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Senador ABDIAS NASCIMENTO

GABINETE DO SENADOR ABDIAS NASCIMENTO

5
1998 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento

Thoth

no 5 maio/agosto 1998

Secretaria Especial de Editoração e Publicações


Thoth, Brasília, no 5, p. 1 - 305, mai/ago 1998
Thoth

Informe de distribuição restrita do Senador Abdias Nascimento


5 / 1998
6 THOTH 5/ agosto de 1998

Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci-
mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações
e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes
dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância.
Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de idéias, permitindo a expressão das diversas correntes
de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.

Responsável: Abdias Nascimento

Editores: Elisa Larkin Nascimento


Carlos Alberto Medeiros
Theresa Martha de Sá Teixeira

Redatores: Celso Luiz Ramos de Medeiros


Éle Semog
Paulo Roberto dos Santos
Oswaldo Barbosa Silva

Computação: Denise Teresinha Resende


Honorato da Silva Soares Neto
Thais Caruso Amazonas da Silva

Revisão: Gilson Cintra


Carlos Alberto Medeiros

Impresso na Secretaria Especial de Editoração e Publicações


Diretor Executivo: Claudionor Moura Nunes
Capa: Theresa Martha de Sá Teixeira sobre desenho do deus Thoth do livro de Champollion - Le Panthéon
Égyptien Contracapa: deusa Ma’at do livro de E.A Wallis Budge - The Gods of the Egyptians.

Endereço para correspondência: Tels: (061) 311-4229 311-1021


Revista Thoth 311-1121
Gabinete do Senador Abdias Nascimento
Senado Federal - Anexo II - Gabinete 11 Telex: (061) 311-1357 311-3964
Brasília - DF - Brasil Fax: (061) 323-4340
CEP: 70165 - 900 E-mail: abdias@senador.senado.gov.br

Thoth/ informe de distribuição restrita do senador Abdias Nascimento / Abdias Nascimento


no 5 (1998) - Brasília: Gabinete do Senador Abdias Nascimento, 1998

Quadrimestral (maio - junho - julho - agosto)

V.; 25 cm

ISSN: 1415-0182

1. Negros, Brasil. I. Nascimento, Abdias.


CDD 301.45196081
SUMÁRIO

Apresentação....................................................................................................................11
Thoth .............................................................................................................................13

DEBATES

A questão do Deus único nas religiões africanas e afro-brasileiras


Falagbe Esutunmibi..........................................................................................................21

ATUAÇÃO PARLAMENTAR

Prêmio Cruz e Sousa de monografia


Ata da 1a Reunião da Comissão de Julgamento ......................................................................43
Ata da 2a Reunião da Comissão de Julgamento ......................................................................47
Relatório do Resultado do Prêmio (Categoria Geral ) Gerardo Mello Mourão .....................49
Discurso do senador Abdias Nascimento sobre o julgamento ¿nal dos trabalhos ..................55

Abdias expõe suas pinturas afro-brasileiras no Senado .............................................................59

Pronunciamentos
Dia Internacional dos Direitos Humanos ................................................................................65
Solenidade de outorga do Prêmio Franz de Castro Holzwarth - OAB/ SP .............................68
Denúncia da mentira cívica da Abolição .................................................................................73
Homenagem aos líderes da Revolta dos Malês de 1835 .........................................................85
Recebimento da Medalha Tiradentes na Assembléia Legislativa - RJ ....................................92
Solicita transcrição do artigo União contra o racismo de Vicentinho, da CUT .......................99
Duzentos anos da Revolta dos Búzios ..................................................................................107

DEPOIMENTOS

Thoth entrevista Celestino


Éle Semog ................................................................................................................................113
Violência, Cidadania e Direitos Humanos
Vera Malaguti S. W. Batista ......................................................................................................127
A Marcha de Um Milhão
Introdução .................................................................................................................................138
A guerra americana contra a decência
Houston A. Baker, Jr .............................................................................................................143
Um entre um milhão
Clyde Taylor .........................................................................................................................157
A Marcha de Um Milhão de Homens
David J. Dent .............................................................................................................175

Afro-americanas reúnem-se na Marcha de Um Milhão de Mulheres


Lula Strickland...........................................................................................................189

SANKOFA: MEMÓRIA E RESGATE

Diário de um negro atuante - 1o Livro: 1974-5 (2a parte)


Ironides Rodrigues.........................................................................................................195
Entre Otelo e Eu
Abdias Nascimento.........................................................................................................247
Saudação ao bispo Desmond Tutu
Abdias Nascimento.........................................................................................................251
Colóquio Dunia Ossaim
Evento co-relato à Rio 92.............................................................................................257
Saudação a S.S. o Dalai Lama
Abdias Nascimento......................................................................................................259
Convocatória
Abdias Nascimento......................................................................................................263
Dunia Ossaim: reÀexões sobre afro-americanos, meio ambiente e
desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento...............................................................................................267
Bantos, índios, ancestralidade e meio ambiente
Nei Lopes..................................................................................................................275
O verde no candomblé
José Flavio Pessoa de Barros........................................................................................279
Irokò, o deus-árvore da tradição afro-brasileira
Nei Lopes..................................................................................................................287
Teoria Ossaim
Rafael Zamora Díaz.....................................................................................................291
Patrimônio Histórico na Rota dos Escravos.......................................................................297

MOVIMENTO NEGRO HOJE

CEAP lança Centro Cultural de Identidade Negra...............................................................303


Senador Abdias Nascimento fala sobre direitos humanos dos afro-brasileiros ao receber menção honrosa na
solenidade de entrega do Prêmio Franz de Castro Holzwarth de Direitos Humanos, na sede da Ordem dos
Advogados do Brasil, Secção São Paulo, dia 9 de dezembro de 1997. Na foto, à frente, da esquerda para
a direita: Dra. Flávia Piovesan, procuradora do Estado e professora da PUC-SP, também menção honrosa;
sen. A.N.; Dr. Nagashi Surukawa, juiz de Bragança Paulista; Dr. Jairo Fonseca, ex-presidente da Comissão
de Direitos Humanos da OAB-SP; Dr. Guido Andrade, ex-presidente da OAB-SP; rabino Henry Sobel, que
recebeu o Prêmio
APRESENTAÇÃO

Ao proclamar, cerca de oitenta anos atrás, que o século XX seria marcado pelo
que chamou de “linha da cor”, o intelectual afro-norte-americano W.E.B. DuBois, um dos
maiores teóricos do pan-africanismo, mostrava clarividência ao perceber não somente a
importância que a questão racial assumiria nos cem anos subseqüentes, mas também sua
crescente dimensão internacional. Organizador dos primeiros Congressos Pan-Africanos,
DuBois identi¿ cava já então o caráter essencialmente semelhante do preconceito e da
discriminação que se abatiam sobre os africanos e seus descendentes, vivessem estes no
Continente Africano, na Europa ou em qualquer parte das Américas.
No Brasil, embora o pan-africanismo de DuBois, bem como o de Marcus Garvey,
fosse conhecido dos militantes afro-brasileiros mais informados, a dimensão internacional
da questão racial sempre foi negada por aqueles que defendiam - e que ainda defendem
- a idéia de que este país constitui um modelo à parte na área das relações raciais, uma
espécie de paraíso terrestre em que pessoas de todas as origens têm igual tratamento nas
diversas esferas da vida social. São os apóstolos da “democracia racial”, que continuam
sustentando - mesmo contra todas as evidências empíricas - a tese de que toda e qualquer
discriminação entre nós se deve ao fator classe, ou a outro qualquer, mas jamais ao fator
raça.
A verdade, contudo, é que no Brasil, tal como nos Estados Unidos da América -
para ¿ carmos apenas nas duas maiores nações multirraciais do continente -, raça e classe
interagem para determinar o status relativo de cada pessoa, sua posição no conjunto da
sociedade. Essa similitude, aliada à e¿ cácia dos modernos veículos de comunicação, faz
com que os eventos da esfera racial em cada um desses países exerçam inÀuência para
além das fronteiras nacionais, podendo inspirar atitudes e comportamentos, bem como
reações e respostas, evidentemente adaptadas aos seus respectivos contextos.
12 THOTH 5/ agosto de 1998
Apresentação

É nessa perspectiva que este número de Thoth traz três artigos importantes, as-
sinados por renomados intelectuais afro-norte-americanos. Trata-se de textos publicados
originalmente na revista Renaissance Noire, editada pelo Instituto de Assuntos Afro-
-Americanos/Programa de Estudos Africanos da New York University, sob a direção
do professor Manthia Diawara, que já teve um artigo seu traduzido no número anterior
desta revista. Referem-se à Marcha de Um Milhão de Homens, realizada há dois anos na
cidade norte-americana de Washington. Convocada pelo polêmico líder dos muçulmanos
negros, ministro Louis Farrakhan, a Marcha acabou atraindo as atenções de todos e levan-
do à capital dos Estados Unidos centenas de milhares de negros de todas as orientações
possíveis em matéria de religião e de política. Também obteve o apoio das mulheres afro-
-americanas, que acabariam realizando, meses mais tarde, sua própria versão da Marcha,
igualmente focalizada neste número de Thoth.
Eventos dessa natureza costumam ter um valor simbólico que ultrapassa os
objetivos imediatos de seus organizadores, pois envolvem sentimentos e emoções que
só podem vir à tona em grandes manifestações de massa, propiciados pela percepção de
se pertencer a uma ampla coletividade - em verdade, a uma nação - identi¿ cada pelas
condições de vida e também pelos sonhos e aspirações. Como sempre gosto de enfati-
zar, apenas para reavivar memórias, não foram os norte-americanos quem nos ensinou
a lutar por nossos direitos. Na verdade, por muito tempo estivemos à frente deles nesse
aspecto - como prova a nossa Frente Negra dos anos trinta, para não falar na República
de Palmares, cujos fundamentos foram lançados num período em que nem mesmo havia
um sistema escravista na América do Norte. Mas não podemos deixar de reconhecer o
caráter inspirador de suas estratégias de luta nos últimos trinta anos, as quais nos são in-
dubitavelmente úteis pelo menos como referencial na busca de nossos próprios caminhos.

Brasília, agosto de 1998

AN
Após o tricentenário de Zumbi dos
Palmares, em 1995, marcado pela Marcha contra o
Racismo, pela Cidadania e a Vida e por inúmeros acon-
tecimentos de âmbito nacional e internacional em todo
o País, veri¿camos que a questão racial no Brasil atinge
Thoth um novo estágio. Setores da sociedade convencional
reconhecem o caráter discriminatório desta sociedade,
e o debate passa a focalizar as formas de ação para com-
bater o racismo, ultrapassando o patamar que marcou
a elaboração da Constituição de 1988: a declaração de
intenção do legislador dá lugar à discussão de medidas
concretas no sentido de fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Senado
Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve
solidário com a luta anti-racista. O mandato do senador
Abdias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla
de luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à
questão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem a¿rmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
14 THOTH 5/ agosto de 1998

Além de representar o veículo de comunicação do


mandato do senador Abdias Nascimento com sua comu-
nidade e seu país, a revista Thoth surge como fórum do
pensamento afro-brasileiro, na sua íntima e inexorável re-
lação com aquele que se desenvolve no restante do mundo.
Seu conteúdo pretende reÀetir as novas dimensões que a
discussão e elaboração da questão racial vêm ganhando
nesta nova etapa, inclusive o aprofundamento da reÀexão
sobre as dimensões históricas e epistemológicas da nossa
herança africana, para além dos tradicionais parâmetros
de samba, futebol e culinária que caracterizam a fórmula
simplista e preconceituosa elaborada pelos arautos da
chamada democracia racial.
Nesse sentido, cabe um esclarecimento do sig-
ni¿ cado do título da revista, que remete às origens dessa
herança civilizatória no antigo Egito, matriz primordial
da própria civilização ocidental da qual o Brasil sempre
se declara ¿ lho e herdeiro. Os avanços egípcios e as
conquistas africanas no campo do conhecimento humano
formam as bases da cultura greco-romana. Entretanto, as
suas origens no Egito ¿ caram escamoteadas em função
da própria distorção racista que nega aos povos africanos
a capacidade de realização humana no campo do conhe-
cimento.
Nada mais apropriado para expressar a meta de
contribuir para a recuperação dessa herança africana que a
referência, no nome da revista, ao deus Thoth. Na tradição
africana, o nome constitui mais que a simples denomina-
ção: carrega dentro dele o poder de implementar as idéias
que simboliza. Thoth está entre os primeiros deuses a sur-
gir no contexto do desenvolvimento da ¿ loso¿ a religiosa
egípcia: autoprocriado e autoproduzido, ele é Uno. Autor
dos cálculos que regem as relações entre o céu, as estrelas
e a terra, Thoth incorpora o conhecimento que faz mover
o universo. O inventor e deus de todas as artes e ciências,
Senhor dos Livros e escriba dos deuses, Thoth registra
o conhecimento divino para benefício do ser humano.
Sobretudo, é poderoso na sua fala; tem o conhecimento
da linguagem divina. As palavras de Thoth têm o dom da
Thoth
15

vida eterna; foi ele que ensinou a Ísis as palavras divinas


capazes de fazer reviver Osíris, após sua morte. Assim,
esperamos que a revista Thoth ajude a fazer reviver para
os afro-descendentes a grandeza da herança civilizatória
de seus antepassados, vilipendiada, distorcida e reduzida
ao ridículo ao longo de dois mil anos de esmagamento
discriminatório.
Tendo uma cabeça do íbis, pássaro que representa
na gra¿a egípcia a ¿gura do coração, Thoth era cantado
como coração de Ra, deus do sol (vida, força, e saúde).
Na mitologia egípcia, o coração era o peso a ser medido
na contrabalança da vida do homem, no momento de sua
morte, medindo sua correspondência em vida aos princí-
pios morais e éticos de Ma’at, ¿loso¿a prática de vida da
civilização egípcia. Thoth assim constitui-se no mestre da
lei, tanto nos seus aspectos físicos como morais.
A deusa Ma’at encarna essa ¿loso¿a de vida moral
e ética, o caminho do direito e da verdade. Constituindo
uma espécie de contraparte feminina de Thoth, ela repre-
senta uma característica relevante da civilização egípcia: a
partilha do poder, tanto no plano espiritual como material,
entre a autoridade masculina e a feminina. Os faraós ti-
nham o seu poder temporal complementado por um poder
feminino exercido por soberanas e sacerdotisas, assim
seguindo o primordial e simbólico exemplo de Osíris e
Ísis. Sem ser compartilhado entre feminino e masculino,
entre homem e mulher, o poder careceria de fecundidade,
seria estéril.
Ma’at e Thoth acompanhavam o deus-sol Ra, na
sua embarcação, quando ele surgiu pela primeira vez sobre
as águas do abismo primordial de Nu. Era Ma’at quem
regulava o ritmo do movimento da embarcação de Ra, ou
seja, o seu ciclo de nascer e se pôr sobre o horizonte, bem
como sua trajetória diária do leste ao ocidente. Ela corpo-
ri¿cava a justiça, premiando cada homem com sua justa
recompensa, e encarnava o mais alto conceito da lei e da
verdade dos egípcios.
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Como deus da sabedoria e inventor dos ritmos


cósmicos, Thoth dominava também a magia. Patrono
do aprendizado e das artes, a ele se creditavam muitas
invenções, inclusive a própria escrita, a geometria e a
astronomia, áreas do conhecimento que fundamentaram o
Àorescimento da milenar civilização egípcia. Entretanto,
sem ser socializado, o conhecimento não produz resultados
concretos, pois ninguém sozinho consegue colocá-lo em
prática. Faz-se necessário um agente de comunicação, e
Thoth se responsabiliza também por exercer esse papel.
Passando sua sabedoria para os seres humanos, como
o passou para outros seres divinos, a exemplo de Ísis,
Thoth amplia seu papel no mundo espiritual e material,
tornando-se ainda o elo de transmissão do conhecimento e
do segredo divino entre um domínio e o outro. A invenção
da escrita se revela, então, como decorrência do papel de
Thoth, originador do conhecimento em si: formular uma
nova forma de transmissão desse conhecimento.
Os gregos denominavam Thoth de Hermes
Trismegistus (Thoth, Três Vezes Grande), nome também
dado aos livros que registravam a sabedoria metafísica
herdada do antigo Egito, centrada na idéia da comunidade
entre todos os seres e objetos, e cuja autoria era atribuída
a Thoth1 . Assim, Thoth se identi¿ cava com Hermes,
mensageiro dos deuses gregos e aquele que conduzia as
almas a Hades. Hermes, para os gregos, era o deus das
estradas e dos viajantes, da sorte, do comércio, da música
e dos ladrões e trapaceiros. Os romanos o chamaram de
Mercúrio.
Tais atributos de Thoth e de Hermes nos remetem
nitidamente à ¿ gura de Exu na cosmologia africano-
-brasileira. Conhecido popularmente como mensageiro
dos deuses, Exu constitui o princípio dinâmico que pos-
sibilita o Àuxo e intercâmbio de energia cósmica entre os
domínios do mundo espiritual (orum) e o mundo material
(aiyê). Conhecedor das línguas humanas e divinas, Exu é
a comunicação em si, além de se apresentar como o deus
das estradas, da sorte, da brincadeira e da malandragem.
__________
1
Esses tomos tratam de muitos assuntos, entre eles a astronomia, a magia e a alquimia, e exerceram uma enorme inÀuência
sobre o neoplatônicos do século III na Grécia, bem como na França e na Inglaterra do século XVII
Thoth
17

Os paralelos e as semelhanças entre Thoth, Hermes


e Exu não se reduzem a identidades absolutas, mas as linhas
gerais de suas características apontam para uma unidade bási-
ca de signi¿ cação simbólica. Por isso, nada mais adequado,
tratando-se de uma revista Thoth lançada no Brasil, que uma
primeira invocação a Exu, de acordo com a tradição religiosa
afro-brasileira, que abre todos os trabalhos espirituais com o
padê, a oferenda a Exu de uma prece digna de todo o peso
milenar da arte africana da oratória.
Thoth representa, junto com Ma’at, o conhecimento,
a ciência e ¿ loso¿ a, a religiosidade e a ética na mais antiga
civilização africana. Assim, constituem referência básica
para o resgate de uma tradição africana escamoteada à
população brasileira enquanto verdadeira matriz de nossa
civilização, e também para o resgate da ética na política,
questão emergente no Brasil de hoje. Assumindo o nome
Thoth, dentro da postura africana em que o nome ultrapassa
a denominação, esta revista tem o objetivo de contribuir, de
alguma forma, para os dois resgates, a¿ rmando ainda que o
primeiro faz parte imprescindível do segundo.
A questão do Deus
único nas religiões Quando reÀetimos sobre a sig-
ni¿cativa perda do caráter monoteísta
africanas e afro- das religiões de matriz africana, durante
descendentes a formação do processo sincrético que
ocorreu entre as religiões cristãs, notada-
mente a religião católica, e as religiões
afro-descendentes, quase que de forma
geral, somos levados a pensar em algu-
mas raízes que esse processo possa ter,
para sua efetivação, no mundo psicoló-
gico dos envolvidos, no imaginário, seja
Monoteísmo x politeísmo - identidade no espaço dos dominadores, seja no dos
e valia nos afro-descendentes dominados.
Ora, entendemos que as res-
postas existenciais permanentes que
garantem aos homens a segurança das
suas relações com o mundo, com a vida,
com o trabalho e com seus semelhantes
são trazidas pela sua cosmovisão e pelas
interações religiosas dela decorrentes.
A idéia de um Deus único, Criador de
Falagbe Esutunmibi * todas as coisas e de todos os homens, um
José Tadeu de Paula Ribas Deus que está presente permanentemente
22 THOTH 5/ agosto de 1998
Debates

na sua obra e que a assiste em todas as A¿nal de contas, onde estaria


suas condições de continuidade, de¿ne, o seu Deus, que permitiu a conquista e
de certa maneira, por si só, um modelo o desmantelamento por parte do branco
de identidade do homem envolvido com da sociedade organizada em que viviam;
essa crença, sua maneira particular de que permitiu o esfacelamento de seus
se relacionar com seus semelhantes, sua grupos de referência; que permitiu o
auto-imagem e a valia que a contempla. aprisionamento e a escravização dos seus
Isso tudo termina por se traduzir em uma ¿lhos, dos seus irmãos e amigos, de todos
construção de mundo psicológico que aqueles que faziam, até agora, parte do
assegura a estabilidade e a segurança mundo organizado e estável em que cons-
nas relações desse homem com o mundo truíam suas vidas e desenvolviam seus
concreto, com todas as relações sociais projetos de futuro; onde estaria o Deus
e os padrões que regulam os papéis e as que permitiu a violência do desterro, que
interações na sociedade em que vive. permitiu a degradação da escravidão e
que transformou tudo isso em riqueza
Imagine-se o que pode ocorrer, para o conquistador e em miséria e avil-
ou o que efetivamente ocorre, nesse tamento para o conquistado?
mundo psicológico, quando do embate,
do encontro violento acontecido entre No seu imaginário promove-
duas culturas — no caso, as culturas -se, então, pode-se entender, com certa
branco-européia e negro-africana —, e margem de certeza, a desestruturação
que resulta na dominação de uma delas dos valores de segurança e estabilida-
pela outra. No exemplo particular, esse de, instala-se a dúvida em relação ao
encontro resultou, além de tudo, na poder desse Deus. Pode-se até pensar
diáspora forçada, em direção ao Brasil que nesse imaginário, muito provavel-
e às Américas, que o processo de escra- mente, o Deus do conquistador é ou se
apresenta maior e mais forte do que o do
vização negra representou. Imaginemos
conquistado. Os africanos escravizados
também que, pelo menos em grande
são retirados de suas famílias, de sua
parte, a mesma coisa sucedeu-se durante
terra, de tudo o que lhes garante sentido
a história da colonização européia sobre a
e ordem; são transportados para longe,
África e a correspondente cristianização
escravizados e transformados em mão-
da cultura africana.
de-obra-geradora de riquezas para o
De um lado, do ponto de vista conquistador. E onde são utilizados como
negro-africano, ocorre aí, sem dúvida, “peças” de produção, a terra transforma-
uma ruptura de todas as bases de segu- da pelo seu suor e trabalho responde com
rança e estabilidade garantidas pela sua produção e riqueza, com prestígio e valia
cosmovisão religiosa. Seus valores são para o branco. Violento choque sobre seu
desorganizados, suas estruturas sociais e mundo psicológico - certamente redução
religiosas são desmontadas, suas relações da auto-estima e negação de sua valia
socioafetivas são rompidas. dentro da ordem cósmica.
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descendentes 23
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas

Do lado branco, ainda que in- Podemos entender que, a partir


versamente, o mesmo processo ocorre, daí, o destino dos milhares de africanos
aumentando-lhe a valia, reforçando-lhe escravizados está de¿nitivamente traça-
os valores e assegurando-lhe a efetiva do, não havendo por que questionar um
validação dos processos de escravização. assunto em que o próprio Deus assume
Deus, o “seu” Deus, está com certeza ao posição tão favorável. A injustiça é
seu lado, abençoando-lhes a ação con- apenas aparente e pensar sobre ela não
é uma postura adequadamente cristã -
quistadora, o estabelecimento da escravi-
trata-se de um desígnio divino e implica
dão e santi¿cando os seus métodos. Ora,
a libertação desses povos de seu estado
se quisermos entender melhor a questão,
de cativos da “terra da maldição” que é
basta nos remetermos ao Sermão XXVII, a África, terra de Cam.
do padre Antônio Vieira, citado pelo
historiador Eduardo Spiller Pena, em Ass im, na Bahia açucare i-
um artigo intitulado “Santa Pé de Cana, ra, por exemplo, os engenhos foram
erguidos sob a invocação dos santos
ora pro nobis! A Igreja Católica entre a
católicos e terminou-se por construir
oração e a escravidão”:
dentro da estrutura teológica católica
Q uem pudera cuidar que as toda uma vertente que garantisse o
plantas regadas com tanto sangue esvaziamento de identidade dos afri-
inocente houvessem de medrar nem canos escravizados, que legitimasse o
crescer, e não produzir senão espinhos processo de escravização, que assegu-
e abrolhos? Mas são tão copiosas as rasse o desenvolvimento das atividades
produtivas dependentes da escravidão e
bênçãos de doçura, que sobre elas
que garantisse a riqueza e prosperidade
derrama o Céu, que as mesmas plan-
dos senhores de fazendas e de escra-
tas são o fruto, e o fruto tão precioso, vos, da iIgreja e da Coroa portuguesa.
abundante e suave, que ele só carre-
ga grandes frotas, ele enriquece de O mesmo historiador, no artigo
tesouros o Brasil e enche de delícias citado, relata que, por volta de 1880, a
viajante francesa Adèle Toussaint-Sam-
o Mundo. Algum grande mistério se
son, visitando uma fazenda escravista no
encerra nesta transmigração; e mais
Rio de Janeiro, registra que os escravos
se notarmos ser tão singularmente
eram obrigados à oração da mesma forma
favorecida e assistida de Deus, que
que ao trabalho diário. Os sinos, tocados
não havendo em todo o oceano nave- sempre pelo feitor ou pelo fazendeiro,
gação sem perigo e contrariedade de exigiam a presença dos escravos e a
ventos, só a que tira de suas pátrias a realização das duas obrigações. As rezas
estas gentes e as traz ao exercício do católicas incluíam cantos que santi¿ca-
cativeiro é sempre com vento à popa, vam a cana- de- açúcar, matéria de seu
e sem mudar vela. trabalho:
24 THOTH 5/ agosto de 1998
Debates

O ritual inicia-se com o acendi- Baseando-se no relato do via-


mento de quatro velas, sendo o¿ cia- jante Henry Koster, que foi proprietário
do por dois escravos, sub-feitores, de engenho e escravos no início do
que entoavam, num latim peculiar, século XIX, Stuart Schwartz oferece
o “Kyrie eleison”. Depois, todos mais detalhes sobre o ato litúrgico que
em uníssono, cantaram a ladainha sacramentava os primeiros passos da
dos santos do paraíso, desde “Santa safra açucareira.
Maria, mai de Deos, ora pro nobis!” No dia marcado, o pároco ou
até a última inclusão: “Santa Pé de capelão residente rezava missa,
Canna, ora pro nobis!”. Prostrando-se abençoando o engenho, na presença
os presentes ¿ nalizaram o canto com do proprietário e sua família ou do
uma “aÀitiva exclamação”: “Miserere administrador residente, além de
nobis!” muitos indivíduos livres das áreas
vizinhas. Suplicava-se a Cristo, ou
Açúcar e fé mesclaram-se a tal
ao santo padroeiro do engenho, que
ponto que acabaram por produzir
protegesse todos os que trabalhavam
visões e crenças nos engenhos que na propriedade e assegurasse uma boa
chamaram a atenção dos inquisidores colheita. No local da moenda, escra-
portugueses. Analisando os processos vos e homens livres reuniam-se para
do Santo Ofício no Brasil colonial, ouvir as preces e assistir à aspersão
Laura de Mello e Souza destaca de- de água-benta sobre a máquina.
poimentos de “mestres de açúcar” que
a¿ rmavam ter visto a incorporação de A um sinal, a moenda era posta
em movimento, e o padre e o pro-
Nossa Senhora nas fôrmas de barro
prietário passavam as primeiras canas
que purgavam o melado quente que
pelos tambores. Os escravos levavam
nem açúcar . A fôrma como o lugar
aquilo tão a sério quanto os senhores.
do mistério alquímico que trans¿ -
Recusavam-se a trabalhar se a mo-
gurava o caldo no bem precioso dos
enda não fosse abençoada e, durante
engenhos era também o lugar sagrado a cerimônia, muitas vezes tentavam
que acolhia a mãe de Cristo - misté- avançar para receber algumas gotas
rios da fé! Além disso, havia outros de água-benta no corpo. As caldeiras e
possíveis condicionantes para esta os trabalhadores também eram aben-
imagem herética dos visionários. As çoados, assim como, por insistência
fôrmas tinham o formato dos sinos dos condutores, os carros de bois
das capelas e o período do ano em vindos dos canaviais, enfeitados com
que eram produzidas e trabalhadas guirlandas feitas de canas compridas
para a puri¿ cação do açúcar coincidia amarradas com ¿ tas coloridas. Mais
com os festejos de Nossa Senhora da tarde, em geral, havia um banquete
Puri¿ cação (...) na casa-grande, e os escravos eram
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descendentes 25
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas

presenteados com garapa para beber. raízes religiosas foram então reduzidos
A safra começara. e subordinados aos valores e formas do
branco e sua cosmogonia foi, de certa
Essa teologia da escravidão,
forma, absorvida e dominada pela cultura
do trabalho escravo e da matéria-prima do senhor de escravos.
que se transformava em riqueza para os
brancos cristãos impregnou, parece-nos, Se dentre os vários povos africa-
todas as partes envolvidas: aos brancos, nos que sofreram o processo de escravi-
europeus e cristãos, garantiu a mora- zação, de diáspora forçada em direção ao
lidade dos processos, a bênção divina Brasil, tomarmos como exemplo o povo
iorubá - o território iorubá estende-se
sobre a riqueza e a idéia de supremacia
pelos países Nigéria, Togo e República
espiritual, racial e sociocultural; aos ne-
do Benin (antigo Daomé) —, vamos
gros africanos, reduziu a magnitude de
encontrar em sua cosmovisão e cultura
seu panteão, desenvolveu a idéia de um
religiosa a ¿gura de Olodunmare, espírito
deus de segunda classe, levou à redução in¿nitamente perfeito, que existe por si
da valia e grandeza das divindades (ori- mesmo e de quem o universo e todos
xás, voduns, inquices), espíritos puros os outros seres recebem a existência.
criados pelo Deus base de sua religião Quando Olodunmare nomeia-se a si
monoteísta, como princípios universais mesmo, nos vários signi¿cados que a
no processo da Criação. decomposição de seu nome nos traz, ele
Ao lado da idéia de supremacia se denomina “Eu Sou Aquele que É”.
do Deus branco ou da incorporação do No entanto é natural para todos,
conceito politeísta - em que as divin- assim como o é para todos os povos que
dades transformaram-se em deuses —, dispõem de uma teologia desenvolvida,
o sincretismo então ocorrido levou à a idéia de que não podem compreender
comparação dessas divindades com os Olodunmare. Na medida em que ele é in-
santos católicos, pessoas que viveram ¿nito, princípio e ¿m de todas as coisas,
vidas segundo os valores da Igreja Ca- encontra-se além dos limites humanos
tólica e que, por isso mesmo, após sua a sua compreensão. Podem, isso sim,
morte, foram santificadas, reduzindo conhecê-lo por meio de seus atributos e
assim o tamanho, a dimensão das di- deduzir a sua existência mediante suas
vindades. Isso, sem dúvida, terminou manifestações no Universo e nas coisas
criadas.
por contribuir para a construção de uma
representação distorcida e, reduzindo É a partir desse processo do
a dimensão das divindades, endossou conhecer que os iorubás a¿rmam ser
mais uma vez o estereótipo dos africanos Olodumare “o Único no céu e na terra,
como inferiores, contribuindo assim para o Supremo sobre todos”, e o chamam por
afetar a auto- estima e a auto-imagem dos esse nome referindo-se particularmente
afro-descendentes. Associa-se a isso que às suas características de “Senhor de
seus valores, sua ancestralidade e sua todas as coisas”, “o Soberano que está
26 THOTH 5/ agosto de 1998
Debates

no Orun”, “Aquele que tem a máxima Tudo o que ocorre em nosso


autoridade sobre tudo”. pequeno mundo está em relação com a
imensidão cósmica, como se cada parte
Pensam que Olodunmare pode
de qualquer mundo considerado conti-
ser conhecido por muitos nomes - a¿nal vesse em si a totalidade do Universo.
de contas, muitas são as suas particulares Conclui-se que o todo e a parte são uma
manifestações nos diversos momentos e única e mesma coisa.
planos da Criação, e assim, muitas ve-
- Tudo reflete todo o resto. Cada
zes, ele é chamado de Olo¿n ou Olorun.
região do espaço, por menor que seja,
Muitas vezes, querendo expressar uma
contém a configuração completa do
emoção extrema ou apelo urgente, os conjunto. O que quer que aconteça na
iorubás reúnem os três nomes de Olo- Terra é ditado por todas as hierarquias
dunmare em uma mesma exclamação: das estruturas do Universo.
“L’ oju Olodunmare! L’oju Olofin! L’oju
Olorun!”, signi¿cando “na presença de Olodunmare é Imutável
Olodunmare! na presença de Olo¿n! na A imutabilidade de Olodunmare
presença de Olorun!” consiste em que Olodunmare não está su-
jeito a mudança nem no seu ser, nem nos
Alguns atributos de Olodunmare seus desígnios. Olodunmare é chamado
podem ser aqui citados para demonstrar de “Oyigiyigi, Ota Aiku” - O máximo,
a profunda complexidade da reÀexão Pedra Imutável que jamais morre.
teológica presente na cosmovisão iorubá,
percebendo-se, sem dúvida, que seu pen- Olodunmare é Eterno
samento religioso organizado enquanto Consiste em que Olodunmare
sistema nada deixa a dever às religiões não teve princípio nem pode ter ¿m.
consideradas signi¿cativas na história da Ora, Olodunmare é eterno porque é o
humanidade. Assim, ser necessário que em si tem a razão de
existir e não pode deixar de existir. Con-
Olodunmare é In¿nito seqüentemente, para Olodunmare não
Olodunmare é in¿nito, ou seja, tem todas há passado nem futuro - todas as coisas
as perfeições em sumo e ilimitado grau. estão para ele em um eterno presente.
A natureza é um conjunto indivisível no No entanto nós o vemos como o
qual tudo está contido - a totalidade do Olojo Oni, o Senhor do Tempo, o gerador
Universo está presente em todas as partes de todos os ciclos, e por isso falamos:
e em todos os tempos que possam ser “Oni, omo Olofin; ola, omo Olofin; otun-
considerados. Sem dúvida alguma, existe la, omo Olofin; ireni omo Olofin; orunni,
uma interação completa e misteriosa omo Olofin” - “hoje é a descendência de
entre todos os elementos do Universo Olo¿n; amanhã é a descendência de Olo-
e essa interação une o Universo numa ¿n; depois de amanhã é a descendência de
única totalidade. Olo¿n; o quarto dia é...; o quinto dia...”.
Visões da religião afro-brasileira pela objetiva do fotógrafo Luiz Paulo
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descendentes 29
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas

Um Deus que não teve começo e Muitas vezes o nome Oloko,


que não conhecerá ¿m não está necessa- pelo qual Olodunmare também é co-
riamente fora do tempo - Ele é o próprio nhecido, é traduzido por pesquisadores,
tempo, simultaneamente quanti¿cável literal e restritamente, como “Senhor da
e in¿nito, um tempo em que um único Fazenda” ou “Fazendeiro”. Uma reÀexão
segundo contém a eternidade inteira, mais profunda leva-nos a entender que
sem que o conceito de tempo aí expresso Oloko refere-se à condição de Olodun-
implique a idéia de sucessão de aconte- mare enquanto “Senhor do Universo”
cimentos. que criou, universo de in¿nita extensão,
Olodunmare é Imortal inimaginável ao pensamento humano.
Assim, o título Oloko nada mais é do que
Mais que Imortal, Olodunmare é símbolo a reÀetir a extensão e a grandio-
a Imortalidade, e a esse atributo associa-se sidade presentes na obra da Criação.
o atributo da invisibilidade. Olodunmare
não pode ser visto e assim é chamado de Olodunmare é o Criador
“Oba Airi” - O Rei Invisível”. Sua condição de Pré-Existente a
tudo e a todos os seres criados é muito
Olodunmare é Imenso. Presen-
bem expressa no seguinte texto de um
ça de Olodunmare
Itan do Odu Oyeku-Ogbe:
A imensidade de Olodunmare
“Eo mo Iya / K’enyin o ma tun
consiste em que ele está em todos os lu-
sure puro mo;/ Eo mo Baba/ K’ enyin o
gares e em todas as coisas. Olodunmare
ma tun sure s’eke mo;/ Eo mo Iya, eo
é imenso, porque, como causa universal
mo Baba Olodunmare/ Eyi i’o d’IFA
de todas as criaturas, tem de atuar nelas,
fun Tela-Iroko / T’o so wipe on nre ‘ki
para as criar, as conservar e governar,
Olodunmare...”, cuja tradução nos diz:
visto que nenhum ser pode agir onde
“Você não conhece a Mãe / Pare com sua
não existe. Não nos esqueçamos, no en-
impetuosa mentira; / Você não conhece
tanto, que Olodunmare não está limitado
o Pai/Pare com sua impetuosa mentira; /
nem contido em nenhum lugar, mesmo
Você não conhece a Mãe/ Pare com sua
quando está em todos os lugares.
impetuosa mentira; / Você não conhece
Por meio desse atributo, Olo- o Pai /Pare com sua impetuosa mentira;
dunmare revela-se como vivente eterno, / Você não conhece a Mãe, você não
onipresente e imenso. conhece o Pai de Olodunmare/ Este foi
o veredicto do oráculo de Ifá para Tela-
“Olorun Nikan l’o Gbon” - “so-
-Iroko, / Aquele que propôs a origem do
mente Olorun está ciente”. Olodunmare
nome de Olodunmare...”
é onisciente, onipresente e onividente.
Ele conhece todas as coisas e nenhum Ele é a origem de todo o Uni-
segredo lhe é ocultado. Assim, também verso, o princípio de todos os princípios.
está no coração dos homens e os conhece. Ele é o Eleda, o Supremo Criador, e, ao
30 THOTH 5/ agosto de 1998
Debates

mesmo tempo, é ele que mantém o Uni- se mostra santo quando manifesta sua
verso em movimento. Ele é o padrão e o glória em obras prodigiosas. Costumam
movimento, origem de todos os ciclos e dizer que os trabalhos de Olodunmare
sua regulação. são poderosos e maravilhosos usando a
Ele é Oba a-se-kan-ma-ku, o Rei expressão “Ise Olorun tobi” - “os traba-
que trabalha para a perfeição, Autor de lhos de Olorun são poderosos”.
todas as coisas e de todos os ventos. Por Olodunmare é o Supremo Juiz
¿m, Ele é o Elemi, o Senhor do Espírito,
Olodunmare é chamado de “Oba
o Senhor da Vida.
Adake Dajo”, “O Rei que mora acima e
Olorun, nome provavelmente que executa os julgamentos em silêncio”,
resultante da contração Olo¿n+Orun, signi¿cando que ele controla o destino
traduz-se literalmente por “o Rei ou dos homens e a ordem da Criação, em
Governante do Orun”. É de entendi- que cada um recebe o que é por ele de-
mento que temos aí signi¿cativamente terminado.
exposta uma particular manifestação
de Olodunmare, enquanto “o Criador e O lodunmare revela-se como
Senhor da Suprema Realidade”. Ora, a onisciente, onipresente também em sua
efetiva realidade da Criação é o “mundo justiça e em seu juízo. Assim, assiste e
sobrenatural”, ou Orun, mundo em que a acompanha a sua obra, mantém-se ativo
Criação se processa, em que tudo é cria- e presente em todos os seus tempos.
do, em que a realidade do Aiye preexiste Bolaji Idowu, em sua obra Olo-
no pensamento do Deus Criador. dunmare - God in yoruba Belief, acres-
Olodunmare é Sagrado centa a essa lista de atributos outros que
considera igualmente importantes e que,
Todos os atributos de Olo Olo- efetivamente, terminam por caracterizar
dunmare levam necessária e obrigato- Olodunmare em toda a sua dimensão e
riamente à condição de reconhecer a sua essência.
natureza de Sagrado. É indissociável de
sua condição de Criador Supremo a sua Ora, se até aqui vimos que a
sacralidade. Acima de tudo e de todos, concepção de um Deus único forma
a base monoteísta da cosmovisão io-
merece de toda a sua Criação louvor
rubá, podemos perguntar, indo além,
permanente e adoração. Ele de¿ne, por si
se também a idéia de um Deus trinitá-
mesmo, conceitos como pureza, retidão
rio, base lógica presente em todas as
e transcendência. Por isso ele é conheci-
religiões consideradas resultantes de
do como “Oba Mimo” - o “Rei Puro”.
superior elaboração teológica, absolu-
Olodunmare revela-se como ser tamente importante e signi¿cativa no
in¿nitamente santo, necessário e oniper- entendimento de uma criação que se
feito, absolutamente singular e único. Ele processa e se explica dialeticamente,
transcende todas as coisas. Olodunmare está presente ou ausente na visão
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descentens 31
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas

iorubá de Deus e da sua relação com complexa e explicitadora do grau de pro-


a Criação e sua obra. Acreditamos que fundidade a que chegaram suas reÀexões
está presente e vamos tentar demons- teológicas. O que nos parece sumamente
trar. interessante é que a teoria cientí¿ca mais
moderna, construída na segunda metade
Na cosmogonia iorubá, encon-
deste século, para explicação da origem
tramos duas essenciais ¿guras que, pelo
do universo, a teoria do Big Bang, em
tratamento que recebem, pela dimensão
um determinado momento, diz que,
e natureza com que se apresentam, pelas
nas frações de segundo iniciais, a cada
características do culto que lhes é pres-
partícula de matéria que se criava, o
tado, merecem uma abordagem particu-
equivalente em antimatéria era criado
larmente especial no que diz respeito ao
e ambas se eliminavam. Apenas um
seu papel e lugar no panteão geral das
acidente, ou ação de uma inteligência
divindades. São elas: Ela Omo Osin, ou
superior, que provocou uma ruptura desta
Ela, e Orunmila. Ambas são ordem inicial, permitiu que a criação se
chamadas pelos iorubás de Eleri Ipin, processasse e o universo em que vivemos
Ibikeji Olodunmare — significando o tivesse origem.
Testemunho do Destino, Aquele que
Ela Omo Osin, ou Ela, traz no
estava presente no momento da Criação,
Aquele que é a consciência ou o segundo seu nome o signi¿cado de “o preferido
de Olodunmare”, “o Filho de Olodun-
em Olodunmare.
mare” considerando que o título Osin
A tradição milenar iorubá diz signi¿ca Líder dos Líderes, ou Rei dos
que, no início dos tempos, nos primór- Reis, referência com que se diz que
dios da Criação, tudo que Olodunmare Olodunmare está acima de todos e de
criava era destruído por Ela Omo Osin - tudo. Nós chamamos Ela Omo Osin de
como se forças de igual potência, agindo “Aquele que mantém o mundo acertado
e reagindo em uma relação absoluta- (ou em ordem)”, e dizemos “Ela Iwori
mente íntima e essencial, terminassem ni ki jeki aiye ra ‘ju” - “Ela Iwori é quem
por se anular mutuamente. Apenas a salva o mundo da ruína.”
intervenção de Orunmila, que, por uma
Assim, temos que Ela constitui-
fração de tempo, parou a ação reativa
-se em um princípio primordial que
de Ela, permitiu que a Criação tivesse
continuidade. As três pessoas presentes, estava presente no início da Criação,
interagentes do processo da Criação, de- preenchendo o universo com as ações
monstram que entre elas e o universo se mais adequadas, estabelecendo a ordem
estabelece uma relação particularmente e colocando todas as coisas em seus
especial. Essa visão cosmogônica, no devidos lugares. No sacerdócio da reli-
nosso entender, diz claramente sobre o gião tradicional iorubá, principalmente
nível de abstração presente no pensamen- o sacerdócio de Ifa/Orunmila, Ela é
to teológico iorubá, elaboração altamente considerado de suma importância en-
32 THOTH 5/ agosto de 1998
Debates

quanto princípio primordial da ordem Ela binu otakun si oju orun


que precisa ser mantida no universo e Ela diro mo okun o re orun
na vida dos homens, em particular, e é
sempre invocado nos cultos para que es- Omo araye wo ile
teja “presente” e abençoe as oferendas e Won ko ri ela
sacrifícios. A tradição iorubá também nos Ko si eni ti yio sebi ela fun ni
diz que Ela Omo Osin esteve no mundo
e viveu entre os homens trazendo-lhes a Omo araye kigbe ki ela pada bo
mensagem do correto caminho; rejeitado, Ela deredere yara bo, wa gbure
voltou para junto de Olodunmare. Ela omo osin o orisa omo osin
A seguir, transcrevemos parte
de um adura (reza) feito para Ela Omo Aquele que fez o olho e nariz
Osin e que reÀete muito da dimensão e Ela realmente fez a velhice
natureza acima expostas: Ela realmente fez a vida longa
Ele fez de Odundun o rei das folhas
Eni se oju se imu
Ele fez de Irosun o seu sacerdote
Ela s’ogbo, s’ogbo
Ele fez do oceano o rei das águas
Ela s’ato, s’ato
Ele fez de Osa o seu sacerdote
O f’ odundun s’oba ewe
O f’ irosun s’osorun re;
O f’okun s’ oba omi É o Orisa que eu cultuarei
O f’ osa s’osorun re; Aquele que faz do seu jeito
Orisa ni ma sin É através dele que viemos para terra
Adani bi o tiri cultuarei Orisa
Eriani waye, orisa ni na sin Quando os inimigos se juntaram na casa
do Akila para acabar com sua cidade
Nigba ti awon odale ile Foi Ela Iwori que consertou tudo para
os da cidade
Akila parapo lati ba aye Quando a tarde se transformou em noite
Ilywon je E, aos poucos, a situação da cidade de
Ela iwori i lo ba won tun se Okerekese piorou
Nigba ti osan doru ni Quando os Awo correram atrás de solução
Okerekese Foi Ela Iwori que colaborou com a aber-
Ti aye iluna di rudurudu tura dos caminhos
Ti awon awo ibe gbati Ela Iwori consertou as cabeças ruins
Ela iwori lotun ori ti ko
Sun won se Ela traz vida longa
Ela sogbo sogbo Ela traz somente coisas boas
Ela sato sato No ¿nal, ainda disseram que Ela não
Won ni ela ko se aye re fez bem
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descentens 33
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas

Ela então se irritou, amarrou uma corda entrega”. De Orunmila dizemos “A ri ihin
até chegar ao Orun ri ohun, bi Oba Olodunmare” - “Aquele
Ela pendurou-se na corda e foi embora que vê tudo, que está aqui e acolá, como
para o Orun o Rei Olodunmare”.
Os seres humanos olharam para a terra Entende-se que Orunmila co-
Não viram Ela nhece tudo sobre todas as divindades
Não há quem possa ser como Ela para do panteão, assim como todo o destino
a gente
da humanidade, já que estava presente
Agora os seres humanos gritam para que
quando todos foram criados, conhecendo
Ela volte
a sua essência. Diz-se que “Se um ho-
Venha devagar, venha ouvir as nossas
mem se desvia do caminho, é Orunmila
saudações
aquele que indica a cura; se uma família
Ela ¿lho de Osin, Orisa ¿lho de Osin.
está em conÀito, é Orunmila aquele que
Existe uma ligação extrema- mostra a união”. É ele que conhece todo
mente forte entre Ela e Orunmila. Na o passado, o presente e o futuro, podendo
medida em que Ela apresenta-se como ser buscado tanto para assegurar que a
o princípio da ordem, da reti¿cação dos felicidade presente seja mantida, como
destinos infelizes, Orunmila utiliza-se para que um destino infeliz seja reti¿-
desse princípio para cumprir o seu pa- cado. Assim, uma de suas saudações é
pel de grande preservador da felicidade “Okitibiri a-pa-ojo-iku-da”, ou seja, “O
e reti¿cador dos destinos infelizes. É grande alterador, aquele que altera até o
como se, numa analogia entre ambos, dia da morte”.
pudéssemos dizer que, enquanto Ela é A seguir, transcrevemos parte
a “salvação”, Orunmila é o “salvador”, de um adura (reza) para Orunmila e que
formando os dois a maneira, ou a ponte reflete também muito da dimensão e
relacional, com que Deus, Olodunmare,
natureza acima expostas:
estabelece com a sua Criação um vínculo
que garante a realização permanente de Orunmila ajana
seu projeto e, ao mesmo tempo, de¿ne Ifa olokun
para os homens a construção de uma A soro dayo
história da salvação-história que mais do Eleri ipin
que nada reÀete a história do desenvol- Ibikeji eledunmare
vimento da humanidade. Orunmila akere finu sogban

O nome Orunmila representa a A gbaye gborun


contração tanto de “Orun l’o-mo-ati la”, Olore mi ajiki
“Somente o Céu conhece o signi¿cado da Okitibiri ti npa ojo iku da
Salvação”, como de “Orun-mo-ola”, sig- Ka mo e ka la
ni¿cando “Somente o Céu pode efetivar a Ka mo e ka ma tete ku
34 THOTH 5/ agosto de 1998
Debates

Ifa pele o como fonte de sabedoria


Okunrin agbonmiregun Que vive no mundo visível e no invisível
Oluwo agbaye
Ifa a mo oni mo ola O meu benfeitor, a ser louvado pela
A ri ihin ri ohun manhã
Bi oba edumare O poderoso que protela o dia da morte
Orunmila tii mo oyun inu Quem o conhece está salvo
igbin
Quem o conhece não sofrerá morte
Ifa pele o, erigi a bo la prematura
Ifa, saudações a você
Ifa pele o, meretelu O homem chamado Agbonmiregun
Nibi ti ojumo rere ti nmo wa
Oluwo do universo
Ifa pele o, omo enire Ifa, que sabe sobre o hoje e o amanhã
iwo ni eni nla mi Que vê tudo, que está aqui e acolá
Olooto aye Como rei imortal (Edunmaree)
Ifa pele o, omo enire
Orunmila, graças a seus muitos conheci-
Ti nmu ara ogidan le mentos, é você quem sabe a respeito da
Orunmila ti ori mi fo ire gestação do igbin
Ifa, saudações a você! Erigi a bo la, que
Orunmila ta mi lore ao ser venerado, traz a sorte
A gbeni bi ori eni
Ifa, saudações a você, Meretelu
A je ju oogun lo De onde vem o sol: De onde vem o me-
Ojumo rere ni o mo ojo lhor dia para a humanidade
Ifa ojumo ti o mo yi Ifa, saudações a você! Filho de Enire
Je ki o san mi s’owo Você é o meu grande protetor
Je ki o san mi s’omo
Ojumo ti o mo yii Aquele que diz aos homens a verdade
Ifa, saudações a você, ¿lho de Enire!
Je o san mi si aiku
Que faz forte o corpo
Orunmila iba o o
Orunmila, fale bem através do meu Ori
Orunmila Ajana
Ifa olokun Orunmila, me abençoe
Você, que , como o Ori de uma pessoa,
Que faz o sofrimento tornar-se alegria assim a apóia
O testemunho do destino Cuja fala é mais e¿ciente do que a magia
A consciência do Preexistente Vem o dia com bom sol
Orunmila, que usa o próprio interior Ifa, neste dia que surgiu
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descentens 35
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas

Favoreça-me com prosperidade na degradação parcial das religiões


Favoreça-me com fertilidade africanas reÀetiu-se também nas cha-
Que este dia me seja favorável em saúde madas religiões afro-descendentes. Esse
e bem-estar fenômeno pode ser constatado no Brasil,
Que este dia me seja favorável em lon- onde, ainda hoje, muitos sacerdotes da
gevidade religião dos Orisa consideram sua re-
Orunmila, saudações a você! ligião como politeísta e os Orisa como
deuses, trazendo, por conseqüência, uma
A partir do que vimos até aqui, visão interna da religião que a reduz à
não podemos deixar de avançar sobre dimensão de seita e uma visão externa
dois atributos presentes na religião io- que a de¿ ne como panteísta, primitiva,
rubá e que a caracterizam dentro de um bárbara e fetichista.
quadro que estabelece sua extensão e Perde-se, assim, sem dúvida, a
profundidade, garantindo-lhe lugar junto dimensão do sagrado, o status de uni-
a todas as demais grandes religiões da versalidade e de revelação que lhe são
história da humanidade. Ela é, sem dú- próprios e a respeitabilidade que ela
vida, uma religião universal e revelada. merece ao lado das grandes religiões da
humanidade. Retirar da religião afro-
É universal na medida em que -descendente seu caráter monoteísta
seus princípios podem ser seguidos por signi¿ cou, antes de mais nada, retirar das
quaisquer homens e sua cosmovisão tem diversas nações africanas sua identidade,
caráter planetário. É revelada porque sua força de unidade e coesão.
todo o conhecimento que a constitui
encontra-se sistematizada no chamado
Corpo Literário de Ifa, conjunto milenar * O autor é psicólogo, babalorixá e mestrando
de todo o conhecimento religioso, esoté- em Psicologia do Desenvolvimento na USP. É
fundador e atual presidente do IOC - Instituto
rico, histórico, ético e moral entregue aos Orunmila de Cultura. É também presidente da
homens, ora por Orunmila, quando re- FITACO - Federação Internacional da Tradição
ferentes a questões ligadas à Criação, às Africana e Culto aos Orixás.

divindades e à relações entre os mundos


espiritual e concreto; ora transmitido pe-
los ancestrais míticos, quando referentes
às questões históricas do povo iorubá, a
seus valores éticos e morais de regulação
das relações sociais.
Ora, para concluirmos, é evi-
dente que todo o processo que resultou
Pr êmio Cr uz e
Sousa de
Monogr afia
Foto: Márcia Kalume

Cerimônia de entrega dos prêmios do Concurso Cruz e Sousa de Monogra¿ a


Pr êmio Cr uz e Sousa de Monogr afia
Atas das Reuniões da Comissão de Julgamento 43
44 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
Pr êmio Cr uz e Sousa de Monogr afia
Atas das Reuniões da Comissão de Julgamento 45
46 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
Pr êmio Cr uz e Sousa de Monogr afia
Atas das Reuniões da Comissão de Julgamento 47
48 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
O êxito do concurso para a outor-
ga do “Prêmio Cruz e Sousa”, neste ano
Relatór io do em que se celebra o centenário da morte
do poeta, parece claro, desde logo, pelo
Resultado do interesse que despertou, entre mestres e
estudantes, provocados pela iniciativa do
Pr êmio Cr uz e Senado. Não é impressionante apenas o
número dos concorrentes - 57 aprovados
Sousa de no vestibular da Comissão Julgadora -,
mas também a alta categoria de alguns
Monogr afia dos trabalhos apresentados.
O relatório da categoria geral a
que se refere este parecer contempla 38
trabalhos. Como em toda concorrência
desse tipo, o nível dos textos é, obvia-
mente, acidentado e desigual. Mas, na
hora da escolha ¿ nal, alguns pares de
monografias alcançaram qualidade e
per¿ l que exigiram mesmo do perplexo
relator o ¿ ltro de demorada releitura.
Foi assim que se pôde destacar
o trabalho inscrito sob o n. 41, de 73 pá-
Gerardo Mello Mourão ginas - “ Cruz e Sousa: simbolismo como
50 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

transculturalismo”, com o subtítulo “En- “Cada atualidade tem sua anti-


saio sobre a contribuição de Cruz e Sousa güidade e há sempre uma antigüidade
para a cultura brasileira”, apresentado esperando ser descoberta (ou inventa-
sob o pseudônimo O Assinalado. da?) pela atualidade que a merece”.
Desde o início de sua aventura A atualidade simbolista da poe-
poética, a grandeza de Cruz e Sousa, sia de Cruz e Sousa tem uma antigüidade
iluminada pelo testemunho permanente iniludível: chama-se África. Lá nascera
e comovedor do crítico paranaense Nes- a Musa intacta. A Àor mortal do canto
tor Vítor, o identi¿ cava como “O Poeta deslumbrado do negro puro da bela ilha
da cidade do Desterro brotava, como
Negro”. O autor do ensaio que o Relator
ele mesmo o diria, das “sementes de um
se permite destacar talvez inverta a an-
mago pomo” - o pomo da África. As duas
tonomásia: em vez de “O Poeta Negro”,
epígrafes são um semáforo aceso, uma
João da Cruz e Sousa foi, na medula de
bússola para indicar o rumo de navega-
sua lírica, “O Negro Poeta”. ção que se deve fazer nas águas boreais
Críticos respeitáveis como Ro- da poesia de Cruz e Sousa, deste segundo
ger Bastide, que situava Cruz e Sousa ao João da Cruz que, como o padroeiro do
lado - senão acima - do próprio Mallarmé dia em que nasceu, e que lhe deu o nome
e dos representantes mais altos do simbo- de batismo, o poeta santo da “Noche os-
lismo europeu, incorrem num equívoco cura” e da “Llama de amor viva”, cantou
imperdoável: identi¿ cam a ¿ xação do as mais frementes estâncias eróticas da
poeta nas visões imaculadas de seus can- poesia de seu tempo, sem jamais con-
fundir o erótico com o obsceno, como
tares (“ó formas alvas, brancas, formas
advertia Malraux, no famoso prefácio da
claras - de luares, de neves, de neblinas”)
edição francesa de Lawrence.
- como um anelo de “branquear” (sic) sua
reputação na literatura e na sociedade. No texto escolhido, contribuição
Bastide usa exatamente a expressão - su- original para a interpretação da obra do
gerindo que o poeta quisesse branquear Negro Poeta, funda-se a mais nobre e
sua presença negra nos espaços ór¿ cos mais pura interpretação da poesia ór¿ ca
em que situava sua lírica. de Cruz e Sousa. É certo que os grandes
e piedosos comentadores de sua obra,
O texto do autor aqui recomen- do grupo paranaense, de Nestor Vítor
dado está regido por duas epígrafes: uma a Tasso da Silveira e Andrade Murici,
do próprio Cruz e Sousa, que diz: já sabiam disso. Mas apenas aÀoraram
“Àor mortal que dentro esconde se- esse espaço, não apenas existencial, mas
sobretudo ontológico, de nosso poeta,
mentes de um mago pomo”.
ao lembrarem, como Nestor Vítor, que
E outra, do saudoso helenista “Cruz e Sousa, negro sem mescla (o que
Eudoro de Sousa, nestes termos: quer dizer negro sem mácula), foi uma
Pr êmio Cr uz e Sousa de Monogr afia
Relatório do resultado do Prêmio 51

cerebração de primitivo genial, foi como nos ritos nagô, com a linguagem corporal
que a revivescência de um núbio contem- incorporada pelo gesto, a dança, o olfato,
porâneo de David ou ao menos de Salo- o sabor e o som, o cheio e o vazio, com
mão... mas que houvesse renascido no a cerimônia das distâncias corporais, em
Ocidente e se desenvolvesse num meio que o hálito e a respiração podem dar
cuja civilização é toda de empréstimo, já vida à matéria inerte e alcançar as últimas
capaz de inspirar grandes requintes a um profundidades do ser. “O forno do ser” -
artista, porém, no fundo por modo muito como gosta de dizer o poeta Godofredo
falseado e ingênuo.” Iommi.
Tasso da Silveira, como Andrade Refere o autor a observações do
Murici, que tive a honra e o deleite de erudito Muniz Sodré sobre procedimen-
freqüentar, durante anos, nos encontros tos cosmogônicos da linguagem sagrada
diários do famoso Café Gaúcho, na Rua dos ritos africanos em que o corpo é o
São José, centro do Rio, e ainda e sempre ponto de intersecção entre o grupo e o
Nestor Vítor, lembram o heroísmo medu- cosmo. A palavra - expressão suprema do
lar da poesia de nosso João da Cruz. No corpo - matéria-prima do verso, opera, no
estudo do concorrente O Assinalado, este canto de Cruz e Sousa, aquele Egungum
heroísmo é exposto na odisséia do negro sagrado, que torna visíveis os espíritos
poeta exilado e aderido aos perigos e às
ancestrais e transmite a graça de comu-
glórias de sua viagem ( “corpo crivado
nicar aos vivos a vontade e o poder dos
de sangrentas chagas - que atravessas o
mortos.
mundo soluçando”) - viagem ao céu e
ao inferno, como no turismo patético do Cruz e Sousa, lembra o autor,
Dante. Os passos de João da Cruz e Sou- possui um vasto repertório de referências
sa são aqui contados com minúcias de aos mortos. Como em “Vão arrebatamen-
interpretação de que só a grande crítica to”:
é capaz, contemplando às vezes subs- todas as vozes que procuro e chamo
tantivos isolados, preposições pênseis, ouço-as dentro de mim porque as amo.
sílabas de pontes, vogais e consoantes
ocorrentes, na precisão dos leitores da Ou ainda em “Monja negra”:
Cabala sagrada que, como no precioso Hóstia negra e feral da comunhão dos
livro de Marc Alain Ouaknin, sabem que mortos.
a beleza da palavra chega às vezes a ser E em “Luar de lágrimas”:
um concerto para algumas consoantes e
Ó mortos meus, ó desabados mortos!
alguma vogal.
Chego de viajar todos os portos
O autor vai ao âmago do sim- Volto de ver inhóspitas paragens
bolismo de Cruz e Sousa - a correspon- As mais profundas regiões selvagens
dência dos cinco sentidos que, antes de - Andei errando por funestas tendas
Baudelaire e Rimbaud, estava anunciada Onde das almas escutei as lendas
52 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

O próprio autor pergunta: “pa- nhentos, quando também se editaram as


recerá contraditória essa dupla herança obras completas de Agostinho. E é bom
cultural de Cruz e Sousa? Será paradoxal lembrar que os dois grandes neoplatôni-
que no Brasil do século XIX, na obra de cos, Plotino e Agostinho, eram africanos,
um Poeta Negro, ¿ lho de escravos, emer- nascidos e criados na África, Plotino no
jam fenômenos que remontam a dois Egito, e Agostinho na Numídia, onde
mil anos de tradição (e outros tantos de foi tocado pela formação do saber: estu-
esquecimento) da cultura ocidental - ao dou em Tagaste, sua terra, e depois em
Cartago. Oriundo daquela abrangência
lado de formas provenientes de religiões
dionisíaca e voluptuosa do saber afri-
africanas”?
cano, o próprio Agostinho lembra seu
Ele mesmo responde: “na histó- espanto no primeiro encontro que teria
ria da cultura ocidental houve duas épo- com o doutor europeu Santo Ambrósio,
cas profundamente africanas. A primeira, na biblioteca do palácio episcopal de
nos séculos que sucederam imediata- Milão: o bispo lia, silenciosamente, as
mente ao aparecimento do cristianismo, escrituras, sem mover os lábios. Para
quando ritos, religiões e formas de pen- o apaixonado jovem de Tagaste, não se
samento, das mais diversas origens, se pode compreender uma leitura, um trato
difundiram por todas as regiões do Me- com a palavra, da qual não participem
diterrâneo. A segunda época, nos séculos todas as fruições sensuais do corpo: o tato
das páginas, a visão das letras, o sabor
XV e XVI, assistiu também à difusão de
nos lábios, o deleite do som nos ouvidos e
religiões de diversas proveniências, sob
a vibração - o aroma das sílabas sonoras,
o nome genérico de hermetismo. Estas com o azul e o verde que descobriria um
são justamente as duas épocas da cultura dia em cada vogal o verso epigônio do
ocidental marcadas pelo predomínio do simbolismo de Rimbaud.
neoplatonismo. Isso não assinala uma
relação intrínseca entre neoplatonismo A essas divagações nos leva
e sincretismo? Mas neoplatonizante é o autor do ensaio sobre Cruz e Sousa,
quando nos pergunta se o Negro Poeta
também o simbolismo.”
tem alguma coisa a dizer-nos sobre nosso
O Autor tem em vista, certamen- destino. Ora, o Brasil uno e pluri-dimen-
te, o neoplatonismo de Plotino. E por sional que nos habituamos a pensar, não
quê também não de Santo Agostinho? pode escamotear as camadas milenares
Plotino, como Santo Agostinho, histori- em que habitam os seres humanos,
camente contemporâneos (entre o III e naquilo que seria o território cultural
o IV século) alcançaram sua maior voga e espiritual de nossa gens e, assim, de
cultural na Europa do século XV e do nossa aventura genesíaca no mundo.
século XVI, sobretudo depois da edição Já é quase um lugar comum a
Àorentina de Plotino em 1492, no ano repetição da advertência lapidar de T. S.
da descoberta da América, seguida por Eliot sobre os tempos do homem sobre
várias edições gregas e latinas nos Qui- a terra:
Pr êmio Cr uz e Sousa de Monogr afia
Relatório do resultado do Prêmio 53

Time present and time past Cruz e Souza deixou, assim,


Are both perhaps present in time future, uma herança inestimável a este país. Foi
And time future contained in time past. uma presença cívica e moral nos tempos
If all time is eternally present difíceis de sua viagem sobre a terra. Foi
All time is unredeemable.
abolicionista e estigmatizou os escravo-
Já é também quase um lugar cratas. Lutou abertamente contra todas
comum o verso de Hoelderlin: “o que as formas de burrice nacional, especial-
permanece é fundado pelos poetas”. mente a burrice literária. Sua militância
Porque o poeta é aquele que guarda a de homem negro foi a mais soberba e a
comunicação ininterrupta com o passado, mais fecunda das militâncias. Respondeu
do que é com o que foi. Ele é o tesourei- com o desdém e o orgulho de sua própria
ro, o arquivista, o tabelião de notas da grandeza a todas as formas de discrimi-
memória dos seres e do mundo. Alguns nação. Diante do corredor polonês dos
negros poetas na Europa ou na América racismos, dos preconceitos e das discri-
compuseram o concerto de consoantes minações, adotou a posição soberba do
e vogais que reinventaram sua África poeta: “non ragioniam di lor, ma guarda
milenar no mundo do exílio. Um Césaire,
e passa” . Não tomar conhecimento da
um Senghor, um Damas, na Europa, um
récua; apenas fulminá-la com o olhar
Derek Walcott na América. Mais longe
altaneiro e ir em frente. Porque sabia de
ainda: o mulato Pushkin, na magia de sua
¿ cção na literatura russa.Mas nenhum sua superioridade, aquela superioridade
terá sido mais e¿ caz, na identi¿ cação de da poesia e da lembrança de suas ori-
sua raça e de sua origem, como este João gens, memória opulenta e criadora, em
da Cruz e Sousa, africano do desterro, da nome da qual podia dizer como um de
cidade amorável do Desterro, que soube seus companheiros, o primogênito do
ser ¿el ao grande negro, dando ao próprio surrealismo, Baudelaire: “j’ai plus de
palácio do governo no Estado, e isto por souvenirs que si j’avais mille ans” . Tinha
inspiração do poeta Marcos Konder Reis, a memória dos milênios. A memória de
o nome de “Palácio Cruz e Sousa”. sua Musa. De sua Mãe: a África.
Ele enriqueceu o país, sua unida- Por isso creio que o texto mais
de e sua pluralidade. De sua obra parte a importante e mais original entre os que
mais limpa linhagem de nossa genealogia concorrem a este Prêmio é o de O Assina-
poética, como no canto fundador de outro lado - “ Cruz e Sousa: simbolismo como
negro poeta, o mulato Jorge de Lima, transculturalismo” .
“Invenção de Orfeu”. Do mesmo san-
gue negro do ¿ lho de escravos de Santa É o relatório.
Catarina, o mulato das Alagoas, ¿ lho de
senhor-de-engenho, cantou também seu Brasília, 16 de junho de 1998
canto núbio, a espantosa obra poética da
negritude e do país poliédrico incorpora-
do por sua raça. Gerardo Mello Mourão
Senhor Presidente,
Discurso pr ofer ido no Senado Feder al Senhoras e Senhores Senadores,
em 17 de junho de 1998
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

É meu propósito ao assumir hoje


esta tribuna informar à Presidência desta
Realização da reunião final da Casa e a meus colegas senadores que se
Comissão de Julgamento do Prêmio realizou ontem a reunião ¿ nal da Co-
Cruz e Sousa de Monografia, missão de Julgamento do Prêmio Cruz e
destinado a homenagear os 100 anos Sousa, da qual tive a honra de participar,
de falecimento do poeta. ao lado do Senador Esperidião Amin, do
Deputado Paulo Gouvêa, do poeta Gerar-
do Mello Mourão e do professor Iaponan
Soares. Dos 65 trabalhos apresentados -
número considerado excelente em função
do pouco tempo de que dispunham os
candidatos -, oito haviam sido eliminados
de imediato, em razão de haverem seus
autores infringido o regulamento em
Senador Abdias Nascimento seus artigos 7º (que estabelece o caráter
56 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

individual de cada obra), 9º (referente Luís Cláudio Ribeiro de Pinho,


à necessidade de identi¿ cação do pseu- autor de “Cruz e Sousa: Simbolismo
dônimo) e 10 (relativo à data-limite de como Transculturalismo, foi o primeiro
entrega dos trabalhos). colocado na categoria Geral. Menções
honrosas foram atribuídas a Eneddy Till,
As 57 monografias restantes Magali dos Santos Moura, Mário Guida-
foram então distribuídas, por decisão rini e Carlos Henrique Almeida. Segundo
da Comissão, a dois relatores: o poeta o regulamento do concurso, os primeiros
Gerardo Mello Mourão, responsável colocados receberão R$10 mil cada um e
terão seus trabalhos publicados, ao lado
por examinar 38 trabalhos na categoria
daqueles que obtiveram menção honrosa,
Geral, e o professor Iaponan Soares, às expensas do Senado. A cerimônia de
que ¿ cou com os 19 da categoria Estu- premiação deverá ter lugar em agosto
dante. Ambos apresentaram ontem seus próximo, em data a ser de¿ nida.
relatórios, unanimente aprovados pela Para finalizar, gostaria de re-
Comissão, disso resultando a escolha gistrar a bela peça literária que é o rela-
dos vencedores. Assim, na categoria tório apresentado pelo inspirado poeta
Estudante, ¿ cou em primeiro lugar a Gerardo Mello Mourão, ela própria um
monogra¿a intitulada “Cruz e Sousa - Sol pequeno e iluminado ensaio sobre a vida
Negro”, da autoria de Carlos Alberto Shi- e a obra de Cruz e Sousa, cuja leitura, te-
nho certeza, contribuirá para enriquecer
moti Martins. Jairo Santos Amparo, com
o conhecimento de todos os brasileiros
“Cruz e Sousa, Biogra¿ a”, foi autor do dotados de sensibilidade e amor à arte.
único trabalho a merecer menção honrosa Peço, por isso, que ela seja transcrita
nessa categoria. na íntegra nas páginas dos Anais desta
Casa.*

__________
* O referido relatório está transcrito, sob o título “Prêmio Cruz e Sousa de Monogra¿ a”,
no início desta seção da revista.
O senador Abdias Nascimento faz pronunciamento de abertura da exposição no Salão Negro
do Congresso Nacional, 3 de junho de 1998. Entre os presentes, o presidente do Senado
Federal, senador Antônio Carlos Magalhães, ladeado pelos senadores Bernardo Cabral (à
sua direita), Benedita da Silva e Romero Jucá (à sua esquerda)
De 3 a 29 de junho deste ano, o
Abdias expõe no Senado Federal foi palco da exposição
Pinturas Afro-Brasileiras, com 53 tra-
Senado suas pintu- balhos do senador Abdias Nascimento.
r as afr o-br asileir as Realizada, por coincidência, no Salão
Negro daquela casa legislativa, a mostra
reuniu pinturas produzidas desde os anos
60, nos Estados Unidos, na África e no
Brasil, tendo como tema central a rica
cosmogonia afro-brasileira, representada
pelas ¿ guras dos orixás.
Na visão do senador Abdias
Nascimento, sua obra é ao mesmo tempo
uma celebração das tradições africanas
e uma tomada de posição frente a uma
estética eurocêntrica, fundada nos câno-
nes da arte greco-romana, que classi¿ ca
como “pitoresco”, “folclórico” ou “in-
gênuo” tudo aquilo que foge aos seus
estreitos padrões. Ignora-se, dessa forma,
a seminal contribuição da arte africana à
chamada arte moderna, declaradamente
inspirada na economia de formas e na
60 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

explosão de cores características dos da mostra, na qual, segundo Elisa Larkin


artistas negros. Nascimento, o autor consegue - tal como
na sua militância política - “agregar ao
Segundo o sociólogo Guerreiro
protesto cívico negro, e desenvolver
Ramos, “a melhor maneira de compre-
nele, a dimensão do resgate histórico-
ender os quadros de Abdias é evitar um
-cultural da herança das civilizações
escrutínio demasiadamente intelectual
africanas, vital à recuperação da identi-
das telas. Pelo contrário, devemos dedi-
dade, dignidade e humanidade plena do
car à sua contemplação todos os sentidos
afro-brasileiro”.
humanos: a vista, o paladar, o tato, o olfa-
to e o ouvido. (...) Suas formas e ¿ guras O artista plástico Celestino assim
surgem como cifras do oculto.” Já para considera a pintura de Abdias Nascimen-
o mestre da Comunicação Muniz Sodré, to: “A arte de Abdias do Nascimento é
“na pintura de Abdias (...) a pluralidade uma bela, erudita e mística recriação dos
apresenta-se como o momento de uma orixás. E tendo essa arte um símbolo
unidade que se entrevê no estuário mito- especí¿co (o afro-brasileira) e uma cor
lógico da civilização egípcia. Os orixás, especí¿ca, rica em nuances, servindo a
os voduns, os inquices reencontram-se cada orixá, ela é multiforme. Na arte de
nos quadros com a simbologia de Osíris, Abdias, curiosamente, meio e ¿m estão
unidos. Sua arte não é somente intuiti-
Ísis, Ra. Desenha-se por trás da armadura
va, mas erudita. A erudição é a Urbis, a
de cores e representações uma perspec-
cidade. Ela é afro-brasileira, de acordo
tiva gnóstica, no sentido de um saber
com a minha classi¿ cação, e também
atravessado por mistérios e sempre em
negro-brasileira.
busca de uma unidade fundadora - mas
sem o dualismo homem/mundo. No “Para as formas perfeitamente
gnosticismo pictórico de Abdias, os deu- geométricas, ele não usa esquadros nem
ses, sejam nagôs ou egípcios, perpassam réguas, nem compassos. Tudo é feito de
e são perpassados pelo mundo.” um gesto. E Abdias reinventa os códigos
afro-brasileiros, não os copia.
Realizada a convite do presiden-
te do Senado, senador Antônio Carlos “Sua arte é também metalin-
Magalhães, a exposição causou polêmica guagem. Há, através de sua pintura, não
em função de dois quadros: Opachorô, só uma poemação sobre os orixás, mas
falus cosmogônico: Obatalá e Xangô uma poemação sobre a pintura, ao mes-
crucificado ou o martírio de Malcolm mo tempo. Porém é autêntico, original,
X, em que o falecido militante afro- ninguém pode copiar isso. E se o ¿ zer
-americano, identi¿ cado com o orixá da cai no pastiche.
guerra, é representado nu, pregado a uma “É a primeira vez em minha
cruz. Uma polêmica que, no entanto, aca- vida, entre São Paulo, Salvador, Rio,
ba tirando de foco a riqueza de conteúdo Bruxelas, Barcelona, Paris e outras
Abdias expõe no Senado
As pinturas afro-brasileiras de Abdias Nascimento 61

cidades que visitei ou expus, que vejo uma cultura especí¿ ca (e não exótica): a
algo surpreendente. Não há, dentro do afro-brasileira.
seu espaço pictórico, contradição entre
“Falemos agora da ação militan-
duas naturezas de linguagem plástica te negro-brasileira. Abdias do Nascimen-
diferentes. A Abstração e a Figuração to, neste particular, desde a Frente Negra,
habitam juntas sem conÀitos. Meio e ¿ m nos anos 30. Passando pela criação do
na sua obra estão bem unidos. Teatro Experimental do Negro nos anos
“Sua exposição pode partici- 40, com Ruth de Souza e outros. Na sua
par antropológica (o termo aqui não é arte, nos seus ensaios, nas conferências
redutor), como de uma coletiva ao lado e seminários. Nas suas reivindicações
de artistas consagrados. Somente como sociais e agora na Câmara, possui uma
pintura, embora seja uma pintura que larga folha de serviço em relação aos seus
deseja e consegue nos informar sobre irmãos: afro-descententes.”
Dra. Teodosina Ribeiro entrega a láurea ao senador Abdias Nascimento, na solenidade de outorga do prêmio Franz de Castro
Holzwarth, 1997. Salão Nobre da Sede da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, 9 de dezembro de 1997
Pr onunciamentos Discur so pr ofer ido no Senado Feder al
em 10 de dezembr o de 1997.

