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1998 PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Deusa Ma'at
PENSAMENTO DOS POVOS AFRICANOS E AFRODESCENDENTES
Gabinete do Senador Abdias Nascimento
Thoth
no 5 maio/agosto 1998
Thoth é prioritariamente um veículo de divulgação das atividades parlamentares do senador Abdias Nasci-
mento. Coerente com a proposta parlamentar do senador, a revista não poderia deixar de divulgar informações
e debates sobre temas de interesse à população afro-descendente, ressaltando-se que os temas emergentes
dessa população interessam ao país como um todo, constituindo uma questão nacional de alta relevância.
Thoth quer o debate, a convergência e a divergência de idéias, permitindo a expressão das diversas correntes
de pensamento. Os textos assinados não representam necessariamente a opinião editorial da revista.
V.; 25 cm
ISSN: 1415-0182
Apresentação....................................................................................................................11
Thoth .............................................................................................................................13
DEBATES
ATUAÇÃO PARLAMENTAR
Pronunciamentos
Dia Internacional dos Direitos Humanos ................................................................................65
Solenidade de outorga do Prêmio Franz de Castro Holzwarth - OAB/ SP .............................68
Denúncia da mentira cívica da Abolição .................................................................................73
Homenagem aos líderes da Revolta dos Malês de 1835 .........................................................85
Recebimento da Medalha Tiradentes na Assembléia Legislativa - RJ ....................................92
Solicita transcrição do artigo União contra o racismo de Vicentinho, da CUT .......................99
Duzentos anos da Revolta dos Búzios ..................................................................................107
DEPOIMENTOS
Ao proclamar, cerca de oitenta anos atrás, que o século XX seria marcado pelo
que chamou de “linha da cor”, o intelectual afro-norte-americano W.E.B. DuBois, um dos
maiores teóricos do pan-africanismo, mostrava clarividência ao perceber não somente a
importância que a questão racial assumiria nos cem anos subseqüentes, mas também sua
crescente dimensão internacional. Organizador dos primeiros Congressos Pan-Africanos,
DuBois identi¿ cava já então o caráter essencialmente semelhante do preconceito e da
discriminação que se abatiam sobre os africanos e seus descendentes, vivessem estes no
Continente Africano, na Europa ou em qualquer parte das Américas.
No Brasil, embora o pan-africanismo de DuBois, bem como o de Marcus Garvey,
fosse conhecido dos militantes afro-brasileiros mais informados, a dimensão internacional
da questão racial sempre foi negada por aqueles que defendiam - e que ainda defendem
- a idéia de que este país constitui um modelo à parte na área das relações raciais, uma
espécie de paraíso terrestre em que pessoas de todas as origens têm igual tratamento nas
diversas esferas da vida social. São os apóstolos da “democracia racial”, que continuam
sustentando - mesmo contra todas as evidências empíricas - a tese de que toda e qualquer
discriminação entre nós se deve ao fator classe, ou a outro qualquer, mas jamais ao fator
raça.
A verdade, contudo, é que no Brasil, tal como nos Estados Unidos da América -
para ¿ carmos apenas nas duas maiores nações multirraciais do continente -, raça e classe
interagem para determinar o status relativo de cada pessoa, sua posição no conjunto da
sociedade. Essa similitude, aliada à e¿ cácia dos modernos veículos de comunicação, faz
com que os eventos da esfera racial em cada um desses países exerçam inÀuência para
além das fronteiras nacionais, podendo inspirar atitudes e comportamentos, bem como
reações e respostas, evidentemente adaptadas aos seus respectivos contextos.
12 THOTH 5/ agosto de 1998
Apresentação
É nessa perspectiva que este número de Thoth traz três artigos importantes, as-
sinados por renomados intelectuais afro-norte-americanos. Trata-se de textos publicados
originalmente na revista Renaissance Noire, editada pelo Instituto de Assuntos Afro-
-Americanos/Programa de Estudos Africanos da New York University, sob a direção
do professor Manthia Diawara, que já teve um artigo seu traduzido no número anterior
desta revista. Referem-se à Marcha de Um Milhão de Homens, realizada há dois anos na
cidade norte-americana de Washington. Convocada pelo polêmico líder dos muçulmanos
negros, ministro Louis Farrakhan, a Marcha acabou atraindo as atenções de todos e levan-
do à capital dos Estados Unidos centenas de milhares de negros de todas as orientações
possíveis em matéria de religião e de política. Também obteve o apoio das mulheres afro-
-americanas, que acabariam realizando, meses mais tarde, sua própria versão da Marcha,
igualmente focalizada neste número de Thoth.
Eventos dessa natureza costumam ter um valor simbólico que ultrapassa os
objetivos imediatos de seus organizadores, pois envolvem sentimentos e emoções que
só podem vir à tona em grandes manifestações de massa, propiciados pela percepção de
se pertencer a uma ampla coletividade - em verdade, a uma nação - identi¿ cada pelas
condições de vida e também pelos sonhos e aspirações. Como sempre gosto de enfati-
zar, apenas para reavivar memórias, não foram os norte-americanos quem nos ensinou
a lutar por nossos direitos. Na verdade, por muito tempo estivemos à frente deles nesse
aspecto - como prova a nossa Frente Negra dos anos trinta, para não falar na República
de Palmares, cujos fundamentos foram lançados num período em que nem mesmo havia
um sistema escravista na América do Norte. Mas não podemos deixar de reconhecer o
caráter inspirador de suas estratégias de luta nos últimos trinta anos, as quais nos são in-
dubitavelmente úteis pelo menos como referencial na busca de nossos próprios caminhos.
AN
Após o tricentenário de Zumbi dos
Palmares, em 1995, marcado pela Marcha contra o
Racismo, pela Cidadania e a Vida e por inúmeros acon-
tecimentos de âmbito nacional e internacional em todo
o País, veri¿camos que a questão racial no Brasil atinge
Thoth um novo estágio. Setores da sociedade convencional
reconhecem o caráter discriminatório desta sociedade,
e o debate passa a focalizar as formas de ação para com-
bater o racismo, ultrapassando o patamar que marcou
a elaboração da Constituição de 1988: a declaração de
intenção do legislador dá lugar à discussão de medidas
concretas no sentido de fazer valer tal intenção.
Nesse contexto é que o senador Abdias Nasci-
mento assume, em março de 1997, sua cadeira no Senado
Federal, na qualidade de suplente do saudoso Darcy
Ribeiro, intelectual sem par que sempre se manteve
solidário com a luta anti-racista. O mandato do senador
Abdias, como sua vida ao longo de uma trajetória ampla
de luta e de realizações, dedica-se prioritariamente à
questão racial, com base numa verdade que o movimento
negro vem a¿rmando há anos: a questão racial constitui-
-se numa questão nacional de urgente prioridade para a
construção da justiça social no Brasil, portanto merece-
dora da atenção redobrada do Congresso Nacional.
14 THOTH 5/ agosto de 1998
presenteados com garapa para beber. raízes religiosas foram então reduzidos
A safra começara. e subordinados aos valores e formas do
branco e sua cosmogonia foi, de certa
Essa teologia da escravidão,
forma, absorvida e dominada pela cultura
do trabalho escravo e da matéria-prima do senhor de escravos.
que se transformava em riqueza para os
brancos cristãos impregnou, parece-nos, Se dentre os vários povos africa-
todas as partes envolvidas: aos brancos, nos que sofreram o processo de escravi-
europeus e cristãos, garantiu a mora- zação, de diáspora forçada em direção ao
lidade dos processos, a bênção divina Brasil, tomarmos como exemplo o povo
iorubá - o território iorubá estende-se
sobre a riqueza e a idéia de supremacia
pelos países Nigéria, Togo e República
espiritual, racial e sociocultural; aos ne-
do Benin (antigo Daomé) —, vamos
gros africanos, reduziu a magnitude de
encontrar em sua cosmovisão e cultura
seu panteão, desenvolveu a idéia de um
religiosa a ¿gura de Olodunmare, espírito
deus de segunda classe, levou à redução in¿nitamente perfeito, que existe por si
da valia e grandeza das divindades (ori- mesmo e de quem o universo e todos
xás, voduns, inquices), espíritos puros os outros seres recebem a existência.
criados pelo Deus base de sua religião Quando Olodunmare nomeia-se a si
monoteísta, como princípios universais mesmo, nos vários signi¿cados que a
no processo da Criação. decomposição de seu nome nos traz, ele
Ao lado da idéia de supremacia se denomina “Eu Sou Aquele que É”.
do Deus branco ou da incorporação do No entanto é natural para todos,
conceito politeísta - em que as divin- assim como o é para todos os povos que
dades transformaram-se em deuses —, dispõem de uma teologia desenvolvida,
o sincretismo então ocorrido levou à a idéia de que não podem compreender
comparação dessas divindades com os Olodunmare. Na medida em que ele é in-
santos católicos, pessoas que viveram ¿nito, princípio e ¿m de todas as coisas,
vidas segundo os valores da Igreja Ca- encontra-se além dos limites humanos
tólica e que, por isso mesmo, após sua a sua compreensão. Podem, isso sim,
morte, foram santificadas, reduzindo conhecê-lo por meio de seus atributos e
assim o tamanho, a dimensão das di- deduzir a sua existência mediante suas
vindades. Isso, sem dúvida, terminou manifestações no Universo e nas coisas
criadas.
por contribuir para a construção de uma
representação distorcida e, reduzindo É a partir desse processo do
a dimensão das divindades, endossou conhecer que os iorubás a¿rmam ser
mais uma vez o estereótipo dos africanos Olodumare “o Único no céu e na terra,
como inferiores, contribuindo assim para o Supremo sobre todos”, e o chamam por
afetar a auto- estima e a auto-imagem dos esse nome referindo-se particularmente
afro-descendentes. Associa-se a isso que às suas características de “Senhor de
seus valores, sua ancestralidade e sua todas as coisas”, “o Soberano que está
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Debates
mesmo tempo, é ele que mantém o Uni- se mostra santo quando manifesta sua
verso em movimento. Ele é o padrão e o glória em obras prodigiosas. Costumam
movimento, origem de todos os ciclos e dizer que os trabalhos de Olodunmare
sua regulação. são poderosos e maravilhosos usando a
Ele é Oba a-se-kan-ma-ku, o Rei expressão “Ise Olorun tobi” - “os traba-
que trabalha para a perfeição, Autor de lhos de Olorun são poderosos”.
todas as coisas e de todos os ventos. Por Olodunmare é o Supremo Juiz
¿m, Ele é o Elemi, o Senhor do Espírito,
Olodunmare é chamado de “Oba
o Senhor da Vida.
Adake Dajo”, “O Rei que mora acima e
Olorun, nome provavelmente que executa os julgamentos em silêncio”,
resultante da contração Olo¿n+Orun, signi¿cando que ele controla o destino
traduz-se literalmente por “o Rei ou dos homens e a ordem da Criação, em
Governante do Orun”. É de entendi- que cada um recebe o que é por ele de-
mento que temos aí signi¿cativamente terminado.
exposta uma particular manifestação
de Olodunmare, enquanto “o Criador e O lodunmare revela-se como
Senhor da Suprema Realidade”. Ora, a onisciente, onipresente também em sua
efetiva realidade da Criação é o “mundo justiça e em seu juízo. Assim, assiste e
sobrenatural”, ou Orun, mundo em que a acompanha a sua obra, mantém-se ativo
Criação se processa, em que tudo é cria- e presente em todos os seus tempos.
do, em que a realidade do Aiye preexiste Bolaji Idowu, em sua obra Olo-
no pensamento do Deus Criador. dunmare - God in yoruba Belief, acres-
Olodunmare é Sagrado centa a essa lista de atributos outros que
considera igualmente importantes e que,
Todos os atributos de Olo Olo- efetivamente, terminam por caracterizar
dunmare levam necessária e obrigato- Olodunmare em toda a sua dimensão e
riamente à condição de reconhecer a sua essência.
natureza de Sagrado. É indissociável de
sua condição de Criador Supremo a sua Ora, se até aqui vimos que a
sacralidade. Acima de tudo e de todos, concepção de um Deus único forma
a base monoteísta da cosmovisão io-
merece de toda a sua Criação louvor
rubá, podemos perguntar, indo além,
permanente e adoração. Ele de¿ne, por si
se também a idéia de um Deus trinitá-
mesmo, conceitos como pureza, retidão
rio, base lógica presente em todas as
e transcendência. Por isso ele é conheci-
religiões consideradas resultantes de
do como “Oba Mimo” - o “Rei Puro”.
superior elaboração teológica, absolu-
Olodunmare revela-se como ser tamente importante e signi¿cativa no
in¿nitamente santo, necessário e oniper- entendimento de uma criação que se
feito, absolutamente singular e único. Ele processa e se explica dialeticamente,
transcende todas as coisas. Olodunmare está presente ou ausente na visão
A questão do Deus único nas religiões
africanas e afro-descentens 31
Falagbe Esutunmibi / José Tadeu de Paula Ribas
Ela então se irritou, amarrou uma corda entrega”. De Orunmila dizemos “A ri ihin
até chegar ao Orun ri ohun, bi Oba Olodunmare” - “Aquele
Ela pendurou-se na corda e foi embora que vê tudo, que está aqui e acolá, como
para o Orun o Rei Olodunmare”.
Os seres humanos olharam para a terra Entende-se que Orunmila co-
Não viram Ela nhece tudo sobre todas as divindades
Não há quem possa ser como Ela para do panteão, assim como todo o destino
a gente
da humanidade, já que estava presente
Agora os seres humanos gritam para que
quando todos foram criados, conhecendo
Ela volte
a sua essência. Diz-se que “Se um ho-
Venha devagar, venha ouvir as nossas
mem se desvia do caminho, é Orunmila
saudações
aquele que indica a cura; se uma família
Ela ¿lho de Osin, Orisa ¿lho de Osin.
está em conÀito, é Orunmila aquele que
Existe uma ligação extrema- mostra a união”. É ele que conhece todo
mente forte entre Ela e Orunmila. Na o passado, o presente e o futuro, podendo
medida em que Ela apresenta-se como ser buscado tanto para assegurar que a
o princípio da ordem, da reti¿cação dos felicidade presente seja mantida, como
destinos infelizes, Orunmila utiliza-se para que um destino infeliz seja reti¿-
desse princípio para cumprir o seu pa- cado. Assim, uma de suas saudações é
pel de grande preservador da felicidade “Okitibiri a-pa-ojo-iku-da”, ou seja, “O
e reti¿cador dos destinos infelizes. É grande alterador, aquele que altera até o
como se, numa analogia entre ambos, dia da morte”.
pudéssemos dizer que, enquanto Ela é A seguir, transcrevemos parte
a “salvação”, Orunmila é o “salvador”, de um adura (reza) para Orunmila e que
formando os dois a maneira, ou a ponte reflete também muito da dimensão e
relacional, com que Deus, Olodunmare,
natureza acima expostas:
estabelece com a sua Criação um vínculo
que garante a realização permanente de Orunmila ajana
seu projeto e, ao mesmo tempo, de¿ne Ifa olokun
para os homens a construção de uma A soro dayo
história da salvação-história que mais do Eleri ipin
que nada reÀete a história do desenvol- Ibikeji eledunmare
vimento da humanidade. Orunmila akere finu sogban
cerebração de primitivo genial, foi como nos ritos nagô, com a linguagem corporal
que a revivescência de um núbio contem- incorporada pelo gesto, a dança, o olfato,
porâneo de David ou ao menos de Salo- o sabor e o som, o cheio e o vazio, com
mão... mas que houvesse renascido no a cerimônia das distâncias corporais, em
Ocidente e se desenvolvesse num meio que o hálito e a respiração podem dar
cuja civilização é toda de empréstimo, já vida à matéria inerte e alcançar as últimas
capaz de inspirar grandes requintes a um profundidades do ser. “O forno do ser” -
artista, porém, no fundo por modo muito como gosta de dizer o poeta Godofredo
falseado e ingênuo.” Iommi.
Tasso da Silveira, como Andrade Refere o autor a observações do
Murici, que tive a honra e o deleite de erudito Muniz Sodré sobre procedimen-
freqüentar, durante anos, nos encontros tos cosmogônicos da linguagem sagrada
diários do famoso Café Gaúcho, na Rua dos ritos africanos em que o corpo é o
São José, centro do Rio, e ainda e sempre ponto de intersecção entre o grupo e o
Nestor Vítor, lembram o heroísmo medu- cosmo. A palavra - expressão suprema do
lar da poesia de nosso João da Cruz. No corpo - matéria-prima do verso, opera, no
estudo do concorrente O Assinalado, este canto de Cruz e Sousa, aquele Egungum
heroísmo é exposto na odisséia do negro sagrado, que torna visíveis os espíritos
poeta exilado e aderido aos perigos e às
ancestrais e transmite a graça de comu-
glórias de sua viagem ( “corpo crivado
nicar aos vivos a vontade e o poder dos
de sangrentas chagas - que atravessas o
mortos.
mundo soluçando”) - viagem ao céu e
ao inferno, como no turismo patético do Cruz e Sousa, lembra o autor,
Dante. Os passos de João da Cruz e Sou- possui um vasto repertório de referências
sa são aqui contados com minúcias de aos mortos. Como em “Vão arrebatamen-
interpretação de que só a grande crítica to”:
é capaz, contemplando às vezes subs- todas as vozes que procuro e chamo
tantivos isolados, preposições pênseis, ouço-as dentro de mim porque as amo.
sílabas de pontes, vogais e consoantes
ocorrentes, na precisão dos leitores da Ou ainda em “Monja negra”:
Cabala sagrada que, como no precioso Hóstia negra e feral da comunhão dos
livro de Marc Alain Ouaknin, sabem que mortos.
a beleza da palavra chega às vezes a ser E em “Luar de lágrimas”:
um concerto para algumas consoantes e
Ó mortos meus, ó desabados mortos!
alguma vogal.
Chego de viajar todos os portos
O autor vai ao âmago do sim- Volto de ver inhóspitas paragens
bolismo de Cruz e Sousa - a correspon- As mais profundas regiões selvagens
dência dos cinco sentidos que, antes de - Andei errando por funestas tendas
Baudelaire e Rimbaud, estava anunciada Onde das almas escutei as lendas
52 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
__________
* O referido relatório está transcrito, sob o título “Prêmio Cruz e Sousa de Monogra¿ a”,
no início desta seção da revista.
O senador Abdias Nascimento faz pronunciamento de abertura da exposição no Salão Negro
do Congresso Nacional, 3 de junho de 1998. Entre os presentes, o presidente do Senado
Federal, senador Antônio Carlos Magalhães, ladeado pelos senadores Bernardo Cabral (à
sua direita), Benedita da Silva e Romero Jucá (à sua esquerda)
De 3 a 29 de junho deste ano, o
Abdias expõe no Senado Federal foi palco da exposição
Pinturas Afro-Brasileiras, com 53 tra-
Senado suas pintu- balhos do senador Abdias Nascimento.
r as afr o-br asileir as Realizada, por coincidência, no Salão
Negro daquela casa legislativa, a mostra
reuniu pinturas produzidas desde os anos
60, nos Estados Unidos, na África e no
Brasil, tendo como tema central a rica
cosmogonia afro-brasileira, representada
pelas ¿ guras dos orixás.
Na visão do senador Abdias
Nascimento, sua obra é ao mesmo tempo
uma celebração das tradições africanas
e uma tomada de posição frente a uma
estética eurocêntrica, fundada nos câno-
nes da arte greco-romana, que classi¿ ca
como “pitoresco”, “folclórico” ou “in-
gênuo” tudo aquilo que foge aos seus
estreitos padrões. Ignora-se, dessa forma,
a seminal contribuição da arte africana à
chamada arte moderna, declaradamente
inspirada na economia de formas e na
60 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
cidades que visitei ou expus, que vejo uma cultura especí¿ ca (e não exótica): a
algo surpreendente. Não há, dentro do afro-brasileira.
seu espaço pictórico, contradição entre
“Falemos agora da ação militan-
duas naturezas de linguagem plástica te negro-brasileira. Abdias do Nascimen-
diferentes. A Abstração e a Figuração to, neste particular, desde a Frente Negra,
habitam juntas sem conÀitos. Meio e ¿ m nos anos 30. Passando pela criação do
na sua obra estão bem unidos. Teatro Experimental do Negro nos anos
“Sua exposição pode partici- 40, com Ruth de Souza e outros. Na sua
par antropológica (o termo aqui não é arte, nos seus ensaios, nas conferências
redutor), como de uma coletiva ao lado e seminários. Nas suas reivindicações
de artistas consagrados. Somente como sociais e agora na Câmara, possui uma
pintura, embora seja uma pintura que larga folha de serviço em relação aos seus
deseja e consegue nos informar sobre irmãos: afro-descententes.”
Dra. Teodosina Ribeiro entrega a láurea ao senador Abdias Nascimento, na solenidade de outorga do prêmio Franz de Castro
Holzwarth, 1997. Salão Nobre da Sede da Ordem dos Advogados do Brasil, Secção São Paulo, 9 de dezembro de 1997
Pr onunciamentos Discur so pr ofer ido no Senado Feder al
em 10 de dezembr o de 1997.
Senhor Presidente,
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
há apenas quatro anos, que ¿ cou para a a esse respeito: um deles, de autoria de
história como a chacina da Candelária. um relator especial enviado ao Brasil
Em ambos os casos, as vítimas foram se- pelo Programa de Ação para a Terceira
res humanos lançados literalmente à rua Década de Combate ao Racismo e à
da amargura por uma sociedade injusta Discriminação Racial, mostrando uma
e desigual. Em ambas as situações, não situação muito distante da pretensa
se precisa sequer veri¿ car a aparência harmonia defendida pelos apóstolos da
deles para se ter certeza de serem todos, chamada “democracia racial”; o outro,
ou quase todos, componentes de um apresentado pela representação o¿cial do
segmento que ¿ gura com destaque em Governo brasileiro àquela Organização,
todas as tenebrosas estatísticas que situ- pintando as relações raciais em nosso
País com os tons róseos tradicionais e
am o Brasil entre os campeões mundiais
a¿ rmando um repúdio o¿ cial ao racis-
da injustiça e da desigualdade: o dos
mo que, no entanto, jamais se traduziu
brasileiros descendentes de africanos,
em ações concretas em favor do grupo
desproporcionalmente representados en- majoritariamente discriminado.
tre as vítimas de outras matanças, como
as de Vigário Geral e do Carandiru. Acostumado, em mais de seis dé-
cadas de luta pela igualdade e a dignidade
Dias atrás, notícia também pu- dos afro-brasileiros, a ser acusado de
blicada nos principais jornais do País “ressentido”, “complexado” ou “racista
divulgava um relatório da Comissão de às avessas” - para ¿car nos adjetivos mais
Direitos Humanos da Organização dos comuns com que me têm distinguido os
Estados Americanos (OEA) que aponta defensores da supremacia branca, quase
não apenas a violência e a desigualdade sempre disfarçados de “humanistas” ou
da sociedade brasileira, aspectos que já “universalistas” -, é com satisfação que
nos acostumamos a ver denunciados em venho percebendo sinais de mudança em
diversos foros internacionais. Também nossa sociedade. Parece que ¿ nalmente,
expõe o racismo e a discriminação como ao impulso das idéias ardentemente
elementos-chave na composição desse defendidas pelo Movimento Negro e
quadro, o que se agrava pela di¿ culdade apoiadas por seus aliados, setores de
e relutância dos brasileiros em sequer nossas elites intelectuais e políticas co-
admitir a existência de problemas dessa meçam a se conscientizar da necessidade
natureza. de deixar de lado as a¿ rmações vazias e
começar a construir uma nova sociedade.
Ainda recente mente, co mo Uma sociedade baseada no respeito aos
membro da delegação do Congresso direitos humanos de todos os seus seg-
brasileiro que visitou as Nações Unidas, mentos, cuja diversidade étnica se passa a
por ocasião da qüinquagésima segunda encarar, não como entrave a ser superado
sessão de sua Assembléia Geral, tivemos por um assimilacionismo maldisfarçado,
acesso a dois documentos emblemáticos mas como verdadeiro patrimônio de
Pr onunciamentos
Dia Internacional dos Direitos Humanos 67
uma humanidade ao mesmo tempo una Bragantina, pelo despertar do seu povo
e multiforme. na dedicação ao resgate da dignidade
É nesse contexto que registro dos encarcerados, e à Procuradora
a homenagem por mim recebida - em Flávia Piovesan, pelo compromisso de
nome de todo o povo afro-brasileiro - no idéias e de lutas na defesa dos direitos
dia de ontem, em São Paulo, quando a fundamentais do ser humano. Nesse
secção local da Ordem dos Advogados sentido, cabe destacar aqui o empenho e
do Brasil me concedeu, em função de a dedicação do Presidente da OAB/São
minha luta em favor da igualdade racial, Paulo, Dr. Guido Andrade, bem como
a menção honrosa do Prêmio Franz de do Presidente da Comissão de Direitos
Castro Holzwarth/1997. Instituído em Humanos daquela entidade, Dr. Jairo
1982, com o propósito de laurear aqueles Fonseca. Essa homenagem prestada a
que se destacam na defesa intransigente um militante afro-brasileiro signi¿ ca,
dos direitos humanos, o Prêmio Franz portanto, o reconhecimento de nossa luta
de Castro Holzwarth - cujo nome evoca e a adesão a esta de setores fundamentais
um advogado metralhado pela polícia para que possamos alcançar a verdadeira
paulista quando atuava como mediador harmonia racial, baseada na solidarieda-
num motim de presos em Jacareí - tem de e no respeito mútuos. Assim, solicito
distinguido pessoas identi¿cadas com as à mesa seja transcrito integralmente nos
causas mais nobres em nosso País. Este Anais desta casa o discurso que proferi
ano, o prêmio foi concedido ao Rabino ao receber essa homenagem.
