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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
HISÓRIA DO BRASIL COLÔNIA

Análise de documentos
Aluna: Bianca Rodrigues Corrêa

O primeiro documento consiste numa carta do governador Conde de Valadares, datada


de outubro de 1768, enviada ao então intendente dos Diamantes Francisco Xavier de
Mendonça Furtado, fazendo referência à carta régia recebida pelo governador em julho
do mesmo ano por motivo das “repetidas queixas dos cruéis e atrozes insultos que nos
sertões desta Capitania [das Minas] têm cometido os facinorosos e vadios que neles
vivem”. Tal determinação real instruía a acomodação de todos os homens que se
encontrassem volantes e “vagabundos” em povoações que possibilitassem sua
agregação à sociedade, atribuindo aos que a isto não se sujeitassem o enquadramento
como “salteadores de caminhos e inimigos comuns”, sujeitos a encaminhamento às
cadeias públicas. Estariam isentos de tal atribuição apenas “roceiros, criados, escravos,
fábricas, rancheiros, bandeiras e tropas”. O governador declara ao intendente que, desde
o início de sua residência na Capitania, não notara relevante presença de elementos
perigosos à ordem social, “que de poder absoluto se entretenham com séqüito de armas
e por elas se façam temidos (...), quebrantando a jurisdição do Governo”; aqueles que se
encontravam dispersos em roças constituíam grande número de fugitivos e devedores
que, no entanto, participavam de trabalhos agrícolas e das minas, obedeciam aos oficiais
e não se opunham ao pagamento dos tributos devidos, não se integrando, dessa maneira,
à categoria de facinorosos ou vadios.

A carta demonstra a preocupação das autoridades portuguesas com os errantes,


considerados uma ameaça à constituição da ordem social, que já se encontrava caótica
nas Minas durante o período. A Capitania era vista como perigosa, o que se devia à
“péssima reputação dos moradores da região, insubmissos à Coroa, cuja ordem da
metrópole dificilmente chegava”1, originando uma atmosfera de medo e incerteza. Após

1
Júnia Ferreira Furtado, Homens de negócios, p. 173.
o deslanche da urbanização e a consolidação do funcionamento do aparelho
administrativo, a preocupação da Coroa era com a organização da sociedade mineira. A
proliferação dos desocupados, resultado de uma política injusta e excludente, era tida
como perigosa, na medida em que a mobilidade de tais indivíduos não era
suficientemente controlável. O próprio governador identifica tal impossibilidade,
denunciando a “a facilidade de passarem [os vadios] de umas para outras capitanias, e
na mesma ficarem ocultos, por se ignorar o seu delito segundo a extensão e aberto do
País (...), o que faz impraticável pela raridade das povoações, duplicidades de matos e
campos, que medeiam de umas a outras, e ainda entre roças e sítios saber quem na
realidade é delinqüente e evitar-se-lhes o retiro”. A alternativa portuguesa diante desse
“medo difuso ante o incontrolável, o desenquadrado, o que foge à política de
normalização”2 foi ceder terras cultiváveis a tais indivíduos itinerantes, como forma de
os fixar na sociedade civil. Em caso de discordância, a repressão tomaria as rédeas do
processo.

O governador alerta ao Intendente acerca da classe de pequenos agricultores e de tropas


de bandeiras, que não deveriam ser enquadrados nas definições de facinorosos e vadios,
na medida em que contribuíam para a renda da Coroa com o devido pagamento de
tributos. Além disso, os aventureiros possuíam legítima utilidade social ao desbravar os
sertões desconhecidos pelas autoridades.Nesse sentido, é interessante observar, de
acordo com a análise de Laura de Mello e Souza, que a camada livre pobre da
população era integrada por diversas classes de indivíduos que, no entanto, não
possuíam elementos suficientes para que se pudesse diferencia-las, fazendo necessário o
cuidado para que se não fossem confundidos “homens bons”, como rancheiros e
pequenos lavradores com facinorosos e vadios. Dessa maneira, poucos atributos
diferenciavam um indivíduo integrado à ordem social de um marginal, possibilitando a
“reversibilidade constante do bem-classificado no desclassificado, do útil no oneroso”3.

O já referido clima de violência e imprevisibilidade social das Minas atingia até mesmo
as autoridades locais, como se pode perceber no comentário feito pelo governador
acerca do receio presente nos oficiais para entrar desprotegidos em alguns distritos em
busca de devedores: “É verdade que nas execuções que os particulares lhes fazem
2
Laura de Mello e Souza, Desclassificados do Ouro, p. 125.
3
Ibidem.
sucedia antigamente não se animar oficial de justiça a entrar nos referidos distritos e que
ouço que alguns que o praticaram não tornaram a sair, porém hoje o estão fazendo
protegidos do auxílio militar...”.