Dia Internacional dos


Direitos Humanos

Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

As manchetes dos jornais de hoje,


Dia Internacional dos Direitos Humanos,
estampam uma vez mais as cenas de
massacre que já se tornaram uma infeliz
rotina em nosso País: o assassinato a tiros
de quatro pessoas que dormiam sob a
marquise de uma loja no subúrbio carioca
de Madureira; trágica evocação de outro
morticínio, perpetrado na mesma cidade,
66 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

há apenas quatro anos, que ¿ cou para a a esse respeito: um deles, de autoria de
história como a chacina da Candelária. um relator especial enviado ao Brasil
Em ambos os casos, as vítimas foram se- pelo Programa de Ação para a Terceira
res humanos lançados literalmente à rua Década de Combate ao Racismo e à
da amargura por uma sociedade injusta Discriminação Racial, mostrando uma
e desigual. Em ambas as situações, não situação muito distante da pretensa
se precisa sequer veri¿ car a aparência harmonia defendida pelos apóstolos da
deles para se ter certeza de serem todos, chamada “democracia racial”; o outro,
ou quase todos, componentes de um apresentado pela representação o¿cial do
segmento que ¿ gura com destaque em Governo brasileiro àquela Organização,
todas as tenebrosas estatísticas que situ- pintando as relações raciais em nosso
País com os tons róseos tradicionais e
am o Brasil entre os campeões mundiais
a¿ rmando um repúdio o¿ cial ao racis-
da injustiça e da desigualdade: o dos
mo que, no entanto, jamais se traduziu
brasileiros descendentes de africanos,
em ações concretas em favor do grupo
desproporcionalmente representados en- majoritariamente discriminado.
tre as vítimas de outras matanças, como
as de Vigário Geral e do Carandiru. Acostumado, em mais de seis dé-
cadas de luta pela igualdade e a dignidade
Dias atrás, notícia também pu- dos afro-brasileiros, a ser acusado de
blicada nos principais jornais do País “ressentido”, “complexado” ou “racista
divulgava um relatório da Comissão de às avessas” - para ¿car nos adjetivos mais
Direitos Humanos da Organização dos comuns com que me têm distinguido os
Estados Americanos (OEA) que aponta defensores da supremacia branca, quase
não apenas a violência e a desigualdade sempre disfarçados de “humanistas” ou
da sociedade brasileira, aspectos que já “universalistas” -, é com satisfação que
nos acostumamos a ver denunciados em venho percebendo sinais de mudança em
diversos foros internacionais. Também nossa sociedade. Parece que ¿ nalmente,
expõe o racismo e a discriminação como ao impulso das idéias ardentemente
elementos-chave na composição desse defendidas pelo Movimento Negro e
quadro, o que se agrava pela di¿ culdade apoiadas por seus aliados, setores de
e relutância dos brasileiros em sequer nossas elites intelectuais e políticas co-
admitir a existência de problemas dessa meçam a se conscientizar da necessidade
natureza. de deixar de lado as a¿ rmações vazias e
começar a construir uma nova sociedade.
Ainda recente mente, co mo Uma sociedade baseada no respeito aos
membro da delegação do Congresso direitos humanos de todos os seus seg-
brasileiro que visitou as Nações Unidas, mentos, cuja diversidade étnica se passa a
por ocasião da qüinquagésima segunda encarar, não como entrave a ser superado
sessão de sua Assembléia Geral, tivemos por um assimilacionismo maldisfarçado,
acesso a dois documentos emblemáticos mas como verdadeiro patrimônio de
Pr onunciamentos
Dia Internacional dos Direitos Humanos 67

uma humanidade ao mesmo tempo una Bragantina, pelo despertar do seu povo
e multiforme. na dedicação ao resgate da dignidade
É nesse contexto que registro dos encarcerados, e à Procuradora
a homenagem por mim recebida - em Flávia Piovesan, pelo compromisso de
nome de todo o povo afro-brasileiro - no idéias e de lutas na defesa dos direitos
dia de ontem, em São Paulo, quando a fundamentais do ser humano. Nesse
secção local da Ordem dos Advogados sentido, cabe destacar aqui o empenho e
do Brasil me concedeu, em função de a dedicação do Presidente da OAB/São
minha luta em favor da igualdade racial, Paulo, Dr. Guido Andrade, bem como
a menção honrosa do Prêmio Franz de do Presidente da Comissão de Direitos
Castro Holzwarth/1997. Instituído em Humanos daquela entidade, Dr. Jairo
1982, com o propósito de laurear aqueles Fonseca. Essa homenagem prestada a
que se destacam na defesa intransigente um militante afro-brasileiro signi¿ ca,
dos direitos humanos, o Prêmio Franz portanto, o reconhecimento de nossa luta
de Castro Holzwarth - cujo nome evoca e a adesão a esta de setores fundamentais
um advogado metralhado pela polícia para que possamos alcançar a verdadeira
paulista quando atuava como mediador harmonia racial, baseada na solidarieda-
num motim de presos em Jacareí - tem de e no respeito mútuos. Assim, solicito
distinguido pessoas identi¿cadas com as à mesa seja transcrito integralmente nos
causas mais nobres em nosso País. Este Anais desta casa o discurso que proferi
ano, o prêmio foi concedido ao Rabino ao receber essa homenagem.
Henry Sobel, pela promoção do ecume-
nismo e da paz entre os povos, e as duas
outras menções honrosas à Comunidade Axé!
68 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

TEXTO DO PRONUNCIAMENTO DO selvagem, ao africano restava apenas a


SENADOR ABDIAS NASCIMENTO, pecha de primitivo escravo, submisso,
AO RECEBER MENÇÃO HONROSA bruto, ignorante e insensível: um ente
NA SOLENIDADE DE OUTORGA DO subumano, uma mercadoria, mero objeto
PRÊMIO FRANZ DE CASTRO HOL- de compra e venda. A coisi¿ cação da
ZWARTH, ANO 1997. mulher e do homem africanos constitui
o maior crime contra a humanidade re-
gistrado na história humana, perpetrado
Salão Nobr e da Sede da or dem dos durante séculos e alicerce não apenas do
Advogados do Br asil, secção São despovoamento, rapinagem e destruição
Paulo, 09 de dezembr o de 1997. sistemática de um continente inteiro,
como também da caça e assassinato de
centenas de milhões de pessoas e sua
[Saudações aos integrantes da mesa e escravização em outros continentes, sob
aos presentes.] brutalidade sem precedentes.
O gesto da OAB ao incluir meu
Em primeiro lugar, quero mani- nome no rol dos homenageados de hoje
festar minha satisfação e alegria por estar constitui um marco histórico no proces-
aqui esta noite, participando desta soleni- so de resgate dessa humanidade afro-
dade em que recebo menção honrosa do -descendente negada pelo Brasil o¿cial e
Prêmio Franz de Castro Holzwarth, da pelas elites dominantes. Hoje, através de
Ordem dos Advogados do Brasil, secção minha pessoa, a OAB se agrega às forças
de São Paulo. Além de estar na compa- democráticas que apenas agora começam
nhia de tão valorosos mulheres e homens, a reconhecer que a luta de Zumbi dos
estou extremamente feliz pela inclusão Palmares, a luta dos africanos no Brasil,
de meu nome neste nobre contexto. En- a luta dos afro-descendentes diariamente
tendo que meu nome aqui não representa discriminados neste País, constitui ela
qualquer mérito pessoal, mas signi¿ ca mesma, por sua natureza, a luta pelos
a inclusão do povo afro-brasileiro, um direitos humanos. Ainda há pouquíssimo
povo que luta duramente há cinco séculos tempo, esse reconhecimento não existia,
neste país, desde os seus primórdios, em pois nós que denunciávamos o racismo e
favor dos direitos humanos. É o povo a discriminação racial no Brasil éramos
cujos direitos humanos foram mais bru- tachados de racistas às avessas. Ao pro-
talmente agredidos ao longo da história testar contra a discriminação, ouvíamos
deste País: o povo que durante séculos sempre a mesma resposta: – Vocês estão
não mereceu nem o reconhecimento de criando um conÀito que aqui não existe,
sua própria condição humana. Enquanto estão querendo importar o problema
ao índio, massacrado e vilipendiado, ain- dos Estados Unidos, pois nosso País é
da assim cabia a imagem digna do nobre um país mestiço, e onde há mulato não
Pr onunciamentos
Menção Honrosa - Prêmio Franz de Castro Holzwarth 69

há discriminação. Os racistas são vocês, criadores de caso, num país que, a¿ nal,
nos diziam; a discriminação no Brasil foi tão generoso com seus negrinhos a
não é racial, é social e econômica, veja o ponto até de permitir-lhes o acesso ao
caso do Pelé, vocês negros reacionários leite de suas mães, depois de satisfeitos
querem dividir a classe operária. Ainda os ¿ lhinhos brancos do senhor.
hoje, invocam a nova raça criada pelo
Não sei se é ironia do destino
luso-tropicalismo no Brasil, como se
ou vingança da história o fato de estar
não houvesse miscigenação na África
aqui em São Paulo recebendo esta ho-
do Sul ou nos Estados Unidos; esquecem
menagem, pois foi São Paulo que tantas
ou omitem que a miscigenação em todo
vezes me prendeu, me jogou nos seus
regime escravista e colonialista é fruto
da dominação sexual da mulher subju- cárceres, me agrediu, me expulsando
gada, expressão máxima da dominação do Exército sob acusação de desordeiro
econômica, cultural, política e policial por ter resistido à discriminação racial.
dessa mulher e de seu parceiro homem. Quantas noites em delegacias, quantos
A árdua luta dos afro-brasileiros contra interrogatórios, quantos anos tranca¿ ado
o regime escravista nunca foi vista como na penitenciária. Em São Paulo iniciei
luta a favor dos direitos humanos. Nossa minha jornada de luta contra o racismo,
denúncia da falsa abolição que nos atirou denunciando o racismo da Guarda Civil
à rua e nos excluiu do mercado de traba- paulista que aceitava só brancos. Em
lho livre, trazendo imigrantes europeus São Paulo aliei-me à Frente Negra, par-
não só para ocupar os empregos nesse ticipando de seus atos públicos contra a
mercado como também para embranque- discriminação. Nos bares e barbearias,
cer a população, nunca foi ouvida como nos bailes, no aluguel de moradia, no
uma denúncia de violação dos direitos emprego, e em toda parte, brigava contra
humanos. Nosso grito contra a violência o racismo, fui preso por desordem, fui
policial racista, contra esse sistema de espancado nas masmorras do Gabinete de
justiça racista que prende os negros e Investigações paulistano. Em Campinas,
solta os brancos, nunca foi ouvida como ajudei a organizar, em 1938, o Congresso
um grito a favor dos direitos humanos. Afro-Campineiro, evento importante na
Nossa luta para incluir nos currículos denúncia do racismo explícito praticado
escolares uma imagem digna do ser naquela cidade. Na Penitenciária, cum-
humano de descendência africana nunca prindo pena como condenado à revelia,
foi reconhecida como contribuição ao fundei o Teatro do Sentenciado, minha
desenvolvimento dos direitos humanos primeira iniciativa no campo da drama-
no Brasil. Antes, essas iniciativas nos- turgia, que mais tarde daria novos frutos
sas são vistas – ainda hoje, quero frisar no Teatro Experimental do Negro. Por
– como manifestação dos complexos isso, me emocionei muito ao veri¿ car
psicológicos de uma gente ressentida, ou que hoje teria a oportunidade de assistir
então como a baderna de um bando de à apresentação do Grupo de Teatro da
70 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Cadeia Pública de Bragança Paulista. bou, que continua ainda em pauta, talvez
Por isso também me orgulho muito de ser de forma mais sutil e por isso mais e¿caz.
homenageado em nome de alguém que
Nós temos contado, em nossa
morreu junto aos presos, na luta pelos
luta, com muitos aliados, e entre esses
seus direitos.
aliados estão os judeus, um povo tam-
Não quero ficar apenas invo- bém duramente discriminado, vítima
cando o passado. Quem acredita que o de holocausto, com quem temos muito
racismo no Brasil é problema superado em comum. Além da experiência de
está redondamente enganado. Hoje, so- genocídio, temos em comum aquela da
mos 59% da população, de acordo com diáspora, o processo de dispersão for-
dados da DataFolha, e temos os salários
çada de nossa gente pelo mundo afora.
mais baixos, os maiores índices de anal-
Nossas comunidades em diversos países
fabetismo, o menor acesso ao ensino
sofrem agressão e discriminação em
superior, a menor participação nos níveis
mais altos de renda, as maiores taxas de conseqüência da sua identidade étnica
mortalidade, a maior concentração nos e cultural. Também temos em comum o
presídios, e assim por diante. Os números fato de nossas formas de religiosidade
são de conhecimento público e de fácil serem diferentes da norma que prevalece
constatação por qualquer pessoa sensível na sociedade ocidental. nossas religiões,
que caminhe pelo Brasil de olhos abertos; mal compreendidas, são alvos de discri-
portanto não vou me alongar citando- minações especí¿ cas e são invocadas
-os aqui. Apenas quero dizer o que os como motivo de discriminação contra
fatos comprovam: a questão racial não nós. As histórias dos nossos povos são
é um problema dos negros; é, hoje, uma diferentes, mas a experiência de discrimi-
questão nacional, matéria fundamental nação, ódio e violência é a mesma na sua
de direitos humanos. É talvez o problema essência. O recente e atual crescimento
mais importante de direitos humanos dos grupos neo-nazistas e supremacistas
no Brasil atual. Nós afro-descendentes brancos, bem como do xenofobismo
não somos apenas mais uma minoria europeu nos atinge igualmente. Por isso,
entre tantas outras. Somos a maioria da
considero muito apropriado o gesto da
população brasileira, e nossa situação
OAB, secção de São Paulo, de incluir
não pode ¿ car à sombra de outras mais
hoje o povo afro-brasileiro no seu rol
destacadas na mídia e na memória cole-
tiva. O maior holocausto perpetrado na de defensores dos direitos humanos,
história da humanidade foi o holocausto no mesmo ato em que homenageia esse
dos povos africanos, um genocídio que bravo e valente rabino Henry Sobel.
durou cinco séculos, ainda dura hoje, e Aproveitando esta oportunidade, quero
que conta, além de centenas de milhões convidar o rabino a mergulhar conosco
de vítimas, uma história incomparável de nesta luta comum, uma luta em que o
destituição econômica, política, cultural diálogo aberto, o esforço de compreensão
e religiosa. Um genocídio que não aca- mútua, e a sensibilidade para a essência
Pr onunciamentos
Menção Honrosa - Prêmio Franz de Castro Holzwarth 71

de nossa luta para além das diferenças de ações concretas em benefício de nos-
históricas e materiais podem, não tenho sos povos, na continuação desse diálogo
dúvida, redundar em grandes ganhos para com o objetivo de defender os direitos
nossos dois povos. Já tive oportunidade, humanos em nosso país e no mundo.
no Rio de Janeiro, de participar no Se-
minário Interétnico de Direitos Humanos Acreditamos no diálogo, na
e Cidadania, realizado no Hotel Othon tolerância, na solidariedade — formas
Copacabana, Rio de Janeiro, em abril de ativas do amor — na construção de uma
1997, oportunidade em que membros das cultura de paz para toda a humanidade.
comunidades judaica e afrodescendente
trocaram experiências e formularam
propostas de futuros trabalhos. Pensamos Axé!
que, naquele evento, um passo foi dado
na direção de construir uma reflexão
importante em comum. Creio que ainda
teremos muito a desenvolver no sentido Abdias Nascimento
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 13 de maio de 1998
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Denúncia da mentira cívica da


abolição. Na data de hoje, 110 anos pas-
sados, a sociedade brasileira livrava-se
de um problema que se tornava mais
agudo com a proximidade do século
XX, ao mesmo tempo em que criava
condições para o estabelecimento das
maiores questões com que continuamos
a nos defrontar às vésperas do Terceiro
Milênio. Assim, a 13 de maio de 1888,
a Princesa Isabel, então regente do trono
em função do afastamento de seu pai,
Pedro II, assinava a lei que extinguia a
escravidão no Brasil, pondo ¿ m a quatro
séculos de exploração o¿ cial da mão-de-
-obra de africanos e afro-descendentes
nesta nação, mais que qualquer outra,
por eles construída.
74 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Durante muito tempo, a propa- manufaturados. Explicam-se desse modo


ganda o¿ cial fez desse evento histórico as pressões exercidas pela Grã-Bretanha
um de seus maiores argumentos em defe- sobre o Governo brasileiro, especialmen-
sa da suposta tolerância dos portugueses te no que tange à proibição do trá¿co, que
e dos brasileiros brancos em relação acabaria minando os próprios alicerces
aos negros, apresentando a abolição da da instituição escravista. Outro fator
escravatura como fruto da bondade e do fundamental foi o recrudescimento da
humanitarismo de uma princesa. Como resistência negra, traduzido no pipocar
se a história se ¿ zesse por desígnios in- de revoltas sangrentas, com a queima de
dividuais, e não pelas ambições coletivas engenhos e a destruição de fazendas, que
dos detentores do poder ou pela força se multiplicaram nas últimas décadas do
inexorável das necessidades e aspirações século XIX, aumentando o custo e im-
de um povo. possibilitando a manutenção do sistema.
A tentativa de vender a abolição Foi assim que chegamos ao 13
como produto da benevolência de uma de maio de 1888, quando negros de todo
princesa branca é parte de um quadro o País - pelo menos nas regiões atingidas
maior, que inclui outras fantasias, como pelo telégrafo - puderam comemorar com
a “colonização doce” - suave apelido do euforia a liberdade recém-adquirida, ape-
massacre perpetrado pelos portugueses
nas para acordar no dia 14 com a enorme
na África e nas Américas - e o “lusotro-
ressaca produzida por uma dúvida atroz:
picalismo”, expressão que encerra a con-
o que fazer com esse tipo de liberdade?
tribuição lusitana à construção de uma
Para muitos, a resposta seria permanecer
“civilização” tropical supostamente aber-
nas mesmas fazendas, realizando o mes-
ta e tolerante. Talvez do tipo daquela por
mo trabalho, agora sob piores condições:
eles edi¿cada em Angola, Moçambique e
não sendo mais um investimento, e sem
Guiné-Bissau, quando a humilhação e a
qualquer proteção na esfera das leis, o
tortura foram amplamente usadas como
negro agora era livre para escolher a pon-
formas de manter a dominação física e
te sob a qual preferia morrer. Sem terras
psicológica de europeus sobre africanos.
para cultivar e enfrentando no mercado
Na verdade, o processo que re- de trabalho a competição dos imigrantes
sultou na abolição da escravatura pouco europeus, em geral subsidiados por seus
tem a ver com as razões humanitárias países de origem e incentivados pelo
- embora estas, é claro, também se ¿ zes- Governo brasileiro, preocupado em
sem presentes. O que de fato empurrou branquear física e culturalmente a nossa
a Coroa imperial a libertar os escravos população, os brasileiros descendentes
foram, em primeiro lugar, as forças de africanos entraram numa nova etapa
econômicas subjacentes à Revolução In- de sua via crucis. De escravos passaram
dustrial, capitaneadas por uma Inglaterra a favelados, meninos de rua, vítimas pre-
ávida de mercados para os seus produtos ferenciais da violência policial, discrimi-
Pr onunciamentos
Abdias defende uma nova abolição 75

nados nas esferas da justiça e do mercado despeito do grande esforço de nivelamen-


de trabalho, invisibilizados nos meios de to social realizado pela Revolução, há-
comunicação, negados nos seus valores, bitos, costumes e linguagem continuam
na sua religião e na sua cultura. Cidadãos impregnados do perverso eurocentrismo
de uma curiosa “democracia racial” em ibérico.
que ocupam, predominantemente, lugar
Um dos efeitos mais cruéis desse
de destaque em todas as estatísticas que
tipo de ideologia é confundir e atomizar
mapeiam a miséria e a destituição.
o grupo oprimido, impedindo-o de se
O mito da “democracia racial”, organizar para defender seus interesses.
que teve em Gilberto Freyre seu formu- Assim, por exemplo, se denuncia a
lador mais so¿ sticado, constitui, com discriminação racial de que é vítima, o
efeito, o principal sustentáculo teórico negro se vê enquadrado nas categorias de
da supremacia eurocêntrica neste País. “complexado”, “ressentido” ou mesmo
Interpretando fatos históricos de ma- de “perturbado mental”. Algum tempo
neira conveniente aos seus propósitos, atrás, poderíamos acrescentar as de
deturpando aqui, inventando acolá, “subversivo” ou “agente do comunismo
so¿ smando sempre, os apóstolos da “de- internacional”, estigmas que as institui-
mocracia racial” conseguiram construir ções repressoras de nosso país tentaram
um sólido e atraente edifício ideológico imprimir em minha própria pele e que me
que até hoje engana não somente parte obrigaram a viver no exterior por mais
dos dominados, mas também os domina- de uma década.
dores. Estes, sob o martelar do slogan, Terríveis na sua capacidade de
por vezes acreditaram sinceramente ocultar o óbvio ostensivo, todos esses
na inexistência de racismo no Brasil. instrumentos de coerção e imobilização
Podiam, assim, oprimir sem remorso ou não foram su¿ cientes para impedir que
sentimento de culpa. Esse mesmo mito, parcelas da população afro-brasileira
com denominações variadas, como “raza se tenham organizado, nestes 110 anos
cósmica” ou “café con leche”, também desde a abolição, a fim de lutar, por
contamina as relações de raça na maioria todos os meios possíveis, pela justiça
dos países da chamada América Latina, e pela igualdade neste País edi¿ cado
resultando, invariavelmente, na hegemo- por seus antepassados. Já tive ocasião
nia dos brancos - ou daqueles que assim de celebrar, aqui mesmo nesta Casa, o
se consideram e são considerados - sobre aniversário de fundação da maior dentre
os negros e os índios. É assim no México, todas as organizações afro-brasileiras
na Colômbia, na Venezuela, no Equador, deste século, a Frente Negra Brasileira,
no Peru e nos países da América Central que assinalou, ainda na década dos trinta,
e do Caribe. Disso não escapa sequer a a existência de um pensamento e de uma
Cuba socialista, que pude visitar mais ação negros comprometidos em derrubar
uma vez poucas semanas atrás e onde, a as barreiras construídas com base na ori-
76 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

gem africana. Transformada em partido África; Malcolm X, Martin Luther King,


político e fechada com o golpe do Estado Amiri Baraka, Stokeley Carmichael e
Novo, a Frente Negra, em seus acertos os Black Panthers, na América do Norte
e equívocos, balizou o caminho a ser - para citar apenas alguns de seus mais
percorrido pelas futuras organizações destacados expoentes -, encontraram
afro-brasileiras. eco no Brasil, estimulando a antiga luta
afro-brasileira, agora sob o rótulo de
Em meados da década dos
“Movimento Negro”.
quarenta, criei no Rio de Janeiro, com
a ajuda de outros militantes, o Teatro Recuperando a tradição das
Experimental do Negro, organização que antigas organizações, a exemplo da Re-
fundia arte, cultura e política na cons- pública dos Palmares, da Frente Negra
cientização dos afro-brasileiros, e dos e do Teatro Experimental do Negro, o
brasileiros em geral, para as questões do Movimento Negro logo se espalhou pelo
racismo e da discriminação, assim como País, catalisando o idealismo de uma ge-
para a valorização da cultura de origem nerosa juventude afro-descendente, com
africana. Apesar dos obstáculos que lhe grande incidência dos escassos universi-
foram interpostos, incluindo a clássica tários que enfrentavam, na busca de se
acusação de “racismo às avessas”, o Te- inserirem no mercado de trabalho, as cru-
atro Experimental do Negro marcou sua éis contradições de nossa “democracia
trajetória, pelo volume e qualidade de racial”. Apesar de todas as di¿ culdades
sua atuação, no meio artístico e cultural e resistências, o Movimento encontrava
daquela década e do decênio seguinte, também o apoio de alguns políticos im-
como também no cenário político, sendo portantes. Dentre eles se destaca Leonel
diretamente responsável pela primeira Brizola, responsável, como Governador
proposta de legislação antidiscrimina- do Rio de Janeiro, pela mais séria e ou-
tória no Brasil, mais tarde neutralizada sada experiência de enfrentamento do
pela malfadada lei Afonso Arinos. racismo até hoje empreendida no plano
Minha militância acabaria me do Estado: a criação da Secretaria Ex-
rendendo um exílio, do ¿ nal dos anos traordinária de Defesa e Promoção das
sessenta ao início da década de oitenta. Populações Afro-Brasileiras, da qual tive
Pude então travar contato em primeira a honra de ser o pr imeiro titular.
mão com toda uma liderança negra, na Uma das reivindicações do Mo-
África, nos Estados Unidos e na Europa, vimento Negro no plano das políticas
em luta contra o imperialismo, o colonia- públicas tem sido a adoção da chamada
lismo e o racismo. As idéias e ações dessa “ação a¿ rmativa” - que eu pre¿ ro de-
liderança, que incluía Amílcar Cabral, signar como “ação compensatória” -,
Samora Machel, Agostinho Neto, Julius objeto, nos últimos tempos, de algumas
Nyerere, Jomo Kenyatta, Léopold Sen- propostas no âmbito do Legislativo,
ghor, Wole Soyinka e Sam Nujomo, na incluindo o Projeto de Lei do Senado
Foto: J. E. Marelio

O poeta Carlos Assumpção declama seu clássico poema afro-brasileiro “Protesto” no 3o Congresso
de Cultura Negra das Américas (São Paulo, 1982)
Pr onunciamentos
Abdias defende uma nova abolição 79

no 75/97, de minha autoria, atualmente apenas remediar a discriminação pas-


tramitando nesta Casa. Trata-se este, sada e presente, mas também prevenir
na verdade, de um assunto sobre o qual a discriminação futura, num esforço
muito se fala - quase sempre contra - mas para se chegar a uma sociedade inclu-
do qual, geralmente, pouco se conhece. siva, aberta à participação igualitária de
“Ação afirmativa” é uma ex- todos os cidadãos. Ao contrário do que
pressão que foi utilizada pela primeira costumavam a¿ rmar seus adversários,
vez em 1963, numa Ordem Executiva a ação compensatória recompensa o
do presidente norte-americano John mérito e garante que todos sejam inclu-
Kennedy, que se referia à necessidade ídos e considerados com justiça ao se
de uma “ação a¿rmativa” para promover candidatarem a empregos, matrículas
a população negra dos Estados Unidos. ou contratos, independentemente de
Embora seja uma expressão cunhada raça ou de gênero. São seus propósitos
por norte-americanos em função de um especí¿cos; 1) aumentar a participação
contexto norte-americano, o conceito de pessoas quali¿ cadas, pertencentes a
que ela encerra - o de compensar deter- segmentos historicamente discriminados,
minados segmentos sociais pelos obstá- em todos os níveis e áreas do mercado de
culos que seus membros enfrentam no trabalho, reforçando suas oportunidades
presente devido à discriminação a que de serem contratadas e promovidas; 2)
esses grupos têm sido historicamente
ampliar as oportunidades educacionais
submetidos - está subjacente em muitas
dessas pessoas, particularmente no que
práticas implementadas em diferentes
se refere à educação superior, expandir
sociedades contemporâneas - na Índia,
seus horizontes e envolvê-las em áreas
na Malásia, na Nigéria, nas antigas Iu-
goslávia e União Soviética, em Israel, nas quais tradicionalmente não têm sido
na China, na Colômbia, na nova África representadas; 3) garantir a empresas de
do Sul, na Alemanha e em outros países propriedade de pessoas desses grupos
europeus. Países com culturas, graus de oportunidades de estabelecer contratos
desenvolvimento, formas de estruturação com o governo, em âmbito federal, es-
social e regimes políticos tão diversos tadual ou municipal, dos quais de outro
quanto a própria amplitude do espectro. modo estariam excluídas.
“Ação afirmativa”, ou “ação Na área do emprego, programas
compensatória”, é, pois, um instrumento, de “ação a¿ rmativa” têm sido usados
ou conjunto de instrumentos, utilizado voluntariamente há muitos anos por
para promover a igualdade de opor- empresas dos Estados Unidos a ¿m de
tunidades no emprego, na educação, constituir uma força de trabalho diver-
no acesso à moradia e no mundo dos si¿ cada que reÀita sua base de consumo
negócios. Por meio deles, o Estado, a e as ajude a competir com e¿ cácia num
universidade e as empresas podem não mundo de negócios internacional carac-
80 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

terizado pela multirracialidade. Com indivíduos quali¿ cados. isso que t m


efeito, recente estudo da revista Forbes feito no Brasil, por orientação de suas
encontrou uma correlação positiva entre matrizes, multinacionais como a Xerox,
a adoção de medidas compensatórias - no a IBM, a Levi Strauss e a Monsanto.
caso, sob o rótulo de “promoção da di-
Na área educacional, as medi-
versidade no local de trabalho” - na área
das de ação compensatória adotadas em
do recrutamento, seleção e promoção de
outros países, e que se pretende sejam
pessoal e a lucratividade das empresas
adotadas aqui, são muitas vezes acu-
que optam por esse caminho.
sadas de constituírem preferências por
A ação compensatória na área do alunos não-qualificados. Na verdade,
emprego implica o recrutamento ativo de porém, também nessa área, o objetivo é
mulheres e membros de grupos historica- recompensar o mérito. Recentes estudos
mente discriminados, buscando-se can- de escores obtidos em testes e de notas
didatos além das redes convencionais de tiradas no curso secundário - os padrões
relacionamento, tradicionalmente domi- tradicionais e presumivelmente “obje-
nadas por homens brancos. Ela estimula, tivos” para mensurar as quali¿ caç}es
por exemplo, o uso de anúncios públicos de estudantes - têm posto em questão a
de empreJ o para identi¿ car candidatos precisão desses instrumentos em predizer
em lugares em que os empregadores o desempenho futuro de todos os alunos,
geralmente não iriam procurá-los. No particularmente de mulheres e de mem-
caso norte-americano, muitas empresas bros de grupos discriminados. Poucos
estaEelecem metas de diversi¿ cação de especialistas sustentariam racionalmente
sua força de trabalho à altura de determi- que, por si sós, esses escores e médias
nada data, o que encoraja seus gerentes sejam capazes de medir objetivamente
a concentrarem esforços em jogar uma a capacidade e o potencial de um indiví-
ampla rede à procura de pessoas qua- duo. Qual a experiência de vida do candi-
lificadas pertencentes aos grupos em dato? Que obstáculos ele teve de superar?
pauta. O estabelecimento de metas e Quais são suas ambições e esperanças?
cronogramas - que não se confunde com Menos tangíveis do que números, esses
o estabelecimento de quotas - estimula padrões são mais precisos em prever o
os gerentes a pensarem duas vezes so- futuro desempenho educacional do que
Ere as verdadeiras quali¿ caç}es que um origem familiar, herança ou outros atri-
candidato deve ter para ser contratado butos do privilégio.
ou promovido, em vez de simplesmente No caso do Brasil, em que é
escolherem seus cupinchas, ou pessoas extrema a desigualdade entre negros e
que se pareçam ¿ sicamente com eles brancos em termos de escolaridade, em
próprios. Assim, a ação compensatória especial no nível superior, a situação
abre as portas da oportunidade a todos os mais flagrantemente injusta é a das
Pr onunciamentos
Abdias defende uma nova abolição 81

universidades públicas, nas quais um sociedade. Talentos que com certeza


sistema supostamente meritocrático teriam uma grande contribuição a dar
garante, de fato, uma verdadeira reserva para o desenvolvimento deste país, que
de mercado para a mediocridade branca. no entanto continua se dando ao luxo de
Por exemplo, vamos imaginar um jovem desperdiçá-los.
oriundo da escola pública (onde está Além do falido argumento me-
confinada a maioria esmagadora dos ritocrático, também se costuma brandir
alunos negros) que tire, digamos, nota contra a ação compensatória - como
cinco no exame vestibular, e um aluno aconteceu nesta própria Casa - a tese da
branco, vindo da escola particular (que inconstitucionalidade. Seria inconstitu-
os negros só freqüentam por exceção), e cional estabelecer qualquer espécie de
que tire sete. Deixemos de lado outros “discriminação positiva” - outro sinô-
fatores - como o chamado “currículo nimo de ação a¿ rmativa - porque isso
invisível” - as viagens à Europa e aos feriria o princípio da igualdade de todos
Estados Unidos, a familiaridade com perante a lei. A primeira resposta a esse
computadores, o acesso a diversas fon- argumento vai contra o seu caráter emi-
tes de conhecimento, o próprio teor das nentemente conservador. Como se não
conversas domésticas em ambientes mais tivéssemos a possibilidade, o direito, o
so¿ sticados -, e mesmo os problemas de dever, eu diria, de lutar por mudanças nos
auto-estima enfrentados por quem não dispositivos constitucionais que não nos
está acostumado sequer a ver sua ima- interessam. Ou como se a igualdade fosse
gem representada de maneira positiva apenas um princípio abstrato, e não algo
nos livros didáticos ou nos meios de a ser implementado por meio de medidas
comunicação. Será possível calcular, na concretas. A verdade, porém, é que exis-
diferença das notas desses dois alunos, tem diversos precedentes jurídicos que
o quanto se deve ao talento e ao esforço abrem as portas à implantação da ação
individuais - ao mérito, em suma - e compensatória em favor dos afro-descen-
o quanto é fruto tão-somente da desi- dentes no Brasil. A igualdade de homens
gualdade no ponto de partida das duas e mulheres perante a lei não impede, por
trajetórias imaginárias aqui focalizadas? exemplo, que estas tenham direito de se
A criação de cursos pré-vestibulares para aposentar com menor tempo de serviço,
afro-brasileiros - que organizações ne- nem que disponham de uma reserva de
gras já têm implantado com sucesso -, a vagas nas listas de candidatura dos parti-
concessão de bolsas de estudo preferen- dos. Há também a proteção especial aos
ciais e outros mecanismos - incluindo o portadores de de¿ciência, a famosa Lei
estabelecimento de quotas mínimas para dos Dois - Terços - que estipulava uma
alunos negros - podem não apenas trazer preferência para trabalhadores brasileiros
um pouco de justiça a essa área. Muito no quadro funcional das empresas -, sem
mais do que isso, podem minimizar o falar no imposto de renda progressivo e
imenso desperdício de talentos desta na inversão do ônus da prova nas ações
82 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

movidas por empregados contra empre- oportunidade e tratamento em matéria de


gadores. Todos casos em que a igualdade ensino.”
formal dá lugar à promoção da igualdade. Outra postura contrária vem dos
Vale ressaltar neste ponto que que, dando como exemplo a experiência
pelo menos três convenções internacio- de países socialistas, à ação compensa-
nais de que o Brasil é signatário - e que tória costumam contrapor as políticas
portanto têm força de lei - contemplam públicas de combate à pobreza e aos
a adoção de medidas compensatórias. problemas a ela associados - as chama-
Uma delas é a Convenção Internacional das políticas redistributivas. Esse argu-
sobre a Eliminação de Todas as Formas mento, em geral oriundo da esquerda, é
de Discriminação Racial, da Organização duplamente falacioso. Primeiro porque
das Nações Unidas, cujo Art. 1o, item ninguém, em sã consciência, poderia
vislumbrar no horizonte próximo uma
4, diz o seguinte: “Não serão conside-
revolução socialista no Brasil - condição
radas discriminação racial as medidas
indispensável à adoção de reformas radi-
especiais tomadas com o único objetivo
cais como aquelas que possibilitaram a
de assegurar o progresso adequado de
alguns daqueles países, não acabar com o
certos grupos raciais ou étnicos (...) que racismo, mas reduzir a um nível mínimo
necessitem da proteção que possa ser as desigualdades raciais (o que é diferen-
necessária para proporcionar (...) igual te) nas áreas do trabalho, da educação, da
gozo ou exercício de direitos humanos saúde e da moradia. A outra falácia desse
e liberdades fundamentais (...).” Teor argumento é deixar implícito que se trata
semelhante tem o Art. 2o da Convenção de opções mutuamente excludentes - ou
111 da OIT - Organização Internacional ação compensatória ou políticas redistri-
do Trabalho, concernente à discrimina- butivas, quando de fato se necessita de
ção em matéria de emprego e pro¿ ssão, ambas. Com certeza, os afro-brasileiros
pelo qual cada signatário “compromete- seriam, por sua inserção social, os gran-
-se a formular e aplicar uma política des beneficiários de quaisquer ações
nacional que tenha por ¿ m promover governamentais voltadas à melhoria das
(...) a igualdade de oportunidades e de condições de vida das grandes massas
tratamento em matéria de emprego e pro- destituídas. E continuariam precisando
¿ ssão, com o objetivo de eliminar toda de proteção contra a discriminação, bem
discriminação nessa matéria”. E também como de mecanismos capazes de lhes
o Art. IV da Convenção Relativa à Luta assegurar a igualdade de oportunidades.
Contra a Discriminação no Campo do Em entrevista publicada semana
Ensino, da UNESCO: “Os Estados Partes passada pela revista Veja, em que se dis-
(...) comprometem-se (...) a formular, de- cute a situação dos negros neste País, o
senvolver e aplicar uma política nacional Presidente Fernando Henrique Cardoso
que vise a promover (...) a igualdade de disse não ser contrário ao sistema de
Pr onunciamentos
Abdias defende uma nova abolição 83

quotas, forma mais incisiva de ação com- ignorância e o atraso. Mas estamos dis-
pensatória que constitui a essência do postos a levar nossa luta a todos os foros,
meu projeto de lei. O Presidente foi além nacionais e internacionais, e a conduzi-
dessa declaração e a¿ rmou literalmente: -la, como alguém já disse, “por todos os
“Havendo duas pessoas em condições meios necessários”.
iguais para nomear para determinado Assim, neste 13 de maio, fa-
cargo, sendo uma negra, eu nomearia zemo-nos presentes nesta tribuna, não
a negra.” Como é curioso, para dizer o para comemorar, mas para denunciar
mínimo, observar correligionários do uma vez mais a mentira cívica que essa
Presidente aqui no Senado manifestando data representa, parte central de uma
idéias e atitudes absolutamente contrárias estratégia mais ampla, elaborada com a
às de seu suposto líder e utilizando, para ¿ nalidade de manter os negros no lugar
isso, todo um arsenal de argumentos ou que eles dizem ser o nosso. A comuni-
intempestivos, ou equivocados, ou desin- dade afro-brasileira, porém, já mostrou
formados - pois não quero acreditar que claramente que não mais aceita a con-
sejam maliciosos. dição que nos querem impingir. Mais
Ao mesmo tempo, pesquisa uma prova disso foi dada na madrugada
realizada pelo prestigioso instituto de de hoje, quando o Instituto do Negro
Padre Batista, juntamente com dezenas
pesquisa Datafolha, e publicada à página
de outras organizações, realizou em São
46 do livro Racismo cordial, revela não
Paulo a segunda Marcha pela Democra-
apenas que praticamente metade dos bra-
cia Racial, desfraldando a bandeira da
sileiros de todas as origens étnicas aprova
igualdade de oportunidades para os afro-
a ação compensatória, mas que essa
-descendentes. Assim, ao mesmo tempo
aprovação chega a 52% entre aqueles que
em que denuncia as injustiças de que
admitiram ter preconceito em relação aos é vítima, nossa comunidade apresenta
negros. Muito signi¿ cativo em função da reivindicações consistentes e viáveis para
cortina de desconhecimento que cerca o a solução dos seculares problemas que
tema, esse resultado indica que o País enfrenta. Reivindicações, como a ação
está mudando, e mais rapidamente do compensatória, capazes de contribuir
que se quer admitir. E esta Casa, cujos para que venhamos a concretizar, com
membros têm o dever de acompanhar e o apoio de nossos aliados sinceros, a
até mesmo antecipar as mudanças que o segunda e verdadeira abolição.
País quer e necessita, não pode ¿ car se
ancorando em velhos chavões para man- Axé!
ter um estado de coisas que a maioria da
sociedade quer ver superado. Sabemos,
eu e meus companheiros de luta, que é
árdua a batalha que temos pela frente,
no confronto com o reacionarismo, a
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 14 de maio de 1998
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Ainda ontem ocupamos esta


Homenagens aos líderes da Revolta tribuna para evocar criticamente uma
dos Malês de 1835. data histórica referente ao povo afro-des-
cendente deste País. Hoje retornamos à
História, desta vez no intuito de arrancar
de um esquecimento injusto, imerecido
e antinacional as figuras heróicas de
cinco mártires das lutas pela liberdade
no Brasil. Estou me referindo aos cinco
homens negros que, num 14 de maio,
foram executados na cidade de Salvador,
Bahia, pelo crime de não aceitarem as
condições cruéis, desumanas e humilhan-
tes em que viviam os africanos no Brasil.
Cinco heróis da pátria, cinco campeões
da liberdade que esta Nação um dia terá
de reconhecer e venerar, ao lado de
86 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Tiradentes e dos outros heróis imolados petuar - a supremacia européia sobre os


por essa mesma causa. São eles os líderes povos “de cor” dos outros continentes.
da Revolta dos Malês de 1835, marco Falo de falsi¿ cação por não caber aqui
indelével da resistência negra neste con- o benefício da dúvida, uma vez que os
tinente, e um dos ingredientes básicos do gregos, para não mencionar os famosos
caldo de cultura que propiciaria, mais de cronistas árabes de obra conhecida e
cinco décadas depois de sua eclosão, a divulgada no Ocidente, haviam descrito
extinção do sistema escravista em nosso com precisão e clareza a diversidade de
País. civilizações com que travaram contato
no hoje difamado Continente Africano.
Um dos muitos subprodutos
perversos da escravização de povos Causa, assim, um enorme cho-
africanos por europeus, iniciada pelos que a todos aqueles educados segundo a
portugueses em ¿ ns do século XV e que tradição eurocêntrica travar conhecimen-
teve no Brasil seu país de maior duração, to com as numerosas civilizações avan-
foi a elaboração de um substrato teórico çadas que se desenvolveram em todas
voltado à desumanização dos africanos as regiões do Continente Africano. Uma
e dos negros em geral, como forma de dessas regiões tem estreita relação com
justi¿ car uma dominação que não en- o tema que hoje trago à baila: trata-se do
contrava sustentáculo nos fundamentos Sudão Ocidental. Não o país hoje chama-
religiosos e ¿ losó¿ cos do pensamento do Sudão, mas uma vasta área da África
dos dominadores. Era preciso negar aos Ocidental que atualmente abriga nações
africanos e seus descendentes a própria como Nigéria, Gana, Senegal, Mauritâ-
condição de seres humanos, ainda que nia e Mali, algumas delas nomeadas em
para isso se ¿ zesse necessário distorcer, homenagem a antigos reinos e impérios
ou simplesmente negar, as conquistas que lá floresceram. Estou falando de
desses povos nos variados campos do Estados poderosos, com milhões de habi-
conhecimento e os feitos importantes por tantes espalhados por dezenas de milhões
eles protagonizados no próprio contexto de quilômetros quadrados, dotados de
africano, bem como sua interação com uma aprimorada infra-estrutura, de uma
outras culturas, tradições e civilizações. cultura requintada e de um considerável
poderio bélico, traduzidos em quase vinte
Entende-se, desse modo, a visão
séculos de progresso e desenvolvimento.
deturpada que hoje se tem da África e
de seus ¿ lhos. Ela é fruto de um pro- Baseada fundamentalmente no
cesso de falsificação executado com comércio do ouro, abundante na área, a
mestria, desde o século passado, por riqueza material dessa região propiciou
historiadores, sociólogos e antropólo- o desenvolvimento de uma cultura ori-
gos engajados numa guerra ideológica ginal, fertilizada pelas trocas comerciais
cujo principal objetivo estratégico era, com o restante da África, assim como
e continua sendo, justi¿ car - para per- com a Europa e a Ásia. A religião mu-
Pr onunciamentos
Homenagens aos líderes da Revolta dos Malês 87

çulmana, introduzida pelos comerciantes elemento humano que poderia dar conti-
árabes, acabou sendo adotada pela elite nuidade à saga civilizatória africana. Foi
governante, embora fortemente mesclada assim que os malês, nome genericamente
com elementos das religiões autóctones. atribuído aos africanos islamizados,
O povo, entretanto, permaneceu ¿ el, em vieram parar no Brasil, especialmente
sua maioria, às crenças ancestrais. Dos na Bahia, região de maior concentração
vários Estados organizados na região ao das etnias negro-mulçumanas neste País.
longo de quase dois mil anos, três se des-
Na verdade, a Revolta dos Ma-
tacam: o reino de Gana e os impérios do
lês de 1835 foi o ponto máximo de uma
Mali e de Songhai. Sua riqueza cultural
série de rebeliões iniciadas no princípio
pode ser avaliada pelo fato de a cidade
do século XIX, lideradas por africanos e
de Tombuctu, na curva do rio Níger, na
afro-descendentes praticantes do islamis-
atual República do Mali, abrigar, em
mo. Alimentadas pelo espírito do Jihad,
pleno século XIV, a universidade de
ou Guerra Santa, fundamentavam-se
Sankore, aonde acorriam intelectuais
todas elas na luta pela liberdade diante
muçulmanos de todo o Norte da África e
de inimigos não apenas de outra raça e
do Sul da Espanha - na época dominado
cultura, mas também de uma religião,
pelos mouros - para estudar Matemática,
a cristã, por eles vista como pagã. Se-
Filoso¿a, História e Direito Islâmico. Por
gundo os registros, a primeira dessas
essa época, a atividade mais lucrativa em
rebeliões eclodiu a 28 de maio de 1807.
Tombuctu era o comércio de livros.
Armados de arcos, Àechas, facões, pis-
Em meados do século XV, com tolas e fuzis, africanos da etnia haussá
a derrota de Songhai ante os exércitos enfrentaram portugueses e brasileiros das
marroquinos, esse período brilhante da forças coloniais e, embora derrotados,
História Africana chegou ao ¿m. Não por demonstraram ser não somente valentes
acaso, no momento em que ganha pulso o e destemidos, mas também - o que é mais
processo de expansão da Europa, quando importante neste contexto - possuídos
os ¿ lhos do Velho Continente começam de um grau de organização que assustou
a “descobrir” (entre aspas) outras regiões seus poderosos adversários. O objetivo
do mundo, todas elas já habitadas, muitas era simples: apoderar-se dos navios
vezes por povos de cultura tecnologica- ancorados na Baía de Todos os Santos
mente avançada. Com isso, cai o preço do e neles voltar para a África. Derrotada
ouro, encontrado com a abundância em a insurreição, Antônio e Baltazar, seus
algumas das “novas” terras, provocando principais chefes, são condenados à mor-
a decadência econômica do Sudão Oci- te, enquanto outros insurretos recebem
dental. Ao mesmo tempo, intensi¿ ca-se penas de não menos de cem chibatadas
o processo de escravização de africanos, em praça pública para servirem de exem-
que acabaria transplantando à força para plo a outros negros que ousassem sonhar
o outro lado do Atlântico a maior parte do com a liberdade.
88 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Isso não impediu, contudo, que e que viria a ser a mãe do grande poeta
outras revoltas se sucedessem em 1809, negro, herói e mártir da abolição: Luís
1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, Gama.
1828, 1830. As penas de morte, depor-
Alertadas sobre a iminente
tação e açoites em público com que se revolta, as autoridades tomaram provi-
viam contemplados seus líderes não pa-
dências no sentido de contê-la. A intensa
reciam intimidar os negros baianos; pelo
repressão então desencadeada provocou
contrário, pareciam servir de estímulo ao enfrentamentos mortais, ensangüentando
espírito libertário trazido e herdado da
os becos, as ruas, os largos e a própria
Mãe África, desvelando plenamente a memória da Bahia. Duzentas e oitenta
crueldade do sistema que os subjugava.
e seis pessoas foram acusadas, 194
Mas foi em janeiro de 1835 que aconte-
das quais da etnia nagô. No início das
ceu, na visão dos poderosos da época,
investigações, as autoridades imperiais
a mais grave e perigosa dessa série de imaginaram, de acordo com seus precon-
insurreições, aquela que ¿ cou conhecida
ceitos, que não passassem de crendices e
como a Revolta dos Malês. O plano era instrumentos de bruxaria os documentos
engenhoso. A rebelião deveria eclodir a
escritos em árabe, incluindo trechos do
25 de janeiro, durante a festa de Nossa Corão, encontrados entre os pertences
Senhora da Guia. Nessa madrugada, os
dos insurretos. Não tardaram a descobrir,
revoltosos se reuniriam para iniciar, em porém, para a sua estupefação, o papel
vários pontos da cidade, uma série de desempenhado por uma liderança letrada
ataques simultâneos, do tipo que hoje em árabe e português, responsável por
descreveríamos como guerrilha urbana. uma rede complexa e organizada, que
Numa segunda etapa, a eles se juntariam atingia a própria África, com rami¿ ca-
os negros das plantações localizadas na ções pelos interesses britânicos da época.
periferia de Salvador.
As sentenças foram rápidas como
Quis o destino que os revoltosos a aplicação de uma medida provisória
fossem derrotados, não pela capacidade imposta por um rolo compressor. Cinco
de reação dos escravocratas, mas por acusados foram condenados à morte por
terem sido delatados por Guilhermina enforcamento: Jorge da Cunha Barbosa
Rosa de Sousa, mulher nagô emancipada, e José Francisco Gonçalves, alforriados,
que decerto não compartilhava o espírito ao lado dos escravos Joaquim, Gonçalves
libertário de seus irmãos e irmãs, mas e Pedro. Como nada ficasse provado
pertencia àquela espécie de seres huma- contra si, Pací¿ co Lucitan, uma espécie
nos, encontráveis em todas as raças, que de mentor dos revoltosos, recebeu uma
se contentam em rastejar em busca das pena terrível: mil chibatadas em praça
migalhas dos dominadores. Tão diferente pública. Outros mais foram aquinhoados
de outra mulher negra, Luísa Mahin, com penalidades semelhantes - 600, 800,
¿ gura destacada nas insurreições malês mil chibatadas, aplicadas diariamente,
Pr onunciamentos
Homenagens aos líderes da Revolta dos Malês 89

de forma parcelada, de modo a não correlatos em cada pedaço de chão que o


destruir o patrimônio dos escravocratas. africano pisou neste País, servem-nos de
Demonstrações, talvez, da benevolência azimute para as lutas hoje travadas pelos
do escravismo à brasileira, como querem afro-descendentes em busca da igualdade
os apóstolos da “democracia racial”. com que sonharam nossos antecessores
A triste história da escravidão na primeira metade do último século.
marcou para sempre, com tintas de Que o espírito dos mártires de 1835 nos
sangue, a própria história deste País. possa conduzir e iluminar, às portas do
Nela se fundamenta a chaga do racismo, Terceiro Milênio, apontando-nos o cami-
cancro renitente que contamina o tecido nho da concretização dos mesmos ideais
social brasileiro, raiz da maior parte dos por que eles tombaram.
problemas mais graves que ainda hoje
aÀigem esta Nação. Mas lições de dig-
nidade como a saga dos malês, com seus Axé!
Discur so profer ido no Senado Federal Senhor Presidente,
em 18 de junho de 1998
Senhoras e Senhores Senadores,

No dia 8 de junho último, tive a


honra de ser agraciado pela Assembléia
Recebimento da Medalha Tiradentes,
na Assembléia Legislativa do Estado Legislativa do Rio de Janeiro, por inicia-
do Rio de Janeiro, por iniciativa do tiva do Ilustre Deputado Rubens Tavares,
deputado Rubens Tavares. com a Medalha Tiradentes. Naquela
ocasião, perante uma platéia constituída
de parlamentares, amigos e representan-
tes da Comunidade Afro-brasileira, ¿ z
um discurso cujo conteúdo considero
importante registrar, dado o seu caráter
de denúncia das falsi¿ cações históricas
de que são vítimas os heróis negros de
nossa história. Por essa razão, solicito
seja transcrito integralmente nos Anais
desta Casa.
92 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

DOCUMENTO A QUE SE REFERE O aqueles que, apesar de terem construído


SR. ABDIAS NASCIMENTO EM SEU os alicerces desta Nação, encontraram-se
DISCURSO DE ENCAIXE: dela excluídos desde o seu início. Pois o
Brasil Colônia foi construído unicamente
pelo trabalho dos africanos escravizados.
PRONUNCIAMENTO DO Fundou-se o Império Brasileiro e os afri-
SENADOR ABDIAS NASCIMENTO canos e seus descendentes continuaram
escravizados. Fundou-se a República, e
AO RECEBER DA ASSEMBLÉIA
os afro-brasileiros, recém libertados por
LEGISLATIVA DO ESTADO DO uma falsa abolição que lhes negou a cida-
RIO DE JANEIRO A MEDALHA dania, foram marginalizados, destituídos
TIRADENTES, POR INICIATIVA DO de acesso à terra, à educação, a habitação,
DEPUTADO RUBENS TAVARES. à vida com dignidade. Nossos antepassa-
dos foram expulsos da agricultura e do
mercado de trabalho da nova economia
Rio de Janeiro, industrial pelas políticas de subsídio à
8 de junho de 1998. imigração européia motivadas por um
desejo perverso e racista das elites bra-
sileiras: a embranquecer a população do
Em nome de Xangô e de Ogum País e negar sua face africana.
agradeço aos ilustres membros desta
Assembléia Legislativa, e em particular Xangô e Ogum, justiça e liber-
ao nobre deputado Rubens Tavares, esta dade: são a própria essência da luta em
Medalha Tiradentes. Xangô, rei de Oyó, que há décadas venho engajado, em de-
deu sua vida pela justiça e ¿ cou no pan- fesa dos direitos da imensa comunidade
theon nagô como o homem que morreu, afro-descendente no Brasil. O racismo
viveu de novo e subiu para o Orum. e a discriminação con¿ guram uma ver-
Ogum lutou pela liberdade de seu povo e dadeira saga trágica a que este povo foi
permanece no imaginário afro-brasileiro submetido, desde o seqüestro em terras
africanas, a terrível travessia do oceano
como divino guerreiro justiceiro. E esta
medalha homenageia um dos grandes atlântico, a desumana exploração de sua
mão-de-obra em cativeiro, até a presente
lutadores pela causa da justiça e da li-
condição de excluídos de uma sociedade
berdade neste país aquele cujo nome se
da qual somos os principais construtores.
encontra hoje inscrito ao lado do nome de
Zumbi dos Palmares no Pantheon dos he- Esse mesmo racismo, operando
róis Nacionais, na Praça dos Três Poderes no plano das imagens e do conteúdo dos
em Brasília. Se a ¿ gura de Tiradentes livros didáticos e dos meios de comuni-
incorpora a luta por justiça e liberdade cação, veicula uma visão distorcida dos
na fundação deste País, Zumbi simbo- africanos e seus descendentes, no Brasil
liza a causa da justiça e liberdade para e no mundo, mediante da falsi¿ cação
Pr onunciamentos
Recebimento da Medalha Tiradentes 93

deliberada dos registros históricos, em Axum e de Meroe, o Império da Núbia,


que se oculta ou se reduz a participação a civilização do Zimbábue ou os reinos
individual e coletiva dos africanos e seus e impérios de Gana , Mali e Songhai,
descendentes, ao tempo em que se exalta estas foram simplesmente varridas do
além da medida as contribuições dos mapa da chamada civilização universal.
brancos. Condenou-se ao esquecimento povos
Sabendo o quanto deviam às cuja riqueza material e cultural impres-
civilizações africanas, particularmente sionava os visitantes de qualquer origem.
à do Egito, os europeus lançaram-se, As ruínas de suas cidades constituem
desde ¿ nais do século XVIII, à infame o atestado da diversidade de expressão
e criminosa tarefa de suprimi-las pura do gênio humano em terras africanas:
e simplesmente da memória humana, as pirâmides meroíticas, as muralhas
ou, quando isso se mostrou impossível, de Monomotapa, os templos e tumbas
à de roubar-lhes os créditos pelos seus seculares da Etiópia, a re¿ nada arqui-
feitos gloriosos. Assim quiseram roubar tetura de Tombuctu, onde já no século
até mesmo a negritude da civilização XIII funcionava uma universidade entre
egípcia, inventando uma raça “marrom- várias daquela região. Desde aquela
-avermelhada” ou “vermelho-amarronza- época, de Quíloa e de outras cidades da
da” para não dizer o que a¿ rmou o grego África oriental embarcavam-se elefantes
Heródoto, chamado o Pai da História: com destino à China em navios muitos
que os egípcios eram “negros de cabelos mais so¿ sticados que as pobres futuras
lanudos”. Nada menos eram esses mes- caravelas de Colombo ou Cabral. Tudo
mos egípcios que os mestres de tantos isso, e muito mais, foi anulado ou mi-
sábios da Grécia Antiga, ensinando-lhes nimizado na história deformada pelo
matemática, arquitetura, medicina, as- pensamento eurocêntrico, empenhado
tronomia e outras ciências. Mas para os em fazer crer na Europa como única
europeus que inauguravam a dominação fonte dos conhecimentos relevantes para
colonialista dos povos não brancos, era o desenvolvimento da humanidade.
necessário ignorar ou desvalorizar o pró- De todos os países das Améri-
prio testemunho dos gregos. Precisava- cas, o Brasil recebeu o maior número de
-se considerá-los gênios em tudo, mas africanos e manteve por mais tempo a
ingênuos em História, pois eles mesmos perversa instituição da escravidão. Deu
se retrataram como tributários de uma também sua contribuição particular ao
civilização marcada na própria pele processo eurocentrista de falsi¿ cação
pelos traços característicos dos povos da história inventando a mentira da
africanos. “escravidão benevolente” nas colônias
Quanto às outras civilizações católicas ou alegando que as africanas
que se desenvolveram no seio fértil e ge- violentadas por tarados senhores e tor-
neroso da Mãe África, como os reinos de turadas por sinhás ciumentas aceitassem
94 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

tais agressões como formas generosas mais inspiradores de determinação na


de carinho. Até bem pouco tempo atrás, luta pela iJ ualdade neste país. 5 e¿ ro-
autores de livros didáticos não tinham -me à Conjuração Baiana de 1798, mais
pejo em afirmar que os africanos se conhecida como Revolta dos Alfaiates
adaptassem melhor ao regime escravista ou Revolta dos Búzios.
graças à sua “docilidade”. Transmitidas No dia 13 de agosto de 1798, a
tais imaJ ens com o aval da escola, ¿ ca capital baiana se viu surpreendida pela
difícil para qualquer aluno compreender distriEuição de panÀetos escritos j mão,
as múltiplas formas da ferrenha resistên- convocando o povo a se revoltar contra o
cia africana à escravidão no Brasil. Essa domínio português. Alertado meses antes
resistência era individual, como no caso por uma carta do padre José da Fonse-
do suicídio, infanticídio ou homicídio, ca Neves, que denunciava o cirurgião
e coletivo, como na organização de re- Cipriano Barata como propagandista e
voltas, insurreições e quilombos ou na chefe de uma sedição contra o Governo
liderança e participação dos negros no Imperial, o Governador Fernando José de
movimento abolicionista. A resistência Portugal e Castro comanda as investiga-
afro-brasileira está simbolizada no maior ções, que redundam na prisão do soldado
dos quilombos, a República de Palmares, Luís Gonzaga das Virgens e Veiga, em
e na ¿ J ura de seu rei eleito =umEi, maior cuja residência são encontrados livros
líder da luta pela justiça e liberdade nas e documentos comprometedores. Ao
Américas. Gênio e herói militar ignorado mesmo tempo, outras denúncias levam
nas versões embranquecidas da história, à prisão do alfaiate João de Deus, do
só agora - graças à ação concentrada do soldado Lucas Dantas e do lavrador Luís
Movimento Negro - Zumbi começa a Pires. Ameaçado de morte, Luís Gonzaga
ser reconhecido em seu pleno valor por acaba delatando os outros companheiros
brasileiros de todas as origens. revolucionários.
O tardio reconhecimento de Sobre eles se abate uma re-
Palmares e Zumbi é só um ponto de pressão dura, cruel e principalmente
partida da luta dos afro-brasileiros pelo seletiva. Dos cerca de 600 conspira-
resgate de seus heróis e feitos históricos. dores - na imensa maioria modestos
Exemplo disso é a ignorância que ainda artesãos, ao lado de negros e mulatos
cerca um dos eventos mais relevantes forros -, quatro são condenados à morte.
da luta pela justiça e a liberdade no Bra- Coincidentemente, todos negros. Para
sil. Considerado por nossos principais os restantes, penas de prisão, castigos
historiadores como sendo mais impor- corporais e degredo na África. Esse é o
tante que a famosa Conjuração Mineira, caso do professor Muniz Aragão, autor
continua até hoje relegado à penumbra, do hino revolucionário, e dos tenentes
privando nosso povo e principalmente José Gomes de Oliveira e Hermógenes
a nossa juventude de um dos exemplos Francisco. Melhor sorte teria o médico
Pr onunciamentos
Recebimento da Medalha Tiradentes 95

Cipriano Barata, solto após cumprir sua sufocar o espírito de liberdade em terras
sentença. da Bahia. Menos de dez anos depois,
acontecia a primeira de uma série de
Tal como a Conjuração Mineira,
sublevações que vieram a ser conhecidas
a Revolta dos Búzios- assim chamada
como Revoltas dos Malês, constituindo
porque os conjurados costumavam usar
mais um capítulo memorável e, contudo,
uma pequena concha de búzio presa à
desconhecido de nossa História. Ma-
corrente do relógio - tinha como fonte
lês era o nome genérico atribuído aos
inspiradora a Revolução Francesa, se-
africanos islamizados, originários dos
guindo seus idéias de liberdade, igual-
grandes Estados do Sudão Ocidental,
dade e fraternidade. Além de “reduzir
como Gana, Mali e Songhai, onde se
o continente do Brasil a um governo
desenvolveu uma civilização de rique-
democrático”, os revoltosos pretendiam
za material e cultural que provocou o
abolir o cativeiro e a discriminação ra-
respeito e a espantada admiração dos
cial, instituir a liberdade religiosa, dividir
cronistas árabes que freqüentemente os
entre a população “tudo que houvesse
visitaram. Alimentadas pelo espírito do
na capital”, abrir o porto de Salvador
Jihad, ou Guerra Santa, essas revoltas
a navios de todos os países e, em caso
fundamentavam-se na luta pela liberdade
de resistência, executar o governador.
diante de inimigos não apenas de outra
Um programa bem mais avançado e
raça e cultura, mas também de uma
consistente que o da Conjuração Minei-
religião, a cristã, vista pelos revoltosos
ra, conduzida por burgueses, literatos e
como pagã. Assim, em 1807, armados de
sacerdotes brancos, sem grande compro-
arcos, Àechas, fações e fuzis, africanos
misso com as verdadeiras necessidades e
de etnia haussá enfrentaram portugue-
aspirações das camadas populares. Isso
ses e brasileiros das forças coloniais, e
se espelha com clareza não somente no
embora derrotados, demonstraram ser
rigor da repressão - a¿ nal, apenas um
não somente valentes e destemidos, mas
“incon¿ dente” mineiro morreu enforca-
também - o que é mais importante neste
do, contra quatro revolucionários baianos
contexto - possuídos de um grau de or-
de 1798 - mas também na preocupação
ganização que assustou seus poderosos
dos governantes da época em evitar que
adversários. O objetivo era simples:
notícias sobre essa revolta pudessem
apoderar-se dos navios ancorados na
chegar às outras cidades da Colônia. Era
Baía de todos os Santos e neles retornar à
o temor de que esse movimento, bem
África. Derrotada a insurreição, Antônio
mais perigoso do que uma conspiração
e Baltazar, seus principais chefes, são
de padres e poetas, pudesse contaminar
condenados à morte, enquanto outros
as massas despossuídas de outras regiões
insurretos recebem penas de não menos
do Brasil.
de cem chibatas em praça pública para
Mas a terrível repressão à Con- servirem de exemplo a outros negros que
juração de 1798 não seria su¿ ciente para ousassem sonhar com a liberdade.
96 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Isso, porém, não impediu que diferente de outra mulher negra, Luísa
outras revoltas se sucedessem em 1809, Mahin, ¿ gura destacada nas insurreições
1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, malês e que viria a ser a mãe do grande
1828, 1830. As penas de morte, depor- abolicionista e poeta negro Luís Gama.
tação e açoites em público com que se Alertadas sobre a iminente
viam contemplados seus líderes não revolta, as autoridades tomaram provi-
conseguiam intimidar os negros baia- dências no sentido de contê-la. A intensa
nos; pelo contrário, pareciam servir de repressão então desencadeada provocou
estímulo ao espírito libertário trazido e enfrentamentos mortais, ensangüentando
herdado da Mãe África, desvelando ple- os becos, as ruas, os largos e a própria
namente a crueldade do sistema que os memória da Bahia. Duzentas e oitenta
subjugava. Mas foi em janeiro de 1835 e seus pessoas foram acusadas, 194
que aconteceu, na visão dos poderosos das quais da etnia nagô. No início das
da época, a mais grave e perigosa dessas investigações, as autoridades imperiais
insurreições. O plano era engenhoso. A imaginaram, de acordo com seus precon-
rebelião deveria eclodir a 25 de janeiro, ceitos, que não passassem de crendices e
durante a festa de Nossa Senhora da instrumentos de bruxaria os documentos
Guia. Nessa madrugada, os revoltosos se escritos em árabe, incluindo trechos do
reuniriam para iniciar, em vários pontos Corão, encontrados entre os pertences
da cidade, uma série de ataques simul- dos insurretos. Não tardaram a descobrir,
tâneos, do tipo que hoje descreveríamos porém, para a sua estupefação, o papel
como guerrilha urbana. Numa segunda desempenhado por uma liderança letrada
etapa, a eles se juntariam os negros das em árabe e português, responsável por
plantações localizadas na periferia de uma rede complexa e organizada, que
Salvador. atingia a própria África, com rami¿ ca-
Quis o destino que os revoltosos ções pelos interesses britânicos da época.
fossem derrotados, não pela capacidade As sentenças foram rápidas.
de reação dos escravocratas, mas por Cinco acusados viram-se condenados à
terem sido delatados por Guilhermina morte por enforcamento: Jorge da Cunha
Rosa de Sousa, mulher nagô emanci- Barbosa e José Francisco Gonçalves, al-
pada, que decerto não compartilhava forriados, ao lado dos escravos Joaquim,
o espírito libertário de seus irmãos e Gonçalves e Pedro. Como nada ¿ casse
irmãs, mas pertencia aquela espécie de provado contra si, Pací¿ co Lucitan, uma
seres humanos, encontráveis em todas as espécie de mentor dos revoltosos, rece-
raças, que se contentam em rastejar em beu uma pena terrível: mil chibatadas
busca das migalhas dos dominadores.Tão em praça pública. Outros mais foram
Pr onunciamentos
Recebimento da Medalha Tiradentes 97

aquinhoados com penalidades semelhan- inscreve no Livro dos Heróis da Pátria,


tes - 600, 800, mil chibatadas, aplicadas al lado de Tiradentes e de Zumbi dos
diariamente, de forma parcelada, de Palmares, os nomes de João de Deus
modo a não destruir o patrimônio dos Nascimento, Manuel Faustino dos Santos
escravocratas. Demonstrações, talvez, Lira, Luís Gonzaga das Virgens e Lucas
da “benevolência” do escravismo à bra- Dantas Torres, líderes da Conjuração
sileira, como pretendem os apóstolos da Baiana de 1798, cujos segundo centená-
“democracia racial”. rio estará sendo comemorado no dia 13
A triste história da escravidão de agosto próximo.
marcou para sempre, com tintas de san- É pensando nesses heróis que
gue, a própria história deste país. Nela se escreveram com sangue os episódios
fundamenta a chaga do racismo, cancro mais belos e memoráveis dos nossos
renitente que contamina o tecido social fatos históricos que recebo hoje a Me-
brasileiro, raiz da maior parte dos proble- dalha Tiradentes. Pois essa honraria
mas mais graves que ainda hoje aÀigem pertence mais a eles do que a mim. Aos
esta nação. Mas lições de dignidade heróis negros do passado, aos guerreiros
como a epopéia dos malês ou a Conju- e guerreiras afro-descendentes de hoje,
ração dos Búzios, com seus correlatos
trans¿ ro com alegria e humildade as ho-
em cada pedaço de chão que o africano
menagens com que esta Assembléia, por
pixou no Brasil, nos balisam para as lutas
intermédio do ilustre deputado Rubens
hoje travadas pelos afrodescendentes em
Tavares, nesta noite honra o movimento
busca da igualdade com que sonharam
negro em sua brava luta por dignidade,
nossos antepassados. Para ajudar os bra-
liberdade, igualdade e justiça.
sileiros a resgatar pelo menos uma parte
de sua dívida para com esses libertários, Axé, incon¿ dentes! Axé, insur-
apresentei em outubro último o Projeto retos malês! Axé, conjurados baianos!
de Lei do Senado N 234, de 1997, que Axé, Xangô e Ogum, justiça e liberdade!
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 28 de maio de 1998
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.

