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EXAMINE A CONSCIÊNCIA:
Juiz de Fora
2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS
EXAMINE A CONSCIÊNCIA:
Aprovada em ___/___/_____
BANCA EXAMINADORA
_______________________________________
DR. MARCELO AYRES CAMURÇA LIMA – Orientador
Universidade Federal de Juiz de Fora
_______________________________________
DRA. ELIZABETH DE PAULA PISSOLATO
Universidade Federal de Juiz de Fora
_______________________________________
DRA. SANDRA LUCIA GOULART
Faculdade Casper Líbero
À Fernanda Vivacqua, com amor e pelo amor que nos conduz.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a toda minha família pelo apoio incondicional. Em especial, à minha mãe
Suely e ao meu pai Paulo, minhas avós Elisa e Ana, minha irmã Patrícia, minhas tias Emília e
Sibely, meu tio Altair, minha prima Elisa, minha madrinha Silvana, meu padrinho Hans e
meus avôs, in memorian, Diamantino e Jacinto. Amo todos vocês!
À Fernanda Vivacqua, pela ajuda técnica crucial e pelo companheirismo.
Aos meus amigos, irmãos, Lucas, Hugo, Zureta, Guilherme, Rennan, Pedro, Marcelo,
João, Primo, Matheus, Kaio e Igor.
A todos os amigos do PPGCSO, principalmente ao Matheus, Samuel, Will, Paula
Boarin, Paula Emília, Rafael, Janis, Dani, Nara e Bárbara.
À UFJF, pelo incentivo à pesquisa.
Ao meu orientador, Marcelo Camurça, pela generosa orientação e a tranquilidade em
conduzir o processo.
À professora Elizabeth Pissolato, pelos comentários, sempre preciosos, durante minha
vida acadêmica.
À professora Sandra Goulart, por ter aceitado o convite para a banca.
A todos os professores do PPGCSO.
À Anne, pela tradução cuidadosa.
Ao Padrinho Fábio Pedalino e à Madrinha Suzana Pedalino, pela abertura para o
trabalho e, também, a dedicação, de ambos, à doutrina.
A todos os amigos do Céu do Gamarra. Sem vocês, essa pesquisa não seria possível!
Em especial, ao João, à Ana, à Yohana, ao Toy, à Mari, à Camila Oliveira, à Amanda
Abrahão, ao Cláudio, ao Breno, à Dede e ao Wallysson.
Ao Jhow e ao Léo Júnior, irmãos de doutrina e grandes parceiros argonautas.
À Flor.
Ao Santo Daime, o professor dos professores.
Ao Mestre Irineu e ao Padrinho Sebastião, líderes espirituais.
A Deus.
Examine a consciência
Examine direitinho
Sou Pai e não sou filho
Mas eu não faço assim
Chamo de um a um
A todos eu mostro o caminho
Fazendo como eu mando
Tudo fica bem facinho.
ABSTRACT
The present work is dedicated to thinking, anthropologically, three themes related to Santo
Daime. To this end, the essay meets in three chapters. First, starting from a personal report, I
seek to deal with themes related to the ethnography. In this way, I try to address, especially
the in-between place of the Santo Daime practitioner/anthropologist; the controls resulting
from the ethnographic experience; and, the need to taking seriously the shifts in the points of
view provided by the contact with the drink, considered sacred. Then, in a second moment,
through an intervening of the native categories of the “plant professor”, "doctrine", "work"
and "hymn", I long to understand the Santo Daime as a religion which proposes to its
supporters, the access to knowledge in terms of shifts of perspective, or rather, of point of
view. That is, within a correlation between theory and practice, these categories – allied to a
state of altered consciousness, provided by the ingestion of daime – grant the opportunity for
the individual to experience a point of view, once unknown. Finally, through ethnographic
data, obtained in a church of the Santo Daime, the Heaven of Gamarra, and, on account of the
process of creating this new subject, I analyze the power of the Santo Daime of acquiring a
centrality in the life of the faithful, interrupting, thus, their circulation in other religions.
Keywords: Santo Daime; Etnography; Points of view; Knowledge; Hymn.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO .....................................................................................................................11
CONCLUSÃO .....................................................................................................................109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................114
ANEXOS........................................................................................................................... . 123
11
INTRODUÇÃO
Em outubro de 2012, mais precisamente, no dia doze, meu primeiro encontro com o
Santo Daime foi realizado. A primeira experiência foi, de fato, marcante e de caráter
decisório para a elaboração do presente trabalho. Pois, nesse ritual, durante a viagem extática,
proporcionada pela ingestão do daime 1, me propus a produzir algo relacionado ao Santo
Daime em minha jornada acadêmica. 2
Primeiramente, a ideia seria redigir um artigo sobre algum aspecto relevante da
doutrina do Santo Daime. Contudo, decidi prestar o processo seletivo para o mestrado no
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Assim, procurei o professor Marcelo Camurça, por sua excelência nos estudos sobre religião
e campo religioso, e pedi sua orientação. Conjuntamente, então, decidimos optar pelos
estudos sobre o Santo Daime em sua relação e dinâmica com o campo religioso brasileiro.
Em um segundo momento, a pesquisa versaria em tentar entender o Santo Daime como uma
doutrina genuinamente cristã que agregou e reelaborou diversos elementos de outras
doutrinas religiosas – como o xamanismo, o espiritismo kardecista, elementos das religiões
afro-brasileiras e traços do esoterismo europeu – compreendendo aquela religião enquanto
um universo autenticamente sincrético, nos termos propostos por Pierre Sanchis (1995;
1997). Logo, o objetivo era perceber, etnograficamente, de qual maneira o Santo Daime
lidava com as tensões e dinâmicas do campo religioso brasileiro.
Todavia, na pesquisa de campo e com a frequência nos rituais do Santo Daime meu
interesse começou a se transformar. Percebia, durante conversas com os membros da igreja, a
centralidade, em suas falas, da mudança ocorrida em suas vidas através do contato com o
daime. Diferentes formas de lidar com a realidade, com o mundo em sua volta, ou seja,
mudanças relativas a vida cotidiana e ao entendimento da realidade, isto é, mudanças de
ponto de vista devido – usando uma expressão daimista – ao encontro proporcionado pelo
contato com a doutrina do Santo Daime eram coisas que recorrentemente eu ouvia daquelas
pessoas. Outro atributo da construção do Santo Daime enquanto religião, ou melhor, algo
1
Para fins de diferenciação, nessa dissertação, daime será entendido enquanto a bebida, o chá. Já a expressão
Santo Daime significará a religião, a doutrina.
2
Tal proposta está ligada a algumas motivações principais. Primeiro, para mim, parecia necessário tornar
público algo sobre o Santo Daime, pois, o que havia lido, antes de ingressar nesse campo de estudos, era
carregado por uma série de preconceitos e pré-noções. Segundo, produzir algo sobre o Santo Daime se
configurava em um “pagamento de dívida” pelo teor de minha experiência pessoal no ritual. Terceiro, com o
desenrolar dos acontecimentos, visualizei uma oportunidade, dentro do campo antropológico, de discutir
questões metodológicas, caras a antropologia, por intermédio de minha pertença a dois domínios: um pessoal e
outro acadêmico.
12
muito importante no corpus daquela doutrina, e que me despertava interesse tanto pessoal
quanto acadêmico, eram os hinos – as músicas entoadas durante os trabalhos 3.
Como Labate (2004) observa, “os hinos são considerados mensagens, conteúdos,
ensinamentos recebidos do Astral, portanto, são um fenômeno mediúnico [...] os hinos
possuem centralidade absoluta, pois toda doutrina está contida nos principais hinários”
(LABATE, 2004, p. 216, grifo da autora). Dessa forma, comecei a deduzir, justamente por
sua centralidade e pelo seu caráter de verdade revelada para os daimistas, os hinos enquanto
uma espécie de base daquele conhecimento nativo. Dito de outra maneira, os hinos seriam
algo como um “receptáculo doutrinário do movimento religioso, já que não existem outros
veículos reconhecidos pelos daimistas como legítimos difusores da doutrina. Eles conduzem
os rituais e são o eixo norteador da experiência extática” (FERREIRA, 2008, p. 9).
Além dessas questões, das mudanças de ponto de vista, da temática e essencialidade
da música na doutrina do Santo Daime, constatei a necessidade, enquanto antropólogo e
daimista, de debater as nuances envolvidas em uma etnografia onde o antropólogo é também
nativo – ou o nativo também é antropólogo – e dos efeitos práticos para a pesquisa da
ingestão de uma substância psicoativa. Labate (2004) argumenta que, em geral, nos trabalhos
acadêmicos sobre o tema, os pesquisadores da área possuem um vínculo ideológico com o
consumo da bebida. Entretanto, a antropóloga salienta a inexistência de uma reflexão
ordenada a respeito de tais questões. Por isso, me pareceu extremamente relevante, ainda
mais se tratando de uma pesquisa antropológica, fazer tal reflexão e debater alguns caminhos
– não de solução definitiva – mas, de apontamentos acerca da condição de daimista e
antropólogo.
