Verger..., Fluxes p. 530), * Mott, “Acotunds...”, pp. 124-47. Citado também em Souza, O diabo. seria uma evolugao de “kouramo”, termo que aparece na documentacao dos séculos XVII ¢ XVII como um tio, lago, ilha maritima ou vila perto da atual Lagos (Nigéria): Mott, “Aco- tunda...”, p. 136. Ver também Verger, Flaxo..., pp. 204, 207, 209. Sobre as bolsas de mandinga, ver Souza, O diabo.... pp. 204-26; Mott, “A vida...”, pp. 85-1045 Harding, A refuge... pp. 27-33. Sobre os 66 e bocid, Bosman, A new..., pp. 367a, 368; Herskovits, Dahomey... vol. 11, pp. 256-88; Blicr, African... “Eb6” € um termo atualmente 8mico que, em iorubé, significa sacrificio animal ou oferenda, o sentido bisico que aqui pp. 268-69. Courd teressa. " Reis, “Magia...”, p. 75. " Idem, pp. 70-71. Idem, p. 73. Bastide, Socéolagia.... p. 78. " Ferretti, Querebentar... p. 227. 4 A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCIONALIZACAO DO CANDOMBLE NO SECULO XIX A EMERGENCIA DE UMA REDE DE CONGREGACOES RELIGIOSAS EXTRADOMESTICAS |\s prdticas religiosas baseadas no “complexo altar-oferenda” e a sua extensio on ceriménias publicas com toques de tambor, danas ¢ manifestacao de mul- tiplas divindades no corpo dos seus adeptos, se bem pudessem ficar restritas 40 Ambito doméstico, tendiam a se organizar em espacos particulares reserva- dos para esses fins, A maior complexidade ritual ¢ a manutengao desses espagos sagrados requeria um dispéndio maior de recursos e, consequentemente, a participacao de um maior ntimero de pessoas. O surgimento de uma rede de congregacées religiosas com essas caracterfsticas na Bahia do século XIX € as suas interagdes sociais serdo os temas deste capitulo. Até recentemente, a historiografia da atividade religiosa dos afticanos na Bahia do século XIX foi um tema pouco desenvolvido ¢ reduzia-se quase exclu- sivamente aos trabalhos de Nina Rodrigues, Pierre Verger ¢ Joao José Reis.! Velizmente, nos tiltimos anos os estudos sobre 0 Candomblé do periodo pré- iboligao tém ganhado maior interesse e, enfim, esté-se desenvolvendo um esforgo mais sistemético para abordar o tema.’ A correspondéncia e outros dlocumentos da policia, depositados no Arquivo Pablico do Estado da Bahia, © 08 jorna is da época constituem as principais fontes documentais; porém, para 4 primeira metade do século XIX, elas sao ainda escassas, enquanto para a se- junda metade elas séo mais numerosas € consistentes. [inure os jornais tem destaque O Alabama, “periddico critico e chistoso”, fundado em Salvador em 1863, Embora os editores desse jornal fossem afrodes- condentes ¢ prd-abolicionistas, eles v no Candomblé como uma expresso de barbarismo, superstigio ¢ promiscuidade sexual, ¢ langaram contra 0 mes- ino uma campanha sistematica de deniinelas, Apesar desse viés idcolégico, as LUIS NICOLAU PARES noticias desse jornal oferecem preciosas descrigses quase etnogrificas das p ticas religiosas afticanas, em alguns casos presenciadas diretamente pelos jor nalistas, e documentam terminologia afticana, nomes de lideres ¢ participan= tes, assim como a localizagao dos diversos candomblés. Esse material constitui, sem duvida, a fonte documental mais rica sobre o Candomblé baiano na dé de 1860 e sera analisado mais adiante.> Por enquanto nos concentraremos no periodo prévio de 1800-1850. Com vimos no capitulo 3, no natal de 1808, falava-se em Santo Amaro dos “ajune tamentos” simultdneos, porém em ruas separadas de escravos angolas, jejes nagés-haucds, Esses batuques, dangas e banquetes eram celebrados ao at livn ou em casas abandonadas tomadas pontualmente para essas ocasi6es, ¢ no duravam mais de um dia.‘ Eram, portanto, “corporac6es” ainda sem uma orga nizaco estével ou espagos préprios para suas atividades, Porém sabemos que um ano antes, em 1807, nas terras da fazenda Boa Vista, pertencentes ao engenho de Herminigildo Netto, no distrito Madre de Deus (perto de Santo Amaro), existiu uma congregacdo ritual aparentemente mais estével, liderada por AntOnio, um jovem escravo angola, AntOnio foi preso € identificado nos documentos como “presidente do terreiro dos candombleis”, Trata-se do primeiro registro conhecido da palavra “candomblé”, um termo provavelmente de origem banto. Nessa expresso, “candombleis” parece utili- zado como sindnimo de batuque, podendo referir-se a praticas de cura e/ow adivinhagéo, mas o titulo de “presidente” sugere uma incipiente organizacio hicrérquica de uma coletividade religiosa. Como comenta Rachel Harding, a palavra “candomblé” surge no momento em que o termo “calundu” deixa de ser utilizado.’ Essa coincidéncia pode ser aproveitada para reforcar a polaridade analitica, sugerida no capitulo precedente, entre os velhos calundus coloniais € 0s novos candomblés de maior complexidade organizacional, e talver para datar, grosso modo, a emergéncia e maior visibilidade dos segundos nesse inicio do século, A tese central de Harding é que o Candomblé surgiu como uma resposta a escravidao € como resisténcia contra a desumanizacao do africano escraviza~ do. Essa autora enfatiza os conceitos de “comunhao/comunidade, refigio/re- sisténcia e cura/reparagao” como meios para a cria¢ao de um sentido de iden- tidade negra alternativa sob a escravidao.* A adversa condi¢a0 compartilhada da escravidao e a comunalidade de orientacées cognitivas afticanas teriam le- a", Embora essas duas ideias sintetizem importantes dindmicas do Candomblé, vado os negros a uma solidariedade interétnica de cardter “pan-afticani penso que o processo de formagao dessa instituigo nao pode ser reduzide apenas a esses fatores. A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTIIUCIUNALIZACAU DU CANDUMBLE Em primeiro lugar 0 “pan-afticanismo” defendido por Harding é questio- navel, como fica claro no exemplo dos ajuntamentos de Santo Amaro de 1808. As divisdes étnicas por nagées existiam e, como veremos, foram até estimuladas pelos poderes politicos, principalmente nas primeiras décadas do século. Apés » fim do tréfico transatlintico, em 1850, as distingGes entre nagdes nado apare- cem na documentacéo de forma téo explicita, mas elas persistiram em alguns candomblés no decorrer do século, apesar da crescente heterogeneidade étnica © racial dos seus participantes, Seria s6 apés a aboli¢ao, com o decréscimo de \fricanos na Bahia, que uma identidade “africana” foi assumida por certas comunidades, e todavia essa “africanidade” esteve fortemente associada 4 cul- ura iorubé, 0 que faz dificil catalogé-la como “pan-africanismo”. Certamente a dinAmica de contraste entre os interesses ¢ valores da “classe” wubalterna dos negros e os da camada senhorial foi um fator determinante para configurar importantes aspectos dessa instituicao religiosa, através da ressig- hificagdo de velhas préticas religiosas com novas intencionalidades, como, por cxemplo, a produgao de bolsas de mandinga para se proteger dos abusos los senhores, ou a reinterpretagio de noyas formas religiosas com velhos sen- \idos, como, por exemplo, o sincretismo dos santos catdlicos com as divinda- +s africanas. Nesse confronto com a cultura ibérica e 0 catolicismo hege- 0 teligiosa “periférica” monico, o Candomblé emergiu como uma institui socialmente marginal, como um discurso cultural paralelo e por vezes contra- hegeménico. Entretanto, a génese do Candomblé nao pode ser reduzida a uma oposi- glo de “classe” ou a uma simples resposta de resisténcia & escravidao, e deve ser também encarada como resultado ou efeito do encontro intra-africano, possuindo uma relativa autonomia em relagio 4 sociedade mais abrangente decorrente da sua propria dindmica interna. A reatualizagio das praticas reli- jlosas africanas podia responder as estratégias contra o inforttinio, que iam ulém da escravidao, ow satisfazer a necessidades de solidariedade grupal ou complementaridade dialética inerentes 4 mictopolftica africana. Outro fator a ter em conta € que, apesar de os candomblés contarem entre seus participantes com um niimero significativo de escravos ¢ servirem muitas vores de refiigio para escravos fugitivos, a instituigdo nao foi desenvolvida exclusivamente por esse segmento social. De fato, a formagao das congregacées teligiosas foi um fendmeno liderado essencialmente por libertos. De um total dle 81 referéncias documentais a Ideres religiosos levantados por Reis para 0 perlodo 1800-1888, s6 dois eram exeravos.’ Esses dados demonstram o papel cuttico dos libertos, com maior mobilidade e disponibilidade de recursos, no devenvolvimento e na manutengio do Candomblé. ws LUIS NICULAU PARES Alias, os afticanos libertos lfderes de Candomblé, como os calunduzeiros setecentistas, em muitos casos prestavam servicos religiosos a clientes perten= centes a um amplo espectro social, muito além da comunidade negra, incluin= do pardos ¢ brancos, pobres € ricos, livres, libertos e escravos, o que indica que o Candomble, j4 desde o seu inicio ¢ de forma crescente, baseou suas atividas des numa estratégia de inclusao social, pelo menos no que se refere a clientes € participantes, e, portanto, nao pode ser encarado apenas como um espaco de “refigio” dos negros. Actedito que essa abertura e capacidade de estabelecer vinculos externos 4 comunidade negra contribuiu também para a consolidagio ¢ expansio do Candomblé. Isso ndo significa negar a importancia da religiao nos processos de resistén= cia escrava, sobretudo na primeira metade do século. Por exemplo, 0 intenta de reyolta escrava haug4 em 1807 foi de inspiracao religiosa. Informagées sobre quilombos dessa época indicam a presenga de tambores ¢ atividade religiosa relacionada com reyoltas, Além do uso frequente de amuletos e “mandingas’, muitas yezes de origem malé, em meio aos instrumentos de luta dos conspira- dores afticanos, o levante iniciado em 28 de fevereiro de 1814, em Itapud, por exemplo, foi liderado pelo escravo Francisco, chamado de “rei” ¢ “presidente das dancas de sua nagao, scu protetor ¢ agente”, ¢ sua companheira, a “rainha” Francisca. Em 12 de fevereiro de 1816, escravos de Santo Amaro ¢ Sao Fran= cisco do Conde iniciaram uma revolta “apés uma festa religiosa”. Em 1826, africanos ligados ao levante do quilombo do Urubu, nos suburbios de Salyadon, na sua maioria de origem nag6, se refugiaram numa “casa a que se chama de candomblé”. Menciona-se a “tainha” Zefereina como um dos chefes da insur> tei¢4o ¢ o mulato Anténio de tal como dono do candomble. Ali foram encon+ trados objetos rituais como “conchas” (buzios), chocalhos, atabaques, “uma coroa de papelao com enfeites de buizios” (que foi enfiada na cabega do negro ferido), estatuetas de “vacas pintadas de encarnado” e “um chapéu encarnado com trés plumas”.$ Em todos esses casos, as revoltas pareciam estar intimamente ligadas & atl- vidade religiosa ¢ indicam a existéncia de certas congregacées religiosas africa: nas. No entanto, a documentagao nao permite saber a complexidade ¢ o nivel de institucionalizagao dessas “festas religiosas” ¢ “candomblés”. As rebelides armadas podiam beneficiar-se também de outras formas de organizacao poll- tico-religiosa como as irmandades negras, mas os candomblés, devido a sui necessidade de manter a regra da discricao, podiam ser espagos mais propicios para a organizacao de movimentos insurgentes, Nao ¢ surpreendente, portan- to, que as autoridades tivessem entendido as manifestagbes religiosas dos aftle canos como uma ameaga ¢ um foco potenelal de insurteigto a ser concrolado, A CONTRIBUICAG JEJE NA INSTITUCIONALIZACAO DO CANDOMBLE As diversas politicas de repress4o ou tolerancia dessas reuniées, adotadas pelas elites brancas nas primeiras décadas do Oitocentos, encontram antece- slences no século XVII. Ja em 1728 achamos a polaridade entre uma tendéncia inoderada e tolerante e outra mais autoritaria e intransigente, no caso do pe- fegrino Nuno Marques Pereira e 0 fazendeiro que o hospedou. O segundo purecia aceitar os folguedos dos esctavos como uma forma de controle social, enquanto o peregrino se mostrava revoltado, vendo nesses calundus horrivel ofensa a Deus. Como aponta Laura de Mello ¢ Souza, “o paternalismo tole- finte € compreensivo do senhor e a intransigéncia dogmatica ¢ ortodoxa do poregrino constitufam, portanto, duas faces possiveis da ideologia da camada senhorial”’ A histria da perseguicdo religiosa no Brasil colénia sugere que o iltimo quartel do século XVIII viu um afrouxamento em relagao as praticas li religiéo popular, fato provavelmente agravado pela expulséo dos jesuitas em 1759.10 No século XIX, essa polaridade entre atitudes conflituosas de tolerancia ¢ jwpressdo fica bem refletida nas politicas de dois governadores da Bahia, o exto conde da Ponte, que governou entre 1805 € 1810, € 0 oitavo conde dos \icos, que o sucedeu, governando até 1818. O caso j4 foi bem estudado por Neis ¢ Silveira, entre outros autores. O conde da Ponte defendia uma politica ile repressdo sistematica por considerar “a festa africana subversiva por natu- jez, porque criaya no escravo o gosto da independéncia, estimulava a sua \\itoconfianga, promoyia a libertinagem ¢ o desprezo pelos valores ocidentais tle moralidade e estética”. Do seu lado, o conde dos Arcos considerava boa politica permitir os “batuques” africanos, apesar das recomendacées contrarias lo governo geral do Rio. Para ele, esses “ajuntamentos” que reagrupavam os «favos por nagées contribuiam para a sua divisio interna, separando os di- versos grupos étnicos. Ao lado de reconhecer o direito do escravo ao lazer, o sonde temia que a represséo viesse a criat uma unidade entre eles contra os \teresses escravistas. Isto é, segundo 0 conde da Ponte, a festa contribuia para 4 vlaboragao de tensdes, enquanto para o conde dos Arcos ela era entendida somo uma valvula de escape, alids, um fator de desuniao que contribufa para s conhecida estratégia do “divide e yencerds”.'" Essas questées continuaram dividindo os representantes do poder pés-co- Jonial. No ano 1829, Anténio Gomes de Abreu Guimaraes, juiz de paz da freguesia de Brotas e seguidor da politica repressiva do conde da Ponte, a quem alto de um candomblé localizado sua freguesia, no local chamado Acct, provavelmente o atual Acupe.”? Esse feverenciava explicicamente, ordenou o as Interessante episddio esté documentado numa carta do proprio Guimaraes, wehada mais uma vex por Reis e comentada no seu artigo “Nas malhas do LUIS NICOLAU PARES poder escrayista: a invasao do candomblé do Acct na Bahia, 1829”, No cot texto do presente trabalho, esse candomblé é digno de atencao porque exis uma referéncia ao culto do “Deus Vodum”, o que poderia indicar uma otige! jeje da congregacdo religiosa.'