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algumas regras e práticas sarracenas. A referência à cor da pele -


um negro - não significa que se tratasse de um preto da África
Central, mas apenas de um homem mais escuro do que os outros,
provavelmente descendente do cruzamento de sangue cristão com
sangue mouro sudanês, ou semelhante. Coimbra tinha tido uma forte
componente moçárabe, a seguir à reconquista de 1064.
D. Afonso Henriques impõe, portanto, um bispo negro, mas o fazê-lo
à força leva o Papa a intervir. Vejamos, em terceiro lugar, como
reage o monarca português à interferência de Roma nas suas
decisões:
Vindo já o Cardeal perto de Coimbra, onde El-Rei estava, vieram
alguns fidalgos a El-Rei e disseram-lhe:
- Senhor, aqui vos vem um Cardeal de Roma, por estardes em
conflito e descontentamento com o Papa, por este novo Bispo que
fizestes.
Disse El-Rei:
- Aínda me não arrependo. E eles prosseguindo mais avante,
disseram:
- Senhor, todos os reis por cujas terras ele vem, segundo se diz,
lhe fazem quanta honra podem, e o provam beijando-lhe a mão.
Disse então El-Rei:
- Não sei de Cardeal nem Papa, que a Coímbra viesse e me
estendesse a mão para lha beijar, em minha casa, que eu não lhe
cortasse o braço pelo cotovelo com esta espada, e disto não podia
ele escapar.
Estas palavras soube-as o Cardeal ao chegar a Coimbra, e tomou
grande receio. Em chegando, foi logo direito à alcáçova onde El-
Rei repousava. Ali o recebeu El-Rei muito bem, e disse-lhe:
- Pois, Cardeal, a que viestes a esta terra, que riquezas me
trazeis de Roma para estes combates que tão amíúde faço de día e
de noite contra os mouros? Dom Cardeal amigo, se vós porventura me
trazeis algo que me deis, dai-mo,- se me não trazeis nada, tornai-
vos para donde viestes.
- Senhor (disse o Cardeal), eu venho a vós da parte do Santo Padre
para vos ensinar a fé de Cristo.
Respondeu então El-Rei:
- É certo que nós também aqui temos bons livros da fé nesta terra,
como vós lá em Roma. E portanto bem sabemos como o filho de Deus
encarnou na Virgem María e dela nasceu, e isto por obra do
Espírito Santo, e como morreu na cruz para remir a geração humana,
e descendo aos infernos ao terceiro día ressuscitou imortal, e que
o Pai e o Filho e o Espírito Santo são três pessoas realmente
repartidas em uma só essência. Esta fé temos e cremos firmemente,
tão bem como vós lá em Roma. Pelo que não temos agora necessidade
de receber de vós outra doutrina nem ensino. Foi-se então o
Cardeal para a pousada, e mandou logo dar de comer aos animais: e
assim que foi meia-noite, mandou chamar todos os clérigos da
cidade, e excomungou a cidade e todo o reino,- e pôs-se a cavalo,
e saíu à pressa, e antes da manhã andou duas léguas.
Como se vê, o caso estava malparado. Mas não terminou aqui. D.
Afonso Henriques não era homem para se ficar:
Levantou-se El-Rei ao outro dia pela manhã, e dísse a seus
cavaleiros: - Vamos ver o Cardeal.
Disseram eles:
- Senhor, muito antes da manhã ele foi-se daqui, e deixou-vos
excomungado, a vós e à vossa terra.
Logo disse El-Rei:
- Selai-me depressa um cavalo. E cingiu sua espada, e cavalgou com
grande pressa quanto pôde atrás dele. E foi alcançar o Cardeal em
um lugar que chamam a Vimieira, perto de Poiares, camínho da
Beira.
E assím que chegou a ele, lançou-lhe uma mão ao cabeção
(colarinho) e com a outra tírou a espada, e levantou o braço com
ela, dízendo:
Dá a cabeça, traidor, querendo-lha cortar.
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Disseram quatro cavaleiros:
- Senhor, por favor não queirais fazer isso, pois se matardes este
Cardeal, cuidarão de todo em Roma que sois herege.
Disse então El-Rei:
- Por essas palavras que agora dissestes, vós lhe daes a cabeça.
Mas, se assim é, Dom Cardeal: ou vós desfareis tudo quando
fizestes, ou cá vos fica mesmo a cabeça.
- Senhor (disse o Cardeal), não me queirais fazer mal. Toda a
coisa que vós quiserdes, eu a farei de boa mente.
Disse El-Rei:
- O que eu quero que vós façais é que descomungueis quanto
excomungastes, e que não leveis daqui ouro nem prata, nem anímais
senão três, que vos bastarão; e mais, que me envieis uma carta de
Roma, prometendo que nunca eu, nem Portugal, em meus dias seja
excomungado, pois eu o ganhei com esta minha espada: é isto que
quero de vós agora. Mas vós deixareis aqui este vosso sobrinho,
filho de vossa írmã, em penhor, até que a carta venha. E se ela
até quatro meses aqui não chegar, que eu lhe corte a cabeça.
A tudo o Cardeal disse que concordava, e assím o fícou de fazer.
Então lhe tomou El-Rei quanta prata e ouro lhe achou, e animais,
não o deixando levar mais de três; e tírou El-Rei a capa e despiu-
se todo, e mostrou muitos sinais de ferídas que tinha pelo corpo,
e disse:
- Cardeal, como eu sou herege, bem se mostra por estes sínais das
minhas feridas: estas em tal peleja, e estas em tal cidade ou vila
que tomei, e todas por serviço de Deus, contra os inímigos da
nossa fé. E para esta tarefa levar avante vos tomo este ouro e
prata, porque estou com muita falta deles, e me são necessários
para mim e para os meus.
Foi-se então o Cardeal, e El-Rei tornou para Coimbra. Então lhe
outorgou o Papa a carta, na maneira que o Cardeal quís, e mandou-a
a El-Rei antes dos quatro meses: e El-Rei lhe enviou seu sobrinho,
honradamente como cumpria.
Este, o longo e pitoresco episódio do bispo negro, que foi escrito
por alguém que dava de D. Afonso Henriques uma imagem feroz e
violenta. Mas Duarte Galvão, que reproduz a história toda já no
século XVI, sem qualquer animosidade contra o nosso primeiro rei,
antes com grande admiração e respeito por ele, dá-se ao trabalho
de explicar que, às vezes, os reis não podem actuar como as outras
pessoas, e têm de tomar certas atitudes mais duras:
Assim como se não pode negar coisas de tal modo feitas serem fora
do que os homens devem fazer, assim também se não podem deixar de
confessar o modo e maneira do Rei serem muito fora dos outros
homens: pois o Rei não é Rei por sí nem para si: e para actuar e
se salvar, um há-de ser o camínho do Rei, e outro o do frade.
Tais atitudes mais extraordinárias, tomadas por um rei católico e
virtuoso, diz Duarte Galvão, hão-de vir sempre "da vontade e
querer de Deus, ainda que seja fora da vontade e parecer dos
homens". Por isso, conclui, não as devemos julgar ligeiramente:
são casos excepcionais, especialmente autorizados por Deus, "e
assim não nos fará novidade nem espanto lê-los, nem ouvi-los".
Era a explicação própria de um defensor da doutrina do "direito
divino dos reis", segundo a qual os reis reinavam em virtude da
vontade de Deus e, por isso, não deviam obediência ao Papa nem aos
bispos: o poder temporal tinha primazia sobre o poder espiritual.
Não era esta a doutrina vigente no século XII, época em que a
supremacia do Papado era crescente e viria a ser oficialmente
consagrada por Inocêncio III, no século seguinte.
Temos assim de concluir que D. Afonso Henriques podia ter ordenado
um bispo negro em Coimbra, mas nunca teria ameaçado de morte um
cardeal enviado especialmente pelo Papa - até porque ele sempre
necessitou muito do apoio da Igreja, e de Roma, para prosseguir a
política de autonomia progressiva de Portugal.
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Capítulo XI
A batalha de Ourique