Labate (2002), ao realizar um ótimo levantamento e mapeamento em relação às
pesquisas acadêmicas e da literatura sobre as religiões ayahuasqueiras brasileiras 4, revela os
diversos usos da ayahuasca sendo abordados através da ótica das crenças e dos sistemas
simbólicos. Por conseguinte, temas como sincretismo, xamanismo e a cura são
constantemente trabalhados. Dessa maneira, tendo essas afirmações como base e também,
3
A expressão trabalho é utilizada pelos daimistas para designar os seus rituais. Ao longo da dissertação a
centralidade desse conceito será exposta.
4
São três as religiões ayahuasqueiras brasileiras, advindas da região norte do país. O Santo Daime, objeto dessa
dissertação, a União do Vegetal e a Barquinha. A União do Vegetal, ou UDV, tem como base o cristianismo,
embora teça ligações também com elementos de culturas indígenas e africanas, aproximando-se de formações
espíritas, justamente por ter a reencarnação com um de seus pilares (GENTIL, L; GENTIL, H, 2002). Seu
fundador foi um seringueiro e ficou conhecido como Mestre Gabriel (BRISSAC, 2002). Já a Barquinha, religião
que segue os preceitos e ensinamentos deixados por Daniel Pereira de Matos, ou Mestre Daniel, possui uma
estrondosa influência de elementos do catolicismo popular, das religiões afro, do xamanismo indígena e da
filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (ARAÚJO, 2002).
13
5
O mito de fundação do Santo Daime, basicamente, é contado da seguinte maneira: Após a ingestão da
ayahuasca, Irineu teve um contato com a Rainha da Floresta, identificada por ele como sendo a Virgem da
Conceição. A partir desse momento, ela teria começado a “guiar” Irineu, para – este último – construir a
doutrina do Santo Daime (GOULART, 1996; MACRAE, 1992).
6
A bebida leva o nome de Daime ou Santo Daime. Os seus usos ritualizados saíram do contexto das sociedades
indígenas amazônicas para se difundirem desde os seringueiros da floresta até cultos urbanos espalhados pelo
Brasil e pelo mundo (ALMEIDA, 2002). O nome mais conhecido é ayahuasca, cujo significado é, em quíchua,
vinho das almas (LABATE, 2002; LUNA, 1986).
15
antiga tradição de uso do chá, não só no que tange aos povos indígenas do Alto Amazonas,
mas, também no tocante ao universo de crenças do curandeirismo amazônico. Melhor
dizendo, o Santo Daime, embora, de acordo com Goulart (1996) tenha suas origens no
curandeirismo amazônico, “se afasta desta tradição, baseando-se numa nova moral e, em
última instância, inaugurando outras formas de consumo da ayahuasca na sociedade do
homem branco” (GOULART, 1996, p. 13).
Por traços de sua formação – muito marcada pelo intermédio de uma constante
agregação e reelaboração de uma série de elementos culturais – Labate e Pacheco (2005),
afirmam a existência de um consenso acadêmico, onde três grandes matrizes estariam
presentes no culto do Santo Daime: a indígena ou amazônica oriunda do consumo e preparo
da bebida, juntamente, com alguns aspectos relativos ao ritual; a europeia cuja influência é
coadunada ao catolicismo e esoterismo; e, por fim, a matriz afro-brasileira sinalizada pela
existência de entidades, do panteão africano ou afro-brasileiro, no meio daimista.
Dessa maneira, o Santo Daime é um movimento religioso extremamente marcado por
uma espécie de porosidade, entre suas fronteiras, e por uma característica marcante: o uso de
uma bebida, considerada sagrada, para o alcance, segundo os membros da doutrina, do
autoconhecimento, do desenvolvimento espiritual e de estados de contato com realidades
extra materiais.
Sem dúvidas, a relação entre reflexão teórica e prática religiosa deve ser
compreendida em um espectro mais amplo, longe de um aparente antagonismo (LABATE,
2004). Especificamente, a relação entre a antropologia e a religião, ou espiritualidade, pode
ser refletida pelas ideias de Carvalho (1998). Para o autor, tanto a antropologia quanto o
esoterismo são, concomitantemente, descendentes do projeto da modernidade e ambos
também são críticos dos seus sistemas de valores. Ademais, é de ser observar o surgimento
das disciplinas acadêmicas sobre o estudo das religiões, na metade do século XIX,
coincidindo com o crescimento religioso esotérico. Concordando com José Jorge de
Carvalho, a antropologia, que se recusa a fragmentar o real, seria como uma espécie de
ciência sagrada, visto que, inspirada numa simbologia de busca, ela também seria um
caminho esotérico. Dessa forma, “antropologia e esoterismo possuiriam, ainda, diversos
pontos comuns, tais como as noções de oralidade, tradição, iniciação e adepto (LABATE,
2004, p. 36).7
7
A ilustração de paralelos entre ciência e religião não implica em dizer que são coisas equivalentes. Cada uma,
a sua maneira, possui seus próprios códigos de ética e sistemas próprios de regras (LABATE, 2004).
16
De acordo com Soares (1990), “o daime ocupa um lugar sui generis, é porque
encanta, recruta, fascina, mas também inquieta, choca, mobiliza polêmicas e enseja críticas
radicais” (SOARES, 1990, p. 267). Com o campo antropológico o Santo Daime não lidou de
outra maneira, sendo um universo que inquietou, e ainda inquieta, e mobiliza pesquisas
acadêmicas sobre o tema. Rehen (2007; 2011) contabilizou, à época de sua dissertação de
mestrado, no ano de 2007, o número de vinte e sete dissertações e teses sobre o Santo Daime.
Contudo, hoje, esse número se expandiu, tendo em vista a crescente utilização da ayahuasca
pelo globo, atraindo, desse modo, cada vez mais pessoas interessadas ao estudo dos mesmos
(LABATE; ROSE; SANTOS, 2008). Entendendo a constituição e a proliferação de um
campo de estudos sendo balizado por uma bibliografia, construída sobre um determinado
objeto, o campo de estudos antropológicos sobre o Santo Daime possuí autores e trabalhos
extremamente importantes, que se constituem em referências obrigatórias para qualquer
pesquisador com o propósito de mergulhar na temática. Então, uma breve revisão, desses
trabalhos, se faz necessária para situar o leitor sobre os traços abordados pelos textos –
digamos “clássicos”8 – produzidos por antropólogos acerca da doutrina do Santo Daime.
Clodomir Monteiro da Silva (1983), em estudo pioneiro, posta o Santo Daime como
sendo uma religião inserida no contexto de práticas xamânicas. Destarte, a doutrina seria
grifada por um transe xamânico coletivo e individual. Para esse autor, o daime, tal como o
xamanismo, estaria conectado a uma atividade de cura e seus líderes seriam xamãs.
Couto (1989), em sua dissertação de mestrado, define, inspirado em Victor Turner e
Mary Douglas, os trabalhos do Santo Daime como “ritos da ordem”. Para o autor, os rituais
dessa religião tenderiam a fortalecer a estrutura e a ordem, ao contrário dos ritos de inversão,
como o carnaval. Ademais, Couto argumenta que no Santo Daime, cada participante seria um
xamã, em potencial, ou melhor, os adeptos seriam capazes de realizar o voo xamânico e a
doutrina seria uma espécie de xamanismo coletivo.
Fróes (1986), em seu trabalho, descreve os rituais do Santo Daime e faz um estudo
sobre o surgimento da comunidade liderada por Sebastião Mota de Melo 9, o Padrinho
Sebastião, assim como seus princípios religiosos e comunitários. Apontando a relação entre o
daime e a cura de doenças, com um trecho sobre as características botânicas da bebida, a
8
Na impossibilidade de retomar aqui, mesmo brevemente, o grosso das publicações sobre o assunto, opto por
selecionar alguns textos mais importantes. Isto é, ou são pioneiros no campo de estudo ou possuem um grande
números de citações por parte de outros trabalhos. Para uma abordagem mais complexa acerca da bibliografia
produzida sobre a questão ver o artigo de Labate (2002).
9
Padrinho Sebastião foi um líder do Santo Daime e ficou conhecido por ser o fundador do Cefluris (Centro
Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra). O Cefluris foi a instituição responsável pela
expansão do Santo Daime para outros estados brasileiros e, posteriormente, para países da cena internacional.
17
autora discute se o movimento religioso nascido em plena floresta amazônica se trata de uma
exemplificação do messianismo.
Soares (1990), embora não se dedique exclusivamente ao tema do Santo Daime, em
um artigo sobre a doutrina, apresenta alguns resultados de uma pesquisa maior, tocante a
temática da “nova consciência religiosa”. Embora sintético, apenas dez páginas, o artigo é
fonte de inspiração para diversos pesquisadores da área na tentativa de explorar questões ali
levantadas como hipóteses. Diversos pontos, ressaltados por Soares, são sedutores, como: o
fenômeno de uma religiosidade alternativa encontrando eco nas grandes cidades e,
principalmente, através das camadas médias urbanas; o fato de a revolução sexual e social
ganhar novas leituras, a partir da ótica do Santo Daime; a expansão da doutrina pelo Brasil,
reforçando uma maneira singular de “reinvenção” da identidade brasileira. Enfim, embora
seja o menor dos textos, talvez seja o com a capacidade mais alargada de suscitar
questionamentos para quem o lê.