? Além de se tratar da primeira referéncia escri ao vocdbulo “vodum” na Bahia, encontramos nesse candomblé evidéncia uma congregacao religiosa com uma capacidade organizacional complexa, volvendo a participagao de mais de 36 pessoas (foram presos 3 homens € mulheres, cnquanto 11 mulheres ficaram no local ¢ outros fugiram), ¢ fest que duravam varios dias, pois, em palavras do magistrado, “este festejo hay ja trés dias que se fazia com estrondo”." A ceriménia que foi interrompida pelo assalto da tropa é descrita pelo jul da seguinte forma: “Em cima de uma mesa toda preparada, um Boneco toda guarnecido de fitas, ¢ btizios, ¢ uma cuia grande da Costa cheia de Buzios, algum dinheiro de cobre misturado das esmolas, tocando tambaque ¢ cui guarnecidas de buzios, dangando umas [mulheres], e outras em um quar! dormindo, ou fazendo que dormiam”.! Nessa descrigao achamos novamen) o “complexo altar-oferenda”: a devoca4o a um “boneco”, representacao do “D, Vodum”, com oferendas de dinheiro e buzios. Além disso, 0 texto sobre mulheres que estavam “dormindo, ou fazendo que dormiam”, sugere tal vodunsis recolhidas na camarinha num estado de eré, o que indicaria a exit téncia de processos de iniciagéo no candomblé. Tudo isso aponta para ul culto com uma complexidade de praticas rituais semelhante aos candomb| contemporaneos ¢ precisa ser distinguido dos “ajuntamentos” de escravos t lerados pelo conde dos Arcos, mencionados acima, que nao deixavam de se| reunides esporadicas sem a infraestrutura para um culto organizado. Na sequéncia cronoldgica da documentagao existente sobre as praticas 1 ligiosas dos jejes, que sc inicia com a feiticcira mina jeje de 1765, passando pel congregacao doméstica de Cachocira em 1785, até esse candomblé de 1829, vemos claramente 0 proceso que vai da atividade individualizada de especl liscas religiosos jejes até atingir um culto organizado em congregacées relativiy mente estdveis, A década de 1820 marca, assim, a culminagéo de um proc iniciado no século XVIII que leva & progressiva consolidagao de novas institul: g6es religiosas de base social cada vez mais ampla, incluindo participantes de qualquer cor ¢ status legal, mas dominadas e controladas na maioria dos ca pela populacao negra e, nessa época do século, majoritariamente por libert africanos. O caso dos jejes é emblematico de um processo que devia dare também entre as outras nagées afticanas como os nagos ou angolas, o que Noy permitiria falar da emergéncia de uma comumnidaile religiosa “alvo-brasileira® jd na década de 1820. A VUNIRIBUILAU JEJE NA IND TIIULIURALIZALAU DU CARUUMBEL Voltarei a falar do candomblé do Acti mais adiante. Por enquanto, conti- juemos examinando as politicas divergentes da camada senhorial diante da proliferagéo dos cultos africanos. O juiz de paz Guimaraes, na mesma carta nde se descreve 0 assalto do Acca, esctita ao visconde de Camamu, entao residente da provincia, critica o juiz de paz do vizinho distrito do Engenho Velho por tolerar uma grande festa com “bandeirolas, partidos, e vozes de viva Senhor Dom Jodo, ¢ 0 Senhor Dom Pedro, que a muito custo se acomodou, € teve «foi tanto © povo, que em um sé dia matou-se um Boi, além do mai 16 jence de varias cores”. Em 1832, num sitio chamado Batefolha, na freguesia de Santo Antonio Além do Carmo, fronteirica a de Piraj4, eram ouvidos “continuamente toques dle tabaques” ¢ achou-se “grande adjunto de homens pretos, brancos, pardos e iwulheres, os quais faziam parte daqueles batuques”. O juiz de paz da freguesia de Pirajé tentou reprimir a festa, mas os participantes apresentaram uma li- venga concedida pelo juiz de paz da freguesia de Santo Anténio.” Comprova- nos, assim, as atitudes conflituosas dos juizes de pax das diversas freguesias em relagdo aos ajuntamentos festivos de negros, porém nao sabemos ao certo ve essas duas festas tinham um carater religioso ou eram festas seculares. Con- vido, nao é improvavel que elas fossem acompanhadas de algum tipo de prd- tien ritual de cardter religioso. Continuando com sua politica repressiva, em 1831 o mesmo Anténio Gui- ‘ures, com uma tropa de 30 soldados, sob 0 comando de um certo capitao Matos, invadiu, embora fora dos limites da sua freguesia, mais de 30 casas de alricanos no distrito do Engenho Velho, onde se encontraram “tambaques, \ntos, ¢ instrumentos de seus Diabélicos festejos, que a Tropa quebrou’” e, ‘inda, na mesma noite, assaltaram uma casa vizinha localizada num morro ue de continuo existia nela pretos, e pretas com dangas, toques ¢ venturas \divinhagio]”, onde foram presos “bastantes pretos ¢ pretas”."* Todos esses episédios sugerem, j4 nos anos 1830, a existéncia de varias con- wregasé fosos participantes ¢ com capacidade para reagir contra a repressdo. Tanto no sindomblé de Acct como no do Engenho Velho existe evidéncia de que certos ‘membros dessas congregacées tinham relagbes com personagens influentes dos poderes priblicos e da sociedade civil. No caso do Acct, 0 africano liberto Joa- religiosas bem organizadas, com uma certa estabilidade, com nume- quim Baptista, morador ¢ talvez zelador do candomblé, queixou-se ao presi- dlonte da provincia, o visconde de Camamu, pelo roubo de varios objetos ¢ heiro no assalto ao cerreito, Um outro participante desse candomblé, prova- velmente um alabé ou tocador de tayrbague, era escravo ¢, a0 mesmo tempo, fwitor do visconde de Pirajd, Quando, junto com outros pretos, foi reclamar LUIS NICOLAU PARES ao juiz de paz Anténio Guimaraes pelo roubo, alegou que vinham da parte do seu senhor no propésito de intimidar 0 juiz. Verdade ou nao, o fato é que essas estratégias evidenciam que as congregacées religiosas possufam uma rede de contatos sociais, utilizadas quando era preciso garantir o funcionamento” das suas atividades.'° No assalto do candomblé do Engenho Velho, as tropas acharam entre os assistentes um procurador branco de nome Joaquim José de Oliveira. Este nao era um visitante ocasional do terreiro, pois procurou persistentemente conse guira soltura dos negros com algum feito.” Essa evidéncia sugere a existéncia de pessoas ligadas aos candomblés, em alguns casos brancos, que podiam in- terceder diante da sociedade civil em defesa dos terreiros. Foi talvez nessa época que comecou a institucionalizar-se o cargo de ogd com a fungio de re= presentante da congregacio religiosa perante a sociedade civil, como perdura até nossos dias. FE dificil avaliar a estabilidade ¢ continuidade desses candombleés, se eram centros onde periodicamente eram realizadas festas e obriga¢ées religiosas com um calendario litargico estabelecido, ou se eram as festas celebradas s6 ocasio~ nalmente, quando as circunstancias eram favordveis. No caso do Batefolha, mencionado anteriormente, Reis aponta para uma certa estabil dade do suposto candomble, visto que, seis anos depois, em 1838, aparece registrado num mapa do exército legalista que combatia os rebeldes da Sabinada um candomblé muito perto do local onde foi celebrada a festa de 1832.! Em qualquer caso, essas festas podiam durar varios dias - recordemos que no caso do candomblé de Acti o “festejo havia jé trés dias que se fazia com estrondo” -, o que im- plica uma capacidade organizacional complexa e, provavelmente, a existéncid de uma estrutura litirgica que dividia a festa em varias partes. A COMPOSICAO SOCIAL EA CRESCENTE MESTICAGEM NOS CANDOMBLES Um fato que chama a atengio é a heterogeneidade érnica ¢ racial dos particl: pantes desses ajuntamentos e festas religiosas. No candomblé de Accti, para surpresa do juiz de paz, acharam-se tanto africanos como crioulos, “trés pretos, porque os outros fugiram, imensas pretas, ¢ por mais desgraga muitas crioulas s do Pais”. No assalto do candomblé do Engenho Velho fala-se de “pre= tose pretas”, termos que na linguagem da época referiam-se aos africanos, mas jdvimos a presenga do procurador branco entre eles, Na outra fesea do Engenho Velho, criticada na carta de Guimarios de 1829 clase a presenga de “gente A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCIONALIZAGAO DO CANDOMBLE le varias cores”. Na festa do Batefolha foram achados “homens pretos, brancos, pardos e mulheres”. Essa heterogeneidade étnico-racial serd uma tendéncia crescente na segunda metade do século. Harding e Reis analisaram 2 composigao social dos can- domblés no periodo 1800-1888. A partir da documentagio policial, Harding encontrou um toral de 95 documentos, 65 deles positivamente identificados como teferentes a candomblés ¢ 30 provavelmente referentes a praticas religio- sas africanas. Reis analisou seus dados a partir de referéncias a lideres de can- domblés, achando um total de 81 individuos. Na minha andlise de O Alabama, para o periodo mais restrito de 1863-1871, identifiquei um total de 65 registros teferentes a lideres e/ou candomblés.” Procurei também diferenciar entre casos em que é clara a existéncia de uma congtegacao religiosa complexa (“eandom- ble”) e casos de especialistas religiosos que aparentemente trabalhavam de uma forma individual, principalmente com prdticas de cura ¢ adivinhagao, e sem indicios de uma infraestrutura coletiva ou congregacao religiosa organizada (“individuos’). Embora essa distingio nao seja sempre facil de estabelecer, uma classificagdo proviséria identificou 37 “candomblés” ¢ 28 “individuos”. Os resultados dessas trés pesquisas nao coincidem sempre, mas convergem invariavelmente para uma série de fatos. Confirma-se que os candomblés reu- niam pessoas de varios status legais (escravos, libertos ¢ livres), identidades denico-raciais (africanos, ctioulos, mestigos e brancos) ¢ condigées sociais. No entanto, quando se distingue entre lideres, participantes ¢ clientes apatecem ‘ecortes mais especificos. J4 comentei a escassa presenca dos escravos como chefes de candomblés. Os longos periodos de reclusao necessdrios para a in cingao eram dificilmente acessiveis para eles ¢ limitavam 0 seu envolvimento tnacico ¢ continuado.* Porém, os escravos constitujam uma parte importante ia clientela, muitas vezes em busca de remédios para apaziguar a furria dos seus senhores, outras em busca de refugio, sendo que os candomblés foram sempre suspeitos pela elite de esconder escravos fugitivos. Nessas circunstancias, eram os libertos ¢ livres, com maiores recursos eco- jdmicos e mobilidade, os que constitufam a maioria de lideres e participantes. Uma das caracterfsticas do sistema escravocrata baiano era a alta porcentagem de pessoas de cor livres ¢ libertas, estimada entre 30% ¢ 40% da populacao toral nas primeiras décadas do século XIX. Eyse fato foi determinante ¢, tal- vez, até uma condi¢ao necessiria para a formagao do Candomble. Isso parece confirmar-se quando olhamos para os Estados Unidos, onde a porcentagem dle pessoas de cor nao superou 6% do cowl da populagao livre antes de 1850, ow a Jamaica, onde essa porcentagem era apenas 3% em 1800, e comprovamos ‘auséncia de institulgdes religlosas comparivels ao Candomblé nesses paises, LUIS NICOLAU PARES Essa hipétese complementa € nao anula aquela outra de Bastide que justifica a dificuldade de institucionalizacao de praticas teligiosas africanas nos sistemas esctavocratas anglo-saxdes pela influéncia e tigidez do protestantismo, ante a maior flexibilidade do catolicismo em paises como Brasil, Cuba ou Haiti. Em relacdo a cor, os brancos aparece na documentaca0 apenas em dois casos como dirigentes, al Suma vez como participantes ¢ na maioria dos casos s6 como clientes. Em 1868, num terreiro de Campinas, fala-se da presenga de duas mulheres brancas ¢ 0 jornalista comenta: “esto to enraizadas estas pa- tifarias de candomblé, que eu J4 nao me admiro de ver a gente de cor preta envolvida, quando até os brancos sao os mais encarni¢ados adeptos da cousa”.® Essa pauta parece repetir-se Para os mestigos, com dois casos de chefia, porém sua presenca como participantes ou devotos brancos.7” A maioria de lideres ¢ Participantes dos candomblés era, Portanto, negra, composta de africanos ¢ crioulos, A Parti dos 65 documentos Positivamente identificados, Harding concluiu que, no Periodo 1800-1850, 69% eram cane domblés exclusivamente de africanos ¢ 31% candomblés mistos (africanos- ~crioulos, afticanos-crioulos-pardos, afticanos-crioulos-pardos-brancos), Ji no petiodo 1851-1888, a Proporcao se inverte, sendo apenas 37% candomblés africanos e 63% candomblés mistos.28 A tendéncia ao crescimento da hetero- gencidade étnico-racial ao longo do século parece, desse modo, clara. Aparentemente, esse fato coloca sérias duvidas sobre a persisténcia de die visoes dos candomblés em termos de nagGes e sustentaria a tese de Harding de um certo “pan-afticanismo”, embora o termo nao me parega o mais apropria- do, devido 4 énfase no componente “afticano”, quando sabemos que eram og ctioulos, e em menor medida os pardos ¢ brancos, os que contribufram para fa sccnte miscigenasao, Por outro lado, se os participantes ¢ a clientela eram heterogéneos, isso nao significa que nao existissem, como acontece ainda hoje, diferencas rituais embleméticas nas diversas tradicé. mantidas pelos lideres dessas congregacées, Quanto a lideranga dos candomblés, os dados confirmam que os afticanoy foram a grande maioria na primeira metade do século e, na segunda metade, foram progressivamente decrescendo, €ra seguramente superior a dos es afticanas, ciosamen te embora mantendo uma presenca signi- ficativa. Os dados de Harding mostram que, no periodo 1800-1850, os lideres afticanos constituiam 88% e, no perfodo 1851-1888, 83% autora, a chefia crioula pode ter sido minimleada pelo vies ideolbgico dos responsiveis pela documentagao, que pelo menos até 1850 viam 0 ¢ ‘andomblé como um fendmeno essencialmente aftieano, Dow at Neves identific Reis, 83 eram africanos, 6 ¢ rioulos, 5 mulation e 2 hen . Como aponta e ados pot Dos 35 casos res A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCIONALIZACAO DO CANDOMBLE ‘antes, 31 sao identificados como negros.”” Dos 55 Ideres identificados nu minha andlise de © Alabama, 27 eram afticanos ou pretos, 1 negro, 1 ctioulo, ) pardos, sendo que em 24 casos nao consta identidade étnico-racial. De qual- guer forma, €muivo provével que essa maioria de lderesaficanos conibulse para o estabelecimento ea manutengio de priticas rituais diferenciadas segun- clo as varias “nagées” ow tradigées religiosas de origem. fl Um outro tema de debate diz respeito ao género dos Patticlpantes elideres. Harding aponta que, no perfodo 1800-1888, as mulberes constitufam entre 60% e 65% dos participantes. Embora os nuimeros possam variar, essa maioria {cminina entre os participantes, mantida até nossos dias, parece fora de divida. Ora, quando consideramos a lideranga, yemos que os homens, na sua maioria ifricanos, mantiveram a superioridade numérica durante toda a época pré- aboli¢io, Para 0 periodo 1800-1888, Harding identificou 41 lideres, dos quais 68,5% eram homens ¢ 31,5%, mulheres, Jé entre os 81 Lideres identificados por Reis para o mesmo perfodo, 61,7% eram homens ¢ 38% etam mulheres. Divi- dindo os seus dados para os periodos 1800-1850 ¢ 1851-1888, Harding mostra como a lideranga fetninina foi aumentando na segunda metade do século, passando de 12%, no primeiro perfodo, para 41%, no segundo periodo, A minha anilise dos 55 lideres do perfodo 1863-1871, embora coincida de modo jeral com a tendéncia sugerida acima, mostra percentagens diferentes: 38 ho- mens (69%) ¢ 17 mulheres (31%).2° S Cabe notar um outro aspecto mencionado apenas en passant por Harding, que diz respeito ao fendmeno da colideranca, Das 55 liderangas do perfodo 1863-1871, nove delas estéo constituidas por duas ou trés pessoas ¢ todas cor- fespondem a casos identificados como “candomblés’, isto é, congregagées com- plexas. Em cinco casos trata-se de um homem secundado por uma mulher, lisse fendmeno indica que a lideranga dos candomblés, embora normalmente hierarquizada, era uma responsabilidade muitas vezes compartilhada, E tenta- lor ver nesse fato uma influéncia da tradigao vodum da Area ghe, na qual sa- bemos que a lideranga dos templos é normalmente compartilhada por um casal homem-mulher de vodunons (sacerdotes). ‘ Teriamos, assim, que 0 famoso € tio falado “matriarcado” do Cage contemporineo, legitimado nos anos 1940 sobretudo por Ruth tance seria uum fendmeno relativamente recente, sendo que a superioridade feminina na lideranga das congregagdes religiosas s6 foi atingida no perfodo pés-aboli¢ao. A explicagio desse fendmeno diverge segunclo os autores. Reis acha que na Bahia do século XIX o view do pénero nao era um fator determinante na for- ago da lideranga religiosa, Segundo esse autor, a inicial superioridade numé- tea dos homens africanos extaria em consondnela com a superioridade demo. EUS EERE RUC AR ED. grafica dos homens entre a populagao escrava. O subsequente incremento day mulheres na lideranga estaria, cntéo, determinado por razées de ordem ritual e sociolégica. Por um lado, no aspecto ritual, a “possessio” ¢ considerada normalmente um papel simbolicamente feminino ¢ passivo, em que a devota ¢ “montada’ pela divindade. Em O Alabama, na maioria das referéncias a grupos de iniciagio fala-se exclusivamente de mulheres. Além de constituir a maioria da clientely dos candomblés, as mulheres eram, portanto, também iniciadas em maior niimero, Logicamente, com o progressivo declinio dos Iideres africans, as novas geracées de mulheres crioulas formavam a base social mais numeross, para substituf-los na lideranca.” Por outro lado, no sistema escravocrata, es. pecialmente no Ambito urbano, as mulheres negras tiveram maior indepen déncia econémica e mobilidade social do que os homens. Elas obtinham com maior facilidade a alforria ¢ chegavam a se converter em pequenas ou médias empresarias, sobretudo no setor alimenticio. Nesse caso, a hegemonia na lide- ranga teligiosa refletiria 0 maior status social das mulheres. Harding apresenta uma explica¢io socioldgica alternativa, relacionando a crescente hegemonia feminina no Candomblé com a exclusio das mulheres do controle politico das irmandades catélicas.