Aprovado o pacto de Tui, em 1137, é a altura de D. Afonso


Henriques se voltar definitivamente para a fronteira sul. Dois
anos antes, em 1135, mandara construir o castelo de Leiria, que
deslocava cerca de cem quilómetros mais para baixo a linha de
fronteira do Condado Portucalense com o Islão.
Mas os muçulmanos não se deram por vencidos e, atacando o novo
castelo em 1137, destruíram-no e arrasaram-no. D. Afonso Henriques
firmou o propósito de o recuperar e reconstruir, o que decidiu
fazer na Primavera de 1139.
Encontrando-se em Maio deste ano em Coimbra, decidiu reunir tropas
suficientes para o efeito nesse mês e no seguinte.
Em fins de Junho ou começos de Julho, o príncipe português parte
com as suas tropas em direcção ao sul, com o propósito declarado
de retomar e reerguer o castelo de Leiria.
Em 2 5 de Julho de 1137 (dia de Santiago), dá-se uma importante
batalha, num local que as fontes da época e posteriores denominam
de Ourique (Aulic, Oric ou Ouric, conforme os textos), e
consideram bem encravada no coração do território sarraceno de
então (tunc cor terrae sarracenorum).
A batalha terá sido forte e renhida, forçando D. Afonso Henriques
a combater contra cinco reis mouros - um deles expressamente
nomeado, Ismar, e os outros apontados como tendo vindo de Sevilha,
Badajoz, Évora e Beja. Ao que parece, Ismar (também denominado
Esmar ou Ezamare) era nada mais nada menos do que o governador
militar, ou alcaide, de Santarém - que tinha a seu cargo a
fronteira norte dos sarracenos e que já fora o responsável pela
destruição, dois anos antes, do nosso castelo de Leiria.
Com os exageros da época, dizem as crónicas que os dois exércitos
formavam multidões: para uma, 40 mil homens, para outra 10 mil,
além de muitas mulheres, lutando como amazonas». Não deve ter sido
bem assim: quando muito, algumas centenas de cada lado.
O resultado da contenda foi uma clara vitória para os portugueses,
que mataram tantos infiéis e mostraram tal coragem e determinação
que puseram Ismar em debandada e com ele todos os sobreviventes.
A expedição não terá sido muito demorada, porque dias depois D.
Afonso Henriques, ao que consta, já estava de volta a Coimbra com
a sua gente.
Estes são, na sua singeleza, os factos conhecidos e comprovados
relativamente à batalha de Ourique - a qual vai conhecer, porém,
nos séculos seguintes, um aumento enorme de proporções, dado ter
sido a primeira vitória mílitar de D. Afonso Henriques sobre os
mouros.
Assim, de crónica em crónica, de autor em autor, de século em
século, a batalha de Ourique vai sofrer uma profunda metamorfose,
que dela fará - até à crítica de Alexandre Herculano - a "pedra
angular da monarquia portuguesa", como este lhe chamou.
De pequena confrontação transforma-se em grande batalha; de prélio
ocorrido por ocasião da tentativa de recuperação do castelo de
Leiria converte-se numa extraordinária e arrojadíssima descida até
ao sul do Alentejo; de simples feito militar passa a momento
glorioso em que o núcleo dirigente do país aclama D. Afonso
Henriques como Rei de Portugal; a batalha de Ourique estará também
na origem da configuração dada pelo nosso primeiro monarca às
armas reais, com o "escudo das cinco quinas" a simbolizar os cinco
reis mouros derrotados (como disse
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Camões, "cinco escudos azuis esclarecidos, em sinal destes cinco
reis vencidos"). E, por último, como se tudo isto não bastasse,
gera-se a lenda do "milagre de Ourique", ou seja, começa-se a
acreditar, a partir de certa altura, que Cristo apareceu a D.
Afonso Henriques na véspera da batalha para lhe dar ânimo e
prometer a vitória, consagrando-o assim como chefe digno da
protecção divina e colocando Portugal, desde o início, como país
amparado pela vontade de Deus.
Este ponto - o chamado "milagre de Ourique" - deve ser
compreendido à luz da grande religiosidade da Idade Média e da
crença que havia na existência de milagres como forma possível,
embora excepcional, de intervenção divina na vida humana: à luz
destas concepções, a melhor maneira de justificar a independência
de Portugal era ligá-la directamente a um milagre. A lenda conta-o
assim:
Quando foi finda a tarde, depois que o príncipe fez pôr as guardas
no seu arraial, o eremita que estava na eremida que acíma dissemos
veio até ele e dísse-lhe: - Príncipe D. Afonso, Deus te manda por
mim dizer que, pela grande vontade e desejo que tens de o servír,
quer que tu sejas ledo e esforçado: ele te fará amanhã vencer El-
Rei Ismar e todos os seus grandes poderes. E mais te manda por mím
dizer que, quando ouvíres tocar uma campaínha que está na eremida,
deves saír fora e ele te aparecerá no céu, assim como padeceu
pelos pecadores. Desde que partíu o eremita, o Príncipe D. Afonso
pôs os joelhos em terra e disse: - Oh bom Senhor Deus, todo-
poderoso, a quem todas as criaturas obedecem, sujeitas a teu poder
e querer, a tí só conheço, e agradeço mandares-me prometer tão
grande coisa como esta. E tu, Senhor, sabes que por te servír
passo muita fadíga e trabalho contra estes teus ínímigos, com os
quais, por serem contra ti, eu não quero paz nem quero tê-los como
amigos.
E desde que isto disse, com outras palavras muito devotas
encomendou-se a Deus e à Vírgem gloriosa, Sua mãe. Então encostou-
se e adormeceu.
E quando foi uma meia hora antes da manhã, tocou a campainha como
o eremíta dissera, e o príncipe saiu fora da sua tenda e, segundo
ele mesmo dísse e deu testemunho em sua história, viu Nosso Senhor
em cruz, na maneira que lhe dissera o eremita. E adorou-o muito
devotamente com lágrimas de grande prazer, dízendo:
- Senhor, aos hereges é que é precíso apareceres, pois eu sem
nenhuma dúvída creio e espero em ti firmemente. Neste aparecímento
foí o príncípe D. Afonso certíficado por Deus de sempre Portugal
haver de ser conservado em reino. Tudo é para crer que Nosso
Senhor quereria e faría a Príncípe tão vírtuoso, sobre quem
fundara reino e Reis tão virtuosos para o seu serviço e da santa
fé católíca.
Nota: Todas as Histórias de Portugal contam bem estes aspectos da
batalha de Ourique: ver, em especial, a de Barcelos, a de
Veríssimo Serrão e a de José Mattoso.
Foi esta a versão religiosa e sobrenatural do fundamento da
nacionalidade portuguesa que prevaleceu nas grandes crises da
nossa independência face a Castela - 1383-85 e 1580-1640- e que se
manteve convictamente enraizada na consciência nacional durante
cinco séculos.
Só em 1846, com a publicação do primeiro volume da Históría de
Portugal, de Alexandre Herculano, este ilustre historiador pôs em
dúvida - aliás, com palavras bastante moderadas - o chamado
«milagre de Ourique», e preferiu considerar a respectiva batalha
como um episódio menor, secundário, sem grande importância na
nossa história ou no próprio desenvolvimento do reinado de D.
Afonso Henriques.'
Tanto bastou para que contra ele se levantasse um vigoroso coro de
protestos, provenientes dos sectores católicos mais
tradicionalistas, aos quais Herculano respondeu indignado.
O problema pode ser hoje colocado em termos de total serenidade:
quem acreditar em milagres tem todo o direito de
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acreditar no "milagre de Ourique"; quem não acreditar em milagres
- ou não aceitar a ideia de uma intervenção providencial na
resolução de casos pontuais da vida humana -tem todo o direito de
negar a existência do "milagre de Ourique". O que ninguém poderá
negar é que a crença no milagre de Ourique alimentou, durante pelo
menos cinco séculos, o sentimento patriótico português: e isto é
um facto histórico, não porque tenha necessariamente havido
milagre, mas porque o país em peso acreditou que houve.
Outro ponto que também fez parte durante séculos da tradição
lendária portuguesa sobre a batalha de Ourique foi a ideia de que
D. Afonso Henriques, no início do combate, terá sido aclamado Rei
de Portugal pelos barões e soldados ali presentes. Diz a crónica:
E quando os senhores e grandes que estavam com o Príncipe D.
Afonso víram as hostes dos mouros e a grande multidão deles sem
conto, chegaram ao Príncípe e disseram:
- Senhor, nós vimos a vós para que nos façais uma mercê, a qual
será um grande bem e honra para os que aqui sobreviverem, e para
os que morrerem, e para todos os da geração deles.
O Príncípe respondeu-lhes que dissessem o que queriam, que não
havia coisa que em seu poder fosse de fazer, que de boa vontade
não fizesse.
Eles disseram:
- Senhor, o que toda esta vossa gente vos pede é que consintais
que vos façam Rei, e assím haverá mais ânimo para pelejar.
Respondeu ele e disse:
- Amigos, senhores, irmãos: eu tenho de vós suficíente honra e
senhorio, por sempre ser de vós muito bem servido e guardado; e
porque disso me contento bem, não me quero chamar Rei nem sê-lo.
Mas eu, como vosso irmão e companheiro, vos ajudarei com o meu
corpo contra estes infiéis inimigos da fé. Além disso, para o que
dizeis, o lugar e a hora não são convenientes.- para o feito em
que estamos, sede vós muito esforçados e não temais nada, pois o
Senhor Jesus Cristo, por cuja fé estamos aqui juntos e prontos a
pelejar e a espargír o nosso sangue, como ele fez por nós, nos
ajudará contra estes inimigos, e os dará vencidos em nossas mãos.
O precioso apóstolo Santiago, cujo dia hoje é, será o nosso
capitão e fiador nesta batalha.
Responderam eles todos:
- Senhor, praza a Deus que assím seja, e não menos o esperamos da
sua graça. Porém, para ele ser melhor servido por vós e por nós
neste feito, e em todos os outros adiante, é muito necessário que
vos alcemos por Rei; e não deve uma só vontade vossa impedír a de
todos, que tanto vo-lo pedimos e desejamos.
O Príncipe, vendo-se tão apertado por eles, disse que, pois se
assim era, que fizessem o que bem lhes parecesse.
E então todos o levantaram por Rei, bradando com grande prazer e
alegria:
- Real, real, por El-Rei D. Afonso Henriques de Portugal!
Não se sabe ao certo, claro está, se as coisas se passaram deste
modo. Um pequeno pormenor inclina-me a pensar que sim. De facto,
se a narrativa da aclamação régia fosse apresentada como uma
consequência da vitória de D. Afonso Henriques sobre os mouros,
bem podia tratar-se de uma invenção fabricada pelos cronistas um
ou dois séculos depois: como diziam os clássicos, o primeiro rei
foi um general vitorioso numa batalha.
O certo é, porém, que a história nos é contada ao invés,
apresentando-se a aclamação como um acto prévio, em relação à
batalha, requerido pelos nobres e pelos soldados ali presentes, a
fim de que houvesse, por essa razão, "mais animo para pelejar".
Dificilmente esta sequência seria inventada pelo cronista, porque
não lembraria a um estranho aos factos coroar um chefe militar
como rei antes da sua primeira grande batalha - antes, portanto,
de se saber se ele ia ganhar ou perder o combate.
Em Ourique, D. Afonso Henriques não esteve sozinho com os seus
soldados: acompanharam-no e ajudaram-no os principais cavaleiros e
barões do reino, a saber, D. Egas Moniz (*), D. Pero
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Pais, alferes-mor, D. Lourenço Viegas e D. Gonçalo de Sousa, os
irmãos Martim Moniz e Mem Moniz, e D. Diogo Gonçalves. Dois deles,
pelo menos, morreram em combate: Mem Moniz e Diogo Gonçalves.
Foram os primeiros heróis na gesta de Afonso Henriques à conquista
do sul.
Nota: Duarte Galvão, conta que Egas Moniz morreu a caminho de
Ourique, no meio do percurso: porém, a informação está errada,
porque a batalha de Ourique teve lugar em 1139 e a morte de Egas
Moniz só ocorreu em 1146.
Os historiadores não conseguem pôr-se de acordo sobre o local onde
efectivamente se travou a batalha de Ourique.
A opinião tradicional, que Alexandre Herculano perfilhou, é a de
que o prélio teve lugar no actual concelho de Ourique, distrito de
Beja.
Mas esta opinião não resiste a uma reflexão aprofundada: primeiro,
como é que as tropas de D. Afonso Henriques, que ainda estavam em
Coimbra no final do mês de Junho, conseguem aparecer em 25 de
Julho - isto é, apenas três semanas depois - no sul do Alentejo, a
mais de 300 quilómetros de Coimbra?
Segundo, como é que D. Afonso Henriques vai encontrar no sul do
Alentejo, como adversário principal, o rei Ismar, que era o
alcaide de Santarém? Foram combinados, um de Coimbra e outro de
Santarém, realizar um torneio conjunto no Baixo Alentejo?
Terceiro, como é que se aceita ser verosímil que D. Afonso
Henriques tenha conseguido chegar de Coimbra ao sul do Alentejo
sem problemas ou dificuldades - iludindo a vigilância e torneando
a defesa dos mouros, que ainda ocupavam na altura Santarém, Lisboa
e arredores, Palmela, Alcácer do Sal, Évora e Beja? Como se
infiltraram as tropas portuguesas por entre todos estes pontos
fortes do domínio muçulmano, que Afonso Henriques só haveria de
conquistar - um a um - ao longo dos 20 anos seguintes?
A hipótese não tem verosimilhança. Por isso, já desde 1900 o Prof.
David Lopes sustentou, com maior razoabilidade, que, dadas as
posições militares fixas de portugueses e muçulmanos à época,
Ourique tinha necessariamente de situar-se a norte de Santarém
(cidade e castelo dominados pelos árabes, tendo como governador ou
alcaide o nosso já conhecido Ismar), e a sul da linha Leiria-
Ourém-Tomar (ocupada pelos portugueses).
Só que, em clara contradição com esta poderosa argumentação, o
ilustre professor concluiu que a batalha em causa teria tido lugar
no «Chão de Ourique», próximo do Cartaxo - que é uma região
situada cerca de 15 quilómetros a sul de Santarém... Não pode ser:
Ismar não o consentiria.
Se D. Afonso Henriques partiu de Coimbra em direcção ao sul, para
recuperar Leiria, e se defrontou, pouco tempo depois, com as
hostes de Ismar, que lhe saíram ao caminho, é lógico concluir que
Ourique só podia situar-se entre Leiria e Santarém
- zona que, aliás, era então pertença da mourama e correspondia
portanto à descrição da crónica já citada: achava-se «no coração
da terra dos sarracenos».
Ora bem: se Ourique se situava entre Leiria e Santarém, ficam
automaticamente excluídas as teses - um tanto ou quanto
fantasistas - que apontam para o Alentejo, para Lisboa, para o
Cartaxo (tudo locais ao sul de Santarém), bem como para Penela e
Montemor-o-Velho (ambas ao norte de Leiria).
Concluo, pois, que de todas as localizações até hoje propostas
para situar a batalha de Ourique, a única que faz sentido e se
mostra razoável é a do «Campo de Ourique», junto à nascente do rio
Lis, na freguesia das Cortes, concelho de Leiria - que fica
situada a cerca de oito quilómetros a sul da cidade de Leiria (e
portanto na zona entre Leiria e Santarém). Foi esta a localização
proposta pelo Dr. José Saraiva, em 1929, e que se me afigura
correcta.
Notas:
1- Duarte Galvão diz ter Martin Moniz morrido na batalha de
Ourique, mas isso não é verdade, pois este faleceu na tomada de
Lisboa, 8 anos depois.
2- Um dos argumentos que considero mais convincentes, de entre os
usados pelo Sr. Dr. José Saraiva, é o de que, na época da batalha
de Ourique, e mesmo alguns anos mais tarde, ainda a Câmara
Municipal de Coimbra levantava entre o povo o pregão da guerra
santa para defender o castelo de Leiria , o que prova como se
estava longe do Tejo e do Além-Tejo...
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Segundo o meu modo de ver, as coisas ter-se-ão passado desta
maneira: em Maio-Junho de 1139, D. Afonso Henriques estava em
Coimbra 'e Ismar em Santarém; aquele decidiu formar um exército
para ir recuperar o castelo de Leiria, antes arrasado por este. Em
princípios de Julho, o príncipe português põe-se ao caminho e
percorre os 60 quilómetros que separam Coimbra de Leiria; apossa-
se novamente desta cidade e deixa uma parte dos seus homens a
guardá-la, bem como a reconstruir o castelo. Depois continua mais
para sul: assim como em 1142 tentará conquistar Lisboa, não
surpreende que em 113 9 lhe tenha ocorrido tentar conquistar
Santarém. D. Afonso Henriques parte, portanto, de Leiria para
Santarém. Mas Ismar, que está atento e controla agilmente o
território entre Santarém e Leiria, avança para norte, para lhe
sair ao caminho, e enfrenta-se com os cristãos a sul de Leiria.
Dá-se então a batalha de Ourique, que portanto não é um fossado,
mas uma confrontação directa de dois exércitos, no caminho entre
as cidades de onde partiram (Coimbra e Santarém).
Ismar é derrotado e foge. Mas fica por perto. Tão perto que logo
em começos de 1140 - poucos meses depois - cai de novo sobre
Leiria, que volta a ocupar.
Tudo isto é razoável e faz sentido. É nesta zona (Coimbra, Leiria,
Santarém) que se tem de situar o Ourique da célebre batalha.
Querer vê-lo noutra qualquer parte do país é totalmente ilógico; e
querer colocá-lo no sul do Alentejo é - salvo o devido respeito -
surrealista: se, naquelas circunstâncias concretas, D. Afonso
Henriques e o seu exército tivessem conseguido ir sem embaraços ao
sul do Alentejo - em três semanas -, e voltar de lá sem problemas
e em pouco tempo até Coimbra, esse seria certamente um outro
"milagre de Ourique"!