Macrae (1992), em seus escritos, similarmente a Couto (1989), interpreta o Santo
Daime através da ótica do xamanismo. Em seu livro, Macrae especifica os trabalhos feitos no
Santo Daime, buscando uma compreensão de sua ritualística, e analisa o uso da bebida desde
os vegetalistas até os tipos mais atuais do culto. Ganha destaque também a proximidade do
Santo Daime com o Kardecismo, através da assimilação de ideias como evolução espiritual,
carma, reencarnação e doutrinação de espíritos, presentes em ambas as cosmologias.
A dissertação de Goulart (1996) é uma grande referência no tema da formação do
culto do Santo Daime. Esta doutrina religiosa, de acordo com a autora, se vincula a duas
grandes tradições culturais: o antigo catolicismo popular e o vegetalismo amazônico. Goulart
também vai relacionar o surgimento do Santo Daime a todo um conjunto de mudanças
ocorridas no meio rural do Brasil, quer dizer, para a autora, o Santo Daime nasce em um
momento onde se consolida, no país, uma nova conjuntura sócio cultural.
Groisman (1999) demonstra o cenário social da Vila do Céu do Mapiá, igreja central
do Cefluris. Para o autor, o Santo Daime se orienta através da noção de ecletismo – noção
retirada do próprio estatuto do Cefluris. O ecletismo evolutivo, concordando com Groisman,
é o fator que possibilita a convivência entres os diversos sistemas cosmológicos compositores
do Santo Daime. Sendo uns dos primeiros a tratar sobre a peia – dificuldades encontradas
pelos indivíduos advindas da ingestão do chá – o autor ainda trata sobre temas como cura e
doença em seus escritos.
Labate (2002; 2004; 2005; 2008; 2009) é responsável pela organização de vários
livros tratando do uso ritual de plantas de poder e, em geral, da ayahuasca. Seu estudo mais
18
CAPÍTULO 1
10
Não tenho por objetivo esgotar, em um capítulo, todas as discussões tangentes aos temas aqui trabalhados. Os
pontos expostos são frutos de considerações acerca de minha própria experiência etnográfica.
20
iniciou a pesquisa. Em outras palavras, como observa Magnani (2012), considerando que a
natureza da explicação pela via etnográfica tem como pilar um insight, este último é capaz de
reordenar informações entendidas como fragmentárias, dispersas e soltas, em uma nova
formulação – que não é mais o arranjo nativo, embora parta dele, o leve em consideração e
tenha sido inspirada por ele – nem tampouco “aquele com o qual o pesquisador iniciou a
pesquisa” (MAGNANI, 2002, pg. 17).
Logo, quem fala? Eduardo Viveiros de Castro (2002), criticando a diferença de
Malinowski entre o que o nativo pensa – ou faz – e o que ele pensa que pensa – ou que faz –
afirma a voz do antropólogo como não sendo a do nativo, pois o que o nativo pensa não é
aquilo que o antropólogo pensa que o seu interlocutor pensa. Então, certamente, quem fala é
o antropólogo. Concomitantemente, quem detém o sentido do discurso é o antropólogo, “ele
quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa
esse sentido” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, pg. 115). Assim, nos termos de Roy Wagner
(2010), o antropólogo cria cultura.
Além disso, considerando os paradigmas científicos em constante transformação, tem
se verificado, especialmente no campo antropológico – através de seus próprios métodos,
objetivos e modos de escrita – um “questionamento da ‘objetividade’ da ciência cartesiana”
(LANGDON, 2005, pg. 23), juntamente com a atribuição de um novo valor a experiência
“vivida” (LANGDON, 2005).
Consequentemente, isto posto, a ciência antropológica está indo além daquele modelo
proposto pelas ciências naturais do século XIX, vistas as suas investidas de integrar as
singularidades do contexto e da subjetividade para a compreensão dos efeitos das substâncias
que dependem tanto do contexto quanto da experiência subjetiva (LANGDON, 2005). Ou
seja, “hoje a experiência subjetiva do pesquisador faz parte de sua análise” (LANGDON,
2005, pg. 23).
Tal posicionamento, acima explicitado, parece ser dúbio entre os antropólogos
ayahuasqueiros, termo proposto por Labate (2004). Com diversas gradações, no sentido de se
posicionarem ou não ao longo do texto, ou de elaborarem – ou não – uma sólida reflexão
metodológica acerca da pertença e participação nos rituais com a ayahuasca, alguns
intelectuais da área, como Macrae (1992), Goulart (1996), Groisman (1999), Labate (2004),
Oliveira (2008), Dias (2002) e Rehen (2007b), podem ser exemplos de uma relação pessoal
dos mesmos com o objeto de seus estudos, mesmo tal relação não sendo abordada
explicitamente em alguns textos.
21
11
O encerramento do ritual se procede com o dirigente da igreja dizendo as seguintes palavras: "Em nome de
Deus, Pai da Virgem Soberana Mae, de Nosso Senhor Jesus Cristo, do Patriarca São José e de todos os Seres
Divinos Da Corte Celestial, com a ordem do Nosso Chefe Império Juramidam, estão encerrados os nossos
trabalhos. Meus irmãos e minhas irmãs, louvado seja Deus nas alturas, para que sempre seja louvada Nossa Mãe
Maria Santíssima sobre toda a humanidade".
22
É importante que este tipo de posicionamento apareça no texto e não fique invisível:
como vimos, geralmente nada se fala sobre o impacto pessoal e intelectual da
experiência com a ayahuasca na vida dos sujeitos, nem sobre como o seu consumo
pode modificar a natureza da etnografia (LABATE, B. 2004, p. 53).
Em outras palavras, grande parte dos pesquisadores desse campo optam por um
“distanciamento”, “não vendo necessidade de transmitir experiências pessoais e
transcendentais, talvez por um tipo de ‘defesa’ a uma possível crítica em relação ao
‘envolvimento’” (REHEN, 2007b, pg. 21).
Portanto, o objetivo de explorar tanto minha própria relação com o Santo Daime,
quanto o florescimento e as etapas da pesquisa, tendo em perspectiva as análises e
considerações metodológicas feitas pelos antropólogos ayahuasqueiros, está ajustado com o
pensamento de Camurça (2009), principalmente, ao que tange a uma tentativa de
evidenciação e explicitação seja do local de fala do pesquisador ou das condições objetivas e
materiais que cercam o fazer etnográfico. Ou seja, gostaria de inverter a observação, acima
exposta, feita por Rehen (2007b), isto é, estou escolhendo por, ao invés de omitir minha
experiência pessoal para “fugir” da crítica tangente ao “envolvimento”, exacerbá-la com o
intuito de grifar a experiência pessoal e subjetiva como um possível instrumento do
conhecimento.
E, também, não menos importante, tal propósito de dialogar com minhas próprias
experiências, concilia-se com a ideia de que o pesquisador, durante o exercício etnográfico,
percorre as diversas sensações encontradas pela sua visão, audição, olfato, tato e paladar
(LAPLANTINE, 2004). Logo, “a observação participante implica saber ouvir, escutar, ver,
fazer uso de todos os sentidos” (VALADARES, 2007, p. 154). Considerando, então, “o
mundo vivido”, em consonância com Merleau-Ponty (1994), como proporcionando um saber
sensível, corporal, apreendido pelos sentidos, de onde decorrem os demais conhecimentos, a
própria importância do corpo do pesquisador em sua prática deve ser considerada na análise.
Dessa maneira, devemos pensar a experiência etnográfica também enquanto uma forma de
experiência corporal, considerando a ideia de percepção enquanto experiência corporal, ou
seja, o corpo – sendo sujeito da percepção – absorve a realidade através de seus sentidos,
23
antes até das formas simbólicas, estas relacionadas aos processos de reflexão e ao raciocínio
(CSORDAS, 2008).
Meu primeiro contato, ainda que não diretamente, com a doutrina do Santo Daime se
configurou durante o ensino médio. Durante os anos compreendidos entre 2006 e 2008,
cursei o ensino médio em uma escola particular – o Colégio Franciscano Santo Inácio –
localizada no município mineiro de Baependi. Tal cidade, posicionada ao sul de Minas
Gerais, de acordo com o censo realizado pelo IBGE em 2010, possuí uma população de
18.292 habitantes. Seu nome advém de uma referência ao rio que atravessa o município,
sendo oriundo do termo tupi mba'eapiny, cujo significado é "rio do monstro marinho"
(mba'eapina, monstro marinho indígena + 'y, rio) (NAVARRO, 2013).