* A tinica objec4o a esses argumentos é que a supremacia numérica das mu- Iheres entre as pessoas iniciadas ¢ o seu maior siatus social na sociedade mais ampla eram condigées provavelmente jé cxistentes em meados do século XIX, enquanto a sua supremacia na lideranca religiosa s6 se deu na virada do sécus lo XX. A minha impressao é que sim, na Bahia do século XIX devia existir um certo viés de géncro masculino na selegio da lideranca religiosa, que era de fato heranga tanto das culturas da Africa ocidental como das da Africa central, O maior status religioso dos homens nas instituigées religiosas africanas foi per- petuado na Bahia e manteve-se enquanto houve afticanos. A eficdcia atributda As praticas religiosas dos especialistas religiosos africanos Ihes conferia um pres» tigio que infundia respeito e temor. A percepcao generalizada do “poder do feiticeiro africano” foi aproveitada por eles para manter a sua hegemonia. $6 quando a presenca dos afticanos foi decrescendo, na virada do século XX, as mulheres crioulas, pelas raz6es expostas por Reis, passaram a assumir a lide. ranga de uma forma majoritéria. Nesse sentido, vale a pena examinar com um pouco mais de detalhe essa dialética entre afticanos e crioulos no contexto da comunidade religiosa, No caso do jd citado candomblé de Acct, obseryamos que a tradicional animosi- dade entre africanos ¢ crioulos manifesta, por exemplo, nas revoltas escravas das primeiras décadas do século XIX e, no caso espectfico dos jejes, nas int mo A WUNTRIBUICAU JEJE NA INSTITUCIUNALIZAQAY UU CANDUMBLE dades catélicas do século XVIII (ver cap. 2), nao era sempre tao estrita e gene- talizada. A expectativa do juiz de paz, provavelmente coincidente com a da classe dominante, era de que as crioulas, pela sua origem e¢ educagao brasileiras, tivessem atingido um grau maior de “civilizaco” ¢, assim sendo, se afastassem naturalmente dos africanos sujeitos a “supertigdes ¢ gentilismos”, Sabe-se que os afticanos sempre foram mais discriminados que os ctioulos, como indica, por exemplo, o maior nimero de cartas de alforria concedidas aos ctioulos. No caso do Accu, as crioulas, com seus choros, foram tratadas paternalmente © soltas, enquanto as pretas africanas permaneceram presas.** Apesar da sur- presa causada ao juiz de paz, o evento indica que, de fato, na década de 1820, os afticanos j4 recrutavam crioulos as suas atividades religiosas, nao sé como clientes na procura de servigos, mas como devotos, participantes cuja presenga e1a necessdria para manter a dindmica interna da congregacao. Como foi apontado no capitulo 2, 0s crioulos nao podem ser considerados un grupo homogéneo. Havia aqueles de primeira geracao, isto é, criados em familias de africanos, que podiam facilmente integrar-se nas atividades religio- sas dos seus progenitores. Reis comenta que essa “incorporacao ritual de um jrupo numeroso de néo africanos” cra um “imperativo de sobrevivéncia’ do Candomblé, Na verdade, penso que é precisamente quando os africanos con- seguem estabelecer redes de parentesco, a partir da sua descendéncia crioula, que é posstvel a formacao de congregacées religiosas, primeiro domésticas ou {umiliares e depois extradomésticas. Como veremos mais adiante, alguns dos candomblés jejes da segunda metade do século XIX foram fundados por afri- canos em colaboragéo com crioulos, sendo que os lagos de parentesco biolé- jico eram essenciais no recrutamento de novos adeptos. Nesse sentido, con- cordando com Reis, diria que mais do que uma tendéncia “pan-africanista”, 0 sue prevalece na histéria do Candomblé do século XIX é um crescente processo de crioulizagdo e mestigagem.*6 No entanto, cabe frisar que essa miscigenacao de afticanos, crioulos e mu- latos, apesar de crescente e de acentuar-se, nomeadamente, nas tiltimas décadas Jo século, nao devia ser homogénea, isto é, cocxistiam congregacées religiosas nais exclusivas com outras mais permedveis. Por exemplo, temos noticias, em 1859, de um candomblé na Quinta das Beatas com uma predominancia de slricanos (30 africanos, 8 crioulos e 4 mulatos escuros). Jd em 1862, sabemos Jo candomblé Pojava, no 2° Distrito de Santo Anténio, com uma predomi- nncia de crioulos (52 crioulos ¢ 3 africanos). Todavia, cm 1866, na freguesia da Conceigao da Praia, encontramos “um candomblé de crioulas” dirigido por Anninha Sapoea, Terreiros de afticanos persistiram até o final do século, como o comentirio de una velha alricana a Nina Rodrigues, que nao dangava ates Ww LUIS NILULAU FAKES no Gantois porque “o seu tetreiro era de gente da Costa (afticanos)”, enquanto o Gantois era terreiro “de gente da terra (crioulos e mulatas)”.?” Assim, do mesmo modo que entre a camada senhorial coexistiam atitudes conflituosas de represséo ou tolerancia ao Candomble, as prdprias congregacées teligiosas, talvez respondendo a essas politicas, combinayam ora estratégias de resiscéncia e isolamento (mais frequentes no inicio do século), ora estratégias de abertura ¢ inclus4o social (progressivamente mais comuns). Fica por escla- recer até que ponto essa alternancia de aticudes de resistencia e integracao social podia resultar em congregagdes mais fechadas ¢ outras mais permedveis, no que tange 4 composigao étnico-racial dos scus membros. Por outro lado, pox derfamos perguntar se essa polaridade entre “candomblés africanos”, mais fe- chados, e “candomblés nacionais”, mais abertos 4 mistura étnico-racial, estaya ou nao cm relacao direta com a manuten¢ao de modos de rito diferenciados (nagées) ¢ praticas rituais mais “sincréticas”, respectivamente. A OCUPACAO DO ESPACO URBANO EA PARTICIPACAO DA POLICIA NO CANDOMBLE Com a decrescente importancia das irmandades catélicas na segunda metade do século XIX (que no pasado tinham marcado a presenca negra no centro urbano), os candomblés passam a constituir um dos meios mais importante de agregacao social, identidade e resistencia cultural da populagao negro- -mestica. Nesse panorama, a ocupacao dos espacos fisicos da cidade, especial- mente a proliferacao de candomblés no centro urbano, é um fendmeno signi- ficativo. Segundo Muniz Sodré, a tertitorializagéo nao se define como um mero decalque da territorialidade animal, mas como forga de apropriagao exclusiva do espaco (resultado de um orde- namento simbdlico) capaz de engendrar regimes de relacionamentos, relagoes de proximidade e distancia [...] 0 territério aparece assim como um dado necessirio 4 formulacao de identidade grupal/individual, ao reconhecimento de si por outros, Em palavras de Wilson Roberto de Mattos, a concepgao de territorlalidade/ territorializagao “nao se restringe apenas & andlise identificatoria da ocupagio de alguns espacos fisicos determinados, e sim refere-se sobretudo & ocupacito de espagos sociais de alcance mais amplo singularizando-os através de injungoes simbélico-culturai ie ‘ i .* Sem entrar nessa dimenstio cultural mais ampla do pro- cesso de ocupagéo do espago da cidade, interesswome aqui apresentar uma topografia aproximada dos candomblés a partie da diteada de 1860. Mm A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTIEUCIUNALIZACAU DU CANUUMBLE Descartando dos 65 registros disponiveis para o periodo 1863-71 oito casos que no podem ser localizados com preciséo, ficam 57 registros. Desse coral, 51 casos (54%) estao localizados nas freguesias semirrurais que constitufam a fronteira do micleo urbano de Salvador. Nessa area destacam-se a freguesia de Nossa Senhora de Brotas (11 casos), Santo Anténio Além do Carmo (9 casos) © Penha (7 casos).*? Os restantes 26 casos (46%) estavam situados no centro urbano da cidade, sobretudo na freguesia da Sé (11 casos) ¢ na de Sant’Anna do Sacramento (8 casos). Seguiam-se a freguesia de $40 Pedro Velho (3 casos), Passo (2 casos) e Conceigao da Praia (2 casos). .A grande quantidade de dentin- cias de candombl&és no centro urbano, especialmente na Sé, era resultado de star O Alabama localizado nessa 4rea, tendo um acesso direto ao que acontecia nas imediagSes. Certamente existiram outros terreiros na periferia que funcio- navam com maior disctigéo ¢ que nunca foram documentados por esse jornal. Contudo, embora essa topografia seja apenas um esbo¢o aproximado da rea- lidade, chama a atencao o grande ntimero de terreiros ou especialistas religio- sos funcionando no centro urbano. Esse nao era um fenédmeno novo. A tradi¢ao oral lembra o funcionamento nas primeiras décadas do século XIX do famoso candomblé Ilé Iya Nass6, com sua primeira sede na igreja da Barroquinha, em pleno centro urbane.” No entanto, como deixam claro as noticias de O Alabama e de O Oculo Migico, a proliferagao generalizada de candomblés no centro urbano foi um fendmeno iniciado por volta de 1850-1860. D’antes, essas praticas supersticiosas e ao mesmo tempo tenebrosas, tinham Juigar em rogas, fora da cidade, hoje sao celebradas com 0 mais descarado aparato nas ventas da policia.*! Se a policia néo quer candomblés, como consente-os em suas barbas? Manda os soldados cagd-los pelos matos ¢ permite-os aqui dentro da cidade. As reuni6es aqui dencro da capital (S. Miguel] incomodam, e se nao nos falea . so elas proibidas por uma postura da camara ou regulamento policial.” Bfetivamente, pela postura n® 59, de 27 de fevereiro de 1857, “Os batuques, dungas ¢ reunides de escravos, estdo proibidas em qualquer lugar ¢ a qualquer hhora, sob pena de oito dias de prisio para cada um dos contraventores”.“* Ora, postura dizia respeito aos eseravos, Livres ¢ libertos, mediante solicitacao tinham uma relativa liberdade para © pagamento de uma licenga A polfei organizar as suas festas. As tendéncias simuledr © tolerineia caracteristicas da primetra metade do século continuavam na dé e alternativas de repressio LUIS NICOLAU PARES cada de 1860. Para a indignacao dos partidrios da repressio, como os jor listas de O Alabama, muitas vezes esses candomblés contavam com a colaly ragao e até a participacdo ativa da policia ¢ dos membros do exército. Aum ritual funerdrio, em 1867, por exemplo, assistiu o ordenanca do del gado e dois soldados, que “comeram, dancaram e tocaram no segu (sirrum)! O jomnalista de O Alabama protesta: “ainda no vi policia mais candomblezel do que esta! [...] Pedem licenga para tocar e cantat, e a policia concede”, Num terreizo do Engenho Velho, reporta-se a participagio de um subdelepa que, quando assistia & festa acompanhado da sua familia, “caiu no santo [...) no meio das crioulas, com comprido timo, ci-lo a mexer com 0 corpo, €o) seu penacho na mo”.” Quando a policia foi libertar uma mulher que estava sendo iniciada num terteiro em Campinas, as vodiinsis trataram a policia de “nossa gente”.“* Em varios casos se reportam as estreitas relagdes entre os ditl gentes dos candomblés e a policia. Numa “chdcara das Devotas” (provavelmente na Quinta das Beatas, atual Cosme de Farias), por exemplo, o africano Joaquin recebia um subdelegado “cego apologista do santo vodum, apresentando-se con sua familia quando hé brinquedo”. Na mesma Quinta das Devotas (Beatas), 0 dono da casa de um outro candomblé era membro da policia.© Na década de 1860, a tolerancia seletiva dos poderes puiblicos a certos can- domblés poderia ter também uma justificativa politica, tespondendo aos inte esses eleitorais da elite, que via nas congregagées religiosas uma fonte signifi cativa de votos. O Alabama notifica duas festas, nas Barreiras e no Engenho Velho, celebradas em terreiros ou por pessoal de candomblé, apés a vitéria dos conservadores nas eleigGes municipais. A primeira, em 1864, “é uma feijoada dada pelos conscrvadores para agradecerem aos seus votantes"; a segunda, ett 1868, é “uma grande funconata por ter vencido as elei¢des o partido vermelho", O jornalista admira-se por nao saber “que a politica rolava até nos candomblés", O apoio do povo de santo aos vermethos levanta um comentario sarcdstico do jornalista liberal, que chama os conservadotes, “conservadores de candom= blé!”.>! Também as “crioulas conservadoras organizam uma romaria ao Senhor do Bonfim pelo triunfo do partido nas recentes eleicoes” 2 Esse cardter con» servador dos candomblés parece ter-se perpetuado ao longo do século XX, mas € importante destacar que a dinamica jé estava presente na segunda metade do século XIX. Voltando a andlise da distribuicéo geogréfica dos candomblés, cabe notar que a maioria dos “candomblés” do centro urbano eram congregacées de cas rater doméstico, localizadas em espacos pequenos, no interior de ca , lojaty armazéns ou cafurnas, sem espaco de mato, As pritieas mais habituais eran de cura ou exoreismo, para “tirar diabo” ou “Feitiga” do corpo das pessoas, mw tit A WUNTRIBUICAU JEJE NA INSTITUCIUNALIZALAU DU LANDUMBLE \ssim como praticas oraculares para “dar ventura”. Essas aces podiam alternar som ocasionais batuques, geralmente aos stbados ou domingos. Segundo a ilistingao estabelecida neste estudo entre “candomblés” e “individuos”, observa- que no centro urbano predominavam os “individuos”, em oposicao & peri- leria, onde eram mais numerosos os “candomblés’. Dos 26 registros do centro wbano, 14 foram classificados como “candomblés” ¢ 12 como “individuos”, enquanto dos 31 registros da periferia 23 eram “candomblés” e 8 eram “indi- vidos”. Isso indica que, além da importante presenga de especialistas religio- sos no centro urbano, foi nas rogas das freguesias semirrurais que as congrega- bes religiosas conseguiram desenvolver maior complexidade organizacional. alvez por esse motivo a repress#o policial cra mais forte nessa 4rea. Como w queixava O Alabama: “esta policia tem uma queda para os candomblés! \lormire-os por ordem sua, dentro da cidade ¢ manda apreendé-los nos arra- \uilcles!”