Henry Sobel, pela promoção do ecume-
nismo e da paz entre os povos, e as duas
outras menções honrosas à Comunidade Axé!
68 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
há discriminação. Os racistas são vocês, criadores de caso, num país que, a¿ nal,
nos diziam; a discriminação no Brasil foi tão generoso com seus negrinhos a
não é racial, é social e econômica, veja o ponto até de permitir-lhes o acesso ao
caso do Pelé, vocês negros reacionários leite de suas mães, depois de satisfeitos
querem dividir a classe operária. Ainda os ¿ lhinhos brancos do senhor.
hoje, invocam a nova raça criada pelo
Não sei se é ironia do destino
luso-tropicalismo no Brasil, como se
ou vingança da história o fato de estar
não houvesse miscigenação na África
aqui em São Paulo recebendo esta ho-
do Sul ou nos Estados Unidos; esquecem
menagem, pois foi São Paulo que tantas
ou omitem que a miscigenação em todo
vezes me prendeu, me jogou nos seus
regime escravista e colonialista é fruto
da dominação sexual da mulher subju- cárceres, me agrediu, me expulsando
gada, expressão máxima da dominação do Exército sob acusação de desordeiro
econômica, cultural, política e policial por ter resistido à discriminação racial.
dessa mulher e de seu parceiro homem. Quantas noites em delegacias, quantos
A árdua luta dos afro-brasileiros contra interrogatórios, quantos anos tranca¿ ado
o regime escravista nunca foi vista como na penitenciária. Em São Paulo iniciei
luta a favor dos direitos humanos. Nossa minha jornada de luta contra o racismo,
denúncia da falsa abolição que nos atirou denunciando o racismo da Guarda Civil
à rua e nos excluiu do mercado de traba- paulista que aceitava só brancos. Em
lho livre, trazendo imigrantes europeus São Paulo aliei-me à Frente Negra, par-
não só para ocupar os empregos nesse ticipando de seus atos públicos contra a
mercado como também para embranque- discriminação. Nos bares e barbearias,
cer a população, nunca foi ouvida como nos bailes, no aluguel de moradia, no
uma denúncia de violação dos direitos emprego, e em toda parte, brigava contra
humanos. Nosso grito contra a violência o racismo, fui preso por desordem, fui
policial racista, contra esse sistema de espancado nas masmorras do Gabinete de
justiça racista que prende os negros e Investigações paulistano. Em Campinas,
solta os brancos, nunca foi ouvida como ajudei a organizar, em 1938, o Congresso
um grito a favor dos direitos humanos. Afro-Campineiro, evento importante na
Nossa luta para incluir nos currículos denúncia do racismo explícito praticado
escolares uma imagem digna do ser naquela cidade. Na Penitenciária, cum-
humano de descendência africana nunca prindo pena como condenado à revelia,
foi reconhecida como contribuição ao fundei o Teatro do Sentenciado, minha
desenvolvimento dos direitos humanos primeira iniciativa no campo da drama-
no Brasil. Antes, essas iniciativas nos- turgia, que mais tarde daria novos frutos
sas são vistas – ainda hoje, quero frisar no Teatro Experimental do Negro. Por
– como manifestação dos complexos isso, me emocionei muito ao veri¿ car
psicológicos de uma gente ressentida, ou que hoje teria a oportunidade de assistir
então como a baderna de um bando de à apresentação do Grupo de Teatro da
70 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
Cadeia Pública de Bragança Paulista. bou, que continua ainda em pauta, talvez
Por isso também me orgulho muito de ser de forma mais sutil e por isso mais e¿caz.
homenageado em nome de alguém que
Nós temos contado, em nossa
morreu junto aos presos, na luta pelos
luta, com muitos aliados, e entre esses
seus direitos.
aliados estão os judeus, um povo tam-
Não quero ficar apenas invo- bém duramente discriminado, vítima
cando o passado. Quem acredita que o de holocausto, com quem temos muito
racismo no Brasil é problema superado em comum. Além da experiência de
está redondamente enganado. Hoje, so- genocídio, temos em comum aquela da
mos 59% da população, de acordo com diáspora, o processo de dispersão for-
dados da DataFolha, e temos os salários
çada de nossa gente pelo mundo afora.
mais baixos, os maiores índices de anal-
Nossas comunidades em diversos países
fabetismo, o menor acesso ao ensino
sofrem agressão e discriminação em
superior, a menor participação nos níveis
mais altos de renda, as maiores taxas de conseqüência da sua identidade étnica
mortalidade, a maior concentração nos e cultural. Também temos em comum o
presídios, e assim por diante. Os números fato de nossas formas de religiosidade
são de conhecimento público e de fácil serem diferentes da norma que prevalece
constatação por qualquer pessoa sensível na sociedade ocidental. nossas religiões,
que caminhe pelo Brasil de olhos abertos; mal compreendidas, são alvos de discri-
portanto não vou me alongar citando- minações especí¿ cas e são invocadas
-os aqui. Apenas quero dizer o que os como motivo de discriminação contra
fatos comprovam: a questão racial não nós. As histórias dos nossos povos são
é um problema dos negros; é, hoje, uma diferentes, mas a experiência de discrimi-
questão nacional, matéria fundamental nação, ódio e violência é a mesma na sua
de direitos humanos. É talvez o problema essência. O recente e atual crescimento
mais importante de direitos humanos dos grupos neo-nazistas e supremacistas
no Brasil atual. Nós afro-descendentes brancos, bem como do xenofobismo
não somos apenas mais uma minoria europeu nos atinge igualmente. Por isso,
entre tantas outras. Somos a maioria da
considero muito apropriado o gesto da
população brasileira, e nossa situação
OAB, secção de São Paulo, de incluir
não pode ¿ car à sombra de outras mais
hoje o povo afro-brasileiro no seu rol
destacadas na mídia e na memória cole-
tiva. O maior holocausto perpetrado na de defensores dos direitos humanos,
história da humanidade foi o holocausto no mesmo ato em que homenageia esse
dos povos africanos, um genocídio que bravo e valente rabino Henry Sobel.
durou cinco séculos, ainda dura hoje, e Aproveitando esta oportunidade, quero
que conta, além de centenas de milhões convidar o rabino a mergulhar conosco
de vítimas, uma história incomparável de nesta luta comum, uma luta em que o
destituição econômica, política, cultural diálogo aberto, o esforço de compreensão
e religiosa. Um genocídio que não aca- mútua, e a sensibilidade para a essência
Pr onunciamentos
Menção Honrosa - Prêmio Franz de Castro Holzwarth 71
de nossa luta para além das diferenças de ações concretas em benefício de nos-
históricas e materiais podem, não tenho sos povos, na continuação desse diálogo
dúvida, redundar em grandes ganhos para com o objetivo de defender os direitos
nossos dois povos. Já tive oportunidade, humanos em nosso país e no mundo.
no Rio de Janeiro, de participar no Se-
minário Interétnico de Direitos Humanos Acreditamos no diálogo, na
e Cidadania, realizado no Hotel Othon tolerância, na solidariedade — formas
Copacabana, Rio de Janeiro, em abril de ativas do amor — na construção de uma
1997, oportunidade em que membros das cultura de paz para toda a humanidade.
comunidades judaica e afrodescendente
trocaram experiências e formularam
propostas de futuros trabalhos. Pensamos Axé!
que, naquele evento, um passo foi dado
na direção de construir uma reflexão
importante em comum. Creio que ainda
teremos muito a desenvolver no sentido Abdias Nascimento
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 13 de maio de 1998
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
O poeta Carlos Assumpção declama seu clássico poema afro-brasileiro “Protesto” no 3o Congresso
de Cultura Negra das Américas (São Paulo, 1982)
Pr onunciamentos
Abdias defende uma nova abolição 79
quotas, forma mais incisiva de ação com- ignorância e o atraso. Mas estamos dis-
pensatória que constitui a essência do postos a levar nossa luta a todos os foros,
meu projeto de lei. O Presidente foi além nacionais e internacionais, e a conduzi-
dessa declaração e a¿ rmou literalmente: -la, como alguém já disse, “por todos os
“Havendo duas pessoas em condições meios necessários”.
iguais para nomear para determinado Assim, neste 13 de maio, fa-
cargo, sendo uma negra, eu nomearia zemo-nos presentes nesta tribuna, não
a negra.” Como é curioso, para dizer o para comemorar, mas para denunciar
mínimo, observar correligionários do uma vez mais a mentira cívica que essa
Presidente aqui no Senado manifestando data representa, parte central de uma
idéias e atitudes absolutamente contrárias estratégia mais ampla, elaborada com a
às de seu suposto líder e utilizando, para ¿ nalidade de manter os negros no lugar
isso, todo um arsenal de argumentos ou que eles dizem ser o nosso. A comuni-
intempestivos, ou equivocados, ou desin- dade afro-brasileira, porém, já mostrou
formados - pois não quero acreditar que claramente que não mais aceita a con-
sejam maliciosos. dição que nos querem impingir. Mais
Ao mesmo tempo, pesquisa uma prova disso foi dada na madrugada
realizada pelo prestigioso instituto de de hoje, quando o Instituto do Negro
Padre Batista, juntamente com dezenas
pesquisa Datafolha, e publicada à página
de outras organizações, realizou em São
46 do livro Racismo cordial, revela não
Paulo a segunda Marcha pela Democra-
apenas que praticamente metade dos bra-
cia Racial, desfraldando a bandeira da
sileiros de todas as origens étnicas aprova
igualdade de oportunidades para os afro-
a ação compensatória, mas que essa
-descendentes. Assim, ao mesmo tempo
aprovação chega a 52% entre aqueles que
em que denuncia as injustiças de que
admitiram ter preconceito em relação aos é vítima, nossa comunidade apresenta
negros. Muito signi¿ cativo em função da reivindicações consistentes e viáveis para
cortina de desconhecimento que cerca o a solução dos seculares problemas que
tema, esse resultado indica que o País enfrenta. Reivindicações, como a ação
está mudando, e mais rapidamente do compensatória, capazes de contribuir
que se quer admitir. E esta Casa, cujos para que venhamos a concretizar, com
membros têm o dever de acompanhar e o apoio de nossos aliados sinceros, a
até mesmo antecipar as mudanças que o segunda e verdadeira abolição.
País quer e necessita, não pode ¿ car se
ancorando em velhos chavões para man- Axé!
ter um estado de coisas que a maioria da
sociedade quer ver superado. Sabemos,
eu e meus companheiros de luta, que é
árdua a batalha que temos pela frente,
no confronto com o reacionarismo, a
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 14 de maio de 1998
Senhoras e Senhores Senadores,
Sob a proteção de Olorum, inicio
este pronunciamento.
çulmana, introduzida pelos comerciantes elemento humano que poderia dar conti-
árabes, acabou sendo adotada pela elite nuidade à saga civilizatória africana. Foi
governante, embora fortemente mesclada assim que os malês, nome genericamente
com elementos das religiões autóctones. atribuído aos africanos islamizados,
O povo, entretanto, permaneceu ¿ el, em vieram parar no Brasil, especialmente
sua maioria, às crenças ancestrais. Dos na Bahia, região de maior concentração
vários Estados organizados na região ao das etnias negro-mulçumanas neste País.
longo de quase dois mil anos, três se des-
Na verdade, a Revolta dos Ma-
tacam: o reino de Gana e os impérios do
lês de 1835 foi o ponto máximo de uma
Mali e de Songhai. Sua riqueza cultural
série de rebeliões iniciadas no princípio
pode ser avaliada pelo fato de a cidade
do século XIX, lideradas por africanos e
de Tombuctu, na curva do rio Níger, na
afro-descendentes praticantes do islamis-
atual República do Mali, abrigar, em
mo. Alimentadas pelo espírito do Jihad,
pleno século XIV, a universidade de
ou Guerra Santa, fundamentavam-se
Sankore, aonde acorriam intelectuais
todas elas na luta pela liberdade diante
muçulmanos de todo o Norte da África e
de inimigos não apenas de outra raça e
do Sul da Espanha - na época dominado
cultura, mas também de uma religião,
pelos mouros - para estudar Matemática,
a cristã, por eles vista como pagã. Se-
Filoso¿a, História e Direito Islâmico. Por
gundo os registros, a primeira dessas
essa época, a atividade mais lucrativa em
rebeliões eclodiu a 28 de maio de 1807.
Tombuctu era o comércio de livros.
Armados de arcos, Àechas, facões, pis-
Em meados do século XV, com tolas e fuzis, africanos da etnia haussá
a derrota de Songhai ante os exércitos enfrentaram portugueses e brasileiros das
marroquinos, esse período brilhante da forças coloniais e, embora derrotados,
História Africana chegou ao ¿m. Não por demonstraram ser não somente valentes
acaso, no momento em que ganha pulso o e destemidos, mas também - o que é mais
processo de expansão da Europa, quando importante neste contexto - possuídos
os ¿ lhos do Velho Continente começam de um grau de organização que assustou
a “descobrir” (entre aspas) outras regiões seus poderosos adversários. O objetivo
do mundo, todas elas já habitadas, muitas era simples: apoderar-se dos navios
vezes por povos de cultura tecnologica- ancorados na Baía de Todos os Santos
mente avançada. Com isso, cai o preço do e neles voltar para a África. Derrotada
ouro, encontrado com a abundância em a insurreição, Antônio e Baltazar, seus
algumas das “novas” terras, provocando principais chefes, são condenados à mor-
a decadência econômica do Sudão Oci- te, enquanto outros insurretos recebem
dental. Ao mesmo tempo, intensi¿ ca-se penas de não menos de cem chibatadas
o processo de escravização de africanos, em praça pública para servirem de exem-
que acabaria transplantando à força para plo a outros negros que ousassem sonhar
o outro lado do Atlântico a maior parte do com a liberdade.
88 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
Isso não impediu, contudo, que e que viria a ser a mãe do grande poeta
outras revoltas se sucedessem em 1809, negro, herói e mártir da abolição: Luís
1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, Gama.
1828, 1830. As penas de morte, depor-
Alertadas sobre a iminente
tação e açoites em público com que se revolta, as autoridades tomaram provi-
viam contemplados seus líderes não pa-
dências no sentido de contê-la. A intensa
reciam intimidar os negros baianos; pelo
repressão então desencadeada provocou
contrário, pareciam servir de estímulo ao enfrentamentos mortais, ensangüentando
espírito libertário trazido e herdado da
os becos, as ruas, os largos e a própria
Mãe África, desvelando plenamente a memória da Bahia. Duzentas e oitenta
crueldade do sistema que os subjugava.
e seis pessoas foram acusadas, 194
Mas foi em janeiro de 1835 que aconte-
das quais da etnia nagô. No início das
ceu, na visão dos poderosos da época,
investigações, as autoridades imperiais
a mais grave e perigosa dessa série de imaginaram, de acordo com seus precon-
insurreições, aquela que ¿ cou conhecida
ceitos, que não passassem de crendices e
como a Revolta dos Malês. O plano era instrumentos de bruxaria os documentos
engenhoso. A rebelião deveria eclodir a
escritos em árabe, incluindo trechos do
25 de janeiro, durante a festa de Nossa Corão, encontrados entre os pertences
Senhora da Guia. Nessa madrugada, os
dos insurretos. Não tardaram a descobrir,
revoltosos se reuniriam para iniciar, em porém, para a sua estupefação, o papel
vários pontos da cidade, uma série de desempenhado por uma liderança letrada
ataques simultâneos, do tipo que hoje em árabe e português, responsável por
descreveríamos como guerrilha urbana. uma rede complexa e organizada, que
Numa segunda etapa, a eles se juntariam atingia a própria África, com rami¿ ca-
os negros das plantações localizadas na ções pelos interesses britânicos da época.
periferia de Salvador.
As sentenças foram rápidas como
Quis o destino que os revoltosos a aplicação de uma medida provisória
fossem derrotados, não pela capacidade imposta por um rolo compressor. Cinco
de reação dos escravocratas, mas por acusados foram condenados à morte por
terem sido delatados por Guilhermina enforcamento: Jorge da Cunha Barbosa
Rosa de Sousa, mulher nagô emancipada, e José Francisco Gonçalves, alforriados,
que decerto não compartilhava o espírito ao lado dos escravos Joaquim, Gonçalves
libertário de seus irmãos e irmãs, mas e Pedro. Como nada ficasse provado
pertencia àquela espécie de seres huma- contra si, Pací¿ co Lucitan, uma espécie
nos, encontráveis em todas as raças, que de mentor dos revoltosos, recebeu uma
se contentam em rastejar em busca das pena terrível: mil chibatadas em praça
migalhas dos dominadores. Tão diferente pública. Outros mais foram aquinhoados
de outra mulher negra, Luísa Mahin, com penalidades semelhantes - 600, 800,
¿ gura destacada nas insurreições malês mil chibatadas, aplicadas diariamente,
Pr onunciamentos
Homenagens aos líderes da Revolta dos Malês 89
Cipriano Barata, solto após cumprir sua sufocar o espírito de liberdade em terras
sentença. da Bahia. Menos de dez anos depois,
acontecia a primeira de uma série de
Tal como a Conjuração Mineira,
sublevações que vieram a ser conhecidas
a Revolta dos Búzios- assim chamada
como Revoltas dos Malês, constituindo
porque os conjurados costumavam usar
mais um capítulo memorável e, contudo,
uma pequena concha de búzio presa à
desconhecido de nossa História. Ma-
corrente do relógio - tinha como fonte
lês era o nome genérico atribuído aos
inspiradora a Revolução Francesa, se-
africanos islamizados, originários dos
guindo seus idéias de liberdade, igual-
grandes Estados do Sudão Ocidental,
dade e fraternidade. Além de “reduzir
como Gana, Mali e Songhai, onde se
o continente do Brasil a um governo
desenvolveu uma civilização de rique-
democrático”, os revoltosos pretendiam
za material e cultural que provocou o
abolir o cativeiro e a discriminação ra-
respeito e a espantada admiração dos
cial, instituir a liberdade religiosa, dividir
cronistas árabes que freqüentemente os
entre a população “tudo que houvesse
visitaram. Alimentadas pelo espírito do
na capital”, abrir o porto de Salvador
Jihad, ou Guerra Santa, essas revoltas
a navios de todos os países e, em caso
fundamentavam-se na luta pela liberdade
de resistência, executar o governador.
diante de inimigos não apenas de outra
Um programa bem mais avançado e
raça e cultura, mas também de uma
consistente que o da Conjuração Minei-
religião, a cristã, vista pelos revoltosos
ra, conduzida por burgueses, literatos e
como pagã. Assim, em 1807, armados de
sacerdotes brancos, sem grande compro-
arcos, Àechas, fações e fuzis, africanos
misso com as verdadeiras necessidades e
de etnia haussá enfrentaram portugue-
aspirações das camadas populares. Isso
ses e brasileiros das forças coloniais, e
se espelha com clareza não somente no
embora derrotados, demonstraram ser
rigor da repressão - a¿ nal, apenas um
não somente valentes e destemidos, mas
“incon¿ dente” mineiro morreu enforca-
também - o que é mais importante neste
do, contra quatro revolucionários baianos
contexto - possuídos de um grau de or-
de 1798 - mas também na preocupação
ganização que assustou seus poderosos
dos governantes da época em evitar que
adversários. O objetivo era simples:
notícias sobre essa revolta pudessem
apoderar-se dos navios ancorados na
chegar às outras cidades da Colônia. Era
Baía de todos os Santos e neles retornar à
o temor de que esse movimento, bem
África. Derrotada a insurreição, Antônio
mais perigoso do que uma conspiração
e Baltazar, seus principais chefes, são
de padres e poetas, pudesse contaminar
condenados à morte, enquanto outros
as massas despossuídas de outras regiões
insurretos recebem penas de não menos
do Brasil.
de cem chibatas em praça pública para
Mas a terrível repressão à Con- servirem de exemplo a outros negros que
juração de 1798 não seria su¿ ciente para ousassem sonhar com a liberdade.
96 THOTH 5/ agosto de 1998
Atuação Parlamentar
Isso, porém, não impediu que diferente de outra mulher negra, Luísa
outras revoltas se sucedessem em 1809, Mahin, ¿ gura destacada nas insurreições
1810, 1814, 1816, 1822, 1826, 1827, malês e que viria a ser a mãe do grande
1828, 1830. As penas de morte, depor- abolicionista e poeta negro Luís Gama.
tação e açoites em público com que se Alertadas sobre a iminente
viam contemplados seus líderes não revolta, as autoridades tomaram provi-
conseguiam intimidar os negros baia- dências no sentido de contê-la. A intensa
nos; pelo contrário, pareciam servir de repressão então desencadeada provocou
estímulo ao espírito libertário trazido e enfrentamentos mortais, ensangüentando
herdado da Mãe África, desvelando ple- os becos, as ruas, os largos e a própria
namente a crueldade do sistema que os memória da Bahia. Duzentas e oitenta
subjugava. Mas foi em janeiro de 1835 e seus pessoas foram acusadas, 194
que aconteceu, na visão dos poderosos das quais da etnia nagô. No início das
da época, a mais grave e perigosa dessas investigações, as autoridades imperiais
insurreições. O plano era engenhoso. A imaginaram, de acordo com seus precon-
rebelião deveria eclodir a 25 de janeiro, ceitos, que não passassem de crendices e
durante a festa de Nossa Senhora da instrumentos de bruxaria os documentos
Guia. Nessa madrugada, os revoltosos se escritos em árabe, incluindo trechos do
reuniriam para iniciar, em vários pontos Corão, encontrados entre os pertences
da cidade, uma série de ataques simul- dos insurretos. Não tardaram a descobrir,
tâneos, do tipo que hoje descreveríamos porém, para a sua estupefação, o papel
como guerrilha urbana. Numa segunda desempenhado por uma liderança letrada
etapa, a eles se juntariam os negros das em árabe e português, responsável por
plantações localizadas na periferia de uma rede complexa e organizada, que
Salvador. atingia a própria África, com rami¿ ca-
Quis o destino que os revoltosos ções pelos interesses britânicos da época.
fossem derrotados, não pela capacidade As sentenças foram rápidas.
de reação dos escravocratas, mas por Cinco acusados viram-se condenados à
terem sido delatados por Guilhermina morte por enforcamento: Jorge da Cunha
Rosa de Sousa, mulher nagô emanci- Barbosa e José Francisco Gonçalves, al-
pada, que decerto não compartilhava forriados, ao lado dos escravos Joaquim,
o espírito libertário de seus irmãos e Gonçalves e Pedro. Como nada ¿ casse
irmãs, mas pertencia aquela espécie de provado contra si, Pací¿ co Lucitan, uma
seres humanos, encontráveis em todas as espécie de mentor dos revoltosos, rece-
raças, que se contentam em rastejar em beu uma pena terrível: mil chibatadas
busca das migalhas dos dominadores.Tão em praça pública. Outros mais foram
Pr onunciamentos
Recebimento da Medalha Tiradentes 97
Axé, Vicentinho!