Tipicamente uma cidade do interior de Minas Gerais, a economia de Baependi se
baseia, essencialmente, em atividades de agricultura, comércio, artesanato, comercialização
de pedras quartzito e no turismo. Este último, principalmente, por duas razões: a primeira,
pelas belas cachoeiras presentes na zona rural; segundo, por, recentemente, uma mulher que
residiu na cidade, Nhá Chica 12, ter sido beatificada pela Igreja Católica, atraindo assim uma
espécie de turismo religioso para a localidade.
Contudo, voltando ao principal, foi na escola, acima referida, que durante minha
permanência tive conhecimento de que cinco professores eram adeptos do Santo Daime 13. No
começo, eu não sabia ao certo sobre quais aspectos versava a doutrina do Santo Daime e
também pensava não ter a abertura pessoal necessária para indagar tais professores com
questões acerca de suas preferências religiosas. Mas, tinha conhecimento de suas filiações
religiosas e do funcionamento de uma igreja daimista na zona rural da cidade.
Desconhecendo também as perspectivas acadêmicas sobre o assunto, até porque
estava cursando o ensino médio e também, no momento, não tinha pretensões em adentrar no
mundo das ciências sociais e, consequentemente, da antropologia, fui procurar saber sobre a
12
Para maiores detalhes acerca de Nhá Chica, a tese de Simone Oliveira (2008) se constitui como uma
interessante referência.
13
A postura adotada pelos professores era de somente falar sobre o Santo Daime quando solicitados. O clima,
pelos alunos, era mais de curiosidade. Por isso, por vezes, os professores eram questionados sobre o que era o
Santo Daime. A resposta concedida, por eles, era a de que o Santo Daime seria uma religião cristã, baseada nos
ensinamentos da Sagrada Família – Jesus, Maria e José – que utilizava uma bebida sagrada cujo poder era o de
permitir o autoconhecimento.
24
religião em revistas não especializadas 14 sobre o assunto e através de conversas com meus
pares.
Não preciso antecipar o resultado, pois, eventualmente, meu leitor já o saiba.
Catastrófico, talvez, essa seja a palavra. As reportagens passavam aquela substância utilizada
ritualmente, em contexto religioso, como sendo um alucinógeno extremamente perigoso, com
efeitos tomados pela reportagem como ruins e nocivos para os humanos 15. O pensamento dos
meus pares, isto é, meus colegas de sala ou de colégio, com raras exceções, também era
povoado pela desinformação sobre o tema. Muitas das conversas giravam em torno daquela
bebida ser “coisa de doidão”.
Todavia, meus professores não aparentavam ser nem “doidões”, e, muito menos, suas
atividades religiosas os tiravam da consciência plena de suas tarefas. Quando indagados sobre
o Santo Daime, na maiorias das vezes, eram discretos e não aprofundavam muito no assunto.
Anos depois é que fui descobrir o porquê de tal posicionamento, ou seja, o motivo se
configurava em diversos ataques, sejam midiáticos, legais, ou pessoais, que a doutrina do
Santo Daime sofreu e sofre ao longo de sua existência.
O motivo de minha curiosidade, naquela altura, era um tanto quanto nacionalista, pois
girava em torno do Santo Daime ser uma religião nascida em ambientes amazônicos.
Contudo, na prática, como exposto, minhas investidas para melhor conhecer esse ambiente
cultural tiveram um insucesso. Sendo assim, em um momento, desisti de ir ao encontro de
tais informações.
No entanto, no ano de 2009, ingressei no curso de Ciências Sociais na Universidade
Federal de Juiz de Fora e, paralelamente, as experiências com psicoativos se tornaram mais
presentes em minha realidade, seja através de um maior contato com pessoas envolvidas
nesse meio de consumo de tais substâncias ou por meio de experiências pessoais. Então, meu
interesse pelo Santo Daime se alargou – antes visto sob uma ótica nacionalista, agora também
tinha incorporado a busca por plantas que expandissem a consciência.
Nessa época, descobri uma colega de curso fardada no Santo Daime. Após um tempo
de contato maior, ela se mostrou disposta a me apresentar tal religião. A igreja, por ela
14
Infelizmente, não me recordo, certamente, quais revistas li na época. Contudo, podemos observar algo mais
recente. De acordo com Assis e Almeida (2011), as revistas Isto É, Época e Veja em suas reportagens, sobre o
Santo Daime, além de mostrarem dados aleatórios, “fazem afirmações peremptórias desprovidas de
comprovação científica e estigmatizam as minorias religiosas que fazem uso da ayahuasca, demonizando esta
bebida sem nenhuma discussão com os membros desses grupos” (ALMEIDA; ASSIS, 2011, p. 8).
15
Para uma maior ciência do tratamento midiático para com o Santo Daime, ver o artigo de Glauber Assis e Ana
Paula Almeida (2011).
25
frequentada, foi edificada no bairro Floresta16, em Juiz de Fora. Porém, mesmo com a “porta
aberta” para solidificar a experiência com o daime, eu desisti. Os diálogos que tecia com ela
sobre a religião, incluindo seu funcionamento, aspectos do ritual e traços cosmológicos, não
me convenceram a concluir minha vontade, isto é, conhecer o Santo Daime.
Conquanto, em meados de 2012, comecei a frequentar, em Juiz de Fora, a casa de
uma pessoa também fardada no Santo Daime. Dessa vez, ela não era fardada em uma igreja
localizada nesse município. Mas, seu compromisso pessoal com o Santo Daime havia sido
firmado no sul de Minas, mais especificamente, na mesma igreja frequentada por meus
antigos professores do ensino médio, isto é, o Céu do Gamarra.
Flor17, pensando nos termos propostos por Soares (1989), fala o idioma alternativo.
Medicinas tradicionais, admiração à natureza, alimentos orgânicos, cuidados com o corpo,
esoterismo, primazia da intuição sobre a razão, energia, trabalho espiritual são práticas
recorrentes, seja em seus discursos ou na sua própria vida cotidiana.
Logo, manifestei, para com ela, meu intuito de conhecer a doutrina do Santo Daime.
Flor18 foi completamente aberta ao diálogo, me explicando o funcionamento do ritual, a
história da religião, os efeitos do chá, dentre outros aspectos que considerava relevantes
dentro da temática. Assim, depois de muita conversa, superei meus receios em participar de
um trabalho de daime. Ora, admito que não foi fácil para mim embarcar nessa experiência.
Embora quisesse conhecer aquele meio cultural e o uso ritual da ayahuasca, os seus efeitos no
organismo eram possibilidades que me freavam, o que se configurava enquanto um paradoxo.
Contudo, aos poucos, fui me abrindo para a ideia da experimentação.
Tal situação opera em sintonia com as ideias de Soares (1990), isto é, os indivíduos,
de carne e osso, guiados pelas inclinações, paixões e dúvidas, com frequência hesitam em
reconhecerem em si mesmos “a presença viva e conectora de uma agência comum e
transcendente” (SOARES, 1990, pg. 270). Entretanto, do modo observado por Soares (1990),
e como similarmente foi minha experiência, o modelo inserido pelo Santo Daime parece, e é,
16
Essa igreja foi estudada por Silveira (2007) sobre o viés da experiência do êxtase místico-religioso.
17
Opto, ao longo do texto, por uma alteração no nome de meus interlocutores, exceto no caso de, digamos,
figuras públicas do Santo Daime. Escolho, como substituição a seus nomes, a denominação de coisas da
natureza. Primeiro, em forma de homenagem, pelas suas admirações para com a natureza em si. Segundo,
pensando como Tim Ingold (2012), por essas coisas serem perpassadas por fluxos vitais, ou seja, terem vida,
assim como meus interlocutores.
18
Flor, durante o processo da pesquisa, foi uma espécie de “Doc”. Não necessariamente igual ao “Doc” de
Foote White (2005), embora tenha sido uma figura crucial na “abertura das portas”, tanto para a pesquisa quanto
para o interesse pessoal. Devido a minha proximidade, naquele momento, sua ajuda foi muito presente em
algumas reflexões, principalmente aquelas que advêm de algumas incertezas relativas às práticas daimistas.
Penso, usando as palavras de Valadares (2007), nessa pessoa como sendo um tipo de “intermediário que "abre
as portas"” (VALADARES, 2007, pg. 154).
26
19
Comunicação pessoal do professor Marcelo Camurça, obtida durante uma aula.