As recomendações feitas pelo Conde de Valladares ao Intendente dos Diamantes


demonstram o caráter intervencionista do governador nas instâncias do Distrito
Diamantino, não obstante as determinações do Regimento de 1771 submetesse os seus
oficiais diretamente à Coroa, dotando-os de certa autonomia relativa à autoridade do
governador. De acordo com a análise de Júnia Furtado, “a política de intervenção dos
governadores durante o período [da extração] foi continuada, demonstrando seu amplo
poder de jurisdição, ao contrário do que salienta a historiografia” 4. Dessa maneira, o
intervencionismo é atribuído aos governadores em geral, demonstrando que as
especificações do Regimento nem sempre eram cumpridas com rigor, o que em parte
era devido ao próprio comportamento da Coroa, que encarregava os governadores de
determinadas atribuições com relação ao distrito. Os capitães-generais possuíam, assim,
uma certa legitimidade mesmo ao contrariar o Regimento, na medida em que alegavam
cumprir as determinações reais, atuando como verdadeiros intermediadores entre a
Coroa e os demais funcionários reais. No caso específico do Conde de Valladares, este
alega em sua carta ao Intendente o recebimento de uma carta régia que dizia respeito ao
Distrito, o que justificaria sua intervenção na medida em que foi requisitada pela própria
Coroa.

O segundo documento consiste num ofício, datado de 1781, enviado pelo governador D.
Rodrigo José de Menezes ao ministro Martinho de Melo e Castro, apresentando
inúmeras queixas ao então ouvidor da Comarca do Serro Frio, Joaquim Manoel de
Seixas Abrantes. O governador faz referência a atitudes tomadas pelo ouvidor que
ultrapassavam seu poder de jurisdição, como a suspensão dos oficiais da Intendência do
Ouro para colocar em seus lugares “outros com quem tinha feito ajustes” e a realização
de uma eleição ilegal para empossar o capitão Manoel José de Souza no cargo de juiz
trienal dos órfãos, “sem observar disposição alguma da lei do Reino e sem consultar
mais que o seu próprio capricho e interesse”.D. Rodrigo salienta que já havia advertido

4
Júnia Ferreira Furtado, O Livro da Capa Verde, p.160.
o ouvidor em carta particular que não surtira efeito algum, ressaltando saber exatamente
quais eram suas atribuições e quais as de Seixas.

O tom principal da queixa do governador refere-se nem tanto aos desmandos e atitudes
infratoras cometidos pelo ouvidor, mas ao abuso na utilização da autoridade, sem
relevar disposições e determinações superiores. D. Rodrigo ainda atribui este caráter a
toda uma parcela dos ministros da capitania, afirmando a ocorrência de excessos na
utilização da autoridade e a insubmissão a disposições do próprio governador:

“Não é possível expor a V. Exa. o quanto é prejudicial ao serviço de Sua Majestade e bem
comum dos povos a confusão que existe sobre os limites da jurisdição dentre os Governadores
desta Capitania e os ministros. Estes indivíduos, (...) eles se intrometem na administração
política que não pode pertencer mais que aos Governadores, arrogando-se cada um na sua
comarca uma autoridade sem limite, afetando uma total independência dos Governadores...”.

A preocupação de D. Rodrigo refere-se diretamente ao excesso de autonomia e à


indefinição dos limites da jurisdição dos oficiais da Coroa, ocasionando interferências
em aspectos que seriam de sua exclusiva competência e o desmerecimento de suas
determinações. O governador a isto atribui a desordem reinante nas Minas, “que
precisamente há de existir num corpo sem cabeça”.

A procedência das acusações de D. Rodrigo, tanto no caso particular de Seixas quanto