Capítulo XII
O título de Rei e o primeiro filho

D. Afonso Henriques nunca se intitulou a si próprio, nem deixou


que o chamassem, conde de Portugal ou dos portugueses: conde era,
na verdade, uma designação que evocava dependência de outrem, e
que portanto não convinha a quem sempre teve em mira tornar-se
independente.
Assim, enquanto foi menor chamaram-lhe, como era costume, infante;
e quando atingiu a maioridade passou a intitular-se príncípe.
Segundo a tradição, a designação de rei - acabamos de vê-lo - foi-
lhe dada pelo seu exército e conselheiros na véspera da batalha de
Ourique, quando D. Afonso ia em 30 anos de idade. Com aclamação ou
sem ela, o que parece fora de dúvida é que foi depois dessa
batalha, e por causa dela, que D. Afonso Henriques assumiu para
sempre o título de Rei, e passou a assinar com essa designação os
documentos oficiais.
Com efeito, até à batalha de Ourique, nunca a denominação de rei
aparece em nenhum documento;' depois dela, e logo a seguir, o
título real surge com frequência. Nenhuma outra explicação permite
compreender a mudança ocorrida, senão a própria batalha de
Ourique?
Repare-se bem nas datas. Ourique tem lugar em 25 de Julho de 1139.
Pois, nos meses seguintes, aparecem nada menos de cinco documentos
em que D. Afonso Henriques se intitula e assina Rei dos
Portugueses:
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- Documento de Outubro de 1139: Alphonsus... Portugalensium rex;
- Documento de Fevereiro de 1140: RexAlphonsus, Portugalensíum
prínceps;
- Documento de Abril de 1140: Ego, egregíw rex Alphonsus;
-Documento de Junho de 1140: Rex Alphonsus;
- Documento de Novembro de 1140: Ego Alphonsus rex, Portugalensíum
princeps.
Os historiadores divergem sobre qual destes cinco documentos deve
ser considerado o primeiro autêntico - será o de Outubro de 39? ou
o de Fevereiro de 40? ou ainda o de Abril de 40? Ou algum dos
outros?
Pouco importa. O importante é que D. Afonso Henriques, logo a
seguir à vitória de Ourique, começa a usar oficialmente o título
de Rei. O facto tem um duplo significado - interno e
internacional.
No plano da política interna, ele pretende significar que D.
Afonso Henriques considera ter atingido a mais alta posição
hierárquica e simbólica no Estado português. Já não é um menor,
nem um principiante, nem um líder precário: ele é o Rei, é o Chefe
do Estado.
No plano da política externa, o facto significa que D. Afonso
Henriques se considera agora um governante situado em perfeita
igualdade com os mais altos dirigentes da Península Ibérica: ele é
Rei de Portugal e, com isso, coloca-se no mesmo plano ou nível
protocolar que o Rei de Leão e Castela, que o Rei de Navarra ou
que o Rei de Aragão. Isto para já não falar dos reis de França ou
de Inglaterra. Será este o momento em que Portugal se torna um
país independente?
Há quem tenha entendido que sim. Não é essa, no entanto, a minha
opinião. Para que assim fosse, seria necessário que «realeza»
fosse sinónimo de " independência", e não pudesse ter outro
significado diferente.
Ora, não era assim. Ao longo da História - todos o sabem - houve
ducados e condados que eram independentes, embora não fossem
reinos (por exemplo, Flandres e Sabóia), e houve reinos que,
apesar de o serem, eram dependentes de um imperador (por exemplo,
no século xii, na Península Ibérica, os reinos de Aragão e
Navarra, dependentes do Imperador de Leão, ou, nos séculos xix e
xx, os reinos da Baviera, da Saxónia, do Wurtenberg e de Hanôver,
incorporados no II Reich alemão após 1870). O título usado pelo
chefe supremo de uma comunidade política era, pois, uma dignidade
pessoal, mas nada nos dizia, só por si, acerca do estatuto de
maior ou menor autonomia dessa comunidade em relação a outras.
Ora a verdade é que Portugal, apesar de ter passado, em 1139-1140,
de condado a reino - tendo agora por chefe supremo um Rei, e não
mais um conde -, continuava a ser um território não autónomo, ou
seja, um território integrado no Império leonês. D. Afonso
Henriques podia ser Rei de Portugal, mas era vassalo do Imperador
de Leão - a cujo império pertencia -, do mesmo modo que também
eram vassalos dele os reis de Aragão e de Navarra, não obstante
designarem-se reis.
A assunção do título de rei por D. Afonso Henriques foi, pois, um
momento importante, quer sob o aspecto pessoal quer político, na
vida portuguesa, e constituiu mais um passo muito relevante a
caminho da independência. Mostrou mesmo uma vontade de ser
independente. Mas não foi ainda o momento da independência.
Pode calcular-se, contudo, o alto grau de satisfação pessoal que
este novo passo constituiu para D. Afonso Henriques: não só ou não
tanto pela honra em si mesma considerada, que era enorme, mas
porque ela representava uma nova etapa na execução da estratégia
política definida após a batalha de S. Mamede.
44
A fase seguinte consistiria em procurar obter o reconhecimento
diplomático do título real por parte da potência internacional que
mais tinha a perder com isso: justamente o Imperador de Leão e
Castela, Afonso VII. Esta nova fase não durou tanto como a
anterior: se a caminhada de S. Mamede a Ourique tinha levado onze
anos, o percurso de Ourique a Zamora (onde tal reconhecimento veio
a ser obtido) demorou apenas quatro anos.
Mas os anos de 1139 e 1140 não foram apenas anos de glória e
satisfação para D. Afonso Henriques no plano político, com a
vitória de Ourique e a assunção do título de Rei: esses anos foram
também um momento de felicidade e alegria pessoal, porque
presenciaram a concepção e o nascimento do seu primeiro filho,
Fernando Afonso, que veio à luz em data não conhecida, no ano de
1140.
Verifica-se assim um paralelismo curioso na vida política e
pessoal de D. Afonso Henriques - no plano político, ele afirma-se
como chefe supremo em 113 9 e recolhe o respectivo fruto em 1140,
assumindo o título de Rei; no plano pessoal, vive o seu primeiro
caso amoroso sério em 1139 e dele colhe o respectivo fruto em
1140, vendo nascer o primeiro filho.
Em que circunstâncias se dá este importante acontecimento na vida
de D. Afonso Henriques?
Antes de mais, cumpre sublinhar que por esta altura o Rei de
Portugal ainda não era casado: o seu casamento só viria a dar-se
dali a mais seis anos. Era, no entanto, um homem feito: tinha 30
anos de idade.
Claro está que nada sabemos da sua vida amorosa anterior. Mas é de
crer que ela tenha sido semelhante à dos outros rapazes da sua
idade e condição, no meio em que foi criado. Como vimos, D. Afonso
Henriques não foi educado pelos pais, nem viveu na corte: cresceu
e amadureceu no interior do país, em zonas rurais junto do rio
Douro, em casa de fidalgos abastados e influentes. A sua iniciação
sexual deve ter sido idêntica à dos outros jovens em
circunstâncias como as suas.
Não é de crer que o príncipe D. Afonso se tenha mantido casto até
aos 30 anos de idade: mas, pelos vistos, das suas relações com o
sexo feminino não nasceu mais cedo nenhum "fruto proibido".
Até que em 1139 aconteceu um facto importante: não foi apenas uma
ligação amorosa de que nasceu um filho. Foi muito mais do que
isso: D. Afonso Henriques - no auge da sua pujança pessoal e da
sua trajectória militar e política - conhece uma mulher, de quem
se enamora intensamente, e que será a grande paixão da sua vida.
Quem é a feliz contemplada? Mistérios desta vida: é uma rapariga
da melhor nobreza galega, jovem e bonita por certo, de seu nome
Flâmula Gomes, que é nem mais nem menos do que uma sobrinha de
Fernão Peres de Trava - o amante de D. Teresa, mãe de D. Afonso
Henriques.
Malhas que o destino tece: o filho veio a ter como amante uma
sobrinha do amante da mãe! De novo se reforçavam as ligações da
corte portuguesa com o poderoso clã galego dos Travas.
Veja-se como a vida destas duas famílias se cruzou e entrelaçou de
forma intensa e invulgar: primeiro a ligação de D. Teresa com
Bermudo; depois a sua união de facto com o irmão dele, Fernão; de
seguida, o casamento de Bermudo com a filha mais velha de D.
Teresa, Urraca; e por fim a ligação amorosa - que haveria de
prolongar-se - entre o filho de D. Teresa e uma sobrinha de Fernão
e de Bermudo, filha de uma irmã deles, Elvira! Dir-se-ia que um
imã atraía poderosamente as duas famílias, como que a tentar
forçar a concretização do sonho de unificar Portugal e a Galiza!
Não são conhecidas, ao menos por enquanto, as circunstâncias em
que Flâmula Gomes veio para Portugal e conheceu Afonso Henriques.
Valerá a pena ter presente, contudo, que o tio dela, Fernão Peres
de Trava, voltou várias vezes a Portugal depois de haver sido
derrotado na batalha de S. Mamede, e pode ter trazido a sobrinha
consigo- e que Flâmula foi primeiro casada
45
com Paio Soares, de quem teve três filhos, e depois de viúva fez-
se monja no mosteiro beneditino de Vairão. Mais tarde, teve um
filho de Mem Rodrigues de Tougues, que morreu pouco depois. Só em
seguida conheceu Afonso Henriques. Não era propriamente uma
donzela inocente...
Nota: Flâmula também aparece mencionada com o nome de Chamoa, ou
Châmoa.
Quando a conhece, Afonso Henriques apaixona-se vivamente por
Flâmula Gomes, e dessa paixão nasce um primeiro filho, ilegítimo,
em 1140, e hão-de nascer outros mais tarde.
Este primeiro filho varão, que se chamará Fernando Afonso, não vai
ser apenas um elemento sentimentalmente importante para o Rei de
Portugal, por ser o seu filho mais velho: vai também desempenhar
um papel político de primeira grandeza, sob vários aspectos, ainda
em vida de seu pai e já depois da morte dele.
Por ter sido o primeiro, por ter sido filho varão, por ter nascido
de uma forte e séria paixão, e por ter vindo ao mundo na sequência
da vitória de Ourique e do início do uso do título de Rei pelo pai
- podemos seguramente concluir que Fernando Afonso não foi um
filho enjeitado, qual fruto indesejado de um amor ilícito, mas
antes um filho muito querido, cujo nascimento deve ter sido um
momento de rara felicidade para o pai. Veio a ser, aliás, educado
na corte.
Ser rei e ser pai no mesmo ano - foi algo que D. Afonso Henriques
não mais terá esquecido.
Agora havia que trabalhar para obter o reconhecimento oficial dos
dois factos consumados - para obter o reconhecimento, por Afonso
VII, do título de Rei e, quiçá, para obter o reconhecimento, pela
Igreja, da sua ligação amorosa e do seu filho.