20
Uma série de igrejas do Santo Daime possuem a palavra Céu em seus nomes. Por exemplo, Céu do Gamarra
(Baependi, Minas Gerais), Céu do Matutu (Aiuruoca, Minas Gerais), Céu do Mapiá (Boca do Acre, Amazonas),
Céu do Mar (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro), Céu de Maria (Osasco, São Paulo), entre outras. Porém, há igrejas
que não possuem a expressão em seus nomes, por exemplo, Luz da Floresta (Juiz de Fora, Minas Gerais) e Flor
de Jagube (Belo Horizonte, Minas Gerais). A explicação para a palavra Céu estar em diversas nomeações de
centros do Santo Daime está vinculada a própria denominação do Céu do Mapiá, a primeira igreja a colocar tal
expressão no nome. Nas palavras de Mortimer (2000), “a ideia deste nome veio de Pedro Mota, um dos filhos
27
e tipicamente rural. De acordo com Junqueira (2014), as relações sociais entre as famílias do
Vale do Gamarra são estreitas, visto que os casamentos acontecem, muitas das vezes, entre
primos ou familiares dos arredores, consequentemente, impossibilitando o distanciamento
entre os laços de parentesco. Os mutirões e os movimentos de solidariedade estão presentes
nessa área, mesmo com a presença, na região, de movimentos de transformação
(JUNQUEIRA, 2014). Transformações nascidas com o fluxo de pessoas, em sua maioria
vinculadas a um padrão urbano consideravelmente alto, chegadas a região a partir da década
de 1980, e ainda hoje em processo, constituindo, assim, o Vale do Gamarra enquanto um
entorno de várias possibilidades. Isto é, os motivos que levaram diversas pessoas a essa
região são distintos: alguns “nativos”, uns procurando viver parte da semana na cidade outra
na zona rural, outros Hare Krishnas, indo se instalar em uma comunidade lá localizada, e, por
último, os indivíduos interessados na igreja do Santo Daime (JUNQUEIRA, 2014).
O acesso ao Céu do Gamarra se dá através de uma estrada não asfaltada, cerca de
quarenta quilômetros do centro de Baependi. No caminho, é necessário passar por um bairro
da zona rural: São Pedro. O bairro é basicamente composto por algumas casas, uma escola e
o comércio local. A vista, durante o percurso, é bastante agradável, sendo possível visualizar
cachoeiras e serras. O vale do Gamarra está situado na Serra da Mantiqueira, ao sul de Minas
Gerais, sendo a região responsável por abrigar uma parte remanescente da Mata Atlântica,
tendo altitude média de 1.300 mm acima do nível do mar, com picos de até 2.340 mm de
altitude.
Logo na chegada ao Céu do Gamarra, há uma porteira com uma estrela de Davi e o
cruzeiro do Santo Daime e, mais um pouco a frente, uma placa com o anúncio: “Bem-vindo
ao Céu do Gamarra”.
A primeira construção, bem próxima a entrada, é o albergue. Nele, se hospedam
alguns visitantes que frequentam a igreja, seja usualmente ou a primeira vez, sendo a
contribuição para uso do local o valor de vinte reais. O recinto conta com camas, banheiro,
chuveiro, fogão e outros utensílios básicos de cozinha. Entretanto, alguns adeptos possuem
residências próprias no local. Em geral, são casas simples, porém, bem acolhedoras, devido
ao ambiente propiciado pela localização estratégica da comunidade
O Céu do Gamarra também possuí uma pousada chamada Espaço Lua Branca. 21 O
espaço abarca sete chalés; com acomodações para quatro pessoas cada; piscina, ofurô, sala de
do Padrinho, que recentemente havia colocado o nome de Céu numa colocação na boca do igarapé Trena, onde
pretendia morar” (MORTIMER, 2000, p. 231).
21
O nome da pousada é uma referência ao primeiro hino recebido por Mestre Irineu.
28
refeição com fogão a lenha, salão para práticas corporais; também para festas, palestras e
eventos em geral; mezanino de madeira para meditação, pomar com variedade de frutas,
internet, telefone fixo no casarão central e cachoeiras acessíveis com uma pequena
caminhada. O valor, para um fim de semana em um chalé de casal, gira em torno de 380
reais.
Nas dependências comuns no Céu do Gamarra há também uma cozinha geral.
Edificada com pedras, é um espaço que contém uma mesa grande; um espelho com o escrito
“Santo Daime” e com um desenho de beija flor; uma cristaleira, contendo pratos, garfos,
facas e utensílios em geral; um sofá; um sino e, por fim, um fogão a lenha.
Para se chegar ao local mais importante, a igreja, é preciso subir uma pequena ladeira
por um caminho de pedras, com um jardim a sua volta. A fachada frontal da igreja é
composta por plantas na parede de pedra. Em frente, há um Cruzeiro 22.
Durante a subida para a igreja não estava nervoso, mas, sim, ansioso. Chegando,
cumprimentei algumas pessoas, fiz uma troca de roupa, assinei uma lista onde todos os
presentes no ritual devem assinar e adentrei o recinto. Entrando no ambiente, foi possível
observar uma série de quadros na parede com conteúdo diverso: fotos do Mestre Irineu23;
Padrinho Sebastião24; Jesus Cristo; Padrinho Fábio e Madrinha Suzana25; pirâmides, dentre
outros. Olhando para cima, visualizei cinco estandartes com fotos de ilustres daimistas: dois
contendo uma imagem do Padrinho Sebastião; dois de Mestre Irineu; um da Madrinha Rita26.
No teto, estavam posicionadas “bandeiras de São João”27 com as cores verde e amarelo. Bem
ao centro do salão havia uma mesa redonda, cercada por instrumentos musicais – flauta,
sanfona, guitarra, violão, contrabaixo, zabumba, teclado e triângulo, sem contar os maracás.
Passando os olhos por cima da mesa, vi uma foto de Mestre Irineu; uma do Padrinho
22
O Cruzeiro é semelhante a Cruz de Caravaca, do cristianismo. De acordo com Rehen (2007), o Cruzeiro, ou
Cruz de Caravaca, teria sido revelada ao Mestre Irineu em uma de suas primeiras visões com o daime. Para os
adeptos “simboliza o poder do Santo Daime e do “astral”, assim como a volta do Cristo, cujo espírito estaria
presente em Irineu Serra e na própria bebida ingerida nos rituais” (REHEN, 2007, p. 34).
23
Mestre Irineu foi o fundador da doutrina do Santo Daime. No segundo capítulo dessa dissertação, abordarei
sua figura com mais ênfase.
24
Padrinho Sebastião foi o responsável pela expansão do Santo Daime para o sudeste e líder do Cefluris.
Também, no segundo capítulo as referências sobre suas ações são maiores.
25
Padrinho Fábio e Madrinha Suzana são os dirigentes da igreja do Céu do Gamarra. No início do capítulo três,
a formação do Céu do Gamarra, assim como o papel deles na edificação da igreja, será abordado.
26
Madrinha Rita que, atualmente, vive no Céu do Mapiá é uma figura importante no Cefluris. Ela é viúva do
Padrinho Sebastião e mãe do líder atual do Cefluris, Alfredo Gregório de Melo, o Padrinho Alfredo.
27
Bandeiras de São João são as tradicionais bandeirinhas de festa junina. No Santo Daime, elas refletem o
caráter festivo dos rituais.
29
Sebastião; um cruzeiro28; um vaso com flor; duas velas acessas; e Nossa Senhora Aparecida,
por conta da data. Embaixo da mesa, uma vela acessa e um copo de água.
Tomando como base a entrada principal, indo para a direita, percebi uma porta que
dava acesso a uma sala que é utilizada pelos homens, para descanso ou troca de roupa. Lá, há
também um banheiro com três cabines individuais, cada uma contendo vaso sanitário. O
mesmo ocorreria caso tomasse o rumo da esquerda e fosse para o espaço das mulheres.
Dentro do espaço da igreja, ainda havia mais um elemento: o “quartinho do daime”.
Neste espaço, o daime fica guardado durante o ritual. O quarto continha também dois quadros
na parede, copos, um armário – com hinários para serem emprestados – e uma mesa.
O ritual começou às onze horas da manhã com a reza do terço. Após terminada a
oração, era o momento em que o daime seria servido aos presentes. Entrei na fila, tentando
relaxar para apreender melhor a experiência, e tomei o daime – o que se repetiu por mais duas
vezes durante o ritual, já que, ao todo, foram servidas três doses da bebida. Admito que
esperava um paladar menos aceitável, contudo, o gosto da bebida, para mim, se mostrou bem
agradável, algo parecido com um vinho, porém um pouco mais fermentado, se comparado
com os habituais.
Logo, me dirigi ao espaço reservado para os homens não fardados29 presentes no
salão. Percebi a seguinte disposição no ritual: homens de um lado, mulheres de outro. As
mulheres ocupavam três fileiras com a divisão entre casadas e solteiras, se colocando à
esquerda, tomando como base a entrada do salão. Os homens seguiam a mesma disposição,
porém, se colocando a esquerda do recinto. Os visitantes, ou não fardados, se posicionavam
atrás dos fardados, no seu batalhão específico.30
28
Normalmente, as pessoas colocam nomes em um papel no cruzeiro para pedir oração. Em cima, ficam os
nomes dos vivos; embaixo os dos mortos.