dos oficiais da Coroa em geral, pode ser verificada na análise da estrutura burocrática
implementada pela metrópole portuguesa na colônia. Na análise de Francisco Iglesias, o
processo político-administrativo “oscilou entre a centralização e a descentralização,
impondo-se ora uma ora outra, pelas necessidades do momento”5. No caso da
administração das Minas, o ímpeto inicial de organização realizou-se no sentido da
urbanização do território e da criação das funções de polícia, justiça e fisco. A criação
da estrutura burocrática não se deu paralelamente ao desenvolvimento social e ao
aumento populacional, devido à necessidade de normatização das atividades
extrativistas e do estabelecimento de uma tributação adequada à Coroa. No que
concerne à tributação, a burocracia portuguesa foi bem sucedida, criando um sistema de
cobrança de impostos que satisfazia às necessidades da metrópole naquele momento. Na
5
Francisco Iglesias, “Minas e a Imposição do Estado no Brasil”, In: Revista de História, nº 50, 1974,
p.261.
tentativa de evitar a corrupção e a usurpação do poder devido à concentração da
autoridade em um número reduzido de pessoas, o Estado português criou uma complexa
estrutura administrativa, que contava com um número exacerbado de cargos públicos
com funções mal definidas, havendo uma certa confusão entre as responsabilidades e
atribuições de cada um. Além disso, com o intuito de cooptar homens para trabalhar nas
Minas (capitania que inspirava temor, pois era considerada como terra onde não se
havia instaurado a ordem social) o Estado concedia privilégios e benefícios a
determinados funcionários. Desta maneira, os interesses privados deslocavam-se para a
esfera pública, resultando numa indistinção entre e público e o privado, característica
marcante do patrimonialismo. O poder era exercido de forma pessoal6.

A tentativa de fragmentar a autoridade acarretou na concentração do poder nas mãos de


muitos oficiais, que se identificavam com uma certa autonomia derivada da complexa
rede hierárquica da administração colonial; no caso do Distrito Diamantino, as
autoridades entendiam-se como submetidas diretamente à Coroa, sobrepondo-se aos
desígnios do governador. A Coroa estando assaz distante, criava-se uma atmosfera de
autonomia facilitadora de abusos de autoridade, usurpação do poder e utilização do
aparelho estatal para atingir objetivos pessoais. Nesse sentido, a liberdade de decisão
conferida pelos estatutos reais possibilitou ao corpo de funcionários reais tornarem-se
um centro autônomo de poder7. O caso de Seixas Abrantes ilustra bem esta realidade:
além de ouvidor e corregedor, era ainda provedor e intendente do ouro, agregando
vários cargos na sua pessoa, além de substituir funcionários sem jurisdição, desrespeitar
prazos estipulados e desobedecer a leis da Coroa e a determinações dos governadores.

A situação agravava-se devido à própria forma de legislação do Estão português: as


cartas régias não seguiam a uma legislação determinada, ou a uma linha de
determinações específica. As leis eram formuladas de acordo com as condições
estruturais momentâneas, tornando-se muitas vezes contraditórias e originando conflitos
decorrentes da observância destas mesmas leis, como afirma o próprio D. Rodrigo: “A
multidão de ordens depois expedidas pelo mesmo Conselho [Conselho Ultramarino] a
esta Capitania fazem um corpo informe e contraditório sendo cada uma delas ditada
pelas inclinações da conjuntura”.
6
Júnia Ferreira Furtado, Homens de Negócios, p.179.
7
Carla Anastasia, O ensandecido Seixa..., p. 139.
Era necessário se fazer sentir a presença do Estado metropolitano na colônia, em
conformidade com os princípios do Absolutismo, de maneira a efetuar a coerção; não
obstante, ela não poderia ser percebida como tal e considerada odiosa, pois as distâncias
e a morosidade da complexa burocracia administrativa dificultavam a ação
metropolitana. O poder Estado deveria “introjetar-se nas consciências a ponto de se
tornar uma necessidade profunda”8, de maneira criar uma estrutura de coerção moral
que fosse imperceptível ao indivíduo. Assim, a idéia de uma suposta autonomia deveria
estar presente na população, de maneira que esta não se revoltasse contra o controle
social, e nas próprias autoridades; diga-se, de passagem, que tal política não obteve
sucesso, como se observa pelo grande número de revoltas ocorridas nas Minas ao longo
do século XVIII.

A metáfora de um “corpo sem cabeça” utilizada por D. Rodrigo ilustra de maneira


interessante a situação vigente nas Minas no século XVIII: uma rede de funcionários
dotados de uma relativa autonomia que, muitas vezes, era levada às últimas
conseqüências, os quais encontravam-se submetidos ao poder real que não estava
presente espacialmente, gerando a idéia de ausência de jurisdição superior. Desta
maneira, os funcionários consideravam legítimo não relevar as intervenções dos
governadores e tomar decisões de acordo com seus próprios interesses. Era uma
complexa rede administrativa sem um poder centralizador, uma burocracia quase
autônoma. Os governadores, por sua vez, sentiam sua autoridade desrespeitada, na
medida em que eram orientados diretamente pela Coroa, que, ao mesmo tempo em que
dava autonomia aos funcionários do Distrito em relação ao governador, instruía a este
para que interviesse nas decisões tomadas na região. A posição ambígua da Coroa
dificultava, certamente, um entendimento entre ambas as partes.

8
Laura de Mello e Souza, op. cit., p.98.

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