Discur so pr ofer ido no Senado Feder al Senhor Presidente,
em 13 de agosto de 1998 Senhoras e Senhores Senadores,
nesse processo acabou produzindo algu- Sob tortura e ameaças de morte, Luís
mas das mais belas páginas da História Gonzaga é obrigado a delatar os outros
deste País. Uma delas, a epopéia de Pal- companheiros.
mares, ¿ nalmente vem sendo reconheci- Como seria de esperar, a re-
da pela historiogra¿a o¿ cial, graças à luta pressão que sobre eles se abate é dura e
do Movimento Negro e de seus aliados na cruel - mas acima de tudo seletiva. Pois
academia e na política. Em conseqüência dos cerca de 600 conspiradores presos,
disso, o grande líder Zumbi ¿ gura hoje, apenas quatro são condenados à pena
ao lado de Tiradentes, no Livro dos capital. Todos negros. Prisão, castigos
Heróis da Pátria. Cabe agora estender corporais e degredo na África são as pe-
esse reconhecimento a outros heróis da nas reservadas aos demais participantes,
luta negra no Brasil, como é o caso dos como o professor Muniz Aragão, autor
protagonistas da Conjuração Baiana de do hino revolucionário, e os tenentes
1798, mais conhecida como Revolta dos
José Gomes de Oliveira e Hermógenes
Alfaiates, ou Revolta dos Búzios, que
Francisco. Já o médico Cipriano Barata
neste dia comemora duzentos anos.
recebeu sentença mais branda e, após
A 13 de agosto de 1798, panÀe- cumprir a pena, recuperou sua liberdade.
tos escritos à mão, distribuídos princi-
Chamada de “Revolta dos Bú-
palmente em igrejas e centros de prática
zios” porque os conspiradores costuma-
religiosa, convocavam a população de
vam usar uma pequena concha de búzio
Salvador a se levantar contra o jugo
português. Embora surpreendesse a presa à corrente do relógio, a Conjuração
maior parte do povo, o fato apenas con- Baiana - tal como a Conjuração Mineira -
¿ rmava uma denúncia feita meses antes inspirou-se nos ideais de liberdade, igual-
pelo padre José da Fonseca Neves ao dade e fraternidade que haviam norteado
governador Fernando José de Portugal e a Revolução Francesa. Os revoltosos
Castro. Segundo a denúncia, o cirurgião pretendiam “reduzir o continente do
baiano Cipriano Barata seria o propa- Brasil a um governo democrático”, o que
gandista e chefe de uma sedição contra para eles implicava abolir a escravidão
o Governo Imperial, reunindo, em sua e a discriminação racial, estabelecer a
maioria, modestos artesãos, ao lado de liberdade de culto, abrir o porto de Salva-
mulatos e negros forros. Conduzidas pelo dor a navios de todas as nações e dividir
governador, as investigações conduzem entre a população “tudo que houvesse na
à residência do soldado Luís Gonzaga capital”. Uma das proclamações do mo-
das Virgens e Veiga - incriminado pela vimento, divulgada em plena revolução,
caligra¿ a - onde se descobrem livros e declarava textualmente: “Quer o povo
documentos que comprovam a sedição. que todos os membros militares de linha,
O alfaiate João de Deus, o soldado Lucas milícia e ordenanças, homens brancos,
Dantas e o lavrador Luís Pires são tam- pardos e pretos concorram para a liber-
bém presos, devido a outras denúncias. dade popular”. Em caso de resistência,
Pr onunciamentos
Duzentos anos da Revolta dos Búzios 109
1980 o movimento estudantil não queria coisas que não duravam, coisas bem
nenhuma vinculação com o movimento revolucionárias. Para esses, ele seria um
estudantil de 1968. acadêmico. No Brasil, o que acho é o se-
guinte: cheguei aqui agora, depois de 20
Thoth – As galerias, os salões, as
anos, e a coisa está muito parada, muito
bienais de uma forma geral têm obtido
morna. Não existe debate... não está
muito sucesso. Isso representa a existên-
acontecendo. Agora mesmo, no Centro
cia de novas linguagens na arte brasileira,
Cultural da Light, há uma exposição inte-
o público está respondendo?
ressante de um artista americano, passei
Celestino – Eu vivi, realmente, lá rapidamente, e ele está trabalhando
num meio de alternativos e não de com luzes, com neon, coisa que nós já
imposição de uma linha ou de outra, fazíamos em 1960. Respeito a pesquisa
porque é impossível ser de outra forma dele em termos de cor. Trabalhar a luz
naquela coisa que é Paris. Por exemplo, com uma cor, mas aqueles neons... nós
o escultor Constantin Brancusi, que em já tínhamos colocado isso, é necessário
muitas das suas obras, podemos ver, ir um pouquinho mais longe.
era inÀuenciado pela arte africana, era Thoth - Há um impasse na arte
debochado pelo Picasso... Picasso ria na brasileira?
cara dele. O garoto pródigo, que é bem
africano, obra de 1914/15, hoje é con- Celestino – Eu tenho a impressão
siderado um renovador. André Breton, de que aqui ¿ cam esperando o que está
também vaiou Brancusi. André Breton acontecendo lá fora. O que acontece é
que havia descoberto com o surrealismo que não existem os meios de difusão,
o negro e a negritude em Aimé Césaire, que são muito caros. Está se fazendo
mas em 1942 ele voltou atrás e reconhe- muita coisa, mas essas pessoas não têm
ceu a importância de Brancusi. Então, os meios para mostrar isso. Mesmo em
aquelas tendências que estavam sendo alguns salões que eu já considero o¿ -
marcadas naquela época, o surrealis- ciais, como o salão do Centro Cultural
mo, o dadaísmo, etc., não conseguiram Banco do Brasil, passam coisas inte-
ressantes, mas, acabou a exposição, não
impedir que aparecesse esse verdadeiro
se fala mais, e infelizmente não existem
criador de referências na escultura, que
revistas de arte, especializadas, que pos-
foi ironizado por todo mundo.
sam veicular essas coisas. Cheguei no
Thoth – Em termos de arte bra- Rio de Janeiro em pleno verão e o que
sileira, existe uma consolidação de vi foi uma tendência para a praia, nada
escola ou cresceram as buscas pela arte como o que ¿ zemos em 1960 e 1970 em
alternativa? termos de arte.
Celestino – O Brancusi fez uma Thoth – Numa rápida observação
arte que não é temporária, porque no do seu trabalho, constata-se que a questão
dadaísmo e no surrealismo eles faziam racial está diluída e não aparece com a
118 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
ênfase que tradicionalmente se tem ob- para isso tudo e parti, exatamente, para
servado na obra de outros artistas negro uma postura dadaísta, para uma postura
com que temos conversado. No Brasil, de ir à raiz das coisas, e o que tem de
haveria uma ou mais características que negro sai junto comigo. Eu não escrevo
distinguem o artista e a arte afro-brasi- mais, eu não conto mais, eu não narro
leira do ponto de vista cultural? mais. A simbologia afro pode ser um
Celestino – Eu acho que existem. sentimento, sensibilidade, herança, aqui-
Nos anos 1960, houve um crítico que já sição, conscientização, como no caso de
morreu e eu não quero falar o nome, ele Abdias Nascimento, que tem isso tudo. A
chegou para mim e disse: “Como você arte de Abdias é cultural, uma poemação
desenha muito bem, por que você não sobre a pintura e a reinvenção dos orixás.
faz uma escultura africana para eu poder Logo, metalinguagem. A arte de Abdias
fazer a sua publicidade no jornal?” Eu é crítica da pintura enquanto saber. En-
recusei porque era arti¿ cial.... quanto conhecimento afro-brasileiro.
Enquadrando-se na ¿loso¿a especulativa
Thoth – Deve ter sido o Walmir de Kant e hegeliana, porque se conclui
Ayala? da estética de Hegel, ela não é cópia da
Celestino – Exatamente. (Risos) natureza, ela é cultural, espiritual, ela dá
Para mim, o Aguinaldo dos Santos era conta de um Estado, de uma comunidade
autêntico. Eu ¿ z alguma coisa... a minha espiritual: a afro-brasileira. E, mais uma
exposição na Ceres Franco se chamou vez, ainda kantiana, como enriquecimen-
Negritude, mas eu trabalhei mais com to do conhecimento latino-brasileiro.
o garfo de Exu, com a Pomba Gira. O E nesse ponto a arte de Abdias retoma
garfo de Exu sendo muito geométrico e a a tradição de saber e prática. Também
minha pintura sendo muito ¿gurativa, em em Kant. Como os pesos ¿ losó¿ cos e
termos de linguagem plástica havia um geométricos de pesar ouro das civiliza-
choque entre o geométrico e o naturalis- ções africanas ashanti, de Gana, e kan,
mo. Então eu tinha que resolver isso. E na da Costa do Mar¿ m. Como esses pesos
Europa pegavam esse garfo de Exu como artísticos ¿ losó¿ cos, a arte de Abdias
Netuno, isso implicava uma diluição da instaura uma nova leitura do saber afro-
minha proposta... Então achei o seguinte: -brasileiro.
eu estava no país do dadaísmo, que tinha
Thoth – Isso signi¿ ca que você se
negado a arte totalmente, que tinha ido ao
transformou num ser universal, vivendo
fundo das coisas... Resolvi dar as costas
toda a expansão africana?
para tudo que estava fazendo, inclusive
até uma pintura com elementos clássicos, Celestino – Isso, isso... Inclusive
com a minha ¿gura dentro do quadro com eu estou satisfeito porque a exposição
o sexo de fora, no Banho turco de Angra, que eu ¿ z na Light em 1996, com papel,
que eu subverti com a minha presença com cartão, com as cores todas, é em
dentro do quadro. Resolvi dar as costas princípio totalmente anticomercial. A
Garrafa, de Celestino. Madeira, papel machê e vidro (Paris, 1986)
Thoth entr evista Celestino
Éle Semog 121
pessoa que estava tomando conta, era Celestino – Por isso eu disse que
um negro protestante, disse que estava o trabalho não era comercial aqui, mas
gostando muito daquela exposição por- é perfeitamente comercial lá.
que era uma exposição de raiz. Foi isso Thoth – Como os críticos reagiam
que ele disse . Devido àqueles negros, aos seus trabalhos?
aqueles vermelhos, àqueles contrastes e
devido ao fato de eu ter trabalhado uma Celestino – Quando eu fazia as
exposições eles noti¿cavam nos jornais...
arte bruta, praticamente bruta. Aliás, eu
mas a verdade é que a di¿ culdade sempre
participei de um nomenclatura de arte
existe, porque já havia os grupos insta-
bruta na Europa.
lados. Por exemplo, quando a abstração
Thoth – Você fez uma exposição lírica invadiu Nova York e Paris nos anos
não-comercial, o mercado de compra- 1940, aí a abstração geométrica veio para
dores hoje é conservador, existe uma o Brasil trazida por um francês e instau-
lógica para esse mercado, é um mercado raram o concretismo até os anos de 1960.
racista? Não é que eu critique o concretismo, mas
nós ¿ camos parados só ali. Enquanto
Celestino – Ele é conservador, mas isso, a galeria representante da abstração
também reage de formas estranhas, pois geométrica continuou vendendo, conti-
eu já vendi muitas obras de papel. Por nuou com a opção alternativa, entretanto
exemplo, a obra de Abdias Nascimento ela não era mais a dona da cocada preta.
é cultural, mas Chagall, mais do que Isso é diferente porque os espaços lá são
consagrado na Europa, se fosse negro e polivalentes.
nascido no Brasil, teria a sua arte cultural
Thoth – Nesse caso, podemos
considerada como ingênua. O brasileiro
entender que, entre a semana de 1922 e
necessita urgentemente, com a aproxi-
os anos de 1960, não aconteceu nada?...
mação do ano 2000, sair da mentalidade
colonial do século XIX em relação ao Celestino – Claro que se fez e
negro. Na França, a contradição entre muito. Tanto que eu sou formado por isso
o francês da metrópole e os da colônia tudo... O que eu digo é que Paris é mais
é que esses últimos estão com a cabeça vasta, não é só a capital; toda a periferia
ainda no século XIX. O Brasil não pode de Paris. Todos os movimentos dos su-
¿ car aí como está porque tecnológica e búrbios são muito fortes. Quais são os
culturalmente está mais avançado do que movimentos dos subúrbios daqui que po-
dem inÀuenciar a capital? Nenhum. Mas
as colônias francesas.
lá a estrutura política é diferente. Cada
Thoth – Então nós podemos con- bairro tem a sua prefeitura independente
cluir que a elite brasileira estará sempre e os representantes conselheiros também
atrasada em relação às elites dos centros estão na Câmara. O que o português fez
do mundo? aqui em termos de estrutura política e
122 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
outros direitos. “As DEAMs são enten- Compreendedo o sistema penal como
didas por sua clientela como “acesso ao “um dos mais poderosos instrumentos de
direito o¿cial´ $ descriço dos casos da manutenção e reprodução da dominação
viúva de Elvis Presley e do assédio do seu e da exclusão, características da forma-
Francisco no balcão de atendimento das ção social capitalista”, nós do movimento
DEAMs, a multiplicidade das soluções de mulheres dos partidos de esquerda
encontradas pela atuação dos funcionários temos que aprofundar a discussão da vio-
da agência policial produzem cotidiana- lência contra a mulher, na direção oposta
mente o funcionamento da “teatralidade daquela que aposta na solução penal, que
da ordem discursiva” na negociação dos numa sociedade desigual como a nossa, é
conÀitos ³$ estrutura da mediaço acio- dirigida prioritariamente à grande massa
nada inscreve, desde o início da acareação, de excluídos, aos negros e pobres que
uma mecânica de conceções e ganhos superlotam as nossas prisões.
recíprocos”, onde a queixa é trabalhada
mediante a negociação da palavra, objeto * Cf. Karam, Maria Lúcia. “A esquerda
de acordo, antítese da “cidadania atestada punitiva”. In Discursos sediciosos - crime,
Direito e sociedade. Ano 1, nº 1. Ed. Relume-
pelos papéis” que aponta para a “exclusão
-Dumará, 1996.
ojetiva do mercado dos direitos´ En¿m,
o olhar antropológico aposta na riqueza
de um esSaço de negociaço de conÀitos **Este texto foi apresentado ao Seminário
para os que estão excluídos da cidadania Nacional do Movimento de Mulheres do PDT
do papel, para além da solução punitiva. (Rio de Janeiro, 1º de agosto de 1998). Vera
Malaguti Batista é socióloga, historiadora da
Questionar a perspectiva puniti- Universidade Federal e secretária geral do
va é um dos objetivos desta exposição. Instituto Carioca de Criminologia.
A Mar cha de
Um Milhão
A Mar cha de Um Milhão
Contra as formas de continuidade do racismo e discriminação racial 139
A.N.
Desenho do artista norte-afro-americano Sneed
A guer r a amer icana Os homens negros que vieram a
Washington para participar da marcha
contr a a decência e sobre o Mall eram mais jovens, com me-
lhor posição e maior grau de instrução
o Convite ao Mall1 : do que os negros americanos como um
todo, e tinham maior disposição de ver
homens negr os, po- o líder da Nação do Islã, Farrakhan, as-
sumir um papel de liderança mais proe-
lítica simbólica e a minente na comunidade afro-americana,
Mar cha de Um Mi- segundo pesquisa feita pelo Washington
Post entre os participantes da Marcha de
lhão de Homens* Um Milhão de Homens.
(Washington Post,
17 de outubro de 1995)
Um funcionário ralé
Nos chama pelo nome que não é nosso
Temos de dizer senhor
Para garotos magricelas
1
Mall se refere à área do principal parque de Washington, onde se localizam os monumentos a Abraham Lincoln e Ge-
orge Washington, e que constitui a vista turística mais importante da cidade. É um local que simboliza a sede do poder e,
portanto, é o palco de grande porte dos grandes eventos cívicos da história norte-americana. (N. E.).
144 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
Não posso aceitar que “ equilibrar o bora Bill Clinton endosse implicitamente
orçamento” acabe eclipsando a preocu- uma agenda que é republicana e tenha
pação em equilibrar a distribuição e a insultado em público Lani Guinier e a
disponibilidade da riqueza, das chances Irmã Souljah e Joycelyn Elders e apro-
de sobreviver com auto-respeito. ve uma reforma da previdência que vai
acarretar a devastação das comunidades
(extraído de Notes of a Barnard dro-
negras, vamos separar o presidente em
pout, de June Jordan)
si de sua mensagem.” Era difícil dizer
se os intelectuais que defendiam uma
Em 16 de outubro de 1995, cerca separação mente/corpo entre mensagem
de um milhão de homens negros (os nú- e mensageiro estavam falando sério ou
meros serão sempre objeto de discussão) simplesmente oferecendo um alívio aos
reuniram-se no Mall em Washington, públicos brancos. Será que realmente
capital dos Estados Unidos. Variavam acreditavam ¿ car com um pé em cada
quanto a tons de pele, pro¿ ssões, classes, um dos mundos? Será que acreditavam
origens, níveis de instrução, tipos de poder erguer-se em favor da redenção
cabelo, dialetos, ideologias, religiões, negra e ao mesmo tempo distanciar-se
locais de moradia, temperamentos e da única mensagem de massa que está
estilos afetivos. O dia estava claro como sendo ouvida atentamente pelos negros
cristal: um presente de Deus. O sol de nos Estados Unidos?
outono aquecia a terra em que ¿lhos dor- A mensagem negra de massa
miam em paz aos pés de seus pais, tios, certamente estava sendo transmitida
irmãos - homens negros que os haviam pelo corpo de Farrakhan. “Corpo”, nesse
levado para testemunhar um impressio- sentido, signi¿ca tanto a forma individual
nante exercício do estilo americano de quanto a institucional. Pois é Farrakhan,
contrabalanço. o próprio líder carismático, que vem reju-
Nas duas semanas que antece- venescendo e transformando numa força
deram a Marcha, especialistas haviam contínua o corpo da Nação do Islã desde
declarado incessantemente que o evento a morte de Elijah Muhammad, nos anos
seria um desastre que balcanizaria os setenta. E o mensageiro negro corpori¿ -
Estados Unidos. Conhecidos intelectuais cado é que foi a presença inambígua por
negros asseguraram tanto a seus eleitores excelência em 16 de outubro de 1995.
brancos e quanto a seus jovens discípu- Todas as pessoas que eu encon-
los negros ser obrigatório para qualquer trei ou por que passei no Washington
homem negro realmente liberado, in- Mall tinham fortes expectativas sobre o
formado e sensível separar a mensagem momento de clímax em que Farrakhan
redentora do ministro Louis Farrakhan apareceria para articular as noções de
do mensageiro. Isso, evidentemente, arrependimento e reparação, responsa-
fazia tanto sentido quanto dizer: “Em- bilidade dos homens negros e redenção
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
145
Unidos. Da mesma forma, é impossível para manter seus lares, sua comida e sua
separar o recurso de Farrakhan a um bode própria vida.
expiatório mascon de uma base de apoio
Em 16 de outubro de 1995,
constituída pela massa negra.
letreiros, broches, camisas, chapéus,
No entanto, quem dentre nós Àâmulas, cartazes, livros, laços, ban-
está moralmente em posição de perdoar, deiras em vermelho, preto e verde, com
filtrar ou separar uma mensagem de estrelas e luas crescentes diziam: em
opressão nacional do corpo físico de termos de organização e iconogra¿ a,
Newt Gingrich ou de William Jeffer- esta Marcha de Um Milhão de Homens
son Clinton? Quem está em posição de constitui um triunfo da Nação do Islã
condenar - com simulada inocência e numa guerra simbólica. Esta marcha é
incompreensão - Louis Farrakhan por tão complicada, multifacetada, hábil e
expressar a fúria inteiramente justi¿ cá- surpreendente quanto a habilidade de
vel da massa negra escolhida por gente Farrakhan em convocá-la. Talvez, então,
como Gingrich e Clinton como alvo do o ministro seja o lugar, concentrado na
sacrifício imposto por um orçamento massa, do signi¿ cado afro-americano
equilibrado elaborado por brancos? E em um tempo de guerra: uma Guerra
quem é tão eticamente preciso que possa contra a Decência.
a¿ rmar: “Hei, homem negro, é melhor
As estatísticas dessa Guerra
você ir àquela marcha de Washington
contra a Decência estão agora bem-
com um cartaz dizendo que você separa
-ensaiadas, e todos nos Estados Unidos,
a mensagem do mensageiro”?
como veremos em breve, têm uma opi-
Se fosse possível separar as nião sobre a quem culpar pelo mal-estar
mensagens dos mensageiros, deveríamos geral deste país. Um em cada três homens
pendurar cartazes no pescoço denuncian- negros nos Estados Unidos está na pri-
do a ignomínia de um Congresso, Supre- são, na condicional ou sob supervisão
ma Corte e Casa Branca posicionando-se do sistema de justiça criminal. Mais de
diante de um canal repleto de recursos metade das crianças negras americanas
¿ nanceiros reservados às grandes em- vive na pobreza. A renda dos negros ame-
presas americanas e ao Capitalismo ricanos é apenas 60 por cento da renda
Transnacional com cara pintada de bran- dos brancos. A expectativa de vida dos
co. Ou sinais luminosos às costas anun- negros é mais de uma década menor que
ciando precisamente como separamos a dos brancos americanos. O desemprego
as mensagens do nosso presidente e do da juventude negra é de 40 por cento. As
nosso Congresso como “equilibradores oportunidades de emprego e de acesso
do orçamento” de sua responsabilidade até mesmo a um mínimo de serviços pú-
física pelo sofrimento de centenas de blicos necessários para manter a vida são
milhares de servidores federais e outros comparativamente raras para a maioria
americanos desafortunados que lutam dos negros americanos. O homicídio e
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
147
__________
4
Ultimamente, ¿ cou muito popular nos Estados Unidos a expressão “it’s a man thing”, “isto é coisa de homem”, em
referência a assuntos de interesse especí¿ co dos homens. (N. E.)
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
149
__________
5
Ellis Cose, The rage of a privileged class (Nova York: Harper Collins, 1993), 48-9.
150 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
__________
6
O.J. Simpson foi julgado inocente por um júri popular de ter assasinado sua ex-mulher branca, numa decisão muito
contestada. Após o veredicto, a opinião pública se dividiu nitidamente, os brancos acreditando que Simpson era culpado
e devia ter sido preso, e os negros acreditando que as evidências apresentadas deixavam uma sombra de dúvida quanto
à sua culpa, inclusive porque várias provas foram forjadas pela policia, trazendo à cena a questão do histórico abuso do
sistema judicial e da instituição policial, que ostentam dois pesos e duas medidas quanto ao tratamento de negros e brancos
perante a justiça. (N. E).
7
Washington Post, 17 de outubro de 1995, A20.
A guer r a amer icana contr a a decência & o Convite ao Mall
Houston A. Baker, Jr.
151
pegando fogo, não me importa quem traz Olhávamos para nós mesmos, nossos
a água.” Existe bem pouquinha água para ¿ lhos, todos os nossos irmãos naquele
a casa em chamas da maioria dos negros dia. Conhecíamos a guerra americana
americanos. Se nós não empreendermos em que estávamos engajados, e naquele
agora uma ação local simbolicamente “momento” não tínhamos medo.
armada, firme e cuidadosa em nosso
próprio interesse como negros e para a
nossa autodefesa, da próxima vez o fogo Refer ências Bibliogr áficas
do capitalismo tardio nos vai consumir
com a calorosa intensidade da euforia Brossard, Mario A e Richard Marin. “Leader
popular among marchers”. The Washing-
triunfante da Microsoft.
ton Post, 17 de outubro de 1995, AI.
Quando suas últimas palavras
ecoavam pelo Mall, deixei Farrakhan e o Brown, Sterling. “Old Lem”. In The collected
extraordinário grupo de Homens Negros poems of Sterling Brown, org. por Micha-
Americanos com quem eu havia compar- el S. Harper. Nova York: Harper & Row,
tilhado por um dia o trabalho de campo e 1980. 170-1.
me dirigi para casa. Pensei no que havia
Cose, Ellis. The rage of a privileged class.
testemunhado. Houve cenas surpreenden-
Nova
tes de criancinhas negras dormindo no chão York: Harper Collins, 1993.
morno de outubro aos pés dos homens que
as tinham levado ao Mall. Adolescentes de Fletcher, Michael A. e Hamil R. Harris.
hoodies, bonés e jeans baggy inclinavam- “Black
-se com reverência diante desses jovens men jam Mall for a ‘Day of Atonement”.
adormecidos, como se fosse santi¿cado The Washington Post, 17 de outubro de
o chão em que estes descansavam. Vi 1995, AI, A20.
homens negros em ¿la indiana, as mãos
nos ombros da pessoa em frente, zigue- Henderson, Stephen. Understanding the new
zagueando através de multidões de cen- black poetry: black speech and black
music as poetic references. Nova York:
tenas de milhares de homens negros que,
William Morrow, 1973.
educadamente e em silêncio, lhes abriam
espaço. Ouvi um jovem atrás de mim dizer: Jordan, June. “Notes of a Barnard dropout”.
“Desculpe-me, senhor, importa-se se eu In Civil wars: observations from the front
fumar?” O “senhor” era eu. O gesto dele lines of America. Nova York: Simon and
foi de uma polidez incomum, uma vez que Schuster, 1995. 96-102.
estávamos ao ar livre.
*
Este artigo foi publicado originalmente, em in-
A 16 de outubro de 1995 vi glês, na Revista Black Renaissance/ Renaissance
homens negros se abraçando, choran- Noir, Vol. I, no. 1 (outono de 1996), tradução de
do, escutando, permanecendo em pé, Carlos Alberto Medeiros. Houston A. Baker, Jr. é
diretor do Centro para Estudos da Literatura e da
sentindo-se simples e con¿ antemente Cultura Negras da Universidade de Pensilvânia,
à vontade na presença uns dos outros. em Filadél¿ a.
Desenho do afro-norte-americano Sneed
Duas coisas sobre a Marcha de
Um entr e um Um Milhão de Homens: a maioria da-
milhão* queles que a criticaram não participou;
e a maioria daqueles que participaram
não a criticou. Isso, evidentemente, não
prova nada. Quase o mesmo poderia ser
dito de algumas das guerras mais san-
grentas da história. Indica, porém, que a
Marcha teve tantas facetas e signi¿ cados
que devemos enxergá-la de múltiplas
maneiras. Seus detratores têm algo em
comum: são incapazes de considerar o
evento em termos de suas profundas e
variadas ressonâncias.