29
Os membros que assumem um compromisso com a doutrina do Santo Daime são denominados como
fardados e utilizam uma vestimenta especial nos rituais. A veste ritual é denominada de farda. A farda utilizada
nos trabalhos oficiais, ou seja, a farda branca, para as mulheres é composta de: saia branca longa pregueada,
com um saiote verde pregueado sobreposto, duas faixas verdes transversais e entrelaçadas no peito e uma estrela
(de cinco pontas) ao lado direito do peito. No outro lado, uma “rosa”, para as casadas, ou uma “palminha”, para
as solteiras, além de fitas coloridas, no ombro esquerdo, costuradas na blusa e, por fim, uma coroa com
lantejoulas, sapatos e meias brancas. Para os homens: camisa, paletó, calça, sapato e meias brancas; gravata azul
escuro; e a estrela de cinco pontas do lado direito do peito.
30
Essa divisão entre os sexos, de acordo com os adeptos, gera um equilíbrio entre as forças que circulam no
espaço, sendo o próprio Mestre Irineu quem recebeu essa instrução da Rainha da Floresta. O ritual é entendido,
então, como um gerador que produz um campo energético contendo o polo negativo; as mulheres (yin); e o polo
positivo; os homens (yang). Justamente por isso que, durante o ritual, homens só atendem homens e as mulheres
somente tem contato com mulheres.
30
31
Para os daimistas, essas orações são uma forma de iluminar o ambiente para que o trabalho possa começar.
Nos anexos desta dissertação elas estão disponíveis em sua totalidade.
31
momentos, extremamente alterada, afetando assim no meu bailado 32. Minha noção de tempo
foi completamente desequilibrada, não saberia afirmar quantas horas, ao certo, haviam se
passado.
Assim, com esse efeitos ocorrendo simultaneamente e cada vez se dando de maneira
mais latente, um receio começou a fluir em minha mente. Sentia medo. Sentia que não queria
estar ali. Pensava porque havia trocado meu feriado – com inúmeras possibilidades de lazer –
para estar naquele ritual, bebendo aquele chá, com aquelas pessoas, que, nesse momento, para
mim se configuram enquanto indivíduos sem noção nenhuma da realidade por acreditarem
que aquele líquido tinha algum “poder”.
Sim, no meu primeiro contato com o campo, mesmo, naquela altura, não tendo
nenhuma pretensão de ingressar nos estudos sobre o Santo Daime, mas já tendo contato com
a teoria antropológica, não relativizei. Ao contrário, interpretava o exótico como sendo
necessariamente ruim.
Isto posto, uma série de lembranças dos mais variados aspectos – família, amigos,
relações sociais, universidade, conflitos, dentre outros – passavam por minha consciência
como imagens muito bem ilustradas. Algumas, eu conseguia me desfazer de forma rápida,
outras não, ficavam sorrateiramente indo e vindo, num movimento cíclico. Em especial, uma
memória da qual não conseguia me livrar, advinda de um conflito ocorrido em 2007,
perpassava minha própria condição. Percebi, então, que precisaria resolvê-la e que aquele
momento era o apropriado.
Dito em palavras, parece fácil33. Embora, na experiência proporcionada pela
ayahuasca, solucionar o conflito não foi tão simples. Para todos os efeitos, consegui. Em tal
momento, senti um forte sentimento de amor, de conexão com o universo. Havia conseguido
me livrar de uma, das tantas coisas, que geravam uma sensação de pesar.
Constatei que meu corpo transpirava em excesso. O suor escorria pelo meu rosto, até a
ponta de meu nariz. Parecia a transpiração estar tirando algo do meu corpo. Contudo,
continuei o ritual embalado por aquele sentimento “pré reflexivo, pré racional: o amor”
(MAGALHÃES, 1994, p. 194). A sensação era de plena felicidade e conexão com todas as
formas de vida presentes no universo.
32
O ritual é acompanhado pela música e pela dança, o bailado. A estrutura rítmica dos hinos são de três tipos:
marcha; em compasso quarternário; mazurca; com compasso binário composto; e valsa; com compasso ternário.
A cada um desses ritmos, um bailado diferente é executado.
33
Nunca é demais lembrar da aparente barreira entre quem participa e quem não participa do jogo ritual
(ALMEIDA, 2004). Melhor dizendo, “signos não são transportáveis de um contexto para o outro como se
fossem pacotes de significantes e significados” (ALMEIDA, 2004, pg. 17).
32
Terminado o ritual, veio o entendimento. Quando fui observar minha garganta frente
ao espelho, para ver a situação de minha inflamação nas amígdalas, a surpresa: todas,
completamente todas, as placas bacterianas haviam se desaparecido. Eu estava curado da
amigdalite.
Com isso, passei a frequentar mais sistematicamente os rituais do Santo Daime. Fato
que me leva a pensar em consonância com Soares (1990), ou seja, a pessoa frequentadora do
Santo Daime restitui sentido para suas viagens astrais à “luz da cosmologia 34 implicada no
Daime” (SOARES, 1990, p. 271). Exemplificando, no momento em que me senti livre da
amigdalite ou desprendido de problemas da ordem cotidiana estava, de certa forma,
reafirmando a cosmologia dessa religião. Ou melhor, “o triunfo individual realiza a glória
coletiva, reforçando o grupo, suas identidades e seus valores” (SOARES, 1990, p. 271).
Assim, me concebi jogando o jogo de linguagem proposto pelo daime, isto é, fortalecendo
meu próprio idioma religioso com o qual investigava minhas próprias experiência sensitivas.
Acabando por corroborar a proposta cosmológica inserida pelo Santo Daime, no puzzle de
mirações, com a qual o adepto “explora suas aventuras anímicas pelo cosmos” (SOARES,
1990, p. 271).
Um último ponto relativo a essa primeira experiência se faz necessário. Labate (2004)
salienta o fato do uso da ayahuasca, pelos antropólogos, ter a possibilidade de modificar a
natureza da etnografia. Concordo com as afirmações feitas pela autora, todavia, devido a
minha própria experiência, gostaria de afirmar o uso da ayahuasca também possuindo uma
probabilidade de “iniciar a etnografia”.
Digo, nesses termos, porque minha própria ideia de estudar o Santo Daime se
construiu durante o ritual acima descrito. Ou seja, durante meu estado alterado de
consciência, proporcionado pela contato com a bebida, foi onde me propus a fazer um estudo
acadêmico sobre o Santo Daime. Pois, se o daime me mostrou sua força retirando minha
doença e me fazendo jogar o seu jogo de linguagem, realizar algo sobre o Santo Daime no
meio onde atuava, para mim, parecia necessário, uma espécie de “pagamento de dívida” pela
34
Algumas considerações, acerca da cosmologia daimista se fazem necessárias. Groisman (1991) demonstra as
noções espíritas de carma, encarnação, livre arbítrio e reencarnação ordenando a experiência, no mundo, do fiel.
Dessa maneira, por intermédio dessas noções, é que a morte, a doença e os infortúnios podem ser explicados.
Temos, por exemplo, similarmente aos ideais espíritas, o Santo Daime operando a dualidade entre matéria e
espírito através da divisão dos mundos; um o mundo da ilusão, outro o mundo espiritual. Goulart (1996)
argumenta o fato de a ideia de comunhão, entre o homem e o mundo natural, se constituindo enquanto a base da
cosmologia do Santo Daime. Em sua estrutura cósmica as deidades principais são: A Ranha da Floresta; que
concedeu a missão de criação do Santo Daime para Raimundo Irineu Serra, sendo identificada como a Virgem
da Conceição; Jesus Cristo; e, Juramidam, que é entendido como o Cristo Salvador, se configurando enquanto a
representação de Mestre Irineu no plano astral.
33
Tratando dos rumos da reflexão metodológica, Ruth Cardoso (1986) demonstra certa
preocupação dentro do campo das ciências sociais. Tal discussão, para a antropóloga, passa
por uma ênfase tanto no papel do pesquisador, juntamente com seu envolvimento, quanto nas
consequências disto para a pesquisa. Mas, concomitantemente, há uma diminuição no que
tange ao espaço dedicado ao debate propriamente metodológico (CARDOSO, 1986).
Logo, a discussão estaria caminhando para um conformismo para com o ecletismo
enquanto uma boa saída, ou um bom caminho, para o conhecimento e qualquer indagação
colocada “por este ou aquele método é impertinente” (CARDOSO, 1986, pg. 95). Por isso, o
debate se reduz em relação a relevância do tema pesquisado e também na maneira pela qual o
cientista se engaja no estudo, se transformando, para Cardoso, em um porta voz dos anseios e
carências, ou das “verdades”, dos nativos. Isto posto, “o critério para avaliar as pesquisas é
principalmente sua capacidade de fotografar a realidade vivida” (CARDOSO, 1986, pg. 95).
Prosseguindo, Cardoso não nega a importância dedicada a valorização da pesquisa de
campo, todavia, seu alerta diz respeito a exercer uma reflexão sobre a utilidade das técnicas
empregadas pela antropologia em sua construção científica. Considerando a antropologia
como uma ciência que não se define pelo seu objeto, mas, sim, através de seu método,
podemos pensar em tal análise enquanto uma nítida preocupação direcionada a aplicação e
importância do método.