Capítulo XIII
Valdevez e a Conferência de Zamora

D. Afonso Henriques saiu da vitória de Ourique e da assunção do


título de Rei, em 1139-40, reforçado na sua autoridade política e
determinado a obter o reconhecimento, por Afonso VII, Imperador de
Leão e Castela, da sua dignidade régia.
Qual a melhor táctica que devia utilizar para alcançar esse
objectivo estratégico? À sua escolha tinha duas tácticas
possíveis.
A primeira era a táctica da paz, da cooperação, do cumprimento
escrupuloso do pacto de Tui: eventualmente, Afonso VII não
deixaria de recompensar D. Afonso Henriques pelo alívio da pressão
militar a noroeste da Península, num momento em que se achava
envolvido em tantas outras frentes de luta.
A segunda táctica possível era a da guerra, da não cooperação, da
manutenção e aumento da pressão militar na Galiza, ainda que em
manifesta violação do acordado em Tui: talvez Afonso VII,
justamente por ter outras preocupações mais fortes na sua acção
governativa - quer com Navarra e Aragão a leste, quer com os
mouros a sul -, acabasse por querer pôr um ponto final na
desinquietação permanente que se vivia no noroeste peninsular, e
concedesse a D. Afonso Henriques o ambicionado reconhecimento.
(Nos nossos dias, Yasser Arafat seguiu esta táctica guerreira para
obter de Israel o autogoverno da Palestina.)
A opção tomada pelo rei português foi a segunda, apesar dos riscos
que comportava: veio aqui à superfície o «génio belicoso e destro
nas armas» que os cronicões lhe atribuíam.
46
Segundo Alexandre Herculano, «quem quebrou as pazes juradas» foi
D. Afonso Henriques, porque era a ele que interessava "anular o
tratado de 1137" e, acrescento eu, obter o reconhecimento
diplomático do título de rei.
D. Afonso reuniu os seus exércitos, em número apreciável, e voltou
a invadir a Galiza - era a 5.ª incursão em dez anos! cercando e
tomando Tui. Estávamos em Agosto de 1140.
As forças portuguesas encontraram forte resistência por parte do
governador da Límia, Fernando Anes, tendo D. Afonso Henriques sido
ferido numa escaramuça. Afonso VII não gostou da quebra das pazes
de Tui e entrou com as suas hostes na Galiza, recuperando muitos
dos locais tomados pelos portugueses.
Os dois exércitos acabaram por se encontrar junto de Arcos de
Valdevez, no Alto Minho português: o primeiro combate foi-nos
favorável, tendo sido preso o conde Radimiro, que chefiava a força
leonesa . Isso determinou a realização de um torneio - ou bafordo»
- entre um número limitado de cavaleiros portugueses e leoneses.
Este segundo combate foi-nos ainda mais favorável, tendo ficado
prisioneiros vários nobres leoneses ilustres, entre os quais um
irmão do imperador, Fernando Furtado, o cunhado de Afonso
Henriques, Bermudo Peres de Trava, e o conde Ponce de Cabrera.
Foi tal o prestígio das tropas portuguesas e do seu chefe, D.
Afonso Henriques, e tal o desânimo que se apoderou dos leoneses -
sobretudo com a detenção de quatro prisioneiros de guerra de
grande nomeada -, que o próprio Imperador Afonso VII, através do
arcebispo de Braga, pediu tréguas aos portugueses, não fosse a
guerrilha crescente desembocar numa grande batalha geral, que cada
vez mais "se tornava inevitável".
Notas: Alexandre Herculano situou esta nova campanha da Galiza nos
fins de 1139 ou, o que nos parece mais de crer, nos princípios do
ano seguinte. Porém, os trabalhos de A. Botelho da Costa Veiga
demonstram que a campanha começou em Agosto de 1140 e só terminou,
com o armistício de Valdevez, em Setembro de 1141. Os "dois primos
falaram amigavelmente um com o outro" e ajustou-se um cessar-fogo
(como hoje lhe chamaríamos), "por alguns anos", até que «depois,
com mais sossego, se pudesse assentar uma paz definitiva e
duradoira» - a qual viria a acordar-se, dois anos mais tarde, em
Zamora.
A táctica agressiva dera resultado: foi a guerra que conduziu à
paz e ao reconhecimento diplomático pretendido por Afonso
Henriques.
Não se pense, porém, que os dois anos que medearam entre Valdevez
e Zamora foram de merecido descanso para o Rei de Portugal.
É que o seu grande adversário muçulmano, Ismar, governador de
Santarém, tendo sabido das dificuldades militares da primeira fase
da campanha da Galiza (1140), voltou a atacar em força o castelo
de Leiria, matou parte da população, prendeu o alcaide português,
D. Paio Guterres, e, prosseguindo na incursão para a Beira
interior, tomou e saqueou Trancoso, hoje pertencente ao distrito
da Guarda.
Isto obrigou D. Afonso Henriques a descer até Trancoso,
atravessando o rio Douro em Lamego, e a dar batalha aos mouros,
que em dois recontros seguidos desbaratou por completo, em fins de
1141.
O Rei português não ficou satisfeito com esta excessiva ousadia
dos muçulmanos, e decidiu puni-los com maior ousadia a Sul: em
1142 tentou conquistar Lisboa, com a ajuda de uma armada francesa
que, a caminho da Terra Santa, fundeara no porto de Gaia.
Mas a tentativa falhou, porque as forças sob comando português não
eram suficientes, o planeamento fora precipitado, e Lisboa mostrou
ser um lugar forte e bem defendido».
Nota: Quanto à data desta primeira tentativa de conquista de
Lisboa, que Herculano punha em 1140, parece hoje líquido que foi
em 1142.
A situação familiar de D. Afonso Henriques sofrera entretanto uma
alteração: a paixão fervorosa por Flâmula Gomes levara
47
ao nascimento de um segundo filho, também varão, que teve o nome
singelo de D. Afonso.
O Rei cada vez mais desejava legalizar a situação, casando com a
sua amada. E, de facto, alguns autores (sem confirmação
documental) chegam a falar de um casamento entre os dois, que
posteriormente teria sido anulado.
Mas a Igreja deve ter manifestado forte oposição, dada a natureza
ilegítima (e até incestuosa, duplamente incestuosa, como vimos)
das relações maritais entre a família real portuguesa e a família
Peres de Trava. Não é de excluir, tão-pouco, que o alto clero e a
nobreza - convictos adversários da união galaico-portuguesa -
vissem como potencialmente perigoso, e politicamente incorrecto, o
casamento católico solene entre o Rei português e uma filha
dilecta da mais poderosa família galega, muito ligada à nossa
corte, e com provadas ambições hegemónicas sobre Portugal.
Por este lado, portanto, os projectos pessoais de D. Afonso
Henriques não avançavam. Mas o projecto político, esse, ia de
vento em popa: como afirma Alexandre Herculano, o infante
concebera «o pensamento de fundar um reino independente no Oeste
da Península», e o Rei estava agora em condições de o concretizar
- tinha o apoio político e militar dos barões portucalenses, do
povo, da Igreja, e tinha uma forte capacidade de liderança e um
ânimo determinado na prossecução dos seus fins. Alguém escreveu
que o czar Nicolau II, da Rússia, era um monarca «sem paixão e sem
projecto»: o contrário se poderá dizer de D. Afonso Henriques. Ele
era, verdadeiramente, um rei com paixão e com projecto. Zamora foi
o seu próximo passo.
A paz que ficara prometida, nas suas linhas gerais, em Valdevez,
em Setembro de 114 1, veio a ser formalmente negociada e concluída
em Zamora - cidade leonesa, próxima de Bragança em 4 e 5 de
Outubro de 1143.
Em que circunstâncias?
Naquela época, realizara-se um concílio provincial dos bispos
hispânicos em Valladolid, sob a presidência do cardeal romano
Guido de Vico, legado do Papa Inocêncio II.
Tanto ele como o Imperador de Leão e o Rei de Portugal se
dirigiram então a Zamora, que fica a escassos 30 quilómetros de
Valladolid, para negociarem a paz definitiva.
Guido de Vico assistiu à conferência, como medianeiro, e ela
saldou-se por um acordo amigável concluído entre as duas partes,
que para sempre prometeram reciprocamente paz e concórdia.
Não chegou até nós nenhum documento que reproduza o texto de algum
acordo celebrado ou que contenha a acta das reuniões. Mas
conhecem-se documentos pelos quais se fica a saber que, por um
lado, o Imperador de Leão reconheceu a D. Afonso Henriques o
título de Rei e que, por outro lado, este recebeu daquele o
senhorio de Astorga - que já fora de seu pai -, considerando-se
por esse facto vassalo do Imperador.
Segundo Alexandre Herculano, além desta dependência particular,
relativa ao senhorio de Astorga, o Rei de Portugal ficou também
numa espécie de dependência política de Afonso VII, o Imperador
das Espanhas, ou de toda a Espanha, como ele se intitulava nos
seus diplomas».
Qual o significado político da Conferência de Zamora? Terá ela
constituído o momento decisivo da independência de Portugal?
Alexandre Herculano pensa que sim. Para ele, «a separação de
Portugal era, enfim, um facto materialmente consumado e completo,
fosse qual fosse a dependência nominal em que o seu príncipe
ficasse do imperador». No entanto, Herculano reconhece que «a
concessão de Astorga, como senhorio dependente em tudo da coroa,
era talvez um laço armado à ambição de Afonso Henriques. Por esse
meio, os caracteres de rei de Portugal e de vassalo de Leão,
acumulados no mesmo indivíduo, tornavam-se mais evidentes».
48
Na esteira de Herculano, outros historiadores mais recentes seguem
idêntica opinião: António Ennes,' Alfredo Pimenta, Orlando Ribeiro
e Veríssimo Serrão.
Salvo o devido respeito, não concordo com esta interpretação. De
facto, se o objectivo da Conferência de Zamora era obter a paz,
como se pode saltar daí para concluir que ela teve como resultado
a independência de Portugal?
Que a parte portuguesa o desejasse, é fácil de compreender: mas
como podia o Imperador de toda a Espanha aceitar, de boa mente,
deixar de o ser, desanexando do seu império Portugal, um dos
maiores territórios que o compunham?
A independência de Portugal era do interesse de D. Afonso
Henriques, mas não era do interesse de Afonso VII: para este, era
essencial que se continuasse a manter o vínculo de vassalagem do
seu primo para com ele, para que ele próprio pudesse continuar a
ser Imperador de toda a Espanha.
A habilidade de Afonso VII esteve em dar alguma coisa de
importante a D. Afonso Henriques - o reconhecimento do título de
Rei de Portugal -, sem todavia lhe dar tudo o que ele queria - a
independência pura e simples -, antes mantendo-o na condição de
vassalo da coroa leonesa, através da tenência de Astorga.
Ora, a verdade é que não só a subordinação através de Astorga
impedia a independência de Portugal, mas também o reconhecimento
do título de rei não equivalia ao reconhecimento da independência
do país.
A dependência resultante do senhorio de Astorga afectava a
autonomia de Portugal: porque ser vassalo obrigava a socorrer o
suserano com forças militares, sempre que necessário, e essas
forças - dada a pequenês de Astorga - só podia o rei português
recrutá-las em Portugal. Era, pois, com o exército português que
D. Afonso Henriques respondia perante Afonso VII pelos seus
deveres de senhor de Astorga: mantinha-se, assim, o «fio que o
prendia ao senhor de toda a Espanha».
Por outro lado, o reconhecimento do título de rei não era
equivalente ao reconhecimento da independência de Portugal, pois -
como vimos - «rei» e «reino» não são sinónimos de independência
política.
Na prática, um imperador só o era verdadeiramente se tivesse na
sua dependência, como vassalos, vários reis: se dele só
dependessem condes ou duques, não era um imperador, mas um rei.
Ora, Afonso VII era realmente, em 1143, suserano de dois reis - os
reis de Navarra e de Aragão. Não custa a crer, portanto, que para
ele fosse aceitável - ou até mesmo desejável - passar a ter mais
um rei na sua alçada. Reconhecer ao conde de Portugal o título de
rei não era nada de absurdo ou de excessivo: era uma solução
aceitável. E tinha precedentes na monarquia leonesa.
Numa palavra: não me parece possível pretender extrair do
reconhecimento do título de rei a D. Afonso Henriques, obtido em
Zamora em 1143, o significado de um reconhecimento (explícito ou
implícito) da independência de Portugal. No contexto peninsular da
época, e ponderados todos os interesses em jogo, o reconhecimento
do título de rei ao chefe do Condado Portucalense só fazia sentido
dentro do quadro do império hispânico, e com expressa submissão ao
respectivo imperador.
D. Afonso Henriques passava, pois, a ser considerado Rei de
Portugal - mas Portugal, tal como Navarra e Aragão, continuava a
ser um território incorporado no império leonês, e o seu rei
continuava vassalo do Imperador.
Sendo assim, a Conferência de Zamora não foi uma grande vitória
diplomática de D. Afonso Henriques.
Este obteve, é certo, o reconhecimento do título de Rei de
Portugal; mas não alcançou o seu objectivo principal, que era a
independência completa do reino.
Pelo contrário, foi maior o êxito de Afonso VII: sem ceder um
milímetro na questão da vassalagem - e portanto na dependência
política de Portugal face a Leão -, só teve de reconhecer
49
ao primo o título de rei, o que era também do seu interesse, pois
lhe reforçava a qualidade de Imperador de toda a Espanha.
Tal como no cerco de Guimarães e no pacto de Tui, Zamora não foi,
assim, um grande êxito para D. Afonso Henriques. Talvez tenha sido
mesmo uma certa desilusão: pela terceira vez consecutiva, em cerca
de 15 anos, o chefe dos portugueses não conseguia livrar-se da
supremacia feudal do Imperador de Leão.
Foi aqui, sem dúvida, que D. Afonso Henriques compreendeu que a
política de stop and go até aí seguida para com o seu primo Afonso
VII (guerrilha - acordo de paz - guerrilha - acordo de paz -
guerrilha) não levaria a nada. Por duas razões: Primeiro, porque
Portugal não tinha força militar suficiente para impor uma derrota
global a Leão; e segundo, porque Afonso VII : Não podia nem queria
reconhecer a independência de Portugal, que era contrária aos seus
interesses e ao direito público leonês.
Assim, deve ter-se tornado claro para o rei português e para os
seus conselheiros, à luz dos resultados da Conferência de Zamora,
que o objectivo da libertação de Portugal face à dependência
política de Leão não podia ser prosseguido no plano bilateral -
quer pela guerra, quer pela diplomacia - e só podia ser atingido
num plano internacional mais vasto - o das relações com a Santa
Sé.
Como dizia Herculano, «as instituições da monarquia (leonesa)
contradiziam a separação (de Portugal): era, portanto, necessário
anulá-las por uma jurisprudência superior a elas. Só colocando o
seu trono à sombra do sólio pontifício Afonso Henriqes podia
torná-lo sólido e estável».
É por isso que, neste momento, D. Afonso Henriques deixa de se
interessar com Leão e vai voltar-se em cheio para Roma. Ainda que,
para tanto, com os olhos na independência portuguesa vá ter de, em
dois meses, dar o dito por não dito e violar os acordos
estabelecidos com Afonso VII.
Na verdade, a Conferência de Zamora teve lugar nos começos de
Outubro de 1143: ora, a 13 de Dezembro do mesmo ano, já D. Afonso
Henriques está a escrever uma carta ao Papa, em que dá uma
reviravolta de 180 graus.