Um zilhão de coceiras pessoais
e peculiares ¿ zeram que um milhão de
homens acorresse a Washington. Uma
das minhas foi a reação a uma mostra
de cinema e arte inaugurada no Museu
Whitney, de Nova York, em outubro de
1994, com o título O Homem Negro. O
que signi¿ ca que eu fui à Marcha como
Clyde Taylor um prisioneiro do meu próprio texto. O
158 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
__________
1
Cokie Roberts é jornalista, branca, de uma das principais redes de TV dos Estados Unidos. (N.E.)
2
Newt Gingrich, então presidente da Câmara dos Representantes (Deputados) dos Estados Unidos, representa a expressão
máxima da extrema direita no poder, implementando políticas retrógradas que consolidam o retrocesso em todos os avanços
que a comunidade negra e os pobres em geral conquistaram em administrações anteriores e impedindo a implementação
de qualquer política capaz de bene¿ ciá-los. Clarence Thomas é um negro ultraconservador nomeado à Suprema Corte
pelo presidente George Bush. (N.E.)
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
159
Também é verdade que fui en- nuvens, mas sua bunda não”. Melhor
viado pessoalmente por Cokie Roberts1. fazer o Jogo segundo a compreensão
Jesse Jackson a¿ rmou corretamente em maior da sua ¿nalidade - não apenas para
seu discurso que quem convocara um sobreviver a ele, mas para acabar com
milhão de homens a Washington não fora ele de uma vez. Em termos históricos,
Louis Farrakhan, e sim Newt Gingrich isso signi¿ caria pôr um termo ao dilema
e Clarence Thomas2. Eu compartilhava duboisiano implícito na pergunta: “Como
esse sentimento, mas Cokie e seus com- é que a pessoa se sente ao ser um proble-
panheiros do programa This morning ma?” Assim, vendo as coisas desse jeito,
with David Brinkley, George Will e Sam eu tinha de ir a Washington.
Donaldson, foram quem rebitou meu des-
tino como participante da Marcha. Seus Confesso que fui à Marcha com
narizes torcidos e seu ar de desprezo ao muita hesitação. Eventos recentes, como
interrogar Cornel West e Louis Farrakhan a confirmação de Clarence Thomas
ultrapassaram a sugestão de que só os [como juiz da Suprema Corte], tinham
loucos seguiriam a liderança destes. A ferido e enfraquecido minha con¿ança na
linguagem corporal dos entrevistado- liderança negra. Mas tinha havido outras
res a¿ rmava que esses homens sequer erosões na imagem pública dos homens
deveriam existir. Naquela manhã de negros no decorrer do tempo que me
domingo, uma semana antes da Marcha, ¿ zeram vacilar. Os contínuos e furiosos
tornou-se agudamente evidente para mim ataques de demonização na mídia não
que esses programa constituem vitrines eram perturbadores em si mesmos. Mas
privilegiadas para os brancos (apesar da estava havendo uma espécie de desgaste
presença ocasional de um jornalista de em minha própria credibilidade pública,
cor), simulando a objetividade jornalís- revelado por pessoas agarrando suas bol-
tica com nomes universais como Face sas e por vendedores de lojas mostrando-
the Nation [Cara a Cara com a Nação]. -se tensos com a minha presença. Mais
Assim, como todo o mundo, fui difícil de suportar era o peso do confronto
para Washington como prisioneiro de diário com um monte de homens negros
minhas próprias percepções. Sei que a sadios pedindo esmolas em Nova York,
disposição do Jogo induz a uma repres- Boston, Washington e todo lugar a que eu
são em alguns homens negros que os faz ia. Com o passar dos anos, o contato vi-
¿ ngir que o Jogo não existe. Pois sim. sual se havia dissolvido no desconforto,
Essa linha de raciocínio afastou muitos e o informal “e aí?” entre negros que se
de nossos irmãos. Mas quando a ação cruzavam se tornou motivo de nostalgia.
foi cometida e sua cabeça está na linha Era mais difícil acostumar-se à forma
de fogo, você tem de se mexer, indepen- como, em público, mulheres negras fran-
dentemente do medo de ser explosivo ou ziam seus olhos dizendo sentir-se mais
não. Baraka tem um verso que diz mais seguras com qualquer pessoa que não um
ou menos que “sua mente pode estar nas homem negro. Essas irmãs sabiam o que
160 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
Após tantos anos apoiando a igualdade em uma base única de debates moldada
das mulheres, essa fome era um intruso para garantir a recitação de suas queixas.
em minha grade cognitiva. Com efeito, Quando se trata de organizar temas e fó-
eu imprimira nos meus sentimentos, após runs, as feministas negras têm mostrado
o desastre Clarence Thomas-Anita Hill, um desinteresse pela diversidade ou pela
que a única estratégia inédita e necessária construção de coalizões que incluam
para a comunidade negra era aumentar a homens negros heterossexuais.
liderança feminina. Tal liderança, pensa- Para alguns setores do feminis-
va, poderia trazer à tona as contradições mo negro, a acusação de que a Marcha
que impediam a elevação do grau de era separatista em termos de gênero
consciência da comunidade, mantendo-a implicava uma amnésia momentânea.
em um nível obviamente baixo. O separatismo consciente e deliberado
Mesmo então estava claro para tem sido uma característica do feminis-
mim que a idéia de liderança negra fe- mo negro durante a maior parte de sua
minina tinha de existir fora dos limites história recente. (A defesa, por Alice
do feminismo negro com o qual estava Walker, de uma separação periódica entre
familiarizado. Eu tinha em mente uma os sexos para descansar um do outro e
liderança negra feminina com uma pers- renovar a solidariedade interna, tal como
pectiva mais ampla do que a retórica de exposta em seu romance The temple of
gênero da maior parte do pensamento my familiar, oferece um exemplo dessa
feminista negro. Angela Davis é uma tendência separatista.) Outro produto da
das poucas feministas negras com visão amnésia é o esquecimento de um refrão,
política su¿ cientemente ampla para o freqüente entre as feministas negras du-
tipo de liderança geral em que eu estava rante os anos setenta e oitenta - “Por que
pensando. Muitas mulheres negras com vocês, homens negros, não se organizam
que eu falei antes do evento, incluindo e acertam seus problemas?” -, como se
minha ¿ lha Zinzi, queixaram-se de que a considerável e valiosa construção da
este não fora concebido para incluí-las. irmandade que as mulheres negras busca-
Isso teria sido, de qualquer modo, muito vam precisasse de um complemento entre
difícil. Mas não consigo imaginar uma os homens negros. Talvez as feministas
agenda ampliada que tivesse satisfeito negras quisessem dizer exatamente isso,
as feministas negras, as quais exigiam mas não na forma e na escala da Marcha
um programa totalmente diferente. Tal de Um Milhão de Homens, e sem ser
cenário também induziria a uma outra conduzido por elas.
faceta do Jogo, com a identidade dos Não posso ser o único a relem-
homens negros sendo mais uma vez brar algo desse diálogo: como os homens
negociada por outrem. As feministas em geral, e os negros em particular, têm
negras têm uma história de controlar as pouca capacidade de se reunir e pôr de
agendas em que se envolvem e de insistir lado suas fachadas e máscaras e mostrar
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
165
Foi aí que outra série de lições aos homossexuais. Assim, segundo essa
chegou desembrulhada, tal como pre- narrativa, só seria possível a um homem
sentes indesejados. Não surpreende que livrar-se da homofobia aceitando o ho-
a Marcha tenha sido desrespeitada ou mó¿lo ou a mulher no interior do seu ego
descartada em tantas plagas. A “divisão masculino.
racial” que saiu da caixa após o veredicto
Depois do Mall, contudo, co-
de O. J. Simpson foi muito semelhante à
mecei a ver como esse tipo de equação,
divisão a respeito do signi¿ cado da Mar-
embora basicamente persuasivo, podia
cha. Uma vez mais, aqueles que estavam
ser facilmente levado ao exagero. Padece
lá e que foram tocados por seus valores do fato de fazer de outrem o guardião de
estão muito distantes dos que farejam em
nossa consciência. Desconsidera a capaci-
busca de evidências incriminatórias.
dade de respeitar a diferença do outro sim-
Mas o tom era de reconciliação. plesmente porque essa é a coisa decente a
Na medida em que confraternizavam, os ser feita. Rejeita os pequenos excedentes
participantes descobriam uma energia de signi¿cado e valor que se derramam
moral vinda de um espaço histórico de para fora e para além desses binários. Não
anos atrás, antes que gênero, orientação dá espaço às artimanhas e descobertas
sexual, religião e mesmo raça se tornas- casuais no acidentado Àuxo da história.
sem marcadores a determinar a posição Depois do Mall, passei a acreditar que
congelada de cada um a respeito de todas os homens negros, após a instigação e os
as questões sociais. Era a concepção de protestos por vezes a¿ados das mulheres
mudança progressiva que envolvia ho- e dos gays, podiam ampliar sua visão
mens e mulheres, e creio que envolvia moral sem se submeter a um esquema
heteros e gays, e na emoção do momento psicológico pré-delineado e sobre eles
ela atingiu uma epifania de preocupação imposto por alguém como se partisse de
humanista que englobou a população uma autoridade externa superior.
do mundo como um todo. Transitória,
Pareceu haver entre as pessoas
talvez, mas não romântica.
presentes ao Mall uma compreensão da
O que também ¿ cou desman- provável rejeição nacional às promessas
telado para mim foi uma certa simetria daquele momento. Mesmo o forte tom
formalista naquilo que se chama de po- da auto-ajuda foi malcompreendida do
lítica da diferença. Através da psicologia outro lado da “divisa”. Um formador de
existencialista de Jean-Paul Sartre e do opinião da CNN, de viés conservador,
raciocínio dialético de Marx, surgira o saudou o refrão dos oradores da Mar-
conceito de identidades co-definidas: cha de que precisamos parar de culpar
os brancos recebem sua identidade por os brancos e nos concentrar no que os
serem outros em relação aos negros, e negros podem fazer por si mesmos, mas
os homens se vêem como masculinos lamentou que não tenham o mesmo cré-
somente em oposição às mulheres ou dito que Farrakhan os neoconservadores
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
167
negros como Thomas Sowell, que tam- Isso é parte da atração que o farrakha-
bém vêm defendendo essa política. Mas nismo militante exerce sobre univer-
a diferença entre as duas versões deveria sitários negros nostálgicos dos anos
ser óbvia. Existe a auto-ajuda individual sessenta como uma Idade de Ouro do
à la Ben Franklin, que cativa muitos engajamento e do ativismo social. Pois
conservadores, e existe a auto-ajuda de Farrakhan possui algo do carisma de um
grupo, que pode ser coisa diferente. A líder de movimento subterrâneo, alguém
¿ loso¿ a conservadora também não quer que poderia ter saído das páginas de O
ver a a¿ nidade entre auto-ajuda e auto- homem invisível, como Ras o Destruidor,
determinação. Os oradores que se aque- que ainda fala usando termos ideológicos
cem em torno da perspectiva do ¿ m das inequívocos e antiquados. Os negros
denúncias do racismo e de suas injustiças norte-americanos sempre reservaram
sentem nisso uma versão do discurso do um lugar especial, se não principal, para
chefe Joseph, dos Nez Perce, depois que líderes cuja retórica do tipo “queimem as
sua nação foi aniquilada: “Nunca, jamais pontes deles” os estabelece como pessoas
voltarei a lutar.” Mas o sentimento de que jamais seriam aceitas pelos brancos e
auto-ajuda no Mall surgiu de uma pre- que, portanto, têm menos oportunidades
missa diferente. Para que preocupar-se de trair os seus iguais.
em conduzir uma política de denúncia
das iniqüidades de base racial quando Por contraste, Jesse Jackson
isso não vai produzir resultados num ganha menos pontos nesta era de pola-
clima político que alimenta “brancos ira- rização racial porque seu conciliatório
dos” cuja reação se reÀete nas pesquisas? movimento Arco-Íris não funcionou,
O fosso se alarga. fazendo-o parecer, no crucial barômetro
da fúria racial, uma bolha de sabão.
A especulação que irrompeu na Num período anterior, Jackson montou
mídia a respeito de Farrakhan desde a uma campanha plausível para presidente
Marcha me faz lembrar da forma como apoiando-se numa Coalizão Arco-Íris,
os ¿ lmes de Hollywood abordam espi- mas acabou sendo posto de lado, em
nhosos problemas políticos enredando-os parte devido à intensa reação provocada
todos na história de um indivíduo. Pode- por uma observação tola. Uma década
-se separar a mensagem do mensageiro depois, quando as relações raciais pio-
no sentido de que a mensagem, o milhão raram sensivelmente, Jackson é visto
de homens no Mall, será para sempre a como menos relevante e os Estados
história-chave daquele dia. Unidos se preocupam com a crescente
Por que aconteceu de apenas atração exercida por Louis Farrakhan.
Farrakhan obter sucesso em realizá- Essa seqüência é quase auto-explicativa
-la? Porque a Nação dos Islã é a única e deveria prescindir da necessidade de
organização que ainda traz algo da aura tantos artigos de capa sobre o fenômeno
militante dos engajados anos sessenta. da ascensão de Farrakhan.
168 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
A Marcha indica que a política lógica não pode ser confundida com
focalizada em gênero das últimas déca- um apelo para se voltar àquele código
das tem sido hesitante em compreender de comportamento do século XIX pelo
essa circunstância histórica. A ânsia por qual as mulheres negras mostravam
desessencializar a negritude à custa da condescendência com os homens negros
identidade dos homens negros heteros- em função dos tempos difíceis que estes
sexuais levou uma surra em Washing- viviam.
ton. Encontrou-se no Mall uma ampla
diversidade dentro de uma identidade O feito singular mais marcante
central que alguns intelectuais negros da Marcha sobre o Mall foi a instantânea
reconstrução da identidade do homem
têm desejado fortemente desintegrar. O
espaço crucial que tem sido moldado negro heterossexual digno e sério. Mui-
especialmente para os homens negros, tos observadores estão à espreita para
ver quais serão os resultados da Marcha
para que estes o preencham bem ou mal,
em termos do progresso social negro.
querendo ou não, é apenas um fato - é,
Milhares já responderam ao apelo para
assim, uma parte do cenário, tal como o
que se comprometam na ação em suas
racismo, e com certeza um de seus sub-
comunidades locais. Mas o que também
produtos. Não se trata de uma realidade
se está espreitando é a capacidade de di-
imutável da natureza, mas de um dado
versas posições de identidade ameaçadas
social/histórico.
aceitarem como verdadeira e válida essa
Creio que o objetivo de se ex- ressurrecta categoria de humanidade.
pandir a liderança negra feminina e sua Muitos dos que se davam bem com a
aceitação geral em todos os setores da marginalização do conceito de homem
população negra constitua o índice mais negro responsável estão temerosos de
¿ dedigno da igualdade de gênero que que a Marcha tenha virado a mesa no
deve ser parte de qualquer ordem social sentido de sua própria marginalização.
humanista e progressista. Mas a busca de E de fato, a partir de agora, a recusa
tais possibilidades é obstruída por uma em conceituar a moralidade do homem
limitada e supersimpli¿cada ideologia de negro parecerá cada vez mais uma au-
soma zero que iguala a liderança negra tomarginalização. Um reconhecimento
masculina ao patriarcado. Se podemos dessas novas e diferentes circunstâncias
ver a liderança negra feminina como um emerge do artigo de Kristal Brent Zook
sinal de igualdade, e não simplesmente na New York Times Magazine: “Agora,
como matriarcado, devemos ser capazes mais do que nunca, é o momento para
de historicizar a liderança negra mascu- uma complexa unidade entre mulheres
lina contemporânea como algo diferente e homens negros, uma unidade diferente
da pura e simples hierarquia. Mas essa da habitual.”
Um entr e um milhão
Clyde Taylor
173
marchands do país. As paredes de sua ga- realmente pesa, embora você não deixe
leria estão cobertas de pinturas abstratas que isso o derrube. Neste grupo, não esta-
de Al Loving, Ed Clark, Nannette Carter mos deixando que isso nos pare. Mas ao
e David Driscoll, entre outros. N’Namdi mesmo tempo você sabe que a coisa está
e seu ¿ lho Jarmani, que está no último lá. Certo? E às vezes isso é um saco. Você
ano no Morehouse College, decidiram pensa: pombas, eu podia estar ganhando
participar da Marcha. “Não sou o tipo dez milhões em vez de 200 mil. Isso é o
de pessoa que vai ouvir Farrakhan falar”, que você sente. Não tem nada a ver com
disse-me ele algumas semanas depois a qualidade ou com o tipo de produto que
do evento. “Quer dizer, já ¿ z isso. Ouvi você oferece.
os discursos dele nos anos setenta. Não
“Foi uma coisa muito pessoal
é que eu seja contra ele ou coisa assim.
para mim, sabe? Falei com meu ¿ lho e
É somente algo que eu não pensaria em
decidimos ir como uma equipe de pai e
fazer.
¿ lho, mas foi um assunto que não discuti
“Para mim, foi, de certa forma, com nenhum de meus amigos. Mas um
como uma libertação mental, espiritual. fenômeno interessante em relação à Mar-
Sabe, ter em torno de você pessoas em cha é que vários dos meus amigos foram
situação semelhante. Você vê, ainda está com seus ¿ lhos, e nós não discutimos
lá, aquela pequena frustração, como uma entre nós. Todo o mundo foi.”
furiazinha reprimida ou algo assim. Des-
N’Namdi diz que a Marcha não
cobri que grande número de participantes
o estimulou a se tornar um militante
eram pessoas que, tal como eu, tinham
comunitário nem a se envolver de novas
negócio próprio. Podiam ser advogados
maneiras com a comunidade. “Já es-
com escritórios próprios, médicos ou
tou envolvido”, a¿ rma ele. “Dirijo um
dentistas com seus consultórios. Um
negócio que promove a nossa cultura.
monte de gente desse tipo participou.
Minha mulher dirige uma escola. Não
Eu achei que havia ali um fenômeno
precisamos fazer parte de organizações.”
interessante. Nós temos esses negócios
e parecemos bem-sucedidos e tudo mais. Em novembro de 1994, Henry
E somos bem-sucedidos até certo ponto. McKoy e Larry Linney ¿ zeram história
Mas o problema é esse pequeno nível de e levantaram controvérsias na Carolina
frustração. Como você sabe, se algum do Norte ao se tornarem os primeiros
outro faz o trabalho que você faz, os republicanos negros a se elegerem, des-
benefícios são muito maiores. No meu de a Reconstrução6, para o parlamento
caso, no campo da arte, se eu fosse bran- estadual - Linney, num distrito que era
co ou algo assim, no nível em que opero, 90 por cento branco, para a assembléia e
imagine só! Os museus estariam batendo McKoy, num distrito 77 por cento bran-
à minha porta para participar. Vamos ser co, para o Senado [estadual]. Eles foram
amigos, você sabe como é que é... A raça dois dos poucos políticos afro-america-
A mar cha de Um Milhão de Homens; a Realidade de Quem?
David J. Dent
181
__________
6
A Reconstrução foi uma série de medidas e programas implementados após a abolição da escravatura nos Estados Unidos
com o propósito de preparar e dar condições aos recém-libertos de origem africana de exercerem sua liberdade. O slogan
principal era “Quarenta acres e uma mula”, referência à proposta de dar terras às famílias negras para que estas pudessem
extrair seu sustento. Durante esse período, alguns negros se elegeram pelo Partido Republicano, de Abraham Lincoln. De
forma geral, contudo, a Reconstrução desintegrou-se em um emaranhado de corrupção, oportunidades perdidas e impe-
dimentos impostos pelo racismo dominante em âmbito local, onde a instituição da segregação racial e dos linchamentos
de¿ nia o verdadeiro regime de liberdade para o negro. A Reconstrução representa hoje, para a população negra, mais uma
promessa não cumprida pelas autoridades. O símbolo desse fracasso é a imagem do carpetbagger, o nortista branco que
chegava ao Sul do país, supostamente para implementar reformas, e levava o que havia ganho de volta para o Norte em sua
mala de tapeçaria. Depois dessa época, o Partido Republicano, representando cada vez mais a direita, ¿ cou praticamente
destituído de apoio entre os negros. O Partido Democrata passou à condição de depositário certo da quase totalidade dos
votos afro-americanos, sobretudo após o New Deal do democrata Franklin Roosevelt. (N. E.)
182 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
também tenho algumas reservas. Acho dele e eu tenho os meus. Tenho muito
bom que os homens negros se reúnam cuidado quando se trata de entrar numa
para se concentrar na necessidade de luta contra um grupo de indivíduos que
abordar os problemas da comunidade ne- não são meus inimigos7.
gra. E a vontade e o interesse dos homens
“Vou ter de considerar os in-
negros em avançar demonstram uma res-
teresses de Henry McKoy em atender
ponsabilidade pessoal concretizando-se
nessa ação. Faz muito tempo que levanto as necessidades de seu povo e de seus
essa questão da responsabilidade pessoal, eleitores, e não o que Louis Farrakhan
de modo que ¿ co satisfeito com a idéia faz. E essa é a linha divisória. Ele não
de que os homens negros vão se engajar e me conhece e eu não o conheço. Embora
assumir alguma responsabilidade pessoal eu concorde ¿loso¿ camente com a maior
por certas coisas que são necessárias à parte das coisas que ele quer fazer, ele
promoção dos interesses da comunidade pode ter frustrações em relação a certas
afro-americana. pessoas, e eu não compartilho tais frus-
trações.
“Minha única reserva diz respei-
to ao fato de que não quero ser usado, “O que me excita quanto a um
mais uma vez, para promover as agen- milhão de homens negros se reunindo é
das de outros. Soube nos últimos dias que isso bate com tudo aquilo em que eu
que os cabeças da Convenção Nacional acredito. Eu lhe contei a história de ver
Batista e de algumas outras organizações meu pai abraçando o pai dele no enterro
estão hesitantes. Quero ver provas de de meu bisavô, e eu abraçando meu pai,
que outros líderes conservadores estão e minhas ¿ lhas me abraçando no enterro
sendo chamados a tomar parte ativa no de meu pai, gerações se abraçando e se
movimento. apoiando e tomando conta umas das
“Tenho de esperar e tomar minha outras e assumindo responsabilidade
própria decisão sobre aquilo que eu per- pessoal. A idéia de um milhão de homens
ceba como sendo a direção a seguir de negros se reunindo e decidindo que va-
acordo com o papel que exerço. Tenho mos parar de ferir uns aos outros, parar
¿ cado satisfeito com as posições de Far- de molestar as mulheres, que vamos
rakhan sobre auto-su¿ciência econômica, começar a juntar nossos recursos é abso-
responsabilidade pessoal, essas coisas lutamente positiva e de acordo com tudo
todas, mas há questões mais profundas aquilo em que acredito. Mas ao mesmo
para mim. Ele não assume meus inimi- tempo não quero fazer parte da agenda
gos e eu não assumo os dele. Ele tem os pessoal de quem quer que seja no que se
__________
7
Louis Farrakhan tem ostentado publicamente uma posição de denúncia contra os judeus e o Estado de Israel no que se
refere ao islamismo e à história da escravidão africana e da discriminação racial. (N. E.)
A mar cha de Um Milhão de Homens; a Realidade de Quem?
David J. Dent
183
__________
8
Al Sharpton é um controvertido líder comunitário de Nova York, recentemente derrotado como candidato a prefeito daquele
município. Marion Barry é o ex-prefeito de Washington que foi preso, envolvido em escândalos de corrupção e drogas.
Jesse Jackson é militante dos direitos civis, fundador da organização PUSH (People United to Save Humanity - Povo
Unido para Salvar a Humanidade), de Chicago, e da Coalizão Arco-Íris, corrente do Partido Democrata que o lançou como
candidato à nomeação do partido para disputar a Presidência da República. Ben Chavis é o último líder eleito à presidência
da tradicional Associação Nacional para o Progresso das Pessoas de Cor (NAACP). (N. E.)
9
Programa da TV norte-americana. (N. E.)
10
Contrato com a América é o título dado pelo Partido Republicano ao seu programa para os Estados Unidos. (N. E.)
11
Palavra do N refere-se ao vocábulo nigger, ofensa antinegra cunhada pelos brancos do Sul dos Estados Unidos, e que
também é usada por negros em certos contextos. Wetback e hymie são palavras de forte carga pejorativa usadas para se
referir, respectivamente, aos imigrantes mexicanos e aos judeus. (N. E.)