36
Este foi um sério dilema que tive que enfrentar, ao ter que omitir fatos e experiências que
considerava relevantes, por não se enquadrarem dentro dos paradigmas acadêmicos. A
rigor, eu deveria me ater à análise objetiva dos aspectos antropossociais do objeto.
Descrevê-lo, classificá-lo e enquadrá-lo dentro de um dos códigos existentes, de maneira
lógica e racional. (DIAS, W. 2002, p. 460).
Dessa forma, caso o pesquisador se situe adequadamente neste espaço entre, uma
visão múltipla e mixada do objeto pode vir à tona. Ou seja, a “velocidade do meio” pode ser
salientada, no texto, a partir da construção de uma visão que potencialize as próprias
multiplicidades da pesquisa. Então, o antropólogo deve trabalhar com essas duas frentes –
pesquisador e adepto – de forma multifacetada, concebendo tal relação não enquanto apenas
“sou de dentro” e “sou de fora”, mas, como um tipo específico de florescimento de
conhecimento, que cresce a partir de um movimento transversal. Ou ainda, não menos
importante, o antropólogo, nessa posição, deve explorar o caráter multifacetado de sua devida
inserção, dito de outra maneira, explanando tanto seu próprio local de fala, em sua condição
múltipla, quanto compreendendo as próprias multiplicidades como sendo a realidade
(DELEUZE, G; GUATTARI, F, 2011).
Em vista disso, é necessário grifar dois pontos; primeiro, o fato de ter a experiência
extática junto com os nativos supõe uma relação de que o pesquisador está do nosso lado
(LABATE, 2004), construindo, assim, uma relação de confiança mútua, cujo
desenvolvimento está ligado, fortemente, ao bom andamento da pesquisa. Segundo, a ideia
nativa de que o próprio pesquisador deve experimentar o daime por si mesmo, no sentido de
que ele é o “professor dos professores”, trazendo ensinamentos que não seriam entregues de
outra forma.
Este último ponto já me foi ressaltado em campo, em um diálogo com o dirigente do
Céu do Gamarra, Fábio Pedalino. No caso, foi me dito a necessidade, para qualquer pessoa
que estudasse o Santo Daime, de se examinar na força, ou seja, tomar o daime e conhecer
seus efeitos. Sem dúvidas, isso reflete, de certa forma, a própria relação construída de um
sentimento de cumplicidade, dos adeptos, para com a bebida.
Para finalizar esse tópico, entendo que não é garantia de qualidade para a pesquisa a
inserção pessoal dentro do ritual, entretanto, como tentei demonstrar, ela pode ter um caráter
extremamente produtivo. Contudo, uma autoanálise faz-se, portanto, necessária e convém ser
inserida na própria história da pesquisa (VALADARES, 2007). Ou ainda, reconhecendo a
identificação enquanto necessária para “apreender” de dentro as categorias culturais
(DURHAM, 1986), é fulcral sempre voltar a atenção para o risco de explicar determinado
complexo cultural através das próprias categorias nativas, ao invés de interpretar tais
“categorias através da análise antropológica” (DURHAM, 1986, p. 33). Por fim, de certa
forma, ver e presenciar não condiz absolutamente com conhecer e compreender. Logo, o que
vemos e encontramos não é fatalmente conhecido (VELHO, 1978). Assim, a “realidade” é
sempre interpretada a partir do ponto de vista do observador, ou melhor, é necessário
39
35
O fiscal é um fardado que tem a responsabilidade de zelar pelo bom andamento do ritual.
36
A expressão – Juramidam – equivale ao nome de Mestre Irineu no plano astral.
42
em sua experiência. Creio ser uma ótima resolução, mas, paralelamente, acredito que,
enquanto antropólogos, nesse caso específico, podemos ir um pouco além.
acesso ao conhecimento, assim, “acreditam que toda a vez que alguém toma essa bebida tem
a oportunidade de entrar em contato com Deus [...] (MACRAE, 2005, p. 462). Ou ainda,
como afirma o Padrinho Fábio Pedalino, dirigente do Céu do Gamarra: “o Céu do Gamarra é
uma escola cujo objetivo é apenas o entendimento e o conhecimento das coisas espirituais”.
Tal acesso ao conhecimento, retomando Zinberg (1984), se dá através do contato com o chá e
com as regras de condutas prescritas no ritual. Todavia, os daimistas também têm
formulações parecidas. Nesse caso, Fábio Pedalino comenta: “o daime sem a doutrina é como
um veículo sem a estrada”. Dessa maneira, me parece importante o fato de tentar perceber
como a própria planta exerce sua potência transformadora, deslocadora.
Logo, a potência de deslocamento é o daime, a doutrina é o guia. Aqui, o daimista
também compreende, similarmente a Zinberg (1984) e Macrae (2005), a importância do
controle rígido sobre a experiência. Assim, é de se assumir o risco do deslocamento de ponto
de vista proporcionado pela ayahuasca, de modo que sempre alguém mais experiente deve
tomar a frente da sessão ou, pelo fato de existirem, no caso do Santo Daime, os fiscais e toda
uma fórmula dietética antes e pós ritual. Reconhecer esse tipo de risco é uma possibilidade de
entender a potência da planta como deslocadora de pontos de vista e o risco desse
deslocamento, na condição do Santo Daime, sem a orientação da doutrina.
O poder da planta, digamos, pedagógico, no sentido de aquisição do conhecimento,
reside na sua capacidade de deslocar os pontos de vista, uma vez que se trata de, ao tomá-la,
entrar em contato e também perceber realidades extramateriais. Tais realidades não
encarnariam justamente outros pontos de vista a respeito da própria vida? Ou ainda, até que
ponto o dar a conhecer do daime não é precisamente acessar um ponto de vista outro acerca
da vida material, possibilitando, dessa forma, um gesto de estranhamento da vida do sujeito?
A questão, nos termos ressaltados por Flor, está assim delineada:
Ele (o daime) começa a te mostrar [...] você não começa a interpretar aquilo de uma
única maneira [...] você começa a ter outros contatos com as pessoas e com as suas
práticas do dia a dia, você muda o seu ponto de vista, ele não fica limitado a uma só
visão, você começa a ver vários pontos de uma coisa que você veria de um jeito só.
material conter uma miríade de ilusões, visto que a “verdade” só pode ser alcançada pelo
contato com o mundo espiritual. Podemos ver isso na estrofe de um hino: “O espírito que
vem a terra trazer a evolução; Despertar pro mundo espiritual; É deste reino que vem toda
inspiração das artes da ciência e do amor; De lá também vem a vida material [...]”.37
Por isso, para despertar rumo ao mundo espiritual, todo adepto deve, além de tomar o
daime nos trabalhos, ajustar seus comportamentos às concepções da doutrina, pois aí está o
alicerce para a transformação pessoal, uma vez que, como dito anteriormente, o “daime sem a
doutrina é como um veículo sem a estrada”. Nesse ponto, é importante destacar o uso do
termo trabalho, devido ao seu uso para se referir a uma multiplicidade de práticas. Por
exemplo: o ritual é trabalho; o ato de fazer o daime, ou melhor, o feitio 38, é trabalho; uma
passagem ocorrida no ritual é trabalho; a concentração 39 é trabalho; a cura é trabalho; o canto
é trabalho; o êxtase é trabalho; o hinário é trabalho; a conduta da vida cotidiana é trabalho.
Sem dúvidas, essas assimilações derivam de um ponto em comum, isto é, o trabalho no plano
astral (OLIVEIRA, 2008). Nos hinos, o verbo trabalhar é conjugado de diversas maneiras,
embora todas se refiram ao seguinte raciocínio: a obrigação do adepto de concluir tarefas que
são substanciais para seu crescimento dentro da doutrina e para, consequentemente, atingir a
realização espiritual plena. Assim, podemos pensar tal como Soares (1989), ou seja, trabalho
designa o empenho espiritual (SOARES, 1989), relativamente agregado ao cuidado direto
com o corpo.
Então, o trabalho é o objetivo do adepto (OLIVEIRA, 2008), ou ainda, no trabalho o
sentido da espiritualidade se firma como uma ratificação de que a luta é coletiva, sendo que
cada indivíduo deve desempenhar seu papel, cumprir sua missão (GROISMAN, 1999).
Portanto, estamos diante de uma via de mão dupla, pois, se o ritual, ou trabalho, é de extrema
importância para o alcance da espiritualidade, o trabalho das práticas cotidianas também é.
Pois, a compreensão, aparentemente, assim acontece: tudo que acontece no ritual é espelho,
ou depende de como o daimista está naquele momento, visto que o trabalho resume a sua
vida. Dito isto, cabem duas considerações. Primeiro, o trabalho, concomitantemente, depende
de como o adepto está no momento, mas, também é de responsabilidade da corrente
espiritual. Segundo, a ideia de trabalho não pode ser entendida fora do seguinte eixo: trabalho
37
Fábio Pedalino, O Espírito da Evolução, Quinto Livro, hino 1.