Capítulo XIV
A vassalagem ao Papa

Na Idade Média era frequente solicitar-se ao Papa a chamada


"liberdade romana", que podia ser requerida por uma diocese, por
um convento, ou mesmo por um país. Segundo Luís Gonzaga de
Azevedo, a "liberdade romana" consistia em que «o mosteiro, ou
diocese, ou reino, a que era concedida, ficava isento dos poderes
civis ou eclesiásticos do lugar a que antes estava sujeito,
reconhecendo para o futuro só a autoridade do romano Pontífice ou
dos seus legados, ao qual ficava pagando um censo módico».
Foi nesta figura da "liberdade romana" que os conselheiros de D.
Afonso Henriques decerto se inspiraram para tentar resolver o
problema - até aí insolúvel - da independência de Portugal.
Sobretudo D. João Peculiar, o novo arcebispo de Braga - grande
amigo e conselheiro do rei português - e outros clérigos devem ter
congeminado que se D. Afonso Henriques apelasse à "liberdade
romana", e esta lhe fosse concedida, ele se libertaria para sempre
da dependência feudal do Imperador de Leão.
Tratava-se de um gesto muito ousado: porque significava negar os
compromissos que acabavam de ser assumidos para com Afonso VII.
Mas D. Afonso Henriques e os seus próximos queriam alcançar a
independência. Esse era o grande objectivo. E para atingir esse
fim, não olhavam a meios.
Durou apenas dois meses a conceber e a arquitectar o plano do
salto para Roma: de 5 de Outubro, data da Conferência de Zamora, a
13 de Dezembro, data da carta enviada ao Papa. Foi a
50
carta Claves regni (as chaves do reino), de 13 de Dezembro de
1143, pela qual D. Afonso Henriques - que se intitula «Afonso, por
graça de Deus Rei de Portugal» - decide enfeudar o reino de
Portugal à Santa Sé, afirmando nomeadamente ao Papa Inocêncio 11
que declara constituir a sua «terra» como censual de S. Pedro e da
Santa Igreja de Roma», com o «tributo anual de quatro onças de
ouro», censo que deverão pagar também os seus sucessores- declara-
se verdadeiro soldado de S. Pedro e do Pontífice Romano», que toma
como seu «padroeiro e advogado»- e, finalmente, solicita para si e
para a sua terra «a defesa e auxílio da Sé Apostólica», em tudo o
que respeite à «dignidade e honra» dessa terra, afirmando que
pretende nunca mais ser «obrigado a admitir nela o poder de
qualquer senhorio eclesiástico ou secular, senão o da Santa Sé e
dos seus legados».
A carta é subscrita por D. Afonso Henriques, Rei dOs Portugueses,
e confirmada por D. João Peculiar, arcebispo de Braga, D.
Bernardo, bispo de Coimbra, e D. Pedro, bispo do Porto.
Descontando as fórmulas puramente religiosas e notariais,
verifica-se que esta carta contém três elementos essenciais:
- A prestação de vassalagem ao Papa;
- A promessa de pagamento de um certo tributo anual em ouro;
- O pedido de protecção directa da Santa Sé, especialmente para
não ter de admitir mais, na terra portuguesa, o poder de qualquer
senhorio «eclesiástico ou secular».
É no terceiro elemento que consiste a mudança radical de política,
por parte de D. Afonso Henriques, em relação à monarquia leonesa.
Na verdade, o Rei de Portugal podia ter-se constituído vassalo da
Santa Sé por meras razões de carácter religioso ou de política
geral, sem pôr em causa a sua dependência vassálica para com o
Imperador de Leão.
Mas não: é precisamente essa dependência que ele, com a Claves
regni, pretende quebrar.
De facto, o que o nosso monarca afirma ao Papa é que pretende, em
troca da sua vassalagem a S. Pedro, a protecção da dignidade e
honra» da terra portuguesa e o apoio da Sé Apostólica para que ele
nunca mais seja «obrigado a admitir nela o poder de qualquer
senhorio eclesiástico ou secular».
Não admitir mais, na terra portuguesa, qualquer senhorio secular -
o que é ? É não admitir mais a suserania feudal do Imperador de
Leão; é trocar a vassalagem (temporal) ao Imperador Afonso VII
pela vassalagem (espiritual) ao Papa.
Deste modo, quando D. Afonso Henriques, em contrapartida da
vassalagem prestada a Roma, solicita a protecção pontifícia contra
o «poder de qualquer senhorio secular» - e acentua mesmo que
pretende «nunca ser obrigado a admitir», sobre Portugal, qualquer
forma de «senhorio secular» -, ele está, pura e simplesmente, a
declarar a sua intenção de se desligar do vínculo vassálico que o
subordina a Afonso VII de Leão e de se colocar, mediante a
subordinação directa e exclusiva a Roma, em plena igualdade com o
Imperador de Leão e com os demais poderes soberanos do mundo.
Ou seja: D. Afonso Henriques declara, na Claves regni, a sua
vontade de, com o apoio do Papa, se tornar independente.
É este, em minha opinião, o significado jurídico e político da
carta de D. Afonso Henriques ao Papa: trata-se do que modernamente
se designa por declaração unilateral de independência.
«Unilateral» - no sentido de «não acordada» ou «não pactuada» com
Afonso VII de Leão.
É esta intenção de ruptura definitiva e total do Rei português com
o Imperador de Leão - em clara e frontal violação dos acordos
firmados na Conferência de Zamora - que está nitidamente contida
na carta Claves regni. É, aliás, nesse preciso sentido que esta
carta vai ser interpretada na época, quer pela Santa Sé, quer por
Afonso VII. O próprio Alexandre Herculano reconhece que, com tal
atitude, «Afonso Henriques, apenas assentada a paz de Zamora,
tratou de iludir as consequências dela».
Concluo, pois, que o momento decisivo da independência de Portugal
foi o do acto de vassalagem ao Papa, através da Claves regni, em
13 de Dezembro de 1143.
51
Não foi moralmente correcto, decerto, violar de uma forma tão
frontal e flagrante os acordos celebrados com Afonso VII em
Zamora. Mas todas as declarações unilaterais de independência são
rupturas com a anterior potência administradora: só no caso da
História de Portugal, pense-se no Brasil, na Guiné, ou em Angola.
A ruptura que D. Afonso Henriques protagonizou no século xii
também o foi.
Vejamos agora que reacções provocou esse gesto, da parte da Santa
Sé e do Imperador de Leão.
Do lado de Roma, a reacção não se fez esperar. Apesar das mortes
seguidas dos Papas Inocêncio II e Celestino II, Lúcio II respondeu
ao monarca português em 1 de Maio de 1144, através da carta
Devotíonem tuam.
Uma parte desta carta não é, formalmente, favorável às pretensões
de D. Afonso Henriques: em vez de o tratar por «rei», trata-o
apenas por «ilustre duque portucalense»; chama a Portugal «terra»,
e não «reino»; não fala em independência, nem promete
expressamente a protecção requerida contra «o poder de qualquer
senhorio secular».
Mas a outra parte é bastante favorável: considera D. Afonso
Henriques como ovelha que Cristo recomendou à guarda de Pedro, por
se dedicar à luta contra os pagãos; aceita a vassalagem prestada à
Santa Sé e o tributo anual em ouro prometido ao Pontífice romano;
e exprime o voto de que D. Afonso Henriques e os seus sucessores
permaneçam sempre «defendidos do assalto dos inimigos visíveis e
invisíveis» e protegidos por S. Pedro «tanto nas almas como nos
corpos».
Como interpretar esta carta do Papa Lúcio II? Para uns, como Carl
Erdmann, ela não tem qualquer valor político, pois não responde
positivamente a nenhum dos pedidos feitos por D. Afonso Henriques.
Para outros, como Luís Gonzaga de Azevedo, ela constitui uma
enorme vitória diplomática, que contém uma aceitação quase
completa das pretensões do Rei de Portugal.
Por mim, acho que nem oito nem oitenta: Lúcio II não concedeu tudo
o que lhe fora pedido, mas também não se colocou na posição oposta
de nada conceder.
Com efeito, não é possível negar que a Devotionem tuam não
reconhece a D.Afonso Henriques o título de rei - que no ano
anterior já lhe fora reconhecido em Zamora por Afonso VII -, nem
chama reino a Portugal, nem aceita expressamente os vários pedidos
feitos por D. Afonso Henriques ao Papa.
Mas, por outro lado, seria desadequado ignorar que Lúcio II aceita
a vassalagem de D. Afonso Henriques e, em troca, promete-lhe a
protecção especial de S. Pedro - não apenas nos assuntos
espirituais («protecção das almas») mas também nos temporais
«(protecção dos corpos»), e não só contra as tentações do pecado
«(defesa dos inimigos invisíveis») mas também contra os perigos da
vida política e militar («defesa dos inimigos visíveis»).
É, pois, razoável concluir que a Devotíonem tuam não constitui a
derrota humilhante de D. Afonso Henriques pretendida por Erdmann,
embora tão-pouco represente a vitória retumbante reivindicada por
Gonzaga de Azevedo.
O ponto essencial parece-me ser o seguinte. Da carta de Lúcio II
resulta claramente que a vassalagem prestada pelo Rei de Portugal
ao Papa foi aceite. E o sinal visível, material, tangível, dessa
vassalagem - o tributo anual em ouro - também foi aceite.
De modo que temos de concluir que, se o Papa aceitou para si os
direitos decorrentes da vassalagem, também aceitou os respectivos
deveres.
Seria contrário à moral e à justiça que Roma aceitasse os
benefícios que lhe eram oferecidos e, ao mesmo tempo, recusasse os
correspondentes encargos. Alguém de boa-fé pode pensar que o Papa
quisesse receber o ouro mas negar a protecção que ele caucionava?
Portanto, temos de chegar à conclusão inevitável de que, ao
aceitar a vassalagem a S. Pedro e o tributo em ouro ao Sumo
Pontífice, Roma aceitou também as pretensões correlativas
formuladas por D. Afonso Henriques.
Fê-lo implicitamente, por óbvias cautelas diplomáticas, mas fê-lo
sem qualquer dúvida. Roma aceitou, pois, o dever de protecção
52
contra a interferência em Portugal de qualquer poder temporal
alheio. Leia-se: contra a interferência do Imperador de Leão. Roma
aceitou, por conseguinte, ainda que implicitamente, a
independência de Portugal face ao reino de Leão.
Declarada unilateralmente em Dezembro de 1143, e reconhecida
implicitamente em Maio de 1144, é deste período que data, quanto a
mim, sem margem para dúvidas, a independência de Portugal.
A melhor prova de que a independência de Portugal não se deu em
Zamora, em 114 3, mas no enfeudamento de Portugal ao Papa, em
1143-44, está nos protestos vigorosos que Afonso VII de Leão
apresentou em Roma contra a carta Devotionem tuam, de Lúcio 11,
logo que teve conhecimento dela - o que só terá sucedido por volta
de 114 7 -48.
É fácil de perceber que, se em Zamora tivesse sido reconhecida a
independência de Portugal, Afonso VII não teria nada que se
queixar por o Papa a ter reconhecido também. Assim como não é
difícil compreender que, se a Devotionem tuam não concedesse mais
a Portugal do que Afonso VII estava disposto a conceder, ele não
teria tão-pouco quaisquer motivos para protestar.
Que protesto enviou Afonso VII a Roma? Foi, simultaneamente, um
protesto político e eclesiástico, como nos elucida Alexandre
Herculano: no plano político, «queixava-se o Imperador de que o
Pontífice lhe quisesse diminuir o senhorio e a dignidade, e
quebrar os foros da monarquia, e de que tivesse aceitado algumas
coisas de Afonso Henriques e concedido outras que este pretendera,
de modo que os direitos da coroa leonesa eram lesados, ou antes
destruídos, com uma injustiça não transitória, mas perpétua»
(referência à «aceitação do censo» em ouro e às «promessas de
protecção contra quem pretendesse dominar em Portugal»); no plano
eclesiástico, «queixava-se também de que o arcebispo de Braga não
reconhecesse a primazia de Toledo».
Quem respondeu a Afonso VII já não foi Lúcio II, mas sim Eugénio
III, que lhe sucedera. E escreveu-lhe uma carta, que é
caracterizada pela «ambiguidade» e «astúcia» na parte política, e
que dá razão com toda a clareza a Afonso VII na parte
eclesiástica.
O Imperador de Leão não voltou a reagir. Mas, com o tempo,
percebeu muito bem que a causa estava perdida: o triunfo
diplomático junto do Pontífice romano não fora dele, fora de D.
Afonso Henriques. A "liberdade romana" fora concedida a Portugal:
e isso «destruíra os direitos da coroa leonesa», de uma forma «não
transitória, mas perpétua». Afonso VII tinha entendido muito bem,
sem sombra de ilusão, o verdadeiro alcance do enfeudamento de
Portugal à Santa Sé, e da respectiva aceitação por esta.
Em face das circunstâncias, Afonso VII resignou-se diante do facto
consumado da «separação de Portugal da monarquia leonesa: ao menos
não nos restam monumentos [documentos] de nenhuma outra tentativa
do Imperador para recobrar a mínima autoridade directa nesta parte
da Espanha [isto é, em Portugal]».
Merece uma palavra de respeito e admiração este rei leonês que,
perante a força, a persistência e a lucidez do separatismo de
Afonso Henriques - aliás, seu primo direito -, foi cedendo aos
poucos e acabou por aceitar os factos consumados, sem novos
protestos para Roma, nem reivindicações ou ameaças para com
Portugal.
Rei «fraco» lhe chamam por isso, hoje em dia, alguns historiadores
espanhóis. Rei «realista e sensato» lhe podemos chamar nós, porque
percebeu a força das realidades e não insistiu no impossível. Este
rei leonês merecia uma estátua em Portugal.
Se ainda houvesse dúvidas sobre a aceitação, por parte do
ímperador ibérico, da independência de Portugal, efectivada em
1143 -44, duas últimas provas serviriam para desfazê-las.
A primeira consiste num facto referido por um dos maiores
especialistas espanhóis sobre a vida de Afonso VII, o professor
Manuel Recuero Astray. Segundo este autor, pouco antes da
53
morte do Imperador (que ocorreu em 115 7), ou seja, por volta de
1156-57, os cronistas leoneses descreviam por forma «gloriosa e
laudatória» a grandeza dos domínios de Afonso VII. Porém, em
nenhuma dessas crónicas se incluía Portugal na órbita do império
leonês; e, entre os vassalos do Imperador, não figurava nunca D.
Afonso Henriques. Quer dizer: antes ainda da morte de Afonso VII,
e com pleno conhecimento deste, já Portugal tinha sido eliminado
por completo das crónicas oficiais da corte de Leão.
A segunda prova - ainda mais concludente, por isso que é positiva,
e não apenas negativa - consta de um documento recentemente
publicado em Espanha, e que creio estar a revelar aqui em primeira
mão: trata-se da carta régia de Afonso VI I, de 1 de Dezembro de
1156, emitida em Palencia, na qual o Imperador leonês confirma a
divisão de certas propriedades entre o arcebispado e o cabido de
Tui. Neste documento, Afonso VII, que mais uma vez se intitula
«Imperador de toda a Espanha», regula matérias que contendem com
terrenos a norte e a sul do rio Minho, dizendo que a sua decisão
foi tomada "ex consensu domní Adefonsi Regís Portugalie" («com o
consentimento de D. Afonso, Rei de Portugal»). Ora, se o Imperador
de Leão, para regular uma matéria a que hoje chamaríamos de
«cooperação transfronteiriça», recolhe e regista o acordo prévio
do Rei de Portugal - sem ao mesmo tempo o citar como vassalo, o
que faz em relação ao conde de Barcelona e aos reis de Navarra e
de Múrcia -, isso equivale, sem qualquer margem para dúvidas, ao
reconhecimento da soberania portuguesa e ao tratamento de D.
Afonso Henriques num plano de igualdade entre dois chefes de
Estado de países independentes.
As duas provas acima apresentadas confirmam plenamente, a meu ver,
que a independência portuguesa se consumou, não em Zamora mas por
efeito das cartas Claves regní e Devotíonem tuam - e, em qualquer
caso, antes da morte de Afonso VII, em 1157, e da bula Manifestís
probatum, de 1179.
Portugal era, finalmente, um Estado independente, como tal aceite
pelos três poderes que tinham sobre o assunto uma palavra a dizer
- a nobreza galega, a monarquia leonesa, e a Santa Sé.
D. Afonso Henriques, aos 35 anos de idade, podia considerar-se um
homem satisfeito e feliz: Realizara o seu primeiro grande
objectivo político. Conquistara a independência de Portugal. Mas
ainda não tinha concluído todo o seu projecto.
54
Capítulo XV
As pretensas Cortes de Lamego

Quando o monge de Alcobaça, Frei António Brandão publicou em


Lisboa, no ano de 1632 (sob o domínio filipino), a 3.ª parte da
Monarquia Lusitana - a primeira «História de Portugal» dos tempos
modernos -, fez nela referência, no capítulo XIII da secção
dedicada a D. Afonso Henriques, às «cortes que el-rei celebrou em
Lamego depois que o Sumo Pontífice lhe mandou a bula da
confirmação do reino», o que teria acontecido em 1143 ou 1144 -
portanto, a seguir à carta Devotionem tuam, de Lúcio II, que
acabámos de analisar.
Durante três séculos, os principais historiadores e os portugueses
em geral mantiveram a convicção da autenticidade das Cortes de
Lamego. Porém, Alexandre Herculano impugnou frontalmente a sua
veracidade.
E, hoje em dia, a convicção generalizada é a de que a acta das
Cortes de Lamego constitui um documento forjado no período
filipino, com o objectivo de sustentar a ilegitimidade do domínio
castelhano sobre Portugal.
Seja como for, parece-me interessante relatar aqui o episódio,
certamente falso, no qual se acreditou piamente em Portugal
durante séculos. Mais uma das muitas lendas que mitificaram D.
Afonso Henriques e o seu reinado!
Diz o cronista que ele próprio viu o traslado das Cortes de Lamego
«em um caderno que me veio à mão e compreende outras coisas do
cartório de Alcobaça».
O documento, primeiramente transcrito em latim e depois em
português, começa assim: Em nome da santa e índivídua Trindade,
Padre, Fílho e Espírito Santo, que é indivisa e inseparável. Eu,
D. Afonso, fílho do conde D. Henrique e da raínha D. Teresa, neto
do grande D. Afonso, Imperador das Espanhas, que há pouco pela
divina píedade fui sublimado à dignidade de rei.
Já que Deus nos concedeu alguma quíetação, e com seu favor
alcançámos vitória dos nossos novos ínimigos, e por esta causa
estamos mais aliviados, para que não suceda depois faltar-nos o
tempo, convocamos a cortes todos os que se seguem.
Vem então a lista das individualidades presentes, bem como a
menção do local onde a reunião terá tido lugar:
O arcebispo de Braga, o bispo de Víseu, o bispo do Porto, o bispo
de Coimbra, o bispo de Lamego, e as pessoas da vossa corte que se
nomearão abaixo, e os procuradores da boa gente, cada um por suas
cidades, por Coímbra, Guimarães, Lamego, Víseu, Barcelos, Porto,
Trancoso, Chaves, Castelo-Real, Vouzela, Paredes Velhas, Ceia,
Covilhã, Montemor, Esgueira, Vila de Rei e, por parte do senhor
rei, Lourenço Viegas, havendo também grande multídão de monges e
de clérigos.
Ajuntámo-nos em Lamego, na Igreja de Santa María de Almacave.
É curioso sublinhar que esta Igreja de Santa Maria de Almacave -
genuíno exemplar do estilo gótíco medieval - ainda hoje existe e
pode ser visitada.
Segue-se a descrição dos vários assuntos que terão sido tratados
nas Cortes de Lamego, que poderemos enumerar aqui,
55
como se fosse numa «ordem do dia» de um parlamento dos nossos
dias, em cinco pontos:
1 . Confirmação de D. Afonso Henriques como Rei de Portugal;
2. Aprovação das regras de sucessão no trono;
3. Estabelecimento das leis da nobreza;
4. Definição dos crimes mais graves e respectivas penas;
5. Deliberação sobre a independência de Portugal face ao Rei de
Leão.
A pretensa acta das Cortes de Lamego começa por narrar a aclamação
de D. Afonso Henriques como Rei de Portugal nestes termos
saborosos:
Sentou-se el-rei no trono real sem as insígnías reais e,
levantando-se Lourenço Viegas, procurador de el-rei, disse:
- Fez-vos ajuntar aquí el-rei D. Afonso, o qual levantastes no
Campo de Ouríque, para que vejais as letras [a carta] do Santo
Padre, e digais se quereis que ele seja rei.
Disseram todos:
- Nós queremos que ele seja rei. E dísse o procurador:
- Se assim é vossa vontade, dai-lhe a insígnía real. E disseram
todos:
- Demos em nome de Deus. E levantou-se o arcebispo de Braga, e
tomou das mãos do abade de Lorvão uma grande coroa de ouro
cheia de pedras preciosas, que fora dos reis godos, e a tinham
dado ao mosteiro, e puseram-na na cabeça de el-rei. E o senhor
rei, com a espada nua em sua mão, com a qual entrou na batalha,
dísse:
- Bendito seja Deus, que me ajudou. Com esta espada vos livrei e
vencí nossos inimigos, e vós me fizestes rei e companheiro vosso.
E pois mo fizestes, façamos leis pelas quais se governe em paz
nossa terra.
Esta teria sido a confirmação de D. Afonso Henriques como Rei de
Portugal. Perguntar-se-á: para quê, se já fora aclamado em
Ourique? Responde-nos o próprio Frei António Brandão mais adiante:
«Não há inconveniente algum que, tendo já os povos de Portugal
levantado por rei ao infante D. Afonso Henriques, tornassem nestas
cortes a dar o seu consentimento.» Porque em Ourique não estava
todo o clero nem toda a nobreza, nem tão-pouco havia procuradores
das cidades e vilas; ao passo que em Lamego fez-se uma «eleição do
povo todo», «para maior solenidade e perpetuidade desta eleição».
Confirmado D. Afonso Henriques como Rei de Portugal, confirmada
ficava também a independência do reino face à monarquia leonesa:
E dísse o procurador de el-rei, Lourenço Viegas:
- Quereis que el-rei, nosso Senhor, vá às cortes de l-rei de Leão,
ou lhe dê tributo, ou a alguma outra pessoa, tirando ao senhor
Papa que o confírmou no reino? E todos se levantaram e, tendo as
espadas nuas postas em pé, disseram:
- Nós somos livres, nosso rei é livre, nossas mãos nos libertaram,
e o senhor que tal consentír, morra; e se for rei, não reine, mas
perca o senhorío.
E o senhor rei se levantou outra vez, com a coroa na cabeça e a
espada nua na mão, e falou a todos:
- Vós sabeis muito bem quantas batalhas tenho feito pela vossa
liberdade; sois disto boas testemunhas, e o é também meu braço e
espada. Se alguém tal coisa consentir, morra pelo mesmo caso, e se
for filho meu ou neto, não reine.
E disseram todos:
- Boa palavra, morra El-rei, se for tal que consínta em dominio
alheio, não reine.
E el-rei outra vez:
- Assim se faça.
Eis os dois primeiros pontos tratados na tal acta das Cortes de
Lamego: a confirmação da aclamação de D. Afonso Henriques como Rei
de Portugal, e a resolução de manter a independência do reino,
nomeadamente em face do Imperador de Leão.
56
O outro aspecto que teria sido tratado com desenvolvimento nas
Cortes de Lamego era o da aprovação das regras de sucessão no
trono. Foram aprovadas cinco regras fundamentais: a regra da
sucessão de pais a filhos; a regra da sucessão dos irmãos; a
sujeição a confirmação pelas Cortes dos filhos dos irmãos; a
possibilidade de sucessão das filhas, não havendo filhos varões,
e, enfim, a regra de as filhas mais velhas não casarem senão com
portugueses e de que, se casassem com príncipes estrangeiros, não
herdariam o trono - «porque nunca queremos que o nosso reino saia
fora das mãos dos portugueses, que com seu valor nos fizeram Rei
sem ajuda alheia, mostrando nisto sua fortaleza e derramando seu
sangue».
Como disse logo de início, esta foi a regra das Cortes de Lamego
que fez desconfiar Herculano e os nossos historiadores mais
recentes, por a julgarem forjada com o intuito de excluir a
legitimidade dos Filipes como reis de Portugal. Na verdade, Filipe
11 foi aclamado nas Cortes de Tomar, em 1581, com fundamento no
facto de ser filho de D. Isabel de Portugal (casada com Carlos V),
a qual era filha do nosso rei D. Manuel I.
Há, de facto, no documento várias passagens que dificilmente
poderiam ter sido escritas no século XII. E o próprio António
Brandão formula as suas dúvidas sobre a autenticidade do
documento, e só o publica sob caução.
É, no entanto, muito curioso que toda a gente tenha acreditado na
autenticidade das Cortes de Lamego durante pelo menos três
séculos; e, a seguir à Restauração, as regras das Cortes de Lamego
foram mesmo consideradas como leis fundamentais do reino.
A melhor prova de que as Cortes de Lamego foram durante muito
tempo tidas por autênticas e importantes para os destinos de
Portugal está em que, aquando da proclamação da Constituição
liberal de 1822, em Lisboa, o juiz do povo - querendo evocar o
passado e lançar a ideia de um «começar de novo» - declarou da
varanda para a rua, no meio de grande exaltação:
- Vivam as Cortes de Lamego!