184 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
como “à direita de Pat Buchanan”12. Ele faixa dos 18 aos 30 é a AIDS. Tenho de
¿ cou desapontado pelo fato de negros reparar o fato de viver numa comunidade
republicanos como os deputados federais em que uma escola de segundo grau está
J.C. Watts e Gary Franks terem preferi- reprovando os rapazes afro-americanos
do não aderir. “Bem, eu acho que isso a uma taxa de 70%. Quer dizer, tenho de
é desastroso, pois não se pode julgar o reparar o fato de uma comunidade não ter
benefício ou virtude de um evento em instituições ¿ nanceiras de propriedade
função da participação de uma pessoa. de afro-americanos. É uma reparação
Pessoalmente, não sou muçulmano, mas pessoal pelos fracassos da comunidade
assim mesmo eu vou. Acho que as pesso- em que nasci e fui criado. E porque penso
as irão pela ¿nalidade maior e não podem que poderia fazer mais do que faço a esse
nem devem ser desencorajadas por causa respeito.
do envolvimento e participação de um in- “Recebi telefonemas de meus
divíduo. Quer dizer, será que deveríamos eleitores. Um deles estava furioso com
renunciar à nossa cidadania americana minha participação na Marcha por causa
porque nosso presidente cometeu adulté- de Farrakhan e, na verdade, deixou uma
rio? Acho que isso é abominável e triste, mensagem na minha secretária eletrô-
e é um dos pecados originais, mas ainda nica a¿ rmando que fazer isso seria um
assim não diminuiria nosso respeito pela grande, um enorme erro político. Bem,
função presidencial ou por esta nação. sabe como é, se eu fosse algum tipo de
Assim, não se pode ¿ car olhando para covarde ou, de certo modo, um político
um indivíduo e condenar todo um evento típico, poderia levar esses telefonemas
positivo. em consideração e rever meu desejo de
“Algo está errado, e se há uma participar. Acho que a Marcha foi uma
coisa errada a questão se torna: quem é o prova da masculinidade negra.”
responsável? E, em vez de arranjar bodes Uma prova? Prova de quem?
expiatórios e ¿car culpando outras pesso- Participar ou não da Marcha foi uma
as, outros grupos étnicos, estamos de fato opção individual que se deveria ter a
reconhecendo que nós próprios somos liberdade de fazer, tal como N’Namdi
culpados por grande parte do problema. decidiu ir a Washington e McKoy pre-
E precisamos nos arrepender e reparar feriu não ir. A idéia de uma “prova da
nossos erros. Bem, uma das coisas que masculinidade negra” choca-se com o
eu tenho de reparar é que eu vivo numa fato da nossa diversidade e com o indivi-
comunidade em que a principal causa dualismo automático que vai de par com
mortis dos homens afro-americanos na a verdadeira liberdade.
__________
12
O escritor e radialista Pat Buchanan é um dos mais destacados porta-vozes da extrema direita contemporânea nos
Estados Unidos. (N. E.)
A mar cha de 1 milhão de homens; a r ealidade de quem?
David J. Dent
185
__________
13
Booker T. Washington, fundador do Instituto Tuskegee, advogava a auto-ajuda dos negros e a ascensão destes por meio
da formação técnico-pro¿ ssional, mesmo dentro de uma sociedade segregada. W. E. B. DuBois, sociólogo e organizador
de quatro Congressos Pan-Africanos, defendia a a¿ rmação da personalidade do negro e seu protesto contra a discrimina-
ção, denunciando a segregação e fundando uma das mais importantes organizações da comunidade negra a trabalhar pela
integração racial e pelos direitos civis, a NAACP. (N.E)
Desenho do artista afro-norte-americano Sneed
Afr o-amer icanas Nova Yor k - Milhares de mu-
lheres de origem africana dos Estados
r eúnem-se na Unidos e de todo o mundo reuniram-se
no dia 25 de outubro último, na cidade
Mar cha de de Filadél¿ a, na Pensilvânia, para rea-
lizar a primeira Marcha de Um Milhão
Um Milhão de Mulheres da história daquele país.
de Mulher es* Vagamente inspirada na Marcha de Um
Milhão de Homens, realizada dois anos
antes na cidade de Washington, a Marcha
de Um Milhão de Mulheres foi patrocina-
da pela Comissão Organizadora Nacional
de Filadél¿ a National Organizing Com-
mittee of Philadelphia, união de grupos
femininos que tem por meta divulgar os
papéis e objetivos das mulheres negras
nos Estados Unidos de hoje.
Entre os temas do encontro
estavam a construção de hospitais e
postos de saúde para mulheres pobres,
o desenvolvimento de escolas negras
independentes, o aperfeiçoamento das
Lula Strickland pro¿ ssionais liberais negras e a ajuda
190 THOTH 5/ agosto de 1998
Depoimentos
nais liberais negras e a ajuda a mulheres frente ao palco, espalhando-se pelas áreas
recém-egressas de prisões. As organiza- adjacentes até se perder de vista. O ativista
doras da Marcha estimam em 1,2 milhão Dick Gregory provocou risos na multidão
o número de pessoas que compareceram ao a¿rmar Tue haYia ³ um monte de gente´
ao histórico evento, iniciado com uma presente, em comparação com os números
simbólica procissão de mulheres, sob que a imprensa poderia indicar.
um céu chuvoso, da esquina da 5th com
Abordando os temas do desenvol-
a Market Street até a Benjamin Franklin
Parkway, local das festividades e de toda vimento feminino e do status atual da mu-
a programação. Um enorme palanque lher negra nos Estados Unidos, a deputada
dotado de possante equipamento de som, Maxine Waters reforçou seus argumentos
em frente a um oceano de rostos pretos e apresentando duras estatísticas:
morenos, serviu de ponto focal durante - Nós [as mulheres negras]
as 12 horas do evento. somos 7% da população”, informou ela
&he¿ ar o palanTue como mes- à imensa platéia. “Setenta e oito por
tre-de-cerimônias foi função de Jada cento de nós conseguiram completar o
Pinkett, popular atriz de Hollywood. segundo grau e 59,9% estão no mercado
Outras mulheres importantes incluíam- de trabalho. Estamos sub-representadas
-se na agenda, dentre as quais líderes entre os pro¿ ssionais liberais, gerentes e
religiosas, ativistas comunitárias, per- supervisores.
sonalidades da política e do mundo do Enquanto a multidão manifes-
entretenimento. Embora o programa tava ruidosamente sua aprovação, ela
tivesse como foco as mulheres comuns, continuava:
Y rias oradora s famosas ¿ zeram uso da
palavra, como a deputada Maxine Wa- Nossos rendimentos médios
ters, da Califórnia, Kadijah Farrakhan, são de vinte mil dólares por ano. Somos
duas ¿ lhas da falecida Bett\ 6habazz, de classe média, ricas e desproporcio-
o militante Dick Gregory, o ator Blair -nalmente pobres. Apesar da retórica dos
Underwood, o deputado John Conyers e políticos de direita, não constituímos a
a ativista comunitária Sister Souljah. A população dependente da previdência
cantora Faith Evans, mulher do rapper neste país.
assassinado Biggie Smalls, cantou “His Ela disse que as mulheres negras
e\ e is on the sparroZ ´ e pediu o ¿ m da ganham 64 centavos para cada dólar ga-
violência. Um dos pontos altos da progra- nho pelos homens brancos e que 28,9%
mação foi a participação da sul-africana das afro-americanas vivem na pobreza.
Winnie Mandela. Além disso, as negras morrem mais cedo
As nuvens carregadas e a baixa do que as outras mulheres. A deputada
temperatura não arrefeceram o entusias- terminou seu discurso a¿ rmando Tue a
mo das mulheres que lotavam a praça em AIDS é hoje o assassino número um das
Afr o-Amer icanas r eúnem-se na Mar cha de Um Milhão de Mulher es
Lula Strickland
191
confessar: “Felizmente ainda tenho meus alegria e a esperança aos mais recônditos
¿ lhos para me consolar.” recantos mineiros, paulistas e goianos:
João Lauro e até Atílio Martinelli, este,
A lamparina lança um clarão
com um caminhão de grande porte, a va-
semicrepuscular na parede de nossa
rar as veredas e sertões das Minas Gerais
meia-água pobre. Um vulto escancara a
em estradas poeirentas, circundadas de
porta e o vejo oscilante e trêmulo, como
buritis altaneiros e onde, nos cerrados e
quem vai cair. Sinto, na sombra, uns bra-
capões, as seriemas lançam uma corrida
ços ternos abraçando a mim e ao mano,
sensacional até pararem junto de um
num choro rouco e convulso, na certeza
cupim, no meio do descampado.
de que viverá ainda muito tempo e talvez
até morrerá sem ver o regresso daquele A campainha do Cinema Central
a quem prometera amor e fidelidade tilinta, chamando os tardos espectadores
conjugal até a morte. para a sessão da noite, em que se anuncia
um ¿ lme da June Caprice ou Viola Dana.
Vejo-a de cabelos em trança, o
Mamãe não gostava da Francesca Bertini
rosto belo e severo, cantando trechos
porque seus ¿ lmes eram bem tristes, ao
da opereta Eva de Franz Lehar, quando
passo que os de June Caprice ou Mary
lavava roupas para os estudantes da Rua
Pickford eram alegres, com enredos su-
Atalaia ou quando, a costurar uma calça
aves e interessantes, além de a história
minha ou camisa do Almir, ela repetia
terminar bem, com beijos, surpresas e
pela madrugada sem estrelas o “Perdão
casamentos. No coreto da Praça da Câ-
Emília” ou a lírica e tocante “Caraboo”.
mara, a Tereza, com seus instrumentos
Ser motorista, pelos idos de a¿ nadíssimos, toca as músicas mais em
1926 a 1928, era ser ousado e ter cora- voga no Rio, como “Pé de anjo”, “Seu Ju-
gem para afrontar estradas perigosas, linho vem”, “Fumando espero”, o tango
onde ladrões e assassinos esperavam nas nostálgico “Vida minha”, sem esquecer
madrugadas para matarem e roubarem os a valsa de tema romântico e evocativo
choferes incautos que, na sua boa fé de “Lua branca”.
ofício, jamais poderiam esperar que uma
A dona Tília caprichou, ao tocar
bala homicida ou uma faca traiçoeira lhes
no piano a valsa “Leonora” de Sinhô,
silenciassem as frágeis vidas. Meu pai
enquanto, na tela branca do Cine Teatro
Augusto foi um dos primeiros motoristas
Avenida, o Douglas Fairbanks pai corre
de Minas. Com meu tio Evaristo, conhe-
pela vela oscilante de um navio, rasgando
ceu e palmilhou as extensas estradas do
o pan—,o ao meio e caindo nos braços
sertão que saem do Triângulo Mineiro,
amoroso da belíssima Billie Dove, no
passando por Uberlândia, Araguari,
Pirata negro.
Tupaciguara, Monte Alegre de Minas,
atravessando o caudaloso rio Parnaíba Fui muito pequeno para a escola,
até a portentosa Goiás. Muitos motoristas arrancado cedo de meus folguedos in-
afrontaram o desconhecido para levar a fantis. Não havia um jardim da infância
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
201
com um sorriso a brincar-lhe na face que * uerreiro 5 amos de¿niu muito bem,
risonha. Que ator formidável foi esse por ocasião da morte do excelso ator: um
negro magérrimo que viveu tão pouco e aristocrata príncipe da negritude. Com
tão intensamente. Era de vê-lo bêbado e suas Ieiç}es ¿ nas e suaves, Iala de um
cambaleando na Lapa, a declamar Guerra dulçor próprio dos descendentes de afri-
Junqueiro para as prostitutas deslumbra- canos, Aguinaldo aliava a sua poderosa
das de um café suspeito qualquer. Na veia dramática à expressão admirável de
nossa mesa, encantara dicção primorosa um escritor sincero e louvável. Um livro
de Aguinaldo, seus gestos preciosos de que deixou, Êxodo da senzala, recebeu
consumado ator e com uma emoção elogios calorosos de Gilberto Freyre, que
intensa ao declamar os poemas do poeta esteve com os originais por muito tempo,
de “Finis patriae”. lendo-os, preso pela narrativa diferente
Tudo em Aguinaldo era de um e pela novidade de um tema não tratado
pelos ensaístas afro-brasileiros.
espírito convulsivo e em franca erupção
emocional. Não sei por que, ao ver-lhe O Teatro Experimental do Negro
tanto desperdício de talento e vida, senti tinha por base o teatro como um veículo
que ele não teria muito tempo de existên- poderoso de educação popular. Tinha sua
cia terrena. Aguinaldo foi quem quebrou sede num dos salões da União Nacional
o silêncio respeitoso que havia entre nós. dos Estudantes, onde aportavam, dos
“Sou de Campinas. Minha paixão é o tea- subúrbios e de vários pontos da cidade
tro. Precisa conhecer meus companheiros operários, domésticas, negros e brancos
em prol da emancipação negra: Geraldo de várias procedências humildes. Ali, a
Campos, Abdias Nascimento, Sebastião pedido de Abdias, ministrei por anos a
Rodrigues Alves e José Pompílio da ¿ o, um e[ tenso curso de alIabeti] ação
Hora. Vou levar você para conhecer o Te- em que, além dos rudimentos de Portu-
atro Experimental do Negro. É um grupo guês, História, Aritmética e Educação
que promete quebrar e derrubar muitas Moral e Cívica, ensinei também noções
muralhas do preconceito racial brasileiro. da História e Evolução do Teatro Univer-
9ocê precisa ver e ouvir a aura inÀamada sal, tudo entremeado com lições sobre o
do Abdias, o quanto ele, desprezando to- folclore afro-brasileiro e as façanhas e
das as comodidades e benefícios sociais, lendas dos maiores vultos de nossa raça.
somente aspira ao dia em que o negro for Uma vez por semana, um valor de nossas
letras ali ia fazer conferência educativa
livre para entrar no o Itamarati, ser titular
e acessível àqueles alunos operários
em muitas patentes das Forças Armadas,
que, até altas horas da noite, vencendo
en¿ m, de ser alJ u m importante entre as
um indisfarçável cansaço físico, ali iam
mais importantes e privilegiadas raças do
aprendendo tudo o que uma pessoa re-
Universo.”
cebe num curso de cultura teórica e, ao
Advogado, escritor de estilo vi- mesmo tempo, prática. Com o aprendiza-
goroso e vibrante, Aguinaldo foi aquilo do das matérias mais prementes para um
Grande Otelo (ao microfone) ladeado por Ataulfo Alves (à esquerda), Abdias Nascimento e Maria Tereza, na festa da
Boneca de Pixe, salão do Botafogo, promovida pelo TEN em 1949
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
211
feiras, uma temporada com todas as pe- como endoidado, pulou num repente por
ças mencionadas de O’Neil. Claro que o entre os pares e assentou-se a uma mesa,
TEN foi arregimentado ou aglutinando sorvendo mais de um copo de uísque.
os maiores valores da cultura brasileira Depois a imagem que guardo do grande
que ali iam colaborar para uma iniciativa romancista de Inácio é na estréia de seu
teatral que não tinha paralelo entre nós. Filho pródigo, no Teatro Experimental
Santa Rosa, por exemplo, pintor maravi- do Negro, no Teatro Carlos Gomes.
lhoso dos motivos do folclore e costumes Lúcio nunca assistia às premières de
nordestinos, foi valioso colaborador de suas peças; sempre ia para um botequim
Abdias em mais de uma conferência. defronte do teatro e ali ¿cava a eer
Ilustrava com seus desenhos os moti- o tempo todo. Só voltava no fim do
vos, em debate, do conferencista. Para espetáculo, trancando-se num camarim,
Rapsódia negra e Sortilégio, Santa Rosa nervoso e de olhos assustados. Quando
conceeu cenrios de Sura magni¿cência cheguei ao Teatro Carlos Gomes ele es-
plástica, enchendo os olhos dos expecta- tava uma pilha de nervos, falando com
dores com um belíssimo jogo de cores e Ruth de Souza, estrela do espetáculo.
linhas sóbrias de um consumado pintor. A peça continha uma poesia evocativa
É preciso ver as capas dos romances da de grande beleza, um assunto bíblico
Editora José Olympio, idealizadas por tratado com delicadeza por Lúcio, tudo
Santa Rosa, como Angústia de Graciliano adaptado ao mundo negro da fábula e
Ramos, Oscarina de Marques Rebelo, da magia. Aguinaldo Camargo como
Território humano de José Geraldo Viei- Manassés e Abdias Nascimento como
ra, sem falar as dos romances do ciclo da o pai patriarcal, que comanda a vida e o
cana-de-açúcar, de José Lins do Rego. destino de seu clã, em grandes e soberbos
Lúcio Cardoso e o seu rosto desempenhos.
elo, transmitindo in¿nita ang~stia e um Tudo que os historiadores bran-
mistério insondável para todos os moços cos escreveram a respeito do negro foi
que o rodeavam. Para aplacar a ansieda- Sura misti¿caço, j que todas as suas
de e tortura que lhe iam n’alma, bebia ciências tinham como função pregar a
muito e, por vezes, mal parava de pé, a inferioridade racial do negro. Assim, não
camalear, como se quisesse ¿rmarse constituem surpresa alguma as descober-
na vida, numa atitude segura e decisiva. tas de dois historiadores africanos sobre
Lembro-me dele no Estrâmbole, cabaré a cor negra dos antigos egípcios. Um é o
de marinheiros e mariposas nos fundos senegalês Cheik Anta Diop, que escreve
da Avenida Marechal Floriano. Seus uma história do Continente Africano,
olhos, de um castanho acentuado, não em que prova, contra todas as opiniões
dei[avam de ¿[ar uma dançarina de rosa dos historiadores racistas, que os antigos
à cabeça que envolvia, nuns passos de egípcios eram negros de cabelos enrola-
dança, um efebo de rara beleza. Lúcio, dos e lábios grossos, como comprovam
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
213
as suas es¿ nges e os murais desenhados Dario acatou, sem ressentimento, esse
em velhos templos religiosos. Heródoto, parecer.”
no segundo livro de sua História, diz que Heródoto, para chegar a essa
os antepassados dos egípcios foram os luminosa conclusão, foi pesquisar nos
colchidianos, que “tinham pele negra, lugares estudados, ouviu o parecer dos
cabelos encarapinhados e praticavam a reis, dos sacerdotes e da gente do povo.
circuncisão desde a origem”. Sem o querer, estava preparando o ca-
Ésquilo, que deve ter-se embebi- minho para os estudiosos hodiernos da
do em Héródoto para escrever sua belís- negritude. Assim, Amelineau, egiptólogo
sima tragédia As Suplicantes, con¿ rma a do começo do começo XX, não duvida
pele negra daquelas mulheres religiosas da origem negra da civilização egípcia,
que vêm do Egito pelo deserto, enegre- assim como Cheikh Anta Diop e Oben-
cidas pelos ardores de um sol ardente. ga, que fotografaram as esculturas e os
Heródoto também fala “dos egípcios afrescos egípcios, vendo o negróide da
empretecidos pelas ardências solares”. civilização egípcia como “cor da pele
escura, lábios espessos, nariz curto e
Aristóteles, esquecido de que carnudo, osteologia especial (espáduas
sua Grécia aprendeu quase tudo de largas, busto curto, quadris estreitos,
minha África, chama os negros etíopes pernas longas e ¿ nas , comprovando um
e egípcios de covardes, num parti-pris espécimen nitidamente negro”.
bem faccioso da ciência branca, engajada
e calculista. No entanto Heródoto, na Claro que a ciência acadêmica
sua obra monumental que citei, fala das e bitolada gritou e esbravejou aos qua-
façanhas do grande rei egípcio Sesós- tro ventos que isso são teorias racistas,
tris, quando conquistou e venceu vários visando subverter e tumultuar a ciência
povos, inclusive aqueles que Dario não o¿ cial. 0 as n o demos ouvidos a esses
conseguiu subjugar. Este, depois de con- granares de batráquios. O que importa
quistar o mundo, quis colocar sua estátua é que agora é o cientista negro que vem
na frente da de Sesóstris. Foi quando Vul- derrubar as tolices que os Lapouges, os
cano o admoestou de que, agindo assim, Gobineaus e os Charcots espalharam
Dario estaria cometendo uma injustiça, pelo mundo e que Nina Rodrigues, Síl-
já “que não havia praticado tão grandes vio Romero, Afrânio Peixoto e Oliveira
ações quanto Sesóstris e que, se Dario Viana apregoaram, erradamente, sem um
submetera várias nações, não pudera ven- exame consciente e racional.
cer os citas, que Sesóstris subjugou. Não No terreno lingüístico, sábios
era, pois, justo, acrescentou o sacerdote, africanos puseram por terra os dados
colocar diante das estátuas de Sesóstris cient ¿ cos meio suspeitos do professor
a de um príncipe que não o ultrapassara Greenberg, provando o parentesco gené-
em conquistas.” Acrescenta meu mestre tico e lingüístico entre o egípcio antigo, o
e incomparável Heródoto: “Dizem que copta e as línguas africanas. Além disto,
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Sankofa: Memória e Resgate
raça negra. Um príncipe de alto saber Questões e problemas), sem falar nos
e bondade como dom Silvério Gomes escritos esparsos de José do Patrocínio
Pimenta foi um negro que recebeu todas e seu romance Mota Coqueiro, temos
as honrarias dentro da Igreja, atingindo aí cinco escritores de peso cultural que
até o arcebispado, em Minas, dentro do honrariam qualquer literatura do mundo.
respeito e consideração de toda a Minas. Qual foi o nosso erudito ou fuçador de
Ao ingressar na Academia Brasileira de alfarrábios perdidos que se aventurou a
Letras, levava para o Petit Trianon o que coligir o que há de melhor em Hemetério
o clero tinha de mais culto e profundo. dos Santos, perdido em jornais e revistas
Sabedor de vários idiomas, disseminador com que ele colaborou, escrevendo sobre
de vocações sacerdotais, dom Silvério Filologia e o idioma pátrio, de que era um
primou como um grande incentivador de mestre consumado? Ao se insurgir contra
vocações de negros católicos. D. Pedro a indiferença machadiana em face da
II o condecorou, o cardeal Arcoverde o abolição da escravatura, Hemetério dos
tinha em grande conta, a ponto de sagrá- Santos tomou a única posição possível a
-lo bispo de Mariana. O papa concedeu- um negro decente: combater, por todos
-lhe, por seu saber, bondade e grandeza os meios ao seu alcance, o absenteísmo
de iniciativas, o grau de conde papalino, covarde suspeito de certos negros que
como fez também ao conde Afonso Celso só são pretos na pele, mas no íntimo e
e a Carlos de Laet. O negro brasileiro é no todo rezam pela cartilha racista dos
muito mais inteligente, criador e mais brancos que combatemos. É verdade que
livre em suas expansões culturais que um satírico como Emílio de Menezes
o negro americano, tolhido por uma tentou caricaturar o nosso simpático
estreita e bitolada ¿ loso¿ a protestante e Hemetério, pondo em ridículo certas
luterana. atitudes do mestre negro com suas alu-
nas, que o idolatravam. Já Castro Lopes,
Quando se pega um romancista também negro, com sua erudição pedante
do gênio de Lima Barreto (Clara dos e pernóstica, será que trouxe algo de
Anjos, A vida e morte de M. J. Gonzaga incentivo à minha luta em prol do engran-
de Sá, Triste fim de Policarpo Quaresma, decimento de minha raça? Claro que não,
Recordações do escrivão Isaías Cami- mas em seus Artigos filológicos de 1910,
nha, Histórias e Sonho), Machado de ele discute com Cândido Figueiredo a
Assis (Memorial de Aires, Esaú e Jacó, gra¿a correta de projéctilo ou projéctil,
Memórias póstumas de Brás Cubas), um parêce ou paréce, suór ou suôr, bênção
pensador profundo e vigoroso de soció- ou benção, se o léxico papagaio não é
logo como Tobias Barreto (Os menores de origem grega ou latina e sim derivado
loucos, Estudos alemães), a pujança do árabe para o francês. Fala, aí, da ave
cultural de um sociólogo e pensador papagaio que palra, articula e imita a voz
prematuramente falecido como Tito Lí- humana. Esse livro de estudo e meditação
vio de Castro (A mulher e a sociologia, mostra até onde pode chegar a cultura
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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negra quando seu portador é um espí- fogos e traques de estilo, só para ouvir a
rito imbuído de forte saber, o que torna baderna barulhenta da cainçalha batendo
tão atraentes esses eruditos estudos. Os com a lataria ensurdecedora pelas pedras
crioulos que enxameiam, aos domingos, desiguais do calçamento da via pública.
nosso Maracanã não perdoariam Castro Ta mbém é um pouco forte
Lopes se, em lugar de “ futebol” , tives- Fernando Góis achar a prosa poética de
sem de dizer “rodopédio”. Cruz e Sousa uma literatura medíocre e
Fernando Góis usou de sua in- secundária. Será que o crítico não teve
teligência reconhecida para expor certas aguda sensibilidade para penetrar no
idéias ou conceitos muito aquém do que ritmo estranho e de musicalidade bizar-
se esperava dele ao fazer comentários ra do “O emparedado”? O maior brado
discutíveis sobre as “Bodarradas” ou a que um negro já soltou em nosso idioma
grande poesia de fundo social de Luís passa imperceptível a Fernando de Góis,
Gama. O analista Fernando, em vez de se quando analistas do gabarito de Tasso
ater à época revolucionária em que surgi- da Silveira, Andrade Muricy, Agripino
ram os poemas satíricos de Gama, analisa Grieco e Tristão de Athayde, sem falar
esses poemas do modo mais leviano e de mestre Nestor Vítor, colocam “O
inconseqüente possível. Até um Manoel emparedado” em alturas só atingíveis
Bandeira não reconhece similar no idio- pelas obras de arte de¿ nitiva.