Um dos legados mais terríveis da


abolição da escravatura no Brasil - que,
como não cansamos de repetir, se fez
por motivos econômicos, pouco ou nada
Solicita transcrição do artigo relacionados a motivações humanitárias
“União contra o racismo”, - foi con¿ nar a população afro-brasileira
de Vicentinho
aos estratos inferiores de nossa força de
trabalho, quando não excluí-la, pura e
simplesmente. Transformados de uma
hora para outra, como num passe de
mágica, em trabalhadores supostamente
livres, os antigos escravos, passada a
breve euforia da libertação, acordaram
para a dura realidade de um mercado de
trabalho em que o único patrimônio de
que dispunham, a força de seus braços,
estava agora longe de ser valioso. Sem
100 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

uma reforma agrária, rejeitada pelos ou de outra, ao racismo e à discriminação


abolicionistas de conveniência, não ti- racial - embora comumente desprezados
nham como trabalhar a terra em proveito nas doutas análises produzidas por uma
de sua subsistência. Mais do que isso, academia que costuma disfarçar seu viés
foram obrigados a enfrentar a desigual eurocêntrico sob a capa do “universalis-
competição com trabalhadores brancos, mo”. Trata-se, na verdade, de uma cortina
cuja vinda para o Brasil era estimulada - e de fumaça que impede os brasileiros de
por vezes subsidiada - tanto pelos países enxergar a raiz de suas vicissitudes, ao
de origem, às voltas com problemas de mesmo tempo em que se satisfazem acre-
superpopulação, quanto pelo próprio ditando ser este o paraíso das relações
Brasil, empenhado, segundo a¿ rmam raciais.
candidamente documentos da época, em Como, porém, é impossível en-
“branquear” sua população. É no mínimo ganar todo o mundo ao mesmo tempo e o
curioso ver hoje em dia descendentes tempo todo, o problema racial brasileiro
desses imigrantes, e portanto herdeiros começa a ser identi¿ cado e denunciado
dos benefícios a eles concedidos, se no plano internacional, principalmente
opondo tenazmente à adoção de polí- por obra das organizações negras, cada
ticas públicas para compensar os afro- vez mais alertas e atuantes, revelando ao
-brasileiros pelos efeitos acumulados da mundo a verdadeira face de um país eri-
discriminação de que são vítimas. Para gido sob um modelo extraordinariamente
não falarmos no con¿ sco do produto do e¿ caz de supremacia branca. Uma após
seu trabalho secular. outra, entidades como as Nações Unidas,
a Organização dos Estados Americanos,
Longe de constituir uma ex- a Americas Watch e outras têm divulgado
ceção, ou de ter sido superado com a relatórios sombrios a respeito da situação
modernização da economia brasileira, dos afro-descendentes no Brasil. Utili-
como previam alguns estudiosos, o pro- zando estatísticas de instituições o¿ ciais
cesso de alijamento e exclusão sofrido brasileiras, como o IBGE, juntamente
pelos afro-brasileiros no mercado de com o resultado da observação de técni-
trabalho tem tido, ao longo do tempo, a cos por elas enviados, essas organizações
função perversa de constituir um exér- estão pondo a nu as desigualdades raciais
cito de reserva de mão-de-obra barata, no Brasil, por longo tempo considerado
à disposição de um empresariado ávido um exemplo para o mundo, graças, em
de lucros e totalmente divorciado de sua grande parte, à rede de desinformação
responsabilidade social. Encontra-se aí a montada pelo Governo brasileiro, com o
principal fonte dos graves problemas que apoio de seus aliados na arena intelectual.
atualmente aÀigem a sociedade brasilei- Essas estatísticas mostram, por
ra, como a questão fundiária, as favelas, exemplo, com a fria e incontestável
os meninos de rua e a violência urbana. evidência dos números, a gritante dis-
Todos eles relacionados, de uma forma criminação de que são vítimas os afro-
Pr onunciamentos
Transcrição do artigo “União contra o racismo”, de Vicentinho 101

-brasileiros no mercado de trabalho, onde Qualquer membro para o qual a presente


estes ganham, em média, 50% dos salá- convenção se encontre em vigor compro-
rios pagos aos brancos. Essa diferença se mete-se a formular e aplicar uma política
mantém, com poucas variações, mesmo nacional que tenha por ¿ m promover,
quando negros e brancos apresentam o por métodos adequados às circunstân-
que os especialistas chamam de “igual cias e aos usos nacionais, a igualdade
investimento em capital humano”, ou de oportunidades e de tratamento em
seja, o mesmo nível de escolaridade e ex- matéria de emprego e pro¿ ssão, com o
periência pro¿ ssional. Da mesma forma, objetivo de eliminar toda discriminação
é maior o percentual de afro-brasileiros nessa matéria.
no setor informal da economia, em que
não existe a proteção oferecida pela Já o artigo 3o obriga os Estados-
legislação trabalhista. Tal situação se -membros a:
repete em todas as regiões brasileiras,
a) Esforçar-se por obter a colabora-
embora as desigualdades sejam mais
ção das organizações de empregadores
gritantes no Nordeste - exatamente a
e trabalhadores e de outros organismos
região que apresenta maior percentual
apropriados, com o ¿ m de favorecer a
de afro-descendentes. Não por acaso, a
cidade de Salvador - considerada uma aceitação e aplicação desta política;
espécie de África no Brasil - é, dentre b) Promulgar leis e encorajar os pro-
as capitais brasileiras, aquela em que é gramas de educação próprios a assegurar
maior a diferença de salários entre negros esta aceitação e esta aplicação;
e brancos. Mas em toda parte são as mu-
lheres negras as mais prejudicadas pela c) Revogar todas as disposições ou
discriminação, acumulando os prejuízos práticas administrativas que sejam in-
de raça e de gênero. compatíveis com a referida política;
Do ponto de vista do mercado de d) Seguir a referida política no que diz
trabalho, é relevante ressaltar o fato de o respeito a empregos dependentes do con-
Brasil ter sido recentemente denunciado trole direto de uma autoridade nacional;
pela OIT - Organização Internacional do
Trabalho, entidade vinculada às Nações e) Assegurar a aplicação da referida
Unidas, por estar descumprindo a famosa política nas atividades dos serviços de
Convenção 111, que trata da discrimina- orientação pro¿ ssional, formação pro-
ção em matéria de emprego e pro¿ ssão. A ¿ ssional e colocação de dependentes do
denúncia se deve ao fato de que, apesar controle de uma autoridade nacional;
de ser signatário dessa convenção desde
1964, o Brasil jamais se deu ao luxo f) Indicar, nos seus relatórios anuais
de implementar as ações previstas em sobre a aplicação da convenção, as medi-
alguns de seus artigos. Em especial, o das tomadas em conformidade com esta
artigo 2o, que reza o seguinte: política e os resultados obtidos.
102 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Apesar de não ter cumprido abrindo espaço a novas perspectivas na


nenhuma das obrigações assumidas ao área racial. Exemplo disso é o artigo
assinar a Convenção 111, o Brasil não “União contra o racismo”, da autoria do
deixou de enviar anualmente à OIT rela- sindicalista afro-brasileiro Vicente Paulo
tórios evasivos ou sem base na realidade. da Silva, o Vicentinho, publicado dia 13
Do tipo daquele a cuja apresentação de maio último no jornal Folha de São
tive oportunidade de assistir ano passa- Paulo, cuja íntegra reproduzo a seguir.
do, na 52a Assembléia Geral da ONU, Tem-nos indignado e incomoda-
referente à Convenção Internacional do profundamente a utilização cada vez
pela Eliminação de Todas as Formas de maior de expressões que sempre relacio-
Discriminação Racial, no qual o Brasil se nam os negros a situações e momentos
mostrava como um verdadeiro campeão ruins. Não podemos aceitar textos e
da igualdade racial, e as tímidas e hesi- discursos (até na imprensa) com termos
tantes iniciativas do Governo nessa área como “lista negra”, “a coisa está preta”,
eram descritas em tom grandiloqüente, “ denegrir” e outros.
como se fossem capazes de resolver
Essas expressões, na verdade,
todos os problemas.
dão a entender subjetivamente que “ ne-
Tem havido, contudo, algumas gro” é algo negativo, inferior e mau.
novidades alvissareiras nesse terreno. Não basta dizer que não há intenção ou
Uma delas é o engajamento do setor preconceito. Quem bate esquece. Quem
sindical na luta contra a discriminação apanha nunca esquece.
no emprego. Por muito tempo, os líderes
O poder dessas frases e expres-
sindicais, inclusive os de origem africana, sões é tão grande quanto o do termo
mantiveram-se apegados à tese da luta de “ judiar” , infeliz referência aos judeus,
classes como panacéia universal para os definidos como povo que “ maltrata”
males sociais, inclusive a questão racial. seus semelhantes. Além das piadas racis-
Segundo essa visão distorcida, originária tas e/ou machistas. É uma postura nada
de um marxismo frívolo, mobilizar os ne- adequada para quem quer construir
gros na defesa de seus direitos signi¿cava uma sociedade de iguais. Nós, negros,
“dividir a classe operária”. O remédio era temos de combater intransigentemente
esperar a revolução socialista, que, junto qualquer tipo de preconceito.
com todos os problemas, também esse
resolveria. Felizmente, a análise da expe- No que se refere ao aspecto pro-
riência histórica dos países multirraciais fissional, os negros também têm sofrido
com preconceito e perseguições.
que adotaram esse regime, bem como o
contato com o sindicalismo praticado Da dos de pesquisa Dieese/
em outras regiões do mundo, sobretudo Seade de 1994 indicam que, na região
nos Estados Unidos, acabou renovando metropolitana de São Paulo, 62,7% das
o pensamento da liderança trabalhadora, mulheres negras não terminam o curso
FOTO DO VICENTINHO

Sindicalista afro-brasileiro Vicente Paulo da Silva, o Vicentinho


Pr onunciamentos
Transcrição do artigo “União contra o racismo”, de Vicentinho 105

primário, e o analfabetismo entre elas é em 1998, 20 anos do Movimento Negro


o dobro do registrado entre as mulheres Unificado. Várias organizações lutam
brancas. A renda média das negras é contra a discriminação racial, como o
de 1,9 salário mínimo e a dos homens Conselho Nacional de Entidades Negras
negros, de 2,4 mínimos; a renda das e os Agentes de Pastoral Negros, entre
mulheres brancas é de 3,9 mínimos e a outras entidades.
dos homens brancos, de 4,2 mínimos. Nessas circunstâncias surgiu
Em quase quatro décadas, desde o Inspir (Instituto Sindical Interame-
que a discriminação racial passou a ser ricano pela Igualdade Racial), criado
infração penal, ninguém nunca cumpriu por três centrais sindicais brasileiras
pena de prisão por crime de racismo. (CGT, CUT e Força Sindical) e centrais
da América Latina e dos EUA. O Inspir
Outros dados nos indignam.
visa promover a igualdade de direitos e
Apenas 1% da população negra conse-
oportunidades nas relações de trabalho.
gue chegar aos cursos superiores. A taxa
de analfabetismo dos negros, comparada Mais do que nunca, nós, negros
à dos brancos, é o dobro: 40% contra e negras, precisamos de unidade. São
20%, respectivamente. muitos os que nos combatem. Esses
ataques partem de todas as classes,
Agora mesmo, em Belo Horizon- embasados sempre num preconceito re-
te, está sendo julgado processo movido trógrado, absurdo e criminoso. Em nome
por Vicente Batista de Souza, professor dele, milhares de irmãs e irmãos negros
do Centro Automotivo do Senai. Vicen- foram mortos barbaramente. Em nome
te, 36 anos, pai de quatro filhos, foi desse racismo maldito, somos relegados
perseguido, vigiado e caluniado várias a segundo plano na sociedade.
vezes por ser negro. Aconteceram outras
demonstrações de racismo. Por isso, nossa luta deve ser so-
lidária, tolerante e aberta a todos os que
Não suportando a pressão, Vi- combatem a discriminação e o racismo.
cente deu a volta por cima e entrou na Invariavelmente, encontramos compa-
Justiça contra os que o caluniavam. O nheiros brancos e negros nessa mesma
Senai instaurou sindicância e as denún- batalha. Nós não queremos construir
cias de Vicente ficaram comprovadas, uma sociedade de negros contra brancos,
mas ele não foi reintegrado ao emprego. ou vice-versa, mas sim de todos.
O processo continua correndo, inclusive
Assistimos, com muita alegria, à Igreja
no Tribunal Superior do Trabalho.
Católica se manifestar pedindo perdão
Obtivemos algumas conquistas aos judeus. Não seria uma boa oportu-
graças à luta corajosa de mulheres e ho- nidade para que ela fizesse o mesmo em
mens negros brasileiros. Comemoramos, relação ao povo negro?
106 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

Neste 13 de maio, que consi-


deramos dia nacional de luta contra o
racismo, façamos uma séria reflexão
sobre a luta dos negros e a esperança de
construirmos uma sociedade na qual a
alegria e o respeito não deixem espaço
para nenhum tipo de discriminação.

Axé, Vicentinho!
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 13 de agosto de 1998 Senhoras e Senhores Senadores,

Ao contrário daquilo que preten-


de impor uma ciência social comprome-
tida com a manutenção do privilégio e da
desigualdade, a História do povo brasilei-
ro tem sido recheada, nos cinco séculos
Duzentos anos da de existência deste País, de exemplos
Revolta dos Búzios. do heroísmo e da bravura de homens
e mulheres dedicados à nobre causa da
liberdade. Tem sido assim desde o cha-
mado “descobrimento”, quando os povos
indígenas, então numerosos, resistiram à
cruel invasão portuguesa, pagando por
isso um imenso e irresgatável tributo
em sangue. Outro foco permanente de
insurreições e sublevações contra a tira-
nia no Brasil foi a população africana e
afro-brasileira escravizada, que, mesmo
submetida a toda sorte de humilhações e
crueldades, jamais aceitou as condições
subumanas que lhe foram impostas, e
108 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar

nesse processo acabou produzindo algu- Sob tortura e ameaças de morte, Luís
mas das mais belas páginas da História Gonzaga é obrigado a delatar os outros
deste País. Uma delas, a epopéia de Pal- companheiros.
mares, ¿ nalmente vem sendo reconheci- Como seria de esperar, a re-
da pela historiogra¿a o¿ cial, graças à luta pressão que sobre eles se abate é dura e
do Movimento Negro e de seus aliados na cruel - mas acima de tudo seletiva. Pois
academia e na política. Em conseqüência dos cerca de 600 conspiradores presos,
disso, o grande líder Zumbi ¿ gura hoje, apenas quatro são condenados à pena
ao lado de Tiradentes, no Livro dos capital. Todos negros. Prisão, castigos
Heróis da Pátria. Cabe agora estender corporais e degredo na África são as pe-
esse reconhecimento a outros heróis da nas reservadas aos demais participantes,
luta negra no Brasil, como é o caso dos como o professor Muniz Aragão, autor
protagonistas da Conjuração Baiana de do hino revolucionário, e os tenentes
1798, mais conhecida como Revolta dos
José Gomes de Oliveira e Hermógenes
Alfaiates, ou Revolta dos Búzios, que
Francisco. Já o médico Cipriano Barata
neste dia comemora duzentos anos.
recebeu sentença mais branda e, após
A 13 de agosto de 1798, panÀe- cumprir a pena, recuperou sua liberdade.
tos escritos à mão, distribuídos princi-
Chamada de “Revolta dos Bú-
palmente em igrejas e centros de prática
zios” porque os conspiradores costuma-
religiosa, convocavam a população de
vam usar uma pequena concha de búzio
Salvador a se levantar contra o jugo
português. Embora surpreendesse a presa à corrente do relógio, a Conjuração
maior parte do povo, o fato apenas con- Baiana - tal como a Conjuração Mineira -
¿ rmava uma denúncia feita meses antes inspirou-se nos ideais de liberdade, igual-
pelo padre José da Fonseca Neves ao dade e fraternidade que haviam norteado
governador Fernando José de Portugal e a Revolução Francesa. Os revoltosos
Castro. Segundo a denúncia, o cirurgião pretendiam “reduzir o continente do
baiano Cipriano Barata seria o propa- Brasil a um governo democrático”, o que
gandista e chefe de uma sedição contra para eles implicava abolir a escravidão
o Governo Imperial, reunindo, em sua e a discriminação racial, estabelecer a
maioria, modestos artesãos, ao lado de liberdade de culto, abrir o porto de Salva-
mulatos e negros forros. Conduzidas pelo dor a navios de todas as nações e dividir
governador, as investigações conduzem entre a população “tudo que houvesse na
à residência do soldado Luís Gonzaga capital”. Uma das proclamações do mo-
das Virgens e Veiga - incriminado pela vimento, divulgada em plena revolução,
caligra¿ a - onde se descobrem livros e declarava textualmente: “Quer o povo
documentos que comprovam a sedição. que todos os membros militares de linha,
O alfaiate João de Deus, o soldado Lucas milícia e ordenanças, homens brancos,
Dantas e o lavrador Luís Pires são tam- pardos e pretos concorram para a liber-
bém presos, devido a outras denúncias. dade popular”. Em caso de resistência,
Pr onunciamentos
Duzentos anos da Revolta dos Búzios 109

o governador seria executado. É fácil foi a preocupação dos governantes em


perceber o contraste entre esse programa evitar que notícias sobre a Conjuração -
radical e o da Conjuração Mineira, cujo bem mais perigosa que um movimento
conteúdo, bem menos consistente, re- de padres e poetas - pudesse chegar às
Àete a composição de sua liderança, que outras cidades da Colônia, contaminando
reunia burgueses, literatos e sacerdotes com o germe da liberdade as populações
brancos, destituídos de compromissos despossuídas de outras regiões do País.
para com as necessidades e aspirações Desse modo, os mártires da Conjuração
das camadas populares. Basta lembrar Baiana - diferentemente de Tiradentes
que os conjuradores mineiros sequer e de outros heróis consagrados pela
cogitavam de extinguir a escravidão. história o¿ cial - não são hoje nomes
A diferença entre os dois mo- de cidades nem viraram estátuas em
vimentos pode ser medida pelo grau praças públicas. Até mesmo nos livros
da repressão que sobre eles se abateu: didáticos, seus feitos merecem apenas
enquanto apenas um “inconfidente” citações diminutas, que não reÀetem sua
mineiro morreu enforcado, quatro foram real signi¿ cação na história das lutas do
os conjuradores baianos que tiveram a povo brasileiro.
mesma sorte. Outro reÀexo do temor
despertado pela Revolta dos Búzios Axé!
“Thoth” entr evista Thoth – Gostaríamos de ter uma
panorâmica da sua entrada no mundo
Celestino* das artes plásticas, fale um pouco a esse
respeito.
Celestino – Desde criança eu tra-
balhei em jornal, eu comecei no Diário
da Noite e isso me favoreceu muito,
porque nos sessenta tive que travar um
diálogo muito duro com a crítica de arte
para poder quebrar esse muro. Na reali-
dade eu me servi de uma coluna diária
durante dois anos.
Thoth – Você começou como jor-
nalista ou em outras atividades do jornal?
Celestino – Nos anos setenta eu
estava assinando uma coluna de artes;
mas eu comecei ao mesmo tempo. Quero
dizer, na Tupi comecei com um programa
em que colaborava com o suplemento
juvenil do Diário da Noite, mas também
Éle Semog ¿ z um cenário para um programa de Na-
114 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

tal, então publicamente as coisas foram Thoth – A sua chegada em Paris


concomitantes. foi logo depois de 1968, exatamente
quando tudo andava muito quente e a
Thoth - Ao longo do seu trabalho
poeira ainda estava no ar. Como foi esse
você tem dado mais ênfase à pintura?
contato com outros artistas do mundo?
Celestino – Considero que esgotei
Celestino – Tenho a impressão de
todo o período da pintura e resolvi fazer
que, quando saí daqui com a passeata dos
intervenções na escultura que eu tinha
100 mil, com o Movimento Negro come-
deixado de lado e que havia aprendido a
çando a discutir seus problemas, cheguei
trabalhar desde os 16, 17 anos.
lá e encontrei uma continuidade do que
Thoth – A sua ida do Brasil para estava vivenciando aqui; tanto que em
a França foi em busca daquela velha termos políticos, quando Cohn-Bendit
história de que na Europa é que as coisas foi entrevistado por uma televisão fran-
acontecem, foi por uma aventura de artis- cesa para explicar o movimento de 1968
ta ou por alguma questão mais especí¿ ca do qual era líder, houve um momento em
sobre o fazer arte no Brasil? que ele disse assim: “Atenção, no Brasil
se passaram coisas também.” Então, foi
Celestino – O que posso dizer é
uma continuidade, mas hoje, quando eu
que a crítica de arte brasileira mais uma
volto, vejo uma descontinuidade. Mas
vez falhou no cumprimento do seu dever,
isso acho que é geral, porque em 1994 um
aquela crítica que era assinada em todos
dos principais semanários da Alemanha,
os jornais e hoje não existe mais. Falhou
o Der Spiegel, fez uma entrevista com
com uma grande representante das artes
duas mil pessoas com idade acima de 14
plásticas brasileiras, que era a Ceres anos, com cem perguntas das mais di-
Franco, que tinha favorecido o Antônio versas, como por exemplo sobre Pilatos,
Dias... e eles da crítica não foram ao en- ou o preço da manteiga, e quase ninguém
contro. A minha amiga da Petit Galerie, soube responder.Eles só sabiam duas
Luleca [Maria de Lourdes], sabia que coisas: sobre os jogos em computador
eu escrevia no jornal, telefonou para e sobre esportes. Nem sobre Kant, que
mim e fui entrevistar essa mulher muito era alemão, eles conseguiram responder.
importante que é a Ceres Franco. No
decorrer da entrevista ela ¿ cou curiosa Thoth – Então, se 1968 foi uma
e disse que nunca tinha visto artista falar revolução, a contra-revolução do sistema
tanto, fazer tanto discurso, por isso ela foi punir com a alienação esses milhões
queria ver a minha obra. Depois que viu de jovens espalhados pelo mundo que
ela ¿ cou admirada e me convidou para nasceram depois de 1968?
fazer uma exposição na França, então fui Celestino – Foi exatamente isso
para expor na galeria dela e também na que aconteceu, pois essa situação da
bienal de Manton, que teve o patrocínio Alemanha é alarmante. Na França ocor-
da princesa de Mônaco. re a mesma coisa. Durante os anos de
Rien: nada, de Celestino. Quadro exposto na instalação Favela, Métis Les Halles (Paris, 1981)
Thoth entr evista Celestino
Éle Semog 117

1980 o movimento estudantil não queria coisas que não duravam, coisas bem
nenhuma vinculação com o movimento revolucionárias. Para esses, ele seria um
estudantil de 1968. acadêmico. No Brasil, o que acho é o se-
guinte: cheguei aqui agora, depois de 20
Thoth – As galerias, os salões, as
anos, e a coisa está muito parada, muito
bienais de uma forma geral têm obtido
morna. Não existe debate... não está
muito sucesso. Isso representa a existên-
acontecendo. Agora mesmo, no Centro
cia de novas linguagens na arte brasileira,
Cultural da Light, há uma exposição inte-
o público está respondendo?
ressante de um artista americano, passei
Celestino – Eu vivi, realmente, lá rapidamente, e ele está trabalhando
num meio de alternativos e não de com luzes, com neon, coisa que nós já
imposição de uma linha ou de outra, fazíamos em 1960. Respeito a pesquisa
porque é impossível ser de outra forma dele em termos de cor. Trabalhar a luz
naquela coisa que é Paris. Por exemplo, com uma cor, mas aqueles neons... nós
o escultor Constantin Brancusi, que em já tínhamos colocado isso, é necessário
muitas das suas obras, podemos ver, ir um pouquinho mais longe.
era inÀuenciado pela arte africana, era Thoth - Há um impasse na arte
debochado pelo Picasso... Picasso ria na brasileira?
cara dele. O garoto pródigo, que é bem
africano, obra de 1914/15, hoje é con- Celestino – Eu tenho a impressão
siderado um renovador. André Breton, de que aqui ¿ cam esperando o que está
também vaiou Brancusi. André Breton acontecendo lá fora. O que acontece é
que havia descoberto com o surrealismo que não existem os meios de difusão,
o negro e a negritude em Aimé Césaire, que são muito caros. Está se fazendo
mas em 1942 ele voltou atrás e reconhe- muita coisa, mas essas pessoas não têm
ceu a importância de Brancusi. Então, os meios para mostrar isso. Mesmo em
aquelas tendências que estavam sendo alguns salões que eu já considero o¿ -
marcadas naquela época, o surrealis- ciais, como o salão do Centro Cultural
mo, o dadaísmo, etc., não conseguiram Banco do Brasil, passam coisas inte-
ressantes, mas, acabou a exposição, não
impedir que aparecesse esse verdadeiro
se fala mais, e infelizmente não existem
criador de referências na escultura, que
revistas de arte, especializadas, que pos-
foi ironizado por todo mundo.
sam veicular essas coisas. Cheguei no
Thoth – Em termos de arte bra- Rio de Janeiro em pleno verão e o que
sileira, existe uma consolidação de vi foi uma tendência para a praia, nada
escola ou cresceram as buscas pela arte como o que ¿ zemos em 1960 e 1970 em
alternativa? termos de arte.
Celestino – O Brancusi fez uma Thoth – Numa rápida observação
arte que não é temporária, porque no do seu trabalho, constata-se que a questão
dadaísmo e no surrealismo eles faziam racial está diluída e não aparece com a
118 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

ênfase que tradicionalmente se tem ob- para isso tudo e parti, exatamente, para
servado na obra de outros artistas negro uma postura dadaísta, para uma postura
com que temos conversado. No Brasil, de ir à raiz das coisas, e o que tem de
haveria uma ou mais características que negro sai junto comigo. Eu não escrevo
distinguem o artista e a arte afro-brasi- mais, eu não conto mais, eu não narro
leira do ponto de vista cultural? mais. A simbologia afro pode ser um
Celestino – Eu acho que existem. sentimento, sensibilidade, herança, aqui-
Nos anos 1960, houve um crítico que já sição, conscientização, como no caso de
morreu e eu não quero falar o nome, ele Abdias Nascimento, que tem isso tudo. A
chegou para mim e disse: “Como você arte de Abdias é cultural, uma poemação
desenha muito bem, por que você não sobre a pintura e a reinvenção dos orixás.
faz uma escultura africana para eu poder Logo, metalinguagem. A arte de Abdias
fazer a sua publicidade no jornal?” Eu é crítica da pintura enquanto saber. En-
recusei porque era arti¿ cial.... quanto conhecimento afro-brasileiro.
Enquadrando-se na ¿loso¿a especulativa
Thoth – Deve ter sido o Walmir de Kant e hegeliana, porque se conclui
Ayala? da estética de Hegel, ela não é cópia da
Celestino – Exatamente. (Risos) natureza, ela é cultural, espiritual, ela dá
Para mim, o Aguinaldo dos Santos era conta de um Estado, de uma comunidade
autêntico. Eu ¿ z alguma coisa... a minha espiritual: a afro-brasileira. E, mais uma
exposição na Ceres Franco se chamou vez, ainda kantiana, como enriquecimen-
Negritude, mas eu trabalhei mais com to do conhecimento latino-brasileiro.
o garfo de Exu, com a Pomba Gira. O E nesse ponto a arte de Abdias retoma
garfo de Exu sendo muito geométrico e a a tradição de saber e prática. Também
minha pintura sendo muito ¿gurativa, em em Kant. Como os pesos ¿ losó¿ cos e
termos de linguagem plástica havia um geométricos de pesar ouro das civiliza-
choque entre o geométrico e o naturalis- ções africanas ashanti, de Gana, e kan,
mo. Então eu tinha que resolver isso. E na da Costa do Mar¿ m. Como esses pesos
Europa pegavam esse garfo de Exu como artísticos ¿ losó¿ cos, a arte de Abdias
Netuno, isso implicava uma diluição da instaura uma nova leitura do saber afro-
minha proposta... Então achei o seguinte: -brasileiro.
eu estava no país do dadaísmo, que tinha
Thoth – Isso signi¿ ca que você se
negado a arte totalmente, que tinha ido ao
transformou num ser universal, vivendo
fundo das coisas... Resolvi dar as costas
toda a expansão africana?
para tudo que estava fazendo, inclusive
até uma pintura com elementos clássicos, Celestino – Isso, isso... Inclusive
com a minha ¿gura dentro do quadro com eu estou satisfeito porque a exposição
o sexo de fora, no Banho turco de Angra, que eu ¿ z na Light em 1996, com papel,
que eu subverti com a minha presença com cartão, com as cores todas, é em
dentro do quadro. Resolvi dar as costas princípio totalmente anticomercial. A
Garrafa, de Celestino. Madeira, papel machê e vidro (Paris, 1986)
Thoth entr evista Celestino
Éle Semog 121

pessoa que estava tomando conta, era Celestino – Por isso eu disse que
um negro protestante, disse que estava o trabalho não era comercial aqui, mas
gostando muito daquela exposição por- é perfeitamente comercial lá.
que era uma exposição de raiz. Foi isso Thoth – Como os críticos reagiam
que ele disse . Devido àqueles negros, aos seus trabalhos?
aqueles vermelhos, àqueles contrastes e
devido ao fato de eu ter trabalhado uma Celestino – Quando eu fazia as
exposições eles noti¿cavam nos jornais...
arte bruta, praticamente bruta. Aliás, eu
mas a verdade é que a di¿ culdade sempre
participei de um nomenclatura de arte
existe, porque já havia os grupos insta-
bruta na Europa.
lados. Por exemplo, quando a abstração
Thoth – Você fez uma exposição lírica invadiu Nova York e Paris nos anos
não-comercial, o mercado de compra- 1940, aí a abstração geométrica veio para
dores hoje é conservador, existe uma o Brasil trazida por um francês e instau-
lógica para esse mercado, é um mercado raram o concretismo até os anos de 1960.
racista? Não é que eu critique o concretismo, mas
nós ¿ camos parados só ali. Enquanto
Celestino – Ele é conservador, mas isso, a galeria representante da abstração
também reage de formas estranhas, pois geométrica continuou vendendo, conti-
eu já vendi muitas obras de papel. Por nuou com a opção alternativa, entretanto
exemplo, a obra de Abdias Nascimento ela não era mais a dona da cocada preta.
é cultural, mas Chagall, mais do que Isso é diferente porque os espaços lá são
consagrado na Europa, se fosse negro e polivalentes.
nascido no Brasil, teria a sua arte cultural
Thoth – Nesse caso, podemos
considerada como ingênua. O brasileiro
entender que, entre a semana de 1922 e
necessita urgentemente, com a aproxi-
os anos de 1960, não aconteceu nada?...
mação do ano 2000, sair da mentalidade
colonial do século XIX em relação ao Celestino – Claro que se fez e
negro. Na França, a contradição entre muito. Tanto que eu sou formado por isso
o francês da metrópole e os da colônia tudo... O que eu digo é que Paris é mais
é que esses últimos estão com a cabeça vasta, não é só a capital; toda a periferia
ainda no século XIX. O Brasil não pode de Paris. Todos os movimentos dos su-
¿ car aí como está porque tecnológica e búrbios são muito fortes. Quais são os
culturalmente está mais avançado do que movimentos dos subúrbios daqui que po-
dem inÀuenciar a capital? Nenhum. Mas
as colônias francesas.
lá a estrutura política é diferente. Cada
Thoth – Então nós podemos con- bairro tem a sua prefeitura independente
cluir que a elite brasileira estará sempre e os representantes conselheiros também
atrasada em relação às elites dos centros estão na Câmara. O que o português fez
do mundo? aqui em termos de estrutura política e
122 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

administrativa é uma coisa nula. Talvez Celestino – Num período que eu


tenha havido um movimento desses na era ainda estudante e expunha certos
nossa história... Preciso saber se o movi- trabalhos ¿gurativos, mostrando trabalha-
mento de autonomia das províncias que dores, também havia um outro grupo de
Rui Barbosa tentou impedir não daria estudantes mostrando seus poemas e nós
em qualquer coisa semelhante ao que eu realmente tivemos que correr, que fugir...
vi na Europa. Uma dessas vezes foi num lugar chamado
Thoth – Você tem tido contato com Clube de Arena de Artes, na Rua Barata
artistas das novas gerações, com algum Ribeiro, em Copacabana. No Instituto de
movimento? Belas Artes, no Parque Lage, também che-
Celestino – Tenho visto algumas garam e fotografaram os nossos trabalhos.
coisas isoladamente, livros, quadros, En¿ m, havia uma pressão.
mas movimento não encontrei nenhum; Thoth - É possível se pensar, se
já estou aqui há três anos e se houvesse falar em arte engajada nos dias de hoje?
eu teria pelo menos notícia.
Celestino – Esse debate foi muito
Thoth – Você disse anteriormente intenso nos anos 1960, e é uma coisa
que o surrealismo era no seu princípio muito controvertida. Quando aconteceu
uma arte passageira, hoje não existe uma
uma exposição no Museu de Arte Mo-
tendência, um caminho para a arte. O
derna da Pop Art Argentina, a maneira
artista está vivendo num tempo incapaz?
como aqueles trabalhos foram apresen-
Celestino – Eu acho que nós es- tados, com telas rasgadas, com telas de
tamos passando por um momento... Eu cores berrantes com se fossem ventres
senti isso na Europa. Ninguém mais estraçalhados, aquilo foi uma arte enga-
tem direção de nada, ninguém tem mais jada, foi uma arte revolucionária sem ser
escola. De certa forma, isso pode ser descritiva. E vou citar Barrio, que é um
positivo. Quanto ao surrealismo, o que
artista plástico brasileiro de vanguarda,
quero dizer é que ele deixou inÀuências
que comprou carne, deixou essa carne
até hoje, mas o que aconteceu é que o
apodrecer, embrulhou, levou para um ter-
surrealismo fez um grande sucesso por
reno baldio e veio o corpo de bombeiros,
causa do escândalo e o comercializaram
demais; então, com qualquer coisa a polícia... E naquela época nós estávamos
pessoa se dizia surrealista e houve a ba- vivendo os esquadrões da morte. Então
nalização. Mas é inegável sua inÀuência você vê que a arte pode ser engajada
em várias escolas e em várias pessoas. sem ser descritiva, sem ser realista, e de
repente é muito mais violenta.
Thoth – A década de 1960 é muito
presente em toda a sua fala. Como foi Thoth – Quase não se sabia o que
em termos de censura, de impedimentos acontecia com os artistas russos, suas
políticos? expressões, seus fazeres. Isso pesou?
Casa pagode chinês robot - moustis. Instalação de Celestino em Amiens (Norte)
para a recreação de crianças durante um mês
Thoth entr evista Celestino
Éle Semog 125

Celestino – Eles aconteceram e por estava em Paris e já se falava muito em


acaso eu gostaria de citar dois deles: Na- Frida Kallo, principalmente as feministas.
talja Gontscharowa e Michail Larionow. Em 1986 eu fui contatado pela Segunda
Eles viveram no início do século e foram Bienal de Cuba para fazer uma seleção
os precursores da arte da pintura corpo- de artistas da diáspora, a partir de Paris,
ral. Eles pintavam seus corpos e faziam a ¿m de enviar para &uEa. ( u ¿] isso e
um grande escândalo em Moscou nessa participei da Bienal. Mas houve gente
época. Inclusive, com uma pesquisa de que simplesmente não quis participar e
arte que chamavam de primitiva, eles se outros que de fato não podiam por conta
inspiravam em cartazes russos também. da repressão em seus países.
Influenciaram depois um outro artista
Thoth - O que está faltando para
que veio a fazer Cruz branca sobre fun-
um verdadeiro agito nas artes plásticas?
do branco, que é o Kasimir Malewitsch,
considerado um dos precursores da arte Celestino – Quando cheguei aqui
abstrata concreta, isso nos anos 1920/30. de volta da Europa, fui convidado para
Um fato importante é que em plena Re- participar do I Salão Zumbi de Artes
volução Russa o próprio Lenin, que tinha Plásticas. Participei numa categoria
uma certa sensibilidade, protegeu muito o especial, e agradeço por terem me con-
Malewitsch. Depois que o Lenin morreu vidado, mas o que eu acho mesmo é
ele foi perseguido, pois não fazia uma que os artistas devem se encontrar mais,
arte edi¿cante. porque os organizadores dos eventos es-
tão preocupados com outras coisas e os
Thoth – Os europeus têm se ma-
artistas só olhando os organizadores não
nifestado de forma exótica em relação à
vão conseguir avançar. Temos que fazer
obra de Frida Kallo, como se ela fosse a
as coisas sozinhos, que um dia ela brota.
expressão máxima, ou o resumo da arte
da América Latina. Você acredita na pos- Thoth – O artista plástico brasi-
sibilidade de uma arte que só traduza um leiro está vivendo uma circunstância de
Continente? ÀaJ elo"
Celestino – Tenho a impressão de Celestino – Eu diria que sim,
que se pode achar uma identidade na arte porque existe uma outra coisa e não
da América Latina. Um artista francês, podemos ser sonhadores e idealistas. Na
certa ocasião, observou, inclusive olhando França, todos esses trabalhos que você
também o meu trabalho, que os pintores viu e todas as encomendas foram até
da Am rica / atina eram inÀuenciados 1989, que foi a época do bicentenário
pela Europa, mas colocavam tudo de da Revolução Francesa. Inclusive eu fui
forma ridícula, en dérision.... Era isso convidado para decorar com temas da
que ele via e eu inclusive não via. Temos revolução a cidade de Bagnolet. Aliás,
que considerar que esse México da Frida, devo citar que em 1988 eu decorei o
chegou com muito peso lá na Europa. Eu Circo do Inverno com símbolos negros
126 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

brasileiros comemorando a passagem sob os meus olhos, então eu tenho um


que vocês estavam fazendo aqui, do projeto de ocupação artística da cidade.
centenário da Abolição da Escravatura... Como Pedro Álvares Cabral chegou aqui
Então, você vê que os jornais cobriram, e ocupou, eu vou fazer uma ocupação ar-
com a coordenação da socióloga brasilei- tística, porque há muita confusão, muita
ra Lúcia Clapp. Você vê que eu passo da violência, muitos assaltos... O artista tem
decoração da Abolição para a Revolução que ocupar esta cidade.
Francesa com a maior tranqüilidade, Thoth – A burguesia e o poder
porque eu não estou mais preocupado público aqui no Rio de Janeiro ocupam a
com ninharias... Houve gente que não cidade do Centro para a Zona Sul. Subúr-
entendeu por que o prefeito estava me bios, nem pensar, favelas, muito menos.
dando, a mim como estrangeiro e negro, A ocupação que você pretende vai nessa
a decoração da cidade. Mas o prefeito me linha de raciocínio cultural?
conhecia, sabia o que eu pensava e disse
que eu podia fazer, porque inclusive eu Celestino – Quando se ocupa uma
desenhava. Foi um sucesso. Você vê que cidade, se toma conta dela. Uma ocupa-
passo de uma coisa para outra sem que ção signi¿ ca que os túneis e as favelas
estarão ocupados. Não vou dar detalhes,
isso afete a minha obra, pelo contrário,
mas o meu projeto vai fazer isso. Ocupar
contribui para trazer outras cargas para a
artisticamente uma cidade tem que ser
minha arte, que também leva cargas para
uma ação de vanguarda, em todos os
fora. Mas o que quero dizer é o seguin-
espaços, mas eu não posso dizer agora
te: sem dinheiro, sem investimento do
como vai ser.
governo, é difícil a arte plástica viver. E
para não haver panelinha deveria ser por
setor, cada cidade, cada distrito...
* Celestino (Ignácio de Souza). Artista plásti-
Thoth – Existem leis de incentivo co, escultor e redator de arte, expôs no Brasil,
à cultura nos níveis municipal, estadual no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro,
no Salão de Arte Moderna, ao lado de Ivan
e federal. Você já buscou ser bene¿ ciado Serpa, Escosteguy e Vergara. Na Europa, na
por essa legislação? Galeria Isy Brachot, em Bruxelas, na Galeria
Esculturas e na Galeria 1900/2000 de Marcel
Celestino – Ainda não busquei Fleiss, em Paris, entre muitas outras. Como
essas leis e nem sei como elas funcio- em Nova York e na comemoração da Expo-
sição Novo Mundo, no Canadá, ao lado de
nam, mas tenho um projeto, que não Salvador Dali, Delvaux, Botero, Warhol e
vou detalhar aqui, só vou dizer o que é. outros. E dos brasileiros Gerchman e Ângelo
Como esta cidade está muito confusa, de Aquino.
Violência, No meio de uma conjuntura
eleitoral realizamos nesses dias a Con-
cidadania e venção do Movimento de Mulheres do
PDT, acalentados pela perspectiva da
dir eitos humanos* unidade popular de esquerda e natural-
mente pela esperança de vitória dessas
forças populares encarnadas na chapa
Lula-Brizola.
Nós, mulheres, quando traze-
mos reÀexões sobre os mais diversos as-
suntos, estamos numa posição diferente
da que estávamos na saída da ditadura.
Hoje já conquistamos algumas posições
estratégicas e podemos trazer aqui um
olhar feminino sobre nossas experiên-
cias em diversos campos. Não quero
deixar de, sem perder a especi¿ cidade
do assunto, traçar um panorama geral
do tema cidadania, violência e direitos
humanos.
É impossível compreender o
quadro geral dos direitos humanos no
Vera Malaguti S. W. Batista** Brasil sem precisar historicamente a
128 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

articulação do direito penal público a e do subemprego, o rebaixamento dos


um direito penal privado, a partir do salários e da renda per capita. Todo esse
regime escravocrata, na implantação de quadro neoliberal atinge níveis ainda
um sistema penal genocida, cúmplice das mais dramáticos na marginalização pro-
agências do Estado imperial-burocrata funda das classes urbanas. Estas massas
no processo de homicídio, mutilação e urbanas empobrecidas num quadro de
tortura da população afro-brasileira. As redução da classe operária, de pobreza
matrizes do extermínio e da desquali¿ ca- absoluta, sem um projeto educacional,
ção jurídica fruti¿cam na implantação da sem condições sanitárias, sem moradia,
ordem burguesa no ¿ nal do século XIX são a clientela de um sistema penal que
e na recepção da doutrina de segurança reprime por meio do aumento de presos
nacional no século XX, nas políticas sem condenação, dos fuzilamentos sem
urbanas de apartação e nas campanhas processo, da atuação constante dos gru-
de lei e ordem. É neste quadro que se pos de extermínio.
estabelece a concepção de cidadania
É sobre os setores mais vulne-
negativa, enunciada pelo companheiro
ráveis que recai a violência cotidiana.
Nilo Batista, que se restringe ao conhe-
No mimetismo do neoliberalismo latino-
cimento e exercício dos limites formais
-americano, a destruição do Estado e das
à intervenção coercitiva do Estado. Esses
políticas sociais não afeta esse sistema
setores vulneráveis, ontem escravos, hoje
penal seletivo e exterminador. Melhor
massas marginais urbanas, só conhecem
dizendo, a grande política social do neo-
a cidadania pelo avesso, na “trincheira
liberalismo é a política penal. A qualquer
auto-defensiva” da opressão dos orga-
diminuição do seu poder os meios de
nismos do sistema penal.
comunicação de massa se encarregam de
Trabalhando os conceitos uti- difundir campanhas de lei e ordem que
lizados por Darcy Ribeiro (atualização aterrorizam a população e aproveitam
histórica e aceleração evolutiva), Eugê- para se reequipar para os “novos tem-
nio Raul Zaffaroni (jurista e militante ar- pos”. Os meios de comunicação de mas-
gentino pelos direitos humanos) descreve sa, principalmente a televisão, são hoje
o sistema de controle social da América fundamentais para o exercício do poder
Latina como produto da transculturação de todo o sistema penal, seja através dos
protagonizada primeiro pela revolução novos seriados, seja por intermédio da
tecno-cientí¿ ca. O marco dessa trans- fabricação de realidade para produção de
culturação e deste sistema de controle indignação moral, seja por intermédio da
social tem sido, século após século, o fabricação de estereótipos do criminoso.
genocídio. Na atual conjuntura da revo- No Brasil, esse papel é magni¿cado pelo
lução tecno-cientí¿ ca observamos o en- escandaloso monopólio das Organiza-
fraquecimento do Estado com o colapso ções Globo, favorecido inescrupulosa-
das políticas, o aumento da desocupação mente pela ditadura militar e que hoje
Guerreiro Ramos, sociólogo e professor, foi um dos colaboradores e teórico do Teatro Experimental do Negro
Violência, Cidadania e Dir eitos Humanos
Vera Malaguti S. W. Batista 131

obstaculiza a formação da opinião para a vel pela repressão à resistência à dita-


constituição de uma tendência favorável dura militar dos anos setenta no Brasil
à implantação de políticas democráticas e responsável direto pela execução de
de segurança pública. Um exemplo cruel Carlos Lamarca, um dos líderes das for-
do poder cultural da TV Globo é o fato ças que ousaram se contrapor ao golpe
de que na noite da célebre chacina da militar de 1964. Este personagem lidera
Candelária, na qual foram mortos sete hoje as forças de Segurança Pública do
meninos de rua, a emissora transmitia Rio de Janeiro. Fartamente denunciado
um ¿ lme de Charles Bronson cujo tí- pelas entidades de defesa dos direitos
tulo foi sugestivamente traduzido para: humanos (nacionais e internacionais) o
Desejo de matar 5. Leonel Brizola tem governo do Estado promove hoje uma
sido o grande adversário e denunciador matança o¿ cial, estabelecendo promo-
deste poder, e por isso tem sido também ções e aumentos salariais para policiais
perseguido implacavelmente pela Rede. que se envolvam em confrontos diretos.
O papel avassalador deste aparato de Segundo a Americas’s Watch, o núme-
telecomunicações encobrindo infor- ro de civis mortos pela polícia militar
-mações, criando pânico arti¿ cal que aumentou de 3.2 ao mês para 20.55
conduz a políticas apartadoras tem que durante a gestão do General na Secre-
ser denunciado como responsável direto taria do Rio de Janeiro a partir de maio
por políticas genocidas de segurança de 1995. Somente durante a semana da
pública. visita do papa ao Rio de Janeiro, em ou-
tubro, foram mortos doze suspeitos por
O Governo Federal brasileiro apenas um batalhão da Polícia Militar
tem hoje uma política ambígua com rela- do Rio de Janeiro. A mídia monopoli-
ção ao assunto, com o discurso numa di- zada e comprometida mantém fora das
reção e a prática na outra. O discurso está manchetes esse genocídio silencioso e
representado por um Plano Nacional de consentido.
Direitos Humanos que só se realizou no
Diário O¿ cial; a prática foi entregue, no O mito das droga tem sido um
contexto de negociações parlamentares instrumento de violação constante dos
para favorecer a reeleição, a um Ministro direitos humanos na América Latina. Há
da Justiça cuja primeira declaração foi uma determinação estrutural regulada
leniente e quase paternal com a violência por leis de oferta e de demanda concomi-
policial e que reuniu todos os secretários tante a uma carga ideológica e emocional
de Segurança Pública dos Estados para disseminada pela mídia e acolhida pelo
exigir dureza e intransigência contra o imaginário social a partir de uma estra-
Movimento dos Sem-Terra. No Grupo de tégia dos países capitalistas centrais.
Trabalho para a reformulação das polí- A disseminação do uso de coca-
cias no Brasil, destaca-se a ¿gura sinistra ína trouxe como contrapartida o recru-
do General Nilton Cerqueira, responsá- tamento da mão-de-obra jovem para a
132 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

sua venda ilegal e constituiu núcleos de poneses colombianos, sejam imigrantes


força nas favelas e bairros pobres do Rio indesejáveis no Hemisfério Norte.
de Janeiro. Aos jovens de classe média,
En¿ m, decidimos trazer a esta
que a consumiam, aplicou-se sempre o
reunião não as últimas séries estatísti-
estereótipo médico e aos jovens pobres,
cas das históricas violações aos direitos
que a comercializavam, o estereótipo
humanos no Brasil, mas sim o sentido
criminal. Este quadro propiciou um
colossal processo de criminalização de genocida que tem a nossa inserção na
jovens pobres, que hoje superlotam os globalização e no modelo dito neoliberal.
sistemas de atendimento aos adolescen- O nosso partido, o Partido
tes infratores. Democrático Trabalhista, é o que tem
A visão seletiva do sistema a maior identificação popular com a
penal para adolescentes infratores e a luta pelos direitos humanos no Brasil.
diferenciação no tratamento dado aos Leonel Brizola tem sido um heróico
jovens pobres e aos jovens ricos, ao lado símbolo dessa luta. Seja pela pioneira
da aceitação social que existe quanto ao implantação da reforma agrária no sul
consumo de drogas, permite-nos a¿ rmar do País, seja pela consecução do projeto
que o problema do sistema não é a droga de implantação de uma escola pública
em si, mas o controle especí¿ co daquela democrática e de qualidade oferecendo
parcela da juventude considerada peri- igualdade de acesso e condições para
gosa. crianças e adolescentes pobres no Rio de
Janeiro, seja pela implantação de projetos
O processo de demonização do
pioneiros de contenção da truculência
trá¿ co de drogas fortaleceu os sistemas
de controle social aprofundando seu policial no âmbito das políticas de segu-
caráter genocida. O número de mortos rança pública de um Estado democrático.
na “guerra do trá¿ co” está em todas as Historicamente, no Brasil, as
bancas. A violência policial é imedia- políticas de Segurança Pública têm-se
tamente legitimada se a vítima é um constituído de políticas de controle social
suposto tra¿ cante. dirigidas aos setores mais vulneráveis
O mercado de drogas ilícitas de nossa sociedade. Isto tem a ver com
propiciou por um lado uma concentração nossa herança escavocrata, tendo sido
de investimentos no sistema penal, uma aprofundada pela ditadura militar. A po-
concentração dos lucros decorrentes do lícia no Brasil sempre cuidou de manter
trá¿co e, principalmente, propiciou argu- sob controle, a ferro e fogo, as classes
mentos para uma política permanente de populares. O governador Leonel Brizola
genocídio e violação dos direitos huma- sempre foi um símbolo de resistência a
nos contra as classes sociais vulneráveis: esta opressão cotidiana que os sem-terra
sejam eles jovens negros e pobres das e os favelados de nosso país tão bem
favelas do Rio de Janeiro, sejam cam- conhecem.
Violência, Cidadania e Dir eitos Humanos
Vera Malaguti S. W. Batista 133

No segundo governo Leonel companheira Lygia Doutel de Andrade,


Brizola (1991-1994) tínhamos um pro- para a formação dos policiais nas ques-
jeto consolidado de segurança pública tões relativas à violência contra a mulher.
democrática. Não falarei aqui sobre a Trabalhamos também a formação espe-
gigantesca operação que as elites, a mídia cí¿ ca dos agentes nas questões ligadas
e até mesmo as Forças Armadas, realiza- à infância e adolescência e nas questões
ram no ano de 1994 no Rio de Janeiro. ambientais entre outras. No CEUEP, hoje
Era vital enfraquecer Leonel Brizola, desativado, ¿ zemos também a formação
candidato à Presidência da República, dos policiais que trabalhariam no projeto
e ocupar o Rio de Janeiro, capital da dos Centros Comunitários de Defesa da
rebeldia, com as forças políticas conser- Cidadania, o primeiro projeto público
vadoras que garantiriam a estabilidade a romper com o conceito de cidadania
desse monstruoso modelo de exclusão e negativa imposto às populações pobres
miséria que hoje governa o país, apesar do Rio de Janeiro e do Brasil.
da sua aparência ¿na e polida. As vitórias
Foram implantados quinze Cen-
eleitorais na Europa já demonstram o
tros nas áreas faveladas mais atingidas
desabamento desse ciclo fugaz e perverso
pela face contemporânea de violência
do capitalismo conhecido como “neoli-
e criminalização. Cada Centro oferecia
beralismo”.
serviços integrados de acesso à justiça,
Passada aquela conjuntura difícil identi¿ cação e segurança com padrões
acreditamos que nossas convicções estão de policiamento comunitário, com uma
hoje mais fortes do que nunca. Deixamos coordenação comunitária recrutada entre
no Rio de Janeiro, sementes de uma po- as lideranças locais. Esses Centros estão
lítica transformadora, temporariamente hoje à deriva, removidos para a área as-
interrompida por uma outra apartadora sistencial, com tratamento clientelista.
e exterminadora.
Foi criada a primeira Delegacia
Aprofundamos o policiamento para Crimes relativos à Discriminação
comunitário, implantado no Brasil pelo Racial, hoje desativada. Foi criada a pri-
nosso companheiro Carlos Magno Naza- meira Delegacia para Crimes de Tortura
reth Cerqueira; foi criado na Universida- e Abuso de Autoridade, hoje desativada.
de do Rio de Janeiro o Centro Uni¿ cado A Primeira Delegacia para Crimes contra
de Ensino e Pesquisa para a formação de o Meio Ambiente só não foi desativada
policiais, bombeiros e agentes peniten- devido à resistência do movimento
ciários fora do obscurantismo histórico ecológico. As Delegacias Especiais de
de suas corporações, cuja direção foi Atendimento à Mulher (das sete em
entregue ao cientista político Gisálio funcionamento, cinco foram implantadas
Cerqueira. Naquela época contamos durante nossos dois governos) também
com o apoio do Conselho Estadual dos só não foram desativadas pela resistência
Direitos da Mulher, presidido por nossa brava do movimento de mulheres.
134 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

É no marco da compreensão do forças, aquelas que Maria Lúcia Karam


sistema penal no Brasil, e seu caráter chamou de “esquerda punitiva”, também
seletivo e genocida que gostaríamos de presentes no movimento feminista. Para
trazer reÀexões para o movimento de a autora, as mulheres que buscam as DE-
mulheres. AMs têm expectativas de solução rápida
para seus problemas. “O que, em termos
No bojo da experiência das Dele-
gerais, a clientela das delegacias espera...
gacias de Mulheres, algumas avaliações
é menos a consecução de sentenças ju-
foram produzidas por diferentes institui-
diciais, cujo desfecho seria a punição do
ções de pesquisa. Gostaria de destacar o
acusado, e antes, a resolução negociada
trabalho coordenado por Luis Eduardo
de conÀitos aparentemente inadministrá-
Soares intitulado Violência e política
veis. “É por isso que o indicador “queixas
no Rio de Janeiro, patrocinado pela FA-
transformadas em medidas judiciais” não
PERJ em nosso governo e editado pela
expressaria a ine¿ cácia do sistema, mas
Relume-Dumará.
a “ocorrência, naquele espaço, de uma
Os três relatórios de pesquisas experiência muito particular de mediação
feitas junto às Delegacias de Mulheres de conÀitos”. A crítica ao “olhar vitimi-
no Rio de Janeiro trazem dados interes- zante e unilateral” a respeito do problema
santíssimos e muita luz para a discussão da violência contra a mulher, que tem
da violência contra a mulher, tomando contrapartida no “espírito punitivo” que
como objeto empírico o universo das supõe que o sistema penal seja a solução
ocorrências registradas nas quatro para o problema, é uma crítica contun-
Delegacias de Mulheres (DEAMs) do dente, na direção do sonho feminista
Rio, em 1992, “primeiro ano em que de perceber a vida privada como objeto
todas funcionaram”. Por meio do per¿ l passível de regulação pública e, portanto,
social das mulheres vitimizadas e de de permitir a politização do corpo e do
seus agressores, os autores corroboram cotidiano”.
com seus dados que o lar é palco de um Jaqueline Muniz, em seu artigo
“padrão bélico de matrimônio”: 77,66% “Os direitos dos outros e outros direitos”,
das mulheres atendidas foram agredidas aprofunda nesta direção, referindo-se a
por maridos/companheiros. Ou seja, a um fenômeno histórico da realidade bra-
violência contra a mulher está concentra- sileira: a descon¿ ança, a deslegitimação
da em agressões domésticas, repetidas, e da Justiça para as camadas populares,
em relações duradouras. e a utilização das instituições policiais,
Bárbara M us umec i Soares menos cerceadas pela lei, como ¿ltro, elo
destaca a riqueza da experiência das intermediário entre o povo e o sistema
DEAMs que tem sido pouco compreen- jurídico. O olhar antropológico “con-
dida por forças políticas “que apostam traria o pensamento jurídico ocidental
exclusivamente na solução punitiva e amplia o universo das concepções
para a violência doméstica”; entre essas jurídicas reconhecendo a existência de
Violência, Cidadania e Dir eitos Humanos
Vera Malaguti S. W. Batista 135

outros direitos. “As DEAMs são enten- Compreendedo o sistema penal como
didas por sua clientela como “acesso ao “um dos mais poderosos instrumentos de
direito o¿cial´ $ descriço dos casos da manutenção e reprodução da dominação
viúva de Elvis Presley e do assédio do seu e da exclusão, características da forma-
Francisco no balcão de atendimento das ção social capitalista”, nós do movimento
DEAMs, a multiplicidade das soluções de mulheres dos partidos de esquerda
encontradas pela atuação dos funcionários temos que aprofundar a discussão da vio-
da agência policial produzem cotidiana- lência contra a mulher, na direção oposta
mente o funcionamento da “teatralidade daquela que aposta na solução penal, que
da ordem discursiva” na negociação dos numa sociedade desigual como a nossa, é
conÀitos ³$ estrutura da mediaço acio- dirigida prioritariamente à grande massa
nada inscreve, desde o início da acareação, de excluídos, aos negros e pobres que
uma mecânica de conceções e ganhos superlotam as nossas prisões.
recíprocos”, onde a queixa é trabalhada
mediante a negociação da palavra, objeto * Cf. Karam, Maria Lúcia. “A esquerda
de acordo, antítese da “cidadania atestada punitiva”. In Discursos sediciosos - crime,
Direito e sociedade. Ano 1, nº 1. Ed. Relume-
pelos papéis” que aponta para a “exclusão
-Dumará, 1996.
ojetiva do mercado dos direitos´ En¿m,
o olhar antropológico aposta na riqueza
de um esSaço de negociaço de conÀitos **Este texto foi apresentado ao Seminário
para os que estão excluídos da cidadania Nacional do Movimento de Mulheres do PDT
do papel, para além da solução punitiva. (Rio de Janeiro, 1º de agosto de 1998). Vera
Malaguti Batista é socióloga, historiadora da
Questionar a perspectiva puniti- Universidade Federal e secretária geral do
va é um dos objetivos desta exposição. Instituto Carioca de Criminologia.
A Mar cha de
Um Milhão
A Mar cha de Um Milhão
Contra as formas de continuidade do racismo e discriminação racial 139

Concidiu com as comemorações Vida, em que milhares de afro-brasileiros


no Brasil do Tricentenário de Zumbi se reuniram em Brasília com propósitos
dos Palmares a realização nos Estados semelhantes e características especí¿ cas,
Unidos de um evento histórico de grande avaliamos que se trata de um momento
importância para a população de origem único que compõe a nossa história em
africana: a Marcha de Um Milhão de comum como africanos na diáspora.
Homens, que reuniu homens negros Por isso, Thoth publica neste número
num ato não apenas de protesto contra três ensaios escritos por protagonistas
as múltiplas formas de continuidade da marcha de Washington. Assim, nós
do racismo e da discriminação racial, nos propomos oferecer ao leitor uma
mas também de reÀexão por parte dos visão diferente daquela da mídia inter-
homens participantes, representando a nacional, porém equilibrada no sentido
comunidade masculina de origem afri- de incorporar diversos ângulos e formas
cana. Dois anos mais tarde, realizou-se de ver aquele acontecimento. Quanto à
em Filadél¿ a a primeira Marcha de Um Marcha de Um Milhão de Mulheres, aqui
Milhão de Mulheres, com a presença de no Brasil quase não houve notícia. Thoth
reproduz uma reportagem da destacada
Winnie Mandela.
jornalista afro-norte-americana Lula Stri-
Aqui no Brasil, as notícias da ckland, que registra o fato com vivaci-
Marcha de Um Milhão de Homens che- dade. Esperamos, assim, contribuir para
garam deturpadas, como sempre ocorre a ampliação e a melhoria de qualidade
quando se trata de eventos e fatos espe- da compreensão mútua entre esses dois
cí¿ cos da nossa gente. Considerando a componentes de primeira importância
realização quase simultânea da Marcha da diáspora africana nas Américas: os
Contra o Racismo, pela Cidadania e a africanos no Brasil e nos Estados Unidos.
140 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

ILUSTRAÇÕES DO ARTISTA SNEED

Liberty House, novembro de 1968. Eu acabara de chegar


a Nova York e havia mostrado a alguns homens e mulheres negros
dois ou três primeiros quadros que havia pintado ainda no Rio de
Janeiro, às vésperas de partir para o exílio. Um negro muito sério
me interpelou:
— Por que não mostra sua pintura numa galeria?
Não foi necessária muita conversa para me justi¿ car com
a di¿ culdade de conseguir uma galeria, principalmente porque eu
não era rigorosamente um pintor. Naquela época, estava mais para
palco do que para tintas.
O negro se apresentou. Chamava-se Sneed, era pintor e
estava associado a uma galeria no Harlem. Imediatamente ofereceu-
-se para conseguir para mim uma mostra na Harlem Art Gallery. Foi
assim que, em dezembro de 1968, eu tive minha primeira exposição
de pintura. Graças à solidariedade dos irmãos afro-norte-americanos
corpori¿ cados no Sneed.
Agora, em 1998, revendo guardados de mais de trinta anos,
me vieram às mãos estes desenhos presenteados pelo amigo Sneed:
por onde andará ele agora? Continuará mais que apaixonado, ob-
cecado pelas formas e expressões dos seus irmãos e irmãs de raça?
Publicando três desenhos de sua autoria, quero render ao artista
Sneed as minhas homenagens, minha gratidão e a expressão de
minha estima e solidariedade na luta. Axé!