.* O jornal também denuncia que os candomblés dos atrabaldes eS viam “de esconderijo a escravos fugidos, que af se acoitam por muitos dias”. Desde 0 inicio do século, as freguesias semirrurais da periferia foram o refiigio privilegiado de negros fugitivos, nao sé nos terteitos de candomblé, mas tam- \yim em quilombos. Em 1814, por exemplo, alguns comerciantes ¢ outros ci- adios da praga da Bahia observavam o fraco policiamento da Casa da Pélvo- (4, situada no Matatu, um lugar cercado, em palavras de Verger, de “aldeias de hegros fugitivos”.°° Em Brotas, os libertos eram muitas yezes acusados de in- slusir escravos a fugir dos senhores e os acolhiam, dando-lhes trabalho em suas jogas, sendo que o juiz de paz dessa freguesia tinha devolvido aos seus donos mais de 400 escravos.*” Em 1866, O Alabama pediu providéncias 8 policia para reprimir candomblés ‘em certos pontos da cidade ¢ scus arrabaldes, como Cruz do Cosme, Engenho Velho, Campinas, Quinta das Beatas, Engenho da Conceigio, Matatu ¢ ou- \vos”.® Efetivamente, a Cruz do Cosme (dois casos) — atual bairro da Liber- dade — na freguesia de Santo AntOnio, o Engenho Velho (trés casos) ea Quin- 14 das Beatas (cinco casos), ambos na freguesia de Brotas, e Campinas (trés casos), na freguesia de Pena, parecem ter sido alguns dos pontos mais impor- antes de concentragio de candomblés na periferia. Os grandes latifundiétios que constitufam a elite capitalista e branca da sociedade soteropolitana moravam normalmente em palacetes ¢ sobrados nas ireguesiay urbanas. As suas propriedades na periferia semiurbana, por vezes extensos engenhos e fazendas de frutas ¢ mata, eram exploradas pela populagio ogra, majoritariamence livres ¢ libertos, que se dedicayam também a lavoura de subsisténcia, com o cultive da mandioca ¢ hortaligas. Assim, “grandes ché- canis conviviam com pequenos lerenns, e eram frequentes arranjos de meagio arth LUIS NILULAU FAKED entre proprietérios ¢ lavradores”. Na maioria dos casos, esses arranjos eram concessées de sortes de terras “a titulo de foro”, o que permitia a certos liber- tos e suas familias dispor como rendeiros dessas rocas com relativa autonomia, Podiam dar-se casos também de certos libertos que comprassem pequenos lores de terra.” Em vodas essas situacées, existia a possibilidade de controle por parte dos negros de certos espagos fisicos, as vezes em lugares de dificil acesso, no mato, fora dos olhos dos proprietérios ¢ das forgas ptiblicas, para organizar as ativi- dades religiosas ¢ eventualmente consolidar candomblés. Essa territorializagio em volta do nticleo urbano nao decorria s6 de uma estratégia de ocultacao, | mas respondia também a um imperativo interno do ritual afticano, no qual io imprescindiveis os elementos mato ¢ agua para o culto das divindades. Em 1870, O Alabama traz um interessante caso que mostra as eventuais relagGes de conflito entre latifundiarios rendeiros. O senhor Cotia Brandao, proprictério da Campina, na freguesia de Pirajé, queria dobrar 0 aluguel co- brado ao afticano pai Thomaz, chefe de um candomblé naquelas terras. Nesse caso, nao hé um problema com as atividades religiosas: 0 proprietdrio aceita que batam candombleé “até feder, com tanto que paguem a renda” de 20 réis. por tarefa, Além do prejuizo que significava o aumento da renda, pai Thomaz, que ocupava aquele “mare-magnum de terras” desde 1847, corria o risco de perder trés casas que tinha construido no terreiro. Tendo em vista que estaya’ em jogo nao s6 a permanéncia do candomblé, mas o patriménio do rendeiro, pai Thomaz ameacou o senhor Cotia de morte. Alias, “o preto, tendo sido de wl, tem protegao gratis de advogado, que é apologista acérrimo do cans domblé". Vemos, assim, como a posse ou o controle da terra era j4 um tema conflituoso para os candomblés naquela época. No entanto, entendo ser 0 acesso A terra um ponto crucial para a consolidacao dos candombles, pois estes ce a cas ptecisavam de espacos fixos para “plantar” seus assentos. Se no centro urbano cles podiam ficar ocultos em quartos, era nas rogas da periferia semiurbana que 0 assentos aturais”, em Arvores, rios ou fontes, podiam ser instalados. A PREDOMINANCIA DA TRADICAO JEJE NO CANDOMBLE DA DECADA DE 1860 Se na década de 1830 jé existem claros indicios de congregagées extradomés- tieas com um signifi tivo grau de complexidade social e ritual, a documenta» gio de O Alabama nao deixa divida de que na década de 1860 0 Candomblé tinha acingido um nfvel de institucionalizagho comparivel ao que conhecemos hoje em dia, Além das frequentes atividades de cura e adivinhagao mantidas a A CUNTRIBUILAU JEJE NA INDTIIUCIUNALIZAGAY DU CARDUMDEE por especialistas religiosos individualizados, havia uma extensa rede de con- gregag6es religiosas, com espacos sagrados relativamente estaveis, tanto nas rocas da periferia como no centro urbano, que mantinham variadas relagoes de cooperagao e complementaridade. Essas congregagdes estavam organizadas conforme uma hierarquia que derivava do principio de senioridade, estabele- cido através de demorados processos de iniciagao. Como ja salientei repetidamente, a atividade ritual era desenvolvida a par- tir do “complexo assento-ebs”, com periddicos sacrificios animais ¢ oferendas alimentares nos alrares. Um aspecto que até agora s6 comentei en passant, mas que constitui uma importante caracteristica ritual dessas congregacdes extra- domésticas, é que cada uma delas estava dedicada ao culto nao apenas de uma sé divindade, como parece ter sido a norma no século XVIII, mas a uma plu- ralidade de entidades espirituais. De fato, esse seria um trago distintivo dos candomblés oitocentistas que viria confirmar 0 processo de crescente comple- xidade ritual que experimentou a instituigao do Candomble. Embora, segundo a tradic4o oral, 0 culto de miiltiplas divindades remonte As primeiras décadas do século XIX, com a fundagio do candomble Llé Iya , na Barroquinha, € sé em 1858 que achamos os primeiros indicios do- cumentais que sugerem essa realidade,“' No entanto, contrariamente 4 ideia prevalecente nos estudos afto-brasileiros, a minha hipdtese ¢ que 0 culto de muiltiplas divindades #4o foi uma simples inovacao brasileira, resultado das novas condigées da sociedade escravista e do encontro das varias etnias africa- nas, Sustento que essa pratica ritual encontra claros antecedentes africanos na sirea gbe € que, logicamente, a matriz jeje ou as tradigées do culto de voduns tiveram um papel determinante no processo constitutivo desse modelo de Candomblé. Trata-se de um assunto complexo e controyerso ¢, devido a sua importancia, dedico-lhe especial atengio no capitulo 7. Seja como for, os cultos de miultiplas divindades baianos comportavam ceriménias publicas, com toque de tambor, dangas ¢ manifestacao das divin dades no corpo dos devotos, que duravam varios dias. Finalmente, essas con- regag6es compartilhavam um calendario de festas relativamente homogéneo. Por exemplo, depois do Carnaval, no perfodo de Quaresma, suspendiam as atividades rituais celebrando a “festa do balaio”. Todavia, em novembro, alguns (erreiros celebravam a “festa do inhame novo”, consistente “na consagracao dos primeiros frutos da colheita de cada ano as divindades africanas”, e, em setembro, celebrava-se a festa dos gémcos sio Cosme e so Damiso, sincreti- zados com os ibejis nagds, os hoho jejes ou os mabagas angolas. Os rituais fu- nerdrios e os presentes As “mies d'dgua” eram também atividades regulares em que podiam participar membros de diversas congregagoes. Mi {y8 ‘opeafes ouojoypy op {avprnite ‘eaysnoiod iota ep fp] NO ayuns o yduins SU daSse “uns ‘saroquies sop tsyuy ‘endy WO9 seYIOY ap OPSvIDIELE ep So) uds © B0]09 a8 apuo seSn] Op ‘rung No v20N4 ‘soprIlut sop o1ENb op PIilod 0 spapsuodsox nas op > 4d ‘oupmiues no seiye op sattrou s¢ “oonyrotu odnad op oSeayissep ap ewaisis assap wgye rea sala! sop vorisnBuy eoUugNyUT v sey yo’ llantou. ‘uatinoulNd ‘now’ “Ua4) -nowiok “nowol uatinouBou nouvSou ‘uatipuop ‘uoynouelpunod,, ‘OdON| 01104) ap sunpoa ap soxno sou sopezijiin sojanby susurepeurrxosde ureyropuodsoi109 [iseig ou sopeztjian soonpiorur somo so ‘AssonBy 9 afpurzy ope “eu] axo8ns ow0’y ‘sofof oauatupeIouasso ovs ,seqnsoI-93eu OvUL,, soIUDUID]> sass] *(ossou oyt1) seqnior-oStu op sommaurs|9 soamno ap ‘epunfoud nininigso ons pu ‘eduasoid ¥ Woo OpInzsuod 9 gBeU g[qUIOpUE> 0 onb ap s1uapuniio ojdwaxs um 9 ¢,eyunora ‘ora “eyunourop ‘owop ‘eyupouretl ‘ound ‘eyunouroy ‘outos ‘cyUNUOJOp ‘ouosop, soursar sojad <[enausAUOD OVsNIDAI op) odedso ou vpesiue ap wiopio vjad sopeayriuopr ovs sorueso3u1 sofns «(sory sep oo10q) oopprius odnu8 op oxSeuioj ep anzed & opinnsucs opSeoyyssep ap euz2asis 0 anb equ99 -souy * uiruog op ovdeindod vjonbep svonpioiut 9 srenauoauos soSeziue8z0 sup sowrrxosd o3mnus wozey so anb suoy srena1i sorutu9s ap sound soionb no oxanb -98vu opseu ep womp as anb sgjqwopues sop vimmnmse vu eSuasaid v, vied oySuate & eureyp eur] ¥1S0D ep OPTEAIA ap a ONseD ap vossag Epag ap 5905 -eurroyur opumnes “eSerg orn{ ‘oouyzodureruos ajquropue ov opSepar wry, ‘aq vaxy vp sorrpurS10 sowie: ap voupUTWopard vanes vuM a108ns y~H199) -YY O ap eWSopourwio; ep osirue eyUTUT ‘soo5eioIdIoIUT sessap O1TPIIUOD OV «9'$0(al so urexodns soZeu soursan so jenb v opungos ‘vuingryy Cop euRdtze v0] -oufuiio ep wo8eiu0o ens vjad epedioja1 ovsisodns ‘93vu ovSipen ep euow -ofay eum aro8ns wpqurer fel oedipen ep vouprodus x opussaquiosax 9 vp -eropuod stew eursoy ap ‘siy +, XIX 0]N598 Op soprour ap vureq-oye vs018!]91 zpey vu oSvu vpupuTMopard, vp 2 s1eUTWOp Seu oxajdutos, win ap eI) wpquiva Alowyy pursoT “9[quopueD op seosipen svano ouvrod oSeu PISO) -o1Tw vp .2pepHonodns,, ep sosuayop oxuourpenst ‘sonSrmpoy 2p sooseiordsoqu} se sepegp $922 Wo vavdisoiure ‘o]9 opundos ‘onb « yumgayy () op seured sxjad opnrmsuen 98eu apepriouiodns ap opnuss, op 2 sopeayes wa sarmeuluiop -aid seqnso1 seuvreq-oxye soodipen, sep pty roan assy “vo0d9 vonbep 9]quiop -UeD ow sgdeu somsrse1 sop raJiguUMU epepHopedns vuIN 728 9 SpxIsO ap soajnd sop Seu ovdipen ep eruoway eum ‘oxxe1 ou epeyusurepuny oonod euro; vuin op ‘sere ‘oodnssaid uoperr ‘vuvgryy CQ op seIoMou sv IeUDWIOD OY TIOWOANY) O0 NYIVZITWNODOIICN WH Ifa Owing Inn) © ayy [PUY oer H HeMOjOr 9 eMEYHOD v LATA Nb o ‘oHeU opseu,, op s9janbe a1qos soxjori9) sosiop HauyuTUOpard eum opupsoins ‘xpX ojna>9s Op apriour vpungos ep sopeaeg vu afof ,ovdeu, op sorazioi sop vduosaid w ayyeaw opuspuaiad ‘y)quiopure ou ,ovdeu, 2p or199009 0 srodop omnos}p ‘9s4| PUL WV) oauiata[duros 9 oruDUqopssp WIT ‘PUErG”Y C 9p svas}feUs0! 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A andlise linguistica dos termos africanos aparecidos em O Alabama vem confirmar e reforcar essa hipdtese apontada por Lima e Braga. Em primeito lugar, e de forma muito significativa, o termo “vodum” (“santo vodum’”, “dan- sar vodum”) aparece sete vezes para se referir 4s divindades africanas, enquanto no hé qualquer mengao do termo “orixd”, a nao ser na expressio composta baba-loixa (do iorubé babalorixa) para designar o chefe religioso. E muito provayel que nessa época, ¢ talvez jé desde as primeiras décadas do século (lembremos 0 “deus yodum” do candomblé do Accti em 1829), “vodum” fosse utilizado na maioria dos terreiros como termo genérico para aludir as divin- dades africanas. Essa extrapolacao do termo “vodum’ fora do Ambito restrito dos terrciros de nagao jeje ¢ altamente sugestiva da influéncia da tradicio do culto de voduns na instituigéo do Candomblé. De forma semelhante, em te lagao aos processos oraculares aparece em duas ocasides o termo “Fa”, como é denominada a divindade da adivinhagao na area vodum, ¢ nao a forma “If”, utilizada pelos nagés. Quanto aos nomes de divindades, aparecem trés referéncias explicitas voduns (entre parénteses o ntimero de ocorréncias): Lebal (1), que seria Legha; Soubé (1), que seria a divindade do trovao, Sogho; ¢ Loco (5), que seria o deus-drvore, associado 4 gamelcira. O tiltimo aparece também sob a forma Loucose, que 6 0 nome dado as devotas dessa divindade, sendo que em fon, 0 sufixo s? significa “esposa de” (lokosi = a esposa de Loko). De forma andloga aparecem alus6es indiretas a outros dois voduns: Aguesa (1), devota do vodum cagador Agué, e Nanasi (1), provavelmente do vodum Nani. Se a essa lista somarmos a jd mencionada divindade da adivinhagao, Fa, teremos um total de seis voduns jejes. Por outro lado, s6 aparecem cinco divindades nagos: Xangé (3), 0 orixd do trovdo correspondente a Sogbo, sendo que em um caso ¢ nomeado no context de um terreiro jeje; Oid (1), significativamente nomeada como “a mulher do santo maior — Soubd”, e néo do orixa Xango; Oxalii (2), o “santo mais velho (Padre Eterno)”; Ogum (1); e Xapanan (1), Aparecem varias referencias & festa de sto Cosme ¢ sio Damiao, numa ocasiio referidos com o termo angola ma: baga, assim como varias referencias as “mies d'dygua’, que poderiam encobrir Mma A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCIONALIZACAO DO CANDOMBLE indistintamente divindades jejes, nagés ou congo-angolas. Numa das noticias fala-se de “cultos a fantasiada mae d’4gua, a uma serpente, a um passaro, etc.”