ma em face das “Bodarradas”. Afrânio A prosa de Cruz e Sousa é bem
Peixoto é outro crítico que dá grande do simbolismo, com todos os seus vo-
apreço a esses poemas do diabólico Getu- cábulos sonantes e musicais escritos em
lino, numa página louvável do Humor. A maiúsculas. Mas, somando todos esses
negritude tem em Luís Gama um poeta de jogos de palavras que parecem nada
mérito, porque nesse combate que Luís dizer, embora digam coisas profundas e
Gama faz aos ¿ gurões ridículos do seu emocionantes, adindo todos esses léxi-
tempo o negro já entra com grande dose cos onomatopéicos, temos um estilo de
de protesto aos seus dominadores. E isso grande beleza musical, como é o caso
o poeta descreve citando, em seu favor, da grande prosa simbolista do Gonzaga
muitos duendes da mitologia grega e Duque da Mocidade morta e Horto de
chamando os escravocratas de São Paulo mágoas, do Raul Pompéia tão embebido
de “bode barbudo” ou “cabra coiceira de Beaudelaire em Canções sem Metro.
estúpida”. Claro que o Brasil inteiro Esse estilo rico de palavreado
riu desses ¿ gurões empavonados, numa sonoro e de segundas intenções pode pa-
empá¿ a do mais antipático escravismo. recer demasiado verboso a espíritos pou-
Luís Gama os colocou num picadeiro de co sensíveis à grande poesia simbolista,
circo, como a esses cachorros das ruas como no equívoco cometido por Tristão
que a criançada amarra umas latas em de Athayde e na sua infeliz comparação
seus rabos sarnentos e os espanta, com estética entre Cruz e Sousa e Alphonsus
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Sankofa: Memória e Resgate
se falará no nome de Assis Valente por de quando ela estava em pleno explen-
todo o Brasil e o nome dum obscuro edil, dor da vida. Por isso não acompanhei
que foi contra a homenagem da cidade a Bororó aos féretros do J. Cascata e do
Assis, será profundamente esquecido no Benedito Lacerda. O de Ari Barroso foi
rol das coisas inúteis.” bonito porque virou carnaval e os foliões
improvisaram uma alegre mascarada no
Minha vida está tão intimamente
acompanhamento fúnebre do autor de
ligada à do Bororó que sempre que al-
“Dá nela”.
guém me vê sozinho pergunta: “Como
vai o Bororó?” O mesmo acontece com A Rua Dois de Dezembro tinha
o grande chorão de “Da cor do pecado”. sua beleza serena, com seus chalés de
Muitos vultos notáveis com que travei dois andares, dotados de gradis e va-
conhecimento em minha vida atribulada, randas, onde descansavam as donas de
foi graças a Bororó que pude privar de pensão, com os hóspedes estudantes e
sua convivência. Quantos tipos esquisi- demais pessoas da família. Os bailes que
tos e fora do comum com quem travamos se davam nas casas abastadas, reunindo
relações e de quem guardamos recorda- a melhor juventude do Catete, Beco dos
ções indeléveis: Donga, com seu jeito Pinheiros, Buarque de Macedo, Correia
meio descon¿ ado, era o¿ cial de justiça Dutra e até Rua Machado de Assis. Os
e andava sempre sério e meio cabreiro. encontros dos estudantes no Café Pau-
Era preciso ver sua face sem riso no dia lista, as sessões do Cinema Moderno, na
em que, no Teatro Municipal, a cidade Praça Tiradentes, no Fênix ou no Ideal,
do Rio homenageou o compositor Pixin- este na Rua da Carioca, e no Eldorado,
guinha. Cirino veio da França, estudou Avenida Rio Branco, que cobrava pouco
lá Harmonia profundamente e era quem mais de vinte centavos. A guerra lá fora
botava em pauta musical das partituras era um eco terrível e distante e, de vez
as músicas que os autores só faziam em quando, os jornais falavam na queda
de ouvido. Morava na Rua Cândido da França, nos bombardeios dos alemães
Mendes, um pouco acima da casa do sobre Londres e da capitulação de tantas
Bororó. Alegre, trocista e meio careca, nações ante as tropas nazistas, como
Cirino era compositor negro de respeito, Holanda, Bélgica, Grécia, Hungria, etc.
assinando u’a música que corre o Brasil
D. Ermezinda comandava a sua
todo: “Cristo nasceu na Bahia”. Em seu
pensão tranqüila, alugando quartos a
quarto simples e pobre, via-se o diploma
rapazes educados, comportados e que
de uma escola de música que cursara na
trabalhassem fora. Era uma casa alegre,
França.
com ela cantando no tanque, a lavar rou-
Detesto enterros e tenho pavor pas dos hóspedes, enquanto, na vitrola da
da morte. Por isso é que não costumo sala da frente, Dalva de Oliveira soltava
velar a morto nenhum, pois a imagem trinados, com sua voz de ouro em “Er-
que quero guardar da pessoa amada é a rei, sim” de Ataulfo Alves. Por vezes eu
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Sankofa: Memória e Resgate
acordava cedo com o homem do realejo de Dalva, ocultando de nós uma dor
tocando uma valsa de sonho. D. Erme- cardíaca que a levou bem cedo do nosso
zinda era boa e simplória, muitos ¿cavam convívio. Quando vagava um quarto de
devendo à pensão, mas ela era boa e estudante nalguma pensão, era comum
esperava, pois conhecia as di¿ culdades ver uma corda com um pedaço de caixa
da gente operária e daquele que estuda. de sapato a balançar do alto do sobrado.
Quantas vezes, às encondidas do mari- Ao se alugar a vaga, tirava-se o barbante
do, Sr. Osvaldo, ela dava comida para o com o papel na ponta. Que esfuziante
hóspede sem trabalho. De sábado para alegria pelo Catete, com sua nascente
domingo, o samba ali fervia delirante, Faculdade de Direito do Rio de Janeiro,
atraindo rapazes e moças da redondeza, onde me enfronhava com os estudantes,
com a eletrola mandando bem alto ma- colaborando até no jornal O Combate
xixes, sambas e cateretês de Chiquinha de Anísio Rocha. Ali fermentava uma
Gonzaga, Geraldo Pereira e Eduardo turma respeitável de estudantes que hoje
Souto, para desespero da mulher do ve- ocupam posição de destaque em nossa
reador, da esquina, que ameaçava sempre vida social: Laércio Pelegrini, grande
chamar a polícia. Mas quando o carrão ali penalista nacional; Anísio Rocha, depu-
chegava, a D. Ermezinda, com sua beleza tado por Goiás; Moema Ferreira, poetisa
mulata e sorriso brejeiro, recebia os tiras de “Fuga” e “Meus versos” e romancista
com uma garrafa de cerveja gelada ou um segura e poética de Os seios da virgem;
guaraná,e estes, bebendo uma Caracu Leopoldo Heitor, que já era bem bada-
ou Malbier, diziam por desencargo de lado antes do crime que o celebrizou,
consciência: quando, num romance, contou toda a
— É, pode dançar e cantar bai- vida dramática de seu progenitor: Além
xinho, sem fazer zoada. Já telefonaram do rio Paraíba.
duas vezes pro Distrito da Pedro Américo. A voz baixa de Homero Pires, o
— Pode deixar — dizia D. pernosticismo antipático do Ari Franco,
Ermezinda. a bondosa simpatia do Sadi Gusmão, as
aulas concorridas de um grande penalista
— A turma aqui sabe brincar como Roberto Lira, cuja voz de tenor
com respeito. era ouvida até perto de uma avenida de
D. Ermezinda que tanto bem fez casas, próxima à Faculdade: Vila Elite.
a mim, esperando-me meses para pagar Era lá que eu ia me encontrar com o
minha vaga num quarto obscuro. Até o poeta Weimar Torres e gostava de ouvi-
Moacir Franco, quando veio de Ituiutaba, -lo declamar: “Lá vai o carro mineiro,
cidade mineira próxima da Uberlândia gemendo pelo sertão.” As conferências
onde nasci, foi muito auxiliado por essa famosas que ouvi nesse solar atraente
preta sentimental e tristonha, que curtia da Rua do Catete, como uma de Agripi-
suas mágoas ouvindo a voz de rouxinol no Grieco, cheia de malícia ferina e de
A começar do alto, esquerda: Ruth de Souza (“Aíla”), Lúcio Cardoso (o autor), José Maria Monteiro (“Assur”), Roney Silva
(“Moab”), Abdias Nascimento (“o Pai”), Aguinaldo Carmargo (“Manassés”), Marina Gonçalves (“Selene”) e Claudiano
Filho (um “peregrino”), num intervalo do ensaio da peça O filho pródigo, em 1947
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
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nestes quase quarenta anos, ele não perde ele era a maior voz de baixo do mundo.
de vista o que sua raça deu de mais sério, Enquanto persistir a ¿ gura insultante do
objetivo e imortal. O jazz está nessa linha Pai Tomás a pairar sobre a sacrossanta
imorredoura, porque pela sua beleza causa de nossa luta emancipadora, Paul
melódica e acordes arrebatadors e fre- Robeson jamais se demoverá desse seu
mentes não deixou de chamar a atenção gesto de protesto, retirando-se da cena
para o compositor inglês Delius, para um lírica para lutar melhor pelo negro nas
inspirado tcheco como Dvorak compor pugnas e entrechoques cotidianos desta
sua esquisita página de beleza enalte- vida morrinha e sem sentido...
cedora Sinfonia do Novo Mundo, para Quando o camburão, carrão, viú-
um Darius Milhaud fazer a sua gênese va alegre, coração materno ou diligência
africana da origem do universo A cria- policial aponta nos arredores da Central
ção do mundo, de um Ravel em Bolero do Brasil, todas as mariposas, mendigos,
e O menino e os sortilégios, de algumas marginais e camelôs que vendem suas
páginas de Claude Debussy (Minstrels, mercadorias roubadas ¿ ncam o pé no
General Lavine, Gollwog’s cake walk), mundo. Um que engolia fogo, deitava-se
um Gershwin na Rhapsody in blue, um sobre cacos de vidro e tinha, enrolada
Strawinsky (História do soldado), um no dorso, uma enorme jibóia deu uma
Kurt Weil, enchendo de negrismo os corrida tão grande que quase foi atrope-
ritmos guinchantes e onomatopeicos da lado por um carro que vinha em direção
Ópera dos três vinténs de Brecht. Um contrária. Aqueles cafés sujos e biroscas
russo, Louis Gruenberg, fez uma ópera encardidas junto do túnel da Rua Bento
interessante baseada na peça homônima Ribeiro lembram os cafés de desenhos
de Eugene O’Neil, O imperador Jones. feitos na parede da velha capital brasi-
É verdade que em muitos desses temas leira do início do século, lembrados pela
o negro é tratado de modo subserviente, pena veraz de um repórter ¿ rme como
segundo a apatia molóide do Uncle Re- João do Rio.
mus, ¿ gura do folclore nova-iorquino
que Walt Disney usou, de forma discutí- O tintureiro ou camburão branco,
vel, em Canção do Sul, desenho fílmico com seus buraquinhos na parte traseira,
misturado com pessoas de carne e osso, foi chegando e logo o grupo de prosti-
juntos em cena, em que parecem pregar tutas e homossexuais foi se espraiando,
a eterna submissão do negro ao jugo na- para não se deixar prender.
fasto do branco. Essas e outras distorções — Ô moço – me diz uma mariposa
do famoso e mitológico Pai Tomás, na desdentada, novata ainda e um tanto
persistência de converter o negro a um bonita – , faz de conta que eu estou
eterno obedecer às ordens do branco e em sua companhia. Se eu tomar um
de ser conformado e nunca rebelar-se, é Àagrante de vadiagem lá na delegacia,
que levaram um Paul Robeson a aban- estou fodida. Pra me tirar de lá, só
donar a carreira do bel canto, em que com a sorte de um bom advogado.
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
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chibata ou uma bala assassina que errou pelos seus simples títulos, pois Debussy
sua posição homicida? os compunha com toda a sua inspiração
Já viram uma coisa mais para- emotiva e depois é que lhes punha o tí-
doxal do que quando o carrão pára e a tulo, providencial. Esse impressionismo
polícia vai primeiro pedir os documentos de sua música é um tanto precipitado,
das pessoas de cor negra que estão para- pois, nesses prelúdios, a música mostra
das, embora haja muitos elementos de cor logo o que a melodia descreve, como no
branca em rodas próximas que a polícia caso de Menestréis, em que Debussy vai
¿ nge não dar por elas? Isso é uma injus- buscar motivo no jazz dos negros ameri-
tiça clamorosa de racismo e preconceito canos e no seu mais genuíno cancioneiro
racial contra qual meu caderno protesta do music-hall. Em Canção de Puck o
veementemente, embora eu saiba que estilo de Debussy é célere e ligeiro como
meu grito de dor e desespero nem sequer uma animada barcarola circense. Longe
pode abalar o brilho insensível das estre- estamos aí do Debussy pincelista das
las que brilham lá longe, no ¿ rmamento grandes ressacas oceânicas em La mer,
indiferente... do panteísta maravilhoso do mundo pa-
gão grego dos faunos, dríades, selenos e
Guiomar Novais é uma consu- égipons em L’après midi d’un faune, em
mada artista ao plasmar, miraculosa- que essa maravilha da música moderna
mente, nas teclas de seu Plegel, todo o nos leva até o paganismo fantástico do
impressionismo melódico dos vagos tons mundo heleno, onde fábula e magia, be-
subentendidos do amado Debussy. Quer leza e encantamento se confraternizam
em As dançarinas de Delfos, Véus, A numa verdadeira sinfonia de sons, cores
catedral submersa, Passos sobre a neve, e perfumes que se evolam da Àoresta
O vento na planície, Serenata interrom-
onde moram os deuses do Olimpo, não
pida, A moça dos cabelos dourados, O
muito distante da mata onde campeiam
que o vento viu, este quase um poema
as capríades, os faunos e as ninfas, en-
sinfônico, A cidade de Anacapri, em
quanto ressoa pela bacanal silvestre e
todos esses prelúdios de estilo suave,
desenfreada a suave Àauta de Pã.
ameno, terno, lírico, poético, o estilo
debussyano se patenteia nesses sons que Faltou aos epígonos de Ravel a
mais sugerem do que descrevem, ora autocrítica su¿ ciente para não acoima-
descrevendo, simbolicamente, nuvens rem Debussy de plagiário do artista da
que se esgarçam pelo céu nevoento, Pavana para uma princesa morta, já
ventos que ora se imprecam adoidados ou que, se Ravel é também um consumado
mansamente sobre os campos como em impressionista (como se vê em O me-
Vento na planície ou quando as bailarinas nino e os sortilégios, Pavana para uma
dançam no templo sagrado da Hélade em princesa morta, Bolero, A valsa, Minueto
As dançarinas do Delfo. O crítico precisa antigo), não tem aquela leveza melódica
ser cauteloso ao levar esses prelúdios e a inspiração poderosa de Debusy.
Rosário Fusco, já falecido, poeta e escritor nascido em Cataguazes, Minas Gerais, escreveu
para o Teatro Experimental do Negro a peça Auto da noiva, publicada no volume Dramas
para negros e prólogo para brancos (TEN, 1961)
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
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visões do seu demônio interior, estamos para libertá-lo, para sempre, dos seus
em pleno reino da feitiçaria africana, que tormentos d’alma. As falanges de Exu,
toca pelas raias da mais bela teogonia com um canto sagrado do orixá africano,
negra. É Exu que começa a dominar o aproximam-se do cadáver de Emanuel,
itinerário do advogado Emanuel, per- atravessado do garfo mortífero do deus
seguido pela lei e pelos orixás de sua das trevas, e pronunciam as palavras pro-
raça de quem ele, como um expoente féticas que também são as do destino da
cultural negro, zomba, açoa e debocha tragédia grega, quer de Sófocles, Ésquilo
dos milagres. Emanuel ou Deus conosco ou Eurípedes: “Missão cumprida.” Isso
é o protótipo daqueles pretos que, por quer dizer que Emauel, como o Édipo
estudarem mais um pouco ou terem um de Sófocles, o Prometeu de Ésquilo ou
diploma universitário, desdenham as as Eumênides enegrecidas de sol que
crendices africanas, renegam a sua raça buscam a brancura luminosa da Grécia,
e começam por imitar, por osmose, a todos eles cumpriram um destino imutá-
raça branca de sua paixão, espichando o vel e eterno em suas vidas de sofrimento,
cabelo, tomando os hábitos, os costumes tortura, prantos, lamentos e aquela morte
e todas as manias dos algozes de sua fria e silenciosa que não espanta e nem
raça, num concretismo racial que lembra amedronta uma Fedra, quando esta vai
o ridículo da pregação de inferioridade roubar o cadáver insepulto do irmão
racial por Lapouge, Gobineau, Juliano amado, para lhe dar um túmulo condigno
Moreira, Afrânio Peixoto e, sobretudo, ao seu passado de jovem destemoroso e
pelos maiores porta-vozes dessa discri- in¿ nitamente bom.
minação indecente e inconcebível: Nina
Não se pode esquecer os esforços
Rodrigues e Oliveira Viana. Sortilégio
isolados dos artistas negros, quando ten-
é puro mistério negro em que a as iaôs
taram, em grupos teatrais esparsos, dar
ou ¿ lhas de santo cantam os mais belos
vazão às manifestações mais prementes
cantos litúrgicos de umbanda, a cargo
desta raça oprimida secularmente e que
do gênio musical de minha raça Abigail
luta tenazmente pela sua libertação. São
Moura, aqui em plena efervescência do
inócuas e fora de propósito as frases
seu grande engenho afro-brasileiro, cedo
levianas de Henrique Pongetti, quando
roubado pela morte impiedosa e sectária.
tenta apequenar uma bailarina de grande
Todas as visões ou sortilégios receptividade coreográ¿ca em sua época,
de Emanuel, sua paixão desvairada pela Pérola Negra, um cancionista e show-
meretriz negra E¿gênia, sua afronta às -man de grande magnetismo pessoal que
visões da polícia ao seu encalço até que, tanto conheci, como De Chocolat, sem
no ¿ nal, Exu, por meio de sua falange falar num gênio histriônico e de interpre-
de mulheres de véus a carregarem o tação, como Grande Otelo, que Pongetti,
garfo, que é a própria expressão des- em sua obtusidade crítica, acha de graça
se temível orixá das noites sombrias, efêmera e passageira, esquecido de que
trespassa o corpo sofredor de Emanuel, o Otelo de Macunaíma, Rio Zona Norte
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uma vida apagada como a minha. Nesta penada, olhado, com espanto e medo,
manhã chuvosa, com nuvens negras pelos passantes apressados em sua faina
prenunciando borrascas imprevistas, a de trabalho e de correrem rumo às suas
¿ gura magra e baixa da negra Arinda casas. D. Elvira ¿ca velando, na janela de
Sera¿ m me apareceu neste apartamento sua casa, na esperança de que seu Sujinho
das ilusões mortas e se pôs a me olhar, volte para casa. Enquanto está triste e
com aquele rosto de angústia resignada pensativa em seu silêncio imperceptível,
que a caracterizava. O papel de Dona a escola do morro vai descendo para a
Felizmina, de minha Sinfonia da favela, cidade cantando, de Zé Kéti, o “Eu sou
eu ¿z especialmente para a sua expressão o samba”, com os dançantes e passistas
severa, triste e pensativa. Também a cria- improvisando elocubrações maravilhosas
da negra por quem o ¿ lho da patroa ¿ ca em sua coreogra¿ a estranha. Essas cenas
aloucado, num misto de tristeza, resigna- do Rio quarenta graus de Nelson Pereira
ção e medo, em Aconteceu numa tarde dos Santos são das mais belas, poéticas
de outono, foi papel que também criei e emotivas do cinema universal. Ely
para Arinda Sera¿ m. Sempre vinha lá Azevedo ¿ cou deslumbrado, na Tribu-
dos lados da Tijuca encontrar-se comigo, na da Imprensa, com o impressionante
lá no Amarelinho, a ¿ m de combinarmos desempenho de Arinda nessa obra-prima
os pormenores para os ensaios da peça do nosso cinema. Alex Viany também, no
citada. Shopping News, lhe teceu comentários
Vinha sempre de vestido negro entusiásticos. A maioria dos críticos
rendado, olhando as pessoas com uma achou Arinda, no papel de resignada
e boa D. Elvira, um papel que marca
espécie de temor infantil que fazia o seu
de¿ nitivamente uma atriz de categoria e
maior encanto. Arinda foi a primeira
atriz do Teatro Experimental do Negro sensibilidade.
a pisar nos palcos do Teatro Municipal, Escrevia suas memórias de
na sua estréia em O imperador Jones. menina sofredora do interior de Minas,
Fazia a velha nativa com muita arte e sofendo toda espécie de humilhações e
convicção. Era uma artista consciente maus tratos em casa de gente estranha.
de sua responsabilidade e valor artístico. Estudou consigo mesma, aprendeu da
Mas onde Arinda provou que era das vida o su¿ ciente para não se perder no
maiores atrizes do país foi na D. Elvira, sorvedouro da grande cidade. Sempre
negra tísica do morro do Cabuçu, que, pautou pela vida decente e por uma alma
lá no seu barraco perdido na escuridão muito pura e de excelsa bondade. Sua
da favela, espera pelo ¿ lho vendedor atitude era sempre de defesa instintiva
de amendoim que àquela hora foi atro- contra as misérias de um mundo muito
pelado por um automóvel e está morto, cruel para as pessoas de cor, de boa fé e
a um canto de uma rua da cidade, com que não sabem empunhar as armas em
velas acesas a lhe iluminarem a alma holocausto à sua pureza congênita e ori-
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ginal. Era cardíaca e, para fazer o papel romance que havia escrito: O forte, cuja
de D. Elvira, ela não podia subir pelas trama é toda desenrolada numa antiga
ruelas irregulares do morro do Cabuçu fortaleza de guerra na capital baiana.
e então Olavo Mendonça, um rapaz da Como em Memórias de Lázaro ou Servos
equipe de Nelson Pereira dos Santos, é da morte, Adonias domina a narrativa
quem carregava Arinda morro acima, a empolgante, desenhando com maestria,
¿ m de ¿ lmagens não se paralisarem. os traços de personagens que lutam e se
entredevoram em páginas da mais funda
Guardo no meu quarto uma
psicologia analítica.
velha fotogra¿ a tirada no antigo Diário
Trabalhista, onde o Teatro Experimental Sempre que vejo Adonias pró-
do Negro foi dar uma entrevista ao jorna- ximo da ABI ele está acompanhado de
lista Eurico Resende. Ali compareceram, Otávio de Faria, sempre com ar de ado-
entre outros, os seguintes integrantes do lescente acanhado, olhando ressabiado
notável grupo teatral: Arinda Sera¿ m, para os lados, como se temesse a chegada
eu, Ruth de Souza, Neusa Paladino, de algum intruso. Otávio, quando vai ao
Abdias Nascimento, Aguinaldo Camar- cinema, durante a exibição da ¿ ta, rói
go, Sebastião Rodrigues Alves e o meu nervosamente as unhas. Tem o maior
inesquecível amigo e grande crítico de arquivo de cinema que se conhece, com
cinema Jarder Lima, que morreu, para um ¿ chário respeitável da sétima arte.
tristeza de seus admiradores, em Paris, Em nossas conversas sobre cinema, no
longe do nosso convívio. Bem cedo, Café Lamas, saía fumaça da discussão
Arinda Sera¿ m foi levada pela morte, quando o assunto era cinema francês
quando se esperava mais ainda do seu ou quando alguém punha em dúvida a
talento poliforme. Está enterrada no genialidade de Charles Chaplin.
Cemitério do Caju. Não sei por que
Sua Tragédia burguesa é alvo
Abdias Nascimento não lhe pôde as-
de respeitosos comentários, lembrando-
sistir às exéquias fúnebres. Presentes -se da galeria impressionante de perso-
ao féretro: eu, a caricata atriz Coralina,
nagens inesquecíveis de seus romances
Sebastião Rodrigues Alves e uns poucos cíclicos, como Padre Ivo, Branco e Paulo
mais. Paschoal Carlos Magnos teceu os
Armando. Foi então que eu, para espanto
maiores elogios à grande trágica negra
de César Saraceni e Gasparino Damata,
desaparecida, deixando um invejável disse que em todos esses estudos da mais
nome artístico as futuras gerações negras
¿ na psicologia sobre a decadência da
de representação saberão continuar, veja burguesia brasileira não há lugar para
luminosa trajetória. um personagem negro, nem ao menos
De manhã procuro Adonias Fi- para lustrar os sapatos dos seus amos
lho, na Biblioteca Nacional, de onde era ou para, como criados, porem as mesas
o diretor naquela época. Conversamos dos seus senhores durante os banquetes
um instante e ele me dá então o último ou saraus de gala ou nas festas mais ex-
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Sankofa: Memória e Resgate
pressivas de uma sociedade rica, fútil e Otávio ¿ cou parado por uns ins-
inconseqüente. tantes, sorvendo o seu copo de cerveja.