A.N.
Desenho do artista norte-afro-americano Sneed
A guer r a amer icana Os homens negros que vieram a
Washington para participar da marcha
contr a a decência e sobre o Mall eram mais jovens, com me-
lhor posição e maior grau de instrução
o Convite ao Mall1 : do que os negros americanos como um
todo, e tinham maior disposição de ver
homens negr os, po- o líder da Nação do Islã, Farrakhan, as-
sumir um papel de liderança mais proe-
lítica simbólica e a minente na comunidade afro-americana,
Mar cha de Um Mi- segundo pesquisa feita pelo Washington
Post entre os participantes da Marcha de
lhão de Homens* Um Milhão de Homens.
(Washington Post,
17 de outubro de 1995)

Um funcionário ralé
Nos chama pelo nome que não é nosso
Temos de dizer senhor
Para garotos magricelas

(do poema “ Old Lem” ,


de Sterling Brown)
Houston A. Baker, Jr.

1
Mall se refere à área do principal parque de Washington, onde se localizam os monumentos a Abraham Lincoln e Ge-
orge Washington, e que constitui a vista turística mais importante da cidade. É um local que simboliza a sede do poder e,
portanto, é o palco de grande porte dos grandes eventos cívicos da história norte-americana. (N. E.).
144 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

Não posso aceitar que “ equilibrar o bora Bill Clinton endosse implicitamente
orçamento” acabe eclipsando a preocu- uma agenda que é republicana e tenha
pação em equilibrar a distribuição e a insultado em público Lani Guinier e a
disponibilidade da riqueza, das chances Irmã Souljah e Joycelyn Elders e apro-
de sobreviver com auto-respeito. ve uma reforma da previdência que vai
acarretar a devastação das comunidades
(extraído de Notes of a Barnard dro-
negras, vamos separar o presidente em
pout, de June Jordan)
si de sua mensagem.” Era difícil dizer
se os intelectuais que defendiam uma
Em 16 de outubro de 1995, cerca separação mente/corpo entre mensagem
de um milhão de homens negros (os nú- e mensageiro estavam falando sério ou
meros serão sempre objeto de discussão) simplesmente oferecendo um alívio aos
reuniram-se no Mall em Washington, públicos brancos. Será que realmente
capital dos Estados Unidos. Variavam acreditavam ¿ car com um pé em cada
quanto a tons de pele, pro¿ ssões, classes, um dos mundos? Será que acreditavam
origens, níveis de instrução, tipos de poder erguer-se em favor da redenção
cabelo, dialetos, ideologias, religiões, negra e ao mesmo tempo distanciar-se
locais de moradia, temperamentos e da única mensagem de massa que está
estilos afetivos. O dia estava claro como sendo ouvida atentamente pelos negros
cristal: um presente de Deus. O sol de nos Estados Unidos?
outono aquecia a terra em que ¿lhos dor- A mensagem negra de massa
miam em paz aos pés de seus pais, tios, certamente estava sendo transmitida
irmãos - homens negros que os haviam pelo corpo de Farrakhan. “Corpo”, nesse
levado para testemunhar um impressio- sentido, signi¿ca tanto a forma individual
nante exercício do estilo americano de quanto a institucional. Pois é Farrakhan,
contrabalanço. o próprio líder carismático, que vem reju-
Nas duas semanas que antece- venescendo e transformando numa força
deram a Marcha, especialistas haviam contínua o corpo da Nação do Islã desde
declarado incessantemente que o evento a morte de Elijah Muhammad, nos anos
seria um desastre que balcanizaria os setenta. E o mensageiro negro corpori¿ -
Estados Unidos. Conhecidos intelectuais cado é que foi a presença inambígua por
negros asseguraram tanto a seus eleitores excelência em 16 de outubro de 1995.
brancos e quanto a seus jovens discípu- Todas as pessoas que eu encon-
los negros ser obrigatório para qualquer trei ou por que passei no Washington
homem negro realmente liberado, in- Mall tinham fortes expectativas sobre o
formado e sensível separar a mensagem momento de clímax em que Farrakhan
redentora do ministro Louis Farrakhan apareceria para articular as noções de
do mensageiro. Isso, evidentemente, arrependimento e reparação, responsa-
fazia tanto sentido quanto dizer: “Em- bilidade dos homens negros e redenção
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
145

comunitária que constituíam os objetivos sombria que aponta os judeus como a


da Marcha de Um Milhão de Homens. causa da miséria quotidiana que aÀige
Com efeito, a Marcha foi um evento espi- as massas negras nos Estados Unidos.
ritual. Como os encontros dos Guardiães “Espere aí”, temos vontade de gritar ao
da Promessa (os homens cristãos de porte encontrar essa persona. “O que o senhor
atlético que se reúnem em grandes está- quer dizer com judeus, ministro Far-
dios dos Estados Unidos para professar rakhan? Não sabe que a palavra judeus
sua fé), a reunião de homens negros no tem instigado alguns dos piores horrores
dia 16 de outubro tinha motivação espi- deste mundo?” Mas inquirir Farrakhan
ritual e, num sentido amplo, religiosa. dessa maneira seria algo como perguntar
Ainda assim, foram o entusiasmo e a a Newt Gingrich2 o que ele quer dizer
energia sacerdotal de Farrakhan, e não com “orçamento equilibrado”. Para
outra pessoa qualquer, que determinaram Gingrich, “orçamento equilibrado”, tal
o clima espiritual do evento. como “judeus” para Farrakhan, é um
exemplo daquilo a que o crítico negro
O que pretendiam os separa- Stephen Henderson se refere como pala-
dores, creio eu, era evitar uma análise vra mascon3- uma palavra que, tal como
firme e comprometida de domínios uma esponja, absorve o ânimo, a intuição
perigosos - as zonas de guerra nas áreas pura, os desapontamentos, estereótipos
centrais das grandes cidades e uma psi- e sentimentos vulgares de superioridade
que negra desesperadamente deprimida de uma raça. Postulações desse tipo não
numa era de opressão racial americana. permitem separar a mensagem do mensa-
Eles esperavam servir de ¿ ltros negros geiro, distinguir a a¿ rmação daquele que
ao “ódio” farrakhânico. Poder-se-ia ar- a¿ rma. Com certeza, o “Contrato com a
gumentar que as articulações deste são América” de Newt não pode ser separado
mais próximas daquilo que o escritor de um corpo republicano radical cha-
negro Ellis Cose chama de “fúria” do mado Gingrich. Nem tampouco de uma
que de “ódio”. Mas esse é um aspecto a agenda nacional racialista e mesquinha
ser abordado mais tarde. De momento, para tornar cada vez mais rico o corpo
podemos simplesmente reconhecer o da América branca, ao mesmo tempo
lado negativo do ministro. Ele construiu em que elimina totalmente os pobres,
uma formidável persona como promotor idosos e - em particular e de modo mais
do ódio. Elaborou habilmente uma voz expressivo - as minorias dos Estados
__________
2
Newt Gingrich, então presidente da Câmara dos Representantes (Deputados) dos Estados Unidos, representa a expressão
máxima da extrema direita no poder, implementando políticas retrógradas que consolidam o retrocesso em todos os avanços
que a comunidade negra e os pobres em geral conquistaram em administrações anteriores e impedindo a implementação
de qualquer política capaz de bene¿ ciá-los. (N. E.)
3
Stephen Henderson, Understanding the new black poetry (Nova York: William Morrow, 1973), 44. [O termo mascon,
abreviatura de mass concentration, ou concentração de massa, refere-se, conforme o Macmillan contemporary dictionary,
à área de massa concentrada abaixo da superfície da Lua, que se acredita ser responsável por anomalias gravitacionais que
atingem os veículos espaciais em órbita daquele satélite. (N. T.)]
146 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

Unidos. Da mesma forma, é impossível para manter seus lares, sua comida e sua
separar o recurso de Farrakhan a um bode própria vida.
expiatório mascon de uma base de apoio
Em 16 de outubro de 1995,
constituída pela massa negra.
letreiros, broches, camisas, chapéus,
No entanto, quem dentre nós Àâmulas, cartazes, livros, laços, ban-
está moralmente em posição de perdoar, deiras em vermelho, preto e verde, com
filtrar ou separar uma mensagem de estrelas e luas crescentes diziam: em
opressão nacional do corpo físico de termos de organização e iconogra¿ a,
Newt Gingrich ou de William Jeffer- esta Marcha de Um Milhão de Homens
son Clinton? Quem está em posição de constitui um triunfo da Nação do Islã
condenar - com simulada inocência e numa guerra simbólica. Esta marcha é
incompreensão - Louis Farrakhan por tão complicada, multifacetada, hábil e
expressar a fúria inteiramente justi¿ cá- surpreendente quanto a habilidade de
vel da massa negra escolhida por gente Farrakhan em convocá-la. Talvez, então,
como Gingrich e Clinton como alvo do o ministro seja o lugar, concentrado na
sacrifício imposto por um orçamento massa, do signi¿ cado afro-americano
equilibrado elaborado por brancos? E em um tempo de guerra: uma Guerra
quem é tão eticamente preciso que possa contra a Decência.
a¿ rmar: “Hei, homem negro, é melhor
As estatísticas dessa Guerra
você ir àquela marcha de Washington
contra a Decência estão agora bem-
com um cartaz dizendo que você separa
-ensaiadas, e todos nos Estados Unidos,
a mensagem do mensageiro”?
como veremos em breve, têm uma opi-
Se fosse possível separar as nião sobre a quem culpar pelo mal-estar
mensagens dos mensageiros, deveríamos geral deste país. Um em cada três homens
pendurar cartazes no pescoço denuncian- negros nos Estados Unidos está na pri-
do a ignomínia de um Congresso, Supre- são, na condicional ou sob supervisão
ma Corte e Casa Branca posicionando-se do sistema de justiça criminal. Mais de
diante de um canal repleto de recursos metade das crianças negras americanas
¿ nanceiros reservados às grandes em- vive na pobreza. A renda dos negros ame-
presas americanas e ao Capitalismo ricanos é apenas 60 por cento da renda
Transnacional com cara pintada de bran- dos brancos. A expectativa de vida dos
co. Ou sinais luminosos às costas anun- negros é mais de uma década menor que
ciando precisamente como separamos a dos brancos americanos. O desemprego
as mensagens do nosso presidente e do da juventude negra é de 40 por cento. As
nosso Congresso como “equilibradores oportunidades de emprego e de acesso
do orçamento” de sua responsabilidade até mesmo a um mínimo de serviços pú-
física pelo sofrimento de centenas de blicos necessários para manter a vida são
milhares de servidores federais e outros comparativamente raras para a maioria
americanos desafortunados que lutam dos negros americanos. O homicídio e
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
147

a AIDS estão matando jovens negros a responsabilidades, ao arrependimento,


taxas assustadoras. Drogas são injetadas à reparação e aos pecados dos pais pe-
nas comunidades negras por ricos inves- culiares àquele arquétipo que algumas
tidores brancos tal como a neve de inver- mulheres negras adoram odiar: o Homem
no caindo do céu carregado. O país como Negro. “As mulheres foram excluídas”,
um todo não ¿ ca ultrajado pelo peso e as comentaram algumas das mais eminentes
baixas dessa Guerra contra a Decência, intelectuais negras dos Estados Unidos.
que tem por alvo o povo negro, da mesma Ou essas mulheres foram ingênuas ou
forma que nenhum eleitorado se preo- realmente não perceberam que um dos
cupa, especi¿ camente, com a sorte dos loci da Marcha era a aprovação em massa
homens negros - jovens e velhos - deste da Nação do Islã, que pratica a discrimi-
país e suas pouco invejáveis condições
nação de gênero.
de vida. Uma amostra das preocupações
das outras coortes americanas nos dá uma Depois temos os já citados porta-
idéia do que está na mente dos Estados -vozes públicos da comunidade negra, os
Unidos com respeito a política, pessoas quais correram a fazer um julgamento em
e eventos. nome dos princípios da decência, coa-
Em primeiro lugar, os homens lizão, cooperação, liberalismo e huma-
brancos. Eles estão ocupados em fazer nitarismo. Espera-se que sua avaliação
uma invocação especial à raiva porque, da Marcha não reÀita a agudeza de sua
em suas imaginações paranóicas, negros percepção da Guerra contra a Decência
e mulheres “estão em condições muito nos Estados Unidos. Sem dúvida, tais
boas”. Uma Marcha de Um Milhão porta-vozes intelectuais negros sabem
de Homens não faria para eles sentido que há uma guerra em curso. Certamente,
algum. Depois temos as mulheres bran- esses intelectuais estão cientes, devemos
cas. Elas se reúnem em elegantes spas presumir, das estatísticas dessa guerra.
e bares de café expresso da moda para Não obstante, relutam em ver a Marcha
condenar o veredicto e o próprio réu do de Um Milhão de Homens como um
julgamento de O. J. Simpson. Por quê? ato de resistência inseparável de Louis
Por acreditarem que Simpson deveria ter Farrakhan e da Nação do Islã. Por quê?
sido condenado por assassinato pelo fato É clara a motivação desses famosos inte-
de bater em sua mulher branca. Um Mall lectuais públicos negros que lamentaram
repleto de um milhão de “OJs” provavel- a impossibilidade de separar mensagem
mente as deixaria cheias de terror. de mensageiro. Sua posição de sujeitos
A lgumas mulheres ne gras como porta-vozes famosos é comprada e
arrogaram-se a prerrogativa de condenar paga por homens e mulheres brancos que
a Marcha de Um Milhão de Homens, gostam de ter seus egos e pressupostos
Louis Farrakhan e a Nação do Islã porque massageados por dólares e empresários
o ministro dedicou especial atenção às negros.
148 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

Quase todos, então, estavam do Islã ou despudoradamente indepen-


contra a mensagem e o mensageiro, jun- dentes, todos sentiam a inseparabilidade
tos como irmãos siameses, da Marcha entre mensagem e mensageiro. Qualquer
de Um Milhão de Homens. Quase todos, avaliação prática ou racional da Marcha
quer dizer, com exceção do um milhão de Um Milhão de Homens deve reconhe-
ou mais de homens que compareceram cer ter sido essa inseparabilidade que os
ao Washington Mall. Homens que aguar- fez repetir em uníssono, à medida que a
daram com uma alegria serena (Cornel hora ia chegando:“FARRAKHAN, FAR-
West concordaria em que esses termos RAKHAN, FARRAKHAN!”
não são contraditórios), uma dignidade
“Homens negros de classe mé-
sem formalismo e uma sóbria expectativa
dia” clamando pelo Mensageiro. Será
- de pé sob o sol de outubro por 12 longas
que clamavam por Farrakhan por endos-
horas - até que o Mensageiro aparecesse e
sarem um evangelho de ódio, uma ¿ lo-
oferecesse, corpori¿cados, suas bênçãos,
so¿ a de transformar “judeus, mulheres
seu desa¿ o e seu chamado a uma ação
e homossexuais” em bodes expiatórios?
social e política em nível local.
Não. Em parte, sua ladainha era, muito
Os homens negros viajaram até simplesmente, a representação verbal de
14 horas de trem e de ônibus fretados; uma “Coisa de Homem Negro” distin-
dirigiram Lexus, Hondas, Mercedes, tamente americana4. Era a intensidade
Taurus e calhambeques até a capital do reverberada de uma manifestação pecu-
país a ¿m de participar de uma cerimônia liarmente americana de fúria e desejo.
inseparável em que a opinião da mais po-
Voltando por um momento a
derosa organização negra independente
Ellis Cose e seu atraente livro The rage of
e orientada para as massas foi represen-
a privileged class (A fúria de uma classe
tada pelo mensageiro que convocou e
privilegiada), encontramos a seguinte
concretizou a marcha. As centenas de
história do encontro do sócio de uma
milhares de homens negros que compa-
¿rma de advocacia, de meia idade e de
receram foram descritos pelo Washington
“classe média”, com os rituais do sucesso
Post - muitas e repetidas vezes - como
negro nos Estados Unidos:
sendo “de classe média”. Com isso, o
jornal queria dizer homens negros com Uma fonte de imenso ressen-
empregos sérios que não são descartados timento foi [seu] encontro, alguns
nos censos o¿ ciais dos Estados Unidos. dias antes, quando chegara ao es-
Fossem esses homens negros equívocos critório mais ou menos uma hora
ou a¿rmativos, ¿éis praticantes da Nação antes do normal e entrou no elevador

__________
4
Ultimamente, ¿ cou muito popular nos Estados Unidos a expressão “it’s a man thing”, “isto é coisa de homem”, em
referência a assuntos de interesse especí¿ co dos homens. (N. E.)
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
149

juntamente com um jovem branco. especial de imaginação para visualizar


Saíram no mesmo andar. Secretárias o crime com uma face afro-americana”
e recepcionistas ainda não haviam (93). A pressuposição do jovem branco
chegado. Quando meu amigo [o sócio de intrusão “criminosa” por parte de seu
negro] procurava no bolso pelo seu companheiro negro de elevador, mais
cartão-chave enquanto caminhava velho, mais bem vestido e extremamente
em direção às portas trancadas dos bem-apresentado, simboliza o bote da
escritórios, seu companheiro de América branca ao acusar e tratar os
elevador bloqueou-lhe o caminho e homens negros como criminosos, prática
perguntou: “Posso ajudá-lo?” Meu que os atinge e enfurece em praticamente
amigo fez que não com a cabeça e todas as instâncias da vida diária - inde-
tentou circundar o potencial ajudante pendentemente de classe, temperamento
[branco], mas o jovem se colocou à ou conta bancária. O momento de fúria
sua frente e indagou em tom mais mais próximo da Marcha de Um Milhão
elevado e decididamente frio: “Posso de Homens foi a reação, à maneira das
ajudá-lo?” Nisto, o homem mais ve- turbas de linchamento, da América bran-
lho ¿ xou-o com o olhar, cuspiu seu ca ao veredicto do julgamento de O. J.
nome e se identi¿ cou como sócio da Simpson.
¿ rma, ante o que seu inquisidor se
Turbas de brancos de classe
pôs de lado. O impulso inicial de meu
média, velas nas mãos, reuniram-se nas
amigo foi deixar para trás o incidente,
esquinas e nos estúdios de televisão para
descartá-lo como apenas mais uma
exigir a “verdadeira” justiça, que para
irritação num dia comum. Mas ele se
eles signi¿ cava - pelo menos - a prisão
descobriu cada vez mais raivoso em
de um rico mega-star negro que se havia
relação à temeridade do jovem cole-
casado com uma das suas e mudado para
ga. (...) “Por causa de sua cor, ele se
o bairro deles. Na pior das hipóteses, que-
sentiu no direito de investigar minha
ria dizer: Pendurem esse negro bastardo!
identidade”5.
A divisão entre negros e brancos com
Uma formulação posterior de respeito ao veredicto de Simpson foi um
Cose captura sucintamente as estruturas indicador tão decisivo quanto possível,
implícitas da experiência de seu amigo: para qualquer homem negro, do fato de
“Quaisquer que sejam as di¿ culdades que os brancos estão agora plenos de “te-
dos americanos em pensar em negros meridade” e tão prontos quanto uma bala
como potenciais executivos, não se re- de 38 a prevenir a intrusão “criminosa”
quer [dos brancos] nenhuma capacidade por parte de negros procurando acesso a

__________
5
Ellis Cose, The rage of a privileged class (Nova York: Harper Collins, 1993), 48-9.
150 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

condições de vida decentes nos Estados chocante se os porta-vozes públicos


Unidos. Uma Guerra branca contra a negros não conseguissem perceber que
Decência está em pleno curso vigilante6. Farrakhan transformou - por puro gênio
Havia, então, uma furiosa “Coisa e inspiração - o Washington Mall na
de Homem Negro” motivando os gritos frente de batalha de uma guerra política
de “Farrakhan!”. Muitos dos que se simbólica. Farrakhan percebeu clara-
reuniram no Mall sabiam que o ministro mente que essa guerra demanda maciças
iria articular - em público e num local tropas de homens negros, a mesma raça
simbólico do qual a televisão transmitiria de homens que tem servido eternamente
imagens para o mundo - seu próprio des- como bucha de canhão nas guerras dos
contentamento. Tal articulação pública, americanos contra a “decência”: por
acreditavam, era catártica e necessária, exemplo, as guerras contra os índios, a
na verdade indispensável - pois a maioria Guerra Hispano-Americana, a Primeira
dos homens negros não goza do luxo ou e a Segunda Guerras Mundiais, a Coréia,
privilégio de acordar para um outro dia o Vietnã. O ministro foi proléptico. Ele
qualquer em que possam ignorar o New conhecia a futura história (contrastada à
York Times e o Wall Street Journal e ain- “Toy Story”) da atual guerra simbólica
da assim ter certeza, como tantos homens dos americanos contra os povos de cor:
brancos, de que ninguém “virá pegá-los” Em Mount Pleasant [bairro de
de manhã. “Garotos magricelas”, tais Washington], um grupo de aproxima-
como o jovem sócio branco da ¿ rma de damente 50 latinos se reuniu ontem de
advocacia, olham no espelho a qualquer manhã num campo de futebol na Rua 16
hora do dia, vêem a pele branca e rea¿ r- NW e desfraldou uma bandeira que dizia:
mam sua superioridade - sua supremacia Solidariedade latina à Marcha de Um Mi-
hereditária. lhão de Homens”. (...) “Nunca tivemos
Mas o coro que pedia a aparição nada em comum com Louis Farrakhan,
do mensageiro continha muito mais que mas estamos em guerra e precisamos de
uma lógica da fúria e da insatisfação. aliados”, disse Pedro Aviles, diretor
Num ano em que Dead presidents, o executivo Latino Civil Rights Task For-
magní¿ co ¿ lme de Allen e Albert Hu- ce [Força-Tarefa Latina pelos Direitos
ghes, foi exibido nacionalmente, seria Civis], que organizou o grupo7.

__________
6
O.J. Simpson foi julgado inocente por um júri popular de ter assasinado sua ex-mulher branca, numa decisão muito
contestada. Após o veredicto, a opinião pública se dividiu nitidamente, os brancos acreditando que Simpson era culpado
e devia ter sido preso, e os negros acreditando que as evidências apresentadas deixavam uma sombra de dúvida quanto
à sua culpa, inclusive porque várias provas foram forjadas pela policia, trazendo à cena a questão do histórico abuso do
sistema judicial e da instituição policial, que ostentam dois pesos e duas medidas quanto ao tratamento de negros e brancos
perante a justiça. (N. E).
7
Washington Post, 17 de outubro de 1995, A20.
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
151

Farrakhan “reapropriou-se” do via trabalhado no sentido de uma “união”


Mall como o terreno ideológico da de- nacional. Mas Clinton não ofereceu um
cência americana a ser defendido pelos único dólar, estratégia ou promessa presi-
homens negros dos Estados Unidos - à dencial americana que pudesse constituir
falta de decência histórica e atual da parte uma intervenção significativa na atual
dos homens brancos americanos. Ele ini- Guerra contra a Decência nos Estados
ciou seu discurso, excessivamente longo, Unidos. Ora, como disse o jovem, Jesse
apontando misticamente para monumentos pode ser uma platina antiga. Mas Clinton,
simbólicos com os nomes de “Jefferson”, com sua nostalgia de Lincoln e Johnson,
“Washington”, “Lincoln”. Prosseguiu é estritamente um ancião dourado.
tecendo um tapete de atos de fala nume- O discurso de Farrakhan foi um
rológicos, focalizando a atenção de suas brilhante exercício de numerologia, uma
tropas na monumentalidade de horror que obra-prima de política simbólica. Ele fa-
é a supremacia branca dos Pais Fundadores lou num período de guerra antinegra, um
e da Presidência dos Estados Unidos. Mais período que tem testemunhado a notável
cedo naquele mesmo dia, Jesse Jackson emergência de um eleitor branco terrivel-
tentara excitar as tropas ao elidir o 16 mente raivoso manipulado para o ódio
de Outubro com os eventos dos Direitos por uma política de culpa que produz
Civis de uma outra era em Birmingham, cinicamente imagens de Willie Horton,
Alabama. Ele a¿rmou que os verdadeiros mãos brancas amassando cartas recu-
“mensageiros” da Marcha eram Newt sando empregos produzidas pela ação
Gingrich e Bob Dole. Um jovem negro que a¿rmativa e uma criminalidade selvagem
estava do meu lado disse: “Jesse devia ser e fora de controle com rosto pintado de
cunhado em moeda com esse papo de velha preto. Numa época assim, como pode
guarda. Temos um pastor igualzinho a ele uma agenda negra viável ignorar ou re-
na nossa igreja. Um daqueles rapazes da jeitar a guerra política contra-simbólica?
antiga. Temos de levantar a mão depois de Ninguém tem sido mais e¿caz nesse tipo
duas horas de sermão e dizer: ‘Reverendo de guerra do que Louis Farrakhan.
Johnson, o senhor sabe que o jogo acabou,
A Marcha de Um Milhão de Ho-
não sabe?’”
mens não foi apenas de Farrakhan, mas
Mesmo antes da fala de Jackson, o certamente foi sua campanha mais efetiva
presidente Clinton comparecera diante de até o momento. Dois dias depois da Mar-
um público predominantemente branco no cha, ele anunciou que a Nação do Islã - pela
Texas e invocara os presidentes Abraham primeira vez na história da organização - se
Lincoln e Lyndon Johnson para falar de envolveria ativamente na política eleitoral
episódios anteriores da “fronteira” racial americana. Se Ross Perot, Ralph Reed e Pat
americana. Ele ponti¿cara sobre como a Buchanan8 podem fazê-lo, não há razão por
Presidência dos Estados Unidos sempre ha- que Louis Farrakhan não o possa.
__________
8
Destacadas ¿ guras da política de extrema direita dos Estados Unidos.
152 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

A política da Marcha de Um Milhão de da Marcha de Um Milhão de Homens”,


Homens não foi, contudo, de caráter com a ¿ nalidade de chamar a atenção
excludente. Todos - marxistas, leninis- para o perigo de vida que atravessava
tas, proponentes do “desenvolvimento o último supermercado de propriedade
econômico” negro, defensores de Mu- de negros naquela cidade. Na Carolina
mia Abu-Jamal, advogados do registro do Norte, homens negros organizaram
eleitoral, cristãos dos movimentos uma campanha, “no espírito da Marcha
pelos direitos civis - todos tiveram um de Um Milhão de Homens”, para que os
fórum político e cultural no dia 16 de pais não celebrassem o Natal comprando
outubro de 1995. Graças ao Convite ao presentes e brinquedos so¿ sticados. Eles
Mall, alguns homens negros tiveram exortaram os negros dotados de recursos
seu primeiro contato com agendas, es- ¿ nanceiros a adquirir seguro-saúde para
tratégias e eventos políticos relevantes suas famílias e a investir em negócios de
para a América negra que lhes eram negros.
desconhecidos antes daquela viagem de
Ah, sim, tem havido resultados
uma noite inteira desde vilarejos rurais
concretos, positivos, em nível local. No
da Geórgia, subúrbios de Detroit, campi
¿ nal de seu discurso, Louis Farrakhan
universitários afro-americanos e guetos
tinha deixado cada membro de seus regi-
de Chicago. Os homens e mulheres que
mentos simbolicamente armados pronto
¿ zeram discursos formais no palco em
a fazer um juramento: “Eu, Houston
frente ao Capitólio apresentaram uma Baker (...).” Eu mesmo já fui um de-
ampla e variada gama de programas
fensor e participante da Marcha de Um
políticos, sociais e espirituais. Centenas
Milhão de Homens. Fui lá com o apoio
de milhares de homens (e algumas mu-
da minha família. Minha mãe e minha
lheres) negros compareceram, ouviram
sogra passaram o 16 de outubro senta-
e prestaram atenção. das assistindo à cobertura da Marcha
O que tem transpirado em nível pela C-Span. Meus irmãos telefonaram
local desde a Marcha de Washington? na noite anterior para passar uma única
Jesse Jackson levou ao seu programa mensagem: Represente-nos. Meu ¿ lho,
de TV homens negros que falaram que está fazendo pós-graduação na Costa
apaixonadamente sobre organizações Oeste, disse: “Papai, você sabe que se eu
urbanas, de âmbito local, fundadas ou estivesse em algum lugar mais próximo
que receberam novos recursos ¿ nancei- nós iríamos juntos.” Para mim, o signi-
ros e humanos em função da Marcha de ¿ cado de tudo isso foi: há uma guerra
Um Milhão de Homens. Em Filadél¿ a, em curso nos Estados Unidos. A melhor
rapazes negros organizaram uma agência compreensão da relação entre mensagem
negra de desenvolvimento econômico. e mensageiro da Marcha de Um Milhão
No dia 30 de dezembro de 1995, centenas de Homens foi a do reverendo Joseph
de moradores negros de Filadél¿ a parti- Lowery, quando este disse no domingo
ciparam de um ato público, “no espírito anterior ao evento: “Se minha casa está
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
153

pegando fogo, não me importa quem traz Olhávamos para nós mesmos, nossos
a água.” Existe bem pouquinha água para ¿ lhos, todos os nossos irmãos naquele
a casa em chamas da maioria dos negros dia. Conhecíamos a guerra americana
americanos. Se nós não empreendermos em que estávamos engajados, e naquele
agora uma ação local simbolicamente “momento” não tínhamos medo.
armada, firme e cuidadosa em nosso
próprio interesse como negros e para a
nossa autodefesa, da próxima vez o fogo Refer ências Bibliogr áficas
do capitalismo tardio nos vai consumir
com a calorosa intensidade da euforia Brossard, Mario A e Richard Marin. “Leader
popular among marchers”. The Washing-
triunfante da Microsoft.
ton Post, 17 de outubro de 1995, AI.
Quando suas últimas palavras
ecoavam pelo Mall, deixei Farrakhan e o Brown, Sterling. “Old Lem”. In The collected
extraordinário grupo de Homens Negros poems of Sterling Brown, org. por Micha-
Americanos com quem eu havia compar- el S. Harper. Nova York: Harper & Row,
tilhado por um dia o trabalho de campo e 1980. 170-1.
me dirigi para casa. Pensei no que havia
Cose, Ellis. The rage of a privileged class.
testemunhado. Houve cenas surpreenden-
Nova
tes de criancinhas negras dormindo no chão York: Harper Collins, 1993.
morno de outubro aos pés dos homens que
as tinham levado ao Mall. Adolescentes de Fletcher, Michael A. e Hamil R. Harris.
hoodies, bonés e jeans baggy inclinavam- “Black
-se com reverência diante desses jovens men jam Mall for a ‘Day of Atonement”.
adormecidos, como se fosse santi¿cado The Washington Post, 17 de outubro de
o chão em que estes descansavam. Vi 1995, AI, A20.
homens negros em ¿la indiana, as mãos
nos ombros da pessoa em frente, zigue- Henderson, Stephen. Understanding the new
zagueando através de multidões de cen- black poetry: black speech and black
music as poetic references. Nova York:
tenas de milhares de homens negros que,
William Morrow, 1973.
educadamente e em silêncio, lhes abriam
espaço. Ouvi um jovem atrás de mim dizer: Jordan, June. “Notes of a Barnard dropout”.
“Desculpe-me, senhor, importa-se se eu In Civil wars: observations from the front
fumar?” O “senhor” era eu. O gesto dele lines of America. Nova York: Simon and
foi de uma polidez incomum, uma vez que Schuster, 1995. 96-102.
estávamos ao ar livre.
*
Este artigo foi publicado originalmente, em in-
A 16 de outubro de 1995 vi glês, na Revista Black Renaissance/ Renaissance
homens negros se abraçando, choran- Noir, Vol. I, no. 1 (outono de 1996), tradução de
do, escutando, permanecendo em pé, Carlos Alberto Medeiros. Houston A. Baker, Jr. é
diretor do Centro para Estudos da Literatura e da
sentindo-se simples e con¿ antemente Cultura Negras da Universidade de Pensilvânia,
à vontade na presença uns dos outros. em Filadél¿ a.
Desenho do afro-norte-americano Sneed
Duas coisas sobre a Marcha de
Um entr e um Um Milhão de Homens: a maioria da-
milhão* queles que a criticaram não participou;
e a maioria daqueles que participaram
não a criticou. Isso, evidentemente, não
prova nada. Quase o mesmo poderia ser
dito de algumas das guerras mais san-
grentas da história. Indica, porém, que a
Marcha teve tantas facetas e signi¿ cados
que devemos enxergá-la de múltiplas
maneiras. Seus detratores têm algo em
comum: são incapazes de considerar o
evento em termos de suas profundas e
variadas ressonâncias.
Um zilhão de coceiras pessoais
e peculiares ¿ zeram que um milhão de
homens acorresse a Washington. Uma
das minhas foi a reação a uma mostra
de cinema e arte inaugurada no Museu
Whitney, de Nova York, em outubro de
1994, com o título O Homem Negro. O
que signi¿ ca que eu fui à Marcha como
Clyde Taylor um prisioneiro do meu próprio texto. O
158 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

ensaio que escrevi para o catálogo da Jogo organizando um espetáculo em que


mostra de cinema, “The game” [O jogo], o ser-para-si dos homens negros foi su-
tratava do destino peculiar dos homens mariamente descartado para abrir espaço
negros nos Estados Unidos, sempre obri- ao ávido emprego, uma vez mais, de seu
gados a competir pela de¿ nição de suas ser-para-outros por qualquer oportunista
identidades. Os trabalhos de artes visuais a se meter no caminho.
apresentados na mostra exempli¿ cavam
Na minha cabeça, a Marcha
essa perspectiva. Quando ¿ nalmente os
estava fadada a desempenhar o papel
vi, após meses de divulgação antecipada,
de crupiê para uma in¿ nidade de temas,
eles me pareceram ter mais a¿ nidade
discursos, argumentos, narrativas, mitos
com um memorial do Holocausto, uma
e propostas ideológicas a serem empilha-
série de peças reunidas para documentar
dos nessa mesa histórica da qual, com
um enorme desastre ainda por vir.
as apostas aumentadas graças à atenção
O efeito mais estranho da mostra despertada em âmbito nacional, muitos
do Museu Whitney foi a forma como ela sairiam com mudanças decisivas em
desencadeou entre artistas, curadores termos de atualidade, força e credibi-
e críticos uma so¿ sticada discussão a lidade. A enorme aposta representada
respeito da originalidade e inteligência pela Marcha me pareceu um encontro
- ou ausência dessas qualidades - da de jogadores na série Maverick, em
arte apresentada, mas apenas um raro que todos aqueles que competiam para
sussurro quanto à iminente tempestade de¿ nir os homens negros e sua função
de merda assinalada pelo faro meteoro- na história americana seriam obrigados
lógico artístico do conjunto das obras. a cobrir a aposta ou sair do jogo, num
Conheço as estatísticas sobre a ameaça confronto extremamente público. Alguns
de extinção que paira sobre os homens ganhariam, alguns perderiam, outros
negros como espécie política e social empatariam, alguns veriam seus valores
na vida americana, mas essa exposição Àuírem para os potes e bolsos de outros,
me revelou alguma coisa sobre o modo e alguns seriam forçados simplesmente a
como tais calamidades sociais estão abandonar o jogo. Mas era um jogo cujas
sendo consumidas pelo público da mí- apostas eram mais altas para os próprios
dia como diversão oculta, so¿ sticadas homens negros e, o que é mais inte-
guloseimas do voyeurismo sociopolítico. ressante, um jogo feito por uns poucos
Com a anuência que tivesse de artistas e homens negros que arriscavam o respeito
curadores, essa mostra exempli¿ cou o de que os demais ainda desfrutavam.

__________
1
Cokie Roberts é jornalista, branca, de uma das principais redes de TV dos Estados Unidos. (N.E.)
2
Newt Gingrich, então presidente da Câmara dos Representantes (Deputados) dos Estados Unidos, representa a expressão
máxima da extrema direita no poder, implementando políticas retrógradas que consolidam o retrocesso em todos os avanços
que a comunidade negra e os pobres em geral conquistaram em administrações anteriores e impedindo a implementação
de qualquer política capaz de bene¿ ciá-los. Clarence Thomas é um negro ultraconservador nomeado à Suprema Corte
pelo presidente George Bush. (N.E.)
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
159

Também é verdade que fui en- nuvens, mas sua bunda não”. Melhor
viado pessoalmente por Cokie Roberts1. fazer o Jogo segundo a compreensão
Jesse Jackson a¿ rmou corretamente em maior da sua ¿nalidade - não apenas para
seu discurso que quem convocara um sobreviver a ele, mas para acabar com
milhão de homens a Washington não fora ele de uma vez. Em termos históricos,
Louis Farrakhan, e sim Newt Gingrich isso signi¿ caria pôr um termo ao dilema
e Clarence Thomas2. Eu compartilhava duboisiano implícito na pergunta: “Como
esse sentimento, mas Cokie e seus com- é que a pessoa se sente ao ser um proble-
panheiros do programa This morning ma?” Assim, vendo as coisas desse jeito,
with David Brinkley, George Will e Sam eu tinha de ir a Washington.
Donaldson, foram quem rebitou meu des-
tino como participante da Marcha. Seus Confesso que fui à Marcha com
narizes torcidos e seu ar de desprezo ao muita hesitação. Eventos recentes, como
interrogar Cornel West e Louis Farrakhan a confirmação de Clarence Thomas
ultrapassaram a sugestão de que só os [como juiz da Suprema Corte], tinham
loucos seguiriam a liderança destes. A ferido e enfraquecido minha con¿ança na
linguagem corporal dos entrevistado- liderança negra. Mas tinha havido outras
res a¿ rmava que esses homens sequer erosões na imagem pública dos homens
deveriam existir. Naquela manhã de negros no decorrer do tempo que me
domingo, uma semana antes da Marcha, ¿ zeram vacilar. Os contínuos e furiosos
tornou-se agudamente evidente para mim ataques de demonização na mídia não
que esses programa constituem vitrines eram perturbadores em si mesmos. Mas
privilegiadas para os brancos (apesar da estava havendo uma espécie de desgaste
presença ocasional de um jornalista de em minha própria credibilidade pública,
cor), simulando a objetividade jornalís- revelado por pessoas agarrando suas bol-
tica com nomes universais como Face sas e por vendedores de lojas mostrando-
the Nation [Cara a Cara com a Nação]. -se tensos com a minha presença. Mais
Assim, como todo o mundo, fui difícil de suportar era o peso do confronto
para Washington como prisioneiro de diário com um monte de homens negros
minhas próprias percepções. Sei que a sadios pedindo esmolas em Nova York,
disposição do Jogo induz a uma repres- Boston, Washington e todo lugar a que eu
são em alguns homens negros que os faz ia. Com o passar dos anos, o contato vi-
¿ ngir que o Jogo não existe. Pois sim. sual se havia dissolvido no desconforto,
Essa linha de raciocínio afastou muitos e o informal “e aí?” entre negros que se
de nossos irmãos. Mas quando a ação cruzavam se tornou motivo de nostalgia.
foi cometida e sua cabeça está na linha Era mais difícil acostumar-se à forma
de fogo, você tem de se mexer, indepen- como, em público, mulheres negras fran-
dentemente do medo de ser explosivo ou ziam seus olhos dizendo sentir-se mais
não. Baraka tem um verso que diz mais seguras com qualquer pessoa que não um
ou menos que “sua mente pode estar nas homem negro. Essas irmãs sabiam o que
160 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

as mulheres brancas, horrorizadas, pre- em troca, etc. A reportagem da CNN tam-


feriam negar - que a brutalidade na vida bém não deixou totalmente claro que ele
das mulheres vem do homem com que dissera a mesma coisa dos comerciantes
partilham sua cama ou sua casa. Havia coreanos, árabes e negros. Para mim,
uma nuvem por sobre o estar-no-mundo a Marcha não foi jamais um referendo
dos homens negros. sobre a pessoa de Farrakhan e o que ele
havia dito no passado. De fato, quando
a idéia da Marcha captou minha atenção
Eu estava tão ansioso quanto a pela primeira vez, Farrakhan era apenas
ir à Marcha que mesmo ao partir para uma de várias ¿ guras apresentadas como
Washington ainda tinha dúvidas. Nos seus defensores. Mas tinha havido uma
últimos tempos tinha havido discursos perigo momentâneo de que ele estivesse
bombásticos, escatológicos, maliciosos pintando as vésperas da Marcha com as
em que cada orador negro tentava superar
cores de um ódio pessoal que eu não
o outro em termos de retórica sórdida
podia compartilhar. Mesmo quando
contra os judeus, e também contra qual-
me dirigia ao Mall naquela manhã de
quer ¿ gura pública negra que não lhes
segunda-feira, estava mentalmente pre-
compartilhasse a histeria - e eles eram
parado para ir embora ao primeiro sopro
calorosamente aplaudidos. A Marcha
de embuste. Assim, minhas oscilações
não prometia ser do mesmo tipo, mas
emocionais eram mais violentas do que
havia o risco de, pelo comparecimento,
subscrever tais atitudes. aquelas demonstradas nas atitudes das
¿ guras públicas nacionais, e carregavam
Uma observação de Farrakhan maior bagagem pessoal.
na CNN quase me fez parar de arrumar
as malas - um comentário sobre os judeus Tão logo me aproxime i do
como “chupa-sangues”. Fiquei furioso Capitólio, fui inundado pela percepção
por esse comentário ter sido feito tão per- do quanto estava errado. Era como se
to do dia da Marcha, implicando todos os centenas de pessoas Àuíssem em dire-
participantes. Mas minhas suspeitas em ção à doçura, não conduzidas por um
relação à mídia contiveram meu impulso Àautista multicor, mas trazendo consigo
de ¿car em casa, de modo que decidi ir a doçura para misturá-la com qualquer
a Washington e de lá avaliar a situação, mel que tivesse passado antes. Logo
ainda sem saber se iria participar. O Wa- de cara, podiam-se notar muitas jovens
shington Post deu uma idéia mais precisa caminhando de mãos dadas com os na-
da questão. Farrakhan estava tentando morados em direção ao Mall, e alguns
explicar um comentário anterior. O que homens e mulheres brancos sozinhos em
a entrevista da TV não deixou claro foi meio a dezenas e centenas de homens
o tempo passado do verbo - “Nós os negros andando tranqüilamente. Por sua
chamávamos de chupa-sangues”, porque presença, compreendia-se que esse era
eles tiram da comunidade e não dão nada um evento de massa do tipo faça-você-
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
161

-mesmo, uma performance coletiva de também é um pregador. Seria muito


estilo livre. Mais de perto, podia-se oportuno que sua congregação seguisse
ouvir a oratória vinda dos alto-falantes. seu conselho a cada domingo. Imaginem
Mas, a menos, talvez, para uns poucos todos os encontros, pequenos ou grandes,
milhares na linha de frente, as vozes de motivação espiritual que têm lugar
originárias do pódio não ¿ cavam mais neste país - e só este é confrontado com
penetrantes naquele dia do que uma o argumento de que é melhor ¿ car em
música de fundo para o evento principal, casa.
que era a solidariedade fácil e informal
Eu fui à Marcha porque, de todos
e o espírito fraterno que as pessoas
os sentimentos que o anúncio desta pro-
compartilhavam por sua presença e
duziu, o último, e mais forte, foi o medo
reconhecimento mútuo.
de que eu pudesse ¿ car de fora e depois
Sem dúvida, tratava-se de estar descobrir que o evento chegara perto de
ali. Ou, mais precisamente, tratava-se de representar o complexo drama ideológico
ser, e aquele era o lugar em que uma dife- que, na melhor das hipóteses, eu havia
rente espécie de ser estava redescobrindo imaginado. Confesso de cara ter sido
a si mesma. Em termos do Jogo, os ho- tomado por uma visão torta da história,
mens negros haviam dado um golpe es- talvez reÀetindo meu signo astrológico,
tonteante. Não apenas tinham aumentado vendo os movimentos desta como os de
a aposta, mas alterado drasticamente os quem se arrasta para os lados, ao modo
termos e regras de admissão. Os habituais do caranguejo, em vez de movimentos
e eventuais detratores da masculinidade lineares conduzindo diretamente da in-
negra, assim como seus falsos amigos, tenção ao efeito.
foram subitamente atirados à defensiva.
Como se viu, eu estava a meio
Os homens negros reapropriavam-se
caminho da verdade, de uma forma
com urgência da sua autode¿ nição, e os
que eu não havia esperado. A Marcha
que não estavam preparados para essa
realmente provocou uma reordenação
reviravolta mostraram seu desespero.
na paisagem político-ideológica. Mas o
O sinal dessa confusa hostilidade foi a
novo cenário era muito diferente daquele
tolice destilada nos comentários negati-
que eu imaginara. O mais surpreendente
vos que Àuíram pela mídia. J.C. Watts,
foi que a paisagem político-ideológica
o deputado federal negro republicano
que estava sendo rearrumada à minha
de Oklahoma, foi um dos muitos com-
frente era aquela que eu tinha na cabeça.
petidores pelo prêmio da estupidez que
Tal como o herói de Ralph Allison em
questionaram por que os participantes
tiveram de ir a Washington. Por que O homem invisível, venho sentindo o
simplesmente não ¿ caram em casa para choque posterior de um bumerangue. O
meditar sobre seus pecados e promessa evento estava me mostrando rapidamente
de expiação? Creio que esse homem que minha visão histórica das duas últi-
162 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

mas décadas havia se tornado enviesada. nacional, eleitoral, feijão-com-arroz,


Sutilmente, eu me ajustara a um cenário trivial. Ao descartarem os problemas
nacional em que quase todos os grupos dos homens negros como um tanto de
podiam contribuir para sua própria de- distração o¿ cial em relação à política de
¿ nição social, menos os homens negros identidade que defendem, os acadêmicos
heterossexuais. liberal-esquerdistas se omitem do mesmo
que os cínicos hiperanarquistas para os
Uma das recentes evoluções
quais votar é ser enganado.
do pensamento liberal-esquerdista a
respeito de raça, classe, gênero e identi- Cercado por essa visão das coi-
dades nacionais tem sido o fracasso em sas, percebi a partir da Marcha que eu
reconhecer a existência de importantes vinha aprendendo a não levar em conta
exclusões e casos extremos. Os liberais a relevância e mesmo o papel central dos
brancos orgulham-se de seu progresso na homens negros na luta pela humanidade
direção de se tornarem cegos à cor sem ao ¿ nal do milênio, e a perder a convic-
ção de que eles podem - nós podemos
admitir para si mesmos que ¿ cam mais à
- desempenhar um papel decisivo nessa
vontade com alguns grupos não-brancos
luta, ao mesmo tempo em que lutamos
do que com outros, e às vezes com negros
para nos reconstruir. Meus colegas de
de pele mais clara, ou com negros de
Marcha estavam me relembrando que
origem birracial ou casados com brancos,
essa renovação não precisa ser feita à
do que com negros menos hifenados. Os
imagem desejada por aqueles que por
defensores do multiculturalismo agem
décadas têm excluído nossa política
da mesma forma, sem perceber que de consideração, julgando-a retrógrada
suas visões de um harmonioso melting- e circunstancial. Houve um momento
-pot têm pouco a ver com os casos mais semelhante alguns anos atrás, quando
persistentes e profundos de alienação também percebi que estava vacilando. Eu
urbana nos Estados Unidos. E os rema- havia me engajado na tarefa de sugerir
nescentes de uma política de identidade nomes para a concessão de diplomas
liberal-esquerdista, tal como se desenrola honorários em minha universidade. An-
no campo acadêmico, não parecem dis- sioso por reverter os vieses da história,
postos a reconhecer que a estruturação de dediquei o meu apoio a pessoas merece-
suas agendas sempre excluiu as questões doras e já consagradas. Mas após uma
centrais incorporadas às di¿culdades dos sucessão que orgulhosamente incluiu
homens negros. Como se as questões Toni Morrison, Maya Angelou e outras
levantadas em torno dos homens negros grandes mulheres negras, pensei que
pertencessem a uma outra e desprezível talvez fosse a hora de propor um homem
política - uma política não incluída nas negro. Tentando encontrar um nome,
elegantes e prestigiosas fronteiras da produziu-se um vazio em minha mente.
discussão, mas empacada na sórdida A equação entre honrarias e homens
arena da disputa quotidiana da política negros não viria naturalmente. Também
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
163

me lembro de uma conversa com um ci- palavra escrita, além “Marcha de Um


neasta gay em que eu indaguei, pensando Milhão de Homens, Washington, DC,
em voz alta, se era viável a idéia de um 16 de outubro de 1995”, era UNIDADE.
homem negro heterossexual na “posição Guardo essa Àâmula com carinho porque
de sujeito”. (Uma das medidas do valor é a única lembrança que pude trazer
de Cornel West no cenário atual é que ele, que não exaltava o nome ou o jogo de
praticamente sozinho, foi então capaz alguém. Não me foi possível ler em seu
de indicar que formas poderia assumir rosto qual era a sua política. Mas me senti
essa posição.) Eu tinha sido seriamente abençoado, reconhecido, quando ela me
enganado. deu uma. Viajamos de uma estação para
Na Marcha em si, minha maior outra, e após uma pausa ela deu uma
surpresa foi o espantoso apoio de tantos delas a outra irmã negra, menos re¿ na-
milhares de mulheres negras ao Dia e aos da, antes de descer na estação seguinte.
homens nele envolvidos. Não ouviremos Houve também a irmã na janela da bi-
falar delas nos meios de comunicação, lheteria do metrô que estava se valendo
mas elas estavam lá, por toda a cidade, de qualquer desculpa para caprichar o
sorrindo incentivos e mesmo juntando- serviço de trens em benefício dos homens
-se espontaneamente à Marcha, às vezes negros retornando da Marcha. Esses são
com namorados e maridos, às vezes não, dois exemplos, mas percebi esse tom de
ocupando estandes de primeiros socorros esperança em quase todas as mulheres
e de apoio psicológico, e assim por dian- com que cruzei na Cidade Chocolate.
te. A sensação desse apoio das mulheres Se a posição das feministas ne-
negras em Washington foi sólida e for- gras era de que a Marcha era uma traição
talecedora. ás mulheres negras, essas mulheres não
Uma irmã em especial perso- haviam captado a mensagem. Mas a
ni¿ ca esse apoio em minha memória. verdadeira revelação foi que o grosso das
Encontrei-a num carro cheio do metrô. mulheres negras não construiu sua reali-
Usava um casaco branco de pêlo textu- dade em torno do compromisso de ver os
homens negros como seus competidores.
rizado com uma gola ampla e um cinto
preto. Estou tentando dizer que seu estilo Sem dúvida, muitas dessas mulheres
compartilhavam a visão de uma irmã que
era ao mesmo tempo elegante e ousado.
ouvi dizer a seu parceiro: “Você tem tanto
Com o cabelo chanel, limpa, tinha o ar
motivo para arrependimento que eu pago
sério e controlado de uma Angela Bas-
seu bilhete para Washington!”
sett. Trinta e poucos anos, elegante e de
boa aparência. Seu rosto transmitia serie- Pense i ter reconhecido nas
dade, e de tempos em tempos ela escolhia mulheres negras, naquele dia de outono
alguém na multidão e lhe entregava uma em Washington, uma fome de liderança
pequena Àâmula de plástico vermelha, dos homens negros que até então me era
preta e verde sobre fundo branco. A única desconhecida. Eu não desejara ver isso.
164 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

Após tantos anos apoiando a igualdade em uma base única de debates moldada
das mulheres, essa fome era um intruso para garantir a recitação de suas queixas.
em minha grade cognitiva. Com efeito, Quando se trata de organizar temas e fó-
eu imprimira nos meus sentimentos, após runs, as feministas negras têm mostrado
o desastre Clarence Thomas-Anita Hill, um desinteresse pela diversidade ou pela
que a única estratégia inédita e necessária construção de coalizões que incluam
para a comunidade negra era aumentar a homens negros heterossexuais.
liderança feminina. Tal liderança, pensa- Para alguns setores do feminis-
va, poderia trazer à tona as contradições mo negro, a acusação de que a Marcha
que impediam a elevação do grau de era separatista em termos de gênero
consciência da comunidade, mantendo-a implicava uma amnésia momentânea.
em um nível obviamente baixo. O separatismo consciente e deliberado
Mesmo então estava claro para tem sido uma característica do feminis-
mim que a idéia de liderança negra fe- mo negro durante a maior parte de sua
minina tinha de existir fora dos limites história recente. (A defesa, por Alice
do feminismo negro com o qual estava Walker, de uma separação periódica entre
familiarizado. Eu tinha em mente uma os sexos para descansar um do outro e
liderança negra feminina com uma pers- renovar a solidariedade interna, tal como
pectiva mais ampla do que a retórica de exposta em seu romance The temple of
gênero da maior parte do pensamento my familiar, oferece um exemplo dessa
feminista negro. Angela Davis é uma tendência separatista.) Outro produto da
das poucas feministas negras com visão amnésia é o esquecimento de um refrão,
política su¿ cientemente ampla para o freqüente entre as feministas negras du-
tipo de liderança geral em que eu estava rante os anos setenta e oitenta - “Por que
pensando. Muitas mulheres negras com vocês, homens negros, não se organizam
que eu falei antes do evento, incluindo e acertam seus problemas?” -, como se
minha ¿ lha Zinzi, queixaram-se de que a considerável e valiosa construção da
este não fora concebido para incluí-las. irmandade que as mulheres negras busca-
Isso teria sido, de qualquer modo, muito vam precisasse de um complemento entre
difícil. Mas não consigo imaginar uma os homens negros. Talvez as feministas
agenda ampliada que tivesse satisfeito negras quisessem dizer exatamente isso,
as feministas negras, as quais exigiam mas não na forma e na escala da Marcha
um programa totalmente diferente. Tal de Um Milhão de Homens, e sem ser
cenário também induziria a uma outra conduzido por elas.
faceta do Jogo, com a identidade dos Não posso ser o único a relem-
homens negros sendo mais uma vez brar algo desse diálogo: como os homens
negociada por outrem. As feministas em geral, e os negros em particular, têm
negras têm uma história de controlar as pouca capacidade de se reunir e pôr de
agendas em que se envolvem e de insistir lado suas fachadas e máscaras e mostrar
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
165

seus verdadeiros sentimentos recíprocos menos do tipo “Não vejo chifres” ou


e talvez se abraçar, de tal modo são se- “Que há de errado neste quadro: eis-nos
parados por uma idéia de masculinidade aqui e não há demônios pairando no
bloqueada e conduzida pela ansiedade. ar...”. Uma das mais antigas aventuras
Assim, quando alguns irmãos se reúnem de Hollywood no reino da transmutação
em grande estilo e começam a fazer al- de imagens ocorreu no ¿ nal de O médico
guma coisa nesse sentido, as feministas e o monstro, quando Spencer Tracy está
negras não fazem senão gritar: “Jogo morrendo como Mr. Hyde, todo peludo,
sujo!” cheio de garras e monstruoso, e, ao ex-
Constitui um importante pano pirar, seu rosto reverte lentamente a sua
de fundo para a Marcha o fato de que o aparência “normal”, distinta e decente.
impulso da retórica feminista negra tem Algo assim ocorreu àquele milhão de
sido o de se afastar verbalmente dos homens. Para mim, o principal na Mar-
homens negros quando estão sob ataque, cha não foi a maioria das coisas de que
como que dizendo: “Não estamos com falaram aqueles que não compareceram;
eles.” As feministas negras pareciam foi ver a própria face reÀetida no espelho
estimular uma reconstrução do alvo do de milhões de outras e não ver nada de
racismo para se excluírem dele. Muitas sobrenatural, mas tampouco nada que se
delas viram como lucrativo ignorar a precisasse odiar. Está bem, então eu con-
realidade de um centro moral no interior fesso. Ficamos gostando uns dos outros.
da população negra masculina, como se Creio que Marlon Riggs, o bri-
tivessem aprendido esse truque com os lhante cineasta gay negro recentemente
guardiães da mídia nacional. morto de AIDS, deve ter encontrado
Com esse pano de fundo, foi alguma coisa para celebrar no evento.
ainda mais surpreendente que o tom do Porque Marlon era um ativista gay ne-
encontro no Mall fosse de um tipo de gro que buscava a unidade na luta de
responsabilidade moral supostamente libertação negra entre homos e heteros
inexistente. O evento não pareceu de comprometidos com a mudança progres-
perto um “perigoso apelo nacionalista a sista. “Homens negros amando homens
uma masculinidade negra romantizada”, negros constitui o ato revolucionário”,
como descreveu Kristal Brent Zook num disse ele no seu ¿ lme Tongues untied
artigo da New York Times Magazine, um [Línguas libertadas]. Esse pensamento
dos mais recentes anúncios ensaísticos soou como uma profecia no Mall naquela
do feminismo negro (12 de novembro calma tarde de outono. E talvez seja por
de 1995, p. 86). Visto do Mall, parecia isso que tantos dos que se de¿ nem como
um palco montado por aquele milhão excluídos do sentimento daquele mo-
de homens para autoconfrontações mento percebam uma necessidade de se
dramáticas. Nossos pensamentos não- defender da possibilidade de ter havido
-vocalizados devem ter sido mais ou ali muito de positivo.
166 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

Foi aí que outra série de lições aos homossexuais. Assim, segundo essa
chegou desembrulhada, tal como pre- narrativa, só seria possível a um homem
sentes indesejados. Não surpreende que livrar-se da homofobia aceitando o ho-
a Marcha tenha sido desrespeitada ou mó¿lo ou a mulher no interior do seu ego
descartada em tantas plagas. A “divisão masculino.
racial” que saiu da caixa após o veredicto
Depois do Mall, contudo, co-
de O. J. Simpson foi muito semelhante à
mecei a ver como esse tipo de equação,
divisão a respeito do signi¿ cado da Mar-
embora basicamente persuasivo, podia
cha. Uma vez mais, aqueles que estavam
ser facilmente levado ao exagero. Padece
lá e que foram tocados por seus valores do fato de fazer de outrem o guardião de
estão muito distantes dos que farejam em
nossa consciência. Desconsidera a capaci-
busca de evidências incriminatórias.
dade de respeitar a diferença do outro sim-
Mas o tom era de reconciliação. plesmente porque essa é a coisa decente a
Na medida em que confraternizavam, os ser feita. Rejeita os pequenos excedentes
participantes descobriam uma energia de signi¿cado e valor que se derramam
moral vinda de um espaço histórico de para fora e para além desses binários. Não
anos atrás, antes que gênero, orientação dá espaço às artimanhas e descobertas
sexual, religião e mesmo raça se tornas- casuais no acidentado Àuxo da história.
sem marcadores a determinar a posição Depois do Mall, passei a acreditar que
congelada de cada um a respeito de todas os homens negros, após a instigação e os
as questões sociais. Era a concepção de protestos por vezes a¿ados das mulheres
mudança progressiva que envolvia ho- e dos gays, podiam ampliar sua visão
mens e mulheres, e creio que envolvia moral sem se submeter a um esquema
heteros e gays, e na emoção do momento psicológico pré-delineado e sobre eles
ela atingiu uma epifania de preocupação imposto por alguém como se partisse de
humanista que englobou a população uma autoridade externa superior.
do mundo como um todo. Transitória,
Pareceu haver entre as pessoas
talvez, mas não romântica.
presentes ao Mall uma compreensão da
O que também ¿ cou desman- provável rejeição nacional às promessas
telado para mim foi uma certa simetria daquele momento. Mesmo o forte tom
formalista naquilo que se chama de po- da auto-ajuda foi malcompreendida do
lítica da diferença. Através da psicologia outro lado da “divisa”. Um formador de
existencialista de Jean-Paul Sartre e do opinião da CNN, de viés conservador,
raciocínio dialético de Marx, surgira o saudou o refrão dos oradores da Mar-
conceito de identidades co-definidas: cha de que precisamos parar de culpar
os brancos recebem sua identidade por os brancos e nos concentrar no que os
serem outros em relação aos negros, e negros podem fazer por si mesmos, mas
os homens se vêem como masculinos lamentou que não tenham o mesmo cré-
somente em oposição às mulheres ou dito que Farrakhan os neoconservadores
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
167

negros como Thomas Sowell, que tam- Isso é parte da atração que o farrakha-
bém vêm defendendo essa política. Mas nismo militante exerce sobre univer-
a diferença entre as duas versões deveria sitários negros nostálgicos dos anos
ser óbvia. Existe a auto-ajuda individual sessenta como uma Idade de Ouro do
à la Ben Franklin, que cativa muitos engajamento e do ativismo social. Pois
conservadores, e existe a auto-ajuda de Farrakhan possui algo do carisma de um
grupo, que pode ser coisa diferente. A líder de movimento subterrâneo, alguém
¿ loso¿ a conservadora também não quer que poderia ter saído das páginas de O
ver a a¿ nidade entre auto-ajuda e auto- homem invisível, como Ras o Destruidor,
determinação. Os oradores que se aque- que ainda fala usando termos ideológicos
cem em torno da perspectiva do ¿ m das inequívocos e antiquados. Os negros
denúncias do racismo e de suas injustiças norte-americanos sempre reservaram
sentem nisso uma versão do discurso do um lugar especial, se não principal, para
chefe Joseph, dos Nez Perce, depois que líderes cuja retórica do tipo “queimem as
sua nação foi aniquilada: “Nunca, jamais pontes deles” os estabelece como pessoas
voltarei a lutar.” Mas o sentimento de que jamais seriam aceitas pelos brancos e
auto-ajuda no Mall surgiu de uma pre- que, portanto, têm menos oportunidades
missa diferente. Para que preocupar-se de trair os seus iguais.
em conduzir uma política de denúncia
das iniqüidades de base racial quando Por contraste, Jesse Jackson
isso não vai produzir resultados num ganha menos pontos nesta era de pola-
clima político que alimenta “brancos ira- rização racial porque seu conciliatório
dos” cuja reação se reÀete nas pesquisas? movimento Arco-Íris não funcionou,
O fosso se alarga. fazendo-o parecer, no crucial barômetro
da fúria racial, uma bolha de sabão.
A especulação que irrompeu na Num período anterior, Jackson montou
mídia a respeito de Farrakhan desde a uma campanha plausível para presidente
Marcha me faz lembrar da forma como apoiando-se numa Coalizão Arco-Íris,
os ¿ lmes de Hollywood abordam espi- mas acabou sendo posto de lado, em
nhosos problemas políticos enredando-os parte devido à intensa reação provocada
todos na história de um indivíduo. Pode- por uma observação tola. Uma década
-se separar a mensagem do mensageiro depois, quando as relações raciais pio-
no sentido de que a mensagem, o milhão raram sensivelmente, Jackson é visto
de homens no Mall, será para sempre a como menos relevante e os Estados
história-chave daquele dia. Unidos se preocupam com a crescente
Por que aconteceu de apenas atração exercida por Louis Farrakhan.
Farrakhan obter sucesso em realizá- Essa seqüência é quase auto-explicativa
-la? Porque a Nação dos Islã é a única e deveria prescindir da necessidade de
organização que ainda traz algo da aura tantos artigos de capa sobre o fenômeno
militante dos engajados anos sessenta. da ascensão de Farrakhan.
168 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