. Essa mengo ao culto da serpente poderia aludir ao vodum Dan ou ao orixé Oxumaré, O pdssaro poderia ser uma aluséo ao vodum cagador Agué, As vezes representado como uma ave, ou talvez ao culto das iamis (ancestrais femininos associados a feiticaria). A ligeira predominancia de nomes de voduns sobre nomes de orixds € com- plementada pela maior predominancia jeje em relacdo a termos ou titulos hic- rirquicos. Para referir-se & dirigente feminina do terreiro, utilizam-se com fre- quéncia termos portugueses como: “mame, mae do terreiro, rainha, gré-mestra, ou sacetdotisa”, e para o Ifder masculino, “papai, pai do terreiro, presidente, grande-mestre, ou gré-sacerdote”. Quanto a termos africanos, ha referéncia a quatro indiyfduos identificados com o titulo nagd baba-loixa (variantes baba, baba-louxa), do qual detivatia a expressio portuguesa “pai de santo”. No entanto, s4o mais numerosas as mengoes a titulos hierarquicos de origem gbe, como gumbénde (variante, gormbono) (3), ou a sua verso feminina gum- bonda, uma evolugao fonética do termo fon hunbon3, designando o chefe re- ligiosos guncb (1), para designar a mulher do gumbénde, e donunce (1), descrita como “espécie de gra-mestra da ordem”, termo derivado provavelmente de donusi, significando iniciada no segredo dos amuletos ¢ da farmacopeia, ou de donoche, composto do termo nicé, “minha mae”. Em consonancia com o uso generalizado do termo “vodum”, utiliza-se com muita frequéncia o termo vu- duneas (variante avudungas) (5), corruptela do termo “vodtinsi”, pata se referit \s adeptas das divindades, sem aparecer em nenhuma ocasigo os termos iorubds “iad” ou “ebome”, mais frequentes hoje em dia. HA ainda referéncia a duas mulheres chamadas Margarita Gamotinha e Maria Doufona, confirmando a utilizagdo dos termos inicidticos acima comentados nessa época. No contexto de um terreiro jeje aparece o termo “equede” (mestra das novigas), de origem ctimolégica ainda incerta, Do mesmo modo, o titulo “oga” (6) — utilizado ora como sindnimo de chefe do terreiro, ora como nome dos dignitdrios mascu- linos que secundam o lider religioso em diversas Fung6es —, por ser um termo compartilhado por jejes ¢ nagés, é irrelevante para a contagem. Resumindo, para uma ocorréncia de termos hierarquicos nagds (baba-loixa), aparecem seis de origem jeje. Em relagao a outros cermos africanos, como nomes de rituais ou alimentos, 4 proporgao é invertida, Aparecem 14 termos nagés, 9 jejes, 4 bantos (milonga, missangas, sungu ¢ candombld) © 7 que nao foram identificados.” Cabe notar que entre os termos nagds predominam ox nomes de alimentos ou animais, provavelmente utilizados também fora do Ambito teligioso: atds (ata ou pi- we LUIS NICOLAU PARES menta) (1); obi (06, fruto) (5); orobé (ordgbd, fruto) (2); eipow ou épu (epo ou azeite) (2); afurd ou furd (ffird em haucé, afiird em iorubd, bebida) (2); ef6 (ef ou folhas comestiveis) (1); amal4 (4mada ou comida votiva) (1); acucd (akako ou galo) (1); etuns (ett ou conquém) (1); abou (dgbd ou carneiro) (1); forican- abou (f ort kit agbd ou cabega, colocada sobre carneiro, ato ritual de realizar os pedidos com o animal sacrifical) (1); obacougu (Oba Koso, nome de Xangé que em O Alabama designa um “pissaro que os africanos veneram e cujo canto 0s adverte, quando se aproxima alguém”, talvez 0 gaviao, associado a Xang6) (1); eb6 (ebo ou oferenda) (1); oj4 (jd ou tira de pano) (1) Contrariamente, entre os termos jejes a maioria refere-se a importantes espagos, atividades ou objetos rituais: pegi (kpe ji ou altar) (3); segeen (sirrum ou ritual funerario) (2); sapocan (ritual inicidtico) (2); von-siga (v3sisd ou sacti- ficio) (1); mocan (mwekan ou colar de palha) (1); gés (j& ou contas) (1); Aessé (kesé ou papagaio da costa) (1); bobo (abob3 ou massa de feijao) (1); e agonté (broto da palmeira “ténier”; aparece sob a forma aguntesa, nome ritual de uma sacerdotisa) (1). Sumariando, minha anélise linguistica de O Alabama mostra uma ligeira superioridade numérica dos termos jejes em relacao aos iorubés.” B claro que essa evidéncia linguistica nao € prova conclusiva da dominancia jeje no Can- domblé, mas certamente é indicativa de um equilibrio de forgas entre as tra digdes jeje ¢ nagd. Ora, sendo que na década de 1860 os nagés constitufam a grande maioria dos afticanos na Bahia € os jejes, apenas uma minoria, 0 equi- Iibrio lingufstico demonstra a importancia dos cultos de voduns no proceso formativo do Candomblé ¢ sua atualidade critica ainda nessa década. Em outras palavras, pode-se supor que, no ambito do Candomblé, a superiorida- de demografica dos nagés ainda nao se tinha traduzido em hegemonia cultural, Para reforcar essa ideia vamos agora avaliar até que ponto nos candomblés da segunda metade do século XIX existia algum tipo de divisio em termos de “nagoes africanas” e, nesse contexto, qual era a presenca dos terreiros jejes. Como jé vimos, no inicio do século a populagao africana agrupava-se em fun- sao de identidades coletivas que, embora criadas no Brasil, respondiam a dife rengas culturais ¢ linguisticas, de origem predominantemente africana, Lem- bremos, por exemplo, os ajuntamentos dos angolas, os jejes e os nagos e hau- gas em Santo Amaro, em 1808, ow a politica do conde dos Arcos, que favorecia essas divisées étnicas. No encanto, ¢ as distingdes parecem diluir-se & medida que avanga 0 st culo. Em O Alabama, por exemplo, néo encontramos nenhuma referénela -se apenas de “seitas africanas’. Como ja comentel, na segunda merade do século a compos explicita a nagées afticanas em rela 10s candomblés da é¢poca, Fal ssa A CONTRIBUICAD JEJE NA INSTITUCIONALIZACAU DU CANDUMBLE sigo social dos candomblés apresenta uma crescente heterogeneidade étnico- -racial, Esse processo de mestigagem se acentuou com a abolicéo do tréfico e o fim da chegada de novas levas de africanos. Ora, 0 siléncio documental de O Alabama em telacdo a distincées étnicas entre as diversas congregagées reli- giosas valvez seja uma falsa aparéncia. Em parte, esse siléncio pode ser expli- cado pelo fato de que, 2 partir de 1850, as classificagées étnicas afticanas dei- xaram de ser usadas pela classe dominante na sociedade mais ampla, pasando a set utilizado apenas 0 termo genérico “africano” (ver cap. 2). Mas isso néo significa que os africanos e os seus descendentes crioulos nao tenham preser- vado essas denominagées no contexto religioso e familiar. A crescente heterogeneidade étnico-racial da base social dos candomblés sugere a priori a existéncia de um paralelo processo de heterogencidade ritual, com uma progressiva interpenetragao de praticas ¢ valores religiosos das ma- trizes jeje, nagé ¢ angola. Na década de 1860, a jé mencionada simbiose do “Candomblé jeje-nagé” estava certamente em proceso, e é provavel que certos terreiros ou lideres religiosos nao mais identificassem as suas prdticas em termos de “nagées” ou categorias étnicas. Vide como exemplo uma das noticias de O Alabama sobre 0 candomblé do africano Zé Rolavo, na Quinta das Devotas. O lider é identificado com 0 termo jeje gombono ¢ tem uma filha de santo, chamada de vudunga, outro termo jeje, mas que é devota de O’xald, nome de um orixd nag6. Essa oudunga, incorporada pelo seu orixa, predisse a um oficial militar, seu marido ou amisio, que ele estava para set demitido brevemente ¢ que, para o nao ser, havia de Ihe dar um aboz (carneiro), meia canada de épu (azzite), dous acucd (galos), um hessé (papagaio da costa), obis, colla, atds ¢ orobés, doze da cada um, para fazer um eb6 (cumprimento de preceito para alcancar qualquer graca) com 0 que nao sé arreda- ria 0 mal que lhe estaya iminente, como passaria a capitao. Na lista de ingredientes para o ebd (termo nagé) aparece uma mistura de homes jejes ¢ nagés (ver acima). Apés imolar o carneiro, fato que indicaria uma tradigéo nagé (0s jejes nao sacrificam esse animal), e de beber algumas gotas do sangue, seguiu-se a cerimdnia butlesca do fortean-abou, que consiste em dar leves mar- radas na cabega do animal morto, enquanto o preto engrola certas palavras. Depois espécie de danca chamada bonadué e 0 nosso oficial muito ancho enfeitade de gés (contas) tomou conta do nacueu cuim do von-siga (sactifieio), seguiu-se um (tabaque) © comegou a bater deamesuradamente, enquanto as fidhas da casa, em de or voltas ¢ extravagantos posturay dangavam LUIS NICOLAU PARES: Nessa burlesca descrigio do ritual, de novo misturam-se express6es jejes € nagés, mas o detalhe ¢ 0 esforgo que toma o jornalista em utilizar ¢ traduzit os termos afticanos indicam ou que ele estava por dentro da historia, ou que teve um informante conhecedor do assunto. Porém isso nao impediu que cle incorresse em algum erto, pois 0 forican-abou, por exemplo, realiza-se com 0 animal vivo, antes do sacrificio. Em qualquer caso, a narrativa dessa noticia é indicativa da possivel interpenetragio e mobilidade de termos e préticas além das fronteiras de nagao. Alids, essa fluider interétnica de interpenetrasao ritual teria sido um fator constante, ¢ até imprescindivel, na génese ¢ continuidade do Candomblé. Feita essa importante ressalva, também é provavel que, ao lado desses espe- clalistas religiosos mais abertos 4 assimilacao de praticas ¢ valores de varias fontes, existissem outros igualmente cientes das diversas origens € utilidades de cada’ uma dessas priticas, capates de reconhecer diferengas estabeleeee eritérios seletivos entre umas ¢ outras. Cabe lembrar que a maioria dos terreiros dese perfodo eram fundados ¢ liderados por africanos, espccialistas rcligiosos predominantemente iniciados na prépria Africa, De um modo ou de outro cles continuaram sua carreira religiosa no Brasil, adaptando o seu conheci- mento e inserindo suas praticas no modus operandi que encontraram na sua chegada no contexto colonial. No entanto, é mais do que provavel que alguns 's intraétnicas, tiyessem interesse em manter certos ritos, divindades ¢ terminologia especificos «a suas terras de origem como estratégia de identidade ¢ diferenciagao. lim outras palavras, as distingdes entre diversas nacées de candomblé, ape- sar do siléncio documental, seguramente persistiram no seio de certas con- gregagdes religiosas, como acontece até hoje. Com o progressivo falecimento dos lidere: deles, como lideres, especialmente os favorecidos por redes soci afticanos na segunda metade do século, os seus descendentes crious los, apds herdar a lideranga dessas congregagées, continuaram a manter as identidades de nagdo com base nessas praticas rituais. Portanto, embora a heterogencidade étnico-racial dos participantes dos candomblés tivesse cresci- do ao longo do século, a identidade das nagées africanas ficou ancorada em certas ci dif acterfsticas litdirgicas que eram emblematicas de tradi¢ées religiosas enciadas. Partindo dessa premissa, tentarei avaliar a presenga de elementos litirgicos de uma ou outra tradigao afticana nos candomblés documentados em O Ala bama para inferir dai a predominancia de uma oui outta “hagao”. O exercicio ¢ complicado por varios motivos. Em primeiro lugar, pela propria ambigui- dade existente na adscrigio a uma ou outra nagho, que em alguns terreiros podia ter uma consideragio de pouca importinels, Hin segundo lugar, pela A CONIRIBUICAD JEJE NA INSTITUCIUNALIZALAU DU CANDUMBLE relativa confiabilidade das noticias de O Alabama, escritas por pessoas alheias ao Candomblé, que embora fossem, as vezes, testemunhas oculares dos even- tos, podiam incorrer em distorg6es ou erros. Em terceiro lugar, na maioria das noticias nao h4 elementos suficientes para inferir qualquer identificagao. E em quarto lugar, a posstvel identificagao de nagées que apresento esta bascada numa combinagao de estratégias analiticas, como a origem étnica dos lideres, o uso de terminologia hicrarquica ou o culto de certas divindades, que sio apenas ind{cios ¢ nao provas conclusivas. Mais confidveis sao as identificagbes de nagao dos terreiros que estdo ainda na ativa e reconhecem a pertenga a uma ou outra nagao. Apesar dessas dificuldades, acho que 0 exercicio, embora ape- has tentativo, revela certas tendéncias significativas. Dos 65 tegistros identificados em O Alabama correspondentes a “candom- blés” (congregagées religiosas coletivas) ou “individuos” (especialistas religiosos que atuavam provavelmente de forma independente, sem uma infraestrutura de grupo estavel), apenas 20 apresentam dados que permitem sugerir uma iden- tificagdo de “nagao”. Desses 20, s6 8 podem ser identificados com certa confia- bilidade, e sao os casos que chamaremos “positivos”, sendo o restante casos apenas “provaveis”. Dos 8 casos “positives”, 5 seriam jejes, 2 nagés, ¢ 1 angola. Dos 12 casos “provaveis’, 5 seriam jejes, 6 nagés ¢ 1 angola. Somando casos positivos € provaveis teriamos 10 jejes, 8 nagés ¢ 2 angolas.” Vemos, assim, que a andlise quantitativa dos terreiros por “nacdo” apresenta uma correspon- déncia com as proporcées achadas na andlise linguistica, sendo os jejes maioria, seguidos de perto pelos nagés e depois pelos angolas, em menor niimero. Esse fato reforca a tese inicial de uma relativa predominancia das tradig6es jejes no Candomble pré-aboligao. Expostos os resultados da andlise, ¢ preciso detalhar como eles foram obti- dos. Um primeiro critério pata avaliar a “nacao” de um terreiro, se nao toral- mente confidvel pelo menos aproximado, seria considerar as origens étnicas dos seus chefes ou dirigentes. Ora, dos 81 lideres (33 africanos) identificados por Reis para o perfodo 1800-1888, s6 6 puderam ser identificados com nagoes africanas: 2 angolas, 1 mina, 1 jeje, 1 haugd e 1 nag6.’? Desse numero, apenas os dois angolas ¢ o nag aparecem no periodo 1863-1871. Vejamos os casos angolas. Em 1864, denuncia-se um candomblé “no lugar denominado Dendezeito”, na freguesia de Penha, “cujos chefes sio Anna Ma- tia, africana, de nagéo Angola e um negro conhecido por pai Francisco”. Ana Maria, também chamada “yainha, ou mie do terreiro”, era ider de uma congre- yagdo composta pelo menos por 13 membros: 6 mulheres ¢ 7 homens (6 deles “tocadores de tabaque”); 3 aftieanos, 2 crioulos, 3 pardos ¢ 5 nao identificadoss sendo nomeados encre eles 2 libertos e | escravo, O segundo caso angola cor- LUIS NILULAU PARES responde ao “preto velho angola, papai Mané, que tira diabos, bota diabos, vende diabos, empresta diabos e é 0 mesmo diabo”. Uma vez que nessa noticia as informagées sé apontam para atividades de cura e exorcismo, considero apenas provavel que “papai Mane” fosse dirigente de um terreiro angola.” Entre os casos nagés, os dois que consideto “positivos” séo 0 candomblé de Domingos Pereira Sodré ¢ 0 candomblé chamado Moinho, dirigido pela afti- cana tia Julia. Tanto Reis como Harding comentam 0 caso do liberto Domin- 08, ¢ o primeiro autor achou uma noticia no Didrio da Bahia, em 28 de julho de 1862, na qual se especifica que era origindrio de Onim (Lagos). Aparen- temente secundado por duas libertas ganhadeiras, dava ventura a uma clien- tela sofisticada, ao tempo que trabalhava para libertar escravos dos seus senho- res por meio de “feitigaria”. Trata-se provavelmente do mesmo “papai Domin= gos” que aparece em 1870, no beco do Acti, em Brotas, dirigindo, junto com mame Mariquinhas Velludinho, uma “sessao magna, em uma roga, para evo- cara alma do Chico Papai, gra-sacerdote do fetichismo”.”“ O segundo caso é 0 do Moinho, que pode ser identificado como nagé por evidéncias atuais, j4 que, na verdade, se trata do mesmo pessoal do terreiro Gantois (Ilé Iya Omin Axé Iyamassé), reconhecido como um dos candomblés nagd-ketus mais antigos da cidade. Em 4 de janciro de 1868, aparece uma primeira noticia em que se fala de um “pagode” ou “bando”, na estrada do Rio Vermelho (atual Vasco da Gama), composto pela “gente do terreiro de tia Julia, no Moinho”, e cita-se também a “Pulcheria, segunda mamie do terreiro”. Nao cabe diivida de que se trata da africana Maria Julia Conceigao Nazaré e a sua filha Pulcheria, dirigentes do Gantois, como foi documentado por Nina Rodri- gues na década de 1890: “a mae de terreiro Julia, velha africana [...] assiste-a imediatamente sua filha Pulcheria”. O Moinho estava localizado perto da es- trada do Rio Vermelho, seguramente nas imediages do Dique do Tororé, no acual Garcia, e seria sé a partir de 1870 que se mudara para a sua atual locali- vagio, na fazenda Gantois. Vatias outras noucias sobre o Moinho acrescentam inter antes informagées, como a celebracéo da “festa do inhame novo”, em novembro, ou a festa organizada em finais de dezembro por uma devogio de Nossa Senhora da Conceicéo, seguida de obrigacao com sactificio de “um boi \ Mae d’Agua” (provavelmente Oxum).75 O critétio para identifica os outros seis casos “provaveis” de terreiros ou individuos nagds ¢ 0 uso do titulo baba-loixa, ou a mengio de divindades nagos em relagéo aos seus membros: 1) um baba-loixa nio identificado, com terreiro na Cruz do Cosme; 2) 0 senhor Granada, filho de santo do butba-loixa da Cruz do Cosme, consagrado a Xang6 ¢ Oxald, “curador de feitico e tirador de diabos”; 3) 0 baba-loixa Turlblo, com candomblé na Quinta das Beatas, Ww A CONTRIBUICAU JEJE NA INSTTIUCIUNALIZALAU DU LANUUMBLE falecido em 1864; 4) os “baba-louxas, Azomé e Acromece, professores jubilados da extinta escola de Chico-Papai, dao ventura e consultas, ¢ tiram diabo do corpo, a pregos cémodos”, com casa na ladeira do Alvo, na freguesia de Sanr’Anna; 5) o “africano curandeiro Augusto”, também chamado baba-loixa, com terreiro no Campo Grande, dedicado a praticas de exorcismo. Finalmente, 6) 0 candomblé de Chico-Papai, localizado na Rua da Poeira, poderia ser também nagé, visto que seu dirigente tem dois filhos de santo chamados de baba-loixas, & “colega” do baba-loixa da Cruz do Cosme, e a sessio celebrada em 1870, apés cinco anos da sua morte, foi dirigida por papai Domingos, provavelmente o mesmo Domingos Pereira Sodré, nag de Onim. Cabe notar que pelo menos trés desses casos (2, 4 ¢ 5) aparecem como “individuos” dedi- cados a atividades de cura ¢ adivinhagao, sem ficar claro se efetivamente eram lideres de uma congregacao religiosa complexa,” Em telagao aos dez casos de candomblés jejes, identifiquei cinco como ‘positivos”, Em primeiro lugar figura o Bogum, terreiro ainda na ativa, consi- derado o representante mais notério da nagao jeje no Candomblé sotero- politano contemporanco. Sobre ele aparecem varias noticias entre 1867 ¢ 1870, que comentarei em detalhe no préoximo capitulo, Um segundo terreiro, na Quinta das Beatas, pode ser identificado como jeje. Nao constam os nomes dos lideres, apenas menciona-se um “papai” e uma “mam4e”, mas reporta-se © caso de uma mulher “de um homem do comércio”, levada em segredo, “fe- chada na cadeira”, que ia ld para “dangar vodum” e “a Loco adorar”. Embora se diga que ela “pega de Xangé na machadinha”, poderia tratar-se de uma alusio 10 vodum Sogbo, pois nesse terrciro aparece a mengao explicita entre os seus membros de “negras geges, crioulas e mulatas”, Essa referéncia & etnicidade das africanas é um caso singular na documentacao de O Alabama e constitui uma evidéncia forte da na¢ao do terreiro.” A identificagio dos outros trés casos “positivos” deriva da tradicio oral man- tida até nossos dias. A finada Valentina Maria dos Anjos, mais conhecida como Doné Runhé, mae de santo do Bogum entre 1960 ¢ 1975, lembrando os anti- jos terreiros jejes de Salvador, citava o Kerebetan, o Campina de Boskejan e © Agomea.” A ialorixé Olga Francisca Régis, dirigente do candomblé do Ala- Keto, confirmou algum desses nomes: “tinha Agomé, tinha Kanjira, tinha [ou- t4o] junto ao terreiro de Tapa, que ¢ onde tinha gaiaku, Zerebetan, mas era da praia [...]