Pareceu admirar a precoce sensibilidade
Discussões acaloradas, no Café
do futuro cineasta de Desafio e Inte-
Lamas, pela madrugada adentro, com
gração racial. A madrugada avançava,
Otávio de Faria escutando os interlocu-
com uma chuva forte lá fora. Dentro em
tores exaltados, olhando-os com aquele
pouco, o Lamas cheio, depois que saíam
rosto de infantil espanto, sempre roendo
os alunos tardos da Faculdade de Direito
umas unhas invisíveis:
do Catete, era a vez do Mário Azevedo,
- O Fluminense perdeu porque pianista de ¿ na sensibilidade, ou Joa-
portou-se mal no campo. Jogar mal quim Ribeiro, sociólogo e folclorista e
assim, nem o Canto do Rio. renome nacional, que escreveu Folclore
O Pinheiro, em sua altura atlética dos bandeirantes, Romanização da Amé-
e seu rosto de um belo varonil, sorria ante rica e a bela peça, montada pelo TEN,
o desabafo do torcedor inconsolável. Da- Aruanda. Eu sempre tive antipatia pelo
qui a pouco chega o Paulo Saraceni, que Fluminense porque é um clube que não
ainda estudava Direito na Faculdade do aceita negros em seu quadro social. O
Bororó me levou lá para me inscrever e
Rio de Janeiro, no Catete. Traz um livro
senti que, apensar da inÀuência do autor
de capa sebosa, Introdução à ciência do
de Da cor do pecado, a barra estava um
direito de Hermes Lima, com a cabeleira
pouco pesada, com a diretoria com eva-
loura sempre a lhe cair incômoda no rosto
sivas, tirando o corpo fora. Muitos anos
infantil. Já namorava o cinema nessa
depois, uma peça minha, Agonia do sol,
época, e falou-se que ele consegura uma
seria levada no clube social do Fluminen-
bolsa de estudos para uma permanência
se. Teve um relativo sucesso, apesar da
em estúdios cinematográ¿ cos da Itália.
ausência de Otávio de Faria, Àuminense
Acabava de vir de uma sessão do Cinema
renitente que não pôde comparecer ao
São Luís:
espetáculo, desculpando-se num bilhete
- Fui assistir a Luzes da ribalta que me escreveu naquele estilo tão seco,
pela décima vez. Que gênio é o Charles mas cheio de vida interior, que o carac-
Chaplin, ao homenagear os cantores teriza.
boêmios das ruas e dos music-halls lon- As conferências sonolentas da
drinos. Que ¿ lme de poesia contagiante Academia Brasileira de Letras, com
para narrar a vida desse artista ambulante exceção de um Álvaro Moreira, estuante
que é Calvero. E sua morte, no ¿ nal de vida e juventude, quando, numa tarde
do ¿ lme, tendo como última visão, na de sol, com o Petit Trianon repleto de
agonia, a imagem lirialmente branca de gente jovem, o Alvinho fez uma con-
Terry, dançando o último balé que os ferência sobre os simbolistas gaúchos,
olhos de Calvero veria. demorando-se em Eduardo Guimarães
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
237
pública dos Estados Unidos), taxando-a olhar o nosso operário suburbano sob as
de puramente arti¿ cial, quando se sabe miradas de um marxismo um tanto utó-
que são poemas inspirados, ressumando pico (Bagatelas), mas sofrendo, amando
ao cheiro agreste de um Brasil que não e chorando com seus personagens de¿ ni-
existe mais. Máscaras, Angústia de Don tivos: Isaías Caminha, Clara dos Anjos,
Juan, e mesmo um romance de categoria Gonzaga e Sá, Policarpo Quaresma,
universal como Salomé, sem falar em Ismênia ou aquela mulata faceira, Clô,
Dente de ouro, um livro de penetração que dança e saracoteia num carnaval
profunda como O triunfo da morte, com- antigo da Rua do Ouvidor (Histórias e
provam o quanto Menotti Del Picchia é sonhos). O crítico tem de analisar Lima
um espírito criador, sem deixar de ser Barreto por esse prisma cristalino e não
um clássico moderno no manejar do atar o romancista carioca numa estética
idioma. É o caso de A tormenta, sobre a acadêmica como a de Machado de Assis,
revolução de 24, Crime daquela noite, que só olhava o estilo correto e lusitano
cantos que oscilam entre Dannunzio e de um Almeida Garret, Camilo ou Fe-
Pirandelo, A mulher que pecou, mesmo liciano de Castilho, sem se preocupar
um desigual e bom romance como Laís, com as idéias avançadas do seu tempo.
em que se sente o talento de Menotti pul- Um Francisco de Assis Barbosa errou
sando com os personagens e retratando a duplamente ao falar do estilo desleixado
sociedade paulista do começo do século ou descuidado de Lima Barreto, pensan-
até depois da Primeira Grande Guerra, do na prosa corretamente acadêmica de
e em nossos dias. Coelho Neto chamou Machado de Assis.
Lima Barreto de gênio, em Bazar, porque
Lima tinha tantos temas de fundo
o revolucionarismo de seus temas e a
popular e social na mente atormentada
profunda psicologia de seus personagens
que receava a morte vir ao seu encontro e
só encontram paralelos nos romances de
ele não poder extravasar, na sua pena, to-
um Dostoievski (Pobres gentes, Irmãos
das essas comédias e tragédias do infeliz
Karamazov, Crime e castigo), para não
morador dos subúrbios, sujeito a incertos
esquecer um Nicolas Gogol de Almas
horários de trens, funcionários públicos
mortas, os romances proletários profun-
mal pagos, mocinhas tristes e sem futuro
damente humanos do Máximo Gorki de
que se fanaram, para sempre, nos traba-
A mãe, O espião, Tormenta sobre a cida-
lhos mal remunerados das fábricas da
de e Os vagabundos, e um Leon Tolstoi
cidade. O aposentado, o procurador de
profundamente inspirado em Morte de
emprego, o velho desiludido com uma
Ivan Ilitch, sem esquecer um Turguenief
prole imensa, os ricos desumanos que
do Rudine e Terra virgem. ostentam opulência insultante à miséria
Lima Barreto tem de ser estu- do pobre, o preto sofrendo n’alma o
dado assim, em sua concepção estética nosso velado preconceito racial, em tudo
avançada, o primeiro escritor nosso a Lima Barreto se identi¿ ca como nosso
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
239
maior romancista num estilo bem seu, bem, que ele é que tinha o pleno domínio
claro, ¿rme, com uma Àuência que não do idioma e que só ele tinha o supremo
se parece com nenhum mestre do idioma, segredo da arte de escrever romance.
quer Eça de Queiroz, Machado de Assis Vê-se que em Machado há uma certa
ou Camilo Castelo Branco. monotonia temática, com incessante
Lima Barreto é um mundo vigo- repetição de tipos comuns no Segundo
roso, com uma galeria de tipos incon- Reinado, como viúvas ¿ éis aos faleci-
fundíveis em qualquer literatura. Tem dos maridos conselheiros do Império,
mais vasto alcance social que Machado advogados que aspiram a subir na polí-
de Assis, é muito mais humano e mais tica, escravos sem noção de liberdade e
profundo como criador de personagens. subservientes, amores juvenis no interior
Seu estilo já segue a cristalina clareza de da casa-grande, velhos saudosistas do
um Anatole France e antecipa, na sua ma- tempo dos sermões do Montalverne, dos
neira fácil de escrever, sem verbalismo cantos litúrgicos do padre José Maurício
ou excessos léxicos, a prosa escorreita e dos jogos de gamão, após a lauta ceia,
de adjetivos desnecessários dos escrito- num dia de verão carioca. Machado não
res modernistas de 1922. Lima Barreto tinha tanta imaginação como o grande
ainda não foi estudado dentro dessa visão José de Alencar. Era, sim, um observador
profunda de se olhar o fundo ¿ losó¿ co e seguro da sociedade de seu tempo, crian-
psicológico de seus romances, servidos do uma galeria impressionante de tipos
de um estilo saborosamente brasileiro e acomodados e sem coragem para en-
principalmente carioca. Marques Rebelo frentar os poderosos do tempo, que eles
não gostava do criador de Bruzundanga, serviam como bons capachos humanos.
mas isso se deve à de¿ ciência crítica do Só uma vez Machado de Assis mostrou-
autor de Marafa. Vejamos: qual a página -se de vistas largas, quando preconizou,
de Marques Rebelo, retratando o Rio de antes da abolição, uma reforma agrária,
1930 a 1938 (Oscarina, Estela me abriu com os senhores fazendeiros dando as
a porta, A estrela sobe), com todo o seu terras das fazendas fluminenses para
valor literário, que chega à profundidade os seus escravos. Foi em Memorial de
da amargura temática, vejamos, de O Ayres, que é o livro mais humano, mais
triste fim de Policarpo Quaresma ou poético, sentido e, talvez, bem escrito de
Recordações do escrivão Isaías Cami-
Machado de Assis, sem deixar de ser dos
nha? Por acaso a Vida e morte de M.J.
documentos psicológicos mais profundos
Gonzaga e Sá não foi escrito em forma
da alma brasileira de seu tempo.
primorosamente clássica, sem cair no
enfadonho estilo correto dos escritores Tasso da Silveira, almoçando comi-
lusos? O conceito clássico de expressão go num certo dia de tempo remoto, num
precisa ser reavaliada do seu sentido restaurante popular da Rua São José. Eu
semântico. Precisamos perder a mania levava comigo, por acaso, o volume de
de que só Machado de Assis escrevia Farias de Brito Mundo interior, quando
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Sankofa: Memória e Resgate
o grande poeta místico do idioma se pôs e ¿losó¿co como Paris, sem esquecer um
a falar sobre a pureza ascética da vida volume da crítica de grande repercução
do grande ¿ lósofo e as idéias transcen- nacional, Cartas à gente nova, em que
dentais que ressumam do pensamento Nestor Vítor descobriu o talento nativo
cristalino do Mestre. Relembrou Jackson e em Àorescência de Gilka Machado,
de Figueiredo e aquela intransigência Murilo Araújo, Adelino Magalhães,
sua em face da atividade dos ateus e dos Tasso da Silveira, Jackson Figueiredo e
incréus. Eu o ouvia calado e pensativo, muitos outros escritores novéis, a quem
pensando na penitude de, por acaso, ter a sua compreensão estética e a sua visão
conhecido Jackson, discutido com o pen- bem ampla dos verdadeiros valores deu
sador sergipano todo o seu catolicismo a dimensão exata de seus escritos. Es-
à Joseph de Maistre e Charles Mauras, crevia muito bem, num estilo correto,
com um discutível conceito de autoridade sem o ranço clássico dos quinhentistas
governamental que se parece, assim, com lusitanos, mas numa fácil Àuência que
um Estado fascista, ou melhor, corpo- nos encanta sobremodo.
rativo. Dessas idéias de Estado forte,
partimos para o integralismo lusitano Tasso tinha daqueles intermináveis
de Antônio Sardinha e para o integralis- silênciosos, em sua palestra agradável e
mo tão nacionalista do Plínio Salgado, profunda. Lembro-me dele quase cego,
palpitante de brasilidade e heroísmo em sem poder descer as escadas de sua bela
O estrangeiro, O cavaleiro de Itararé e casa à Rua Professor Saldanha, no Jar-
naquela cartilha de civismo que ele es- dim Botânico, indo depois, procurar a
creveu para a juventude pátria, Geografia cura pela Europa, visitando até as grutas
sentimental. Era de ver Tasso falando de milagrosas de Lourdes, em França, a ¿ m
seu ilustre pai, Silveira Neto, do Luar de recuperar a visão quase perdida. Tasso
de inverno, a ternura melancólica com ironizava a mania dos europeus em se
que se referia a Nestor Vítor, crítico por agarrar a velhos monumentos nacionais,
quem sempre tive um culto respeitoso apegando-se com obsessão a um passado
pela dignidade com que exerceu uma morto e inexistente. Quando fazia a lei-
crítica honesta, como um sacerdócio que tura de suas peças Sacrifício e Os mortos
ele professasse com amor e ternura, como vão para sempre, às vezes entregava-se
no caso das introduções ao nosso poeta a uma pausa prolongada e duradoura.
maior, Cruz e Sousa, em que desaparece Na leitura do Emparedado, que versa
o amigo dedicado do Dante Negro para sobre Cruz e Sousa e sua esposa Gavita,
¿ car só o analista seguro e competente Tasso se emocionou tanto que Abdias
do simbolismo brasileiro. Quem lê as Nascimento teve de se levantar do seu
páginas inspiradas e bem pensadas das lugar e ir ao socorro emocional do gran-
Folhas quem ficam, Elogio do amigo, de místico de Regresso à origem. Tasso,
Os de hoje, Crítica de ontem, um livro nas Laranjeiras, tocando no seu velho
de viagem de grande alcance emocional piano a “Dolorosa” de Mário Penaforte
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
241
e mostrando-me a sua valiosa biblioteca presente, ele indaga, sôfrego, a uma freira
de mais de 10 mil volumes. Tasso, já no que passa pelo corredor:
Jardim Botânico, recebendo a mim e ao - Madre, posso saber como é que
escritor Henrique L. Alves, que viera de está passando a doente?
São Paulo, em nome da Associação dos
Homens de Cor, no centenário de Cruz Ela apenas responde num sussurro mis-
e Sousa, convidar o poeta para celebrar terioso e imperceptível:
os cem anos de nascimento do Gênio - O doutor vai lhe dizer.
Rebelado. Tasso foi bem recebido na
O romance termina assim, numa reti-
Paulicéia, fazendo uma conferência na
cência dolorosa e profunda. Tasso da
sede da Associação dos Homens de Cor,
Silveira, com Silêncio, escreveu um dos
sendo saudado por Fernando Góis, que,
mais belos, profundos e valiosos livros
a par da discordância que sempre tive de
de nossa literatura.
sua crítica discutível, sempre considerei
um competente homem de letras. Por mais de quinze anos convivi com
Plínio Salgado em A Marcha, jornal de
Quando será que a crítica brasileira espírito doutrinário e político que saía
vai perceber a importância do romance todas as quintas-feiras no Rio. Era im-
Silêncio de Tasso da Silveira? Aquela presso nas o¿ cinas do Diário Carioca,
transcendência de Beata diante do altar na Avenida Rio Branco, e por isso eu
da Virgem, a sua pureza em face do tinha de levar minhas críticas literárias
mundo e dos homens? O romance co- e de cinema às segundas-feiras. Indo
meça com um homem, no corredor de até as o¿ cinas do Diário, encontra-me
um hospital, esperando o resultado da com Gumercindo Dórea, redator de A
operação de sua mulher, Beata. Enquanto Marcha. Já ali me encontrava com outros
aguarda a resposta dos médicos ele vai se colaboradores do jornal de Plínio, como
relembrando do passado e, então, Tasso Walmir Ayala (crítico de arte e analista
nos dá uma descrição belíssima do mun- de livros para ali enviados), além de Ivo
do de após a Primeira Grande Guerra, Campagnoni (crítico de teatro). A Mar-
de 1914 - 1918, com os cafés literários, cha era um jornal sério, lido em todo o
os entrechoques das idéias nacionalistas Brasil, em que ¿ z penetrantes análises
e socialistas, descrevendo numa precisão dos mais importantes obras da sétima
mestra as ¿ guras de Nestor Vítor, Jack- arte e , como ensaios literários de grande
son de Figueiredo e Farias Brito. A ¿ gura fôlego, escrevi: “A crítica literária no
irreal de Beata transpõe essas páginas de Brasil”, “Tasso da Silveira e o pensamen-
palpitante frescor cristão com um halo de to católico brasileiro”, “A poesia cristã
pureza e santidade, empolgando o leitor e transcendental de Augusto Frederico
da primeira à última página. Quando, Schmidt”, “Abdias do Nascimento e o
após relembrar esses episódios todos, Teatro Negro”, “Ernesto Psichare e o
o homem se volta às angústias da hora catolicismo francês”, “O integralismo
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Sankofa: Memória e Resgate
privilegiada como a desse baiano sedutor, agiotas sem alma, que lhe roubam o úl-
que curva a cerviz até de um poeta pouco timo ceitil de um ordenado que mal dá
comunicativo e de parcos elogios como para saciar a miséria rondante. Esperar
Carlos Drummond de Andrade. Quem por um DASP que não lhe ouve as quei-
se escandaliza com as frases de efeito do xas e gemidos porque os interessados
poeta de “Menino ou anjo” ou “Ronda daspeanos que podiam minorar a miséria
dos teus olhos” não conhece o encanto de milhões de funcionários infelizes nada
sedutor de Jafa discorrendo sobre um fazem, pois já estão classi¿cados em seus
mito de nossa paixão, Greta Garbo, não cargos grati¿ cados e não vão ligar que
saboreou as suas crônicas de conceitos outros colegas seus, menos venturosos,
tão originais e que tanto sacudiam a pas- se atolem, afundados, num desespero que
maceira habitual dos leitores de Vamos nem a morte termina. Já viram coisa mais
Ler e Carioca, duas revistas de muita trágica do que um parente nosso indo
penetração popular. pedir um auxílio funeral, quer no IPASE
ou no INPS? Você que é funcionário e
Van Jafa e sua babá negra, já envelhecida,
que se dedica, pontualmente, à sua re-
nos saraus inesquecíveis que passei em
partição, por muitas décadas, sabe o seu
seu apartamento de sonho da Rua Farani,
valor real monetário na ajuda ¿ nanceira
sempre ele lembrando de uma presença
ao seu último enterro?
constante em nossas vidas: Judy Garland.
Van Jafa fazendo conferência sobre teatro Você se verá naquela situação aÀitiva do
brasileiro no Serviço Nacional de Teatro, Ivan Ilitch de Leon Tolstoi, um funcioná-
então situado num dos andares da ABI. rio público fodido, sem eira nem beira,
Van Jafa tocando na vitrola uma valsa sem esperar um auxílio providencial de
chopiniana e dançando com D. Jose¿ na, espécie alguma. Poderão citar o exemplo
progenitora que encanta a todos que a de Machado de Assis, que foi funcionário
visitam, e rodando com essa grande dama público exemplar, que amava tanto a sua
baiana como se ela fosse, no momento, a repartição, no Ministério da Viação, que
sua mais querida e bela namorada. mesmo estando aposentado comparecia,
pontualmente, como se ainda estivesse
Ser funcionário público desde 1954 e
na anterior atividade funcional. Mas isso
por mais de vinte anos ver tantas injus-
tiças, com tantas promoções imerecidas já é um caso de doente congênito ou de
e afrontosas. Ser funcionário público e, doença patológica. Em compensação,
após tantos sonhos desmoronados, não Cruz e Souza mofou na Central do Brasil,
con¿ar mais nas promessas de quem quer comendo o pão que o diabo amassou com
que seja. Ser funcionário público e olhar o rabo, numa resignação que desa¿ ava
tantos sobreiros anônimos esperando um a revolta e a fome. E Lima Barreto,
salário melhor que não vem, afrontando na Secretaria da Guerra, suburbano de
a fome e os empréstimos onerosos, com vestes rotas, sempre a viajar nos trens
Diário de um negro atuante (1974-5 - 2a Parte)
Ironides Rodrigues
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que perambulava pelas ruas de São Paulo regra, e talvez por isso mesmo ele não
fazendo graça. Chamava-se Sebastião desse tanto crédito às nossas denúncias
Prata e ensaiava sua vindoura identidade de racismo nos palcos do Brasil. Desde
de Grande Otelo. que em Lima, Peru, eu assistira ao espe-
Essa amizade de 1932, o tempo e táculo do Imperador Jones com o papel
a convivência, ainda que intermitente, se titular desempenhado pelo ator branco
incumbiram de consolidar e aprofundar. Hugo D’Eviéri pintado de preto, eu havia
Mas aquele momento da nossa adoles- jurado que no Brasil lutaria para que os
cência sofrida, num mundo que não foi atores e a dramaturgia negras pudessem
feito para nós, os negros, é algo inapa- ocupar os espaços merecidos. Pois a cena
gável da minha memória. A vida nos nacional só admitia o negro em papéis
separou durante muitos anos, cada um de subalternos, pitorescos, de negro engra-
nós perseguindo seu sonho ou cumprindo çado e de mulata ou negra rebolando as
seu destino. Quando em 1936 o racismo ancas. Era uma cerca de arame eletri¿ -
paulista me tornou a existência impos- cada separando aquele teatro negro que
sível, vim para o Rio, onde reencontrei nascia e a tradicional participação do
Grande Otelo já pisando o gramado da
negro em nossos espetáculos teatrais, in-
fama que não o abandonaria mais.
clusive a Companhia Negra de Revistas,
A luta à qual eu me engajara em organizada por De Chocolat nos ¿ ns da
São Paulo, contra a discriminação racial, década dos vinte.
continuou aqui no Rio, ao mesmo tem-
po em que terminava meus estudos de Nessa época, minha amizade com
economista. Nos encontros com Grande Otelo ampliou-se, cresceu numa dimen-
Otelo sempre aÀorava a discussão sobre são imprevista. Freqüentei sua casa na
a questão racial, ele sempre me achando Urca, onde nos brancos tempos de fome
um radical criador de casos. Para Otelo, muitas vezes me amparava, alimentando
naquela etapa em que ele se a¿ rmava não só o corpo como o espírito, no con-
como ator de tantos recursos cênico, o vívio gostoso daquele ambiente oteliano.
racismo não parecia algo sério como era Me lembro que uma vez, tão positivas
para mim. eram as “vibrações” na varanda do seu
Depois de uma viagem de aven- apartamento onde conversávamos, um
tura poética pela América do Sul, em canário belga veio pousar na minha mão.
1944 fundei o Teatro Experimental do Batizei-o ato de “ 21 de abril”, pois esse
Negro (TEN), numa tentativa de a¿ rmar era o dia. Foi naquela época que sofri
os valores culturais e humanos da gente com Otelo sua tragédia doméstica: o
negra, excluída do teatro brasileiro, a não suicídio de sua esposa Lúcia Maria (que
ser para varrer ou limpar o chão. Otelo, chamavámos de Gilda) e a morte do seu
é claro, encarnava a única exceção a essa ¿ lho Chuvisco.
Entr e Otelo e Eu
Abdias do Nascimento
249
me lembro de que numa festa no Circo falas de sua interpretação, como também
Voador, comemorativa dos meus 60 anos no jogo de corpo, nos gestos e sobre-
de luta negra, Grande Otelo, mestre de tudo na sua máscara de expressividade
cerimônias daquela noite, manifestou imensa, só comparável à de outro genial
seu acordo com a forma de combate ator negro, Aguinaldo Camargo, o ines-
anti-racista perseverante e incondicional quecível “Imperador Jones” de O’Neill,
que eu havia adotado durante todo o com o qual ele contracenou no ¿ lme
transcurso da minha vida. Também somos irmãos. En¿ m, Otelo
Entre Grande Otelo e eu parece resume em suas performances o que há
haver todo um processo afetivo dialeti- de mais valioso e permanente na história
zado pela consciência racial que em cada do nosso teatro, cinema, televisão e show
um de nós evolui de modo diferente. Mas business. Ele é o símbolo maior do gênio
a amizade se impõe independentemente negro brasileiro.
disso, e Otelo nunca esqueceu de me A generosidade de sua vida só é
convidar ou de me saudar, lá do palco, rivalizada pelo esforço que despendeu
quando me encontrava na platéia. para domar obstáculos tão irredutíveis
Indiscutível é o fato de o poder em seu caminho, e pela luz pura e criativa
criativo de Grande Otelo havê-lo trans- que emana de sua alma como a dádiva
formado num verdadeiro mito. Mesmo radiosa dos orixás.
considerando-se apenas a dimensão do
Eu te celebro, irmão. Axé!
seu humorismo, ele desmente aquela
teoria de que o cômico é de certa maneira
um instintivo puro, um inconsciente.