As interpretações da Marcha que No auditório, outros momentos apavo-


a vêem como endosso a Farrakhan têm rantes. Sobre o tablado, reconheço Alvin
lugar junto a todos os outros atalhos de Walcott - freqüentamos o mesmo ginásio
raciocínio que negam a complexidade do em Boston - olhando para mim e rindo,
povo negro em favor de nítidas reduções como se dissesse: “Então, você não está
icônicas. O arcabouço mental que espe- muito orgulhoso de entrar aqui, apesar de
ra que os negros condenem Farrakhan tudo!” E então eu vejo seu irmão Gene,
ao mesmo tempo em que descarta o conhecido como Louis X, que depois
racismo que lhe dá poder assemelha-se se tornaria Farrakhan, num lugar mais
à suposição de que os negros deveriam central da plataforma, não sorrindo, mas
fazer da superação do anti-semitismo olhando ¿ xamente para mim, de certa
uma prioridade maior que a necessidade forma desdenhoso de minha visível in-
de desa¿ ar o racismo antinegro e suas correção política fora da Nação do Islã.
desastrosas conseqüências. Venho como um observador social, um
leitor do momento histórico, tal como
Flashback. Início dos anos ses-
iria à Marcha de Um Milhão de Homens
senta. Uma nevasca se abate sobre Wa-
muitas décadas depois. Se a história está
shington, cidade incapaz de suportar duas
lá para ser vista, por que não dar uma
colheres de neve sem entrar em estado
olhada?
de catatonia. Como os ônibus pararam
de circular, sou obrigado a fazer uma O discurso de duas horas de
penosa marcha de duas milhas através da Elijah Muhammad foi outro inesperado
tempestade turbilhonante para assistir à bumerangue. O sentido dramático era
cerimônia de abertura do primeiro tem- elevado; a poderosa retórica elevava-se
plo da Nação do Islã por ela construído ao lado de riscos políticos reais. Havia
desde os alicerces, e na capital do país. dilemas e quebra-cabeças ideológicos em
Descrevo esse percurso forçado porque número su¿ ciente para estontear um dia-
designei a Nação do Islã como tema do lético. O impulso principal do discurso
trabalho ¿ nal de um estudante meu de de Elijah era contra a integração e o mo-
primeiro ano, instei-o a obter material vimento não-violento. Embora naquela
de primeira mão nesse evento e desejo época eu não estivesse convencido pelo
estar lá para checar a sua versão com a discurso da não-violência, eu resistia à
minha. Ele não consegue ir, mas Elijah lógica oito-ou-oitenta desse profeta, a
Muhammad ¿ nalmente aparece após um sua retórica paroquial e supersimpli¿ -
atraso na chegada de seu vôo. cada: “Por que vocês querem forçar sua
presença junto a alguém que não os quer
A cena é tão estranha e mítica
por perto?”
como podem ser as coisas em alguns
nichos da negritude: a revista na entrada, Veio então a epifania, o momen-
o recolhimento de nossos pertences de to inesquecível. Por sobre as primeiras
bolso, a separação de homens e mulheres. ¿ leiras de membros da Nação, ele olhou
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
169

para nós, ouvintes menos engajados. “O óbvia? E se Elijah Muhammad pudesse


homem branco não ama vocês.” Ele o apresentar hoje essa mesma observação
repetiu, seus olhos fazendo uma pano- a suas muitas platéias de “perdidos e
râmica do auditório e, imaginariamente, achados”, como os muçulmanos negros
trancando-se com os meus por um se- costumavam chamar os que estavam à
gundo. “O homem branco não ama vo- margem de sua sabedoria organizada,
cês.” Isso não era exatamente novidade. qual poderia ser a replica?
Mas a aguda lucidez dessa frase, em seis
Elijah Muhammad tivera um
palavras concisas, cortou o ar naquele
efeito poderoso sobre meu pensamento,
momento em que retóricos dos direitos
mas eu não me tornei um seguidor, nada
civis nos pediam para rezar por terroris-
próximo a isso. Dizer que as pessoas não
tas que punham bombas em igrejas. Sua
podem separar a mensagem do mensagei-
própria simplicidade incontestável era de
ro é dizer que elas são estúpidas e incapa-
tirar o fôlego. Como podia eu, com minha
zes de pensar por si mesmas. É submeter
lógica de professor universitário, negar
o povo negro a uma teoria histórica do
essa proposição sobre a qual tudo mais
Grande Homem que já custou muito
se baseava, essa verdade fundamental da
do ponto de vista do desenvolvimento
história norte-americana? Num tempo
da organização política dos negros. É
em os “Negroes” - apreendam bem o
advogar um culto à personalidade que
sabor dessa palavra agora, e lembrem-
é historicamente atrasado. As pesquisas
-se de que foi a Nação do Islã, mais que
que mostram vários graus de apoio a
qualquer outra força, que ridicularizou
Farrakhan na Marcha devem ser vistas
esse termo e o baniu de nossas bocas -
como tão hipotéticas quanto os números
chamavam de “Crackers” as pessoas que
referentes ao tamanho daquela multidão.
estavam botando bombas em igrejas e
Um irmão, indagado sobre o modo como
lares e assassinando líderes, juntamente
ele próprio e as pessoas à sua volta se
com funcionários do Governo carentes
sentiam a respeito de Farrakhan, disse
de coragem para usar os poderes a seu
aos entrevistadores, de cujos compromis-
dispor e defender os direitos civis dos
sos políticos ele e os outros suspeitavam:
cidadãos negros. O comportamento da
“Não queremos nem entrar nesse assun-
maioria dos brancos norte-americanos
to.”
dotava de dentes a clara e aguda retórica
de Elijah Muhammad. Se ele falava co- Para mim e para muitos, não
nosco como se fôssemos crianças, talvez apenas Newt Gingrich e os reacioná-
o merecêssemos por termos de nos es- rios de cabeça igual à dele convocaram
forçar tanto para tropeçar nessa verdade aquele milhão a Washington, mas os
transparente. Será que é preciso ler Niet- skinheads de terno como ele constituem
zsche ou Kierkegaard ou Heidegger para os recrutadores de elite para Farrakhan
desenvolver a mente de modo a poder como líder nacional. Assim, o próprio
receber (ou rejeitar) uma proposição tão Farrakhan foi um fator pequeno no meu
170 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

comparecimento, da mesma forma como número. Se esta nação foi construída


provavelmente será um fator pequeno na sobre a necessária crença fundamental no
determinação de minhas futuras lealda- direito inalienável de se sentir superior
des. Quando minha fúria se sobrepõe à ao povo negro, e aos homens negros em
dele, posso uma vez mais estar no mes- particular, e se uma tarde esses homens
mo espaço e, talvez, saudando a mesma rejeitam maciçamente o papel a eles
idéia. Mas me recuso a ser de¿ nido por destinado, alguma coisa importante então
ele ou por minha posição sobre ele, aconteceu. Há algo que cheira ao Jogo
tal como me recuso a ser de¿ nido por quando comentaristas acham tão con-
Willie Horton, O. J. Simpson, Rodney fortável serem super¿ciais ou ilógicos ao
King, Mike Tyson ou quaisquer outras falarem sobre os homens negros. Ellen
reinvenções de King Kong pela mídia. A Willis, no Village Voice - cuja cobertura
noção de que o encontro de um milhão foi uniformemente sarcástica -, banalizou
de homens representou uma coroação de o evento e seus participantes ao compará-
Farrakhan faz-me lembrar de como os ra- -los com os de Woodstock. Os Àagrantes
cistas atacavam os militantes dos direitos fotográ¿cos favoritos mostravam irmãos
civis sob a acusação de serem fantoches abraçando-se e confraternizando em
incautos do Partido Comunista. comemoração, mas o que mais me ¿ cou
Farrakhan pode estar se repo- na lembrança foi o clima pensativo e
sicionando para um papel de liderança cuidadoso. Não nenhuma caixa de som,
mais ampla, mas essa transição está nenhum boné de beisebol virado para
sendo feita de maneira inábil. Ainda não trás, nenhuma briga de rua; não houve
há sinal de que ele venha a passar por violência, drogas ou álcool; apenas uma
uma conversão como a de Malcolm X prisão. Também não houve nenhum
depois da Meca, e somente isso poderia modo de expressão que comediantes
tornar sua liderança realmente atraente negros como os Wayan caricaturam
segundo as melhores tradições da luta para ganhar uma fortuna com lucrativas
negra. Ele teria de renunciar à homofobia representações distorcidas da negritude.
e ao sexismo. Teria de reconhecer que o Não foi um cenário de hip-hop. A postura
anti-semitismo é uma manifestação do básica era ouvir - os discursos, é claro,
ódio a si próprio. A atração de Farrakhan mas também as palavras do ouvido inte-
baseia-se em resoluções emocionais de rior de cada um, as milhares de narrativas
curto alcance cujo efeito é solapar o curso que produzem identidade. E a postura
racional, humanístico que, no longo pra- corporal básica era em pé, como eu per-
zo, deve constituir o melhor guia para as cebi nas poucas vezes em que me sentei
pessoas de ascendência africana. no chão para brincar com uma câmara.
A questão mais importante é o Os participantes da Marcha erguiam-se
signi¿ cado daquele milhão, em oposição como sentinelas de suas próprias cons-
a qualquer personalidade no meio desse ciências.
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
171

A Marcha foi um evento notável, nacional e como estruturadora de sua


não pela euforia do congraçamento e res- marginália, possui uma atração magné-
solidi¿ cação da Iraternidade, alJ o muito tica para o pensamento e para o com-
bonito, mas pela maneira como tornou portamento irracionais, e grande parte
possível uma reavaliação, a partir tanto destes está preocupada com as possibi-
de dentro quanto de fora de sua perspecti- lidades especí¿ cas dos Komens neJ ros
va. Não foi um ritual pagão, como muitos como força capaz de alterar o caráter
preferem vê-la. Não foi uma revolta de social da nação. Portanto, há espaço na
escravos, embora pipocassem os temores imaginação norte-americana para um
nesse sentido, particularmente entre os agente de mudança que possa alterar a
habitantes brancos de Washington que direção da história nacional e, não por
naquele dia optaram por ¿car em casa, sua escolha, os homens negros são vis-
faltando ao trabalho. Foi uma oportuni- tos como os mais prováveis ocupantes
dade para que os presentes - e pelo meu desse papel. Essa convocação indeseja-
cálculo eles eram um de cada 15 homens da explica os estonteantes extremos no
negros pós-adolescentes dos Estados destino dos homens negros - de um lado,
Unidos - reconhecessem nas próprias a degradação, a extinção moral, a perda
mentes a sua realidade. Apesar de tudo de caráter; de outro, algumas das mais
que foi dito a favor ou contra o tema espetaculares realizações, em âmbito
do arrependimento e da reparação, esse nacional e internacional, em qualquer
tema ajudou a produzir um espetáculo arena em que tenham a oportunidade
profundamente meditativo. de participar.
Para mim, um reexame indica A peculiar natureza dessa convo-
que a eletricidade produzida pelos ho- cação histórica desempenha um papel no
mens negros em todos os cantos dos evidente desejo por uma liderança negra
Estados Unidos não vai dissipar-se muito masculina, mesmo entre os milhões de
cedo. Os homens negros estão numa po- mulheres negras. Esse papel ambíguo
sição paradoxal em relação à liderança: de Antiescolhidos deve ter algo a ver
o jogo histórico coloca continuamente com o fato de os ataques ao povo negro
exiJ ncias m~ltiplas e conÀitantes soEre freqüentemente terem uma ponta anti-
eles para que produzam resultados deci- masculina. O reconhecimento dessa re-
sivos a partir de suas ações, ao mesmo alidade pode ajudar a explicar aquilo que
tempo em que coloca grandes obstáculos de outra forma poderia ser tomado como
à realização de tais demandas, inclusive uma obscura ânsia patriarcal da parte de
uma inimizade concentrada, dirigida muitas mulheres negras. E também, al-
precisamente no sentido de destruir essas gumas vezes, esse viés antimasculino do
possibilidades de liderança. racismo provavelmente nutre impulsos
A negritude nos Estados Unidos, parapatriarcais na população negra como
como Iator central para a autode¿ nição parte de sua resistência.
172 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

A Marcha indica que a política lógica não pode ser confundida com
focalizada em gênero das últimas déca- um apelo para se voltar àquele código
das tem sido hesitante em compreender de comportamento do século XIX pelo
essa circunstância histórica. A ânsia por qual as mulheres negras mostravam
desessencializar a negritude à custa da condescendência com os homens negros
identidade dos homens negros heteros- em função dos tempos difíceis que estes
sexuais levou uma surra em Washing- viviam.
ton. Encontrou-se no Mall uma ampla
diversidade dentro de uma identidade O feito singular mais marcante
central que alguns intelectuais negros da Marcha sobre o Mall foi a instantânea
reconstrução da identidade do homem
têm desejado fortemente desintegrar. O
espaço crucial que tem sido moldado negro heterossexual digno e sério. Mui-
especialmente para os homens negros, tos observadores estão à espreita para
ver quais serão os resultados da Marcha
para que estes o preencham bem ou mal,
em termos do progresso social negro.
querendo ou não, é apenas um fato - é,
Milhares já responderam ao apelo para
assim, uma parte do cenário, tal como o
que se comprometam na ação em suas
racismo, e com certeza um de seus sub-
comunidades locais. Mas o que também
produtos. Não se trata de uma realidade
se está espreitando é a capacidade de di-
imutável da natureza, mas de um dado
versas posições de identidade ameaçadas
social/histórico.
aceitarem como verdadeira e válida essa
Creio que o objetivo de se ex- ressurrecta categoria de humanidade.
pandir a liderança negra feminina e sua Muitos dos que se davam bem com a
aceitação geral em todos os setores da marginalização do conceito de homem
população negra constitua o índice mais negro responsável estão temerosos de
¿ dedigno da igualdade de gênero que que a Marcha tenha virado a mesa no
deve ser parte de qualquer ordem social sentido de sua própria marginalização.
humanista e progressista. Mas a busca de E de fato, a partir de agora, a recusa
tais possibilidades é obstruída por uma em conceituar a moralidade do homem
limitada e supersimpli¿cada ideologia de negro parecerá cada vez mais uma au-
soma zero que iguala a liderança negra tomarginalização. Um reconhecimento
masculina ao patriarcado. Se podemos dessas novas e diferentes circunstâncias
ver a liderança negra feminina como um emerge do artigo de Kristal Brent Zook
sinal de igualdade, e não simplesmente na New York Times Magazine: “Agora,
como matriarcado, devemos ser capazes mais do que nunca, é o momento para
de historicizar a liderança negra mascu- uma complexa unidade entre mulheres
lina contemporânea como algo diferente e homens negros, uma unidade diferente
da pura e simples hierarquia. Mas essa da habitual.”
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
173

Os inte lectua is negros que


moldaram suas carreiras distanciando-
-se dos homens negros heterossexuais,
assim como seus correlativos brancos
cujas opiniões negativas sobre a Marcha
ressoaram fortemente no Village Voice,
deveriam reconsiderar sua dedicação
em estereotipar esses homens e, em vez
disso, incorporar um grau maior de com-
plexidade ao pensar sobre eles. A história
dos Estados Unidos está cheia de movi-
mentos que fracassaram em sua luta pela
mudança progressista por não poderem
chegar a um acordo com as forças que
¿ zeram um milhão de homens reunir-se
no Mall a 16 de outubro de 1995.

* Este artigo foi publicado originalmente,


em inglês, na Revista Black Renaissance/
Renaissance Noir, Vol. I, no. 1 (outono de
1996) Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
Clyde Taylor é professor de inglês na Tufts
University e editor associado da Black Film
Review [Revista Negra de Cinema].
Mar cha de De bofetada, ele esvaziou o meu
balão, e eu nem sei o seu nome.
Um Milhão de Vou chamá- lo de Realidade.
Homens; a r ealidade Eram duas horas de uma manhã de
terça-feira em Manhattan. A essa hora,
de quem? não é raro que algumas ruas se tornem o
lar de homens e mulheres com as mãos
estendidas para algo mais compensador
que um aperto de mão.
Vergonhosa e honestamente, ad-
mito que não mais me mobiliza a situação
dos sem-teto. Um mendigo na rua era
para mim uma visão rara antes da Rea-
ganomics e da Desinstitucionalização1.
Naquela época, um homem sem-teto
como Realidade iria interromper minha
caminhada e forçar-me a procurar nos
bolsos pelo menos uma moeda. Hoje em
dia, minha compaixão discernível pelos
mendigos de rua é apenas temporária e,
infelizmente, nunca dura muitos segun-
David J. Dent dos depois do encontro.
1
A expressão Reaganomics refere-se à política econômica das administrações dos presidentes Ronald Reagan e George Bush (1981-93),
um período de 12 anos em que as políticas de extrema direita prejudicaram ampla e profundamente as classes trabalhadoras e as camadas
mais pobres. A desinstitucionalização refere-se a um dos aspectos dessa política econômica, que foi o desmantelamento das instituições
públicas de saúde, em particular de saúde mental, resultando no simples despejo de milhares de pessoas desabrigadas, rejeitadas pelas
famílias e sem recursos para se sustentar. (N. E.)
176 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

No entanto eu ¿ quei perturbado possível distingui-los na multidão. Eu


nessa manhã de terça-feira quando Rea- apenas sabia de sua presença graças a
lidade, um homem negro, veio em minha um programa de televisão do dia anterior
direção quando eu saía de táxi na frente sobre abrigos de sem-teto que levaram
do prédio de apartamentos em que moro. homens para a Marcha.
Sua presença era desarrumada, puída e
Em um só dia, juntaram-se em
desgrenhada. Indagou-me se eu podia
dar-lhe um troco, pergunta que tantas Washington, num único espaço aberto, as
vezes ouvi nas ruas de Nova York e, na imagens predominantes de homens negros
pressa, ignorei. que eu conhecera pessoalmente em 36
anos. Desintegraram-se as contrastantes
Por um momento anormalmente e populares imagens dos homens negros
longo, nessa manhã, Realidade pareceu tão como seres predadores, vagabundos e
estranho e irreal que eu lhe dei um dólar.
problemáticos que, se entre 18 e 24 anos
Realidade foi um choque porque de idade, têm mais probabilidade de estar
era diferente de tudo aquilo que eu vira na cadeia do que na universidade. Um dia
num dia que terminava com a sua pre- de paz na presença coletiva de um milhão
sença. Cerca de 24 horas antes, eu havia ou mais de homens negros foi su¿ciente
tomado um ônibus em Hempstead, Nova para transformar a visão de Realidade
York, com um grupo de homens negros num choque momentâneo. Realidade vi-
joviais e de alto astral. Foi difícil dormir rou o que ele é - um homem necessitado
mais que alguns minutos em meio a sua de ajuda e solidariedade para além de um
conversa interessante a caminho de Wa- momento fugaz de compaixão e mesmo
shington. Falavam sobre atos militares,
de uma nota de um dólar. Realidade é um
Louis Farrakhan, Colin Powell, integra-
homem sem-teto que por acaso é negro.
ção, casamento, Bill Clinton, criminali-
dade, mulheres, mães e pais. Contavam Desde o início eu queria ir, mas
piadas que extraíam das entranhas um nunca pretendi ou esperei ser comovido
riso retumbante. ou inspirado por uma Marcha de Um
Em Washington, ¿ quei surpreso Milhão de Homens. Fui designado para
ao tropeçar em amigos de faculdade e escrever uma reportagem sobre uma
de infância, e com homens que eu havia família que ia à Marcha. Com alguns
entrevistado nos últimos dez anos, desde telefonemas, descobri um portador de
policiais disfarçados até professores e de¿ciência que faria com o ¿lho a viagem
advogados dos direitos civis. Vi nume- a Washington. Percebi que seria uma re-
rosos rostos anônimos de homens negros portagem comovente e até emocionante
que eu jurava ter conhecido, mas não me quando vi pela primeira vez Ricky e Ri-
lembrava onde. Havia homens sem-teto chard Johnson na Igreja do Tabernáculo
naquele Milhão, mas, diferentemente de em Hempstead. Richard Johnson, um
Realidade, não pediam esmolas. Não era rapazinho de 17 anos, alto, magricela e
Mar cha de Um Milhão de Homens; a Realidade de Quem?
David J. Dent
177

tímido, empurrava a cadeira-de-rodas ou não a Marcha acarretaria conseqüên-


de seu pai, Ricky, na entrada da igreja. cias políticas desproporcionais. Como
Esta era o ponto central de mobilização sempre, havia clareza e sinceridade de
e organização para a Marcha em Nassau ambos os lados, assim como demagogia
County, subúrbio de Nova York. e politicagem. Evidentemente, houve
políticos que usaram a Marcha para apa-
Quarenta ônibus estacionados ron-
recer - denunciar Farrakhan para ganhar
cavam do lado de fora da igrejinha. Após
a aprovação dos brancos ou saudá-lo e
uma oração, lá dentro, os organizadores
à Marcha a ¿ m de obter ou garantir o
chamavam as pessoas pelos nomes e as
apoio negro, demonstrando uma suposta
encaminhavam aos respectivos ônibus.
rigidez no compromisso com a causa dos
Havia uma camaradagem e um senso de
afro-americanos. E havia ainda os que
missão contagiantes entre aqueles homens
pretendiam as duas coisas. Abraçavam
reunidos para viajar a Washington e as mu-
a Marcha e sua mensagem, “mas não o
lheres que eram organizadoras ou membros
mensageiro”. Como queiram.
de suas famílias. Todos ali haviam sobre-
vivido ao corredor polonês da crítica e da Há uma questão que se imiscuirá
controvérsia que marcaram o evento. inevitavelmente no aniversário do even-
to, mês que vem: o que a Marcha con-
Pude ver ambos os lados do debate
seguiu ou atingiu realmente? A histórica
que antecedeu a Marcha, quando este se
Marcha sobre Washington, em 19632, foi
tornou uma daqueles temas negros carrega-
vista como fundamental para que se apro-
dos de emocionalismo, uma briga compli-
vasse a legislação dos direitos civis. Não
cada reduzida a perguntas simples: devia-se
vejo nada de importante vindo da Câ-
participar ou não da marcha? Devia-se
mara dos Deputados de Newt Gingrich3
permitir a presença de mulheres? Deixar
que possa ser visto como resultado das
que a Marcha fosse conduzida por uma
pressões políticas contidas na Marcha.
pessoa conhecida por suas observações
Céticos, muitos dizem que a Marcha de
anti-semitas? Os afro-americanos deviam
Um Milhão de Homens, a¿ nal, foi ape-
seguir um homem como Farrakhan?
nas um espetáculo simbólico com pouca
Era m perguntas e ma l- en- substância. Evidentemente, ela pareceu
caminhados. Mais uma vez, muitos a injeção de uma espiritualidade pop
afro-americanos procuravam um tipo nas veias dos Guardiães da Promessa.
de unidade que é impossível para uma Os críticos argumentam que ela não fez
população tão diversificada como a mais que reforçar a posição política de
nossa. Assim, a decisão de promover um demagogo. Os defensores retrucam
__________
2
Foi nessa Marcha que o reverendo Martin Luther King pronunciou seu famoso discurso “Eu tenho um sonho”. (N. E.)
3
Newt Gingrich, então presidente da Câmara dos Representantes (Deputados) dos Estados Unidos, representa a expressão
máxima da extrema direita no poder, implementando políticas retrógradas que consolidam o retrocesso em todos os avanços
que a comunidade negra e os pobres em geral conquistaram em administrações anteriores e impedindo a implementação
de qualquer política capaz de bene¿ ciá-los. (N. E.)
178 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

que ela conferiu legitimidade a um líder. diversidade dos afro-americanos. No


Muitos dos que se encontram entre os caso de Ricky Johnson, por exemplo,
dois campos apontam subprodutos tangí- prótese e cadeira-de-rodas tornaram-se
veis da Marcha, tais como as campanhas símbolos de sua masculinidade, na medi-
de registro de eleitores4. Houve também da em que representavam sua libertação
agências de adoção que encontraram daquela imagem e estereótipo populares
pais para crianças necessitadas arman-
da força masculina associada à proeza
do estandes no local da Marcha. Seus
física. “Algumas vezes me safo apenas
defensores so caSa]es de identi¿car
com a prótese, mas quis vir com ambas”,
organizações políticas que nasceram com
a Marcha - um desses grupos foi fundado diz Johnson, ex-empregado na área de
em Hempstead. transportes que perdeu ambas as pernas
num acidente de trabalho com um trem.
Sem dúvida alguma, a Marcha de
“Mas é importante mostrar que o que a
Um Milhão de Homens teve muitos re-
gente é não está só no físico.”
sultados concretos, e aumentou a adoção
de crianças negras, bem como o registro “Esse e vento ”, acresce nta
de eleitores e a organização política dos Glenn Cherry, um veterinário de Prince
afro-americanos, entre outras coisas. Mas George’s County, “quer dizer, todas as
a 0archa tamém foi um reÀe[o dos va- coisas negativas que você via sobre os
lores e da diversidade dos afro-america- homens negros simplesmente morreram
nos nos dias de hoje. De muitas maneiras, com a Marcha. Você viu pessoas que
a Marcha foi uma grande ampliação da não se conheciam cumprimentando-se,
tendência dos afro-americanos dos anos
abraçando-se e trocando histórias sobre
noventa de criar novos espaços culturais
como chegaram aqui e de onde vieram.
em que a liberdade e a individualidade
Sossam Àorescer indeSendentemente da Havia 25 pessoas em minha casa. A
bagagem da raça e do racismo. A esse maioria delas, eu nem sequer conhecia.
respeito, a Marcha criou inadvertida- Elas vieram a mim quase como pela Es-
mente um novo senso de responsabili- trada de Ferro Subterrânea (Underground
dade ao rede¿nir a masculinidade negra Railroad)5. Alguém me ligava e dizia que
em termos suficientemente amplos e algumas pessoas estavam chegando e
SoSulares Sara reÀetir a realidade e a Srecisavam de um lugar Sara ¿car´
__________
4
Nos Estados Unidos - onde o voto não é obrigatório -, após obter o direito de votar, os negros freqüentemente não se
habilitavam a fazê-lo em conseqüência do racismo expresso em ameaças à vida ou de outras represálias, de práticas locais
ou mesmo da falta do hábito de exercer os direitos cívicos. Um dos aspectos mais destacados do movimento dos direitos
civis, nas décadas de cinqüenta, sessenta e setenta, foram as campanhas em prol da habilitação dos negros para votar. (N. E.)
5
A chamada Estrada de Ferro Subterrânea foi uma organização clandestina de negros e brancos abolicionistas que possi-
bilitava a fuga de africanos escravizados até o Norte dos Estados Unidos ou o Canadá, onde poderiam viver em liberdade.
Tratava-se de uma rede de pessoas que orientavam e abrigavam os fugitivos, preparando o caminho para que estes pudessem
viajar à revelia das autoridades. (N. E.)
Mar cha de Um Milhão de Homens; a Realidade de Quem?
David J. Dent
179

Ta l co mo a Marc ha sobre pedindo aprovação para o que estamos


Washington, a Marcha de Um Milhão fazendo”, diz Cherry. “Bem, eu me
de Homens reafirmou muitas idéias envolvi com um grupo de homens que
correntes entre os afro-americanos. Em têm estado juntos desde a faculdade, um
1963, a legislação dos direitos de voto, clube de investimentos. Juntamos alguns
a dessegregação e a discriminação no recursos econômicos com a Marcha de
trabalho dominaram a maior parte da Um Milhão de Homens. Assim, estamos
agenda da militância. Para o bem ou para usando os recursos de nossa experiência
o mal, hoje em dia as palavras de ordem e de nossos contatos para nos ajudar a
são auto-su¿ ciência, desenvolvimento adquirir duas estações de rádio historica-
econômico, educação e valores. Elas es- mente afro-americanas que atravessavam
tavam no centro das conversas no ônibus
di¿ culdades, e achamos que um de nos-
de Hempstead a Washington. O interesse
sos objetivos deveria ser ir até lá e tentar
nesses temas atravessa e obscurece as
recuperar esses recursos de comunicação
fronteiras partidárias, ideológicas e de
antes que chegue a mídia branca e as
classe na comunidade afro-americana.
O conservadorismo da agenda da Mar- transforme em rádios que não seriam um
cha para os homens negros - “emendar” recurso para a comunidade.
- também reÀete a América negra que “Penso que a mídia tendeu a fo-
as pesquisas de opinião continuam a calizar as pessoas envolvidas na Marcha.
encontrar: um eleitorado cada vez mais Eles não quiseram examinar os proble-
conservador do que os políticos que mas que tornaram necessário organizá-la
elege. Isso ¿ cou evidente em entrevistas neste momento especí¿ co. Na mídia, os
com vários participantes, meses depois objetivos da Marcha eram secundários
da Marcha. em relação a quem a convocou. Assim,
“O desenvolvimento econômico tudo se resumia a que a Marcha não teria
é uma chave importante”, diz Cherry. credibilidade porque o indivíduo que a
“Não se trata de um valor republicano. convocou não tinha credibilidade. Mas a
Quando falo de desenvolvimento econô- mídia negra em Washington sabia e podia
mico não estou me referindo à perda de sentir por que esse evento era importante
empregos.” e como ele tinha tocado num assunto
sensível a todo o mundo, que tem a ver
Cherry afirma que a Marcha
com o modo como nós estávamos nos
solidificou seu compromisso, que já
destruindo. Pela mídia negra, você tem
existia, de investir na mídia negra. Ele
a mensagem de que a Marcha era mais
e a mulher, Valerie, estão vendendo a
importante do que quem a convocou.”
casa em Prince George’s County a ¿ m
de se mudarem para a Flórida, depois George N’Namdi possui uma
de adquirirem uma estação de rádio em galeria em Birmingham, Michigan, um
Tampa. “Precisamos parar de nos pre- próspero subúrbio de Detroit. Alguns
ocuparmos com os outros, de ¿ carmos artistas o consideram um dos melhores
180 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

marchands do país. As paredes de sua ga- realmente pesa, embora você não deixe
leria estão cobertas de pinturas abstratas que isso o derrube. Neste grupo, não esta-
de Al Loving, Ed Clark, Nannette Carter mos deixando que isso nos pare. Mas ao
e David Driscoll, entre outros. N’Namdi mesmo tempo você sabe que a coisa está
e seu ¿ lho Jarmani, que está no último lá. Certo? E às vezes isso é um saco. Você
ano no Morehouse College, decidiram pensa: pombas, eu podia estar ganhando
participar da Marcha. “Não sou o tipo dez milhões em vez de 200 mil. Isso é o
de pessoa que vai ouvir Farrakhan falar”, que você sente. Não tem nada a ver com
disse-me ele algumas semanas depois a qualidade ou com o tipo de produto que
do evento. “Quer dizer, já ¿ z isso. Ouvi você oferece.
os discursos dele nos anos setenta. Não
“Foi uma coisa muito pessoal
é que eu seja contra ele ou coisa assim.
para mim, sabe? Falei com meu ¿ lho e
É somente algo que eu não pensaria em
decidimos ir como uma equipe de pai e
fazer.
¿ lho, mas foi um assunto que não discuti
“Para mim, foi, de certa forma, com nenhum de meus amigos. Mas um
como uma libertação mental, espiritual. fenômeno interessante em relação à Mar-
Sabe, ter em torno de você pessoas em cha é que vários dos meus amigos foram
situação semelhante. Você vê, ainda está com seus ¿ lhos, e nós não discutimos
lá, aquela pequena frustração, como uma entre nós. Todo o mundo foi.”
furiazinha reprimida ou algo assim. Des-
N’Namdi diz que a Marcha não
cobri que grande número de participantes
o estimulou a se tornar um militante
eram pessoas que, tal como eu, tinham
comunitário nem a se envolver de novas
negócio próprio. Podiam ser advogados
maneiras com a comunidade. “Já es-
com escritórios próprios, médicos ou
tou envolvido”, a¿ rma ele. “Dirijo um
dentistas com seus consultórios. Um
negócio que promove a nossa cultura.
monte de gente desse tipo participou.
Minha mulher dirige uma escola. Não
Eu achei que havia ali um fenômeno
precisamos fazer parte de organizações.”
interessante. Nós temos esses negócios
e parecemos bem-sucedidos e tudo mais. Em novembro de 1994, Henry
E somos bem-sucedidos até certo ponto. McKoy e Larry Linney ¿ zeram história
Mas o problema é esse pequeno nível de e levantaram controvérsias na Carolina
frustração. Como você sabe, se algum do Norte ao se tornarem os primeiros
outro faz o trabalho que você faz, os republicanos negros a se elegerem, des-
benefícios são muito maiores. No meu de a Reconstrução6, para o parlamento
caso, no campo da arte, se eu fosse bran- estadual - Linney, num distrito que era
co ou algo assim, no nível em que opero, 90 por cento branco, para a assembléia e
imagine só! Os museus estariam batendo McKoy, num distrito 77 por cento bran-
à minha porta para participar. Vamos ser co, para o Senado [estadual]. Eles foram
amigos, você sabe como é que é... A raça dois dos poucos políticos afro-america-
A mar cha de Um Milhão de Homens; a Realidade de Quem?
David J. Dent
181

canos em todo o país a se bene¿ ciarem relações com as pessoas da comunidade


da maré republicana que guindou Newt em que cresceu. Freqüentei uma facul-
Gingrich à posição de presidente da dade totalmente negra, ¿ z o segundo
Câmara. grau numa escola totalmente negra. A
A Marcha de Um Milhão de Ho- escola que freqüentei faz parte de mim,
mens era um risco político para ambos. tanto quanto qualquer outra coisa na
McKoy tem dedicado grande parte de minha vida. Não sou desassociado nem
seu mandato a demonstrar aos eleitores desligado da comunidade negra como
negros que seu republicanismo não o um todo. Como também não sou desas-
transforma num estranho à sua comu- sociado nem desligado da comunidade
nidade. “Tradicionalmente, o Partido branca. Vivo em North Raleigh, que é
Republicano encontra uma estrela negra, predominantemente branca.”
ou a estrela encontra o partido - uma
No que se refere à Marcha de
pessoa que trabalhou duro e acabou
Um Milhão de Homens, não foi tão fácil
atingindo o topo. Freqüentemente esse
para McKoy fundir os dois mundos. Na
indivíduo estava distante da comunidade
semana anterior à Marcha, McKoy se viu
negra e, basicamente, ¿ cou cercado de
brancos. Quando ele ou ela se mudava absorvido intimamente pelo debate que
para áreas predominantemente negras, se travava, em voz alta, em todo o país:
estava isolado da comunidade. Penso que deve-se participar ou não da Marcha?
a onda do futuro é a pessoa que se sente Participar da Marcha lhe ofereceria a
confortável dentro da comunidade negra, oportunidade simbólica de demonstrar
mas também tem valores conservadores a relação entre os valores conservadores
e é capaz de articular esses valores de de sua comunidade e o partido político a
maneiras que podem ser abraçadas pelos que pertence. No entanto, na quarta-feira
republicanos e pela comunidade negra. anterior ao evento, ele ainda não havia
Esse indivíduo nunca se desliga de suas decidido. “Vejo coisas favoráveis, mas

__________
6
A Reconstrução foi uma série de medidas e programas implementados após a abolição da escravatura nos Estados Unidos
com o propósito de preparar e dar condições aos recém-libertos de origem africana de exercerem sua liberdade. O slogan
principal era “Quarenta acres e uma mula”, referência à proposta de dar terras às famílias negras para que estas pudessem
extrair seu sustento. Durante esse período, alguns negros se elegeram pelo Partido Republicano, de Abraham Lincoln. De
forma geral, contudo, a Reconstrução desintegrou-se em um emaranhado de corrupção, oportunidades perdidas e impe-
dimentos impostos pelo racismo dominante em âmbito local, onde a instituição da segregação racial e dos linchamentos
de¿ nia o verdadeiro regime de liberdade para o negro. A Reconstrução representa hoje, para a população negra, mais uma
promessa não cumprida pelas autoridades. O símbolo desse fracasso é a imagem do carpetbagger, o nortista branco que
chegava ao Sul do país, supostamente para implementar reformas, e levava o que havia ganho de volta para o Norte em sua
mala de tapeçaria. Depois dessa época, o Partido Republicano, representando cada vez mais a direita, ¿ cou praticamente
destituído de apoio entre os negros. O Partido Democrata passou à condição de depositário certo da quase totalidade dos
votos afro-americanos, sobretudo após o New Deal do democrata Franklin Roosevelt. (N. E.)
182 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

também tenho algumas reservas. Acho dele e eu tenho os meus. Tenho muito
bom que os homens negros se reúnam cuidado quando se trata de entrar numa
para se concentrar na necessidade de luta contra um grupo de indivíduos que
abordar os problemas da comunidade ne- não são meus inimigos7.
gra. E a vontade e o interesse dos homens
“Vou ter de considerar os in-
negros em avançar demonstram uma res-
teresses de Henry McKoy em atender
ponsabilidade pessoal concretizando-se
nessa ação. Faz muito tempo que levanto as necessidades de seu povo e de seus
essa questão da responsabilidade pessoal, eleitores, e não o que Louis Farrakhan
de modo que ¿ co satisfeito com a idéia faz. E essa é a linha divisória. Ele não
de que os homens negros vão se engajar e me conhece e eu não o conheço. Embora
assumir alguma responsabilidade pessoal eu concorde ¿loso¿ camente com a maior
por certas coisas que são necessárias à parte das coisas que ele quer fazer, ele
promoção dos interesses da comunidade pode ter frustrações em relação a certas
afro-americana. pessoas, e eu não compartilho tais frus-
trações.
“Minha única reserva diz respei-
to ao fato de que não quero ser usado, “O que me excita quanto a um
mais uma vez, para promover as agen- milhão de homens negros se reunindo é
das de outros. Soube nos últimos dias que isso bate com tudo aquilo em que eu
que os cabeças da Convenção Nacional acredito. Eu lhe contei a história de ver
Batista e de algumas outras organizações meu pai abraçando o pai dele no enterro
estão hesitantes. Quero ver provas de de meu bisavô, e eu abraçando meu pai,
que outros líderes conservadores estão e minhas ¿ lhas me abraçando no enterro
sendo chamados a tomar parte ativa no de meu pai, gerações se abraçando e se
movimento. apoiando e tomando conta umas das
“Tenho de esperar e tomar minha outras e assumindo responsabilidade
própria decisão sobre aquilo que eu per- pessoal. A idéia de um milhão de homens
ceba como sendo a direção a seguir de negros se reunindo e decidindo que va-
acordo com o papel que exerço. Tenho mos parar de ferir uns aos outros, parar
¿ cado satisfeito com as posições de Far- de molestar as mulheres, que vamos
rakhan sobre auto-su¿ciência econômica, começar a juntar nossos recursos é abso-
responsabilidade pessoal, essas coisas lutamente positiva e de acordo com tudo
todas, mas há questões mais profundas aquilo em que acredito. Mas ao mesmo
para mim. Ele não assume meus inimi- tempo não quero fazer parte da agenda
gos e eu não assumo os dele. Ele tem os pessoal de quem quer que seja no que se
__________
7
Louis Farrakhan tem ostentado publicamente uma posição de denúncia contra os judeus e o Estado de Israel no que se
refere ao islamismo e à história da escravidão africana e da discriminação racial. (N. E.)
A mar cha de Um Milhão de Homens; a Realidade de Quem?
David J. Dent
183

refere a articular seu amor ou desamor em outra sessão de pancadas no Partido


por quaisquer outros grupos de pessoas, Republicano. Eu não vou a sessões de
culturas ou coisas desse tipo. pancada no Partido Republicano. Acabo
“Não quero acordar daqui a saindo frustrado e com raiva.
seis meses e concluir que esta é apenas “Ele entrou naquela coisa do
uma daquelas coisas que acabam sendo
Newt, aquele papo anti-republicano, o
apenas uma espécie de jogo de poder
Contrato com a América10. Ora, eu não
político. Essa seria uma derradeira de-
cepção. Já vi muito disso, de Al Sharpton tenho problema com o Contrato, e não
a Marion Barry a Jesse Jackson. Quando gostaria de ir lá e tomar parte naquilo.
Ben Chavis assumiu, ele ia revolucionar 1 o seria Een ¿ co para mim
a NAACP, e veja o que aconteceu8. “Pessoalmente, também não gos-
“Estou esperando para ouvi-lo to de estar na presença de indivíduos que
[Farrakhan] no Donahue9 de manhã. Vou usam a palavra do N, que usam termos
conferir e consultar algumas pessoas cuja como wetback, hymies11 e coisas assim.
opinião eu valorizo para então tomar a Pessoalmente, não gosto de estar perto
decisão, mas enquanto falamos estou de gente que descreve outras pessoas em
ponderando essa decisão.
termos de chupa-sangue, como fez o Sr.
1 o ¿ nal o desempenho de ) ar- Farrakhan ao descrever o povo judeu.”
rakhan no programa de Phil Donahue
fez McKoy desistir de sua participação Enquanto McKoy decidiu não
na Marcha. “Ele fez algo que, pelo que ir, Linney foi um dos organizadores
percebo, acontece o tempo todo. Ele me locais da Marcha em sua cidade natal de
fez acreditar que estava reunindo um gru- Asheville, Carolina do Norte. Linney já
po de pessoas e que isso se transformaria foi descrito por um colunista de jornal

__________
8
Al Sharpton é um controvertido líder comunitário de Nova York, recentemente derrotado como candidato a prefeito daquele
município. Marion Barry é o ex-prefeito de Washington que foi preso, envolvido em escândalos de corrupção e drogas.
Jesse Jackson é militante dos direitos civis, fundador da organização PUSH (People United to Save Humanity - Povo
Unido para Salvar a Humanidade), de Chicago, e da Coalizão Arco-Íris, corrente do Partido Democrata que o lançou como
candidato à nomeação do partido para disputar a Presidência da República. Ben Chavis é o último líder eleito à presidência
da tradicional Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP). (N. E.)
9
Programa da TV norte-americana. (N. E.)
10
Contrato com a América é o título dado pelo Partido Republicano ao seu programa para os Estados Unidos. (N. E.)
11
Palavra do N refere-se ao vocábulo nigger, ofensa antinegra cunhada pelos brancos do Sul dos Estados Unidos, e que
também é usada por negros em certos contextos. Wetback e hymie são palavras de forte carga pejorativa usadas para se
referir, respectivamente, aos imigrantes mexicanos e aos judeus. (N. E.)
184 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

como “à direita de Pat Buchanan”12. Ele faixa dos 18 aos 30 é a AIDS. Tenho de
¿ cou desapontado pelo fato de negros reparar o fato de viver numa comunidade
republicanos como os deputados federais em que uma escola de segundo grau está
J.C. Watts e Gary Franks terem preferi- reprovando os rapazes afro-americanos
do não aderir. “Bem, eu acho que isso a uma taxa de 70%. Quer dizer, tenho de
é desastroso, pois não se pode julgar o reparar o fato de uma comunidade não ter
benefício ou virtude de um evento em instituições ¿ nanceiras de propriedade
função da participação de uma pessoa. de afro-americanos. É uma reparação
Pessoalmente, não sou muçulmano, mas pessoal pelos fracassos da comunidade
assim mesmo eu vou. Acho que as pesso- em que nasci e fui criado. E porque penso
as irão pela ¿nalidade maior e não podem que poderia fazer mais do que faço a esse
nem devem ser desencorajadas por causa respeito.
do envolvimento e participação de um in- “Recebi telefonemas de meus
divíduo. Quer dizer, será que deveríamos eleitores. Um deles estava furioso com
renunciar à nossa cidadania americana minha participação na Marcha por causa
porque nosso presidente cometeu adulté- de Farrakhan e, na verdade, deixou uma
rio? Acho que isso é abominável e triste, mensagem na minha secretária eletrô-
e é um dos pecados originais, mas ainda nica a¿ rmando que fazer isso seria um
assim não diminuiria nosso respeito pela grande, um enorme erro político. Bem,
função presidencial ou por esta nação. sabe como é, se eu fosse algum tipo de
Assim, não se pode ¿ car olhando para covarde ou, de certo modo, um político
um indivíduo e condenar todo um evento típico, poderia levar esses telefonemas
positivo. em consideração e rever meu desejo de
“Algo está errado, e se há uma participar. Acho que a Marcha foi uma
coisa errada a questão se torna: quem é o prova da masculinidade negra.”
responsável? E, em vez de arranjar bodes Uma prova? Prova de quem?
expiatórios e ¿car culpando outras pesso- Participar ou não da Marcha foi uma
as, outros grupos étnicos, estamos de fato opção individual que se deveria ter a
reconhecendo que nós próprios somos liberdade de fazer, tal como N’Namdi
culpados por grande parte do problema. decidiu ir a Washington e McKoy pre-
E precisamos nos arrepender e reparar feriu não ir. A idéia de uma “prova da
nossos erros. Bem, uma das coisas que masculinidade negra” choca-se com o
eu tenho de reparar é que eu vivo numa fato da nossa diversidade e com o indivi-
comunidade em que a principal causa dualismo automático que vai de par com
mortis dos homens afro-americanos na a verdadeira liberdade.

__________
12
O escritor e radialista Pat Buchanan é um dos mais destacados porta-vozes da extrema direita contemporânea nos
Estados Unidos. (N. E.)
A mar cha de 1 milhão de homens; a r ealidade de quem?
David J. Dent
185

Linney protesta diante da idéia Farrakhan). Podemos ser ambas as coi-


de que os negros republicanos devam sas, nenhuma delas, uma ou outra, ou, de
enfrentar tais “provas de masculinidade” modo mais realista, pequenos pedaços de
por sua ¿ liação a um partido que é visto, cada uma.
certa ou erradamente, como mais refra-
tário aos interesses dos afro-americanos
do que seu rival, o Partido Democrata.
De qualquer forma, a Marcha explicitou
nossa diversidade, e devemos aceitar
e digerir a multidimensionalidade em
todos nós, e não fugir dela sob o disfarce * Este artigo foi publicado originalmente,
em inglês, na Revista Black Renaissance/Re-
a unidade negra. Pois já se vai o tempo
naissance Noir, Vol. I, no. 1 (outono de 1996)
em que era preciso escolher entre Booker Tradução de Carlos Alberto Medeiros. David
T. Washington e W.E.B. Du Bois13 (ou, J. Dent é jornalista premiado e professor de
neste caso, entre Angela Davis e Louis jornalismo na New York University.

__________
13
Booker T. Washington, fundador do Instituto Tuskegee, advogava a auto-ajuda dos negros e a ascensão destes por meio
da formação técnico-pro¿ ssional, mesmo dentro de uma sociedade segregada. W. E. B. DuBois, sociólogo e organizador
de quatro Congressos Pan-Africanos, defendia a a¿ rmação da personalidade do negro e seu protesto contra a discrimina-
ção, denunciando a segregação e fundando uma das mais importantes organizações da comunidade negra a trabalhar pela
integração racial e pelos direitos civis, a NAACP. (N.E)
Desenho do artista afro-norte-americano Sneed
Afr o-amer icanas Nova Yor k - Milhares de mu-
lheres de origem africana dos Estados
r eúnem-se na Unidos e de todo o mundo reuniram-se
no dia 25 de outubro último, na cidade
Mar cha de de Filadél¿ a, na Pensilvânia, para rea-
lizar a primeira Marcha de Um Milhão
Um Milhão de Mulheres da história daquele país.
de Mulher es* Vagamente inspirada na Marcha de Um
Milhão de Homens, realizada dois anos
antes na cidade de Washington, a Marcha
de Um Milhão de Mulheres foi patrocina-
da pela Comissão Organizadora Nacional
de Filadél¿ a National Organizing Com-
mittee of Philadelphia, união de grupos
femininos que tem por meta divulgar os
papéis e objetivos das mulheres negras
nos Estados Unidos de hoje.
Entre os temas do encontro
estavam a construção de hospitais e
postos de saúde para mulheres pobres,
o desenvolvimento de escolas negras
independentes, o aperfeiçoamento das
Lula Strickland pro¿ ssionais liberais negras e a ajuda
190 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

nais liberais negras e a ajuda a mulheres frente ao palco, espalhando-se pelas áreas
recém-egressas de prisões. As organiza- adjacentes até se perder de vista. O ativista
doras da Marcha estimam em 1,2 milhão Dick Gregory provocou risos na multidão
o número de pessoas que compareceram ao a¿rmar Tue haYia ³ um monte de gente´
ao histórico evento, iniciado com uma presente, em comparação com os números
simbólica procissão de mulheres, sob que a imprensa poderia indicar.
um céu chuvoso, da esquina da 5th com
Abordando os temas do desenvol-
a Market Street até a Benjamin Franklin
Parkway, local das festividades e de toda vimento feminino e do status atual da mu-
a programação. Um enorme palanque lher negra nos Estados Unidos, a deputada
dotado de possante equipamento de som, Maxine Waters reforçou seus argumentos
em frente a um oceano de rostos pretos e apresentando duras estatísticas:
morenos, serviu de ponto focal durante - Nós [as mulheres negras]
as 12 horas do evento. somos 7% da população”, informou ela
&he¿ ar o palanTue como mes- à imensa platéia. “Setenta e oito por
tre-de-cerimônias foi função de Jada cento de nós conseguiram completar o
Pinkett, popular atriz de Hollywood. segundo grau e 59,9% estão no mercado
Outras mulheres importantes incluíam- de trabalho. Estamos sub-representadas
-se na agenda, dentre as quais líderes entre os pro¿ ssionais liberais, gerentes e
religiosas, ativistas comunitárias, per- supervisores.
sonalidades da política e do mundo do Enquanto a multidão manifes-
entretenimento. Embora o programa tava ruidosamente sua aprovação, ela
tivesse como foco as mulheres comuns, continuava:
Y rias oradora s famosas ¿ zeram uso da
palavra, como a deputada Maxine Wa- Nossos rendimentos médios
ters, da Califórnia, Kadijah Farrakhan, são de vinte mil dólares por ano. Somos
duas ¿ lhas da falecida Bett\ 6habazz, de classe média, ricas e desproporcio-
o militante Dick Gregory, o ator Blair -nalmente pobres. Apesar da retórica dos
Underwood, o deputado John Conyers e políticos de direita, não constituímos a
a ativista comunitária Sister Souljah. A população dependente da previdência
cantora Faith Evans, mulher do rapper neste país.
assassinado Biggie Smalls, cantou “His Ela disse que as mulheres negras
e\ e is on the sparroZ ´ e pediu o ¿ m da ganham 64 centavos para cada dólar ga-
violência. Um dos pontos altos da progra- nho pelos homens brancos e que 28,9%
mação foi a participação da sul-africana das afro-americanas vivem na pobreza.
Winnie Mandela. Além disso, as negras morrem mais cedo
As nuvens carregadas e a baixa do que as outras mulheres. A deputada
temperatura não arrefeceram o entusias- terminou seu discurso a¿ rmando Tue a
mo das mulheres que lotavam a praça em AIDS é hoje o assassino número um das
Afr o-Amer icanas r eúnem-se na Mar cha de Um Milhão de Mulher es
Lula Strickland
191

mulheres afro-americanas e que o Go- “Amandla Power!” para uma platéia


verno dos Estados Unidos destina à co- vibrante que entusiasticamente fazia eco
munidade negra uma verba bem menor a suas palavras.
do que a que lhe “cabe por justiça” para - Minhas queridas irmãs - prin-
combater a temida doença. cipiou ela -, não tenho palavras para
- Convocamos o Governo e as lhes agradecer por me trazer aqui para
autoridades eleitas a reÀetirem sobre o estar com minha família. Um milhão de
que estão fazendo e como estão fazendo mulheres são incontáveis mulheres. Às
- exigiu Waters. - Pedimos uma nova mulheres dos Estados Unidos da Améri-
política, com integridade e lideranças ca, às mulheres afro-americanas, eu digo:
conscientes. Peço a meus colegas em Amandla!
Washington que parem de usar a raça Ela prosseguiu, louvando as mu-
como tema de divisão, parem de investir lheres negras por sua coragem histórica,
contra a ação a¿ rmativa, parem com os e falou de seu passado como mulheres
ataques polarizantes contra o meu povo africanas antes de serem raptadas e es-
e contra os nossos ¿ lhos. cravizadas.
Ela instou seus colegas do mun- - Filhas de dois continentes -
do político a parar de construir prisões disse ela com emoção -, quero elogiar
para jovens “mal-orientados” e lhes cada uma de vocês pelo que conseguiram
oferecer, em vez disso, mais empregos fazer. Vocês estão habilitadas pela força
e oportunidades. E pediu que o sistema de seus ancestrais, pelo sofrimento de-
de justiça criminal pusesse “um ¿ m às les. Eu nunca fui escravizada como eles
disparidades entre as sentenças para por- foram, e no entanto o fui. - Ela recordou
tadores de cocaína sob a forma de crack os tormentos que passou nas mãos do
e portadores de cocaína sob a forma de antigo Governo sul-africano, 100%
pó”. branco. - Banida e con¿ nada, presa e
O evento assumiu um tom de torturada, separada de meu marido e de
maior intensidade quando a multidão meus ¿ lhos. Qual a diferença entre a
começou a gritar “Winnie!”, “Winnie!”. minha condição e a de suas matriarcas
Após uma apaixonada versão do hino escravizadas? - indagou Winnie em tom
nacional sul-africano e de uma calorosa de súplica.
apresentação, Winnie Mandela, conhe- Enquanto a platéia manifestava
cida como mãe e heroína do movimento aos gritos sua aprovação, Winnie conti-
de libertação da África do Sul, subiu ao nuava seu poderoso discurso:
palanque, aplaudida por uma multidão
- Em suas veias, seu coração e
agradecida que evidentemente a adorava. sua alma corre o sangue das matriarcas
Winnie iniciou sua fala er- ancestrais que viveram nos séculos XVIII
guendo o punho e gritando várias vezes e XIX, raptadas das praias africanas,
192 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos

transformadas em escravas, criadas na 2. O desenvolvimento e a ¿ nalização


escravidão, violentadas, que quebraram de escolas independentes negras, com
seus grilhões e romperam suas algemas. um foco no século XXI, desde o CA até
- E ela acrescentou para a massa ondulan- o vestibular.
te: - Vocês [mulheres afro-americanas]
3. Desenvolvimento de mecanismos
¿ zeram com que nós na África tivésse-
progressivos dirigidos quantitativamente
mos orgulho de vocês.
ao desenvolvimento e avanço das mulhe-
Na visão dela, as mulheres negras da res negras ao deixarem o sistema penal.
América e da África compartilham um
4. Desenvolvimento de postos de
destino, assim como a responsabilidade
atendimento de saúde que ofereçam trata-
de salvar o mundo da violência e de
mentos preventativos e terapêuticos com
uma “civilização” que ameaça destruir
a humanidade. ênfase principal na medicina alternativa
(holística) e tradicional.
- Uma civilização que ameaça
exterminar nossa Àorestas, poluir o nosso 5. Formulação de centros acadêmicos
ar e as nossas águas, destruir a nossa fau- e de Ritos de Passagem que ofereçam
na e as nossa culturas - enfatizou Winnie. disciplinas e rituais formulados no
sentido de assegurar o crescimento e o
Ela encerrou a longa jornada desenvolvimento qualitativo das meninas
instando as mulheres presentes, bem e dos meninos negros ao se aproximarem
como todas as mulheres do mundo, a se da maturidade.
unirem para devolver ao mundo a paz e
a prosperidade, a ¿ m de que o próximo 6. Desenvolvimento progressivo de
seja um século melhor. mulheres negras pro¿ ssionais, empresá-
rias e políticas.
- Marchamos para o século XXI
- asseverou Winnie Mandela - com toda 7. Desenvolvimento de mecanismos
a nossa determinação de mulheres negras capazes de capacitar as mulheres negras
e, ao marchar para o próximo século, nós que estão em experiências “transitórias”
permaneceremos. Amandla! e que as ajudem progressivamente e com
mais e¿ cácia.

Mar cha de Um Milhão de Mulher es


Platafor ma
* Este texto foi publicado originalmente no
jornal The Daily Challenger, do Brooklyn,
1. Apoio nacional aos esforços de Nova York, e na Internet no website de notí-
avançar o processo judicial sobre a CIA cias negras Black World Today, [www.tbwt.
cm]Tradução de Carlos Alberto Medeiros.
e as drogas crack e cocaína, iniciado pela Lula Strickland é destacada jornalista e es-
deputada da Califórnia Maxine Waters. critora da imprensa negra norte-americana.
Diár io de um Num distante 7 de setembro,
meu aniversário, o Teatro Recreio re-
negr o atuante cebia, numa luminosidade maior que as
estrelas do céu, um público seleto para
1º livr o: 1974 - aplaudir Josephine Baker. Um letreiro
bem fulgurante, na fachada central,
1975 ostentava o nome daquela que era uma
lenda e um mito, no mucic hall do mundo
De Paris. Ostentando os vestidos mais
belos e chiques de Pierre Louis e Balmain
a Baker com sua voz maravilhosa nos
(2a. Parte) deslumbrou com “J’ai deux amours”,
trecho da opereta “Peg of my heart”,
“Chiquita bacana”, “La vie en rose”,
sem esquecer o seu sucesso universal,
cantando, em português, a “Boneca de
piche”, de Ary Barroso. De uma feita,
ela cantou essa música febricitante com o
genial Grande Otelo. Alta, hierática, com
uma cabeleira que lhe caía em grande
coque, descendo pelas costas até abaixo
da cintura, Baker modulava as melodias,
como um rouxinol, trinando os trechos
Ironides Rodrigues de maior esforço vocal.
196 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Abrindo o espetáculo da Baker, melhor educar as crianças que ela cria


estava o impagável Badu, contando as com tanto sacrifício pecuniário. Em
anedotas mais engraçadas e também Mônaco, no teatro local, ela comemorou
temperadas do grosso sal gaulês. É seus cinqüenta anos de music hall, dan-
um show-man agradável, prendendo o do um espetáculo sobre sua vida desde
auditório por mais de meia hora, e isso quando lançou o charleston na Cidade
num espetáculo de categoria, em que a Luz até os tempos recentes, em que é a
luminosa aparição de Josephine Baker grande ¿ gura do teatro musicado. Em
era uma nota de magia e beleza. suas memórias, coordenadas por Michel
Agora a Baker comemora seus Sauvage, há muitos capítulos que con-
cinqüenta anos de triunfal carreira no tam sua vida no Estado americano em
teatro de music hall. Essa negra divina que nasceu, suas lutas contra a miséria e
que fez a Vênus Negra, ¿ lme um tanto a incompreensão, seus prelúdios iniciais
simbólico, em 1926, Porque Paris fas- em Paris por 1926 até atingir o estrelato,
cina, Noite de alerta, o seu memorável do qual não saiu mais.
Zuzu, com Jean Gabin, sem falar num Tia Luzia era uma negra sol-
delicioso Princesa Tan-Tan, onde era a teirona, que já atingira os cem anos.
estrela absoluta. Isso para não esquecer Andava sempre de branco pelas ruas do
suas aparições maravilhosas no Follies Patrimônio, onde o professor Felisberto
Bergères de Paris, brilhando em revistas
Carrijo fundou Uberlândia, que hoje tem
luxuosas, numa época em que também
um progresso comercial e industrial que
era estrela Mistinguetti, a famosa vedete
honra Minas Gerais. Suas universidades,
das pernas espirituais.
cursos superiores e primários dão um pri-
Chegando ao Rio, a Baker fez vilegiado lugar à cidade, onde é mínimo
questão de aprender o nosso maxixe, o número de analfabetos. Naquela época
e isso o conseguiu com uma grande tia Luzia era uma ¿ gura lendária, com
cantora e atriz de nossos palcos: Aracy seus colares e ¿ tas vermelhas, verdes,
Cortes. Uma fotogra¿ a tirada no antigo amarelas, andando pausadamente à fren-
Cassino Beira-Mar, após um jantar de te das congadas, quando não comparecia
homenagem à estrela negra, estão Aracy com todo o seu ritual branco às solenes
e a Baker colocadas, num capricho da missas do padre Albino. Outra ¿ gura
posteridade, uma ao lado da outra, numa veneranda dessa Uberabinha dos chiantes
pose bela e bem simbólica. carros de bois nas ruas poeirentas foi a
Cria, em seu castelo particular, tia Teresa, mulher do tio Marcelino, que
crianças de várias cores para, assim, moravam lá no Fundinho. De sua casa,
melhor combater o preconceito racial. que tinha imenso pomar de jabuticabas,
Mesmo com seus setenta e tantos anos, coqueiros, mangueiras e cajás-mangas,
Baker ainda participa de espetáculos saía a Congada do Rosário. Na sala da
musicais a ¿ m de angariar dinheiro para casinha, baixa e simples, um grande
Augusto Boal, no centro, visitando o elenco de O imperador Jones, de Eugene O’Neill, após espetáculo do TEN no
Teatro São Paulo (São Paulo, 1953). Na foto: Abdias Nascimento, A. B., Marcilio Faria e Lea Garcia
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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quadro de São Benedito. Ali os moçam- conheceu as alegrias de outras mulheres


biques se aprontavam, ensaiavam seus mais ditosas que tiveram um marido de-
passos de dança em frente à casinha de dicado e um lar para descansar a velhice
D. Teresa. Depois do destrançar das ¿ tas inesperada. Maria Rita dava tudo de si
e de modularem as músicas africanas de às outras pessoas, nada recebendo em
estilo, saíam pelas ruas da cidade, não troca. Não sei a causa de meu pai ter-se
sem passarem primeiro pelas casas das arribado de nossa casa por longos tempos
juízas ou festeiras de Nossa Senhora do consecutivos e nunca mais regressado.
Rosário. Mesmo depois de terminada a Minha mãe passou a ser o homem e
festa, a congada ainda dançava e cantava a mulher da casa, lavando e passando
pelas ruas, após três dias seguidos. roupa das famílias abastadas, cozinhando
para hotéis e pensões, gastando sua be-
Em cada parada à casa de uma
leza e mocidade nesses serviços que não
juíza, os moçambiques eram recebidos
dão lucro e só causam cansaço e estafa.
com farta comelaina, além dos convida-
Apesar dessa vida um tanto penosa que
dos ou pessoas que estivessem presentes.
levamos, ela nos educou do melhor modo
Zé da Ana, negro forte e bonitão, possível a mim e ao mano Almiro. Meu
com uma enorme corda enrolada no pes- outro irmão, José, morreu bem novo,
coço. Tia Bárbara, com mais de cem anos deixando em minha mãe uma nostagia
e que até pegou o cativeiro. Caridade, inconsolável. Apesar da longa data que
que era a cozinheira do padre Albino e meu pai, Augusto, se fora, sem nunca dar
recebia os recados ou correspondências notícias, minha mãe sempre foi ¿ el ao
desse vigário, o qual tinha bonita voz de seu amor. Parava sempre de costurar ou
barítono. Todas essas ¿ guras populares fazer qualquer serviço caseiro para lançar
viveram, sofreram e sentiram, na época um olhar triste, ao longe, e murmurar
de minha infância e depois se despediram baixinho: “Meu Deus! Como eu gosto
desta vida para uma outra que não temos dele. Que felicidade seria se Augusto
uma idéia do que seja... estivesse aqui.”
Só de relembrar de Maria Rita, Todos nós temos de ter uma
minha mãe, a pena já estremece de uma derivação ou escapamento ao nosso so-
comoção mais forte e sensível. Quando frimento. Há os que escrevem, pintam,
lhe recordo a silhueta frágil e bela, é compõem música ou cantam dando
sempre trabalhando como escrava, em evasão, transbordamento, a todas as
casa de gente de posses, onde fazia angústias que lhes corroem o ser tortu-
todos os serviços domésticos, além de rado. É a catarse ou sublimação do eu
consumada cozinheira que era. Quantos de que falavam os helenos. Maria Rita
¿ lhos de gente rica ela criou e embalou procurou esse esquecimento no álcool.
com suas carícias, cantando-lhes suaves Quantas vezes, saindo de seus soluços
berceuses, com sua voz de um dulçor angustiados, ela me agarrava com ter-
angelical. Pobre de minha mãe que não nura, abraçando-me dolorosamente, a
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Sankofa: Memória e Resgate

confessar: “Felizmente ainda tenho meus alegria e a esperança aos mais recônditos
¿ lhos para me consolar.” recantos mineiros, paulistas e goianos:
João Lauro e até Atílio Martinelli, este,
A lamparina lança um clarão
com um caminhão de grande porte, a va-
semicrepuscular na parede de nossa
rar as veredas e sertões das Minas Gerais
meia-água pobre. Um vulto escancara a
em estradas poeirentas, circundadas de
porta e o vejo oscilante e trêmulo, como
buritis altaneiros e onde, nos cerrados e
quem vai cair. Sinto, na sombra, uns bra-
capões, as seriemas lançam uma corrida
ços ternos abraçando a mim e ao mano,
sensacional até pararem junto de um
num choro rouco e convulso, na certeza
cupim, no meio do descampado.
de que viverá ainda muito tempo e talvez
até morrerá sem ver o regresso daquele A campainha do Cinema Central
a quem prometera amor e fidelidade tilinta, chamando os tardos espectadores
conjugal até a morte. para a sessão da noite, em que se anuncia
um ¿ lme da June Caprice ou Viola Dana.
Vejo-a de cabelos em trança, o
Mamãe não gostava da Francesca Bertini
rosto belo e severo, cantando trechos
porque seus ¿ lmes eram bem tristes, ao
da opereta Eva de Franz Lehar, quando
passo que os de June Caprice ou Mary
lavava roupas para os estudantes da Rua
Pickford eram alegres, com enredos su-
Atalaia ou quando, a costurar uma calça
aves e interessantes, além de a história
minha ou camisa do Almir, ela repetia
terminar bem, com beijos, surpresas e
pela madrugada sem estrelas o “Perdão
casamentos. No coreto da Praça da Câ-
Emília” ou a lírica e tocante “Caraboo”.
mara, a Tereza, com seus instrumentos
Ser motorista, pelos idos de a¿ nadíssimos, toca as músicas mais em
1926 a 1928, era ser ousado e ter cora- voga no Rio, como “Pé de anjo”, “Seu Ju-
gem para afrontar estradas perigosas, linho vem”, “Fumando espero”, o tango
onde ladrões e assassinos esperavam nas nostálgico “Vida minha”, sem esquecer
madrugadas para matarem e roubarem os a valsa de tema romântico e evocativo
choferes incautos que, na sua boa fé de “Lua branca”.
ofício, jamais poderiam esperar que uma
A dona Tília caprichou, ao tocar
bala homicida ou uma faca traiçoeira lhes
no piano a valsa “Leonora” de Sinhô,
silenciassem as frágeis vidas. Meu pai
enquanto, na tela branca do Cine Teatro
Augusto foi um dos primeiros motoristas
Avenida, o Douglas Fairbanks pai corre
de Minas. Com meu tio Evaristo, conhe-
pela vela oscilante de um navio, rasgando
ceu e palmilhou as extensas estradas do
o pan—,o ao meio e caindo nos braços
sertão que saem do Triângulo Mineiro,
amoroso da belíssima Billie Dove, no
passando por Uberlândia, Araguari,
Pirata negro.
Tupaciguara, Monte Alegre de Minas,
atravessando o caudaloso rio Parnaíba Fui muito pequeno para a escola,
até a portentosa Goiás. Muitos motoristas arrancado cedo de meus folguedos in-
afrontaram o desconhecido para levar a fantis. Não havia um jardim da infância
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
201

preparatório antes de o aluno ingressar esbarravam com o revuloteio dos bagres,


no curso primário. Fui estudar bem cedo, surubis ou traíras que, em manadas,
no Grupo Escolar Bueno Brandão. Com desciam numa pressa louca lá onde esse
dona Ingrácia não aprendi nada, dado o ar riacho se engrossa para se encontrar com
meio debochado de ela tratar os alunos, o rio de águas múrmuras, para lá daque-
além de uma régua que estava sempre les burutis majestosos e imponentes.
em funcionamento. Só mesmo com D. A chegada do Jaú, com o povo
Julieta Rezende pude aprender alguma todo aÀuindo do campo de aviação a
coisa, pois essa mestra, além de muito da Vila Martins. Na revolução de 24,
paciente, tinha um método didático para lembro-me de um canhão postado na
colocar as lições mais difíceis na cabeça Praça da Matriz e do tio Edmundo, far-
dos alunos. Levava-nos à sua casa bonita dado, despedindo-se da tia Maria. Vejo
e grande no Largo do Rosário e nos dava seu vulto saindo, em plena bruma da
santinhos, doces e livros religiosos. É noite, até se perder nos con¿ ns da rua
e o choro resignado de minha tia, ainda
uma mestra de quem guardo as melhores
tentando avistar o tio Edmundo, de capa,
recordações, assim como a Delvira, hu-
que partia para a carni¿ cina sem sentido
milde mulher do povo, que me ensinou as do valente Isidoro.
primeiras letras com paciência, presteza
e amor e que desapareceu sem deixar um Em 1930 minha mãe cozinhava
ponto de referência para um possível en- para o quartel dos legalistas. Numa tarde
houve um tiroteio medonho na rua e o
contro. Todos esses vultos obscuros que
pessoal que estava jantando numa das
¿ zeram tudo para eu ser melhor do que salas do quartel largou o prato, comida e
era estão, para sempre, ligados ao meu tudo e correu, a largos passos de valentia,
coração agradecido. até o quintal do fundo, grimpando por
A política local dos Coiós e dos um muro meio oscilante até derrubá-lo,
Cocãos. Rojões e foguetes pela Praça com a impaciência e o ímpeto de suas
coragens, a fugirem, o quanto antes, de
Coronel Carneiro. A cidade festivamente
um tiroteio travado com os temidos e
recebendo o presidente Antônio Carlos. implacáveis mineiros...
Não havendo aulas no grupo, era certo a
gente gazetear o dia e ir lá para os lados Por um privilégio estranho do
da chácara do Antônio Domingos apa- destino, fui testemunha de três revolu-
ções. Os horrores dos soldados mortos e
nhar jenipapos às escondidas ou nadar no
insepultos na sangueira de 1924. O fotó-
ribeirão de águas cristalinas, sombreadas grafo Naghetini, de minha terra, retratou
pelas samambaias gigantes e pelos lírios algumas cenas sangrentas das trincheiras
de nivor imaculado, sobrenadando-lhe no com a veracidade espantosa de um Gaya
cimo das ondas. do hinterland.
Ao mergulharmos no fundo do Honório Guimarães em seu
ribeirão sossegado, tínhamos uma sensa- colégio para os lados do Fundido e os
ção esquisita quando nossos corpos nus seus alunos, rapazes fardados, cantando
202 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