. Temos até a cantiga ‘Zerebetano zaro, daqueles lados 1a da bei se caso, permanece fiel ao pasado, pois verebetano zaro”.” A meméria oral, ne efotivamente achei referéncias documentais a esses terreiros jejes em O Alabama. Sobre o terreiro Zerebetan (var, Kerebetan) encontrei uma noticia, em 15 maio de 1867, na qual se denuneia o desaparecimento da parda escrava i LUIS NICOLAU PARES: Casimira, que “foi com outras a um terreiro para o lado das Barreiras, chamado em lingua africana Querebetan — fonte onde tados vao beber”. Se a tradugéo do jornalista € correta, o termo original seria talvez Querebetd, sendo #0 (t) 0 termo fon para se referir a todo curso d’agua, lagoa, rio ou riacho. Existe, na atualidade, na periferia de Salvador, um bairro chamado Calabetao que talvex seja uma corruptela do antigo candomblé do “lado das Barreiras”. A Casa das Minas, em So Lufs do Maranh4o, um dos terreiros jejes mais antigos ¢ im- portantes do Brasil, ¢ também chamada Querebenta de Zomadonu. Segundo Sérgio Ferretti, em Sao Luis querebenté designa a casa do povo de Davice, casa grande, ou terreiro de Davice. Davice (provavelmente de Davie, um reino anterior ao de Alada) na Casa das Minas designa a familia de voduns reais do Daomé, liderada pelo vodum Zomadonu.” O “terreiro de Agomé” (variante Agomea) estava localizado em Campinas, nas imediagées de Pirajé, na freguesia da Penha, e nomeado numa noticia em 11 de novembro de 1871. De uma forma bastante preconceituosa ¢ dis- torcida, sao descritas as condicées das vodiinsis na camarinha. Aparece mengao A “mamae do terreito, (gumbonda)” ea crioula Paixao, “equede” ou responsdvel pelas iniciadas.®' O nome do terreiro deriva seguramente de Agbomé, atual Abomé, capital do antigo reino de Daomé. Poderia, portanto, pensar-se que esse candomble fosse de nag4o jeje-dagomé. E, provavel que esse terreiro de Agomé tenha dado o nome ao bairro da Gomeia, localizado perto de S40 Caetano, ao sul de Campinas. Arthur Ramos ja sugeriu ser o top6nimo “uma corruptela da forma portuguesa do Dahomey (Agomé, Dagomé nos documentos antigos), 0 pais dos geges” e, em apoio dessa interpretacio, Edison Carneiro acrescentava que “dois dos trés candom= hlés geges da Bahia — os de Manuel Menezes e Falefa — estao localizados na da Goméa”. Também funcionou ali o terreiro de Joaozinho da vizinhang Gomeia que embora de nagéo angola, apresentava, como nota Ramos, impor tantes “intromissées jejes”. Testemunhas oculares das festas daquela casa lem- hram que “tinha muitas pessoas jejes, era angola, mas tocava candomble jeje, fvia muito Omolu, Oxumaré, Nana”. No entanto, é improvavel que essa presenga de terreiros jejes, ou de influéncia jeje, no século XX, tivesse alguma ligagiio com o antigo terreiro Agomé. O terreiro Campina de Boskejan (var. Campina de Boskeji) estaria logi« camente também localizado em Campinas. Em O Alabama aparecem virias rea, mas é dificil identificd-los ¢ saber is se refere especificamente a esse candomble jeje, No notfelas sobre terreiros localizados n se alguma dessas notici encanto, ha uma nocicia de 1867 em que se fala “do terreiro da Campina” (note-se o singular, comparado ao nome do baltro, Campinas), onde se estava De A CONTRIBUICAU JEJE NA INSTITUCIUNALIZAGAU UU CANDUMBLE realizando 0 segum: (sirrum, nome jeje do ritual funerdrio) pela morte de mamae Aquntessa (“esposa de” Agunté, em fon agonte, broto comestivel de uma espé- cie de palmeira, talvez deificada como vodum). Menciona-se a presenga de gameleiras, um papai Dothé (doié é um titulo hierérquico fon) jogando Fa (note-se 0 uso do termo fon), Izabel Loucouce (Lokosi, devota do vodum Loko) como oficiante do ritual de raspar o cadaver e uma Agueca (Aguesi, devota do vodum Agué). Esses clementos indicam tratar-se de um terreiro jeje, muito provavelmente 0 Campina de Boskejan lembrado pela meméria oral. Hivmbono Vicente, por exemplo, dizia lembrar que o Campina de Bosqueji tinha um pé de Loko (gameleira)." A identificacao dos restantes cinco casos “provaveis” de candomblés jejes é obtida, como no caso dos nagés, a partir do uso de terminologia hierdrqui- ca jeje, mengao de divindades ou devotas de divindades jejes e do vinculo com outtas congregacées jejes. No Engenho Velho, no candomblé do “preto” papai Anténio, é documentada, em 1868, uma grande festa coincidindo com a vi- téria dos conservadores nas elei¢des municipais, que durou mais de uma se- mana, teve “matanca? de boi e congregou “mais de duas mil pessoas de todas as classes”, Havia crioulas “elegantemente vestidas com saietas, umas toalhinhas com uns chocalhos pela cabeca ¢ uns rabos de cavalos na mao, ¢ no meio delas haviam algumas pretas africanas que como vudiuneas antigas, tomaram parte ha folia”. Na descricao da “matanga” fala-se de novo da presenga de “muitas mulheres, espécie de bachantes, a que chamam vudungas feitas”. Foi nessa festa que, como jé foi mencionado, um subdelegado da policia “caiu no santo (ul comen azeite forvendo, e junto do pé de Lécco, foi pelo chao se batendo” (grifo nosso).®° Nos terreiros jejes € nagés do Maranhao e da Bahia, fala-se de uma antiga prdtica realizada para demonstrat 0 poder do vodum e confirmar a autentici- dade da possess, que consistia na ingestéo de bolas de algodao impregnadas de dendé fervendo (acard). Todavia, nos cultos de voduns da area gbe ¢ nos terreiros jejes era frequente outro ritual com a mesma funcionalidade — cha- mado na Bahia “prova de Zo”, “prova do fogo” ou “bota-a-mao” — que consis- te em meter a m4o numa panela de barro com azeite de dendé borbulhante, de onde o vodum pega um pedaco de carne de um animal previamente sacri- ficado. Em seguida, 0 vodum exibe para todos 0 pedaco, mas nao hd ingesto do alimento. O Alabama menciona explicitamente essa obrigagao “em que vao meter a mao no axeite’ em outro candomblé na Quinta das Beatas.** Jehova de Carvalho, seguindo informag6es de uma antiga equede do Bogum, reporta 0 mesmo ritual nesse tertelro ¢ acrescenta que podia ser seguido pelo “pisa na brasa”, no qual as vodiinsis, desealgas, punham os pés sobre brasas vivas, so- LUIS NICULAU PARES pradas pelos abanos de palha de palmeira & mao dos ogis: “Sogbo tudo via e tudo vigiava”.’” Efetivamente, a “prova de Zo”, no Brasil, est4 associada aos voduns da fa- mnilia Hevioso, dos quais Loko faz parte. © fato de que na festa do Engenho Velho 0 ato de “comer azeite fervendo” fosse realizado “junto do pé de Lécco" suugere que a prova de fogo da qual participou o subdelegado jé seja o ritual do card, ow talvez a “prova de Zo” pertencesse a tradi¢’o do vodum. A mengio dessa obrigagao, do vodum Loko e as alus6es a afticanas vuduneas antigas, ou feiias, permite supor que se tratava de um candomblé jeje. Alids, no Engenho Velho, vizinho do Bogum, a tradi¢éo oral lembra o funcionamento do terreiro jeje 26 Zerrem, do qual falaremos mais adiante. Seria 0 candomblé de papat Anténio o mesmo P6 Zerrem? Fica a dtivida. preto Joaquim, com terreiro na Quinta das Beatas (talvez o mesmo acl- ma mencionado onde se realizava a “prova de Zo”), é chamado de “gumbande (grivsacerdote)” ea sua mulher, de gancd, dois titulos jejes que sugerem ser 0 candomblé dessa nacéo. Pai Joaquim é denunciado por sua mulher por um suposto abuso sexual com “as raparigas” que estavam sendo iniciadas.* Em Sio Miguel, na freguesia de Sant’Anna, registra-se a presenga de um africano que “vem em um quarto preparado em forma de templo imagens idolatras de diversas espécies [...] até a figura do diabo (Lebal) vestido de capona, o qual é um dos mais milagrosos”, Esse Lebal ¢ Legba ou Leba, a divindade jeje cor- respondente ao Exu nag6.® Finalmente, em 1869, um grupo de iniciadas do Bogum, devido a perseguicao policial, foi levado primeiro para Sao Miguel, hha casa da africana Clara, e logo para um terreiro nas Areias da Armacio, provavelmente liderado por Maria Velhudinha. Seria légico pensar que as “iudungas” do Bogum foram levadas para terreiros da mesma nagfo, a fim a stia iniciagao. Alids, sabemos que 0 terreiro de Maria Velhu- dinha, nas Areias, recebia visitas de outras sacerdotisas e sacerdotes jejes de Cachoeira, o que reforgaria essa hipédtese.® Voltaremos sobre esse tema no préximo capitulo, Coneluindo, pode-se dizer que a partir da segunda metade do século XIX se fol, aos poucos, consolidando em Salvador uma rede de congregacées relie filosas jejes, com organizacgao hierdrquica e litirgica complexa, que estabeleciam entre si varias relagoes de complementaridade, cooperagao e provavelmente conflito, Ao mesmo tempo, a comunidade religiosa jeje funcionava inserida € de continua como parte constitutiva de uma comunidade religiosa negro-mestiga mais ampla, com cujas congregagées também estabeleciam relagées, ora de concore réneia e eoncraste com ba se em seus ritos, ofa de solidariedade e cooperagio ha resisténela organizada a repressio ¢ A diserin image di classes dominantes, Dh A CONTRIBUICAU JEJE NA INSTITUCIUNALIZALAU DU CANDUMBLE Devido a inevitavel limitagao e parcialidade das fontes, a andlise linguis- tica ¢ a avaliagdo quantitativa de terreiros jejes aqui apresentada deve ser tomada com cautela, sendo preciso haver futuras pesquisas para refinar esses resultados. No entanto, a evidéncia documental de O Alabama, além de con- firmar a ideia jd estabelecida nos estudos afro-brasileiros de que a matriz jeje foi uma das mais importantes na génese do Candomblé, sugere que as tradigoes dos cultos de voduns permaneceram dominantes até pelo menos 0 inicio da década de 1870, Isso nao significa minimizar a importincia das outras ma- trizes, como os cultos congo-angolas de inquices e, sobretudo, os cultos nagés de orixds que, como comprovamos, nesse perfodo quase se equiparam com os dos jejes. Na realidade, 0 que estou propondo € apenas uma inverséo da énfase no binémio jeje-nag6, questionando a tradicional interpretacao vigente nos estu- dos afro-baianos que tém privilegiado o polo nag6. A interpretacao nagocén- trica decorre da constatagao contemporanea de uma clara supremacia numé- tica dos terreiros autoidentificados como nagd-ketus e, em especial, da memé- tia hist6rica preservada pela tradicao oral, que considera o Tle Ty4 Nass6 como o terreiro mais antigo da Bahia. Pelo prestigio atual dessa casa, ¢ daquelas que dela surgiram como 0 Gantois e 0 Axé Opé Afonja, esse mito da origem nagé- ketu do Candomblé tem sido aceito sem maior questionamento, e com o tempo virou hegeménico no discurso do povo de santo e dos intelectuais. As novas fontes documentais como O Alabama, no entanto, apresentam uma tealidade muito mais complexa e oferecem indicios suficientes para propor incerpretacées alternativas. 0 PROCESO DE “NAGOIZAGAO” NA VIRADA DO SECULO XIX A tese aqui sustentada de uma preeminéncia da tradigao jeje no Candomblé de meados do século XIX coloca, no entanto, um interessante problema. Trata~ se de explicar como em aproximadamente 20 anos (1871-1891), desde os tempos de O Alabama até 0 inicio da pesquisa de Nina Rodrigues, a predomi- niincia jeje parece desaparecer em favor de uma clara supremacia da tradicéo do culto de orixds. Na sua obra péstuma, Os africanos no Brasil, Rodrigues reconhece que no inicio dos seus estudos nao conseguiu diferenciar a mitolo- gia jeje da nagd, devido 4 “intima fuséo” em que se encontravam. Embora afirme que “antes se deve dizer que uma mitologia jeje-nag6 do que puramen- te nagé prevalece no Brasil”, ele conclui: LUIS NICULAU PARKES sao hoje muito reduzidos em ntimero os jeje da Bahia. Se em tempo existiram aqui livres de mescla as suas ctengas € 0 seu culto, néo posso afitmar agora, Nos atuais candomblés e terreiros jeje predomina o elemento crioulo e mestigo e ay praticas s4o, como nos candomblés e terreiros nagés, um misto das duas mitologias, © que nao sofre divida ¢ que hoje 2 mitologia ewe [jeje] ¢ dominada pela yorubana Seguindo Ellis, ele explica a absorcao da cultura jeje pela nagé devido & predominancia da lingua nagé e A natureza “mais complexa ¢ clevada” das crengas religiosas nagés.°' Embora esses pressupostos sejam certamente discu- Uveis, essa percep¢ao perdurou ao longo do tempo. Em 1937, Carneiro escrevia: “se j no tempo de Nina Rodrigues, a mitolo- gia jeje se fusionava e mesmo cedia passo 4 mitologia nagé, o que se verifica hoje é a quase completa absorcao das praticas jejes, quase que totalmente es- quecidas como préticas independentes, por parte da mitologia nag”.°? Uma década depois, também Ramos reiterava: a velha assercao de Nina Rodrigues, de que os cultos ¢ praticas jejes foram: absorvidos pelos Nagés, continua de pé. As sobreviyéncias religiosas jejes, quando existem, nao chegam a constituir, na Bahia, no Nordeste, ou no Rio, um bloco cultural onde se possa nitidamente evidenciar uma franca heranga daomeana. Em outras palavras, nao ha, na Bahia, um culto yodun estabelecido como tal.”