Capítulo XVI
O casamento com D. Mafalda de Sabóia

Como vimos, desde 1138, pelo menos, que D. Afonso Henriques tinha
encontrado a grande paixão da sua vida - a jovem e bonita fidalga
galega Flâmula Gomes, da poderosa família dos Peres de Trava.
Dela tinha já tido um primeiro filho, em 1139, D. Fernando Afonso.
Dela veio a ter, pouco depois, um segundo filho, D. Afonso. Ambos
viriam a dar que falar quando adultos.
Com ela terá querido, empenhadamente, casar. Seria um casamento de
amor e, simultaneamente, uma forma de legitimar os dois filhos
naturais já nascidos.
De 1139 a 1146 passaram sete anos em que o Rei português não
casou, mas em que terá tentado tudo para casar com Flâmula Gomes.
Há mesmo quem diga que chegou a casar, vendo pouco depois o seu
casamento anulado pelo facto de Flâmula Gomes ser devota (Deo
vota, consagrada a Deus) e ter entretanto perdido o direito de
casar, por determinação do Concílio de Latrão de 1139.' Não há,
contudo, qualquer prova documental de um tal casamento, nem da
respectiva anulação - actos que no século xii costumavam ser
sempre bem documentados.' Julgo, pois, que D. Afonso Henriques
terá tentado casar com Flâmula Gomes, mas que não conseguiu.
E não conseguiu porquê? Por um lado, é sabido que na Europa
medieval, marcada pela indisputada autoridade da Igreja Católica,
os reis não podiam
57
casar com as amantes, e os filhos ilegítimos não podiam suceder-
lhes na Coroa (o mesmo aconteceu com Henrique I de Inglaterra, que
reinou de 1100 a 1135). Acresce que Flâmula era devota e estava
canonicamente impedida de casar. Ora, D. Afonso Henriques prestou
vassalagem ao Papa em 1143 e precisava do apoio da Santa Sé para
consolidar a sua independência face à monarquia leonesa: tinha,
pois, de se assumir como um monarca católico bem comportado.
Por outro lado já vimos que os principais conselheiros do Rei - em
especial, Egas Moniz e D. João Peculiar - consideravam altamente
inconveniente para os superiores interesses de Portugal qualquer
ligação oficial entre a Coroa portuguesa e a nobreza galega. Já a
rainha D. Teresa causara os maiores problemas com a sua relação
amorosa com Fernão Peres de Trava: não seria agora admissível que
D. Afonso Henriques fosse repetir o mesmo erro, casando com uma
sobrinha do grande magnata galego. Era abrir de novo uma porta,
que tanto custara a fechar, à penetração influente dos Travas - a
mais poderosa família da Galiza - na governação de Portugal. E que
complicações não traria o facto de o futuro herdeiro da Coroa
portuguesa ser um neto do conde de Trava? Decididamente, a Igreja
e a alta nobreza não podiam consentir no casamento do Rei com a
sua amada. Mas D. Afonso Henriques tinha de casar. Numa monarquia
hereditária, é dever fundamental do monarca assegurar a sua
descendência legítima para garantir a continuidade e independência
do reino.
É fácil imaginar as conversas dos conselheiros e amigos mais
íntimos do rei: «Senhor, é motivo da mais funda preocupação para
os vossos súbditos ver que el-rei, já com 35 anos de idade e
sempre em guerras e perigos esforçados, ainda não deu um herdeiro
ao trono»; «Senhor, já conseguistes o mais difícil, que era obter
o reconhecimento de vosso primo, o Imperador Afonso VII, e de Sua
Santidade o Papa, e desbaratar os mouros em Leiria e em Ourique.
Agora é preciso assegurar, pela descendência legítima, a
continuação do reino de Portugal»; «Senhor, se acaso morrerdes sem
filhos legítimos, o Imperador de Leão retomará plenos poderes
sobre Portugal e todo o vosso esforço terá sido em Vão».
D. Afonso Henriques deve ter acabado relutantemente por aceder:
tinha de casar, e tinha de casar com outra mulher.
Mas com quem havia D. Afonso Henriques de casar? Ao contrário de
muitos outros exemplos na época, não foram os pais de D. Afonso
que lhe arranjaram o casamento - D. Henrique já tinha morrido há
34 anos e D. Teresa há 16. Aqui, a decisão foi do próprio Rei,
naturalmente assessorado pelos seus principais conselheiros.
Como a decisão era política, havia um objectivo fundamental a
prosseguir: casar fora do âmbito da monarquia leonesa; não
escolher noiva nem na Galiza, nem no reino de Leão; saltar por
cima do Império das Espanhas, indo buscar uma aliança mais longe,
além-Pirenéus. O princípio da maior proximidade (Galiza, Leão,
Castela) devia ser substituído pelo princípio do maior
distanciamento (França, Itália, Alemanha). O casamento de D.
Afonso Henriques constituiu mais um acto de independência face ao
império leonês.
A escolha recaiu na Casa de Sabóia, senhora de importantes
territórios, então independentes, situados entre a França e a
Itália, no eixo central da Europa.
Sabóia era nessa altura um condado autónomo - como a Borgonha,
como a Flandres, como Barcelona. Era seu chefe político Amadeu
III, conde de Sabóia e Moriana, casado com a condessa Mafalda de
Albon. Curiosamente, em cinco gerações, vários Sabóias tinham
casado com a nobreza da Borgonha' - havia, pois, laços familiares
quase permanentes entre Sabóia e Borgonha, aliás territórios
vizinhos.
A princesa escolhida para casar com D. Afonso Henriques foi uma
filha daquele casal, também de nome Mafalda como a mãe. D. Mafalda
de Sabóia - eis a infeliz donzela destinada a um casamento
político, de conveniência, com o Rei de Portugal.
Como se chegou, da parte de Portugal, a esta escolha? Nenhum
documento no-lo revela. Daí que os historiadores se limitem a
formular algumas conjecturas.
58
Alexandre Herculano, bom conhecedor dos factos e situações da
época, chamou a atenção para as relações que havia entre as casas
de Sabóia e de Borgonha, à qual por seu pai pertencia D. Afonso
Henriques. E não há dúvida que esta relação triangular «Portugal -
Borgonha - Sabóia» deve ter sido o pano de fundo em que se
desenvolveu o processo de escolha. Mas isso não nos diz muito
sobre o modo como as coisas aconteceram.
Veríssimo Serrão dá-nos algumas pistas interessantes. Em primeiro
lugar, afigura-se-lhe que o cardeal Guido de Vico, quando esteve
com D. Afonso Henriques nas pazes de Zamora, em 1143, pode ter
advogado junto do Rei português o casamento com a infanta de
Sabóia. Julga assim que Roma terá contribuído decisivamente para o
matrimónio do nosso primeiro monarca. Se nos lembrarmos de que o
Rei português colocou o seu trono sob a protecção de S. Pedro e
que a Santa Sé, segundo a minha interpretação, estava já
comprometida com a independência portuguesa, não será difícil
aceitar que Roma tenha querido unir em matrimónio o monarca
português com uma das mais prestigiadas famílias da Cristandade.
Em segundo lugar, entende Veríssimo Serrão que o conde de Sabóia,
que tomou parte na 2.ª Cruzada do Oriente, podia constituir um
excelente aliado para a expulsão dos mouros do território
português. Deste modo, o plano das cruzadas do Ocidente, a levar a
efeito na Península Hispânica, justificaria plenamente a aliança
luso-saboiana, que poderia mesmo ter sido promovida por D. Afonso
Henriques, a fim de evitar que os cavaleiros portugueses tivessem
de participar na cruzada à Terra Santa.
Qualquer destas explicações - iniciativa de Roma ou iniciativa do
Rei português - parece verosímil. Não é de excluir também que a
negociação do contrato de casamento tenha pertencido ao arcebispo
de Braga, D. João Peculiar, grande amigo e conselheiro político de
D. Afonso Henriques, que actuou na prática como verdadeiro
Ministro dos Negócios Estrangeiros de Portugal.
D. Mafalda. Mas já Tão-pouco se sabe com que idade casou era uma
rapariga núbil, porque logo um ano depois do casamento deu à luz o
seu primeiro filho, D. Henrique.
Dizem as crónicas antigas que Mafalda de Sabóia foi escolhida por
ser «mui formosa e dotada de muitas bondades.
O casamento teve lugar, ao que se supõe, em Coimbra, nos
princípios do ano de 1146. D. Afonso Henriques tinha então 37 anos
de idade e ia no oitavo ano do seu reinado.
Ignoram-se as festas que possa ter havido. Mas pela descrição que
as crónicas fazem do casamento de uma das filhas de D. Afonso
Henriques, D. Mafalda, podemos supor que o casamento real, embora
sem grande opulência, terá sido uma ocasião festiva - com recepção
à noiva e seus acompanhantes nas vésperas, presença de numerosos
prelados e cavaleiros da corte, várias comidas reais, uma
cerimónia solene na Sé e, por fim, uma grande boda.
Quem era D. Mafalda de Sabóia? Já vimos que devia ser uma jovem em
idade núbil - talvez entre os 16 e os 20 anos -, e que era tida
como formosa e prendada. Devia ser também, como todas as princesas
das casas reinantes na Europa daquele tempo, uma pessoa de cuidada
formação moral e religiosa.
Mas não tinha bom feitio. Quem sabe se pela sua originária maneira
de ser, ou pelos desgostos amorosos que o marido lhe terá causado,
chegou até nós a menção do seu mau génio, que foi ao ponto de
provocar um conflito sério com o prior da Igreja de Santa Cruz, S.
Teotónio.
Cumpriu exemplarmente a função maternal que dela se esperava: deu
à luz sete filhos, em apenas 12 anos.
Mas D. Mafalda foi bastante infeliz: não só porque veio encontrar
um marido que amava outra mulher e já tinha dela dois filhos, mas
também porque viu morrer o filho mais velho, D. Henrique, com oito
anos.
59
Não consta que D. Mafalda tenha exercido qualquer influência no
marido ou na Política do país - Ou por não ter jeito para tanto,
Ou Por ser estranha ao clã galaico-português que dominava a corte.
Com D. Afonso Henriques sempre envolvido na governação geral do
reino e em grandes batalhas - Santarém, Lisboa, Alcácer do Sal -,
a rainha dedicou-se, para além da ed'ucação dos filhos, a algumas
actividades religiosas e de caridade (mosteiro da Costa, em
Guimarães, e Albergaria do Marco de Canaveses) bem como à
construção de obras de utilidade Pública (barcas de passagem, em
Lamego, ponte de Barqueiros, em Mesão Frio, ponte sobre o Tâmega).
Durante oito anos, educou o filho mais velho, D. Henrique, como
herdeiro do trono. Mas a morte deste transferiu a sucessão para o
filho mais novo, D. Sancho, que só conviveu com a mãe durante um
ano, não tendo sido, por consequência, educado por ela.
À medida que ia tendo filhos, D. Mafalda foi sofrendo partos cada
vez mais difíceis. Acabou por morrer, 12 anos depois de casada,
das consequências do último parto (o da infanta D. Sancha).
Encontra-se sepultada, junto do marido, na Igreja de Santa Cruz,
em Coimbra.