hinos heróicos e patrióticos. Em 1930 Luís era renitente. Só saía do Catete


soldadesca de todo o país acampava pela morto, ¿ el em seu posto de honra. Até o
cidade, ouvindo-se até os boatos intran- cardeal Leme teve de intervir para evitar
qüilos de que aeroplanos paulistas iam lutas fratricidas.
bombardear a minha terra. O assassínio
Boatos corriam sobre os fins
de João Pessoa eletrizou o Brasil, de
nobres e altivos da Aliança Liberal. A
norte a sul, levantando as consciências
gauchada de lenço vermelho no pescoço,
livres e esclarecidas contra os métodos
junto da mineirada, que não era de brin-
excusos da República Velha em silenciar
cadeira, mandava uma tremenda naque-
seus valorosos adversários. Eduardo
les distantes tempos de 3 a 24 de outubro
Souto, grande compositor das grandes
de 1930. São Paulo, justiça seja feita,
melodias que o povo entoa com venera-
lutava com denodo e impericibilidade.
ção, escreveu o “Hino a João Pessoa”,
O heroísmo de seus ¿ lhos impressionava
conclamando na voz de Francisco Alves,
o Brasil, pois Washington Luís, embora
a multidão de brasileiros “derrubar a oli-
Àuminense de Macaé, arregimentou os
garquia perigosa do paulista de Macaé”.
paulistas em torno de seu nome honrado
Ora em canções brejeiras como:
e de suas cãs respeitosas. Era o Brasil
Ai seu Mé, ai seu Mé inteiro a querer derrubar o patriarca Wa-
Lá no Catete tu não pões o pé. shington, homem sério e digno, mas que
Ou quando, na voz bonita de não compreendia a evolução histórica
Francisco Alves, em gravação na praça dos tempos que correm.
pública, a turba fremia de patriotismo e Uma simples débacle da bolsa de
entusiasmo, entoando: Nova York, causando pânico nas ¿ nan-
João Pessoa! João Pessoa! ças do universo, ocasionou a Revolução
Bravo ¿ lho do sertão! de 30, que tinha origem econômica e
Toda a pátria espera um dia também política. Foi uma revolução da
A sua ressurreição. classe média brasileira, ajudada pelas
aspirações dos tenentes, sempre prete-
Os comícios ruidosos na Praça ridos em suas justas reivindicações no
do Ginásio, com os discursos inÀamantes Exército. Os tenentes compunham a
do Dr. Mário Porto. Um estudante em- maioria dos soldados pobres e idealistas
polgava a turba ávida de sensações raras: que ¿ zeram, quase sozinhos, as quarte-
Athayde Ribeiro. Na sacada do Ginásio ladas de 1924 e 1930. Afonso Schmidt,
Mineiro de Uberlândia, os oradores de em A locomomotiva, tentou menosprezar
verbo Àuente relembravam a Batalha de o idealismo dos paulistas que lutaram em
Itararé, enquanto no Palácio da Liberda- 1932 contra a ditadura getuliana. Então,
de de Belo Horizonte o velho Andrada toda a campanha fratricida dos Klinger,
conclamava: “Façamos a revolução antes dos Melo Maluco e de toda uma juven-
que o povo a faça.” O velho Washington tude ansiosa por democracia seria uma
Após o espetáculo, o elenco da peça Aruanda, de Joaquim Ribeiro, recebe a visita do autor. No centro, da esquerda para a direita: Claudiano Filho, Daise, Ruth de
Souza, J. R., Abdias Nascimento e demais artistas e colaboradores do espetáculo. Teatro Ginástico, 1949
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
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205

página em branco, inexpressiva? Os que empanaram a paz e a letícia do


poemas que Guilherme de Almeida século em que nasci e vivo ainda, pleno
escreveu sobre a mocidade paulista, de luminosa esperança? Era só narrar os
ceifada, na frente dos combates, não fatos mais interessantes que se passaram
representavam uma página de inexce- comigo, sem entrar no detalhe, nas minú-
dível heroísmo anônimo? E Lino Gue- cias sociais dessas décadas em que lutei,
des falando da negritude da Paulicéia, sofri, venci ou, às vezes, tive inesperados
caindo com denodo, despe-daçada pelas e ruidosos fracassos. Quando percebo
baionetas dos adversários, enquanto a que quase cinqüenta anos se passaram,
Frente Negra enfrentava, com libelos observo que estou envelhecendo a passos
inÀamantes, o Brasil inteiro que se unia rápidos. Embora não veja meus cabelos
contra São Paulo, na pessoa do veneran- completamente brancos, essa aparência
do Washington Luís? de saudável juventude não me engana,
Nasci já com o século XX bem pois a velhice não se resume a um despre-
avançado, alguns anos após terminada zível aspecto exterior e sim a um cansaço
a grande guerra de 1914-1918. Apesar íntimo que nos emperra todos os atos
de os aliados terem vencido a racista vacilantes da vida. Só um Dorian Gray
Alemanha e todo o explendor do Im- tem o poder de permanecer mais jovem
pério Austro-Húngaro, ainda calavam do que sua imagem vetusta no retrato
nas consciências humanas do mundo envelhecido. Só ele, como o Narciso
embasbacado, as ordens militares do maravilhoso a se mirar no lago de nin-
quartel do general Pershing, proibindo fas, tem o condão magní¿ co de avançar
“o congraçamento das tropas france- as idades sem perder a juventude eterna
sas ou aliadas com os soldados negros dos verdadeiros poetas e dos gênios.
norte-americanos”. No entanto os meus Em vão, faço ginásticas salutares, ando
irmãos de cor foram lutar na Europa, quilômetros antecipadores do método
defendendo uma falsa democracia que Cooper, dispenso a carne que nos dá
nem existia... Viu-se o caso espantoso de mais senectude e não dispenso legumes
soldados alemães vencidos terem a honra e verduras rejuvenescedoras. Mas tudo
de se assentar junto dos soldados aliados, em vão, porque o nosso rosto sem rugas
enquanto lutadores negros, que ajudaram e sem as pregas que antecipam a velhice
a vencer a prepotente Alemanha, perma- não pode iludir o desânimo físico que nos
neciam de pé no trem dos vencedores, vai por alma adentro.
sem o direito de se assentarem perto dos Mesmo situada no centro do
arianos ianques... hinterland brasileiro, Uberlândia acom-
Procuro evitar, mas não consigo panhava os ecos distantes dos acon-
jugular minhas veias de lutador incorri- tecimentos mundiais. Pela Tr ibuna
gível. Que tem os episódios de minha do Agenor Pais ¿ cava-se sabendo do
vida contra essas guerras e revoluções epílogo da Revolução de 30, do itine-
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Sankofa: Memória e Resgate

rário libertador da Coluna Prestes, com todas as garantias constitucionais, como


bravos soldados brasileiros atravessando liberdade de expressão, de reunião, de
inóspitos territórios da pátria, jamais greve, en¿ m, todas as reivindicações
percorridos por homem algum, saindo libertárias de uma autêntica democracia.
de nossas fronteiras para atingirem as A Segunda Guerra Mundial me
terras estrangeiras da Bolívia, Paraguai pegou num Rio pleno de transformações
e Argentina. Eram nacionalistas que dis- cosmopolitas. Até a União Nacional dos
cordavam dos princípios que nortearam Estudantes, na Praia do Flamengo, tudo
a Revolução de 24, enfrentando até as
fez para o Brasil romper com as nações
tropas do general Rondon, que adotavam
do Eixo, sendo importantes, nesse es-
a ideologia em vigor, dos epígonos da
forço de guerra, a atuação de líderes
revolução de Isidoro. Plínio Salgado,
estudantis como Pais Leme e Hélio de
em O cavaleiro de Itararé, e Rosalina
Almeida, que, pela revista do pensamen-
Coelho Lisboa, em A seara de Caim,
to estudantil, O Movimento, lançavam
comprovam o espírito autoritário de
nossos presidentes civis Epitácio Pessoa, certeiras estocadas na pasmaceira do Go-
Artur Bernardes e Washington Luís, os verno Vargas, o qual, indeciso, não sabia
quais foram também os nossos gover- se entrava na guerra ou não. Foi quando
nantes mais atacados por revoluções o compositor e eterno boêmio Bororó
populares que tentavam derrubar as suas escreveu um belo “Hino dos estudantes”,
atitudes despóticas com esmagamento, com um refrão de efeito melódico que
com mão de ferro, a todos os levantes dizia: “Mocidade! Mocidade!”
que tentassem diminuir as suas ordens O Movimento foi uma revista de
prepotentes. Com a ofensiva dos Nove do grande expressão em que estudantes como
Forte de Copacabana, tendo até o mare- Hugo Leite, Ernesto Bagdócimo, Hélio de
chal Hermes de permeio, Epitácio Pessoa Almeida, Lenart Novaes, Pais Leme, Dr.
viu seu quadriênio coberto de sangue Ismar Nascimento, Jerusa Camões, sem
dos nove heróis que, arriscando a vida falar de Bombonati e José Gomes Talari-
ante a sanha das baionetas, escreveram co, representavam a voz da classe no que
seus nomes, em letras fulgurantes, para tinha de maior entusiasmo e ¿delidade aos
comprovarem que, em todos os tempos seus sacratíssimos princípios.
de tirania, a nossa mocidade sempre lutou
por uma democracia salutar, embora isso José Mesquita Santos, diretor de
lhes custasse a imolação de uma vida O Movimento, continuou nessa revista a
curta mas não covarde. Pelo menos, a campanha que Sobral Pinto havia inicia-
Revolução de 30 foi o símbolo de uma do no Jornal do Comércio, pelo rodapé
nova era social em que Getúlio Vargas “A luta pelo direito”, e que Cassiano
personi¿ cou um ídolo do operariado, Ricardo, diretor do DIP, havia mandado
dando a este as maiores oportunidades silenciar, com grande escândalo, no Rio,
e benefícios possíveis, embora o Estado já que o nome de Sobral representava a
Novo, em 1937, com o DIP, nos tirasse bandeira da aspiração democrática da
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues 207

plebe contra o totalitarismo disfarçado do Justinus, que era compadre do Bororó.


Estado Novo. José Mesquita, em vários Justinus desenhava as caricaturas mais
números de O Movimento, deu freio livre engenhosas para os artigos dos colabora-
ao seu ímpeto combativo, junto de jovens dores. Por vezes, esses bicos de pena va-
que, sem receio de prisão, uniram suas liam mais que os nossos ensaios insossos,
vozes à dele: Weimar Torres, Ironides nossas poesias sem lirismos e sem vida
Rodrigues, Hugo Leite, Mário Brazini e ou nossos artigos políticos, cheirando à
muitos outros estudantes, hoje dispersos, demagogia mais chã e insuportável. Coi-
ocupando cargos que fazem jus aos seus sa engraçada é que o DIP jamais pensou
passados combativos. em jugular as vozes dos estudantes de
O Movimento e nisso vai um elogio à
Bororó, o imortal autor de “Da
ditadura getulista, por permitir que extra-
cor do pecado”, “Curare”, “Sempre espe-
vasássemos toda a hipocondria irascível
rei por você”, “Na Corte Imperial”, “Bar-
que nos ditava a nossa índole ávida da
quinho”, “Maus tratos”, “Na pretoria”,
liberdade mais plena e irrefreável.
“Noite vazia”, “Moreninha”, “Tardes de
Lindóia”, “Sapatinho”, etc., sempre à Foi a minha pugna para a liber-
tarde, fazia ponto em A Brasileira, com tação social e econômica do negro, por
sua elegância impecável, bem carioca, assim dizer, feita lá na província, com
junto de outras ¿guras célebres do meio uma turma de negros decididos e ide-
artísticos e boêmio da cidade: Jayme alistas que sentiam, como um espinho
Costa, Newton Teixeira, Jorge Murad, picando-lhes a alma, toda a segregação
Gastão Pereira da Silva, Procópio Fer- do mundo dos brancos racistas. Não
reira, etc. A Bras ile ira, tinha idéia desse movimento em con-
às seis da tarde, com suas cadeiras ao ar junto num plano de luta total pelo Brasil
livre, reunia o que havia de mais seleto no afora. Só em contato com um negro de
setor artístico e social. Políticos, artistas, gênio como Aguinaldo Camargo é que
estudantes, damas da alta sociedade, ban- tive a ventura de penetrar num reduto
queiros, comerciantes, todos ali aÀuíam em que um pugilo de crioulos rebeldes
para o cavaco habitual, falando de cine- e indomáveis mostrava o que era brigar
ma, moda, política, jogo e altas ¿ nanças, de fato por uma idéia aliada a um forte
como o des¿ le dos dândis em evidência contingente cultural e espiritual que era
e das mulheres mais belas e cobiçadas o Teatro Experimental do Negro.
das colunas sociais. Ibrahim Sued, nessa
Meu encontro com Aguinaldo
época, era um simples fotógrafo, não
Camargo foi casual, pois havia tomado
sonhando ser colunista de prestígio de
o bonde Praia Vermelho e, de conversa e
um jornal como O Globo.
longo papo, estávamos de camaradagem
Conheci Bororó por esses idos antiga, como se nos conhecêssemos de
de 1943-44, na UNE, por intermédio há muito. Era um negro magro e meio
do ilustrador da revista O Movimento, baixo, de face eternamente juvenil,
208 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

com um sorriso a brincar-lhe na face que * uerreiro 5 amos de¿niu muito bem,
risonha. Que ator formidável foi esse por ocasião da morte do excelso ator: um
negro magérrimo que viveu tão pouco e aristocrata príncipe da negritude. Com
tão intensamente. Era de vê-lo bêbado e suas Ieiç}es ¿ nas e suaves, Iala de um
cambaleando na Lapa, a declamar Guerra dulçor próprio dos descendentes de afri-
Junqueiro para as prostitutas deslumbra- canos, Aguinaldo aliava a sua poderosa
das de um café suspeito qualquer. Na veia dramática à expressão admirável de
nossa mesa, encantara dicção primorosa um escritor sincero e louvável. Um livro
de Aguinaldo, seus gestos preciosos de que deixou, Êxodo da senzala, recebeu
consumado ator e com uma emoção elogios calorosos de Gilberto Freyre, que
intensa ao declamar os poemas do poeta esteve com os originais por muito tempo,
de “Finis patriae”. lendo-os, preso pela narrativa diferente
Tudo em Aguinaldo era de um e pela novidade de um tema não tratado
pelos ensaístas afro-brasileiros.
espírito convulsivo e em franca erupção
emocional. Não sei por que, ao ver-lhe O Teatro Experimental do Negro
tanto desperdício de talento e vida, senti tinha por base o teatro como um veículo
que ele não teria muito tempo de existên- poderoso de educação popular. Tinha sua
cia terrena. Aguinaldo foi quem quebrou sede num dos salões da União Nacional
o silêncio respeitoso que havia entre nós. dos Estudantes, onde aportavam, dos
“Sou de Campinas. Minha paixão é o tea- subúrbios e de vários pontos da cidade
tro. Precisa conhecer meus companheiros operários, domésticas, negros e brancos
em prol da emancipação negra: Geraldo de várias procedências humildes. Ali, a
Campos, Abdias Nascimento, Sebastião pedido de Abdias, ministrei por anos a
Rodrigues Alves e José Pompílio da ¿ o, um e[ tenso curso de alIabeti] ação
Hora. Vou levar você para conhecer o Te- em que, além dos rudimentos de Portu-
atro Experimental do Negro. É um grupo guês, História, Aritmética e Educação
que promete quebrar e derrubar muitas Moral e Cívica, ensinei também noções
muralhas do preconceito racial brasileiro. da História e Evolução do Teatro Univer-
9ocê precisa ver e ouvir a aura inÀamada sal, tudo entremeado com lições sobre o
do Abdias, o quanto ele, desprezando to- folclore afro-brasileiro e as façanhas e
das as comodidades e benefícios sociais, lendas dos maiores vultos de nossa raça.
somente aspira ao dia em que o negro for Uma vez por semana, um valor de nossas
letras ali ia fazer conferência educativa
livre para entrar no o Itamarati, ser titular
e acessível àqueles alunos operários
em muitas patentes das Forças Armadas,
que, até altas horas da noite, vencendo
en¿ m, de ser alJ u m importante entre as
um indisfarçável cansaço físico, ali iam
mais importantes e privilegiadas raças do
aprendendo tudo o que uma pessoa re-
Universo.”
cebe num curso de cultura teórica e, ao
Advogado, escritor de estilo vi- mesmo tempo, prática. Com o aprendiza-
goroso e vibrante, Aguinaldo foi aquilo do das matérias mais prementes para um
Grande Otelo (ao microfone) ladeado por Ataulfo Alves (à esquerda), Abdias Nascimento e Maria Tereza, na festa da
Boneca de Pixe, salão do Botafogo, promovida pelo TEN em 1949
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alfabetizado, havia a leitura, os ensaios e vencer, junto da grande Ilena Teixeira, a


os debates de peças como O Imperador irmã do personagem de Todos os filhos
Jones de Eugene O’Neil, História de de Deus têm asas de O’Neil.
Carlitos de Henrique Pongetti, História
Corre uma história curiosa de
de Perlinplin de García Lorca, Todos
que Abdias Nascimento, estando em
os filhos de Deus têm asas, Moleque
Lima, ali assistiu à representação do
sonhador, Onde está marcada a cruz,
Imperador Jones com um branco todo
todas as peças de forte conteúdo racial besuntado de negro por falta de artista
e humano de Eugene O’Neil. O negro
de cor para viver o personagem trágico
aí travava contato com seus problemas,
e inquieto do O’Neil. Aí é que lhe nas-
suas aspirações e tomava consciência do
ceu a idéia da fundação de um teatro
quanto valia e do que pesava seu esforço
em que o negro expressasse, em cena,
gigantesco na construção de nossa pátria.
as várias nuances e personalidades de
Só agora que o tempo passou e as sua alma múltipla e sofredora. Como
paixões serenaram é que se pode avaliar no psicodrama encenado por Guerreiro
o esforço hercúleo e gigantesco de Ab- Ramos, em que o negro, por uma catarse
dias Nascimento. Como esse doutor em delineada, extravasava todo o seu sofri-
Economia, negro, de olhos inÀamados mento interior e suas mágoas nas peças
dos gênios rebeldes e de¿ nitivos pôde representadas.
plasmar a alma de tantos operários e Claudiano Filho, magro de fei-
gente humilde, transmudando-os em per- ção delicada, com um rosto expressando
sonagens maravilhosos e convincentes, longo sofrimento reprimido, emotivo,
a ponto de, ao vê-los se moverem em dramático, sofrido. Como Claudiano
cena, ¿carmos admirados com o modular nos deliciou na pele do endiabrado Preto
perfeito de sua dicção primorosa e os Velho da Aruanda de Joaquim Ribeiro.
gestos adequados e preciosos que pediam Sofrendo as assuadas e o apupo do diabo
personagens. De Arinda Sera¿ m, fê-la se defrontava com Ruth de Souza, que
uma atriz primorosa, encarnando a velha vivia uma Preta Velha recalcada, amar-
nativa no Imperador Jones de O’Neil, ga, sempre a recordar um passado em
peça com que o Teatro Experimental do que foi bela e disputada. Aí esses dois
Negro inaugurou-se o¿ cialmente, para artistas extraordinários elevavam a arte
o público brasileiro, no Teatro Munici- dramática a alturas inalcançáveis.
pal do Rio. Ruth de Souza, de babá de
criança ou caixa na Casa do Estudante O Teatro Experimental do Negro
do Brasil era uma das freqüentadoras não podia alugar uma sala para seus es-
de minhas aulas e das encenações do petáculos, pois não recebia nenhuma sub-
TEN. Magra, alta, de olhos expressivos venção popular. Mesmo com sacrifícios
e gestos nervosos, Ruth transformava-se incríveis, como o empenho de objetos
numa atriz inigualável ao fazer a cega valiosos recebidos, o TEN manteve, no
da História de Carlitos de Pongetti ou ao Teatro Fênix e no Ginástico, às segundas
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Sankofa: Memória e Resgate

feiras, uma temporada com todas as pe- como endoidado, pulou num repente por
ças mencionadas de O’Neil. Claro que o entre os pares e assentou-se a uma mesa,
TEN foi arregimentado ou aglutinando sorvendo mais de um copo de uísque.
os maiores valores da cultura brasileira Depois a imagem que guardo do grande
que ali iam colaborar para uma iniciativa romancista de Inácio é na estréia de seu
teatral que não tinha paralelo entre nós. Filho pródigo, no Teatro Experimental
Santa Rosa, por exemplo, pintor maravi- do Negro, no Teatro Carlos Gomes.
lhoso dos motivos do folclore e costumes Lúcio nunca assistia às premières de
nordestinos, foi valioso colaborador de suas peças; sempre ia para um botequim
Abdias em mais de uma conferência. defronte do teatro e ali ¿cava a eer
Ilustrava com seus desenhos os moti- o tempo todo. Só voltava no fim do
vos, em debate, do conferencista. Para espetáculo, trancando-se num camarim,
Rapsódia negra e Sortilégio, Santa Rosa nervoso e de olhos assustados. Quando
conceeu cenrios de Sura magni¿cência cheguei ao Teatro Carlos Gomes ele es-
plástica, enchendo os olhos dos expecta- tava uma pilha de nervos, falando com
dores com um belíssimo jogo de cores e Ruth de Souza, estrela do espetáculo.
linhas sóbrias de um consumado pintor. A peça continha uma poesia evocativa
É preciso ver as capas dos romances da de grande beleza, um assunto bíblico
Editora José Olympio, idealizadas por tratado com delicadeza por Lúcio, tudo
Santa Rosa, como Angústia de Graciliano adaptado ao mundo negro da fábula e
Ramos, Oscarina de Marques Rebelo, da magia. Aguinaldo Camargo como
Território humano de José Geraldo Viei- Manassés e Abdias Nascimento como
ra, sem falar as dos romances do ciclo da o pai patriarcal, que comanda a vida e o
cana-de-açúcar, de José Lins do Rego. destino de seu clã, em grandes e soberbos
Lúcio Cardoso e o seu rosto desempenhos.
elo, transmitindo in¿nita ang~stia e um Tudo que os historiadores bran-
mistério insondável para todos os moços cos escreveram a respeito do negro foi
que o rodeavam. Para aplacar a ansieda- Sura misti¿caço, j que todas as suas
de e tortura que lhe iam n’alma, bebia ciências tinham como função pregar a
muito e, por vezes, mal parava de pé, a inferioridade racial do negro. Assim, não
camalear, como se quisesse ¿rmarse constituem surpresa alguma as descober-
na vida, numa atitude segura e decisiva. tas de dois historiadores africanos sobre
Lembro-me dele no Estrâmbole, cabaré a cor negra dos antigos egípcios. Um é o
de marinheiros e mariposas nos fundos senegalês Cheik Anta Diop, que escreve
da Avenida Marechal Floriano. Seus uma história do Continente Africano,
olhos, de um castanho acentuado, não em que prova, contra todas as opiniões
dei[avam de ¿[ar uma dançarina de rosa dos historiadores racistas, que os antigos
à cabeça que envolvia, nuns passos de egípcios eram negros de cabelos enrola-
dança, um efebo de rara beleza. Lúcio, dos e lábios grossos, como comprovam
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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as suas es¿ nges e os murais desenhados Dario acatou, sem ressentimento, esse
em velhos templos religiosos. Heródoto, parecer.”
no segundo livro de sua História, diz que Heródoto, para chegar a essa
os antepassados dos egípcios foram os luminosa conclusão, foi pesquisar nos
colchidianos, que “tinham pele negra, lugares estudados, ouviu o parecer dos
cabelos encarapinhados e praticavam a reis, dos sacerdotes e da gente do povo.
circuncisão desde a origem”. Sem o querer, estava preparando o ca-
Ésquilo, que deve ter-se embebi- minho para os estudiosos hodiernos da
do em Héródoto para escrever sua belís- negritude. Assim, Amelineau, egiptólogo
sima tragédia As Suplicantes, con¿ rma a do começo do começo XX, não duvida
pele negra daquelas mulheres religiosas da origem negra da civilização egípcia,
que vêm do Egito pelo deserto, enegre- assim como Cheikh Anta Diop e Oben-
cidas pelos ardores de um sol ardente. ga, que fotografaram as esculturas e os
Heródoto também fala “dos egípcios afrescos egípcios, vendo o negróide da
empretecidos pelas ardências solares”. civilização egípcia como “cor da pele
escura, lábios espessos, nariz curto e
Aristóteles, esquecido de que carnudo, osteologia especial (espáduas
sua Grécia aprendeu quase tudo de largas, busto curto, quadris estreitos,
minha África, chama os negros etíopes pernas longas e ¿ nas , comprovando um
e egípcios de covardes, num parti-pris espécimen nitidamente negro”.
bem faccioso da ciência branca, engajada
e calculista. No entanto Heródoto, na Claro que a ciência acadêmica
sua obra monumental que citei, fala das e bitolada gritou e esbravejou aos qua-
façanhas do grande rei egípcio Sesós- tro ventos que isso são teorias racistas,
tris, quando conquistou e venceu vários visando subverter e tumultuar a ciência
povos, inclusive aqueles que Dario não o¿ cial. 0 as n o demos ouvidos a esses
conseguiu subjugar. Este, depois de con- granares de batráquios. O que importa
quistar o mundo, quis colocar sua estátua é que agora é o cientista negro que vem
na frente da de Sesóstris. Foi quando Vul- derrubar as tolices que os Lapouges, os
cano o admoestou de que, agindo assim, Gobineaus e os Charcots espalharam
Dario estaria cometendo uma injustiça, pelo mundo e que Nina Rodrigues, Síl-
já “que não havia praticado tão grandes vio Romero, Afrânio Peixoto e Oliveira
ações quanto Sesóstris e que, se Dario Viana apregoaram, erradamente, sem um
submetera várias nações, não pudera ven- exame consciente e racional.
cer os citas, que Sesóstris subjugou. Não No terreno lingüístico, sábios
era, pois, justo, acrescentou o sacerdote, africanos puseram por terra os dados
colocar diante das estátuas de Sesóstris cient ¿ cos meio suspeitos do professor
a de um príncipe que não o ultrapassara Greenberg, provando o parentesco gené-
em conquistas.” Acrescenta meu mestre tico e lingüístico entre o egípcio antigo, o
e incomparável Heródoto: “Dizem que copta e as línguas africanas. Além disto,
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Sankofa: Memória e Resgate

Obenga aproxima os grá¿ cos africanos Angola, Moçambique, Guiné-Bissau, ou


da escrita hieroglífica. Daí conclui o a trajetória diferente que a África do Sul
mestre Obenga “a existência de uma apresenta, onde o negro, agora consciente
comunidade cultural negra muito antiga, de sua superioridade numérica, parece
na qual se banham as realidades africanas disposto a derrubar os grilhões colonia-
de hoje”. listas dos ingleses e holandeses.
É preciso convir que meu cader- Embora de religião muçulmana e
no é escrito por um negro que há mais no início odiando, erradamente, os bran-
de quarenta anos estuda o problema da cos, Malcolm X tinha o mesmo sonho de
educação e ascensão social de sua raça. Marcus Garvey quando quis levar todos
Não posso isolar minha vida particular e os negros americanos para a África, sem
íntima da pugna em que me lanço, numa pensar que, no caso da Libéria, para onde
questão de vida e morte, para colocar se pensou também em levar anteriormen-
minha raça numa posição destacada no te os negros da América, essa aspiração
universo cultural e pensante. O melhor não foi coroada de sucesso. Por que tirar
deste caderno ou diário está nas páginas o negro americano de seu habitat, do
em que eu, como um Narciso africano, país que ele colonizou e ao qual deu seu
miro-me, embevecido, no lago perdido sangue e sua vida? Tinha tanto direito
da História Antiga, buscando inspiração na América como o colonizador branco
para a epopéia negra que tentei ensejar inglês e o índio originário das ínvias Ào-
nas páginas frementes e apaixonadas de restas e savanas. Luther King Jr., sendo
minha Estética da negritude. protestante, via a nossa luta pelo lado
Uma bala assassina pôs ¿ m a pací¿ co, calmo, à Leon Tolstoi e Romain
uma vida grandiosa como a de Luther Rolland. Sempre achei o protestantis-
King. Assassinos inconformados com mo um meio poderoso para escravizar
a ascensão de meus irmãos negros ma- o negro e mantê-lo calado e apático,
taram covardemente meu Malcolm X pois até dentro das igrejas evangélicas
porque este pensava em sua raça com e presbiterianas há lugares segregados
a luminosidade dos líderes santos e ge- para brancos e negros, como se deu nos
niais. Sartre falou, em tom profético e templos batistas ou protestantes dos nos-
¿ losó¿ co, de Patrice Lumumba quando sos antigos colonizadores holandeses...
morreu, em hora antecipada, evitando a Nesse ponto, o catolicismo foi mais
vergonha de ver o seu Congo desmorali- bené¿ co entre nós, pois não destruiu o
zado pelo reacionarismo branco e belga, reduto de cultura africana de nossos ne-
não podia nem prever que a sua África gros, aceitando as religiões e cultos dos
iria libertar-se breve do jugo racista dos sudaneses e bantos, havendo uma mes-
colonizadores brancos. Ficaria admirado cla dos santos da Igreja com os deuses
do rumo que tomou a luta de emanci- africanos, na melhor e maior aglutinação
pação das colônias portuguesas como cultural, enquanto que o sisudo inglês
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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impôs ao negro americano, na música, porque a Igreja Católica, apesar de al-


o ritmo melancólico de seus salmos e gum racismo que há em algumas de suas
pôs os preconceitos bíblicos acima dos irmandades, que não aceitam negro
nossos Exu, Xangô, Iemanjá ou Oxóssi. no seu interior, tem o espírito aberto
O negro perdeu, em riqueza de folclore, às grandes evoluções sociais e por isso
música e tradição na civilizadora meló- achou melhor aceitar os fetiches e deuses
dica monocórdica do barulhento jazz... africanos, confundindo, por vezes, os
Daí a maior riqueza de lendas, folclores, santos católicos com os Oguns, Oxóssis
misticismos, do negro brasileiro, numa e Xangôs de estilo.
prova de que a colonização portuguesa
No navio negreiro, contam que
foi mais sábia e acertada, aceitando até
os negros trouxeram a Nossa Senhora
a cozinha, os costumes, a linguagem e
da Lampadosa que está no altar-mor,
outras inÀuências civilizadoras dos des-
lá na igreja dos pretos velhos cariocas,
cendentes de Cam.
na Avenida Passos. São Benedito já se
Objetarão que a inÀuência nefas- identi¿ cou à simbologia negra e há até
ta dos ingleses não impediu a América um templo dele num subúrbio carioca,
de dar um Louis Armstrong, um Duke aonde os jogadores brasileiros vão pedir
Ellington, uma Bessie Smith, um Count auxílio e proteção. A bola do campeonato
Basie, uma Billie Holliday ou Sarah mundial que o Brasil venceu no México,
Vaughan, mas, enquanto a poesia negra Pelé e Carlos Alberto, de nossa seleção,
americana é em puro diapasão salmista, a ofertaram ao padroeiro da Negritude.
como é o caso de Cullen, Langhston Até nesse ponto místico e racial o Brasil
Hughes e Dumbar, já o negro brasileiro deu um exemplo sem igual ao mundo.
se extravasa em vários e diferentes ritmos A padroeira do meu país é uma preta,
musicais como Cruz e Sousa (“Crianças achada no rio Paraíba, em Guaratinguetá,
negras, “Emparedado”, “Réquiem do numa rede que os pescadores lançaram
sol”, “Violões que choram”), Solano ao rio. Nossa Senhora Aparecida é negra
Trindade (“Quem tá gemendo?”, “Trem retinta, mas isso não a impediu de ser
da Leopoldina”, “Negros”), Lino Guedes padroeira deste colosso sul-americano.
(“Sunscristo”, “Urucungo”, “Pai João”), Como a Virgem de Puys, como a Nossa
Madalena de Sousa, Oswaldo Camargo, Senhora de Guadalupe ou Nossa Se-
Eduardo de Oliveira (“Banzo”), Belsiva nhora de Monserrat, tem a cor escura
(“A África tá chamando”) ou mesmo a das noites misteriosas do nosso país.
prosa de gritos exasperados e sentidos A Igreja assim agiu para melhor arre-
de um Romeu Crusoé, em A maldição banhar milhões de negros para as suas
de Canaan, em que a inspiração negra hostes. Até um Santo Antônio de Porres,
tem campos diferentes para se espraiar negro peruano esmoler, padre de muitas
à vontade. O negro não é limitado para virtudes e pureza, a Igreja o santi¿cou
gritar toda a revolta que lhe vai n’alma nos altares, numa deferência sincera à
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Sankofa: Memória e Resgate

raça negra. Um príncipe de alto saber Questões e problemas), sem falar nos
e bondade como dom Silvério Gomes escritos esparsos de José do Patrocínio
Pimenta foi um negro que recebeu todas e seu romance Mota Coqueiro, temos
as honrarias dentro da Igreja, atingindo aí cinco escritores de peso cultural que
até o arcebispado, em Minas, dentro do honrariam qualquer literatura do mundo.
respeito e consideração de toda a Minas. Qual foi o nosso erudito ou fuçador de
Ao ingressar na Academia Brasileira de alfarrábios perdidos que se aventurou a
Letras, levava para o Petit Trianon o que coligir o que há de melhor em Hemetério
o clero tinha de mais culto e profundo. dos Santos, perdido em jornais e revistas
Sabedor de vários idiomas, disseminador com que ele colaborou, escrevendo sobre
de vocações sacerdotais, dom Silvério Filologia e o idioma pátrio, de que era um
primou como um grande incentivador de mestre consumado? Ao se insurgir contra
vocações de negros católicos. D. Pedro a indiferença machadiana em face da
II o condecorou, o cardeal Arcoverde o abolição da escravatura, Hemetério dos
tinha em grande conta, a ponto de sagrá- Santos tomou a única posição possível a
-lo bispo de Mariana. O papa concedeu- um negro decente: combater, por todos
-lhe, por seu saber, bondade e grandeza os meios ao seu alcance, o absenteísmo
de iniciativas, o grau de conde papalino, covarde suspeito de certos negros que
como fez também ao conde Afonso Celso só são pretos na pele, mas no íntimo e
e a Carlos de Laet. O negro brasileiro é no todo rezam pela cartilha racista dos
muito mais inteligente, criador e mais brancos que combatemos. É verdade que
livre em suas expansões culturais que um satírico como Emílio de Menezes
o negro americano, tolhido por uma tentou caricaturar o nosso simpático
estreita e bitolada ¿ loso¿ a protestante e Hemetério, pondo em ridículo certas
luterana. atitudes do mestre negro com suas alu-
nas, que o idolatravam. Já Castro Lopes,
Quando se pega um romancista também negro, com sua erudição pedante
do gênio de Lima Barreto (Clara dos e pernóstica, será que trouxe algo de
Anjos, A vida e morte de M. J. Gonzaga incentivo à minha luta em prol do engran-
de Sá, Triste fim de Policarpo Quaresma, decimento de minha raça? Claro que não,
Recordações do escrivão Isaías Cami- mas em seus Artigos filológicos de 1910,
nha, Histórias e Sonho), Machado de ele discute com Cândido Figueiredo a
Assis (Memorial de Aires, Esaú e Jacó, gra¿a correta de projéctilo ou projéctil,
Memórias póstumas de Brás Cubas), um parêce ou paréce, suór ou suôr, bênção
pensador profundo e vigoroso de soció- ou benção, se o léxico papagaio não é
logo como Tobias Barreto (Os menores de origem grega ou latina e sim derivado
loucos, Estudos alemães), a pujança do árabe para o francês. Fala, aí, da ave
cultural de um sociólogo e pensador papagaio que palra, articula e imita a voz
prematuramente falecido como Tito Lí- humana. Esse livro de estudo e meditação
vio de Castro (A mulher e a sociologia, mostra até onde pode chegar a cultura
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
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negra quando seu portador é um espí- fogos e traques de estilo, só para ouvir a
rito imbuído de forte saber, o que torna baderna barulhenta da cainçalha batendo
tão atraentes esses eruditos estudos. Os com a lataria ensurdecedora pelas pedras
crioulos que enxameiam, aos domingos, desiguais do calçamento da via pública.
nosso Maracanã não perdoariam Castro Ta mbém é um pouco forte
Lopes se, em lugar de “ futebol” , tives- Fernando Góis achar a prosa poética de
sem de dizer “rodopédio”. Cruz e Sousa uma literatura medíocre e
Fernando Góis usou de sua in- secundária. Será que o crítico não teve
teligência reconhecida para expor certas aguda sensibilidade para penetrar no
idéias ou conceitos muito aquém do que ritmo estranho e de musicalidade bizar-
se esperava dele ao fazer comentários ra do “O emparedado”? O maior brado
discutíveis sobre as “Bodarradas” ou a que um negro já soltou em nosso idioma
grande poesia de fundo social de Luís passa imperceptível a Fernando de Góis,
Gama. O analista Fernando, em vez de se quando analistas do gabarito de Tasso
ater à época revolucionária em que surgi- da Silveira, Andrade Muricy, Agripino
ram os poemas satíricos de Gama, analisa Grieco e Tristão de Athayde, sem falar
esses poemas do modo mais leviano e de mestre Nestor Vítor, colocam “O
inconseqüente possível. Até um Manoel emparedado” em alturas só atingíveis
Bandeira não reconhece similar no idio- pelas obras de arte de¿ nitiva.
ma em face das “Bodarradas”. Afrânio A prosa de Cruz e Sousa é bem
Peixoto é outro crítico que dá grande do simbolismo, com todos os seus vo-
apreço a esses poemas do diabólico Getu- cábulos sonantes e musicais escritos em
lino, numa página louvável do Humor. A maiúsculas. Mas, somando todos esses
negritude tem em Luís Gama um poeta de jogos de palavras que parecem nada
mérito, porque nesse combate que Luís dizer, embora digam coisas profundas e
Gama faz aos ¿ gurões ridículos do seu emocionantes, adindo todos esses léxi-
tempo o negro já entra com grande dose cos onomatopéicos, temos um estilo de
de protesto aos seus dominadores. E isso grande beleza musical, como é o caso
o poeta descreve citando, em seu favor, da grande prosa simbolista do Gonzaga
muitos duendes da mitologia grega e Duque da Mocidade morta e Horto de
chamando os escravocratas de São Paulo mágoas, do Raul Pompéia tão embebido
de “bode barbudo” ou “cabra coiceira de Beaudelaire em Canções sem Metro.
estúpida”. Claro que o Brasil inteiro Esse estilo rico de palavreado
riu desses ¿ gurões empavonados, numa sonoro e de segundas intenções pode pa-
empá¿ a do mais antipático escravismo. recer demasiado verboso a espíritos pou-
Luís Gama os colocou num picadeiro de co sensíveis à grande poesia simbolista,
circo, como a esses cachorros das ruas como no equívoco cometido por Tristão
que a criançada amarra umas latas em de Athayde e na sua infeliz comparação
seus rabos sarnentos e os espanta, com estética entre Cruz e Sousa e Alphonsus
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Sankofa: Memória e Resgate

de Guimaraens, colocando, numa falta “É o Sr. Assis Valente. Está se recuperan-


de visão analítica, o poeta místico de do do salto que dera do Pão de Açúcar.
Mariana acima do gênio rebelado dos Quase morreu, o coitado!”
“Violões que choram”.
Várias vezes o grande composi-
Atílio Milano era um homem tor baiano de “Té já”, “Minha embaixada
profundamente triste. Em sua casa, à chegou”, “Uvas do Caminhão”, “Recen-
Rua Cândido Mendes, estava sempre seamento”, “Arlequim de bronze”, “Ale-
com rosto gravemente sério, sem um gria”, etc., tentara contra a vida, movido
riso sequer a lhe aÀorar a face magoada por estranhas razões psicológicas. Todas
de grande poeta interior. Em sua estan- as vezes que pensara assim, antes sempre
te só guardava os livros dos máximos telefonava para Pascoal Carlos Magno,
poetas de vários países: Hugo, Byron, que sempre o demovia do sinistro inten-
Shakespeare, Milton, Virgílio, Ovídio, to. Mas houve um dia em que os fados
Dante, Camões, sem haver lugar para parecem ter conspirado contra Assis e o
aqueles vates que não tiveram a ventura veneno que ele tomou foi matá-lo lá na
de se ombrear, no estro, àqueles aedos Praia do Flamengo. Curioso é que uma
inspirados. Adorava as crianças, fazendo semana antes nós batemos uma fotogra-
uma festa enorme quando, na Praia do ¿ a na Praça Paris: Assis, eu, o Bororó e
Flamengo, via uma revoada álacre de um belo rapaz louro, de origem gaúcha.
infantes brincando e saltitando. Todo o A máquina era dessas que fotografam
mutismo e tristeza de Atílio advinham sozinhas, sem ser necessária a ajuda
da sua separação com a mulher, que lhe humana. Infelizmente, aquela foto que
trouxe uma paixão profunda e intensa. tiramos, num dia ensolarado, com re-
Sempre que Bororó e eu saíamos pela chinar de líricas cigarras, se perdeu e eu
rua do poeta, batíamos um papo com ele, agora não disponho de efígie alguma para
enquanto, lá do apartamento do Tomás melhor relembrar aquele inesquecível
Teerã, nos vinha um sentido Concerto amigo das longas noitadas boêmias dos
revolucionário de Chopin. cafés Amarelinho ou Vermelhinho. Assis
Valente assentado no Amarelinho, junto
Parece até que o destino de As-
do Sandoval Mota, olhando, muito cir-
sis Valente estava intimamente ligado
cunspecto, a multidão de gente que vem
ao meu. Quando morei na velha casa
e vai, no atropelo confuso de quem quer,
de gradil à Rua Dois de Dezembro,
numa noite, resolver todos os insolúveis
25 - Flamengo, certa tarde esbarrei com
problemas da vida.
um homem todo ensangüentado, com a
cabeça toda enfaixada e amparado por Não quiseram colocar o caixão
um mulato, Nicanor, que morava na casa. do genial compositor popular na Câmara
Mais tarde perguntei a D. Ermezinda, a dos Vereadores do Rio. Falou-se até num
senhoria, quem era aquele homem ferido Salomão Filho, que deu o contra. Mas Ari
que encontrei. Ela me disse secamente: Barroso respondeu-lhe à altura: “Um dia
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
219

se falará no nome de Assis Valente por de quando ela estava em pleno explen-
todo o Brasil e o nome dum obscuro edil, dor da vida. Por isso não acompanhei
que foi contra a homenagem da cidade a Bororó aos féretros do J. Cascata e do
Assis, será profundamente esquecido no Benedito Lacerda. O de Ari Barroso foi
rol das coisas inúteis.” bonito porque virou carnaval e os foliões
improvisaram uma alegre mascarada no
Minha vida está tão intimamente
acompanhamento fúnebre do autor de
ligada à do Bororó que sempre que al-
“Dá nela”.
guém me vê sozinho pergunta: “Como
vai o Bororó?” O mesmo acontece com A Rua Dois de Dezembro tinha
o grande chorão de “Da cor do pecado”. sua beleza serena, com seus chalés de
Muitos vultos notáveis com que travei dois andares, dotados de gradis e va-
conhecimento em minha vida atribulada, randas, onde descansavam as donas de
foi graças a Bororó que pude privar de pensão, com os hóspedes estudantes e
sua convivência. Quantos tipos esquisi- demais pessoas da família. Os bailes que
tos e fora do comum com quem travamos se davam nas casas abastadas, reunindo
relações e de quem guardamos recorda- a melhor juventude do Catete, Beco dos
ções indeléveis: Donga, com seu jeito Pinheiros, Buarque de Macedo, Correia
meio descon¿ ado, era o¿ cial de justiça Dutra e até Rua Machado de Assis. Os
e andava sempre sério e meio cabreiro. encontros dos estudantes no Café Pau-
Era preciso ver sua face sem riso no dia lista, as sessões do Cinema Moderno, na
em que, no Teatro Municipal, a cidade Praça Tiradentes, no Fênix ou no Ideal,
do Rio homenageou o compositor Pixin- este na Rua da Carioca, e no Eldorado,
guinha. Cirino veio da França, estudou Avenida Rio Branco, que cobrava pouco
lá Harmonia profundamente e era quem mais de vinte centavos. A guerra lá fora
botava em pauta musical das partituras era um eco terrível e distante e, de vez
as músicas que os autores só faziam em quando, os jornais falavam na queda
de ouvido. Morava na Rua Cândido da França, nos bombardeios dos alemães
Mendes, um pouco acima da casa do sobre Londres e da capitulação de tantas
Bororó. Alegre, trocista e meio careca, nações ante as tropas nazistas, como
Cirino era compositor negro de respeito, Holanda, Bélgica, Grécia, Hungria, etc.
assinando u’a música que corre o Brasil
D. Ermezinda comandava a sua
todo: “Cristo nasceu na Bahia”. Em seu
pensão tranqüila, alugando quartos a
quarto simples e pobre, via-se o diploma
rapazes educados, comportados e que
de uma escola de música que cursara na
trabalhassem fora. Era uma casa alegre,
França.
com ela cantando no tanque, a lavar rou-
Detesto enterros e tenho pavor pas dos hóspedes, enquanto, na vitrola da
da morte. Por isso é que não costumo sala da frente, Dalva de Oliveira soltava
velar a morto nenhum, pois a imagem trinados, com sua voz de ouro em “Er-
que quero guardar da pessoa amada é a rei, sim” de Ataulfo Alves. Por vezes eu
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Sankofa: Memória e Resgate

acordava cedo com o homem do realejo de Dalva, ocultando de nós uma dor
tocando uma valsa de sonho. D. Erme- cardíaca que a levou bem cedo do nosso
zinda era boa e simplória, muitos ¿cavam convívio. Quando vagava um quarto de
devendo à pensão, mas ela era boa e estudante nalguma pensão, era comum
esperava, pois conhecia as di¿ culdades ver uma corda com um pedaço de caixa
da gente operária e daquele que estuda. de sapato a balançar do alto do sobrado.
Quantas vezes, às encondidas do mari- Ao se alugar a vaga, tirava-se o barbante
do, Sr. Osvaldo, ela dava comida para o com o papel na ponta. Que esfuziante
hóspede sem trabalho. De sábado para alegria pelo Catete, com sua nascente
domingo, o samba ali fervia delirante, Faculdade de Direito do Rio de Janeiro,
atraindo rapazes e moças da redondeza, onde me enfronhava com os estudantes,
com a eletrola mandando bem alto ma- colaborando até no jornal O Combate
xixes, sambas e cateretês de Chiquinha de Anísio Rocha. Ali fermentava uma
Gonzaga, Geraldo Pereira e Eduardo turma respeitável de estudantes que hoje
Souto, para desespero da mulher do ve- ocupam posição de destaque em nossa
reador, da esquina, que ameaçava sempre vida social: Laércio Pelegrini, grande
chamar a polícia. Mas quando o carrão ali penalista nacional; Anísio Rocha, depu-
chegava, a D. Ermezinda, com sua beleza tado por Goiás; Moema Ferreira, poetisa
mulata e sorriso brejeiro, recebia os tiras de “Fuga” e “Meus versos” e romancista
com uma garrafa de cerveja gelada ou um segura e poética de Os seios da virgem;
guaraná,e estes, bebendo uma Caracu Leopoldo Heitor, que já era bem bada-
ou Malbier, diziam por desencargo de lado antes do crime que o celebrizou,
consciência: quando, num romance, contou toda a
— É, pode dançar e cantar bai- vida dramática de seu progenitor: Além
xinho, sem fazer zoada. Já telefonaram do rio Paraíba.
duas vezes pro Distrito da Pedro Américo. A voz baixa de Homero Pires, o
— Pode deixar — dizia D. pernosticismo antipático do Ari Franco,
Ermezinda. a bondosa simpatia do Sadi Gusmão, as
aulas concorridas de um grande penalista
— A turma aqui sabe brincar como Roberto Lira, cuja voz de tenor
com respeito. era ouvida até perto de uma avenida de
D. Ermezinda que tanto bem fez casas, próxima à Faculdade: Vila Elite.
a mim, esperando-me meses para pagar Era lá que eu ia me encontrar com o
minha vaga num quarto obscuro. Até o poeta Weimar Torres e gostava de ouvi-
Moacir Franco, quando veio de Ituiutaba, -lo declamar: “Lá vai o carro mineiro,
cidade mineira próxima da Uberlândia gemendo pelo sertão.” As conferências
onde nasci, foi muito auxiliado por essa famosas que ouvi nesse solar atraente
preta sentimental e tristonha, que curtia da Rua do Catete, como uma de Agripi-
suas mágoas ouvindo a voz de rouxinol no Grieco, cheia de malícia ferina e de
A começar do alto, esquerda: Ruth de Souza (“Aíla”), Lúcio Cardoso (o autor), José Maria Monteiro (“Assur”), Roney Silva
(“Moab”), Abdias Nascimento (“o Pai”), Aguinaldo Carmargo (“Manassés”), Marina Gonçalves (“Selene”) e Claudiano
Filho (um “peregrino”), num intervalo do ensaio da peça O filho pródigo, em 1947
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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muitas carapuças à burrice que o ouvia dúbias e inconcebíveis no tocante à luta


no auditório. Raimundo de Sousa Dantas, pela emancipação de minha raça. Muitas
quando ainda não havia virado a casaca, vezes, em conferências e plenários de
fez uma palestra sobre Lima Barreto. O congressos afro-brasileiros, Raimundo
autor de Bruzundanga começava a estar e Edson Carneiro tentaram escamotear
em evidência lá por 1945, com as edições as nossas diretrizes certas (re¿ ro-me a
de bolso comentadas por Eloy Pontes e Abdias Nascimento, Sebastião Rodri-
a coragem do crítico maior, Agripino, gues Alves, Aguinaldo Camargo e eu
dando merecidamente a Lima Barreto para levar essa luta que nos consumia
a primazia no romance brasileiro. Rai- umas três décadas de idealismo para
mundo de Sousa Dantas tentou provar um terreno político duvidoso. O livro
que era analfabeto até a idade adulta. Ao de Raimundo pode servir de exemplo
trabalhar na imprensa, como linotipista, ao negro que quer marginalizar-se, sem
ao ligar as letras, na hora da impressão do estudar e sem querer aprender um ofício,
livro, ele acabou por conhecer e decorar fatos pelo quais, na América, um Booker
o alfabeto e a ligar as letras nas palavras T. Washington tanto se bateu, para elevar
e juntar os vocábulos nas frases e ora- uma parte do negro dos Estados Unidos
ao lugar de destaque em que ele está
ções. Foi assim, diz ele, que aprendeu
hoje. O nome desse depoimento de um
a ler, passando, depois desse lance, a
negro que subiu por esforço próprio: Um
ser um devorador insaciável dos livros
começo de vida.
dos mais renomados autores, de George
Bernanos, André Gide, Joseph Conrad, À tarde, o piano nostálgico e so-
John dos Passos, Máximo Gorki, Aldous luçante do Mário Azevedo me traz tantas
Huxley até Graham Greene. Não deixa valsas sentidas do Eduardo Souto, autor
de ser uma vida meritória para um negro por quem tenho uma certa paixão meló-
de origem humilde que, pelo esforço e dica. Saio um pouco de minha tristeza, de
estudo, atingiu um lugar em nossas letras, meus fracassos e ansiedade, para mergu-
com romances bem sentidos e de muita lhar neste turbilhão maravilhoso de sons
força psicológica: Sete palmos de terra, evocativos e longínguos: “Despertar da
Agonia, Solidão dos campos, sem falar montanha”, “Inverno”, “Verão”, “Pri-
do relato curioso de sua experiência afri- mavera”, “Outono”, “Saudade”, “Do
cana em África difícil, já que Raimundo sorriso da mulher nasceram as Àores”,
“Sugestões de um Olhar”, “Evocação”,
não deixa de ser uma ¿gura histórica, por
“Viver... morrer por um amor”, “Solidão”
ter sido o primeiro embaixador africano
e “Mágoas”, em que os acordes Àébeis
que o Brasil designou para o continente
e de suaves nuances nos levam até uma
negro.
época serena e calma, após a Primeira
Muitas atitudes desse primeiro Grande Guerra, em que a vida era mais
embaixador nosso em África são meio fácil, as pessoas se entendiam melhor e,
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Sankofa: Memória e Resgate

emora com as di¿culdades cotidianas, coral no palco em frente, cantando as


os homens podiam cantar, dançar e, o que sentidas melodias de Bach ou Haydn,
é mais difícil, viver. quando não irrompe com um autor meio
barroco e de genialidade criadora: Villa
Mesmo quando o Souto saía
Lobos.
desse lirismo concentrado, era para cair
nos ritmos sinconpados de um maxixe Em minhas perambulações boê-
gostoso como “Tatu subiu no pau” ou mias por bairros e ruas do Rio de Janeiro,
nessa deliciosa “Batucada” que fez com é pelos lados da Central do Brasil que se
João de Barro, na melodia irônica e ¿[a um instante de minha sensiilidade
suavemente zombeteira como a de “Ge emotiva. Por trás do Palácio da Guerra,
Gê”, ou no febricitante e quase genial por entre as Ruas Marcílio Dias e Barão
e buliçoso batuque “Parati dançante”, de 6o )éli[, ¿cava a casa de 6inh{, que,
sem falar de “Só teu amor”, “Não sei antes de ser o rei de todos os sambas do
dizer”, em que a arte de Eduardo Souto passado, foi pintor de paredes de todas
atinge culminâncias melódicas e cria- as casas humildes que precisavam de
doras em nossa música. Mário Azevedo retoque.
sabia transmitir essa poesia velada, essa
Lá mais para os lados da Saúde
comoção lírica de Eduardo Souto por
ou Gamboa morou o João da Baiana,
meio das teclas soluçantes de um piano,
que ali viveu boa parte de sua vida,
tocado naquela plangência das valsas que
com uma respeitável roda de samba. A
acomSanhavam os ¿lmes mudos
Visconde de Itaúna era onde reinava a
Claro que este diário ou caderno tia Ciata, famosa pelos choros e sambas
sai assim desordenado, desconexo, como de partido e pelos exímios chorões que
a oscilação emocional de nossas vidas. ali estreavam ou faziam as suas com-
Os episódios não seguem uma cronologia posições, como Heitor dos Prazeres,
precisa e sim acompanham a instabili- Pixinguinha, Sinhô e até João da Baiana.
dade de inspiração do autor. As imagens O interessante dessa época áurea de
se sucedem ou se confundem, como nas nossa música é que esses autores faziam
¿guras coloridas e emaranhadamente suas composições sem aspirar a lucros
dispostas de um calidoscópio. Por vezes ou vantagens pessoais, cantando e dan-
estou no Teatro Municipal assistindo, um çando, como bons chorões que eram, em
pouco emocionado, à minha formatura; casa de baianas notórias ou alegrando as
ora relembro dos tempos em que larguei a festas e bailes do Catumbi e da Cidade
Faculdade Nacional de Direito ou revejo Nova. Embora Chiquinha Gonzaga não
as lutas todas que travei para vencer a amasse o carnaval, foi seu “Abre alas”
inexpugnável batalha da vida ou para a primeira composição carnavalesca
receber meu diploma agora, após quase que tivemos, preparada a caráter para o
uns trinta anos de afastamento de minha cordão Rosa de Ouro brilhar no carnaval
faculdade. Olho, com certo carinho, o do início do século.
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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A animação dessas festas, nos cantando baladas românticas de autores


chalés da crioulada musiqueira do tempo, europeus, como Purcell, Haendel, Bach,
era a medida da alegria que reinava no Fauré e massenet, até cantando, com
Rio de então. Sinhô, nos últimos tempos lágrimas na voz, os mais sentidos spiri-
de sua vida, compunha músicas para tuals de sua raça. Como pode um cantor
escolas ou blocos conhecidos, sendo branco, com toda uma gama maravilhosa
que para a Kananga do Japão fez u’a de timbres privilegiados, chegar à altura
melodia que foi até premiada por um sonântica, numa interpretação do sofri-
concurso carnavalesco. Sinhô, em que mento milenar da raça, como uma Billie
pese a muitos conceitos discutíveis de Holliday gritando ao universo o seu canto
seu biógrafo, Edgard de Alencar, não de angústia e amor? É o mesmo que pin-
plagiou alguns sambas como propalam tar um artista branco com a cor negra na
por aí. Não acho também que Sinhô fosse face e mandá-lo interpretar uma perso-
tão analfabeto que não tivesse o gênio da nagem de tanto policromismo dramático
inventiva melódia e das letras simples e e racial como o Imperador Jones ou viver
buliçosas de tantos sambas maravilhosos. a ¿gura lendria de um negro haitiano
Ellington dá a “Black and tan que morreu a lutar pela libertação de sua
fantasy”, um Louis Armstrong em raça oprimida, Toussaint Louverture. Por
“Lonesome blues”, uma voz de mezzo- isso é que me insurjo contra Zora Seljan
-sopr ano que chega até a contralto quando, num livro seu, As quatro filhas
de Mary Anderson cantando os mais de Xangô, a¿rmou que suas Seças de
sentidos spirituals. Um ouvido seguro motivos negros podiam ser interpreta-
saberá reconhecer a alma negra de Bessie das até por brancos besuntados de cor
Smith cantando sentidos blues, de letras escura, o que acho forte heresia, pois
apaixonadas e doridas, ouvirá o lamento a revolta secular que o negro sente na
estrangulado do piano de Count Basie carne, oprimido num preconceito racial
acompanhando a voz chorante de Ber- intransponível, um branco nem pode ter
tha Vaughan e saberá o quanto um Paul a mínima idéia. Até um pensador atilado
Robeson sofre quando entoa as canções como Jean Paul Sartre, em Reflexões so-
sulistas do “Show-Boat” ao cantar as bre o racismo, levantou, por um instante,
dilacerantes melodias do ¿lme Jericó e o ¿o da questo, comSarando o racismo
as partituras expressivas do sofrimento que se faz ao negro com o praticado com
de raça infeliz, prestes a se libertar, do o judeu; por outro lado, muitas sutilezas
Imperador Jones. que envolvem o preconceito racial ao
negro escaparam à sua notória argúcia
Não é em vão que se nasce ne-
¿losy¿ca
gro, emotivo e com o coração fremente
de revolta e amargura. O sentido perfeito Nestas considerações que faço,
da a¿naço coral dos Irmos 0ills, a vo] no caderno emocional de um negro que
de um dulçor angélico de Roland Hayes explana suas lutas e conflitos raciais
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Sankofa: Memória e Resgate

nestes quase quarenta anos, ele não perde ele era a maior voz de baixo do mundo.
de vista o que sua raça deu de mais sério, Enquanto persistir a ¿ gura insultante do
objetivo e imortal. O jazz está nessa linha Pai Tomás a pairar sobre a sacrossanta
imorredoura, porque pela sua beleza causa de nossa luta emancipadora, Paul
melódica e acordes arrebatadors e fre- Robeson jamais se demoverá desse seu
mentes não deixou de chamar a atenção gesto de protesto, retirando-se da cena
para o compositor inglês Delius, para um lírica para lutar melhor pelo negro nas
inspirado tcheco como Dvorak compor pugnas e entrechoques cotidianos desta
sua esquisita página de beleza enalte- vida morrinha e sem sentido...
cedora Sinfonia do Novo Mundo, para Quando o camburão, carrão, viú-
um Darius Milhaud fazer a sua gênese va alegre, coração materno ou diligência
africana da origem do universo A cria- policial aponta nos arredores da Central
ção do mundo, de um Ravel em Bolero do Brasil, todas as mariposas, mendigos,
e O menino e os sortilégios, de algumas marginais e camelôs que vendem suas
páginas de Claude Debussy (Minstrels, mercadorias roubadas ¿ ncam o pé no
General Lavine, Gollwog’s cake walk), mundo. Um que engolia fogo, deitava-se
um Gershwin na Rhapsody in blue, um sobre cacos de vidro e tinha, enrolada
Strawinsky (História do soldado), um no dorso, uma enorme jibóia deu uma
Kurt Weil, enchendo de negrismo os corrida tão grande que quase foi atrope-
ritmos guinchantes e onomatopeicos da lado por um carro que vinha em direção
Ópera dos três vinténs de Brecht. Um contrária. Aqueles cafés sujos e biroscas
russo, Louis Gruenberg, fez uma ópera encardidas junto do túnel da Rua Bento
interessante baseada na peça homônima Ribeiro lembram os cafés de desenhos
de Eugene O’Neil, O imperador Jones. feitos na parede da velha capital brasi-
É verdade que em muitos desses temas leira do início do século, lembrados pela
o negro é tratado de modo subserviente, pena veraz de um repórter ¿ rme como
segundo a apatia molóide do Uncle Re- João do Rio.
mus, ¿ gura do folclore nova-iorquino
que Walt Disney usou, de forma discutí- O tintureiro ou camburão branco,
vel, em Canção do Sul, desenho fílmico com seus buraquinhos na parte traseira,
misturado com pessoas de carne e osso, foi chegando e logo o grupo de prosti-
juntos em cena, em que parecem pregar tutas e homossexuais foi se espraiando,
a eterna submissão do negro ao jugo na- para não se deixar prender.
fasto do branco. Essas e outras distorções — Ô moço – me diz uma mariposa
do famoso e mitológico Pai Tomás, na desdentada, novata ainda e um tanto
persistência de converter o negro a um bonita – , faz de conta que eu estou
eterno obedecer às ordens do branco e em sua companhia. Se eu tomar um
de ser conformado e nunca rebelar-se, é Àagrante de vadiagem lá na delegacia,
que levaram um Paul Robeson a aban- estou fodida. Pra me tirar de lá, só
donar a carreira do bel canto, em que com a sorte de um bom advogado.
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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Dei o braço à meretriz, apavora- apregoa as suas mercadorias, recitando


do, e ¿ quei a bater um longo papo com em voz alta o duelo de Roberto Carlos
ela. A madrugada descia sobre o Campo com o Tinhoso, no fundo de labaredas
de Santana, com seu cortejo de sombras, escaldantes do inferno.
e nuvens cinzentas de um palor quase
Enquanto o poviléu pára em
claro des¿ avam por cima do relógio da
frente a esse cantador nordestino, êmulo
Central, dando-lhe acento irreal de pin-
do cego rapsodo Geraldo, do Ceará, o seu
tura realista do pintor negro, radicado
¿ lho menor vai entregando papéis corta-
em Paris, Tibério. Operários sobem e
dos, com números escritos, a algum dos
descem a longa e imensa gare da cidade
circunstantes. A mãe do garoto, de olhos
tentacular. Um velho, com marmita no
vendados, vai adivinhando as perguntas
braço, lê com atenção, a notícia de um
que lhe faz o menino acerca do dia em
crime perigoso em O Dia, outro prefere o
lance de futebol de A Notícia, mas o preto que nasceu aquele soldado, do número
alto de boné vai logo na página do jogo certo da carteira de identidade do rapaz
de bicho da Gazeta de Notícias, enquanto de costeletas ou de quantas pessoas se
que o velho operário se delicia com as compõe a família do velhote gordo, com
tiradas de um direito enganoso do Te- pasta brilhante 007. Universo de beleza
nório Cavalcanti, logo na página inicial e desencanto, de amor e desilusão. Jor-
da Luta Democrática. É na madrugada naleiros apregoam seus vespertinos e
que o submundo do vício e do crime se jornais da manhã, enquanto a mole de
cruza e se irmana na Central do Brasil. operários, soldados e estudantes corre
Mas há ali também gente pura, boa e em busca dos trens para os distantes
humana como aqueles rapazes, ainda subúrbios. Quando chove e se inundam
com mala de viagem, que aportam lá de os trilhos dos arrabaldes, falta trem e
Minas, São Paulo, Goiás ou Estado Rio condução, e essa imensa mó de gente ¿ca
para ganharem a vida neste Rio de ilusões aglomerada ali, sem saber o que fazer,
e, aqui chegando, não encontram a mi- sem o dinheiro necessário para pegar
ragem que tão sofregamente procuravam outra condução porque o trem é ainda
e ¿ cam a deambular, como andarilhos a mais em conta, pois só custa 50 cen-
desorientados, à procura de um pouso tavos. Alguns, mais exaltados pela falta
providencial. Acabam caindo na armadi- de providências ou pelo relaxamento
lha do subterfúrgio de velhos fanchonas da Central, tentam gritar e protestar em
corruptores de menores desavisados. A altas vozes, mas logo vem a polícia e faz
madrugada é longa e sem estrelas e ela esses “subversivos” se calarem sob pena
pode agasalhar as mocinhas indefesas de a borracha comer solta no lombo dos
que se perderam na voragem passional infelizes. Que querem vocês, meus lei-
desta urbe maravilhosa. Os cegos can- tores? Quando é que o povo pode gritar
tores que aí entoam sentidas melodias, sua vontade e suas razões numa praça,
o vendedor de literatura de cordel que sem que sua voz seja silenciada por
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Sankofa: Memória e Resgate

chibata ou uma bala assassina que errou pelos seus simples títulos, pois Debussy
sua posição homicida? os compunha com toda a sua inspiração
Já viram uma coisa mais para- emotiva e depois é que lhes punha o tí-
doxal do que quando o carrão pára e a tulo, providencial. Esse impressionismo
polícia vai primeiro pedir os documentos de sua música é um tanto precipitado,
das pessoas de cor negra que estão para- pois, nesses prelúdios, a música mostra
das, embora haja muitos elementos de cor logo o que a melodia descreve, como no
branca em rodas próximas que a polícia caso de Menestréis, em que Debussy vai
¿ nge não dar por elas? Isso é uma injus- buscar motivo no jazz dos negros ameri-
tiça clamorosa de racismo e preconceito canos e no seu mais genuíno cancioneiro
racial contra qual meu caderno protesta do music-hall. Em Canção de Puck o
veementemente, embora eu saiba que estilo de Debussy é célere e ligeiro como
meu grito de dor e desespero nem sequer uma animada barcarola circense. Longe
pode abalar o brilho insensível das estre- estamos aí do Debussy pincelista das
las que brilham lá longe, no ¿ rmamento grandes ressacas oceânicas em La mer,
indiferente... do panteísta maravilhoso do mundo pa-
gão grego dos faunos, dríades, selenos e
Guiomar Novais é uma consu- égipons em L’après midi d’un faune, em
mada artista ao plasmar, miraculosa- que essa maravilha da música moderna
mente, nas teclas de seu Plegel, todo o nos leva até o paganismo fantástico do
impressionismo melódico dos vagos tons mundo heleno, onde fábula e magia, be-
subentendidos do amado Debussy. Quer leza e encantamento se confraternizam
em As dançarinas de Delfos, Véus, A numa verdadeira sinfonia de sons, cores
catedral submersa, Passos sobre a neve, e perfumes que se evolam da Àoresta
O vento na planície, Serenata interrom-
onde moram os deuses do Olimpo, não
pida, A moça dos cabelos dourados, O
muito distante da mata onde campeiam
que o vento viu, este quase um poema
as capríades, os faunos e as ninfas, en-
sinfônico, A cidade de Anacapri, em
quanto ressoa pela bacanal silvestre e
todos esses prelúdios de estilo suave,
desenfreada a suave Àauta de Pã.
ameno, terno, lírico, poético, o estilo
debussyano se patenteia nesses sons que Faltou aos epígonos de Ravel a
mais sugerem do que descrevem, ora autocrítica su¿ ciente para não acoima-
descrevendo, simbolicamente, nuvens rem Debussy de plagiário do artista da
que se esgarçam pelo céu nevoento, Pavana para uma princesa morta, já
ventos que ora se imprecam adoidados ou que, se Ravel é também um consumado
mansamente sobre os campos como em impressionista (como se vê em O me-
Vento na planície ou quando as bailarinas nino e os sortilégios, Pavana para uma
dançam no templo sagrado da Hélade em princesa morta, Bolero, A valsa, Minueto
As dançarinas do Delfo. O crítico precisa antigo), não tem aquela leveza melódica
ser cauteloso ao levar esses prelúdios e a inspiração poderosa de Debusy.
Rosário Fusco, já falecido, poeta e escritor nascido em Cataguazes, Minas Gerais, escreveu
para o Teatro Experimental do Negro a peça Auto da noiva, publicada no volume Dramas
para negros e prólogo para brancos (TEN, 1961)
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Aquela tênue claridade de suas conseguiu dos seus artistas prodigiosos