? Cabe apontar que essa percepgio era resultado, em parte, de um foco das pesquisas desses autores nos terteiros nagé-ketus, ¢ que esse viés fez com que 4 visibilidade desses terreiros acabasse por ofuscar a presenga dos jejes. Se cfe- tivamente os candombles jejes passaram a ser uma minoria, como discutirel oportunamente nos préximos capitulos, alguns deles persistiram mantendo culto de divindades e préticas rituais jejes diferenciadas, Nina Rodrigues concentrou seu estudo sobre o Candomblé no terreiro Gantois de nagao nag6, ¢ do mesmo modo que, ao analisar os grupos de ga= nhadores privilegiou os dos afticanos, minimizando aqueles dos crioulos, & provavel que a sua pesquisa sobre religido incorra numa parcialidade semelhan- te, resultando numa imagem algo distorcida do que realmente estaya aconte- cendo na virada do século XIX. Mas, além dessa circunstancia, na sua obra hd indicios claros de que os jejes efetivamente jé nao desfrutavam do destaque da década de 1860, Se 0 termo “vodum’, por exemplo, fosse utilizado como na época de O Alabama, Rodrigues nao deixaria de ter notado o fato. No entan= to, € 0 termo “orixa” que se comega a utilizar de wma forma genética para designar as divindades africanas. A CONTRIBUICAU JEJE WA INSTITUCIUNALIZALAU DU CANDUMDLE Nesse sentido, ¢ interessante um comentirio do préprio Rodrigues. Falando do vodum Loko, associado & gameleira, diz: “aconteceu que nos riossos estudos publicados antes de conhecer as obras de Ellis, negros nagds nos fizcram corti- gir o nome de Léco [...] pretextando que havia simples carrupedo crioula do seu verdadeiro nome Irdco” (grifo nosso). O exemplo sugere que, naquele momento, um movimento etnocéntrico de “purificagdo” nagé estava sendo articulado em oposigao & “corrupgao crioula”, e mostra como a agéncia dos praticantes nagds pode ter sido instrumental para a sua promocio sociorreli- giosa ¢, consequentemente, para a progressiva invisibilidade dos jejes. Mas quais teriam sido as causas que propiciaram essa autoconsciéncia da identida- de nagd e o subsequente esforco para legitimé-la? © processo que gerou a supremacia nag6 no Candomblé baiano nao pode ser explicado como efeito de apenas uma causa, mas deve ser entendido como resultado da complexa interacdo de uma pluralidade de fatores que aqui sé podem ser abordados de forma tentativa.’’ Em primeiro lugar, tal mudanga parece coincidir com a grande proliferagao de terreiros que se deu na época p6s-aboligéo que, como demonstram as noticias de jornais recolhidas por Ro- drigues entre 1896 e 1905, se espalharam por toda a cidade, e também no Recdncavo, liderados majoritariamente por mulheres crioulas.** Apesar dos ideais de progresso ¢ civilizagao promovidos pela nova Reptiblica, a grande maioria negro-mestica baiana continuou privada da possibilidade de exercer uma cidadania real. A marginalidade social da populagéo de cor reforgou a formagéo de uma identidade racial cultural diferenciada ¢ a procura de es- pagos de sociabilidade alternativos como 0 candomblé. Na construgao dessa identidade negra, assumida sobretudo pela populagao crioula, a Aftica, como sinal diacritico de origem ¢ como projecao do imagindrio cultural, passou a jogar um papel central, pelo menos para alguns grupos. E na década de 1890, por exemplo, que surgem grupos carnavalescos como os Pandegos da Africa ¢ a Embaixada Africana.” No contexto do Candomblé, penso que foi precisamente no perfodo pés- abolic&o, coincidindo com a progressiva desaparigao dos velhos afticanos € a imultanea idealizagao da Africa, que terreiros como 0 Gantois — que podiam teclamar uma fundagao histérica africana — comecaram a reivindicar essa as- cendéncia, embora jé fossem congregagées essencialmente crioulas nese mo- mento, A africanidade constitufa um fator diferencial, um capital simbélico para enfrentar a concorréncia das casas de fundagao recente. Essa reafirmacao identitaria estaria reforgada também pela crenga de que as praticas religiosas “africanas” eram mais efieazes ¢ “fortes” do que as discriminadas praticas “criou- las” dos especialistas religionos recém-chegados, LUIS NILULAU PAKES Mas, nessa reivindicagéo de africanidade, por que a tradicao nagé ganhou essa posicao privilegiada? Talvez isso se deva a uma ideia particular da Africa que se estava forjando naquele momento, intimamente ligada A crescente vi- sibilidade da identidade iorub4. Lorand Matory observa que, nas Ultimas dé- cadas do século XIX, “dominada pelos britanicos, a encruzilhada de interag6es entre Africa e Afto-América conferiu aos iorubas uma notéria reputagio de superioridade em relaco a outros grupos afticanos”.”* Iniciada pelos missio» narios protestantes de Serra Leoa, incentivada pelo poder colonial britanico na sua disputa com os franceses, a etnogénese iorubd alcancou renovado vigor com a chamada Renascenga de Lagos, nas décadas de 1880 e 1890. A burgue~ sia negra dessa pujante cidade, diante da exclusio social e racial imposta pelo colonialismo, comegou a promover um “nacionalismo cultural” —a expressio é de Ade Ajayi — como forma de contestagao. Afirmando a especificidade de uma “raga-nacio” iorub4, esse movimento cultivaya a lingua iorubd, adotaya formas de vestir africanas, coletava a sabedoria ancestral em forma de provér- bios, contos ¢ poesia, criava narrativas histéricas a partir da tradi¢do oral e “até reconhecia o mérito de alguns aspectos da religiéo tradicional”.” Embora bem antiga, a comunicacao transatlantica entre Bahia e a Costa da Mina vinha crescendo desde 1835, com centenas de retornados africanos ins» talando-se na costa africana a cada ano, muitos deles em Lagos, contribuindo, junto aos retornados lucumis de Cuba e os akus de Serra Leoa, & mencionada “renascenga iorub4”. Outros afro-baianos viajavam e comerciavam regular mente entre as duas costas, sendo que o principal destino das embarcasées que nas ultimas décadas do século iam para a Africa ocidental era Lagos. Isso sig nifica que as noticias sobre o “nacionalismo cultural ioruba” poderiam ter re~ vertido indiretamente na Bahia, gerando um clima fayordvel para a revaloti- zagio da correspondente identidade nagd. O Candomblé, com a sua velha latente diviséo étnico-ritual, oferecia um terreno abonado para revivalismos “nacionalistas”. E cambém importante notar que a cidade de Ketu, apés ser destruida pelos daomeanos em 1883 € 1886, foi reconstrufda em 1896, e que noticia desse evento podem ter chegado & Bahia. Dataria dese momento a identificagao de alguns terreiros de Salvador com a nagio nag6-ketu? Entre os agentes dessa intercomunicagao entre a Bahia ¢ a Area iorubé no final do século, o caso do babalaéd Martiniano Eliseu de Bomfim é 0 mais co- nhecido, Ele foi um dos informantes de Nina Rodrigues ¢, na sua juventude, esteve virios anos na Nigéria, iniciando-se na tradigéo de IM e convertendo-se depois em um dos precursores do proceso de “afticanizagio”, ou melhor, “nax goizagio”, do Candombleé, Foi ele que, em 1910, ajudou Eugenia Ana dos Santos, mae Aninha, a fundar o Axé do Op Afonjd © « estabelece , posterior: ALURIRIBGIPAU JRE MAINO UEUNALILALAU 2 CAR UUMPEE. mente, com base nos titulos honorificos utilizados no reino de Oyo, a insti- tuicao dos obs de Kangé.' Joaquim Francisco Devodé Branco (1856-1924), um liberto mahi residente em Lagos e comerciante em Porto Novo, era também amigo de mae Aninha ¢ padrinho de Senhora do Axé Opé Afonjé.'°! Com as suas viagens, poderia ter trazido informagoes do que estava acontecendo na esfera religiosa na Costa da Mina, mas a sua influéncia néo podia deixar de ser tangencial. Contudo, como lembra Lima, a ida a Africa de africanos libertos ¢ de seus filhos, pelos fins do século deze- nove, era naquele tempo, um importante elemento legitimador de prestfgio e gera- dor de conhecimentos ¢ poder econémico. Enquanto negociavam tanta yaria met- cadoria trazida da Costa ¢ levada do Brasil, também, como hoje se diz, reciclavam o saber da tradigao religiosa aprendida com os “antigos”, nos terreiros da Bahia.'? Na sua fungao legitimadora de prestigio, a viagem (real ou imaginada) & Africa aparece também em varias narrativas referentes 4 fundacao de alguns dos terreiros baianos mais famosos.' Nesse sentido, o final do século XIX parece estabelecer as bases conceptuais para uma nogio da Africa como 0 lacus original de uma “tradi¢ao” que precisava ser recuperada, reinventando conti- nuidades de modo a superar um “passado traumatico”. Essa idealizagao da Africa também se apresentava como uma alternativa ¢ uma reacao ao viés as- similacionista da cultura crioula. Sincronizada com a crescente visibilidade da supremacia cultural iorubé no mundo afro-atlintico, o processo de “teafri- canizagao” consolidou-se, de fato, como um processo de “nagoizacéo”. Ao mesmo tempo, alguns setores da comunidade religiosa perceberam esse pro- cesso como uma estratégia para obter poder politico numa sociedade cada vez mais racializada. © papel dos intelectuais tem sido considerado outro fator que contribuiu para 0 proceso de “nagoizagio”, Beatriz Géis Dantas tem defendido a ideia de que foram os intelectuais, desde Rodrigues, passando por Carneiro e Ramos, até chegar a Verger e Elbein dos Santos, para citar apenas os mais conhecidos, que privilegiaram de modo sistematico os terreiros ‘nagés puros”, exaltando-os “como verdadeira religiao, contrastando assim com a magia/feitigaria dos ban- tos”.!"" Sem negar esse fato, o argumento de Dantas tem o sério defeito de infravalorizar a agéncia dos préprios participantes nos processos de legitimacao de 1as praticas religiosas em relagdo as dos grupos concorrentes, A reputagio do Gantois, por exemplo, jd estava bem estabelecida antes que Rodrigues ini classe a sua pesquisa. De fato, talver essa fosse uma das razdes que o levaram para aquele terreiro, Quando, a partir da década de 1930, os intelectuais pas SUIS TIVUEAU TARCS saram a valorizar de uma forma mais ostensiva a “pureza” africana dos can« domblés nagé-ketus, eles estavam apenas reconhecendo uma dinamica interna do Candomblé j4 consolidada, embora ao mesmo tempo estivessem contri- buindo para reforgd-la. A combinagio desse complexo de causas, aqui apenas esbocadas, favorecen que certos candomblés nagé-ketus passassem a ser considerados como “modes los” ou referéncias hegeménicas, ¢ que muitos outros candomblés de menor porte assumiram progressiyamente a identidade “nag6”, numa tentatiya de legitimar as suas praticas. O resultado foi uma crescente invisibilidade da tra- digéo dos cultos de voduns, que no século XIX tinham constituido uma das mattizes religiosas mais determinantes na institucionalizacao do Candomblé, Nos proximos dois capitulos retomo a historiografia do terreiro Bogum ¢ a de outros candomblés jejes de Cachocira, analisando a sua evolucéo na se- gunda metade do século XIX e depois no perfodo pés-abolicéo. Contudo, es- pero que © panorama macro-histérico aqui apresentado sirva para inserit as informagoes de carater micro-hist6rico que se seguem, no seu contexto socio- cultural mais amplo. NOTAS "Rodrigues, Os afticanos...s Verger, Fluxo...; Reis, “Nas malhas..”, “Magia... A navureza inicidtica dos cultos afticanos que impéc a lei do segredo, sua clandestinidade e o fato de se tratar, pelo menos até recentemente, de uma cultura religiosa baseada na oralidade contri- bufram para a falta quase total de documentagao escrita pelos proprios praticantes. As fontes dispontveis foram escritas, em sua maioria, por individuos alheios a0 Candomblé, normal- mente encarregados de reprimir ou denunciar essas priticas religiosas, e, assim, sujeitas a preconceitos, distorg6es e erros, Entre os documentos que os afticanos mandavam lavrar ést8o os testamentos de libertos ¢ as petigses, estudados por Mattoso (“Testamentos...”) ¢ M, I. C. de Oliveita (O liberto...). Também sao notérios 0 excepcional “Tratado dos escravos do Engenho Santana em théus”, publicado pela primeira vez por Schwartz (“Resistance’, PP, 69-81), ¢ os documentos escritos em drahe dos malés (Reis, “Magia...”, p. 58). Os cha- mados “cadernos de fundamento”, conservados em certos candomblés, seriam uma outr possivel fonte, mas esse material é de dificil acesso ¢ nao se tem noricia da existéncia de ae dernos desse tipo antetiores as primeiras décadas do século XX. Reis, “Candomblé...”, “Tambores...”; Harding, A refuge...: Silveira, ly’... Joao José Reis ¢ Jocélio Teles dos Santos estéo por publicar outro trabalho sobre 0 Candomblé no século XIX O Alabama cireulou entre 1863 ¢ 1900, mas, infelizmente, sé ve conserva a colecdo completa do perlodo 1863-1871, além de alguns nimeros dispersos do perlodo posterior O editor chefe foi Aristides Ri cardo de Santana, mas, entre 187 ¢ 1890, novos editores assumiram a diresdo, Numa noticia de 17 de dezembro de 1870 (p, 7), ox vedavoies vio rratados de “negros” lhBcteeniieee A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCIONALIZACAO DO CANDOMBLE € “mulatos’. Agradeco a Jodo José Reis por ter-me indicado a existéncia dessa importante fonte ¢ cedido uma cépia das noticias referenres a0 candomblé Bogum que aparecem nessa publicagio, Em 1998, o historiador americano Dale Graden publicou um artigo bascado no material de O Alabama, “So much superstition...”. “Correspondéncia do capitio José Roiz de Gomes para o capitio-mor Francisco Pires de Carvalho e Albuquerque, 20 de janeiro de 1809”, Capiraes mores, Santo Amato, 1807-1822, magos 417-21, Apesa Capitaes-mores, 19/6/1807, mago 417-1, Avena, apid Reis, “Reconcave p. 103; Harding, Candomblé.... p. 80. Para possiveis etimologias do termo “candomble”, ver Pessoa de Castro, “A presenca...”, p. 4s Castro ¢ Castro, Culturas..., qpud Karasch, A vida..., p. 573, n. 98. Harding, A refiuge.... p. 1. Reis, “Candomblé...”, pp. 121-22. Um foi o j4 mencionado Anténio, de nagio angola; outro, © escravo Manuel, com candomblé ao Caminho do Inferno, em Salvador, denunciado por O Alabama (1/6/1871, p. 1). Reis, Rebelido..., pp. 73-75, 85-86, 102-4; Reis ¢ Silva, Negociagdo..., p. 41; Verger, Noticias p. 227. Sobre as coroagées de reis e rainhas africanos no Brasil, ver, entre outros, Rodrigues, Os africanos..., pp. 31-34; M. M. e Souza, Reis...; L. M. Schwarcz, As barbas.... pp. 247-94 Souza, O diabo..., p. 266 Reis, “Magia...”, pp. 62-63; cf. Mort, “Acorundé...”; Higgs, “The Inquisition...”; Souza, O diabe..., pp. 323-24, Verges, Fluo... pp. 334-35; Reis, Rebelido.... p. 82, “Tambores...”, pp. 109-125 Silveira, lyd..., pp. 8-21. A carta do conde dos Arcos, em 10 de abril de 1814, permitindo os ajuntamentos de escravos na Graga ¢ no Barbalho, é transcrita por Rodrigues, em Os africanos..., p. 156; Verger, Notas.... p. 21; Silveira, Iya... p. 17. Aced talvex derive do rermo afticano aku, obrigagio realizada apés sete anos da morte de uma falorixd para dar pose & sucessora (D. M. dos Santos, Histéria.... p. 18). Em fongbe, hit designa a morte, o além, 0 lugar dos mortos ¢ também, como em iorubé, 0 verbo morrer. Na Afiica ocidental, aéu tornou-se uma denominagao étnica para designar mugulmanos des- cendentes dos escravos iorubas que chegaram a Serra Leoa no século XIX, Provavelmente porque muitas saudagses iorubds se iniciam com formas como E ku, ou A Au. Também os fons utilizam &x em muitas saudagdes como O hii (Segurola, Dictionnaire..., p. 309). Como veremos mais adiante, 0 termo “vodum” ou “vudum” foi utilizado durante a segunda meade do século XIX como designagao genérica das entidades espirituais afticanas, ¢, por- tanto, nio é possivel afirmar que se trate de um candomble jefe, embora a possibilidade nao possa ser descartada. Reis ¢ Silva, Megociagdo..., pp. 36, 42, 128-29. A primeira referéncia ao termo “vodum” no Brasil aparece na obra de Peixoto, de 1741, em Minas Gerais, Reis ¢ Silva, Negociapdo..., pp. 36, 128. Idem, pp. 44, 129, Idem, p. 61, Idem, pp. 55-57; cb AntOnio Guinaries ao presidente Barros Paim, cm 24 de junho de 1831, Juizes de Paz, mag 2.681, Arne Reise Silva, Negooiapda.... pp. 480, LUIS NICOLAU PARES © Reis e Silva, Negociagdo..., pp. 57-58. 