Capítulo XVII
Os filhos de D. Afonso Henriques

Tanto quanto se sabe, o primeiro Rei de Portugal teve sete filhos


legítimos (do seu único casamento, com D. Mafalda) e quatro filhos
ilegítimos.
Os sete filhos legítimos foram os seguintes, com as datas dos
respectivos nascimentos: D. Henrique (1147), D. Urraca (1148), D.
Teresa (1151), D. Mafalda (1153), D. Sancho (1154), D. João
(1156), e D. Sancha (1157).
Destes, quatro não chegaram a adultos: D. Henrique morreu com oito
anos (1155), D. Mafalda morreu com 11 ou 12 anos (depois de 1164),
D. João morreu com sete anos (1163) e D. Sancha morreu com dez
anos (1167).
Nota: As datas que mencionamos no texto são extraídas do minucioso
estudo de José Ariel de Castro, intitulado Sancho e Teresa entre
seus irmãos, que representa a investigação mais recente sobre a
vida dos filhos de D. Afonso Henriques.
Note-se que D. Mafalda esteve prometida em casamento a Afonso II,
rei de Aragão, mas o casamento não se realizou devido à morte
dela.
Vingaram, pois, apenas três filhos: um rapaz, D. Sancho, e duas
raparigas, D. Urraca e D. Teresa.
D. Sancho nasceu no dia de S. Martinho - 11 de Novembro de 1154:
por isso lhe foi posto, inicialmente, o nome de Martinho. No Verão
do ano seguinte, porém, tendo morrido o seu irmão mais velho,
Henrique, herdeiro da coroa, D. Afonso Henriques,
60
prevendo que Martinho viria a ser rei, resolveu dar-lhe um nome
mais usual entre os monarcas leoneses: Sancho. Durante algum tempo
ainda lhe chamaram Martinho, dizendo que tinha o «cognome» de
Sancho. Mas foi com este segundo nome que ele passou à história.
D. Sancho acabou por ser o sucessor de D. Afonso Henriques, por
morte deste, com o nome de D. Sancho I, aos 38 anos (1185). Mas,
muito antes de se tornar no segundo rei de Portugal - e o primeiro
a usar, depois da conquista de Silves, o título de «Rei de
Portugal e dos Algarves» -, D. Sancho foi associado pelo pai à
regência efectiva do reino (1173), quando tinha apenas 19 anos.
Adiante falaremos disso.
Casou em 1174 com D. Dulce de Aragão. Embora sem a grandeza
política do pai, o filho foi um digno continuador da estratégia
política e militar do Fundador, sustentando a independência do
reino e procurando prolongar a fronteira do país mais para sul, em
luta constante contra os muçulmanos.
D. Urraca, a mais velha das filhas do monarca português, casou em
1160 com o rei Fernando II, de Leão, que tinha começado a reinarem
1157.
Deste casamento resultou um filho, que veio a ser rei de Leão e
Castela, com o nome de Afonso IX.
D. Urraca parece ter exercido uma influência benéfica e moderadora
sobre o marido, Fernando II, pois este comportou-se de forma muito
decente e leal para com o sogro, D. Afonso Henriques, quando ele
ficou prisioneiro, em Badajoz, das tropas leonesas (1169).
Este casamento durou apenas 11 anos. Em 1171, o Papa procedeu à
anulação do matrimónio de D. Urraca e Fernando II, com fundamento
na falta de dispensa de parentesco. Na verdade, os dois cônjuges
eram primos segundos, por as respectivas avós serem irmãs (D.
Urraca e D. Teresa).
As crónicas referem que, depois de viúva, a rainha D. Urraca foi
viver para Zamora, tendo recebido a tenência» dessa terra, que
pertencera a seus avóS.
Por fim, D. Teresa foi uma grande mulher, cujo nome ficou
na história a vários títulos. Não tendo sido prometida em
casamento quando criança, cresceu e foi educada na corte. Desde
cedo se tornou na filha predilecta de D. Afonso Henriques.
Rapariga muito bela, muito inteligente e cheia de qualidades, foi
durante longos anos uma grande colaboradora de seu pai, que a
associou a diversas tarefas importantes. Sobretudo depois do
desastre de Badajoz, com o rei ferido, D. Teresa, já de 18 anos,
assumiu um papel preponderante na vida da corte, e foi a grande
auxiliar e confidente de D. Afonso Henriques.
D. Teresa veio a casar tarde, com 33 anos (1184), justamente um
ano antes da morte de seu pai.
Como se vê deste breve resumo, dos sete filhos legítimos que teve
de D. Mafalda de Sabóia, D. Afonso Henriques só privou de perto e
prolongadamente com dois - D. Teresa e D. Sancho. Sobretudo a
partir do desastre de Badajoz (1169), estes
dois filhos foram os pilares em que o Rei inválido fez assentar a
governação do país - D. Teresa ocupou-se da corte e, porventura,
da administração civil do reino; D. Sancho ocupou-se da parte
militar. Fizeram, durante 15 anos, uma dupla de sucesso.
D. Afonso Henriques teve, além destes, quatro filhos fora do
casamento - filhos ilegítimos, como então se chamavam. Eram dois
rapazes e duas raparigas - D. Fernando Afonso e D. Afonso, filhos
de Flâmula Gomes, e D. Teresa Afonso e D. Urraca Afonso, filhas de
Elvira Gualtar.
As datas dos nascimentos são praticamente desconhecidas, salvo que
sabemos ter o filho mais velho nascido em 1140, como
61
já foi dito. Mas tudo leva a crer que as coisas se passaram assim:
D. Afonso Henriques, ainda solteiro, viveu em união de facto com
Flâmula Gomes, entre 113 8 e 114 5, e dela teve dois filhos
varões; depois, em 1146, casou pela Igreja com D. Mafalda de
Sabóia e dela teve sete filhos seguidos, até 1158; finalmente,
após ter ficado viúvo (com 48 anos), encontrou outra mulher de
quem gostou
- Elvira Gualtar - e de quem teve duas filhas. O primeiro Rei de
Portugal foi, pois, um homem apaixonado e que viveu com três
mulheres diferentes, mas não há provas de que tenha sido promíscuo
durante o casamento.
Dos quatro filhos ilegítimos de D. Afonso Henriques apenas se
conhece razoavelmente a vida do mais velho dos rapazes, D.
Fernando Afonso, e da mais velha das raparigas, D. Teresa Afonso.
D. Fernando Afonso, filho de Flâmula Gomes, viveu na corte, foi
guerreiro hábil e precioso auxiliar do pai nas batalhas travadas
com os mouros, e chegou a desempenhar o alto cargo de alferes-mor
(o equivalente ao actual Chefe do Estado-Maior do Exército) -
Depois, protagonizou uma importante luta política interna no reino
de Portugal (de que falaremos mais adiante) e, já após a morte do
pai, veio a ser designado para uma elevada função internacional -
a de grão-mestre da Ordem do Hospital, de São João de Jerusalém
(mais tarde denominada «Ordem de Malta»).
Regressou a Portugal durante o reinado do seu meio-irmão D. Sancho
I, e morreu em circunstâncias misteriosas.
Por seu turno, D. Teresa Afonso, filha de Elvira Gualtar, após um
primeiro matrimónio, casou em segundas núpcias com D. Fernando
Martins Bravo, senhor de Bragança e de Chaves, um dos mais
poderosos magnatas do seu tempo. Não consta que D. Teresa Afonso
tenha vivido junto de seu pai ou que o tenha auxiliado no que quer
que fosse.
Urraca Afonso, a mais nova das raparigas, casou com D. Pedro
Afonso Viegas, neto de Egas Moniz.
Do quadro genealógico que fica desenhado a traços largos resulta,
a meu ver, uma conclusão interessante, no plano da política
externa seguida por D. Afonso Henriques.
Sabe-se como na Idade Média (e até mais tarde) os casamentos
régios eram actos de política internacional - alianças entre casas
reinantes, que visavam criar ou reforçar laços político-militares
entre os respectivos países, muitas vezes como contrapeso oponível
a vizinhos incómodos ou demasiado poderosos.
Se a estratégia geral de D. Afonso Henriques tivesse sido a de
aceitar a meia-vitória de Zamora (1143), manter Portugal integrado
na monarquia leonesa, e estabelecer uma aliança militar com Afonso
VII para combater conjuntamente os mouros no sul da Península
Ibérica, a política de casamentos régios teria sido bem diferente
- preferindo-se, naturalmente, a escolha de princesas leonesas,
galegas e castelhanas.
Mas a estratégia geral do nosso primeiro Rei foi outra: rejeitar
Zamora, assumir a independência total perante Leão, obter para si
a protecção de Roma, e enfrentar sozinho o inimigo muçulmano no
sul «português», sem qualquer aliança militar com
os reis de Leão e Castela.
Deste modo, e no contexto desta outra estratégia, a política de
casamentos régios definida por D. Afonso Henriques tinha de ser
bem diferente - não podia privilegiar entendimentos com Leão,
Galiza ou Castela, antes tinha de dar preferência a alianças
matrimoniais que saltassem para fora da zona de jurisdição do
Imperador Afonso VII.
Assim se explica que o próprio Rei português tenha casado com uma
princesa de Sabóia- e que quase todos os seus filhos legítimos
tenham casado, ou sido prometidos em casamento, out Of area: D.
Sancho com uma princesa de Aragão, D. Teresa com o conde da
Flandres, D. Mafalda com o Rei de Aragão.
62
A única excepção à regra foi o casamento de D. Urraca com o Rei
Fernando II de Leão. Para explicar o facto, há que ter presentes
duas circunstâncias: por um lado, que à data do casamento (1160)
já tinham nascido três filhos varões a D. Afonso Henriques e D.
Mafalda, pelo que o risco de o trono vir a ser entregue à filha
mais velha era relativamente pequeno; e, por outro lado, que na
altura do casamento já tinha morrido o Imperador Afonso VII, já se
tinha desfeito o «Império de toda a Espanha», e o território
imperial fora dividido em dois reinos - o de Leão e Galiza, a
cargo de Fernando II, e o de Castela, entregue a Sancho III,
motivos pelos quais já não havia tanto perigo em casar uma filha
com um monarca leonês. Pode ser até que, ao estabelecer uma
aliança matrimonial com o novo Rei de Leão, diminuído na sua
autoridade e reduzido no seu território, D. Afonso Henriques
visasse manter com o filho do Imperador o acordo de paz e amizade
firmado com o pai dele em Zamora.
Seja como for, o certo é que o casamento de D. Urraca com Fernando
II de Leão viria a revelar-se providencialmente benéfico para o
Rei de Portugal, pois o livrou das consequencias potencialmente
nefastas do desastre de Badajoz. A ruptura desse matrimónio, em
1170, eliminou a excepção estratégica que o casamento de D. Urraca
constituíra.
O Portugal de D. Afonso Henriques, a partir daí, apenas comportou
casamentos fora do território leonês.