Valsa mais que lenta, Ibéria, Jardim uma gama muito rica de rostos expres-
sobre a chuva, Fogos de artifício ou sivos, movimentos estudados de mãos,
Andante de quarteto só se pode encontrar rostos e expressões poéticas de quem
nos prelúdios e valsas de Chopin, por sentia, no fundo da alma, a tristeza, dor,
quem Debussy tinha forte paixão inspira- dilaceramento ou a mais funda angústia
dora. Seria um ensaio curioso descrever da alma de negros escravizados que que-
a trajetória do universo debussyano de O rem se libertar dos grilhões da opressão
filho pródigo até as últimas composições e da ignorância. Com O filho pródigo o
do Claude de França, como Martírio de negro retorna às suas raízes ancestrais,
São Sebastião, em que sua música de participando de um drama de fundo de
estilo mais sugestivo que de descrição cena, com o clamor exasperante das
excessiva se coaduna, num elo genial, negras Suplicantes de Ésquilo, empre-
com o estilo exuberante de Gabriele tecidas pelos raios solares da África em
Dannunzio. Quisera que, em todas as pá- suas andanças e busca da Grécia branca
ginas deste caderno, a música de Debussy e luminosa, quando vagavam pelas areias
desse ao estilo pesado destas con¿ ssões adustas e escaldantes dos desertos africa-
aquele toque mágico de claridade lunar nos. Com O filho pródigo, Lúcio Cardoso
do imortal Le clair de lune. ora parece declamar um poema bíblico,
O Brasil deve a Abdias Nasci- ora um drama de forte realismo cotidia-
mento ter provado que o negro podia no, em que o sonho e o real se debatem
fazer, no teatro, qualquer papel com dig- em trechos de forte plasticismo e muita
nidade e talento, desde que o personagem beleza poética.
não ofendesse a sua condição de negro Mas em nenhuma peça negra
decente e progressista diante da vida. Em o TEN atingiu o clímax dionisíaco da
Aruanda, há o mistério que se esconde tragédia nietzscheana, como em Sor-
por trás das cerimônias bizarras da um- tilégio, de Abdias Nascimento, em que
banda. Joaquim Ribeiro aí penetrou com Emanuel, um advogado negro culto,
profundidade no mais recôndito da alma emotivo e que atingiu um status social
negra. Com O emparedado, Tasso da razoável, se vê às voltas com a crendice
Silveira esvurma no mais íntimo do eu e os misticismos dos candomblés que
transcendental da poesia simbolista de tanto inÀuenciam os negros de cultura
Cruz e Sousa. Com Castigo de Oxalá, superior como Cruz e Sousa (O empare-
Romeu Crusoé volta-se, novamente, dado) ou o negro que moureja nas ruas,
para os subterrâneos indevassáveis das nas fábricas e nos labores noturnos. O
crendices negras, numa peça de muita problema aí é a destinação negra, desde
perspicácia psicológica. Nessas ver- a origem, para acreditar nos mitos e nos
dadeiras trouvailes de três autores de cultos africanos da sua raça. Quando
talento, o Teatro Experimental do Negro Emanuel sobe o morro e começa a ter as
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Sankofa: Memória e Resgate

visões do seu demônio interior, estamos para libertá-lo, para sempre, dos seus
em pleno reino da feitiçaria africana, que tormentos d’alma. As falanges de Exu,
toca pelas raias da mais bela teogonia com um canto sagrado do orixá africano,
negra. É Exu que começa a dominar o aproximam-se do cadáver de Emanuel,
itinerário do advogado Emanuel, per- atravessado do garfo mortífero do deus
seguido pela lei e pelos orixás de sua das trevas, e pronunciam as palavras pro-
raça de quem ele, como um expoente féticas que também são as do destino da
cultural negro, zomba, açoa e debocha tragédia grega, quer de Sófocles, Ésquilo
dos milagres. Emanuel ou Deus conosco ou Eurípedes: “Missão cumprida.” Isso
é o protótipo daqueles pretos que, por quer dizer que Emauel, como o Édipo
estudarem mais um pouco ou terem um de Sófocles, o Prometeu de Ésquilo ou
diploma universitário, desdenham as as Eumênides enegrecidas de sol que
crendices africanas, renegam a sua raça buscam a brancura luminosa da Grécia,
e começam por imitar, por osmose, a todos eles cumpriram um destino imutá-
raça branca de sua paixão, espichando o vel e eterno em suas vidas de sofrimento,
cabelo, tomando os hábitos, os costumes tortura, prantos, lamentos e aquela morte
e todas as manias dos algozes de sua fria e silenciosa que não espanta e nem
raça, num concretismo racial que lembra amedronta uma Fedra, quando esta vai
o ridículo da pregação de inferioridade roubar o cadáver insepulto do irmão
racial por Lapouge, Gobineau, Juliano amado, para lhe dar um túmulo condigno
Moreira, Afrânio Peixoto e, sobretudo, ao seu passado de jovem destemoroso e
pelos maiores porta-vozes dessa discri- in¿ nitamente bom.
minação indecente e inconcebível: Nina
Não se pode esquecer os esforços
Rodrigues e Oliveira Viana. Sortilégio
isolados dos artistas negros, quando ten-
é puro mistério negro em que a as iaôs
taram, em grupos teatrais esparsos, dar
ou ¿ lhas de santo cantam os mais belos
vazão às manifestações mais prementes
cantos litúrgicos de umbanda, a cargo
desta raça oprimida secularmente e que
do gênio musical de minha raça Abigail
luta tenazmente pela sua libertação. São
Moura, aqui em plena efervescência do
inócuas e fora de propósito as frases
seu grande engenho afro-brasileiro, cedo
levianas de Henrique Pongetti, quando
roubado pela morte impiedosa e sectária.
tenta apequenar uma bailarina de grande
Todas as visões ou sortilégios receptividade coreográ¿ca em sua época,
de Emanuel, sua paixão desvairada pela Pérola Negra, um cancionista e show-
meretriz negra E¿gênia, sua afronta às -man de grande magnetismo pessoal que
visões da polícia ao seu encalço até que, tanto conheci, como De Chocolat, sem
no ¿ nal, Exu, por meio de sua falange falar num gênio histriônico e de interpre-
de mulheres de véus a carregarem o tação, como Grande Otelo, que Pongetti,
garfo, que é a própria expressão des- em sua obtusidade crítica, acha de graça
se temível orixá das noites sombrias, efêmera e passageira, esquecido de que
trespassa o corpo sofredor de Emanuel, o Otelo de Macunaíma, Rio Zona Norte
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Ironides Rodrigues
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ou Amei um bicheiro pode se en¿ leirar Teatro Ginástico e alguém se esqueceu


sem medo entre os maiores intérpretes de tapar o buraco perto do palco, de onde
do Universo, sendo admirado e exaltado o “ponto” sopra as falas da peça para o
até por um Orson Welles. Todos esses artista que não tem memória para decorar
três artistas negros animaram, em 1926, seu papel na peça. De Chocolat cantava
a Companhia Negra de Revistas, que e dançava quando, inesperadamente,
tanto furor fez no Rio daqueles tempos, caiu naquele poço, onde o “ponto” sopra
pela graça dos diálogos e pelo número de diálogos sublimes de Ibsen, Maeterlink
músicas selecionadas e onde o elemento ou Prandelo ou lê as falas, para o ouvido
negro deu vazão ao seu tino de grande renitente do canastrão, das peças mais
histrionismo e espontaneidade interpre- vulgares de Roussin e até mesmo Fey-
tativa e cantante. De Chocolat, muito deau. De Chocolat saiu dali estropiado
escolado pelos musics-hall parisienses, e, devido à sua avançada idade, poucas
cantava, dançava e sapateava; durante oportunidades conseguia na ribalta. Era
anos alegrou as noites cariocas, ora como bem inteligente, causeur de prosa inte-
consumado show-man, ora escrevendo, ressante e atraente, sendo que, sozinho
em versos, a vida de artistas conhecidos no palco, valia por muitos atores. Nos
ou escrevendo revistas musicais como últimos dias de vida encontrou em Pas-
eu vi no Café Amarelinho e que depois choal Carlos Magno um amigo dedicado
eu via levada nos teatros cariocas, com que lhe arranjou hospital para se tratar e
a assinatura de outro nome que não o de até lhe seguiu o enterrozinho humilde, no
De Chocolat. Dizem até que o verdadeiro Cemitério do Caju, com o acompanha-
autor de “Arrasta a sandália”, de tanta mento de alguns colegas e admiradores,
repercussão nacional, foi De Chocolat e falando, à beira da cova rasa, um jovem
que ele teria vendido os direitos autorais, que o admirava e a quem devia muitas
por necessidade, aos nomes que agora se obrigações: Murilo de Alencar. De Cho-
integram a essa grande jóia de nosso can- colat ¿ cará como um exemplo de artista
cioneiro popular. Estava sempre pronto que abriu caminho para muitos atores
a ajudar o artista jovem que começava, negros seguirem, pois De Chocolat amou
como no caso do Murilo de Alencar, o teatro e, antes de tudo, sempre foi do
para quem De Chocolat escreveu uns lado de sua raça e procurava ajudar, no
esquetes para uma revista musical, não que podia, o artista de cor. O per¿ l que
cobrando nada, com a condição de o
esse integrante valioso da Companhia
autor da revista colocar quadros em que
Negra de Revistas dedicou a Aguinaldo
participasse o novel cantor negro. De
Camargo vale como uma grande home-
Chocolat, nos últimos anos, estava com
nagem ao trágico negro e uma página
as pernas quebradas, andando com di¿ -
sincera de carinhosa admiração.
culdade, apoiado por muleta ou bengala
providencial. É que ele estava fazendo É melhor relembrar, com sau-
um interessante número de music-hall no dade, os meus mortos do que falar de
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Sankofa: Memória e Resgate

uma vida apagada como a minha. Nesta penada, olhado, com espanto e medo,
manhã chuvosa, com nuvens negras pelos passantes apressados em sua faina
prenunciando borrascas imprevistas, a de trabalho e de correrem rumo às suas
¿ gura magra e baixa da negra Arinda casas. D. Elvira ¿ca velando, na janela de
Sera¿ m me apareceu neste apartamento sua casa, na esperança de que seu Sujinho
das ilusões mortas e se pôs a me olhar, volte para casa. Enquanto está triste e
com aquele rosto de angústia resignada pensativa em seu silêncio imperceptível,
que a caracterizava. O papel de Dona a escola do morro vai descendo para a
Felizmina, de minha Sinfonia da favela, cidade cantando, de Zé Kéti, o “Eu sou
eu ¿z especialmente para a sua expressão o samba”, com os dançantes e passistas
severa, triste e pensativa. Também a cria- improvisando elocubrações maravilhosas
da negra por quem o ¿ lho da patroa ¿ ca em sua coreogra¿ a estranha. Essas cenas
aloucado, num misto de tristeza, resigna- do Rio quarenta graus de Nelson Pereira
ção e medo, em Aconteceu numa tarde dos Santos são das mais belas, poéticas
de outono, foi papel que também criei e emotivas do cinema universal. Ely
para Arinda Sera¿ m. Sempre vinha lá Azevedo ¿ cou deslumbrado, na Tribu-
dos lados da Tijuca encontrar-se comigo, na da Imprensa, com o impressionante
lá no Amarelinho, a ¿ m de combinarmos desempenho de Arinda nessa obra-prima
os pormenores para os ensaios da peça do nosso cinema. Alex Viany também, no
citada. Shopping News, lhe teceu comentários
Vinha sempre de vestido negro entusiásticos. A maioria dos críticos
rendado, olhando as pessoas com uma achou Arinda, no papel de resignada
e boa D. Elvira, um papel que marca
espécie de temor infantil que fazia o seu
de¿ nitivamente uma atriz de categoria e
maior encanto. Arinda foi a primeira
atriz do Teatro Experimental do Negro sensibilidade.
a pisar nos palcos do Teatro Municipal, Escrevia suas memórias de
na sua estréia em O imperador Jones. menina sofredora do interior de Minas,
Fazia a velha nativa com muita arte e sofendo toda espécie de humilhações e
convicção. Era uma artista consciente maus tratos em casa de gente estranha.
de sua responsabilidade e valor artístico. Estudou consigo mesma, aprendeu da
Mas onde Arinda provou que era das vida o su¿ ciente para não se perder no
maiores atrizes do país foi na D. Elvira, sorvedouro da grande cidade. Sempre
negra tísica do morro do Cabuçu, que, pautou pela vida decente e por uma alma
lá no seu barraco perdido na escuridão muito pura e de excelsa bondade. Sua
da favela, espera pelo ¿ lho vendedor atitude era sempre de defesa instintiva
de amendoim que àquela hora foi atro- contra as misérias de um mundo muito
pelado por um automóvel e está morto, cruel para as pessoas de cor, de boa fé e
a um canto de uma rua da cidade, com que não sabem empunhar as armas em
velas acesas a lhe iluminarem a alma holocausto à sua pureza congênita e ori-
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
235

ginal. Era cardíaca e, para fazer o papel romance que havia escrito: O forte, cuja
de D. Elvira, ela não podia subir pelas trama é toda desenrolada numa antiga
ruelas irregulares do morro do Cabuçu fortaleza de guerra na capital baiana.
e então Olavo Mendonça, um rapaz da Como em Memórias de Lázaro ou Servos
equipe de Nelson Pereira dos Santos, é da morte, Adonias domina a narrativa
quem carregava Arinda morro acima, a empolgante, desenhando com maestria,
¿ m de ¿ lmagens não se paralisarem. os traços de personagens que lutam e se
entredevoram em páginas da mais funda
Guardo no meu quarto uma
psicologia analítica.
velha fotogra¿ a tirada no antigo Diário
Trabalhista, onde o Teatro Experimental Sempre que vejo Adonias pró-
do Negro foi dar uma entrevista ao jorna- ximo da ABI ele está acompanhado de
lista Eurico Resende. Ali compareceram, Otávio de Faria, sempre com ar de ado-
entre outros, os seguintes integrantes do lescente acanhado, olhando ressabiado
notável grupo teatral: Arinda Sera¿ m, para os lados, como se temesse a chegada
eu, Ruth de Souza, Neusa Paladino, de algum intruso. Otávio, quando vai ao
Abdias Nascimento, Aguinaldo Camar- cinema, durante a exibição da ¿ ta, rói
go, Sebastião Rodrigues Alves e o meu nervosamente as unhas. Tem o maior
inesquecível amigo e grande crítico de arquivo de cinema que se conhece, com
cinema Jarder Lima, que morreu, para um ¿ chário respeitável da sétima arte.
tristeza de seus admiradores, em Paris, Em nossas conversas sobre cinema, no
longe do nosso convívio. Bem cedo, Café Lamas, saía fumaça da discussão
Arinda Sera¿ m foi levada pela morte, quando o assunto era cinema francês
quando se esperava mais ainda do seu ou quando alguém punha em dúvida a
talento poliforme. Está enterrada no genialidade de Charles Chaplin.
Cemitério do Caju. Não sei por que
Sua Tragédia burguesa é alvo
Abdias Nascimento não lhe pôde as-
de respeitosos comentários, lembrando-
sistir às exéquias fúnebres. Presentes -se da galeria impressionante de perso-
ao féretro: eu, a caricata atriz Coralina,
nagens inesquecíveis de seus romances
Sebastião Rodrigues Alves e uns poucos cíclicos, como Padre Ivo, Branco e Paulo
mais. Paschoal Carlos Magnos teceu os
Armando. Foi então que eu, para espanto
maiores elogios à grande trágica negra
de César Saraceni e Gasparino Damata,
desaparecida, deixando um invejável disse que em todos esses estudos da mais
nome artístico as futuras gerações negras
¿ na psicologia sobre a decadência da
de representação saberão continuar, veja burguesia brasileira não há lugar para
luminosa trajetória. um personagem negro, nem ao menos
De manhã procuro Adonias Fi- para lustrar os sapatos dos seus amos
lho, na Biblioteca Nacional, de onde era ou para, como criados, porem as mesas
o diretor naquela época. Conversamos dos seus senhores durante os banquetes
um instante e ele me dá então o último ou saraus de gala ou nas festas mais ex-
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Sankofa: Memória e Resgate

pressivas de uma sociedade rica, fútil e Otávio ¿ cou parado por uns ins-
inconseqüente. tantes, sorvendo o seu copo de cerveja.
Pareceu admirar a precoce sensibilidade
Discussões acaloradas, no Café
do futuro cineasta de Desafio e Inte-
Lamas, pela madrugada adentro, com
gração racial. A madrugada avançava,
Otávio de Faria escutando os interlocu-
com uma chuva forte lá fora. Dentro em
tores exaltados, olhando-os com aquele
pouco, o Lamas cheio, depois que saíam
rosto de infantil espanto, sempre roendo
os alunos tardos da Faculdade de Direito
umas unhas invisíveis:
do Catete, era a vez do Mário Azevedo,
- O Fluminense perdeu porque pianista de ¿ na sensibilidade, ou Joa-
portou-se mal no campo. Jogar mal quim Ribeiro, sociólogo e folclorista e
assim, nem o Canto do Rio. renome nacional, que escreveu Folclore
O Pinheiro, em sua altura atlética dos bandeirantes, Romanização da Amé-
e seu rosto de um belo varonil, sorria ante rica e a bela peça, montada pelo TEN,
o desabafo do torcedor inconsolável. Da- Aruanda. Eu sempre tive antipatia pelo
qui a pouco chega o Paulo Saraceni, que Fluminense porque é um clube que não
ainda estudava Direito na Faculdade do aceita negros em seu quadro social. O
Bororó me levou lá para me inscrever e
Rio de Janeiro, no Catete. Traz um livro
senti que, apensar da inÀuência do autor
de capa sebosa, Introdução à ciência do
de Da cor do pecado, a barra estava um
direito de Hermes Lima, com a cabeleira
pouco pesada, com a diretoria com eva-
loura sempre a lhe cair incômoda no rosto
sivas, tirando o corpo fora. Muitos anos
infantil. Já namorava o cinema nessa
depois, uma peça minha, Agonia do sol,
época, e falou-se que ele consegura uma
seria levada no clube social do Fluminen-
bolsa de estudos para uma permanência
se. Teve um relativo sucesso, apesar da
em estúdios cinematográ¿ cos da Itália.
ausência de Otávio de Faria, Àuminense
Acabava de vir de uma sessão do Cinema
renitente que não pôde comparecer ao
São Luís:
espetáculo, desculpando-se num bilhete
- Fui assistir a Luzes da ribalta que me escreveu naquele estilo tão seco,
pela décima vez. Que gênio é o Charles mas cheio de vida interior, que o carac-
Chaplin, ao homenagear os cantores teriza.
boêmios das ruas e dos music-halls lon- As conferências sonolentas da
drinos. Que ¿ lme de poesia contagiante Academia Brasileira de Letras, com
para narrar a vida desse artista ambulante exceção de um Álvaro Moreira, estuante
que é Calvero. E sua morte, no ¿ nal de vida e juventude, quando, numa tarde
do ¿ lme, tendo como última visão, na de sol, com o Petit Trianon repleto de
agonia, a imagem lirialmente branca de gente jovem, o Alvinho fez uma con-
Terry, dançando o último balé que os ferência sobre os simbolistas gaúchos,
olhos de Calvero veria. demorando-se em Eduardo Guimarães
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
237

e Alceu Wamosy, numa profusão de Cruz e Sousa (Faróis, Broquéis), Lima


detalhes pitorescos e lances poéticos dos Barreto (Vida e morte de J.M. Gonzaga
biografados. Reviveu toda a Porto Alegre e Sá, Triste fim de Policarpo Quaresma,
provinciana de sua infância, até chegar As recordações do escrivão Isaías Ca-
aos arrabaldes cheios de ciprestes e ci- minha), Coelho Neto (A conquista, A
namomos dos poemas amados de Mário morte, Esfinge, Inverno em flor, Banzo,
Quintana. Jardim das oliveiras, Turbilhão, Rajá de
O Andrade Muricy é uma pessoa Pendjab, Imortalidade, Contos da vida
secarrona e de poucas falas, mas de um e da morte, Cidade maravilhosa, Mano,
coração enorme. Há muitos anos que Fogo fátuo, Sertão baladilhas, etc.), para
conta a nossa convivência fraternal, as- citar só esses autores a quem uma crítica
incompetente não quer dar o lugar que
sim como a Murilo Araújo e a dois com-
panheiros seus que a morte levou para as merecem. Já tentaram excluir, na Revista
sombras indevassáveis: Tasso da Silveira do Brasil, o nome de Coelho Neto da
e Adelino Magalhães. A conferência de relação de nossos maiores romancistas,
Andrade Muricy, no auditório do então a que o estilista de vigorosa imaginação
Ministério da Educação, sobre um poeta de Tormenta tem um direito indiscutível.
por quem tenho certa ternura, devido aos Posso alijar de uma literatura alguém que
tenha o estilo verbal e rico vocabulário
seus versos: B. Lopes. Falou, com muita
de um Coelho Neto, Gabrielle Danunzio
propriedade, sobre o autor de Helenos e
Cromos, corrigindo certas distorções de e Camilo Castelo Branco? Tinham culpa
críticos sectários, como Álvaro Lins e de conhecerem profundamente os idio-
mas em que escreviam, enquanto nós,
Tristão de Athayde, que não penetraram
pobres escribas de escasso vocabulário,
na beleza desse esbanjador de rimas
e de talento poético num Rio da Belle mal concatenamos umas exíguas e super-
Époque, pleno de versos, em álbuns de ¿ ciais idéias?
cafés-concertos, saraus literários e des¿ le Foi também inconcebível a
de modas parisienses na então Avenida incompreensão de Álvaro Lins para
Central. João Ribeiro já lhe reconhecia com um poeta místico de idéias tão
um poderoso talento poético que o tempo transcendentais como Tasso da Silveira
veio con¿ rmar. Tristão de Athayde, no do “Fio d’água”, “Canto do Cristo do
Intermezzo da casa azul, numa de¿ nição Corcovado”, “Ritmo absoluto”, para
infeliz para o seu alto espírito crítico, com outro poeta delicado, de matiz e
acha os versos de B. Lopes banais e nuances bem à Albert Samain, como
medíocres. A crítica literária ora está Ribeiro Couto (Jardim das confidências,
muito abaixo da estética que analisa, ig- Cancioneiro do ausente) ou quando,
norando o fenômeno em que se coloca o por antipaia pessoal, tentou empanar a
autor estudado, como no caso de Hermes poesia tão calorosamente brasileira de
Fontes (Apoteososes, Lâmpada velada), Menotti del Picchia (Juca mulato, Re-
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Sankofa: Memória e Resgate

pública dos Estados Unidos), taxando-a olhar o nosso operário suburbano sob as
de puramente arti¿ cial, quando se sabe miradas de um marxismo um tanto utó-
que são poemas inspirados, ressumando pico (Bagatelas), mas sofrendo, amando
ao cheiro agreste de um Brasil que não e chorando com seus personagens de¿ ni-
existe mais. Máscaras, Angústia de Don tivos: Isaías Caminha, Clara dos Anjos,
Juan, e mesmo um romance de categoria Gonzaga e Sá, Policarpo Quaresma,
universal como Salomé, sem falar em Ismênia ou aquela mulata faceira, Clô,
Dente de ouro, um livro de penetração que dança e saracoteia num carnaval
profunda como O triunfo da morte, com- antigo da Rua do Ouvidor (Histórias e
provam o quanto Menotti Del Picchia é sonhos). O crítico tem de analisar Lima
um espírito criador, sem deixar de ser Barreto por esse prisma cristalino e não
um clássico moderno no manejar do atar o romancista carioca numa estética
idioma. É o caso de A tormenta, sobre a acadêmica como a de Machado de Assis,
revolução de 24, Crime daquela noite, que só olhava o estilo correto e lusitano
cantos que oscilam entre Dannunzio e de um Almeida Garret, Camilo ou Fe-
Pirandelo, A mulher que pecou, mesmo liciano de Castilho, sem se preocupar
um desigual e bom romance como Laís, com as idéias avançadas do seu tempo.
em que se sente o talento de Menotti pul- Um Francisco de Assis Barbosa errou
sando com os personagens e retratando a duplamente ao falar do estilo desleixado
sociedade paulista do começo do século ou descuidado de Lima Barreto, pensan-
até depois da Primeira Grande Guerra, do na prosa corretamente acadêmica de
e em nossos dias. Coelho Neto chamou Machado de Assis.
Lima Barreto de gênio, em Bazar, porque
Lima tinha tantos temas de fundo
o revolucionarismo de seus temas e a
popular e social na mente atormentada
profunda psicologia de seus personagens
que receava a morte vir ao seu encontro e
só encontram paralelos nos romances de
ele não poder extravasar, na sua pena, to-
um Dostoievski (Pobres gentes, Irmãos
das essas comédias e tragédias do infeliz
Karamazov, Crime e castigo), para não
morador dos subúrbios, sujeito a incertos
esquecer um Nicolas Gogol de Almas
horários de trens, funcionários públicos
mortas, os romances proletários profun-
mal pagos, mocinhas tristes e sem futuro
damente humanos do Máximo Gorki de
que se fanaram, para sempre, nos traba-
A mãe, O espião, Tormenta sobre a cida-
lhos mal remunerados das fábricas da
de e Os vagabundos, e um Leon Tolstoi
cidade. O aposentado, o procurador de
profundamente inspirado em Morte de
emprego, o velho desiludido com uma
Ivan Ilitch, sem esquecer um Turguenief
prole imensa, os ricos desumanos que
do Rudine e Terra virgem. ostentam opulência insultante à miséria
Lima Barreto tem de ser estu- do pobre, o preto sofrendo n’alma o
dado assim, em sua concepção estética nosso velado preconceito racial, em tudo
avançada, o primeiro escritor nosso a Lima Barreto se identi¿ ca como nosso
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
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maior romancista num estilo bem seu, bem, que ele é que tinha o pleno domínio
claro, ¿rme, com uma Àuência que não do idioma e que só ele tinha o supremo
se parece com nenhum mestre do idioma, segredo da arte de escrever romance.
quer Eça de Queiroz, Machado de Assis Vê-se que em Machado há uma certa
ou Camilo Castelo Branco. monotonia temática, com incessante
Lima Barreto é um mundo vigo- repetição de tipos comuns no Segundo
roso, com uma galeria de tipos incon- Reinado, como viúvas ¿ éis aos faleci-
fundíveis em qualquer literatura. Tem dos maridos conselheiros do Império,
mais vasto alcance social que Machado advogados que aspiram a subir na polí-
de Assis, é muito mais humano e mais tica, escravos sem noção de liberdade e
profundo como criador de personagens. subservientes, amores juvenis no interior
Seu estilo já segue a cristalina clareza de da casa-grande, velhos saudosistas do
um Anatole France e antecipa, na sua ma- tempo dos sermões do Montalverne, dos
neira fácil de escrever, sem verbalismo cantos litúrgicos do padre José Maurício
ou excessos léxicos, a prosa escorreita e dos jogos de gamão, após a lauta ceia,
de adjetivos desnecessários dos escrito- num dia de verão carioca. Machado não
res modernistas de 1922. Lima Barreto tinha tanta imaginação como o grande
ainda não foi estudado dentro dessa visão José de Alencar. Era, sim, um observador
profunda de se olhar o fundo ¿ losó¿ co e seguro da sociedade de seu tempo, crian-
psicológico de seus romances, servidos do uma galeria impressionante de tipos
de um estilo saborosamente brasileiro e acomodados e sem coragem para en-
principalmente carioca. Marques Rebelo frentar os poderosos do tempo, que eles
não gostava do criador de Bruzundanga, serviam como bons capachos humanos.
mas isso se deve à de¿ ciência crítica do Só uma vez Machado de Assis mostrou-
autor de Marafa. Vejamos: qual a página -se de vistas largas, quando preconizou,
de Marques Rebelo, retratando o Rio de antes da abolição, uma reforma agrária,
1930 a 1938 (Oscarina, Estela me abriu com os senhores fazendeiros dando as
a porta, A estrela sobe), com todo o seu terras das fazendas fluminenses para
valor literário, que chega à profundidade os seus escravos. Foi em Memorial de
da amargura temática, vejamos, de O Ayres, que é o livro mais humano, mais
triste fim de Policarpo Quaresma ou poético, sentido e, talvez, bem escrito de
Recordações do escrivão Isaías Cami-
Machado de Assis, sem deixar de ser dos
nha? Por acaso a Vida e morte de M.J.
documentos psicológicos mais profundos
Gonzaga e Sá não foi escrito em forma
da alma brasileira de seu tempo.
primorosamente clássica, sem cair no
enfadonho estilo correto dos escritores Tasso da Silveira, almoçando comi-
lusos? O conceito clássico de expressão go num certo dia de tempo remoto, num
precisa ser reavaliada do seu sentido restaurante popular da Rua São José. Eu
semântico. Precisamos perder a mania levava comigo, por acaso, o volume de
de que só Machado de Assis escrevia Farias de Brito Mundo interior, quando
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Sankofa: Memória e Resgate

o grande poeta místico do idioma se pôs e ¿losó¿co como Paris, sem esquecer um
a falar sobre a pureza ascética da vida volume da crítica de grande repercução
do grande ¿ lósofo e as idéias transcen- nacional, Cartas à gente nova, em que
dentais que ressumam do pensamento Nestor Vítor descobriu o talento nativo
cristalino do Mestre. Relembrou Jackson e em Àorescência de Gilka Machado,
de Figueiredo e aquela intransigência Murilo Araújo, Adelino Magalhães,
sua em face da atividade dos ateus e dos Tasso da Silveira, Jackson Figueiredo e
incréus. Eu o ouvia calado e pensativo, muitos outros escritores novéis, a quem
pensando na penitude de, por acaso, ter a sua compreensão estética e a sua visão
conhecido Jackson, discutido com o pen- bem ampla dos verdadeiros valores deu
sador sergipano todo o seu catolicismo a dimensão exata de seus escritos. Es-
à Joseph de Maistre e Charles Mauras, crevia muito bem, num estilo correto,
com um discutível conceito de autoridade sem o ranço clássico dos quinhentistas
governamental que se parece, assim, com lusitanos, mas numa fácil Àuência que
um Estado fascista, ou melhor, corpo- nos encanta sobremodo.
rativo. Dessas idéias de Estado forte,
partimos para o integralismo lusitano Tasso tinha daqueles intermináveis
de Antônio Sardinha e para o integralis- silênciosos, em sua palestra agradável e
mo tão nacionalista do Plínio Salgado, profunda. Lembro-me dele quase cego,
palpitante de brasilidade e heroísmo em sem poder descer as escadas de sua bela
O estrangeiro, O cavaleiro de Itararé e casa à Rua Professor Saldanha, no Jar-
naquela cartilha de civismo que ele es- dim Botânico, indo depois, procurar a
creveu para a juventude pátria, Geografia cura pela Europa, visitando até as grutas
sentimental. Era de ver Tasso falando de milagrosas de Lourdes, em França, a ¿ m
seu ilustre pai, Silveira Neto, do Luar de recuperar a visão quase perdida. Tasso
de inverno, a ternura melancólica com ironizava a mania dos europeus em se
que se referia a Nestor Vítor, crítico por agarrar a velhos monumentos nacionais,
quem sempre tive um culto respeitoso apegando-se com obsessão a um passado
pela dignidade com que exerceu uma morto e inexistente. Quando fazia a lei-
crítica honesta, como um sacerdócio que tura de suas peças Sacrifício e Os mortos
ele professasse com amor e ternura, como vão para sempre, às vezes entregava-se
no caso das introduções ao nosso poeta a uma pausa prolongada e duradoura.
maior, Cruz e Sousa, em que desaparece Na leitura do Emparedado, que versa
o amigo dedicado do Dante Negro para sobre Cruz e Sousa e sua esposa Gavita,
¿ car só o analista seguro e competente Tasso se emocionou tanto que Abdias
do simbolismo brasileiro. Quem lê as Nascimento teve de se levantar do seu
páginas inspiradas e bem pensadas das lugar e ir ao socorro emocional do gran-
Folhas quem ficam, Elogio do amigo, de místico de Regresso à origem. Tasso,
Os de hoje, Crítica de ontem, um livro nas Laranjeiras, tocando no seu velho
de viagem de grande alcance emocional piano a “Dolorosa” de Mário Penaforte
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
241

e mostrando-me a sua valiosa biblioteca presente, ele indaga, sôfrego, a uma freira
de mais de 10 mil volumes. Tasso, já no que passa pelo corredor:
Jardim Botânico, recebendo a mim e ao - Madre, posso saber como é que
escritor Henrique L. Alves, que viera de está passando a doente?
São Paulo, em nome da Associação dos
Homens de Cor, no centenário de Cruz Ela apenas responde num sussurro mis-
e Sousa, convidar o poeta para celebrar terioso e imperceptível:
os cem anos de nascimento do Gênio - O doutor vai lhe dizer.
Rebelado. Tasso foi bem recebido na
O romance termina assim, numa reti-
Paulicéia, fazendo uma conferência na
cência dolorosa e profunda. Tasso da
sede da Associação dos Homens de Cor,
Silveira, com Silêncio, escreveu um dos
sendo saudado por Fernando Góis, que,
mais belos, profundos e valiosos livros
a par da discordância que sempre tive de
de nossa literatura.
sua crítica discutível, sempre considerei
um competente homem de letras. Por mais de quinze anos convivi com
Plínio Salgado em A Marcha, jornal de
Quando será que a crítica brasileira espírito doutrinário e político que saía
vai perceber a importância do romance todas as quintas-feiras no Rio. Era im-
Silêncio de Tasso da Silveira? Aquela presso nas o¿ cinas do Diário Carioca,
transcendência de Beata diante do altar na Avenida Rio Branco, e por isso eu
da Virgem, a sua pureza em face do tinha de levar minhas críticas literárias
mundo e dos homens? O romance co- e de cinema às segundas-feiras. Indo
meça com um homem, no corredor de até as o¿ cinas do Diário, encontra-me
um hospital, esperando o resultado da com Gumercindo Dórea, redator de A
operação de sua mulher, Beata. Enquanto Marcha. Já ali me encontrava com outros
aguarda a resposta dos médicos ele vai se colaboradores do jornal de Plínio, como
relembrando do passado e, então, Tasso Walmir Ayala (crítico de arte e analista
nos dá uma descrição belíssima do mun- de livros para ali enviados), além de Ivo
do de após a Primeira Grande Guerra, Campagnoni (crítico de teatro). A Mar-
de 1914 - 1918, com os cafés literários, cha era um jornal sério, lido em todo o
os entrechoques das idéias nacionalistas Brasil, em que ¿ z penetrantes análises
e socialistas, descrevendo numa precisão dos mais importantes obras da sétima
mestra as ¿ guras de Nestor Vítor, Jack- arte e , como ensaios literários de grande
son de Figueiredo e Farias Brito. A ¿ gura fôlego, escrevi: “A crítica literária no
irreal de Beata transpõe essas páginas de Brasil”, “Tasso da Silveira e o pensamen-
palpitante frescor cristão com um halo de to católico brasileiro”, “A poesia cristã
pureza e santidade, empolgando o leitor e transcendental de Augusto Frederico
da primeira à última página. Quando, Schmidt”, “Abdias do Nascimento e o
após relembrar esses episódios todos, Teatro Negro”, “Ernesto Psichare e o
o homem se volta às angústias da hora catolicismo francês”, “O integralismo
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Sankofa: Memória e Resgate

na vida brasileira”. É preciso ver como Lobato era um apaixonado impenitente


Plínio Salgado escreve apressado, baten- do gigantismo industrial americano e
do rapidamente à máquina de escrever, pensava em colocar no nosso país todo
concatenando o pensamento, sem parar o sonho em alta dimensão dos Fords e
o artigo para corrigir ou fazer a menor Rockefellers, para um impulsionamen-
emenda. É de uma lucidez extraordiná- to mais rápido de nosso atraso. Plínio
ria, pondo nos livros, artigos, ensaios censurava o modo como os integralistas
¿ caram magoados com um artigo meu
e poemas que escreve a enciclopédia
defendendo a alta brasilidade de Mon-
cerebral que lhe tumultua a mente de
teiro Lobato, e não se preocupavam com
pensador cristão e poderoso e inspirado os mais graves problemas do país, em
romancista social. Sempre a pensar nas busca de imediata e lógica solução. O seu
pessoas humildes, a ponto de, como me recente romance Trepandé dá bem idéia
disse D. Carmela, sua esposa, quando de seu apaixonado amor pela nossa terra,
recebia seu subsídio de deputado fede- ao falar de uma cidade do litoral brasi-
ral, dar tanto auxílio aos pobres que o leiro, com seus amores, sonhos, intrigas,
procuravam que, quando chegava à casa, ódios e idealismo. Coloca a ação em
tinha menos da metade do dinheiro que meados do ano de 1920, naquele estilo
recebia. Que alma pura e sem ódios. Eu de fragmentos cinematográ¿cos, rápidos
que tanto estive junto dele só o via falar e incisivos, lembrando o clássico 1919 de
nas pessoas menos favorecidas (de uma John dos Passos.
eu sei, uma velhinha viúva do subúrbio, No Correio da Manhã, durante
que Plínio Salgado lhe pagava o aluguel o pouco tempo em que ali ia entregar as
de casa todos os meses). Há por aí mui- cotações dos ¿ lmes semanais (pois fazia
tas injustiças e calúnias contra o grande parte do grupo dos dez analistas de cine-
escritor de A vida de Jesus. Sempre me ma do jornal), e via o Graciliano Ramos,
prestigiou em seu jornal, favorecendo- com a cara fechada de quem brigou com
-me com grande espaço nas páginas de o mundo, à máquina de escrever, ou a
redigir, talvez, péssimos e soporíferos
A Marcha, às vezes em detrimento de
artigos. Meu amigo Romão da Silva às
muitos nomes de maior prestígio literário
vezes me queria apresentar o romancista
que eu.
de Angústia, o que ia sempre protelando,
Quando ataquei um padre baiano que pois sabia que Graciliano não era muito
escrevera um livro sectário sobre a lite- de conversa ou convivência com alguém,
ratura infantil de Monteiro Lobato, recebi como se pode ver em em suas admirá-
cartas desaforadas, de várias partes do veis Memórias do cárcere. Já Carlos
Brasil, em defesa do sacerdote atrabiliá- Drummond de Andrade, com a severa
rio. Plínio Salgado me defendeu, dizendo face de mineiro descon¿ ado, era mais
que os erros de visão estética de Monteiro afável. Eu o admirava de longe, naquela
Lobato eram bem do seu tempo, pois estupefação de um fã que muito receia
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a aproximação do ídolo, com medo de nossas intransigências e pontos de vista.


se entortecer ante o excesso de incenso. Numa dessas discussões calorosas de
Só o meu Drummond para se derramar que era alvo o Fernando Ferreira de O
num lirismo puro e comedido como: Globo, quem ¿ cou um tanto perpexo
“A alma dos pobres se vai sem música com o rumo que a briga ia tomando foi
mas a dos grandes é exigente. A Banda o Valério Andrade (O Globo e Jornal do
Euterpe, logo chamada por Monsenhor, Brasil). Muniz sempre me prestigiou e
para chorar o morto conspícuo.” até na sua ternura por Abel Gance, Mar-
Romão da Silva conversa animadamente cel L’Hérbier, John Ford, René Clair ou
com Oto Maria Carpeaux, que até lhe William Wyler temos os mesmos pontos
prefaciou um livro bem interessante, de vista sobre esses excepcionais cineas-
como A poesia satírica de Luís Gama. tas. Mas quem me levava sempre a essa
Mas, de toda essa galeria tão circuns- redação de tanto gabarito era um baiano
pecta e de atitude ¿ dalga só gostava da de palestra fascinante, poeta original de
convivência do Salviano Cavalcanti de beleza esquisita na inspiração provo-
Paiva, irreverente, de idéias e estilo ori- cante: Van Jafa. Muitos anos de nossa
ginais, escrevendo conceitos nas críticas convivência não me tiraram do espanto
de cinema que chocavam o leitor menos que os gestos e as atividades wildeanas
avisado. Daí a sua briga rumorosa com do poeta de Solau me provocaram. Jafa,
Grande Otelo, num coquetel cinemato- depois de encantar o mestre Agripino
grá¿ co. Muniz Viana, em sua máquina Grieco em sua vivenda da Rua Aristides
de escrever, dando-nos aqueles clássicos
Caire, lá no Méier, veio trazer um pouco
painéis cinamatográ¿ cos sobre Marcel
de beleza a legiões de jovens que sempre
Carné, Abel Gance, John Ford, William
ouvem os seus conceitos estéticos como
Wyler e Orson Welles. É analista que
os de um oráculo sagrado. Boníssimo,
tem idéias e estilo correto e elegante.
É um mestre da arte que professa com com um coração com que ele queria ser
paixão e ternura. Os seus detratores não capaz de suprir todas as dores do Uni-
conseguem tirá- lo de sua supremacia verso, sempre auxiliando um rapaz pobre
exegética, pois, independentemente de que o procura, ajudando literariamente
sua fobia duvidosa pelo cinema ameri- um poeta que lhe mostra os primeiros
cano, quando Muniz, imparcialmente, versos ou dando um impulso ao artista
fala de uma ¿ ta, com erudição, beleza que tateia, no prelúdio de sua carreira te-
de conceitos e conhecimento de causa, atral. Vimos quando Jafa dirigiu, na peça
mostra-se um grande crítico universal. de Luís Iglésias, Play-boy, ou quando
Já tivemos turras colossais em debates Adriano Reis participou de Colette, ché-
estéticos de quase se chegar às vias de rie, com Henriette Morineau num papel
fato, mas depois nos abraçávamos arre- clássico feito sob medida. Para a beleza
pendidos de nossos ímpetos sem sentido. apolínea de Adriano, em que foi incen-
O amor pelo cinema é mais forte do que tivado e orientado por uma inteligência
244 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

privilegiada como a desse baiano sedutor, agiotas sem alma, que lhe roubam o úl-
que curva a cerviz até de um poeta pouco timo ceitil de um ordenado que mal dá
comunicativo e de parcos elogios como para saciar a miséria rondante. Esperar
Carlos Drummond de Andrade. Quem por um DASP que não lhe ouve as quei-
se escandaliza com as frases de efeito do xas e gemidos porque os interessados
poeta de “Menino ou anjo” ou “Ronda daspeanos que podiam minorar a miséria
dos teus olhos” não conhece o encanto de milhões de funcionários infelizes nada
sedutor de Jafa discorrendo sobre um fazem, pois já estão classi¿cados em seus
mito de nossa paixão, Greta Garbo, não cargos grati¿ cados e não vão ligar que
saboreou as suas crônicas de conceitos outros colegas seus, menos venturosos,
tão originais e que tanto sacudiam a pas- se atolem, afundados, num desespero que
maceira habitual dos leitores de Vamos nem a morte termina. Já viram coisa mais
Ler e Carioca, duas revistas de muita trágica do que um parente nosso indo
penetração popular. pedir um auxílio funeral, quer no IPASE
ou no INPS? Você que é funcionário e
Van Jafa e sua babá negra, já envelhecida,
que se dedica, pontualmente, à sua re-
nos saraus inesquecíveis que passei em
partição, por muitas décadas, sabe o seu
seu apartamento de sonho da Rua Farani,
valor real monetário na ajuda ¿ nanceira
sempre ele lembrando de uma presença
ao seu último enterro?
constante em nossas vidas: Judy Garland.
Van Jafa fazendo conferência sobre teatro Você se verá naquela situação aÀitiva do
brasileiro no Serviço Nacional de Teatro, Ivan Ilitch de Leon Tolstoi, um funcioná-
então situado num dos andares da ABI. rio público fodido, sem eira nem beira,
Van Jafa tocando na vitrola uma valsa sem esperar um auxílio providencial de
chopiniana e dançando com D. Jose¿ na, espécie alguma. Poderão citar o exemplo
progenitora que encanta a todos que a de Machado de Assis, que foi funcionário
visitam, e rodando com essa grande dama público exemplar, que amava tanto a sua
baiana como se ela fosse, no momento, a repartição, no Ministério da Viação, que
sua mais querida e bela namorada. mesmo estando aposentado comparecia,
pontualmente, como se ainda estivesse
Ser funcionário público desde 1954 e
na anterior atividade funcional. Mas isso
por mais de vinte anos ver tantas injus-
tiças, com tantas promoções imerecidas já é um caso de doente congênito ou de
e afrontosas. Ser funcionário público e, doença patológica. Em compensação,
após tantos sonhos desmoronados, não Cruz e Souza mofou na Central do Brasil,
con¿ar mais nas promessas de quem quer comendo o pão que o diabo amassou com
que seja. Ser funcionário público e olhar o rabo, numa resignação que desa¿ ava
tantos sobreiros anônimos esperando um a revolta e a fome. E Lima Barreto,
salário melhor que não vem, afrontando na Secretaria da Guerra, suburbano de
a fome e os empréstimos onerosos, com vestes rotas, sempre a viajar nos trens
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
245

dos arrabaldes, revoltado, inconformado brigo. Um caderno tão veemente como


com a sua sorte aziaga e com o destino o que estou escrevendo não pode ter o
imprevisível de milhões de infelizes estilo maneiroso de um Franz Kafka,
anônimos? quando abordou, dolorosamente, a sua
Pensando bem, com todos esses con- passagem angustiada pelo serviço públi-
tratempos funestos, o funcionário ainda co. Esqueçamos B. Lopes, nos Correios
vive melhor que muitas outras pro¿ssões. Gerais, assim como Agripino Grieco,
A verdade é que, quando a corda da vida que foi funcionário da Central do Brasil,
arrebenta para a desgraça de muitos, ela um Artur Azevedo, que disputava uma
sempre vai onerar mais a classe pobre
che¿ a cafona com o Machado de Assis
ou proletária. A classe média já vive um
no Ministério da Viação. Quem escrever
padrão melhor de vida social, apesar de
sobre as grandezas e decadências do
que a miséria hordiena já não distingue
mais as divisões de classe, que hoje se funcionário público tem de ser com a
resumem numa só: classe pobre, mi- voz alterada e cheia de revolta solene,
serável, fodida - outro sinônimo mais sem as reticências maliciosas ou as es-
torpe que se pode buscar na sinonímia trelinhas de um Ciro dos Anjos ao falar
de argôs da Lapa, que o Antônio Fraga de um outro infeliz funcionário público,
emprega com sutil semântica no Desa- o amanuense Belmiro.
Para dizer alguma coisa sobre
Entr e Otelo e Eu* Grande Otelo, devo começar do começo.
E o começo foi em São Paulo.
Havia terminado a Revolução
Constitucionalista, da qual participei
como cabo que era do 4º Regimento de
Infantaria, sediado em Quitaúna. Derro-
tada a Revolução, meu regimento regres-
sou da linha de frente para os quartéis.
Resolvi deixar Quitaúna e consegui um
lugar de cabo escriturário num departa-
mento do quartel-general do comando da
2ª Região Militar, localizado no centro da
capital paulista.
A poucos passos do quartel-
-general (se não me falha a memória,
à Rua Conselheiro Crispiniano), ¿ cava
a pensão modesta de dona Antonieta,
na Av. São João, onde obtive uma vaga
num pequeno quarto do sótão. Meu
companheiro de quarto, que até então
eu desconhecia, era um negro baixinho,
Abdias do Nascimento lépido, beiçudão e de olhos esbugalhados
248 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

que perambulava pelas ruas de São Paulo regra, e talvez por isso mesmo ele não
fazendo graça. Chamava-se Sebastião desse tanto crédito às nossas denúncias
Prata e ensaiava sua vindoura identidade de racismo nos palcos do Brasil. Desde
de Grande Otelo. que em Lima, Peru, eu assistira ao espe-
Essa amizade de 1932, o tempo e táculo do Imperador Jones com o papel
a convivência, ainda que intermitente, se titular desempenhado pelo ator branco
incumbiram de consolidar e aprofundar. Hugo D’Eviéri pintado de preto, eu havia
Mas aquele momento da nossa adoles- jurado que no Brasil lutaria para que os
cência sofrida, num mundo que não foi atores e a dramaturgia negras pudessem
feito para nós, os negros, é algo inapa- ocupar os espaços merecidos. Pois a cena
gável da minha memória. A vida nos nacional só admitia o negro em papéis
separou durante muitos anos, cada um de subalternos, pitorescos, de negro engra-
nós perseguindo seu sonho ou cumprindo çado e de mulata ou negra rebolando as
seu destino. Quando em 1936 o racismo ancas. Era uma cerca de arame eletri¿ -
paulista me tornou a existência impos- cada separando aquele teatro negro que
sível, vim para o Rio, onde reencontrei nascia e a tradicional participação do
Grande Otelo já pisando o gramado da
negro em nossos espetáculos teatrais, in-
fama que não o abandonaria mais.
clusive a Companhia Negra de Revistas,
A luta à qual eu me engajara em organizada por De Chocolat nos ¿ ns da
São Paulo, contra a discriminação racial, década dos vinte.
continuou aqui no Rio, ao mesmo tem-
po em que terminava meus estudos de Nessa época, minha amizade com
economista. Nos encontros com Grande Otelo ampliou-se, cresceu numa dimen-
Otelo sempre aÀorava a discussão sobre são imprevista. Freqüentei sua casa na
a questão racial, ele sempre me achando Urca, onde nos brancos tempos de fome
um radical criador de casos. Para Otelo, muitas vezes me amparava, alimentando
naquela etapa em que ele se a¿ rmava não só o corpo como o espírito, no con-
como ator de tantos recursos cênico, o vívio gostoso daquele ambiente oteliano.
racismo não parecia algo sério como era Me lembro que uma vez, tão positivas
para mim. eram as “vibrações” na varanda do seu
Depois de uma viagem de aven- apartamento onde conversávamos, um
tura poética pela América do Sul, em canário belga veio pousar na minha mão.
1944 fundei o Teatro Experimental do Batizei-o ato de “ 21 de abril”, pois esse
Negro (TEN), numa tentativa de a¿ rmar era o dia. Foi naquela época que sofri
os valores culturais e humanos da gente com Otelo sua tragédia doméstica: o
negra, excluída do teatro brasileiro, a não suicídio de sua esposa Lúcia Maria (que
ser para varrer ou limpar o chão. Otelo, chamavámos de Gilda) e a morte do seu
é claro, encarnava a única exceção a essa ¿ lho Chuvisco.
Entr e Otelo e Eu
Abdias do Nascimento
249

Minha persistência na luta pelos do curto tempo disponível de Grande


direitos do negro à igualdade continuou Otelo. Entretanto foram os problemas de
motivo de freqüentes desacordos entre ¿ nanciamento do espetáculo a razão de
nós. Logo numa conversa com Elisa, a peça não haver sido montada. Grande
minha mulher branca (motivo inclusive Otelo sempre se mostrou solidário com
de críticas contra mim, dentro e fora do o TEN, colaborando, por exemplo, nos
movimento negro), ele teimava em dizer eventos da Boneca de Pixe. Num deles,
que eu queria “separar as raças”. (Não na sede do Botafogo, com Elizeth Car-
sei de onde ele tirou tal noção, se sempre doso, Otelo reviveu o famoso número de
tentei foi juntar o negro em tudo aquilo seu repertório, a Boneca de Pixe. Mas
que o branco o excluía.) Mas nunca he- contracenarmos, Otelo e eu, só aconteceu
sitei, ontem como hoje, em considerar na TV Tupi, quando Jacy Campos, no
Grande Otelo um artista radicalmente seu programa Câmara um, apresentou
genial. Porém um negro que sofria uma uma peça teatral em que representamos,
cruel exploração de certos empresários tendo também no elenco essa bela atriz
que quase destruíram o maior talento his- que é Zeni Pereira.
triônico surgido no Brasil entre negros e Durante algum tempo, Otelo e eu
brancos. Tentaram reduzir Grande Otelo fomos colegas no Ministério do Trabalho,
a uma única dimensão: a do cômico. Ra- Serviço de Recreação Operária. Organi-
ras oportunidades lhe deram de mostrar závamos shows para os trabalhadores,
tudo aquilo a que ele tinha e tem direito. com artistas como Alaíde Costa, Baden
Mas quando a chance surgiu Grande Powell, Ângela Maria e muitos outros.
Otelo sempre respondeu ao desa¿ o com Em 1966, quando organizei para o TEN
uma interpretação dramática impecável um Curso de Introdução à Arte Negra, no
de fazer história, como aquela do ¿ lme Museu Nacional de Belas-Artes, entre os
Amei um bicheiro. conferencistas estava Grande Otelo, cuja
Lamento o esforço frustrado de inteligência produziu uma das aulas mais
Otelo em me inserir nos shows do Carlos brilhantes do curso, discorrendo sobre a
Machado que ele estrelava, se não me arte de fazer rir.
engano, na boate Casablanca. Era um so- Houve te mpos em que meus
nho nosso trabalharmos juntos no palco, encontros com Otelo se davam pelas es-
mas no sonho do empresário não entrava quinas das madrugadas, e o papo rolava
o Abdias. Uma vez, quase que acontece solto num boteco qualquer molhado pela
nosso encontro em cena: foi quando o “branquinha” ou pela cerveja. Ultima-
Teatro Experimental do Negro progra- mente, Grande Otelo tem se mostrado
mou a encenação da peça de Augusto bem mais compreensivo com minha
Boal Martin Pescador. Sob a direção do permanente resistência ao racismo e à
autor, os ensaios transcorriam relativa- discriminação racial. Ele agora reconhe-
mente bem, com as óbvias di¿ culdades ce a legitimidade do meu radicalismo, e
250 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

me lembro de que numa festa no Circo falas de sua interpretação, como também
Voador, comemorativa dos meus 60 anos no jogo de corpo, nos gestos e sobre-
de luta negra, Grande Otelo, mestre de tudo na sua máscara de expressividade
cerimônias daquela noite, manifestou imensa, só comparável à de outro genial
seu acordo com a forma de combate ator negro, Aguinaldo Camargo, o ines-
anti-racista perseverante e incondicional quecível “Imperador Jones” de O’Neill,
que eu havia adotado durante todo o com o qual ele contracenou no ¿ lme
transcurso da minha vida. Também somos irmãos. En¿ m, Otelo
Entre Grande Otelo e eu parece resume em suas performances o que há
haver todo um processo afetivo dialeti- de mais valioso e permanente na história
zado pela consciência racial que em cada do nosso teatro, cinema, televisão e show
um de nós evolui de modo diferente. Mas business. Ele é o símbolo maior do gênio
a amizade se impõe independentemente negro brasileiro.
disso, e Otelo nunca esqueceu de me A generosidade de sua vida só é
convidar ou de me saudar, lá do palco, rivalizada pelo esforço que despendeu
quando me encontrava na platéia. para domar obstáculos tão irredutíveis
Indiscutível é o fato de o poder em seu caminho, e pela luz pura e criativa
criativo de Grande Otelo havê-lo trans- que emana de sua alma como a dádiva
formado num verdadeiro mito. Mesmo radiosa dos orixás.
considerando-se apenas a dimensão do
Eu te celebro, irmão. Axé!
seu humorismo, ele desmente aquela
teoria de que o cômico é de certa maneira
um instintivo puro, um inconsciente.
Muito pelo contrário, Otelo possui uma
consciência crítica agudíssima, o que * Este ensaio foi publicado em parte no livro
Grande Otelo em preto e branco (1987).
manifesta não apenas nas inÀexões das
Saudação ao bispo Bispo Desmond Tutu:

Desmond Tutu* Estou altamente honrado pela


tarefa a mim conferida pelos meus
companheiros do Movimento Negro do
Estado do Rio de Janeiro de saudá-lo e
dar-lhe as boas-vindas a este encontro.
A comunidade afro-brasileira tem luta-
do arduamente por esta oportunidade
de se encontrar com o irmão Tutu, pois
para nós você simboliza uma luta que é
também nossa.
Durante anos, os afro-brasileiros
vêm se organizando e manifestando
seu repúdio ao apartheid e à ocupação
ilegal da Namíbia. O Movimento Negro
foi o responsável pelo nome de Nelson
Mandela dado a uma rua movimentada
do Rio de Janeiro, localizada nas proxi-
midades do consulado sul-africano. Nós
temos exigido constantemente o corte
Abdias do Nascimento de todas as relações do Brasil com o
252 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

regime racista da África do Sul. Único nas, para trabalhar. Detenção arbitrária,
congressista afro-brasileiro na última prisão, tortura e morte à base do racismo
legislatura, membro da Comissão de são o nosso pão de cada dia. Constituí-
Relações Exteriores da Câmara dos De- mos a imensa maioria dos camponeses e
putados, tive a honrosa responsabilidade trabalhadores rurais sem terra.
de apresentar ao Congresso um abaixo-
-assinado a respeito, com mais 70 mil Talvez o maior testemunho do ra-
assinaturas recolhidas pela comunidade cismo brasileiro seja o fato de o governo
afro-brasileira de vários Estados. O go- ter recusado a sua visita às comunidades
verno tomou apenas algumas medidas negras no seu próprio ambiente de vida.
parciais e insastisfatórias. Mas nós não Entretanto não é só a experiência
descansaremos até que o Brasil corte da opressão racista que compartilhamos
todas as relações com os perpetradores com nossos parentes africanos. Também
desse crime contra a humanidade. dividimos com vocês as orgulhosas
Bispo Tutu, não é apenas uma tradições da herança africana, de ci-
coincidência que os negros estejam vilizações exempli¿ cadas pela Núbia,
na vanguarda desta luta no Brasil. O Egito, Songhay, Timbuktu, Zimbábue e
apartheid constitui a expressão máxima Benim. Herdamos a coragem guerreira
do maior crime já perpetrado contra a de Shaka, da rainha Nzinga, de Samory
humanidade: o trá¿ co e a escravidão Touré, Yaa Assantewa e tantos outros
racistas, destituidores da humanidade na sua resistência à dominação colonial
dos africanos. Duas ou três centenas e racista. Nós dividimos com vocês os
de milhões de nossos ancestrais foram valores vivos da ¿ loso¿ a africana.
suas vítimas, e nós somos hoje vítimas
Pouco antes da sua visita, re-
dos seus vestígios sob a forma da dis-
criminação racial. Somos a maioria da presentantes da sua Igreja no Brasil
população brasileira, e estamos aqui rotularam nossas religiões de práticas
desde a fundação do país. Entretanto nós pagãs animistas-fetichistas, julgando-as
os negros somos os mais pobres entre desmerecedoras do encontro ecumênico.
os pobres e somos os exclusos do poder. Bispo Tutu, acreditamos que tais idéias
Temos seis vezes menos acesso à escola, não representem o seu pensamento. Mas,
e o ensino oferecido às nossas crianças se esse for o caso, esperamos que você
tem parentesco com a educação banta: aceite o nosso sincero e fraterno convite
nossos ancestrais, nosso povo, nossa cul- para suspender esse julgamento e voltar
tura e nossa história são ridicularizados ao Brasil com tempo para visitar nossos
e apresentados como inferiores segundo terreiros, falar com nossas autoridades
a “norma” européia. Somos segregados religiosas e participar de nossas cerimô-
em bairros distantes e viajamos horas, nias regiosas, en¿ m, testemunhá-las em
em transportes de condições subuma- primeira mão.
Saudação ao Bispo Desmond Tutu
Abdias do Nascimento
253

Nós acreditamos que é uma só


a luta contra o apartheid e a luta das
oprimidas comunidades africanas em
Estados multinacionais dominados por
brancos. Por essa razão, honrando a re-
sistência afro-brasileira organizada nos
quilombos e culminando na República
dos Palmares, permita-me batizá-lo hoje,
bispo Tutu, com o maior título que os
negros deste país lhe poderiam outorgar
- o de Zumbi da África do Sul. Você tem
a nossa palavra de honra de que não nos
calaremos até que o mundo esteja livre
do apartheid.

Axé, Zumbi Tutu!