2! Idem, p. 61. 2 Destes 65 registros, 55 contém casos com alguma informagao sobre a lideranga, sendo que em 45 deles consta o nome. Neste total, nao foram contadas as varias noticias com alus6es “bamuques, barucajés, sambas e algazarras” que nao sao identificdveis como tendo uma conor tagio religiosa. Também nao foram contadas aquelas que, mesmo tendo um possivel carter rcligioso, néo mostravam evidancia de uma congregacao estavel e eram, presumivelmente, celebrag6es de carter pontual, como alguns ajuntamentos festivos ou ritos funerérios. Tam bém foram descontadas as noticias que, por no apresencar a informa¢ao necessaria, pudessetn ser duplicagdes de casos jd documentados. 5 Reis, “Candomblé...”, p. 129. 4 Schwartz estima a porcenragem de negros livres em “40% ou mais” da populacio total, ni Bahia, em 1816-1817 (Segredos..., p. 373). No Recéncavo, em 1808, os negros ¢ mulatos livres constituiam 43%: Mattoso, Bahia, p. 119. Segundo Reis, os africanos ¢ crioulos livres ¢ li bertos constitufam 30% dos 65 mil habitantes de Salvador cm 1835 (“Candomble...”, p. 122), 2 Qs dados sobre os Estados Unidos ¢ Jamaica: Schwartz, Segredos..., p. 373. Bastide, Les Amit rigues. %© 0 Alabama, 29/9/1868, p. 4 » Reis comenta detalhadamente os dois casos de liderangas brancas (em 1859, 0 portuguty Domingos Miguel ¢ sua amésia, a parda Maria Umbelina, ¢, em 1873, a branca Maria Cou to) eo de uma lideranga parda (em 1865, Belmira) (“Candomblé...”, pp. 120-21). Hi aind um segundo caso de “uma mulher de cor parda de nome Umbellina, conhecida por mam Balunce, moradora aos Coqueiros”, na Freguesia do Pilar, “adivinha, curandeira de maleficios’, denunciada em 1871 (O Alabama, 18/2/1871, p. 1). Talvez se trate da mesma Maria Umbe- lina de 1859. * Harding, A refuge... p. 71- idem, p. 72; Reis, “Candombé...”, p. 120. Harding, A refuge..., pp. 72-74; Reis, “Candomblé...”, p. 120. Quando, para o periodo 1800 1888, Harding adiciona aos seus 65 documentos positivos os restantes 30 provaveis ¢ dois casos de provivel colideranca documentados por Verger, ela chega a percencagens de género, na lideranga, similares as de Reis: homens, 619, e mulheres, 39%. " Landes, “A culr...”, pp. 386-97. Idcia também mantida por Harding, A refigge.... p. 97. » Reis, “Candomblé...”, pp. 120, 131; Harding, A refuge...» p. 127. Ver, por exemplo, Marques, O feiticeiro... Reis e Silva, Megociardo..., pp. 46-47, 128. “ Reis, “Candomblé...”, p. 131. ” Jornal da Bahia, Salvador, 12/2/1859, apud Verger..., Fluxo, p. 532. Também Policia, 21/4/1862, maco 6.234, Arena, apud Harding, Candomblé..., p. 320; O Alabama, 1319/1866, p. 33 Rody gues, O animismo..., p. 171. Sodré, O rerreira..., pp.14-15; Mattos, Negrotiny pp 1% 70. ’ Nas Freguesias de Nossa Senhora da Vitérla, regietranese eloly casos, e um outro na fregueria do Pilat, que corresponded drea denominuea Bartels Ap teferticias & Quinta das Devouws et A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCTUNALIZALAU DU CANUUMBLE (duas) foram identificadas com a Quinta das Beatas, atual Cosme de Farias, em Brotas. Cabe norar a grande extenséo dessas freguesias. No caso de Santo Anténio, havia 0 1* Distrito, vizinho do Passo, que poderia ser considerado parte do centro urbano, ¢ 0 2* Distrito, que se estendia ao norte na drea semiurbana, ' Silveira, Tyé..., pp. 51-52. O Alabama, 2/5/1867, pp. 2-3. Idem, 25/8/11869, p. 2. 0 culo Migico, 11/10/1866, apud Costa, Ekabo.., p. 134. Verger, Fluxo..., p. 532s O Alabama, 19/4/1864, p. 1. O Alabama, 2/5/1867, pp. 2-3. * Ibidem. Idem, 29/9/1868, p. 3. Idem, WNANSTA, p. 4. Idem, 231911869. Idem, 1913/1869, p. 6. Idem, 23/9/1864, pp. 1-23 26/9/1868, p. 4. * Idem, 191911868, p. 1 Os dois grandes perfodos de ressurgimento do Candomble, nos anos 1930 € 1970, correspon- dem de maneira significativa ao Estado Novo ¢ ao governo de ACM ¢ 3 ditadura, respectiva- mente, isto é, 2 perfodos politicamente conseryadores. A alianca das elites conservadoras com o Candomblé, ou a sua telagéo paternalista e clientelista, respondem a uma politica populis- ta que visa contentar as classes subalternas com gestos simbélicos, mas € retroalimentada por uma dependéncia (ou medo) das elites ao poder espiritual dos negros. O Alabarna, 2/10/1869, p. 3. ' Idem; 918/186, p. 4. Hé também um caso de duas negras fugidas, refugiadas num candom- blé na Rua do Bangala, na freguesia da Sé: O Alabama, 1914/1866, pp. 1-2; 26/11/1867, p. 1. Verger, Fluexo.... p. 335. Costa, Ehabd..., p. 1535 cf. A. A.V. Nascimento, Dez freguesias..., p. 89. O Alabama, 91811866, p. 4. Reis, A morte.... p. 313 Costa, Ekabé.... p. 151; Mattoso, Bahia. O Alabama, 12/2/1870, p.7. Neste ano, num candomblé na Quintas da Barta, no distrio da Vit6ria, em Salvador, a po- Iicia achou varias vestes € emblemas rituais que sugerem ser esse um culto de miltiplas di- vindades: “Correspondéncia do Secretario de Policia ao Presidente da Provincia’, 13 de abril 1858, mago 2.994-1, Policia, Delegados 1842-1866, ApgRa, (documento achado por Alexandra. Brown Jo&o José Reis), apud Harding, A refiige.... p. 59. Ha transcri¢ao do documento original om Harding, Candomble.... p. 316. p. 230. Graden, “So muel p. 69; Matory, Black Ailantic..., p. 86; Reis, “Candomblé...”, p. 124-25, A anilise de Graden incorre em varios ertos, entre eles identificar varios candomblés como hagds quando nio hi qualquer indicia para justifiear essa identificagao, Por exemplo, um. candomblé no Engenho Velho, que aparece en tima noticia em 1869, ¢ identificado por esse pp. 124-25. Rodrigues, Os african ws 66 @ ae LUIS NICULAU FAKES autor como sendo o atual candomblé Engenho Velho ou Casa Branca, de nacéo nagé-ketu, No entanto, as noticias de O Alabama deixam claro que o bairro Engenho Velho cra uma day areas de maior concentracao de terreiros, nao sendo possivel tal identificagao. Alids, nessa noticia hd outros indicios linguisticos ¢ rituais que indicam que talvez se trate de um ter reiro jeje. Lima, d familia... pp. 72-73; Pessoa de Castro, “Lingua...”, p. 75; Braga, Na garnela.., pp. 38-39, 56. Pessoa de Castro, “Lingua...” p. 753 Braga, Na gamela.... p. 56. A ctimologia da expressio “decd’ € ainda confusa. Na obrigagao do decd, a cabaga é 0 contentor dos utensilios da ink- ciasao (faca, vesoura, sementes, folhas etc.), entregues ao sacerdote que atingiu a senioridade ea independéncia. Como em fongbe fd significa cabaca, ou cuia, o termo “dec” (dekd) & geralmente tido por jeje ou de origem ghe. No entanto, em fongbe contemporaneo, dekd ni existe como palavra. Vivaldo da Costa Lima, citando Akindele e Aguéssy, aponta para a ex pressio dé non dé ka mé como possivel ctimologia do termo. Essa expressdo é utilizada em Porto Novo para designar uma ceriménia em que as familias das novas iniciadas agradecem) a0 vodunon, oferecendo-lhe toda sorte de comidas (A familia... pp. 133-34, 177). Nina Ro- drigues (Os africanos, p.138) traduz o termo “oga” como “senhor, chefe”, que segundo ele seria jeje, mas cabe notar que o termo 9gd, com 0 mesmo significado, ¢ iorub4, enquanto 0 fongbe utiliza a palavra gan. Jé huncé vem do termo fon hunx3, casa (x3) do vodum (in). A expressio “pai de santo” aparece uma vez, embora utilizada fora do contexto religioso (( Alabama, 28/7/1868, pp. 1-2). Ageadeco a Jodo Reis por ter charnado minha atencao para o que seria a mais antiga ocorténcia documentada desse termo. O apelativo “mae de santo”, que derivaria da expresséo iorub4 “ialorix4”, nao aparece na década de 1860, Outros termon hierérquicos portugueses registrados em O Alabama sao: “segunda mamie do terreiro”, “se. cretdrio”, “secretéria”, “cabo de esquadra” ou “tocador de tabaque”, Os sete termos cuja origem lingufstica nao foi identificada séo: congu (dois), vermo sindnimo. de candomblé ou batucajé, como provavelmente também cundtim (tocar cundiim) (dois), colla (grande género de érvores afticanas da familia das exterculidceas, cujos frutos capsulares contém grandes sementes nuciformes com alta teor de cafetna e outros alcaloides) (doin) nacucu cuimt (abaque) (um); luge (um); bonadué (dana, provavelmente termo jeje) (um), caruru (comida, termo talvez de origem tupi) (trés).. Segun é uma evolugao fonética do termo “sitrum’, nome dado aos rituais funerdtios now terreiros jejes do Brasil, por sua vez evolugao do termo fon sinhiin (sin = Aguas hii = tambon, sinhin = tambor agua). Sinbiin é 0 nome de um dos instrumentos de percussao utilizadoy nos ritos funerdtios (meia cabaca invertida, colocada sobre uma gamela com Agua, batida com varetas chamadas aguidavis). O outro instrumento de percussio € o zénli, um pote oll purtdo sobre cuja boca se bate um abano (do fongbe, zén = pote, jarra, cordmica; If» all abertura, a vias sénli = abertura do pote, boca da jatta). Zenlt desig © ritmo ou musica fincbre como o ritual funerdrio. Pessoa de Castro documenta o ternn. sal-apocé (var. cHo-da-costa ou sal-da-costa) (Falares.., p. $33), No entanto, os espectalisias religiosos jejes nao reconhecem essa expresso, nem a identificam com o ritual inieidtico do sapocd (ou sarapocd). Mocan aparece na noticia de O Alabama como objeto rivual de un adivinho de Fa, Na lingua fon, muekanes (o dono de muehun) signi tanto o instrument, vadivinho, vidente, hh, A CONTRIBUICAO JEJE NA INSTITUCIONALIZACAO DO CANDOMBLE No Candomblé, atualmente, mocan designa um “colar de palha da Costa trangada enfeitado de buzios, tendo as duas pontas unidas por uma espécie de vassoura feita da mesma palha’. © A discrepancia com a contagem de Reis (*Candomblé..”, p. 124), que eonclui que “Nage beats Jeje” (os termos nagds superam os jejes), deve-se a0 fato de que Reis, embora se baseie principalmente em O Alabama, incluiu na sua amostra alguns termos nagés achados em outras fontes documentais. " O Alabama, 23/2/1870, pp. 3-4. ' Cabe acrescentar que nove casos jejes correspondem a registros classificados como “candom- blés” & um como “individuc”; dos oito registros nags, entre os casos “provavcis”, hd trés clasificados como “individuos”; 0 caso “provavel” dos angolas é um “individuo”. ’ Hé ainda o africano pai Jeb, que poderia ser de Ijebu (O Alabama, 15/11/1864), cf. Reis, “Candomblé...”, p. 120. ) 0 Alabama, 8{1 1/1864, pp. 3-4; 18/11/1864, pp. 3-4; 21/2/1865, pp. 3-4. Em 1868, reporta-se © caso da adolescente Paulina, que estava enfeiticada, sendo que “a milonga fora arranjada no Bate-fotha” (O Alabama, 15/10/1868, p. 2). O atual terrciro Batefolha, Mansu Bandu Kenké, de nagdo angola (muxicongo ou congo-angola), na Mata Escura de Salvador, foi fun- dado em 1916 por Manoel Bernardino da Paixéo (Ampumandezu). Portanto, referéncias Batefolha anteriores a essa data n4o podem ser associadas a um candomblé de nagao angola. ' Reis, “Candomblé...”, p. 128; Harding, A refuge.... pp. 93-94, 200, 203; O Alabama, 14/9/1864, p. 15 3/6/1870. Mariquinhas Velludinho era provavelmente a mesma Maria Velhudinha com terreiro nas Areias. O Alabama, 4111868; 24/12/1870, p. 8; 29/12/1870, p. 35 31/12/1870, p. 6; 24/11/1871, p. 45 Rodrigues, O animismo..., p. 157. F provavel que o Tlé Iy4 Nass da Barroquinha — terreiro dle nagio nagé-Ketu e matri2 do Gantois — estivesse funcionando, por essa época, jé no En- genho Velho, porém O Alabama nao permite constatar esse ato. £ 0 caso também do Ié Maroialaje, candomblé do Alaketo, de naco ‘nagé-vodum” — identificacéo que se refere & coexisténcia ritual de tradigdes nagés ¢ jejes (ver caps. 6 ¢ 7) —, que estaria funcionando desde a primeira metade do século XIX no Matatu (Brotas). Em O Alabama, ha uma alusio A existéncia de candomblés no Matatu, mas nao so dados mais detalhes. Diante disso, pre- feri limitar minha andlise as informagées de O Alabama, ¢ esses dois terreiros nao foram contabilizados. " 0 Alabama, 241211863, p. 2; 12/3/1864, p. 4 2/8/1866, pp. 3-45 23/6/1870; 18/11/1871, p. 15 2U/LI/I871, pp. 2, 35 19/12/1871, p. 4. Idem, 271211866, p. 4. Valentina Maria dos Anjos (Runho), ficha n‘ 1, Ceao, 1961: “Pesquisa sobre os candomblés alvador”, dirigida por Vivaldo da Costa Lima entre 1960 ¢ 1969, Centro de Estudos Afvo-Orientais (Czao)-UPBa, Fico muito grato a Vivaldo da Costa Lima por ter generosa- mente facilitado o acesso dy fichas de [13 terreiros pesquisados nesse projeto. Doravante, referencias a esse material aparecerio como “ficha n°... Ckao, ano’ Olga de Alaketo, Salvador, entrevista 1/1/1996 " © Alabama, 15/5/1867) Ve "0 Alabama WAMINA, pA L, Quereberitd p. 304 LUIS NICOLAU PARES: 1 ® Edison Carneiro, “Lembranga do negro da Bahia’, A Tarde, 29/3/1949, p. 15. Os dois ten tos mencionados por Carneiro estavam localizados no bairro de Sao Caetano. a Carneiro, Religiées.... p. 62; Ramos, “Introduséo...", pp. 12-13; dona Nancy de Souza e Silva, 14/5/1999, “ 0 Alabama, 21311867, p. 3. Humbono Vicente, 17/2/2001 © O Alabama, 221911868, p. 16/9/1868, p. 4; 29/9/1868, p. 3. “Idem, 231511871, p. 2. Nessa noticia, menciona-se que “o dono das terras aparcccu pat acomodar o barulho ¢ foi carregado pelos santos nas cabecas das vuduns”. A mengio di “prova de Zo” e a aluséo a vuduns sugere tratar-se de um outro candomble jeje. 1 J, de Carvalho, Reinvengdo..., p. 37. No templo de Avimanje, em Uidd (Benim), fui teste” munha de um ritual similar chamado abwandida, em que, depois de cozinhar um bode en) uma panela de barro com dendé, os voduns extraiam os pedagos de carne com a méo (Uidd, sctembro de 1995). Nos filmes realizados por Frédéric Gadmer em 1929-1930, no Benin, documenta-se um ritual similar num templo de Agassu, no qual os voduns suspensos por outras pessoas colocam os pés sobre a pancla fumegante (Gadmer, “Dahomey...”). Pant uma descri¢ao de diversas provas de fogo nos templos de Mawu ¢ Hevioso em Abomé, vel Herskovits, Dahomey... vol. Il, pp. 124, 165-66, Também no culto do otixé Xango realiza-se © ajeré, ritual em que o orixd carrega na cabeca um pote com brasas ardendo. "0 Alabama, 2411211870, p. 5. Ha ainda 0 caso, comentado acima, do afticano Zé Rolavo, também chamado de gumbénde, mas, devido 20 fato deo ritual do ebd ali realizado apresen)- tar fortes elementos nagés, preferi nao considerar aqui esse caso. 0 Alabama, 21/11/1871, p. 1. ° Idem, 14 14]1869; 161411869, p. 2. °” Rodrigues, Os africanos..., pp. 230-31. Carneiro, Religides..., p. 33 Ramos, “Introducdo...”, p. 13 ™ Rodrigues, Os africanos..., p. 231. Para uma andlise em detalhe da discussio desta segao, ver Parés, “The Nag6ization...” ¢ “The birth...”. Rodrigues, Os afticanos..., pp. 240-45. Ver Albuquerque, “Esperancas...” Marory, “Afro-Atlantic culture...”. ” Peel, Religions... p. 279. Ver também Ajayi, “Nineteenth-century origins..." Maory, “The English professors...”, Black Atlantic.... pp. 57-61, “Jejew.”, pp. 60, 64; Law, ‘The Atlantic slave trad ' Braga, A gamela.... pp. 37-58; Lima, “O candomblé.. \"! Matory, Black Atlantic... pp. 88, 95-96, 's p. 453 “Os obas...”, pp. 5-36. ™ Lima, “O candomblé..., p. 52. ' Sobre as narrativas relativas & fundagio do Tlé Iya Nass © © papel da viagem 4 Afriea, ver Carneiro, Candomblés... p. 483 Verges, Oris... pp: 28-20) Bastide, Sovtologia.. p. 32%, Para ‘6 mesmo tema, relacionado ao culto egum da ila de Itajsarien, vor Capone, Lar quéte.., p. 250. p. 125. Dantas, “Pureza,

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