Muito pelo contrário, Otelo possui uma
consciência crítica agudíssima, o que * Este ensaio foi publicado em parte no livro
Grande Otelo em preto e branco (1987).
manifesta não apenas nas inÀexões das
Saudação ao bispo Bispo Desmond Tutu:
regime racista da África do Sul. Único nas, para trabalhar. Detenção arbitrária,
congressista afro-brasileiro na última prisão, tortura e morte à base do racismo
legislatura, membro da Comissão de são o nosso pão de cada dia. Constituí-
Relações Exteriores da Câmara dos De- mos a imensa maioria dos camponeses e
putados, tive a honrosa responsabilidade trabalhadores rurais sem terra.
de apresentar ao Congresso um abaixo-
-assinado a respeito, com mais 70 mil Talvez o maior testemunho do ra-
assinaturas recolhidas pela comunidade cismo brasileiro seja o fato de o governo
afro-brasileira de vários Estados. O go- ter recusado a sua visita às comunidades
verno tomou apenas algumas medidas negras no seu próprio ambiente de vida.
parciais e insastisfatórias. Mas nós não Entretanto não é só a experiência
descansaremos até que o Brasil corte da opressão racista que compartilhamos
todas as relações com os perpetradores com nossos parentes africanos. Também
desse crime contra a humanidade. dividimos com vocês as orgulhosas
Bispo Tutu, não é apenas uma tradições da herança africana, de ci-
coincidência que os negros estejam vilizações exempli¿ cadas pela Núbia,
na vanguarda desta luta no Brasil. O Egito, Songhay, Timbuktu, Zimbábue e
apartheid constitui a expressão máxima Benim. Herdamos a coragem guerreira
do maior crime já perpetrado contra a de Shaka, da rainha Nzinga, de Samory
humanidade: o trá¿ co e a escravidão Touré, Yaa Assantewa e tantos outros
racistas, destituidores da humanidade na sua resistência à dominação colonial
dos africanos. Duas ou três centenas e racista. Nós dividimos com vocês os
de milhões de nossos ancestrais foram valores vivos da ¿ loso¿ a africana.
suas vítimas, e nós somos hoje vítimas
Pouco antes da sua visita, re-
dos seus vestígios sob a forma da dis-
criminação racial. Somos a maioria da presentantes da sua Igreja no Brasil
população brasileira, e estamos aqui rotularam nossas religiões de práticas
desde a fundação do país. Entretanto nós pagãs animistas-fetichistas, julgando-as
os negros somos os mais pobres entre desmerecedoras do encontro ecumênico.
os pobres e somos os exclusos do poder. Bispo Tutu, acreditamos que tais idéias
Temos seis vezes menos acesso à escola, não representem o seu pensamento. Mas,
e o ensino oferecido às nossas crianças se esse for o caso, esperamos que você
tem parentesco com a educação banta: aceite o nosso sincero e fraterno convite
nossos ancestrais, nosso povo, nossa cul- para suspender esse julgamento e voltar
tura e nossa história são ridicularizados ao Brasil com tempo para visitar nossos
e apresentados como inferiores segundo terreiros, falar com nossas autoridades
a “norma” européia. Somos segregados religiosas e participar de nossas cerimô-
em bairros distantes e viajamos horas, nias regiosas, en¿ m, testemunhá-las em
em transportes de condições subuma- primeira mão.
Saudação ao Bispo Desmond Tutu
Abdias do Nascimento
253
maneira muito mais modesta que Sua povos enriquecem a humanidade, con-
Santidade. E, como ele, encontrei no exí- tribuindo para a diversidade cultural
lio a oportunidade de me aprofundar nos na expressão daquilo que nos une além
valores de minha cultura, inclusive a rica das diferenças. Quando Sua Santidade
tradição religiosa afro-brasileira, com comparece ao Ocidente vestindo seu
sua dimensão profundamente ecológica traje tradicional e falando a sua língua,
expressa por meio dos orixás, divindades ele exerce o direito de manifestar a sua
que representam as forças da natureza, identidade especí¿ ca tibetana. Também
e sobretudo Ossaim, orixá que preside quando compareço ao plenário do Se-
o reino das plantas litúrgicas e medici- nado usando o kente africano, expresso
nais. Parece que essa tradição lembra em a assunção da minha origem africana.
certos aspectos a tradição Bon, a religião Em nenhuma hipótese essas identidades
tradicional originária do Tibete. Mas isso constituem obstáculos ao nosso entendi-
é outra história. mento da responsabilidade comum que
A sensação da velha amizade nos une: a de agir para tentar garantir um
provém daquilo que nos aproxima, além futuro cada vez melhor para a vida e para
das diferenças. Sua Santidade representa a paz em nosso universo.
uma ¿ loso¿ a religiosa e uma tradição
Se não são as diferenças em si,
milenar de sabedoria, cuja mensagem de
o que impõe as desigualdades que tanto
paz tem um valor universal e urgente para
eu como Sua Santidade lutamos para
o nosso mundo hoje. Neste momento,
superar? Creio que a resposta está numa
quando o mundo se reúne aqui no Rio de
palavra-chave: dominação. Tanto a do-
Janeiro para tentar superar as diferenças
que ameçam impedir a articulação e a minação de grupos humanos e entidades
execução de um plano de ação em defesa políticas sobre outros, como também a
de nosso planeta e de nosso universo, a desenfreada dominação do homem sobre
mensagem de Sua Santidade assume uma a natureza e o meio ambiente.
dimensão ainda maior. Trata-se da res- A dominação, muitas vezes
ponsabilidade, universal à humanidade, sustentada pelo racismo e o sexismo,
de trabalhar para superar essas diferen- não se expressa apenas no poder eco-
ças, bem como outras que nos impedem nômico e político, nem seus efeitos se
de conviver no planeta sem destruirmos restringem apenas à pobreza material.
uns aos outros, e sem destruir o planeta, Ela atinge mais profundamente o ser
o meio ambiente e o universo. humano quando compromete a sua dig-
Sua Santidade enfatiza a igual- nidade, privando-o de sua autocon¿ança.
dade entre os seres humanos, além das A sociedade dominadora impõe a todos,
diferenças. Mas, na minha opinião, não desde a mais tenra idade, o desprezo ao
são as diferenças em si que nos impõem dominado, sua cultura e identidade. E o
a desigualdade. As diferenças entre os dominado passa a se autodesprezar.
Saudações a Sua Santidade o Dalai Lama
Senador Abdias Nascimento
261
PROGRAMA
laô afro-cubano Rafael Zamora Díaz, cada vez mais conhecidas e debatidas
autoridade religiosa no culto a Ifá, mundialmente, sobretudo no contexto
falará sobre Ossaim e Ifá, e o professor das questões ambientais. A participação
Nei Lopes, escritor e compositor afro- dos povos indígenas vem tendo certa
-brasileiro, abordará o encontro entre a repercussão na cobertura desta Confe-
ancestralidade banta africana e indígena rência pela mídia. Quanto aos povos de
no Brasil, e sua relação íntima com a origem africana, tem sido quase nula a
natureza. Nesta pequena exposição, cobertura pela mídia dos eventos reali-
Sretendo tra]er algumas reÀe[ões numa zados por várias ONGs sobre racismo
orientação mais generalizada do signi- antiafricano, cultura afro-americana e
¿cado do Colyquio pan-africanismo.
Nesse contexto, faz-se necessá-
rio reÀetir, de maneira detalhada e com
A RIO-92 E O “DESCOBRIMENTO”
uma visão histórica que não sucumba aos
DAS AMÉRICAS parâmetros comuns do eurocentrismo,
Como testemunha a manifesta- sobre questões como desenvolvimen-
ção organizada dos povos indígenas que to, tecnologia, racismo ecológico e o
se reúnem paralelamente no Kari-Oca, a conteúdo ambientalista da cultura afro-
aldeia que articula as preocupações e rei- -brasileira, de maneira a registrar fatos e
vindicações desses povos, a coincidência pontos de vista capazes de documentar e
histórica da Rio-92 com o aniversário fundamentar uma perspectiva ambienta-
da “descoberta” das Américas chama a lista afro-americana.
atenção para a problemática da convi-
vência entre os vários povos, com suas
diferentes origens e tradições étnicas e DESENVOLVIMENTO, TECNOLO-
culturais, no mesmo espaço físico do pla- GIA E RACISMO ECOLÓGICO
neta 6eria engano redu]ir as di¿culdades Quando falamos em desenvol-
dessa convivência à mera reprodução de -vimento, nos referimos essencialmente
supostas lutas de classe ou a lutas tribais ao desenvolvimento econômico e so-
e diferenças étnicas. Elas têm sua raiz bretudo tecnológico. E quando se fala
numa política permanentemente imple- em tecnologia, a África quase sempre é
mentada por aqueles que detêm o poder, considerada uma presença nula, negativa,
de reprimir as legítimas manifestações devedora na história do seu desenvolvi-
e aspirações dos povos dominados, exi- mento.
gindo seu desaparecimento por meio de
Na verdade, a África foi o palco
processos de integração ou assimilação
de algumas das mais importantes revo-
à nação dominadora.
luções tecnológicas da história humana.
Com relação aos povos indíge- Neste pequeno ensaio seria impossível
nas, essas considerações esto ¿cando expor todos os dados, mas está com-
Reflexões sobr e afr o-amer icanos, meio ambiente e desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento 269
__________
1
Ivan Van Sertima, org., Blacks in science (Londres e New Brunswick: Transaction Books, 1983) e Nile valley civilizations
(New Brunswick: Journal of African Civilizations, 1985).
2
Cheikh Anta Diop, The African origin of civilization, trad. de Mercer Cook (Nova York/Westport: Lawrence Hill, 1974).
George G. M. James, Stolen legacy (Nova York: Philosophical Library, 1954).
3
Basil Davidson, Africa in history (Nova York: Macmillan, 1968), The lost cities of Africa (Boston: Little, Brown, 1959),
The African genius (Boston: Little, Brown, 1959). Ivan Van Sertima, op. cit.
270 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
__________
4
Ivan Van Sertima, They came before Columbus: the African presence in America (Nova York: Randon House, 1976).
5
Ivan Van Sertima, African presence in early Europe (Londres e New Brunswick: Transaction Books, 1985).
Reflexões sobr e afr o-amer icanos, meio ambiente e desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento 271
( [ u, o ori[ ¿ lho, fa] a liJ ação entre os um tanto polêmico nas discussões ecoló-
vários reinos do cosmo. Ele é o princípio gicas.
dinâmico da contradição dialética que O ebó é a prática ritual da reposi-
impulsiona os intercâmbios entre o orun ção de energias para equilibrar as forças
e o aiyé. Ossaim, orixá-folha, é soberano cósmicas. Seu objetivo é sempre o de
do reino da natureza e nos ensina a ciên- restituir a harmonia entre a natureza, os
cia e a prática da medicina e farmacolo- seres humanos e o mundo das divindades,
gia tradicional africanas. Xangô, trovão os ancestrais e os não-nascidos. Nesse as-
e raio, defende o princípio da justiça na pecto, a ¿ loso¿ a reliJ iosa afro-brasileira
sociedade humana. Ogun representa a comunga com os ambientalistas, que
conquista tecnológica da metalurgia do procuram exatamente a convivência
ferro e do aço, e portanto o rompimento harmônica com a natureza, e que sempre
das barreiras cósmicas. Ele simboliza procuram levar em conta, além dos vivos,
a força do conhecimento humano que as futuras gerações. O ebó é a expressão
possibilita o proJ resso cient ¿ co, e ao concreta do princípio ecológico.
mesmo tempo projeta a justa luta ar-
mada em defesa do seu povo. Iemanjá, Muito se tem ouvido falar sobre
a mãe de todas as águas, representa a a pr tica de acender velas nas Àorestas,
fecundidade, o princípio gerador dos dani¿ cando as rvores, na colocação de
seres da natureza, do reino humano e do oferendas. Esse fenômeno constitui uma
reino espiritual. Oxum, deusa do amor e exceção na prática religiosa. A maioria
da água doce, simboliza a fertilidade, a dos ebós é feita no espaço do terreiro,
procriação e o princípio da criatividade. sob a orientação de autoridades religio-
Oxalá, ou Obatalá, que moldou do barro sas. Assim como não podemos culpar o
o ser humano, representa os princípios da cristianismo pelos pecados de um bispo
criação, da conciliação e da paz. Iansã, Macedo, seria injusto julgar a religião
deusa do raio, siJ ni¿ ca o poder feminino afro-brasileira responsável por essas
na luta pela vida e pela justiça. Oxuma- práticas mal-orientadas.
ré, o arco-íris e a serpente, incorporam São múltiplas e riquíssimas as
o ciclo das águas, vindas na forma de potenciais contribuições da filosofia
chuvas e devolvidas ao céu por meio das religiosa afro-brasileira para um modelo
neblinas. Ela também traz o princípio da de desenvolvimento ecologicamente são.
alegria como força dinamizadora da vida.
Entre as mais importantes está
Seria impossível aqui expor a de fundamentar, na articulação desse
todos os aspectos dessa ¿ loso¿ a reli- modelo, as caracter sticas espec ¿ cas
giosa, cuja compreensão exige anos de do nosso pensamento ecológico como
convivência e iniciação, e que esta autora cultura brasileira. Entretanto, para isso
não domina. Entretanto, vale destacar o é preciso, em primeiro lugar, resgatar
siJ ni¿cado do eby, a oferenda, elemento os princípios da cultura africana e a sua
Reflexões sobr e afr o-amer icanos, meio ambiente e desenvolvimento
Elisa Larkin Nascimento 273
__________
6
Abdias Nascimento, A luta afro-brasileira no Senado %rasília * rá¿ ca do 6enado,
Bantos, índios, O encontro, no Brasil, entre as
culturas locais e as de origem africana foi
ancestr alidade e um momento de trocas amplamente ricas
que marcaram para sempre o corpo e a
meio ambiente alma nacionais. E essa riqueza se deveu,
no que toca aos negros africanos, princi-
palmente ao elemento de origem banta,
que, pelo volume de sua importação, foi
aquele que mais interagiu com o indígena
brasileiro, no tempo e no espaço, durante
e após o período escravista. No Anexo
a este texto, transcrevemos textos de
cantigas ainda usadas em rituais e que
ilustram essa troca banto-indígena.
Com efeito, a vinda para o Brasil
de escravos da África Ocidental Equato-
rial e da África Austral, notadamente pe-
los portos de Cabinda, Luanda, Benguela
e de Moçambique, durou praticamente
todo o tempo da escravidão. E sua parti-
Nei Lopes * cipação em momentos signi¿ cativos da
colonização brasileira, como os da mar-
276 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
cha para o interior por meio das entradas defuntos, mas antepassados ilustres, cuja
e bandeiras, vai propiciar um encontro de passagem pela vida terrena foi marcada
culturas sob todos os aspectos enrique- por fatos signi¿ cativos para sua comu-
cedor. nidade, fatos esses expressos ou por sua
Do ponto de vista das relações liderança, inteligência, coragem, ¿ deli-
com a natureza e o meio ambiente, dade ao grupo, etc., ou por sua simples
muitas concepções dos africanos bantos condição de cabeças, de fundadores, de
vão encontrar eco nas idéias dos índios inauguradores de linhagens familiares.
brasileiros, fazendo surgir, aqui, uma Reverenciadas enquanto vivas, essas
¿ loso¿ a peculiar, um Brasil insti- gan- pessoas passavam, após a morte, a ser
temente cafuso, que se expressa, hoje, veneradas como objetos de culto; mas
na religiosidade, em muitas técnicas, em desde que satis- ¿ zessem claros e deter-
inúmeros folguedos e principalmente em minados requisitos, como a idade, por
certos conceitos ligados à terra, às árvo- exemplo2.
res, aos rios e mananciais. Isso porque, “Nas crenças dos povos da bacia
no sistema das concepções ¿ losó¿ cas do Congo” - escrevem N. A. Xenofonto-
dos povos bantos, assim como nas dos va e A. V. Nikiforov3 - “não encontramos
índios brasileiros (ao que nos consta), limites bem de¿ nidos entre o mundo
o culto aos antepassados se reveste de dos vivos e o além-mundo (...). O morto
fundamental importância. não era excluído da comunidade, conti-
Para a unanimidade dos povos nuando a ser o verdadeiro proprietário
do grande grupo etnolingüístico banto, das terras.” Assim - prosseguem os dois
todos os seres da natureza, inclusive cientistas da antiga URSS - “era costume
plantas e animais, são sempre entendidos dirigir-se aos espíritos dos ancestrais
como forças vivas, em processo, e nunca antes de serem iniciados os trabalhos
como entidades estáticas. Essas forças agrícolas e mineiros, a caça e a pesca,
vitais, por sua vez, formam uma cadeia, pedindo a sua autorização e proteção”.
da qual toda pessoa contitui um elo, vivo Segundo a tradição dos povos
e passivo - um elo ligado, em cima, aos bantos, por princípio toda terra é sa-
elos de sua linhagem ascendente (seus cralizada, talvez até mesmo uma terra
ancestrais), e sustentando, abaixo de si, estrangeira, que pode ser ou ter sido
a linhagem de seus descendentes1. propriedade e morada de um ancestral
Essa noção é a base do culto aos local. Da mesma forma, o pensamento
ancestrais - que não são simples parentes tradicional banto sacraliza as águas de
__________
1
Cf. Jacques Maquet, cit. in Nei Lopes, Bantos, malês e identidade negra, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1988, p. 123.
2
Cf. A. A. Kara-Murza, in A. A. Gromiko et alii, As religiões da África. Moscou: Edições Progresso, 1987, p. 65.
3
In A. A. Gromiko, op. cit., p. 174.
Bantos, índios, ancestr alidade e meio ambiente
Nei Lopes 277
rios e mares, não apenas por sua aplica- que a Amazônia e a Àoresta congolesa,
ção econômica, mas principalmente por por exemplo, estão ambas na mesma
elas terem servido, um dia, aos antepas- zona do globo, nos trópicos). “Não se
sados hoje venerados como ancestrais. tratava ali” - e agora recorremos a um
E, assim como a terra e as águas, são texto de Muniz Sodré5 - “de falar sobre
sagradas também as árvores e as plantas, a relação que o indivíduo deve ter com o
não só por fornecerem sombra, alimento meio ambiente, não se tratava do discurso
e remédio, mas também por sua ligação liberal do preservacionismo, mas de agir
com os antepassados ilustres de cada de tal maneira que o elemento natural (...)
comunidade. se tornasse parceiro do homem num jogo
Foi de posse de crenças e em que cosmo e mundo se encontram.”
tradições assim estruturados que os Índios e bantos, juntos, entenderam a
bantos aqui escravizados encontravam natureza como divina e ativa, e nunca
os donos originais da terra brasileira. indagaram de uma Àoresta, por exemplo,
Desse encontro, uma atitude geral de em que medida cada árvore poder-lhe-ia
deferência e reverência gerou alianças ser útil em termos de qualidade e do valor
não apenas simbólicas, mas também econômico de cada metro cúbico de sua
reais, que ¿ zeram nascer, por exemplo, madeira6.
a umbanda e vertentes de culto como
Finalizando, uma abstração:
o candomblé-de-cabloco e o “banto-
-ameríndio”4 da Região Amazônica, Em seu célebre discurso, parece
onde, além do saber comum sobre plan- que de 1895, o chefe indígena norte-
tas medicinais e rituais, os cânticos em -americano Seattle a¿ rmava, em réplica
português são comumente entremeados ao presidente dos Estados Unidos: “Se
de termos e expressões tupis-guaranis e lhe vendermos nossa terra, você verá
angolo-congueses; e nos quais a presença que ela é sagrada. A água brilhante que
do termo “Aruanda” (morada mítica de se escoa nos ribeiros e nos rios não é
pretos-velhos, cablocos e outras entida- somente água, mas o sangue de nossos
des), referência ao porto de Luanda, em ancestrais. O vento que deu ao nosso avô
Angola, é freqüente. seu primeiro alento recebe também o seu
Com o índio, então, principal- último suspiro. O vento dá aos nossos
mente na utilização das plantas, o afri- ¿ lhos o espírito da vida. Todas as coisas
cano banto trocou, no Brasil, toda uma estão ligadas com o sangue, que nos une
gama de experiências ecológicas (veja-se a todos”7.
__________
4
Denominação usada por Napoleão Figueiredo in Banhos de cheiro, ariachés e amacis. Rio de Janeiro, Funarte, 1983, p. 9.
5
Cf. Muniz Sodré, O terreiro e a cidade. Petrópolis, Vozes, 1988, p. 151.
6
Idem, p. 152.
278 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
_________
7
In Joseph Campbell, Transformação do mito através dos tempos. São Paulo: Cultrix, 1992.
*
Fontes: Cantigas de caboclos, cantigas de pretos velhos. Rio de Janeiro: Ed. Pallas, s/d
O ver de no Neste momento histórico, o
mundo se reúne na chama Cúpula da
candomblé Terra, a Rio-92, para uma reÀexão so-
bre as relações que nós, seres humanos,
mantemos com o nosso meio ambiente.
Um dos aspectos mais animadores desta
Conferência da UNCED está na inclusão
de um espaço para a realização de reuni-
ões como este Colóquio, oportunidades
para a inserção, no contexto desse debate,
de uma perpectiva que valorize a diver-
sidade cultural.
A pluralidade étnica que carac-
teriza o Brasil reproduz, de certa manei-
ra, a própria diversidade dos povos do
mundo. Na preservação do meio ambien-
te, nos parece imprescindível partir da
premissa da riqueza das contribuições de
povos não-ocidentais. No Brasil, temos o
exemplo de uma prática e ¿ loso¿ a reli-
José Flávio Pessoa de Barros * giosa que incorpora uma visão de mundo
essencialmente ecológica: o candomblé.
280 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate
NA ÁFRICA
as árvores dessa espécie sejam moradas toda a antiga Costa da Guiné. Entre o
de entidades sobrenaturais, travessas e povo fon do antigo Daomé, por exemplo,
brincalhonas, chamadas óró. a árvore é chamada loko e é morada do
vodum de mesmo nome, gerado pelo ca-
Na tradição nagô - ensina Juana
sal primeiro Mawu-Lissá. Nessa região,
Elbein dos Santos - as árvores estão
conforme G. Parrinder, alguns povos
sempre associadas aos primórdios da
depositam oferendas de comida ao seu
existência. Tanto que muitos relatos
pé; outros levantam templos ao seu lado
místicos dessa tradição começam com
e o protegem erguendo ao seu redor uma
a fórmula “no tempo em que os homens
cerca; e, sendo necessário derrubá-lo, é
adoravam as árvores...”.
preciso antes acalmá-lo com oferendas.
Crença co mum na trad ição
Mas, assim como os iorubás,
negro-africana é a de que todo espírito
esses fons, no Brasil conhecidos como
se toma de afeição especial por uma
jejes, parecem não considerar todos os
determinada árvore, que, assim, se sacra-
espécimes da árvore loko como vegetais
liza. Por isso é que pós de certas plantas,
sagrados em si mesmos. Entendem eles
pedaços de madeira e certas resinas, por
que elas podem, sim, ser moradas do
seu poder e força, constituem grande
vodum, mas não nascem já sacralizadas
parte do material empregado nas práticas
por ele. Elas só se tornam sagradas quan-
mágicas em África - como também nas
do são escolhidas por Loko para ser sua
Afro-Américas.
morada de¿ nitiva.
Por serem uma emanação direta
de Orisala, que é o orixá por excelência
NO BRASIL
da cor branca, essas árvores sagradas, en-
tre as quais se incluem alguns ìrokò, são
A tradição afro-brasileira conhe-
adornadas com uma tira de pano branco
ce muitas árvores sagradas. É o caso do
(ojá, que lhes é atada em volta do tronco).
cajapricu, árvore fossilizada que protege
E, segundo Juana Elbein dos Santos, um
o Ilê Axé Opô Afonjá, comunidade-
dos oríkí do írokó (o oríkí é uma espécie
-terreiro das mais antigas da Bahia; da
de poema-saudação em que os iorubás
cajazeira, árvore sagrada da Casa Grande
exaltam as características e qualidades de
das Minas, comunidade maranhense que
pessoas, vegetais e animais) evidencia
se destaca como o único lugar, nas Amé-
essa identidade entre ele e Orisala na sua
ricas, onde se cultuam voduns da família
forma de Ògìyan, Jovem) quando diz:
real do antigo Daomé; da ¿ gueira, que
“Ìrokò! Oluwere, Ògìyan Eleiju”, ou seja,
pertence a Exu e Obaluaiê; da árvore da
Ìrokó, árvore proeminente entre todas as
fruta-pão, que em alguns candomblés
outras, Ogíyan do seio da Àoresta”. jejes é consagrada ao deus-serpente Dã;
Segundo H. Deschamps, o ìrokò, da jaqueira, que pertence a Oxumarê e
símbolo da fecundidade, é sagrado em Apaocá, etc., etc.
Ir okò, o Deus-Ár vor e da Tr adição Afr o-Br asileir a
Nei Lopes 289
Na foto, ao lado da presidente da Fundação Cultural Palmares, Dulce Pereira, o senador Abdias Nascimento agradece
a homenagem recebida (medalha de ouro Zumbi) na abertura do Seminário Internacional Rota do Escravo, que reuniu
intelectuais, artistas e militantes da causa negra na África e na Diáspora. Brasília, 18 de agosto de 1998
Patr imônio Em 1827, a mata Atlântica foi
histór ico na r ota rasgada por pés e mãos africanos para a
abertura da primeira estrada que ligaria
dos escr avos São Paulo e Minas Gerais ao litoral sul
do estado do Rio de Janeiro.
Milhares de escravos cruzaram a
região vindos da África, desembarcando
dos navios tumbeiros do comendador
Breves (rei do café), em seu porto parti-
cular situado em Mangaratiba, na restin-
ga de Marambaia. Ali eram recebidos e
aculturados para serem distribuídos pelas
19 fazendas de café da família Breves, ou
levados para o interior de Minas Gerais
e de São Paulo.
Por volta de 1830, tendo multi-
plicado em muito a fortuna da família, o
então Dragão da Independência,comen-
dador Joaquim José de Souza Breves, já
contava com mais de seis mil escravos
como sua propriedade.
298 THOTH 5/ agosto de 1998
Sankofa: Memória e Resgate