*Essa saudação foi feita por ocasião da visita


do bispo sul-africano Desmond Tutu ao Rio
de Janeiro, no encontro com o Movimento
Negro daquele Estado (Associação Brasileira
de Imprensa, Rio de Janeiro, 21 de maio de
1987)
Colóquio
Dunia Ossaim:
Os Afr o-Amer icanos
e o Meio Ambiente

Evento co-relato à Rio-92


Cúpula da Terra
Rio de Janeiro, 9-11 de junho de 1992
Colóquio Dunia Ossaim
Os Afro-Americanos e o Meio-Ambiente
257

A Conferênc ia das Nações ção da miséria, provocando mais danos


Unidas sobre Desenvolvimento e Meio ambientais.
Ambiente, realizada no Rio de Janeiro,
Não se pode negar o racismo
em junho de 1992, foi um evento sem
como fator essencial nesse cenário, quer
precedentes, reunindo pela primeira vez
de¿nido como a herança colonial herdada
na história mundial mais de cem chefes
pelas nações do Sul ou como função da
de Estado. Talvez mais importante,
discriminação contemporânea nas socie-
pela primeira vez uma conferência das
dades industriais avançadas.
Nações Unidas incluiu na sua pauta um
encontro de organizações não-governa- Há um conteúdo s imbó lico
mentais (ONGs), cujas posições foram muito forte na realização da conferência
o¿ cialmente apresentadas à plenária dos em 1992, aniversário da aventura de
representantes governamentais. Como Colombo nas Américas. Foi exatamente
porta-voz para representá-las diante do a invasão européia das Américas que
fórum o¿ cial, as ONGs escolheram uma desencadeou, a partir da expansão mer-
mulher africana: Wangaari Mathari, do cantilista fundamentada no trá¿ co de
Quênia. A única outra voz não-governa- escravos e no genocídio de africanos e
mental ouvida por aquela plenária foi a indígenas americanos, a devastação per-
de Marcos Terena, o índio brasileiro que manente e acelerada do meio ambiente
falou em nome de 92 organizações de em nosso continente. Nesse sentido, a
povos indígenas dos cinco continentes, questão racial entra profundamente em
inclusive os aborígenes da Austrália. pauta quando tratamos da matéria do
meio ambiente e desenvolvimento.
A presença de Wangaari Mar-
thari na plenária o¿ cial não apenas sim- O Colóquio Dunia Ossaim foi
bolizou o papel ativo da sociedade e da organizado pelo Instituto de Pesquisas
cidadania organizadas na articulação e e Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) e
implementação de políticas ambientais. a Secretaria de Defesa e Promoção das
Como africana, ela também personi¿ - Populações Afro-Brasileiras (Seafro) do
cava as questões de desequilíbrio e dos Governo do Estado do Rio de Janeiro
papéis respectivos das nações ricas e numa tentativa de articular uma pers-
pobres num processo de “desenvolvi- pectiva afro-americana sobre desenvol-
mento” que bene¿ cia cada vez mais o vimento e meio ambiente, ligando esses
Norte e prejudica cada vez mais o Sul. Os temas com o da chamada “descoberta”
pobres sofrem o prejuízo de duas formas: e suas conseqüências. Ao publicar os
de um lado, a poluição provocada pelo textos apresentados ao Colóquio, temos
crescimento desenfreado do capitalismo a convicção de que continuam auta-
industrial e o lançamento ao Sul do lixo -líssimos, e que vêm contribuir, ainda,
tóxico e dos produtos não aprovados para para o enriquecimento e aprofundamento
consumo no Norte; do outro, a prolifera- do debate sobre o ambientalismo.
258 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

A seguir transcrevemos, então, -brasileira. A busca do Dalai Lama da Paz


as contribuições escritas dos palestran- e dos valores mais nobres da convivência
tes convidados: Nei Lopes, José Flávio humana vem ao encontro dos objetivos
Pessoa de Barros, Rafael Zamora Dias e de equilíbrio harmonioso entre os seres
Elisa Larkin Nascimento. Os textos não da natureza.
transmitem, entretanto, a vivacidade dos Num mundo em que prevalece e
debates nem a riqueza das informações cada vez mais se expressa essa diversi-
oferecidas, informalmente, no decorrer dade, a articulação de respostas e¿ cazes
das sessões, complementadas por apre- para a preservação do meio ambiente não
sentações audiovisuais e ¿ lmes. A con- pode deixar de levar em conta o potencial
vocatória traz a programação completa dos diferentes pontos de vista culturais
do evento. e ¿ losó¿ cos, das diferentes visões de
Vale registrar também a sauda- mundo, no sentido de apontar rumos e
ção do senador Abdias Nascimento ao esclarecer caminhos.
Dalai Lama, por ocasião de seu encontro A teoria e a prática ambientalis-
público, no Maracanãzinho, com o povo tas ¿ carão empobrecidas e incompletas
brasileiro e visitantes da Rio-92. A esco- enquanto ignorarem a contribuição das
lha do senador para saudá-lo ¿ xou, de civilizações e culturas africanas e afro-
certa maneira, o repúdio à dominação -americanas, que cultivam a comunidade
e a luta em prol da dignidade do ser harmoniosa do ser humano com a natu-
humano na sua diversidade pluralista reza. Com a publicação deste volume,
e na convivência pací¿ ca entre povos, esperamos poder oferecer um pequeno
culturas e nações. Sublinha a visão pru- subsídio para que essa contribuição não
ridimensional ecumênica da cultura afro- permaneça esquecida.
Saudações a Sua Cabe a mim hoje saudar Sua
Santidade Dalai Lama e apresentá-lo ao

Santidade o público aqui reunido. Uma tarefa das


mais agradáveis, tratando-se desta ¿ gu-

Dalai Lama ra humana ao mesmo tempo humilde e


cheia de grandeza, cujo sorriso transmite
a alegria de viver em paz com o mundo.
E, por intermédio de Sua Santidade, sau-
damos também o povo tibetano, manifes-
tando a nossa solidariedade com sua luta
pací¿ ca pelo resgate de sua soberania.
Ontem, na entrevista coletiva que
concedeu à imprensa, Sua Santidade dis-
se que, quando se encontra com pessoas
não conhecidas, domina-lhe a sensação
de estar entre velhos amigos. Também
tenho hoje essa sensação, e saúdo Tenzin
Gyatso como o velho amigo que sinto
nele, apesar de tê-lo visto pessoalmente
apenas uma vez. É como se tivéssemos
Senador Abdias Nascimento compartilhado experiências comuns. O
próprio exílio também sofri, embora de
260 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

maneira muito mais modesta que Sua povos enriquecem a humanidade, con-
Santidade. E, como ele, encontrei no exí- tribuindo para a diversidade cultural
lio a oportunidade de me aprofundar nos na expressão daquilo que nos une além
valores de minha cultura, inclusive a rica das diferenças. Quando Sua Santidade
tradição religiosa afro-brasileira, com comparece ao Ocidente vestindo seu
sua dimensão profundamente ecológica traje tradicional e falando a sua língua,
expressa por meio dos orixás, divindades ele exerce o direito de manifestar a sua
que representam as forças da natureza, identidade especí¿ ca tibetana. Também
e sobretudo Ossaim, orixá que preside quando compareço ao plenário do Se-
o reino das plantas litúrgicas e medici- nado usando o kente africano, expresso
nais. Parece que essa tradição lembra em a assunção da minha origem africana.
certos aspectos a tradição Bon, a religião Em nenhuma hipótese essas identidades
tradicional originária do Tibete. Mas isso constituem obstáculos ao nosso entendi-
é outra história. mento da responsabilidade comum que
A sensação da velha amizade nos une: a de agir para tentar garantir um
provém daquilo que nos aproxima, além futuro cada vez melhor para a vida e para
das diferenças. Sua Santidade representa a paz em nosso universo.
uma ¿ loso¿ a religiosa e uma tradição
Se não são as diferenças em si,
milenar de sabedoria, cuja mensagem de
o que impõe as desigualdades que tanto
paz tem um valor universal e urgente para
eu como Sua Santidade lutamos para
o nosso mundo hoje. Neste momento,
superar? Creio que a resposta está numa
quando o mundo se reúne aqui no Rio de
palavra-chave: dominação. Tanto a do-
Janeiro para tentar superar as diferenças
que ameçam impedir a articulação e a minação de grupos humanos e entidades
execução de um plano de ação em defesa políticas sobre outros, como também a
de nosso planeta e de nosso universo, a desenfreada dominação do homem sobre
mensagem de Sua Santidade assume uma a natureza e o meio ambiente.
dimensão ainda maior. Trata-se da res- A dominação, muitas vezes
ponsabilidade, universal à humanidade, sustentada pelo racismo e o sexismo,
de trabalhar para superar essas diferen- não se expressa apenas no poder eco-
ças, bem como outras que nos impedem nômico e político, nem seus efeitos se
de conviver no planeta sem destruirmos restringem apenas à pobreza material.
uns aos outros, e sem destruir o planeta, Ela atinge mais profundamente o ser
o meio ambiente e o universo. humano quando compromete a sua dig-
Sua Santidade enfatiza a igual- nidade, privando-o de sua autocon¿ança.
dade entre os seres humanos, além das A sociedade dominadora impõe a todos,
diferenças. Mas, na minha opinião, não desde a mais tenra idade, o desprezo ao
são as diferenças em si que nos impõem dominado, sua cultura e identidade. E o
a desigualdade. As diferenças entre os dominado passa a se autodesprezar.
Saudações a Sua Santidade o Dalai Lama
Senador Abdias Nascimento
261

Sua Santidade disse ontem na en- nosso mundo. A não-violência, disse


trevista coletiva uma verdade importante. ele ontem, não é fraqueza. É antes uma
Para superar a condição de desigualdade, arma fundamental na militância coletiva
inclusive a pobreza, é preciso conquistar da compaixão: uma militância que há
a autocon¿ança individual para depois de nos levar além das desigualdades,
organizar-se coletivamente. Para isso, na conquista de um mundo mais justo e
muitas vezes é necessário o resgate da mais harmonioso. Essa militância há de
identidade esmagada pelo sistema do- ser capaz de construir uma paz dinâmica,
minador. para além da ausência da guerra, que
Talvez a mais bela entre as nos permita desenvolver cada vez mais
idéias de Sua Santidade seja a de que a profundamente a nossa espiritualidade
espiritualidade existe não apenas na reli- além das diferenças.
gião organizada, mas sobretudo na com- Com sua vinda ao Rio de Janei-
paixão, no afeto entre os seres humanos. ro, o Dalai Lama nos traz a mesma luz
Recordo bem suas palavras: um bebê não com que ele vem iluminando o mundo
nasce com religião, nem necessita dela todo, que passa por momentos tão di-
para sobreviver, mas necessita, sim, do fíceis, na busca dos caminhos da paz e
afeto e da compaixão dos outros.
da solidariedade. Tenho certeza de que
Quando a miséria chega a tal todos sairão daqui assumindo sua parte
ponto que priva as suas vítimas do afeto na responsabilidade universal de viver a
humano, ela ultrapassa o âmbito material compaixão e a solidariedade, construindo
e compromete também a vida espiritual. um mundo harmonioso e feliz.
E a proliferação da miséria nos centros
À Sua Santidade, uma saudação
urbanos dos países do Sul, bem como
afro-brasileira: axé!
nos guetos dos países do Norte, está
chegando a esse ponto.
Por tudo isso, sabemos que, * Esta saudação foi feita por ocasião do en-
quando Sua Santidade se refere à não- contro público do Dalai Lama com o povo do
-violência, não o faz como teoria eso- Brasil e os visitantes da Rio-92, realizado no
térica, desvinculada da realidade do Maracanãzinho no dia 5 de junho de 1992.
JUSTIFICATIVA

Dunia Ossaim: os No ano de 1992, convergem dois


afr o-amer icanos e o marcos históricos de fundamental impor-
tância para o futuro da existência do ser
meio ambiente humano. A realização no Rio de Janeiro
do Encontro das Nações Unidas sobre o
Meio Ambiente e o Desenvolvimento, a
Rio-92, vai coincidir com o quinto cen-
tenário do chamado “descobrimento” das
Américas.
,P S}e se então uP a reÀe[ ão
sobre as implicações mundiais da dis-
torção Kistyrica que a¿ rP a o cKaP ado
“descobrimento” de um continente cujos
habitantes desenvolviam civilizações
milenares, recebendo a visitação de
povos africanos também civilizados e
tecnologicamente avançados. A domina-
ção européia, responsável pelo início e o
prosseguimento da devastação do meio
ambiente nas Américas, hoje ostenta
Convocatória
uma pretensa tutela ecológica sobre as
264 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

populações menos responsáveis e mais Populações Afro-Brasileiras (Seafro) do


prejudicadas por essa devastação: os Governo do Estado do Rio de Janeiro,
povos dos países menos desenvolvidos, com o apoio do Rio Arte e da Casa de
especialmente as populações indígenas Cultura Laura Alvim, promovem o Co-
e afro-americanas. lóquio Dunia Ossaim como evento cor-
-relato à Conferência da UNCED sobre
Tal postura de “descobridores
Meio Ambiente e Desenvolvimento, a
da ecologia” ecoa a falsa imagem de
Rio-92, com o intuito de propiciar, dentro
descobridores das Américas ostentada
do contexto desse evento histórico, uma
há séculos pelos europeus e seus descen-
reÀexão sobre as considerações expostas
dentes americanos. Entretanto, seu maior
na Justi¿cativa. Nosso objetivo é articu-
desmentido encontra-se no profundo
lar considerações sobre meio ambiente e
conteúdo ecológico das civilizações
desenvolvimento desde uma perspectiva
afro-americanas, que cultivam, dentro
afro-americana, fundamentada em novas
do seu desenvolvimento, a convivência
informações que enriquecem nosso co-
harmônica entre o ser humano e a natu-
nhecimento das dimensões da contribui-
reza. ção africana à constituição da realidade
A visão ecológica moderna, até multirracial e pluricultural do continente
agora articulada desde um ponto de vista americano.
dos países ditos desenvolvidos, muito O título do Colóquio, Dunia Os-
perderia ao ignorar a riqueza da contri- saim, signi¿ca “Planeta Terra de Ossaim”.
buição dessas culturas à causa do meio A palavra dunia corresponde a “Planeta
ambiente. Mais grave, tal omissão cons- Terra” em ki-swahili, a língua mais falada
tituiria, no contexto de uma justa causa no continente africano. Ossaim, divinda-
de alcance universal, a continuidade da de afro-brasileira, é soberano do reino da
secular imposição sobre esses povos de natureza e das ervas rituais e medicinais,
sistemas eurocentristas de dominação. dentro de um culto que incorpora o con-
ceito tradicional africano de intercâmbio
de forças e energias entre o ser humano
OBJETIVOS
e a natureza. Resume, assim, nosso obje-
O Inst ituto de Pesquisas e tivo, na realização de uma oportunidade
Estudos Afro-Brasileiros (Ipeafro) e a de informação, reÀexão e debate sobre o
Secretaria de Defesa e Promoção das Planeta Terra de Ossaim.
Dunia Ossaim: os afr o-amer icanos e o meio ambiente
Convocatória - Senador Abdias Nascimento
265

PROGRAMA

Terça-feira, dia 9 de junho

Elisa Larkin Nascimento


5 eÀe[ }es iniciais os aIro americanos
e o meio ambiente.
- Os africanos nas Américas antes de
Colombo”. Palestra ilustrada com slides.

Quarta-feira, dia 10 de junho

José Flávio Pessoa de Barros


- O verde no candomblé. Vídeo, palestra
e debate.

Quinta-feira, dia 11 de junho

Rafael Zamora Díaz (Cuba) e Nei Lopes


(Brasil)
- Culturas afro-americanas e o meio
ambiente. Palestras e debate.

LOCAL: Auditório da Casa de Cul-


tura Laura Alvim, Ipanema.
HORÁRIO: 19:00 às 21:30.
Dunia Ossaim: r e- Em primeiro lugar, gostaria de
dar as boas-vindas a todos que vieram
flexões sobr e afr o- participar deste evento. Com a realização
-amer icanos, meio do Colóquio Dunia Ossaim, esperamos
poder contribuir para a integração ao
ambiente e desenvol- conjunto das discussões desta histórica
conferência mundal, a UNCED Rio-92,
vimento de algumas das considerações esboça-
das na Convocatória que todos têm em
mão*. Hoje, daremos início às nossas
reÀe[ }es e aSresentareP os inforP a }es
ilustradas sobre a presença dos africanos
nas Américas antes da chegada de Co-
lombo. Amanhã, assistiremos ao vídeo
Folhas sagradas: O verde no candom-
blé, do professor José Flávio Pessoa de
Barros, decano do Centro de Ciências
Sociais da UERJ e babalossaim (auto-
ridade religiosa no culto afro-brasileiro
a Ossaim). Após a exibição do vídeo, o
Elisa Larkin Nascimento professor José Flávio fará uma palestra
sobre o tema. Na quinta-feira, o baba-
__________
* A Convocatória está reproduzida neste volume, às páginas 244-6.
268 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

laô afro-cubano Rafael Zamora Díaz, cada vez mais conhecidas e debatidas
autoridade religiosa no culto a Ifá, mundialmente, sobretudo no contexto
falará sobre Ossaim e Ifá, e o professor das questões ambientais. A participação
Nei Lopes, escritor e compositor afro- dos povos indígenas vem tendo certa
-brasileiro, abordará o encontro entre a repercussão na cobertura desta Confe-
ancestralidade banta africana e indígena rência pela mídia. Quanto aos povos de
no Brasil, e sua relação íntima com a origem africana, tem sido quase nula a
natureza. Nesta pequena exposição, cobertura pela mídia dos eventos reali-
Sretendo tra]er algumas reÀe[ões numa zados por várias ONGs sobre racismo
orientação mais generalizada do signi- antiafricano, cultura afro-americana e
¿cado do Colyquio pan-africanismo.
Nesse contexto, faz-se necessá-
rio reÀetir, de maneira detalhada e com
A RIO-92 E O “DESCOBRIMENTO”
uma visão histórica que não sucumba aos
DAS AMÉRICAS parâmetros comuns do eurocentrismo,
Como testemunha a manifesta- sobre questões como desenvolvimen-
ção organizada dos povos indígenas que to, tecnologia, racismo ecológico e o
se reúnem paralelamente no Kari-Oca, a conteúdo ambientalista da cultura afro-
aldeia que articula as preocupações e rei- -brasileira, de maneira a registrar fatos e
vindicações desses povos, a coincidência pontos de vista capazes de documentar e
histórica da Rio-92 com o aniversário fundamentar uma perspectiva ambienta-
da “descoberta” das Américas chama a lista afro-americana.
atenção para a problemática da convi-
vência entre os vários povos, com suas
diferentes origens e tradições étnicas e DESENVOLVIMENTO, TECNOLO-
culturais, no mesmo espaço físico do pla- GIA E RACISMO ECOLÓGICO
neta 6eria engano redu]ir as di¿culdades Quando falamos em desenvol-
dessa convivência à mera reprodução de -vimento, nos referimos essencialmente
supostas lutas de classe ou a lutas tribais ao desenvolvimento econômico e so-
e diferenças étnicas. Elas têm sua raiz bretudo tecnológico. E quando se fala
numa política permanentemente imple- em tecnologia, a África quase sempre é
mentada por aqueles que detêm o poder, considerada uma presença nula, negativa,
de reprimir as legítimas manifestações devedora na história do seu desenvolvi-
e aspirações dos povos dominados, exi- mento.
gindo seu desaparecimento por meio de
Na verdade, a África foi o palco
processos de integração ou assimilação
de algumas das mais importantes revo-
à nação dominadora.
luções tecnológicas da história humana.
Com relação aos povos indíge- Neste pequeno ensaio seria impossível
nas, essas considerações esto ¿cando expor todos os dados, mas está com-
Reflexões sobr e afr o-amer icanos, meio ambiente e desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento 269

provado que a agricultura e a pecuária Na primeira metade deste milê-


estavam sendo praticadas na África de- nio, os africanos em todo o continente
zenas de milhares de anos antes do que continuaram o seu desenvolvimento,
se supunha. O seu desenvolvimento na organizando-se em fortes Estados políti-
África antecede o de outras regiões con- cos, com so¿ sticadas redes de comércio
vencionalmente assinaladas como berços e comunicação interligando grandes
da civilização humana. As formas de or- centros urbanos do saber e da pesquisa.
ganização social que levaram à evolução Desenvolveram a metalurgia do bronze,
do Estado político também ocorreram na do ferro e do aço, bem como a mineração,
África anteriormente a outras regiões1. astronomia, matemática, medicina, cirur-
gias, vacinas e uma ampla farmacologia,
Milênios antes de Cristo, o só para citar alguns exemplos3.
antigo Egito africano alcançou níveis
de conhecimento científico e avanço O processo de desenvolvimento
tecnológico nos campos da matemáti- africano foi violentamente interrompido,
ca, engenharia, astronomia, medicina, estancado e revertido com a invasão co-
Eiologia, ¿ loso¿ a, religi o e ci ncias lonialista européia. Pintou-se então um
político-sociais que viriam fundamentar retrato falso de tribos primitivas, vivendo
o subseqüente desenvolvimento do mun- a Idade da Pedra, que nada tem a ver com
do ocidental. Tudo isso foi realizado por a verdade histórica dos povos africanos.
africanos negros que os europeus depois Esse desenvo lvimento tec-
caiaram de branco para apresentá-los nológico africano nos remete a outra
bonitinhos nos livros da chamada his- questão atualíssima: os quinhentos anos
tória universal. Os grandes pensadores do descobrimento das Américas. Está
gregos, desde Pitágoras, Anaximandro e amplamente documentada a presença
Anaxágoras até Aristóteles e Platão, ou de africanos nas Américas antes de
se formaram com professores africanos Colombo, e um grande intercâmbio tec-
em Alexandria, cidade-biblioteca guardiã nológico, comercial e cultural entre eles
do conhecimento milenar egípcio, ou e os americanos indígenas4. Os mouros,
então construíram as suas teorias com responsáveis pelos grandes avanços
base nesse conhecimento2. cient ¿ cos na ( uroSa durante séculos

__________
1
Ivan Van Sertima, org., Blacks in science (Londres e New Brunswick: Transaction Books, 1983) e Nile valley civilizations
(New Brunswick: Journal of African Civilizations, 1985).
2
Cheikh Anta Diop, The African origin of civilization, trad. de Mercer Cook (Nova York/Westport: Lawrence Hill, 1974).
George G. M. James, Stolen legacy (Nova York: Philosophical Library, 1954).
3
Basil Davidson, Africa in history (Nova York: Macmillan, 1968), The lost cities of Africa (Boston: Little, Brown, 1959),
The African genius (Boston: Little, Brown, 1959). Ivan Van Sertima, op. cit.
270 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

anteriores ao chamado “descobrimento”, Mas qual o caminho desse de-


também eram africanos negros, com seu senvolvimento? O modelo predatório,
centro de ensino e pesquisa localizado no baseado na busca do lucro a todo custo
Cairo5. e na exploração desenfreada dos recursos
naturais, orientou o desenvolvimento
Então: além da mão-de-obra
dos países hoje dominantes, do Norte.
escravizada e sua contribuição técnica,
Entretanto, esse modelo não serve neces-
utilizadas para sugar o sangue das veias
sariamente para os povos do Sul. Foi essa
abertas desta América Latina, na clássica
a conclusão da Comissão Sul das Nações
expressão de Eduardo Galeano; além da
Unidas, que recentemente publicou o re-
interminável transferência de riquezas da
latório O desafio Sul. Não por acaso, essa
África para a Europa e Estados Unidos comissão é presidida pelo ex-presidente
por meio do colonialismo e seu legado da Tanzânia Mwalimi Julius Nyerere,
moderno de dominação econômica; além autor de uma proposta de socialismo afri-
das taxas de juros arbitrárias e dos preços cano baseada nas tradições do seu povo,
aviltados dos produtos de exportação o Ujamaa. O modelo de desenvolvimento
africanos, para não mencionar as guer- sugerido pela Comissão Sul baseia-se
ras coloniais que custaram milhões de numa orientação “centrada no povo”,
vidas; além de tudo isso, a África ainda voltada ao atendimento das necessidades
produziu os fundamentos cientí¿ cos do humanas: alimentação, educação, saúde,
saber e do desenvolvimento tecnológico redistribuição de renda, urbanização
europeus. planejada, saneamento básico e reforma
Hoje, fala-se muito em desenvol- agrária, bem como ao aspecto ecológico.
vimento sustentato. O chamado terceiro Nos países de população multi-
mundo vem sustentando o desenvolvi- étnica, é preciso levar em conta, na for-
mento alheio durante mais de quinhentos mulação de um modelo desse tipo, aquilo
anos. Agora, o seu desenvolvimento que vem sendo chamado de racismo
terá de ser sustentado, em parte, por ecológico. As populações não-brancas
transferências signi¿ cativas de recursos, discriminadas constituem as primeiras e
de ordem tecnológica e ¿ nanceira, dos maiores vítimas dos efeitos nocivos da
países cujo desenvolvimento custou a poluição e dos danos ao meio ambiente.
miséria de três quartos da população do Tanto no Brasil como nos Estados Uni-
mundo e a devastação do meio ambiente dos, por exemplo, as populações que
mundial. mais sofrem esses efeitos são as indíge-

__________
4
Ivan Van Sertima, They came before Columbus: the African presence in America (Nova York: Randon House, 1976).
5
Ivan Van Sertima, African presence in early Europe (Londres e New Brunswick: Transaction Books, 1985).
Reflexões sobr e afr o-amer icanos, meio ambiente e desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento 271

nas e as de origem africana. As comuni- e socialistas. Os quilombos fornecem um


dades carentes urbanas recebem o mais ponto de referência para a construção de
orte impacto das in¿ ltra }es vindas dos uma proposta que leve em conta o racis-
tonéis de lixo químico enterrados no solo, mo ecológico, a discriminação racial e as
do lixo hospitalar, do césio 137, das do- matrizes africanas e indígenas da cultura
enças causadas por resíduos industriais, nacional como elementos básicos para o
dos rios poluídos, da falta de saneamento pensamento de um modelo próprio para
básico e assim por diante. Essa questão o Brasil.
é inseparável do problema social mais
CONTEÚDO AMBIENTALISTA DAS
amplo do racismo, que determina serem
CULTURAS AFRICANAS
essas comunidades compostas em sua
enorme maioria por descendentes de 2 signi¿cado ecológico da cultu-
africanos. ra africana e afro-brasileira tem muito a
contribuir para a articulação desse mode-
Semelhante à teoria do Ujamaa
lo. A cultura religiosa de origem africana
proposta por Mwalimu Nyerere, no Bra-
constitui a matriz espiritual e ¿ losó¿ ca
sil o professor Abdias Nascimento pro-
que permite o Àorescimento daquelas
põe um modelo baseado na experiência
mani esta }es comumente identi¿ cadas
histórica do seu povo: o Quilombismo.
como cultura negra, como o samba, os
Uma frase do seu livro soa bem parecida
afoxés e assim por diante.
à proposta da Comissão Sul:
Essa matriz ¿ losó¿ ca a ricana se
fundamenta nos princípios da harmonia
O Quilombismo pretende resgatar cósmica e do constante Àu[ o e reposi-
o sentido de organização socioe- ção de energias. As energias cósmicas
conômica concebido para servir à se resumem numa força vital, o axé.
existência humana; organização que Essa força primordial da vida reside não
existiu na África e que os africanos somente nos seres humanos, como tam-
escravizados trouxeram e praticaram bém na terra, nas plantas, nos animais,
nos quilombos do Brasil. nas guas, no ogo en¿ m, em todos os
aspectos da natureza e do universo. A ¿ -
4 uilombo n o signi¿ ca escravo
loso¿ a da religi o se baseia no equilíbrio
ugitivo. igni¿ ca a reuni o de a rica-
harmônico da distribuição do axé entre
nos, indígenas e brasileiros de todas as
os seres humanos vivos, a natureza, os
origens, não somente na luta contra a
ancestrais, os não-nascidos, os orixás -
dominação colonialista, como também
en¿ m, entre o mundo espiritiaul, o orun,
na construção de uma vida comunitária
e o mundo terrestre, o aiyé.
economicamente igualitária, auto-susten-
tada numa íntima relação com a natureza, Os orixás são as próprias forças
liderada pela maioria e organizada com da natureza, e a manifestação simbólica
base nas tradições africanas democráticas dos princípios da harmonia cósmica.
272 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

( [ u, o ori[ ¿ lho, fa] a liJ ação entre os um tanto polêmico nas discussões ecoló-
vários reinos do cosmo. Ele é o princípio gicas.
dinâmico da contradição dialética que O ebó é a prática ritual da reposi-
impulsiona os intercâmbios entre o orun ção de energias para equilibrar as forças
e o aiyé. Ossaim, orixá-folha, é soberano cósmicas. Seu objetivo é sempre o de
do reino da natureza e nos ensina a ciên- restituir a harmonia entre a natureza, os
cia e a prática da medicina e farmacolo- seres humanos e o mundo das divindades,
gia tradicional africanas. Xangô, trovão os ancestrais e os não-nascidos. Nesse as-
e raio, defende o princípio da justiça na pecto, a ¿ loso¿ a reliJ iosa afro-brasileira
sociedade humana. Ogun representa a comunga com os ambientalistas, que
conquista tecnológica da metalurgia do procuram exatamente a convivência
ferro e do aço, e portanto o rompimento harmônica com a natureza, e que sempre
das barreiras cósmicas. Ele simboliza procuram levar em conta, além dos vivos,
a força do conhecimento humano que as futuras gerações. O ebó é a expressão
possibilita o proJ resso cient ¿ co, e ao concreta do princípio ecológico.
mesmo tempo projeta a justa luta ar-
mada em defesa do seu povo. Iemanjá, Muito se tem ouvido falar sobre
a mãe de todas as águas, representa a a pr tica de acender velas nas Àorestas,
fecundidade, o princípio gerador dos dani¿ cando as rvores, na colocação de
seres da natureza, do reino humano e do oferendas. Esse fenômeno constitui uma
reino espiritual. Oxum, deusa do amor e exceção na prática religiosa. A maioria
da água doce, simboliza a fertilidade, a dos ebós é feita no espaço do terreiro,
procriação e o princípio da criatividade. sob a orientação de autoridades religio-
Oxalá, ou Obatalá, que moldou do barro sas. Assim como não podemos culpar o
o ser humano, representa os princípios da cristianismo pelos pecados de um bispo
criação, da conciliação e da paz. Iansã, Macedo, seria injusto julgar a religião
deusa do raio, siJ ni¿ ca o poder feminino afro-brasileira responsável por essas
na luta pela vida e pela justiça. Oxuma- práticas mal-orientadas.
ré, o arco-íris e a serpente, incorporam São múltiplas e riquíssimas as
o ciclo das águas, vindas na forma de potenciais contribuições da filosofia
chuvas e devolvidas ao céu por meio das religiosa afro-brasileira para um modelo
neblinas. Ela também traz o princípio da de desenvolvimento ecologicamente são.
alegria como força dinamizadora da vida.
Entre as mais importantes está
Seria impossível aqui expor a de fundamentar, na articulação desse
todos os aspectos dessa ¿ loso¿ a reli- modelo, as caracter sticas espec ¿ cas
giosa, cuja compreensão exige anos de do nosso pensamento ecológico como
convivência e iniciação, e que esta autora cultura brasileira. Entretanto, para isso
não domina. Entretanto, vale destacar o é preciso, em primeiro lugar, resgatar
siJ ni¿cado do eby, a oferenda, elemento os princípios da cultura africana e a sua
Reflexões sobr e afr o-amer icanos, meio ambiente e desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento 273

expressão como próprios daquilo que Sem dúvida, o mesmo podemos


aceitamos como civilização brasileira. dizer para o Ocidente como um todo.
E esse resgate exige a recuperçaão da $ os participantes o¿ ciais da Rio , e
história africana como matriz do amor aos formuladores de políticas ambientais
próprio de nosso povo e cultura. Como no mundo, urge ouvir a voz de povos do
disse o senador Abdias Nascimento no Sul que se reuniram no Fórum Global. A
seu discurso de estréia6, e referindo-se visão de mundo do Ocidente, baseada em
às civilizações e conquistas tecnológicas conceitos de modernidade e neoliberalis-
africanas: mo que não comportam outra orientação
que a busca do lucro e do crescimento
É essa herança africana que o Brasil material, não dá suporte à tese do desen-
precisa conhecer e assumir: a digni- volvimento sustentável. A contribuição
dade e o protagonismo do ser humano de outras matri] es ¿ losó¿ cas, num mo-
africano. Essa verdade nos foi negada delo de pluralidade e convivência har-
durante cinco séculos de mentiras, moniosa, torna-se de vital importância
fraudes e falsi¿ ca }es do eurocentris- para o futuro da humanidade.
mo que se arrogava como arauto de
uma suposta ciência. Para recuperar
sua própria identidade nacional e
resgatar a dívida que tem para com
* Elisa Larkin Nascimento é diretora do Ipeafro.
seus cidadãos de origem africana, À época do colóquio, era coordenadora do Setor
urge à Nação brasileira mergulhar de Ensino do Programa de Estudos dos Povos
nas dimensões mais profundas dessa Africanos e Afro-Americanos da Universidade
herança civilizatória. do Estado do Rio de Janeiro.

__________
6
Abdias Nascimento, A luta afro-brasileira no Senado %rasília * rá¿ ca do 6enado,
Bantos, índios, O encontro, no Brasil, entre as
culturas locais e as de origem africana foi
ancestr alidade e um momento de trocas amplamente ricas
que marcaram para sempre o corpo e a
meio ambiente alma nacionais. E essa riqueza se deveu,
no que toca aos negros africanos, princi-
palmente ao elemento de origem banta,
que, pelo volume de sua importação, foi
aquele que mais interagiu com o indígena
brasileiro, no tempo e no espaço, durante
e após o período escravista. No Anexo
a este texto, transcrevemos textos de
cantigas ainda usadas em rituais e que
ilustram essa troca banto-indígena.
Com efeito, a vinda para o Brasil
de escravos da África Ocidental Equato-
rial e da África Austral, notadamente pe-
los portos de Cabinda, Luanda, Benguela
e de Moçambique, durou praticamente
todo o tempo da escravidão. E sua parti-
Nei Lopes * cipação em momentos signi¿ cativos da
colonização brasileira, como os da mar-
276 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

cha para o interior por meio das entradas defuntos, mas antepassados ilustres, cuja
e bandeiras, vai propiciar um encontro de passagem pela vida terrena foi marcada
culturas sob todos os aspectos enrique- por fatos signi¿ cativos para sua comu-
cedor. nidade, fatos esses expressos ou por sua
Do ponto de vista das relações liderança, inteligência, coragem, ¿ deli-
com a natureza e o meio ambiente, dade ao grupo, etc., ou por sua simples
muitas concepções dos africanos bantos condição de cabeças, de fundadores, de
vão encontrar eco nas idéias dos índios inauguradores de linhagens familiares.
brasileiros, fazendo surgir, aqui, uma Reverenciadas enquanto vivas, essas
¿ loso¿ a peculiar, um Brasil insti- gan- pessoas passavam, após a morte, a ser
temente cafuso, que se expressa, hoje, veneradas como objetos de culto; mas
na religiosidade, em muitas técnicas, em desde que satis- ¿ zessem claros e deter-
inúmeros folguedos e principalmente em minados requisitos, como a idade, por
certos conceitos ligados à terra, às árvo- exemplo2.
res, aos rios e mananciais. Isso porque, “Nas crenças dos povos da bacia
no sistema das concepções ¿ losó¿ cas do Congo” - escrevem N. A. Xenofonto-
dos povos bantos, assim como nas dos va e A. V. Nikiforov3 - “não encontramos
índios brasileiros (ao que nos consta), limites bem de¿ nidos entre o mundo
o culto aos antepassados se reveste de dos vivos e o além-mundo (...). O morto
fundamental importância. não era excluído da comunidade, conti-
Para a unanimidade dos povos nuando a ser o verdadeiro proprietário
do grande grupo etnolingüístico banto, das terras.” Assim - prosseguem os dois
todos os seres da natureza, inclusive cientistas da antiga URSS - “era costume
plantas e animais, são sempre entendidos dirigir-se aos espíritos dos ancestrais
como forças vivas, em processo, e nunca antes de serem iniciados os trabalhos
como entidades estáticas. Essas forças agrícolas e mineiros, a caça e a pesca,
vitais, por sua vez, formam uma cadeia, pedindo a sua autorização e proteção”.
da qual toda pessoa contitui um elo, vivo Segundo a tradição dos povos
e passivo - um elo ligado, em cima, aos bantos, por princípio toda terra é sa-
elos de sua linhagem ascendente (seus cralizada, talvez até mesmo uma terra
ancestrais), e sustentando, abaixo de si, estrangeira, que pode ser ou ter sido
a linhagem de seus descendentes1. propriedade e morada de um ancestral
Essa noção é a base do culto aos local. Da mesma forma, o pensamento
ancestrais - que não são simples parentes tradicional banto sacraliza as águas de
__________
1
Cf. Jacques Maquet, cit. in Nei Lopes, Bantos, malês e identidade negra, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 123.
2
Cf. A. A. Kara-Murza, in A. A. Gromiko et alii, As religiões da África. Moscou: Edições Progresso, 1987, p. 65.
3
In A. A. Gromiko, op. cit., p. 174.
Bantos, índios, ancestr alidade e meio ambiente
Nei Lopes 277

rios e mares, não apenas por sua aplica- que a Amazônia e a Àoresta congolesa,
ção econômica, mas principalmente por por exemplo, estão ambas na mesma
elas terem servido, um dia, aos antepas- zona do globo, nos trópicos). “Não se
sados hoje venerados como ancestrais. tratava ali” - e agora recorremos a um
E, assim como a terra e as águas, são texto de Muniz Sodré5 - “de falar sobre
sagradas também as árvores e as plantas, a relação que o indivíduo deve ter com o
não só por fornecerem sombra, alimento meio ambiente, não se tratava do discurso
e remédio, mas também por sua ligação liberal do preservacionismo, mas de agir
com os antepassados ilustres de cada de tal maneira que o elemento natural (...)
comunidade. se tornasse parceiro do homem num jogo
Foi de posse de crenças e em que cosmo e mundo se encontram.”
tradições assim estruturados que os Índios e bantos, juntos, entenderam a
bantos aqui escravizados encontravam natureza como divina e ativa, e nunca
os donos originais da terra brasileira. indagaram de uma Àoresta, por exemplo,
Desse encontro, uma atitude geral de em que medida cada árvore poder-lhe-ia
deferência e reverência gerou alianças ser útil em termos de qualidade e do valor
não apenas simbólicas, mas também econômico de cada metro cúbico de sua
reais, que ¿ zeram nascer, por exemplo, madeira6.
a umbanda e vertentes de culto como
Finalizando, uma abstração:
o candomblé-de-cabloco e o “banto-
-ameríndio”4 da Região Amazônica, Em seu célebre discurso, parece
onde, além do saber comum sobre plan- que de 1895, o chefe indígena norte-
tas medicinais e rituais, os cânticos em -americano Seattle a¿ rmava, em réplica
português são comumente entremeados ao presidente dos Estados Unidos: “Se
de termos e expressões tupis-guaranis e lhe vendermos nossa terra, você verá
angolo-congueses; e nos quais a presença que ela é sagrada. A água brilhante que
do termo “Aruanda” (morada mítica de se escoa nos ribeiros e nos rios não é
pretos-velhos, cablocos e outras entida- somente água, mas o sangue de nossos
des), referência ao porto de Luanda, em ancestrais. O vento que deu ao nosso avô
Angola, é freqüente. seu primeiro alento recebe também o seu
Com o índio, então, principal- último suspiro. O vento dá aos nossos
mente na utilização das plantas, o afri- ¿ lhos o espírito da vida. Todas as coisas
cano banto trocou, no Brasil, toda uma estão ligadas com o sangue, que nos une
gama de experiências ecológicas (veja-se a todos”7.
__________
4
Denominação usada por Napoleão Figueiredo in Banhos de cheiro, ariachés e amacis. Rio de Janeiro, Funarte, 1983, p. 9.
5
Cf. Muniz Sodré, O terreiro e a cidade. Petrópolis, Vozes, 1988, p. 151.
6
Idem, p. 152.
278 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

A célebre fala do chefe indíge- Que lindo caboclo de penas, panaiá


na norte-americano expressa também a Q ue veio na Umbanda saravá, é um
atitude ecológica do nosso índio. Essa panaiá
atitude, o negro banto, em terra brasileira, (Caboclo)
reconheceu, igualmente, como verdade
sua, respeitou, colheu e reprocessou. Tem Caboclo no mato
Chama, chama que ele vem
Porque, de todas as culturas Salve bacuro de umbanda
que vieram formar a nação brasileira, Chama, chama que ele vem
nenhuma delas compreendeu melhor o (Caboclo)
índio e sua relação com a natureza e sua
ancestralidade que as oriundas da África. Apanha folha com folha, tata mirô
E, entre elas, as culturas dos povos bantos Apanha maracanã, tata mirô
em especial. (Caboclo)

Caboclo velho malondé


ANEXO Oi, saravá seu Aimoré
(Caboclo Aimoré)

ALGUNS TEXTOS DE CANTIGAS RITU- A minha urucaia


AIS EM QUE SE EVIDENCIA A INTER- tem mugunzá
PENETRAÇÃO BANTO-AMERÍNDIA* A minha urucaia
tem quibombô
(Pai Tomé de Aruanda)
O Rio rolou na mata virgem
Uma estrela brilhou nas Aruanda
(Cabocla Jurema)

Caboclo, sua mata é verde


* Nei Lopes é compositor, escritor e ¿ lósofo. À
É verde da cor do mar época do Colóquio, era superintendente de Pro-
Saravá, cassuté da Jurema moção Humana e Sociocultural das Populações
(Caboclo) Afro-Brasileiras da Seafro.

_________
7
In Joseph Campbell, Transformação do mito através dos tempos. São Paulo: Cultrix, 1992.
*
Fontes: Cantigas de caboclos, cantigas de pretos velhos. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, s/d
O ver de no Neste momento histórico, o
mundo se reúne na chama Cúpula da
candomblé Terra, a Rio-92, para uma reÀexão so-
bre as relações que nós, seres humanos,
mantemos com o nosso meio ambiente.
Um dos aspectos mais animadores desta
Conferência da UNCED está na inclusão
de um espaço para a realização de reuni-
ões como este Colóquio, oportunidades
para a inserção, no contexto desse debate,
de uma perpectiva que valorize a diver-
sidade cultural.
A pluralidade étnica que carac-
teriza o Brasil reproduz, de certa manei-
ra, a própria diversidade dos povos do
mundo. Na preservação do meio ambien-
te, nos parece imprescindível partir da
premissa da riqueza das contribuições de
povos não-ocidentais. No Brasil, temos o
exemplo de uma prática e ¿ loso¿ a reli-
José Flávio Pessoa de Barros * giosa que incorpora uma visão de mundo
essencialmente ecológica: o candomblé.
280 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Mesclando elementos de várias origens o meio ambiente. Essa especi¿ cidade se


africanas e indígenas, porém mantendo constrói no bojo de um processo comple-
uma nomenclatura litúrgica basicamente xo de inter-relacionamento com a socie-
nagô (iorubá), o candomblé prolifera no dade abrangente, na qual se defrontam
meio urbano e no contexto cultural afro- grupos étnicos, diferentes níveis ou es-
-brasileiro, aco- lhendo participações e tilos de vida, diferentes formas culturais
lideranças de todas as origens étnicas. e religiosas, que se acham relacionadas
continuamente, trocando inÀuências, não
Nesta contribuição ao Colóquio
obstante continuarem a manter as suas
Dunia Ossaim, apresentamos reÀexões
respectivas especi¿ cidades.
resultantes de nossas pesquisas e discus-
sões sobre o assunto, realçando o aspecto
ecológico como elemento formador de A URBE E A FLORESTA
identidade cultural nessa tradição reli-
A estruturação das comunidades
giosa.
religiosas de candomblé, de acordo com
CONSERVANDO A VIDA E A CRENÇA os estudos realizados nas cidades de
Salvador e do Rio de Janeiro, obedeceu
A tentativa de compreender o a uma localização espacial decorrente,
fenômeno da expansão crescente de no século passado, do estreito rela- cio-
terreiros de candomblé nos grandes namento entre as confrarias religiosas
centros urbanos brasileiros conduziu à católicas e os anseios da população negra
necessidade de se pensar uma relação (escravos e libertos). A edi¿ cação de
aparentemente contraditória: a de uma locais destinados à celebração da crença
crença que privilegia a natureza, a vida em divindades africanas: orixás (tradição
e as relações interpessoais, com a ocupa- iorubá), vodus (tradição jeje) e inquices
ção de espaços, sob a lógica capitalista (tradição banta) aponta para a concreti-
predominante. zação desse desejo de autodeterminação
das populações urbanas pobres (negros,
Torna-se, ass im, necessário mestiços e brancos).
relativizar a visão hegemônica sobre
grupos religiosos em geral, centrando Em Salvador, no coração da
a percepção do candomblé em outros cidade, surge, na primeira metade do sé-
aspectos que não os litúrgicos pro- pria- culo XIX, o Iyá Omi Axé Intilé, o terreiro
mente ditos. Os terreiros, casas de santo, fundado por mulheres ketu, junto à Igreja
ilês ou roças de candomblé ultrapassam o da Barroquinha. De acordo com Verger
seu sentido religioso imediato e se cons- (1981:28), as fundadoras eram membros
tituem como comunidades que possuem da Irmandade Nossa Senhora da Boa
formas especí¿ cas de organização social Morte. De sua fundação na Barroquinha,
e trabalho de aquisição e transmissão de transferiu-se o grupo para vários outros
conhecimentos, de relacionamento com locais, acabando por se instalar de¿ niti-
O ver de no candomblé
José Flávio Pessoa de Barros 281

vamente, por volta de 1830, no sítio da da Saúde, de acordo com as crônicas de


atual Av. Vasco da Gama, sob o nome de João do Rio sobre o ambiente religioso
Ilê Iyá Nassô Akalá Magbo, conhecido da capital federal nas primeiras décadas
também como Casa Branca do Engenho do século XX. Segundo aquele autor, o
Velho. Edison Carneiro (1978:56) relata mais famoso terreiro era o de tia Ciata,
que a fundação remonta a essa data, cujo prestígio facilitava a concessão de
embora a¿ rme que haja “quem lhe dê permissão policial para a realização de
até 200 anos de existência”. É contado cerimônias religiosas, assim como para
que três eram as fundadoras, e que uma os encontros de samba. No entanto, o
delas, Iyá Nassô, portava importante relacionamento que ela mantinha com
título honorí¿ co da corte do alafin (rei) importantes ¿ guras políticas da antiga
de Oyo (Lima, 1977:24). capital do Brasil não impediu o desloca-
No correr do tempo, esse terreiro mento de seu grupo e de outros candom-
tem sido alvo de vários estudiosos, inclu- blés. O projeto modernizador da cidade,
sive Bastide, o que permitiu o resgate de implementado a partir dos anos iniciais
sua história, bem como a atribuição de do século XX (Carvalho, 1988:96-9),
uma senioridade no conjunto das casas obrigou ao translado de vários grupos
de santo baianas. Outras comunidades, para locais então periféricos como
de diferentes tradições religiosas, foram Madureira, Coelho da Rocha e outras
igualmente localizadas no início do sé- localidades da Baixada Fluminense.
culo XIX, no perímetro urbano de Salva- Uma vez que o processo de cons-
dor, como os terreiros de Accu (jeje) e o tituição e implementação dos terreiros
Bate-Folha (banto), de acordo com Silva de candomblé supõe, ao mesmo tempo,
(1983:32-61), baseado em documentação a urbe - espaço construído - e a Àoresta -
constante de processos criminais referen- espaço-mato -, o deslocamento imposto,
tes às perseguições religiosas ocorridas se trouxe algumas di¿culdades e proble-
no período. mas, também favoreceu o estreito rela-
A repressão policial, sem dúvi- cionamento dessas duas dimensões tão
da, fez com que as casas de candomblé importantes no imaginário religioso do
fossem empurradas para locais afastados povo-de-santo. O espaço-mato, tornan-
ou periféricos, nos quais o tocar dos do-se mais evidente e próximo, reforçou
atabaques e o ruído dos cânticos e das os laços entre o homem e a natureza, ao
práticas religiosas não ofendessem e nem mesmo tempo em que circunscrevia o
incomodassem os sensíveis ouvidos e grupo religioso e o protegia da curiosida-
olhos da elite social baiana da época. de de não-adeptos. Acresce o fato que as
Tal situação repetiu-se na cidade perseguições policiais e o agravamento
do Rio Janeiro. Primeiramente, as casas das discriminações sócio-religiosas de-
de santo agruparam-se em torno do cen- ram ensejo ao fortalecimento do sentido
tro da cidade, nas áreas da Praça XV e grupal e à demarcação de espaços dis-
282 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

tintos. Os templos, embora inseridos no tas e Àorestas e a di¿culdade de encontrar


cenário arquitetônico urbano-periférico, certas espécies vegetais constituem uma
podiam ser distinguidos - e ainda o são - agressão ao homem, de maneira geral,
pela presença de sinais diacríticos como e, em particular, é uma violação dos
a bandeira de tempo (mastro ¿ ncado no bens simbólicos, do acervo material e
solo, na entrada do terreno, onde tremula espiritual desses grupos religiosos. Da
uma bandeira branca) e as quartinhas mesma forma, os terreiros comunais são
(potes de barro), colocadas sobre os ameaçados pela es-peculação imobiliária
muros e telhados. e têm de lutar pela posse de seus espaços
As comunidades de candomblé, urbano-periféricos.
de maneira geral, possuem dois espaços: O exercício da fé nas divindades
um, o urbano, que compreende as cons- afro-brasileiras exige uma relação direta
truções destinadas às atividades rituais e estreita com o meio ambiente natural
e de moradia; e outro, o mato, onde são puro. O povo-de-santo é cada vez mais
coletadas as espécies vegetais essenciais obrigado a se deslocar para fora dos
ao culto das divindades - forças da na- limites das cidades, à procura de locais
tureza - e onde se encontram também e de espécies vegetais indispensáveis às
determinadas árvores que são objetos de suas práticas religiosas. Kosi ewe, kosi
culto especí¿ co. orisha (sem folhas não há orixás)... Essa
situação onera a vida material dos adep-
A FLORESTA DE SÍMULOS tos e favorece a implantação de sistema
paralelo - o comércio - para a aquisição
Ao falar, hoje, em terreiro ketu, de bens (plantas) que antes estavam à
jeje, angola e demais autodenominações, disposição em espaços limítrofes ou
não estamos nos remetendo às origens inclusos nas comunidades. Na maioria
étnicas, mas às diferenças, fruto do de- das vezes, interfere também na vida es-
senvolvimento do processo histórico da piritual dos participantes, ocasionando o
formação das comunidades religiosas adiamento e, às vezes até, a eliminação
afro-brasileiras. Referimo-nos, portanto, de certos itens rituais.
às expressões diferenciadas de re-ligiosi- No contexto atual, muitos podem
dade, provenientes da re-interpretação e pensar que a natureza e suas re-presenta-
síntese de múltiplos ideários e panteões ções estejam sendo relegadas a um plano
religiosos africanos que partilham um menor. Veri¿camos, porém, que a crença
conjunto de símbolos. nas formas naturais foi, e continua sendo,
O que singulariza e une todos os a responsável pela reprodução e manu-
panteões é o culto às forças da natureza e tenção de um estilo de pensar e ser, de es-
aos antepassados, cujas práticas exigem tar no mundo. O impacto da urbanização
um meio ambiente adequado. A poluição não altera signi¿ cativamente a visão de
de mares, rios, lagoas, a extinção de ma- mundo do povo-de-santo; pelo contrário,
O Ver de no Candomblé
José Flávio Pessoa de Barros 283

propicia o surgimento de estratégias para a necessidade de ser preservada toda


a manutenção de seu patrimônio religioso e qualquer espécie vegetal, pois “elas
e cultural. podem ser úteis algum dia”. A narrativa
A visão de mundo dos candom- mítica relata que Ifá (deus da adivinha-
blés percebe o ser humano como forma ção), ao se sentir velho, comprou um
de expressão de uma das divindades escravo (Ossaim) para ajudá-lo a cuidar
e, assim, a natureza está contida em de seus campos. Este, ao receber ordem
sua essência. Essas forças naturais são de arrancar o mato para início do plan-
vivenciadas de acordo com o modelo tio, recusou-se. Ifá mandou chamá-lo e
mítico ou arquetípico, o qual comporta o interrogou sobre sua negação. Ossaim
uma enorme variedade de expressões. justi¿ cou a desobediência dizendo ser
Enquanto a cidade fragmenta e produz o impossível arrancar inadvertidamente
anonimato, os terreiros promovem uma qualquer planta, pois cada uma possuía
visão solidária e integradora dos seres uma serventia. Informou a Ifá os diferen-
humanos entre si, o que foi muito bem tes nomes e usos das espécies, louvando-
percebido por Bastide (1971, 1973), e - lhes as qualidades. Ifá, ao constatar
com a natureza, articulando relações a sabedoria do escravo, libertou-o e o
sociais mais estáveis ao reproduzirem elevou à condição de conselheiro.
uma família extensa.
Nesse imaginário, as águas estão MANTER A VIDA/PRESERVAR A
associadas à feminilidade, à fecundidade CRENÇA
e às divindades Nanã, Iemanjá, Oxum
e Euá; o fogo (vento), concebido como
fertilidade e transformação, é associado As comunidades de candomblé
a Oxalá e Iansã; a terra (matas, Àores- fazem parte da sociedade brasileira,
tas, caminhos e estradas), a capacidade atuando diretamente no sistema socio-
de sobrevivência e preservação animal -cultural, não obstante conservando uma
e vegetal, bem como a transformação dinâmica específica e uma realidade
destes em favor do homem, é remetida própria. A perspectiva religiosa dos
a Ogum, Oxóssi, Ossaim e Obaluaiê, os terreiros confere, pois, um conjunto de
dois últimos especialmente no que se signi¿ cados ao corpo e à vida, compon-
refere à relação saúde/doença (Barros & do estes um complexo que se traduz em
Teixeira, 1989). maneiras de ser e pensar. Acreditam os
Vale ressaltar que o orixá Os- adeptos que a saúde e o bem-estar social
saim, divindade protetora dos vegetais, advêm do cumprimento das obrigações
conhecedor de suas potencialidades e rituais, que possibilitam o equilíbrio en-
de práticas terapêuticas, demonstra a tre o indivíduo e as divindades, entre o
valorização concebida à relação homem/ indivíduo e a natureza, entre o indivíduo
natureza. Uma de suas histórias mostra e a comunidade.
284 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Em trabalho anterior (Barros caráter essencialmente sobrenatural, o


& Teixeira, 1989:36-62), foi analisado que não elimina a possibilidade de os
o código do corpo, privilegiando-se os adeptos utilizarem outros procedimentos
aspectos referentes à saúde e ao sistema terapêuticos, porém sempre de acordo
de classi¿ cação das doenças. ) oi desta- com a perpectiva religiosa.
cada, ainda, a importância conferida à
Estar equilibrado interna e ex-
vigilância constante que os adeptos têm
ternamente - ter axé - de maneira abran-
com o seu corpo e que visam seu equi-
J ente siJ ni¿ca J o] ar da plenitude da vida
líbrio, enquanto morada e expressão das
neste mundo, possuir saúde e bem-estar
divindades.
social, estar harmonicamente relaciona-
O equilíbrio entendido como do à natureza e ao social. A crença em
saúde física e social está diretamente orixás, voduns e inquices fundamenta
relacionado ao conceito de axé. Este a celebração da vida em todos os seus
pode ser de¿ nido como Iorça invisível, aspectos e domínios, o que, por sua vez,
mágico-sagrada, de todas as coisas, de mantém viva a fé nas divindades/forças
todos os seres e de todas as divindades da natureza.
(Maupoil, 1943:334). De acordo com A matri] ¿ losy¿ ca dessa crença
Barros (1983:59), axé é a força contida afro-brasileira insere-se perfeitamente na
em todos os elementos naturais e seres: construção de uma orientação ecológica
no entanto necessita de certos rituais e respeitadora das diferenças culturais e da
da palavra falada para ser dinamizado. diversidade étnica do nosso planeta. La-
mentável seria a exclusão dessas matrizes
A importância da relação ser civilizacionais não-européias, quando se
humano/vegetal pode ainda ser inferida propõe uma avaliação em nível mundial
por meio da mediação que as espécies das questões concernentes ao convívio
vegetais exercem no estabelecimento humano com o meio ambiente. A identi-
das relações entre os homens e os deu- dade cultural elaborada nos terreiros de
ses; em chás, xaropes, macerações e candomblé apresenta um caminho para a
ungüentos para a cura de moléstias; em elucidação de novas dimensões da nossa
banhos, abluções e beberagens para o visão ambiental, numa perspectiva de-
preparo do corpo como receptáculo dos mocrática e respeitadora da diversidade
orixás, voduns e inquices. São os vege- que caracteriza a experiência humana.
tais um dos principais responsáveis pela
aquisição, intensi¿ cação e renovação
do princípio vital - axé - responsável REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
pelo gozo da saúde. Ressalte-se que, na BARROS, J.F.P. - 1983 - Exe e Osanyin;
lógica do candomblé, tanto as doenças sistema de classificação dos vegetais em
como as curas são concebidas como de casas de santo jeje-nagô de Salvador.
O Ver de no Candomblé
José Flávio Pessoa de Barros 285

Tese de doutorado, FFLCH-USP, SP. MAUPOIL, B. - 1943. La geomancie a


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LANPLANTINE, F. & RABEYRON, P. -


1988.
Medicinas paralelas, São Paulo, Bra-
siliense. * José Flávio Pessoa de Barros é babalos-
saim, antropólogo e escritor. À época do
LIMA. V. c - 1977 - O tempo das tribos: o
declínio do individualismo nas socieda- Colóquio, era Diretor do Centro de Ciências
des de massa. Rio de Janeiro, Forense- Sociais da Universidade do Estado do Rio
-Universitária. de Janeiro.
Ir okò, o deus-ár - Para a tradição negro-africana e
suas recriações nas Américas, os espíri-
-vor e da tr adição tos podem ter sua morada em qualquer
objeto natural, como uma árvore, por
afr o-br asileir a exemplo. Mas a religião tradicional
afro-brasileira conhece o Iroco, uma
espécie de vegetal que parece extrapolar
o simples papel de morada dos deuses
Sara se con¿ gurar coP o uP a divindade
ela mesma, sendo inclusive sincretizada
com santos católicos.

NA ÁFRICA

Ìrokò é o nome iorubá da teca


africana (Chlorofora excelsa, morácea),
árvore de madeira escura, rija, extre-
mamente durável, muito apreciada na
confecção de peças de mobiliário. Os
iorubás da Nigéria e do Benim - mais
Nei Lopes * conhecidos no Brasil, à época da escra-
vidão, como nagôs - acreditam que todas
288 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

as árvores dessa espécie sejam moradas toda a antiga Costa da Guiné. Entre o
de entidades sobrenaturais, travessas e povo fon do antigo Daomé, por exemplo,
brincalhonas, chamadas óró. a árvore é chamada loko e é morada do
vodum de mesmo nome, gerado pelo ca-
Na tradição nagô - ensina Juana
sal primeiro Mawu-Lissá. Nessa região,
Elbein dos Santos - as árvores estão
conforme G. Parrinder, alguns povos
sempre associadas aos primórdios da
depositam oferendas de comida ao seu
existência. Tanto que muitos relatos
pé; outros levantam templos ao seu lado
místicos dessa tradição começam com
e o protegem erguendo ao seu redor uma
a fórmula “no tempo em que os homens
cerca; e, sendo necessário derrubá-lo, é
adoravam as árvores...”.
preciso antes acalmá-lo com oferendas.
Crença co mum na trad ição
Mas, assim como os iorubás,
negro-africana é a de que todo espírito
esses fons, no Brasil conhecidos como
se toma de afeição especial por uma
jejes, parecem não considerar todos os
determinada árvore, que, assim, se sacra-
espécimes da árvore loko como vegetais
liza. Por isso é que pós de certas plantas,
sagrados em si mesmos. Entendem eles
pedaços de madeira e certas resinas, por
que elas podem, sim, ser moradas do
seu poder e força, constituem grande
vodum, mas não nascem já sacralizadas
parte do material empregado nas práticas
por ele. Elas só se tornam sagradas quan-
mágicas em África - como também nas
do são escolhidas por Loko para ser sua
Afro-Américas.
morada de¿ nitiva.
Por serem uma emanação direta
de Orisala, que é o orixá por excelência
NO BRASIL
da cor branca, essas árvores sagradas, en-
tre as quais se incluem alguns ìrokò, são
A tradição afro-brasileira conhe-
adornadas com uma tira de pano branco
ce muitas árvores sagradas. É o caso do
(ojá, que lhes é atada em volta do tronco).
cajapricu, árvore fossilizada que protege
E, segundo Juana Elbein dos Santos, um
o Ilê Axé Opô Afonjá, comunidade-
dos oríkí do írokó (o oríkí é uma espécie
-terreiro das mais antigas da Bahia; da
de poema-saudação em que os iorubás
cajazeira, árvore sagrada da Casa Grande
exaltam as características e qualidades de
das Minas, comunidade maranhense que
pessoas, vegetais e animais) evidencia
se destaca como o único lugar, nas Amé-
essa identidade entre ele e Orisala na sua
ricas, onde se cultuam voduns da família
forma de Ògìyan, Jovem) quando diz:
real do antigo Daomé; da ¿ gueira, que
“Ìrokò! Oluwere, Ògìyan Eleiju”, ou seja,
pertence a Exu e Obaluaiê; da árvore da
Ìrokó, árvore proeminente entre todas as
fruta-pão, que em alguns candomblés
outras, Ogíyan do seio da Àoresta”. jejes é consagrada ao deus-serpente Dã;
Segundo H. Deschamps, o ìrokò, da jaqueira, que pertence a Oxumarê e
símbolo da fecundidade, é sagrado em Apaocá, etc., etc.
Ir okò, o Deus-Ár vor e da Tr adição Afr o-Br asileir a
Nei Lopes 289

Importadas da África umas, palha-da-costa na outra; com um gorro de


como os pés de aridan, obi, orobô, etc.; palha na cabeça e dançando com passos
outras, nativas do Brasil e aqui rituali- complicados, quase de joelhos.
zadas, numa substituição simbólica de Nos terre iros que ad mite m
espécies exclusivamente africanas, essas sincretismo, ele é associado com o São
árvores podem ser morada de forças Francisco de Assis da tradição católica.
sobrenaturais, mas não se confundem E nas de raiz predominantemente banta,
com essas forças, ou seja, com os ori- como nos de candomblé angola ou con-
xás, inquices ou voduns que as elegem. go, Iroco é associado ao inquice Tempo,
Tal, entretanto, não acontece com Iroco que se sincretiza com São Lourenço.
(recriação do lokò jeje e do ìrokò nagô),
que é um orixá ¿tomorfo e antropomorfo,
um deus-árvore, en¿ m.
Pela inexistência no Brasil da REFERÊNCIAS
teca africana, Iroco é aqui personi¿ cado
pela gameleira branca (Ficus doliaria, CACCIATORE, Olga Gudolle. Dicionário de
M.). Nos terreiros, depois de consagrada cultos afro-brasileiros. Rio de Janeiro:
a raiz, a árvore recebe um ojá branco, Forense Universitária, 1977.
como na África, e aos seus pés são co-
locadas as oferendas rituais, inclusive DESCHAMPS, Humbert. Les réligions de
suas comidas prediletas, que são o ajabó, l’Afrique Noire. Paris: PUF, 1965.
feito de quiabo picado e batido com mel;
o milho branco e o feijão fradinho. PARRINDER, G. La réligion en Afrique
Quando imaginado antropo- Occidentale. Paris. 1950.
-mor¿ camente, Iroco é visto como um
orixá velho, usando bengala de madeira SANTOS, Juana Elbein dos. Os nagô e a
numa das mãos e espanta-moscas de morte. Petrópolis: Vozes, 1976.
Teor ia sobr e Ossaim, dentro da cultura re-
ligiosa africana, é a entidade ou orixá
Ossaim dono das plantas medicinais e litúrgicas.
É de fundamental importância para seus
seguidores e iniciados o cabal co-nheci-
mento de seus rituais, e, com esse conhe-
cimento de todas as plantas, seus nomes,
funções e uso espiritual, seus usos dentro
da farmacopéia e, especialmente, conhe-
cer o ritual que há que realizar antes e
durante a coleta das plantas.
Os iniciados nessa cultura são
chamados Baba olossainistas, ou Onishe-
gun, que são considerados curandeiros,
devido ao grande conhecimento e domí-
nio que têm sobre as plantas medicinais.
Segundo histórias ou itens que se
encontram no oráculo de adivinhação de
Ifá, Ossaim, por mandado de Olodumaré,
que é a suprema divindade, recebeu o se-
Rafael Zamora Díaz *
gredo de todas as plantas, e estas por sua
vez eram de sua propriedade. Portanto,
292 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

onde não estava Ossaim, as pessoas não Os olossainistas devem sempre


podiam ser curadas das doenças. fazer as coletas de madrugada e em
Consta-se que Xangô, devido estado de pureza. No ritual que precede
a uma grande epidemia que atingia as a coleta, devem-se falar palavras, rezas
pessoas de seu reino, pediu ajuda à sua e cantos, como por exemplo: “Ago Os-
mulher Iansã. Essa senhora, dona dos saim” , que quer dizer “Com licença,
ventos que fustigam Ossaim, sabia que Ossaim”; e também “Kuru Kuru Beke
este era o único conhecedor dos segredos Maribo Ossai, mariborere Maribo”, que
das plantas; por isso, os outros orixás signi¿ ca ³ + omem peTueno me fala de
andavam pelo mundo sem poder salvar dentro da névoa do monte”; e depois “Os-
aqueles que necessitavam. Foi quando saim Kukuru, Tibiritiyi a la Boniyera”,
então Iansã, com sua impetuosa força, que, segundo dizem, é como chamavam
levantou um terrível vento que espalhou Ossaim com vozes estranhas os homens
por toda a terra os segredos das plantas, que procuravam as sete plantas sagradas.
que eram guardados por Ossaim num Três delas serviam para o bem e três para
igba ou cabaça pendurada de uma árvore. o mal, e a sétima equilibrava o poder,
E foi assim que cada orixá se apoderou fazendo com que servissem para o bem
do grupo de plantas que não puderam ou para o mal; quer dizer, se essa planta
ser resgatadas por Ossaim. É por isso se unisse às do bem, servia para o bem, e
que dentro da religião africana todos os se se unisse às do mal, servia para o mal.
orixás têm suas plantas, mas nenhuma Uma das religiões mais antigas
cerimônia pode ser realizada sem a pre- que existem e que é de origem africana
sença de Ossaim. é o culto a Ifá. Esse culto é baseado num
Os olossainistas realizam um oráculo de adivinhação, constituído por
ritual antes de colher as plantas que vão 2 ddun ou signos, escritos Yer si¿ -
ser utilizadas em cerimônias ou em di- cadamente, e que recolhem o processo
ferentes tipos de cura. Essas coletas de universal.
força devem realizar-se com extremo cui- Dentro desse culto, existe Oru-
dado, para que continuem o crescimento milá, orixá dono do processo adivinha-
e for-talecimento das plantas. tório, o qual está estreitamente vinculado
Ossaim vive em lugares selva- a Ossaim. Segundo diferentes histórias
gens, onde as plantas crescem livremen- de Ifá, Ossaim é o escravo de Orumilá,
te, ou em Àorestas, com seu insepar Yel e este o utiliza por ser Ossaim o dono e
acompanhante Aroni, que é a entidade conhecedor das plantas e seus segredos,
conhecedora dos segredos da magia dentro de sua função como curandeiro
negra. farmacopaico.
Teor ia sobr e Ossaim
Rafael Zamora Díaz 293

Hoje em dia, quando o mundo


inteiro está realizando uma intensa cam-
panha pela conservação da ecologia, os
olossainistas, além de se esforçarem para
ter um cabal conhecimento das plantas e
de seu bom uso dentro da farmacopéia,
preocupam-se essen-cialmente com a
manutenção e a perduração da ecologia
mundial.
Eu, como cidadão e religioso,
faço votos de que perdure a ecologia
mundial, e peço a todas as forças da
natureza paz e unidade mundial.

* Rafael Zamora Díaz é afro-cubano residen-


te no Brasil e sacerdote de Ifá. Oni Shango
Oba Koin, Awo Orumila Ogunda Kete.
Foto: Roosevelt

Na foto, ao lado da presidente da Fundação Cultural Palmares, Dulce Pereira, o senador Abdias Nascimento agradece
a homenagem recebida (medalha de ouro Zumbi) na abertura do Seminário Internacional Rota do Escravo, que reuniu
intelectuais, artistas e militantes da causa negra na África e na Diáspora. Brasília, 18 de agosto de 1998
Patr imônio Em 1827, a mata Atlântica foi
histór ico na r ota rasgada por pés e mãos africanos para a
abertura da primeira estrada que ligaria
dos escr avos São Paulo e Minas Gerais ao litoral sul
do estado do Rio de Janeiro.
Milhares de escravos cruzaram a
região vindos da África, desembarcando
dos navios tumbeiros do comendador
Breves (rei do café), em seu porto parti-
cular situado em Mangaratiba, na restin-
ga de Marambaia. Ali eram recebidos e
aculturados para serem distribuídos pelas
19 fazendas de café da família Breves, ou
levados para o interior de Minas Gerais
e de São Paulo.
Por volta de 1830, tendo multi-
plicado em muito a fortuna da família, o
então Dragão da Independência,comen-
dador Joaquim José de Souza Breves, já
contava com mais de seis mil escravos
como sua propriedade.
298 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate

Va lendo- se da cond ição de do Instituto do Patrimônio Histórico e


amigo do imperador, manteve a fama Artístico Nacional - IPHAN.
da cidade de São João Marcos como
Em 1905, a Carris Ligth and
Princesinha do Vale do Paraíba, estra-
Power entra na região com todo o seu
tegicamente construída no coração da
poderio econômico de multinacional
Mata Atlântica em 1744. De arquitetura
e se instala na Vila do Parado, Distrito
riquíssima e singular, com a maioria das
de Itauebá (atuais Lídice e Rio Claro),
edi¿ cações construídas com pedras de
desvia o curso do rio Piraí e fecha acordo
cantaria, bem como suas pontes e seu
com os governantes da combalida São
sistema de aquedutos, famosos até hoje
João Marcos para a implantação da Bar-
por sua beleza e resistência à ação do
ragem de Tocos e a ampliação da cota de
tempo e depredações humanas.
represa, que se efetivaria em 1940. Com
A mão-de-obra negra especia- o destombamento de São João Marcos,
lizada construiu monumentos, teatros, aconteceu uma destruição mais grave do
casarões. Cultivou o café, o arroz, o mi- que a que ocorria naquele mesmo ano
lho, costurou roupas, consertou sapatos na Europa em conseqüência da Segunda
e reÀorestou a mata Atlântica, que foi Guerra. A Carris Ligth and Power, com
devastada para dar lugar ao “ouro negro” o ¿ m de monopolizar o fornecimento de
que embalou o sonho dos barões do café luz e água no Estado do Rio de Janeiro,
dessa região. expulsou cidadãos, a maioria negros,
Em 1888, quando ocorreu a dinamitou casas e prédios públicos,
abolição do trabalho escravo, São João trouxe a febre amarela para a região e
Marcos, que contava com 16 mil habi- conseguiu, com a fúria do lucro, sub-
tantes, teve sua população reduzida para mergir a historiografia, a identidade
7,3 mil e então começou a decadência da cultural e expropriar mais de duzentos
Princezinha do Vale. O ¿ m do ciclo do anos de memória, impactando de forma
café, a Lei Áurea e a vontade de alcançar negativa o equilíbrio social, econômico
além-mar levaram os negros a se afasta- e ambiental da Mata Atlântica.
rem por quase duas décadas da cidade, Essa história tem outros desdo-
só voltando na virada do século, já como bramentos que foram discutidos durante
mineiros ou artesãos, subindo e descendo encontro de pesquisadores com o sena-
a serra do Mar, contando histórias dos dor Abdias Nascimento, que apoiou de
sertões aos passantes e aos barqueiros imediato a continuidade dos estudos para
da costa verde. a implantação na região do Centro de
Patrimônio Histórico tombado Tradições Culturais Pluriétnicas da Mata
em 1938, São João Marcos é o único Atlântica – Trama Afro-Atlântica, que
caso de conjunto destombado na história dentre os principais objetivos, numa área
Patr imônio histór ico na r ota dos escr avos
Nei Lopes 299

que engloba 36 municípios, terá a missão


de “mapear os grupos remanescentes da
diáspora africana, bem como outros gru-
pos étnicos que habitam a região da mata
Atlântica brasileira, criando condições
para o resgate, o registro e a preservação
de séculos de memória, guardados pela
transmissão oral e pela cultura material
e imaterial dessas comunidades.”
Ceap lança Centr o
Cultur al de Identi- Com a presença de empresá-rios,
artistas, intelectuais e políticos negros,
dade Negr a dentre os quais os senadores Abdias Nas-
cimento e Benedita da Silva, realizou-se
no dia 15 de junho passado, no Paço
Imperial, o coquetel de lançamento do
Centro Cultural de Identidade Negra,
que será localizado à Rua da Lapa, em
um conjunto de três casas do início do
século XX, preservadas pelo Patrimô-
nio Cultural da Prefeitura Municipal do
Rio de Janeiro. A iniciativa do projeto
é do Ceap (Centro de Articulação de
Populações Marginalizadas) e tem como
objetivo básico promover a identidade
cultural da população afro-descendente,
estimular a comercialização de produtos
e serviços de demanda especí¿ ca do seg-
mento negro da população e estabelecer
uma base de auto-sustentação, incluindo
a infra-estrutura e programas do Ceap.
304 THOTH 5/ agosto de 1998
Movimento Negro Hoje

Para o primeiro pavimento foi


projetado um hall de múltiplo uso com
dez lojas, além de galeria para exposições
artísticas e um restaurante. No segundo
pavimento localizam-se o auditório, um
espaço para dança e eventos e um bar lo-
calizado no mezanino que será o ponto de
encontro durante os eventos. O auditório
servirá para sessões de cinema, palestras,
encontros musicais e teatrais.
O projeto foi realizado com base
em estudos de viabilidade econômica
encomendados pelo Ceap, que pretende
adquirir os imóveis e alugar as lojas aos
interessados. Os investimentos serão
realizados a partir de financiamento
pleiteado na Europa e Estados Unidos,
e a intenção é consegui-lo este ano para
iniciar as obras no início de 1999, com
previsão da inauguração para 20 de
novembro de 1999, Dia Nacional da
Consciência Negra. Com esse projeto,
a comunidade afro-descendente poderá
apresentar, comercializar, importar e
exportar produtos adequados aos negros,
que não costumam ser encontrados com
muita facilidade.
INVOCAÇÃO NOTURNA AO POETA GERARDO MELLO MOURÃO (OXÓCE)
Acrílico s/ tela - 152 x102 cm, de Abdias Nascimento, Buffalo, USA, 1972

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