Capítulo XVIII
A conquista de Santarém

Na segunda metade do ano de 1146, D. Afonso Henriques repousa em


Coimbra: é Rei de Portugal, tem 38 anos, casou há poucos meses. A
rainha conhece a sua primeira gravidez.
O nosso monarca está contente: fez as pazes com o Imperador de
Leão, não tem problemas na fronteira norte; e todas as notícias
que lhe chegam da fronteira sul dão conta de uma grande confusão e
desordem no mundo árabe: um novo fundamentalismo religioso,
assumido pelos almóadas, substitui vitoriosamente os antigos e
corruptos almorávidas.
É altura de lançar a grande ofensiva da Reconquista Cristã para
sul de Leiria: os grandes objectivos são três - Santarém, Lisboa e
Sintra.
Lisboa é o mais importante: trata-se de uma grande cidade, de
enorme população, e do principal porto de mar da Península
Ibérica. Mas Lisboa não é alcançável enquanto não for derrubada a
sua grande barreira defensiva - Santarém. É aí que estão
concentradas as tropas muçulmanas mais aguerridas, sob o comando
de Ismar: de lá partem constantes incursões contra Leiria, pondo
em sério risco a própria cidade de Coimbra.
Santarém é, pois, um fruto muito apetecido. Desde logo, trata-se
de uma zona fértil e rica, segundo as crónicas:
Santarém era «a melhor vila do reino, pela nobreza e abastança do
seu assento. Pois, da parte do oriente, a vista dos homens não
63
se pode fartar de ver a formosura dos campos mui chãos, abastados
de muito pão, e correndo por eles o grande e mui nomeado rio Tejo.
Isso mesmo a ocidente e a sul, desfalece a vísta em um ver
espaçoso. E ao norte, contra os montes, há grande abundância de
vinhas e olivais. ...El-Rei chama-lhe paraíso deleitoso».
Mas não é esta a razão principal que motiva D. Afonso Henriques: o
seu pensamento é estratégico, os seus objectivos são políticos. O
que mais lhe interessa é manter o poder já conquistado, e alargar
esse poder a novos territórios, progredir para sul.
Ora, acontece que Santarém é o maior obstáculo à realização desses
objectivos. Porque, do lado árabe, a velha Scalabis desempenha uma
dupla função da maior importância: situada a meio caminho entre
Leiria e Lisboa, por um lado, é de lá que partem os ataques mouros
contra Leiria, e, por outro, é lá que podem ser travados todos os
ataques cristãos a Lisboa. Como escreveu um autor, «enquanto
Santarém estivesse na posse dos muçulmanos, nem os cristãos podiam
aventurar-se a transpô-la para fazerem conquistas mais ao sul, nem
deixariam de partir dali forças que assaltavam terras já em posse
dos portugueses», mais ao norte.
Santarém era, pois, um pólo militar que lançava ataques para o
norte, e impedia ataques para o sul. Era simultaneamente uma mola
e um tampão.
Por isso mesmo, Santarém incomodava duplamente D. Afonso
Henriques: não lhe garantia a segurança de Leiria (e portanto de
Coimbra), nem lhe permitia a conquista de Lisboa. O controlo mouro
de Santarém era um alvo prioritário a abater. Mas como atacar
Santarém? Duas tácticas militares eram de excluir à partida: a
táctica do cerco ao castelo e a táctica da batalha em campo
aberto. A primeira, por Santarém ser muito rica e poder resistir
indefinidamente; a segunda, por os exércitos muçulmanos
concentrados em Santarém serem superiores ao exército português.
D. Afonso Henriques reflectia nisto há anos:
El-rei «havía muito tempo que tinha grande vontade e desejos de
tomar a víla de Santarém - mas, «como quer que ele muitas vezes
cuidasse em seu pensamento se a poderia tomar pela força, ou por
algum despercebimento [astúcía], aqueles a quem esta coisa
comunicava apresentavam -lhe sempre grandes dúvídas de muito
perigo e receios».
O Rei de Portugal concebeu então uma terceira táctica: tomar
Santarém de surpresa, pela calada da noite, à frente de um pequeno
grupo de militares, e com base num estratagema destinado a enganar
o inimigo.
A operação, levada a cabo por cerca de 120 homens,' na noite de 14
para 15 de Março de 1147, foi um acto corajoso e bem executado,
mas que em si mesmo nada teve de especial: fizeram-se umas
escadas, encostaram-nas às muralhas do castelo, os soldados
subiram ao muro, eliminaram três sentinelas, partiram por dentro
os ferrolhos das portas, abriram-nas, entraram os soldados
portugueses com o Rei à frente deles, e o exército cristão
realizou uma larga carnificina» cumprindo assim as prévias
instruções de D. Afonso Henriques:
Vós a nenhuma pessoa não perdoeis, nem deis a vida a homem nem
mulher, nem moços nem velhos, de qualquer idade e qualidade que
sejam.
O que se afigura mais interessante e digno de nota é que D. Afonso
Henriques envolveu esta operação num manto de grande
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segredo, para assegurar o êxito do ataque de surpresa, e empregou
técnicas requintadas de espionagem e ludíbrio do inimigo.
Com efeito, o Rei português começou por mandar a Santarém um
espião, Mem Ramires, homem astuto, cauteloso e atraente, incumbido
de examinar qual seria o sítio do castelo mais acessível de noite
e qual o atalho mais seguro para chegar ao pé dele. Depois,
manteve o seu plano secreto, só o dando a conhecer a três oficiais
superiores - D. Lourenço Viegas, D. Gonçalo de Sousa e D. Pero
Pais, alferes-mor -, «mandando-lhes que o tivessem em mui grande
segredo sob pena de morte». Enfim, as tropas portuguesas saíram de
Coimbra sem conhecerem o seu destino: Então partiu El-Rei uma
segunda-feira, não sabendo ninguém para onde ia, salvo aqueles a
quem o comunicara; e levaram o camínho tão revesado e encoberto
que os mouros não tiveram novas deles.Boa táctica militar, como se
vê, que qualquer general dos nossos dias adoptaria certamente.
O que já não tem a ver com o comportamento de um militar, mas sim
com a atitude de um político, foi o hábil estratagema concebido
por D. Afonso Henriques para enganar os mouros do castelo de
Santarém.
Dá-se o caso de que, por aquele tempo, haviam sido estabelecidas
tréguas entre as tropas portuguesas e a guarnição de Santarém.
Mandavam os usos da época que se não pudesse atacar, havendo
tréguas, sem primeiro avisar o inimigo. Então D. Afonso Henriques,
na terça-feira - segundo dia da marcha de Coimbra para Santarém -
enviou um tal Martim Mohab (provavelmente moçárabe) comunicar aos
ocupantes do castelo que as tréguas ficavam rotas por três días.
Os mouros aguardaram o ataque de quarta a sexta-feira; como ele
não veio, no sábado descansaram as armas. Pois bem: D. Afonso
Henriques, contra o que se poderia esperar, atacou na noite de
sábado para domingo; e tão desprevenidos encontrou os seus
inimigos que só havia duas sentinelas nos muros do castelo.
Alexandre Herculano considera que houve aqui, da parte do Rei de
Portugal, uma «perfídia». Outros dirão, por certo, que foi uma
manobra inteligente e hábil, típica da arte da guerra. Foi, de
qualquer modo, uma decisão política - fazer um acordo e rompê-lo.
Assim, a tomada de Santarém não constitui apenas uma corajosa e
bem executada operação militar: foi igualmente uma astuta manobra
política. O Rei de Portugal começava a assumir-se como um hábil
chefe político, tanto ou mais do que como guerreiro. -Por falar em
guerreiro corajoso, é interessante mencionar aqui que, na véspera
da partida de Coimbra para Santarém, D. Afonso Henriques foi ao
mosteiro de Santa Cruz falar com o respectivo prior, o futuro S.
Teotónio. E encomendou-lhe sua alma e seu estado, assím como se
houvesse de partír deste mundo.
Quer dizer: pela primeira vez, tanto quanto sabemos, D. Afonso
Henriques teve medo da morte: era um ser humano: tinha as suas
fraquezas. Mas, porque era corajoso, venceu o medo e resolveu dar
a cara.
Na véspera do combate, os seus cavaleiros também recearam pela
vida do Rei, conforme rezam as crónicas: Considerando eles entre
sí a grande ousadía de El-Rei, e o muito perígo a que se quería
pôr, apartaram-se com ele, e disseram:
- Senhor, vossa pessoa não irá connosco: é preciso que seja salva
vossa pessoa, e tirada de semelhante risco, cuja perda, que Deus
não permíta, seria perder-se Portugal.
El-Rei, respeitando o que assim lhe díziam com muito amor,
respondeu-lhes com outro tanto, estas palavras:
- Ó amigos, rogo a Deus que, se este ano eu tiver de viver sem vós
tomardes esta vila, antes eu desta vez nela morra.
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E el-rei participou actívamente no combate, sem medo, bradando aos
seus:
- Andai, matai-os a todos à espada. Que não escape nenhum!
A tomada de Santarém - que nunca mais voltou a ser ocupada pelos
mouros - foi um «acontecimento extraordinário», no dizer de
Alexandre Herculano; abriu o caminho, em linha recta, para a
conquista de Lisboa; pôs em segurança Leiria e Coimbra, e aumentou
a confiança e a audácia das hostes portuguesas.
Há quem diga que o objectivo último de D. Afonso Henriques era
chegar a Lisboa, e ficar por aí, conseguindo assim «reconstituir o
antigo condado que seu avô Afonso VI [de Leão] formara em 1093,
tendo por capital Santarém, condado que abrangia toda a linha do
Tejo até ao seu estuário».
É óbvio, porém, que Lisboa, sendo o objectivo imediato, não era o
último: o Rei de Portugal queria continuar à conquista do sul:
queria todo o Alentejo - e quem sabe se o Algarve. Dedicou a esse
objectivo, como veremos, os 20 anos seguintes da sua vida. Era um
homem de vistas largas. Tinha um projecto global.

Capítulo XIX
A tomada de Lisboa

Após a conquista de Santarém, D. Afonso Henriques regressou a


Coimbra, onde vivia há 16 anos.
Mas não foi para lá descansar. O seu espírito não tinha sossego.
Era preciso tomar Lisboa aos mouros. Isso já tinha sido tentado em
1142, mas sem êxito. Como vencer desta vez?
Era grande a tentação de repetir o esquema tão bem sucedido em
Santarém. Contudo, tal não era possível: impediam-no a grandeza da
cidade e a largura do rio, a densidade da população e os cerca de
15 mil homens armados que defendiam Lisboa.
Tão-pouco era prudente procurar atacar sozinho, e de uma
assentada, a princesa do Tejo»: o exército português, mesmo
reforçado, não chegaria para tanto. Na verdade, D. Afonso
Henriques, através de uma mobilização geral, não conseguiria
reunir mais de 12 a 15 mil homens - tantos quanto os muçulmanos,
estes com a vantagem enorme de possuírem o castelo.
Restava, pois, uma terceira táctica, que se apresentou como a mais
razoável: formar um exército com o dobro do tamanho da guarnição
militar de Lisboa, e pôr cerco à cidade e ao castelo, mesmo que
tal cerco tivesse de prolongar-se por vários meses.
Esta opção implicava, para o nosso Rei, duas necessidades: uma era
a de reforçar o exército regular, fazendo no norte de Portugal um
apelo geral às armas - o que D. Afonso Henriques fez, partindo
logo para o Porto, após breve pausa em Coimbra.
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A outra era mais difícil e complexa: arranjar 10 a 15 mil homens
armados, fora do território português, e convencê-los a vir
combater o infiel libertando Lisboa, a "pérola do Ocidente". Não
consta que D. Afonso Henriques tenha tentado pedir ajuda a seu
primo, Afonso VII, Imperador das Espanhas: fazê-lo seria o mesmo
que confessar a incapacidade de lutar sozinho contra o inimigo
muçulmano e, portanto, privar de base e fundamento o próprio
conceito estratégico da independência de Portugal.
Pensando no seu pai e no seu sogro, o Rei de Portugal poderia ter
concebido a ideia de pedir auxílio aos condes de Borgonha e de
Sabóia: mas estes provavelmente não teriam capacidade de mobilizar
e disponibilizar para fora dos seus territórios um tão elevado
número de homens armados como se precisava.
Não, a solução tinha de ser outra, e mais vasta: havia que
recrutar milhares de homens na grande Europa - França, Inglaterra,
Alemanha, Países Baixos.
Deu-se então a feliz coincidência de o mais prestigiado monge
clunicense da Europa - o abade Bernardo de Claraval - andar desde
1145, por ordem do Papa Eugénio III ou com o apoio dele, a pregar
por toda a Europa cristã a necessidade de uma 2.ª Cruzada à Terra
Santa, tarefa em que teve o maior êxito, mobilizando dezenas de
milhares de jovens combatentes, entre os quais o Rei de França
(Luís VII) e o Imperador da Alemanha (Conrado III). Uns partiram
por terra, seguindo pela Hungria e pelo Bósforo; outros preferiram
ir pelo mar, juntando-se no porto inglês de Dartmouth, de onde,
passando por Lisboa, continuariam pelo Mediterrâneo até aos
lugares santos.
Naquele local do sul de Inglaterra convergiram, pois, em Maio de
1147, cerca de 13 mil homens provenientes da Alemanha, da
Flandres, da Normandia e, maioritariamente, da própria Inglaterra.
Ora, D. Afonso Henriques mantinha contacto estreito com Bernardo
de Claraval. E, ou porque lhe tivesse feito chegar a necessidade
em que estava de mais de uma dezena de milhares de bons
combatentes, ou porque o abade clunicense dela tivesse tido
conhecimento, o certo é que «S. Bernardo pôde avisar [D. Afonso
Henriques], a tempo, da vinda dos Cruzados que passavam para a
Palestina».
Era um presente caído dos céus! D. Afonso Henriques escreve de
imediato uma carta ao bispo do Porto, D. Pedro de Pitões, pedindo-
lhe que, «se os navios das cruzadas aportassem ali, tratasse
aquela gente o melhor possível e que, se alcançasse ajustar com os
seus chefes servirem-no na guerra, concluísse um acordo sobre
isso, dando todas as seguranças necessárias e embarcando com eles
para a foz do Tejo».
O bispo assim o tentou, e conseguiu: fez-lhes um discurso em
latim, que logo foi sendo traduzido para as várias línguas, e eles
aceitaram a missão espinhosa de ajudar o Rei português a
conquistar Lisboa aos mouros. Sob reserva - é claro - de chegarem
a acordo com ele, acerca do «preço» dos seus serviços.
Estavam assim reunidas todas as condições para D. Afonso Henriques
montar e lançar a maior operação militar do seu reinado - a tomada
de Lisboa.
O Rei de Portugal marchou com o seu exército, do Porto para
Lisboa, em meados de Junho de 1147; os cruzados, em cerca de 200
navios, estiveram no Porto de 16 a 24 de Junho (dia de S. João), e
entraram no Tejo a 29 (dia de S. Pedro).
Começaram então as negociações entre o nosso Rei e os cruzados
europeus, as quais foram demoradas e difíceis, tendo estado várias
vezes a ponto de se romperem. Mas finalmente conclui-se um acordo,
bastante «caro» para o lado português e muitíssimo vantajoso para
os Cruzados: era D. Afonso Henriques quem mais precisava de fechar
o contrato, por isso foi ele quem mais cedeu. O Rei prometeu-lhes,
no fim de contas, três
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coisas muito valiosas - que os bens do inimigo lhes pertenceriam;
que o saque da cidade seria todo para eles; e que aqueles que
quisessem depois ficar a viver em Portugal poderiam guardar aqui
as liberdades, foros, usos e costumes dos seus países, bem como
gozar de imunidade de portagens e peagens para os seus navios e
mercadorias em todos os portos e estradas de Portugal. E teve de
fazer ainda outra promessa: jurar que não retiraria as suas tropas
senão por motivo muito grave, e que não inventaria nenhum pretexto
para faltar ao combinado. Esta promessa foi uma exigência de
alguns cruzados, pela desconfiança que lhes provocara manobra
idêntica aquando do primeiro cerco a Lisboa, em 1142.
Era, como se pode ver, um contrato leonino: imensamente vantajoso
para uma das partes, pesado e muito custoso para a outra. Mas D.
Afonso Henriques estava habituado a negociar e sabia ceder no
acessório para ganhar no essencial: já fora assim em Tui e em
Zamora, seria assim também em Lisboa.
O resultado deste acordo político-financeiro-militar - verdadeiro
«contrato de prestação de serviços bélicos», com contrapartida
remuneratória adequada - foi a constituição de uma poderosa
coligação militar internacional, de cariz europeu, cujo comando
estratégico ficava implicitamente a cargo do monarca português,
mas com comandos operacionais atribuídos aos chefes militares dos
vários segmentos nacionais: alferes-mor dos portugueses, Fernando
Cativo; comandante do corpo inglês, Herven de Glanville;
comandante do corpo alemão, Arnulfo de Areschot; comandante do
corpo flamengo, Cristiano de Gisteli; e chefes dos piratas
normandos, os irmãos Wilhelm e Radulph.
Ao todo, e para além dos 200 navios ancorados no Tejo, estava ali
um poderoso exército de 25 a 30 mil homens, dos quais um pouco
mais de metade (13 a 16 mil) eram portugueses, e um pouco menos
(12 a 14 mil) eram cruzados europeus.
O comandante-supremo era D. Afonso Henriques - dos 30 cavaleiros
do bafordo de Valdevez, o Rei de Portugal passava, em menos de dez
anos, a chefiar 30 mil homens. Era o momento mais alto da sua
carreira.
Mas os problemas principais que teve de enfrentar não foram
problemas militares.
Os problemas especificamente militares existiram, e foram
resolvidos - bem resolvidos - pelos chefes dos vários exércitos
envolvidos. Cada um ocupou uma zona diferente, e cada um lutou
arduamente durante um longo cerco que durou de Junho a Outubro -
quatro meses!
Não vou aqui descrever os inúmeros episódios desse cerco e o
ataque final ao castelo, que só por si dariam um livro. Vale a
pena, no entanto, chamar a atenção para as técnicas modernas, para
a época, que os Cruzados trouxeram consigo e aplicaram com êxito -
nomeadamente, as várias espécies de torres de ataque às altas
muralhas do castelo, a saber: a «torre de rodízios» dos alemães, a
«torre móvel» dos anglo-normandos e a «terceira torre», de 83 pés
de altura, concebida por um italiano e manejada por ingleses e
portugueses, construída sob a directa supervisão de D. Afonso

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