38
O feitio é o ritual onde se faz o daime. Nele, as mulheres são responsáveis pelo cuidado referente as folhas
rainha. Os homens ficam por conta de macerar o cipó jagube. No Céu do Gamarra o feitio é realizado durante a
semana santa.
39
A concentração é um tipo de ritual onde os indivíduos tomam o daime, permanecem sentados e em silêncio. O
objetivo desse tipo de trabalho é tentar um mergulho individual mais profundo.
45
material, ou cotidiano; trabalho material no ritual, isto é, cantar, tocar e bailar; trabalho
espiritual, miração40, incorporação, êxtase.
Então, percebendo as noções nativas de “planta professora”, “doutrina” e “trabalho”,
como sendo uma espécie de base de uma teoria nativa do conhecimento e da transformação
pessoal, o Santo Daime parece ser uma religião que pensa o conhecimento em termos de
deslocamentos de perspectivas, ou pontos de vista. Melhor dizendo, a planta concede a
possibilidade, através do trabalho, de alcançar o ponto de vista da doutrina, ou da própria
planta – uma vez que, nesse caso, elas não podem ser pensadas separadamente – permitindo
ao adepto a possibilidade de ver a si mesmo e a sua vida com outros “olhos”. E, assim, se
transformar. Dessa forma, é notável essa aquisição de conhecimento se realizando como um
deslocamento controlado 41 em direção ao outro, especificamente, ao outro mundo, conjugado
com seus impactos na vida neste mundo.
Não seria o caso de analogias prósperas da forma como o sujeito em contato com o
chá adquire conhecimento e a prática antropológica? Não é meu intuito afirmar o
conhecimento operando em tais manifestações da mesma maneira ou visando os mesmos
fins. Pois, parece compreensível que o Santo Daime e a antropologia pouco coincidem nesse
sentido. Mas, podemos pensar nos seguintes termos: o antropólogo voltado para o estudo
desse religião corre riscos – ou seja, a operação arriscada de se tomar o chá evoca a aventura
arriscada de ir a campo e vice versa.
O conjunto de teorias, expostas anteriormente, do Santo Daime, orientadoras do
deslocamento de perspectiva, tem paralelos com o conjunto de teorias balizadoras da nossa
disciplina? Os dois42, de certa forma, são auxiliadores da construção de tipos específicos de
conhecimento, de maneiras singulares, de multiplicação dos dois mundos. A antropologia,
não tendo “a tarefa de explicar o mundo de outrem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 132)
multiplica o nosso mundo, realizando esse possível como virtual (VIVEIROS DE CASTRO,
2002). O Santo Daime multiplica as próprias perspectivas de compreensão do cotidiano e
concede a oportunidade do conhecer através do êxtase.
40
Clodomir Monteiro da Silva (2002), ao definir miração, diz que este estado não se confunde com visões
alucinatórias, ou seja, podem acontecer fenômenos análogos ao estados de transe, possessão ou êxtase.
41
Controlado no sentido de levar em conta o setting (ZINBERG, 1984; MACRAE, 2005), mas, também, se
estamos levando a sério o deslocamento de ponto de vista ocasionado, na acepção de que o sujeito somente vê,
sente ou desloca o ponto de vista de acordo com a vontade da planta. Melhor dizendo, a planta é quem permite
“ver” e a pessoa só “vê” o que a planta quer, de acordo com seu merecimento.
42
Carvalho (1998) aponta a antropologia e o esoterismo como sendo descendentes do projeto da modernidade e
críticos dos seus sistemas de valores. A ciência antropológica, que se recusa a fragmentar o real, para Carvalho
(1998), seria uma espécie de ciência sagrada, pois, inspirada em uma simbologia de busca, ela também seria um
caminho esotérico. Isto é, “antropologia e esoterismo seriam cúmplices de um mesmo cosmopolitanismo”
(LABATE, 2004, p. 36).
46
43
O anseio de Oliveira (2008) para mim nunca foi um real problema, pois, sempre vislumbrei a possibilidade da
realização de um trabalho acadêmico na condição de “nativo” e “pesquisador”.
48
Logo, se, como argumentado anteriormente, o Santo Daime é uma religião que pensa
o acesso ao conhecimento em termos de deslocamentos de perspectiva, ou pontos de vista, e
levando a sério a teoria nativa do conhecimento, não seria o caso dessa mudança ser
ocasionada pelo contato com a planta, ou melhor, pela própria vontade da planta? Creio que a
resposta de um daimista seria afirmativa, uma vez que a planta concede a possibilidade,
através do trabalho, de alcançar o ponto de vista da doutrina, ou da própria planta – já que,
nesse caso, elas não podem ser pensadas separadamente – permitindo ao adepto a
possibilidade de ver a si mesmo e a sua vida com outros “olhos”. Sendo a capacidade da
planta de deslocar os pontos de vistas de quem a toma e, pensando nos termos de Viveiros de
Castro (2015), ou seja, “os estilos de pensamento praticados pelos povos que estudamos são a
força motriz da disciplina” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 24), estou querendo suscitar
que, de certa forma, minha mudança de tema foi uma maneira de vivenciar e perceber os
deslocamentos de ponto de vista no Santo Daime. Estrela, uma daimista do Céu do Gamarra,
argumenta: “o daime traz esse entendimento, as coisas acontecem pelo jeito que elas têm que
acontecer. O importante é você dar o primeiro passo, porque aí Deus coloca o chão embaixo,
mas você tem que ir”. Portanto, o daime, a planta, operando juntamente com a doutrina, traz
o entendimento de o porquê as coisas acontecem como acontecem. Com base em meu
argumento, esse entendimento advém do contato com a planta, com a experiência extática,
com o deslocamento.
Dessa maneira, além de observar esse movimento de mudança de ponto de vista
através de meus interlocutores, queria suscitar a minha própria percepção a essa noção de
deslocamento, sendo advinda do meu próprio deslocamento controlado em direção ao outro,
especificamente, ao outro mundo, conjugado com seus impactos na vida neste mundo, uma
vez que, como salientando anteriormente, a planta é quem permite “ver” e a pessoa só “vê” o
que a planta quer. Isto é, o meu próprio deslocamento de perspectiva, através do daime,
influiu diretamente nas condições de produção desta pesquisa.
Meu leitor poderá estar se perguntando acerca da veracidade de tais argumentos, ou
seja, se a planta realmente permite esse acesso ao conhecimento e se, talvez, o que eu esteja
falando não passe de mera bobagem, ancorada distantemente dos moldes propostos pela
ciência. Para isso, fico com a afirmação de Viveiros de Castro (2015), ao refletir sobre a
tarefa da antropologia: “é comprometer-se com o projeto de elaboração de uma teoria
antropológica da imaginação conceitual, sensível a criatividade e reflexividade inerentes à
vida de todo coletivo, humano e não humano (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 25, grifo
meu)”.
49
CAPÍTULO 2
O presente capítulo tem por objetivo situar o leitor acerca do surgimento e das
trajetórias da doutrina do Santo Daime, antes do seu movimento expansionista, para que
possamos, a frente, localizar o florescimento e a situação, especificamente, do Céu do
Gamarra.
Para isso, o capítulo é escrito baseado em informações bibliográficas sobre a história
do Santo Daime. Dentre a bibliografia, estão presentes formulações textuais acadêmicas e
também publicações nativas, como o caso de Mortimer (2000). Vale lembrar, como discutido
no capítulo anterior, que “o grupo das publicações acadêmicas e não acadêmicas se
interpenetra” (LABATE, 2002, p. 269), seja pelo fato de grande parte dos pesquisadores
possuírem uma afinidade com o daime, todavia nem sempre explicitada, ou pelo motivo de
muitos dos escritos internos serem “elaboradas por estas mesmas pessoas” (LABATE, 2002,
p. 269).
Utilizarei, em algumas passagens do texto, os hinos, assim como a bibliografia e
algumas informações coletadas em entrevistas com os daimistas. Como Rehen (2011)
observa, os hinos cantados durante as cerimônias religiosas do Santo Daime trazem narrativas
“que destacam algumas passagens de vida de Raimundo Irineu Serra e Sebastião Mota de
Melo, consolidando-as como “mitos” fundadores desta religião” (REHEN, 2011, p. 26).
Ainda, considerando a música na doutrina como uma “espécie de signo que condensa
metonimicamente a vivência religiosa como um todo” (LABATE; PACHECO, 2009, p.104),
opto por pensar a possibilidade dos hinos enquanto um recurso metodológico. Pois, se para os
daimistas eles são entendidos enquanto verdades reveladas, ou seja, como coloca José
Oliveira, “o hino é a base de todo o conhecimento e é, ao mesmo tempo, o mecanismo pelo
qual esse conhecimento é transmitido para os seguidores da doutrina do Santo Daime”
(OLIVEIRA, 2008, p. 17). O pesquisador, então, deve usufrui-los no texto, de modo que eles
sejam esclarecedores da trajetória de constituição mesmo da doutrina e da comunidade. Isto
é, a medida em que narrarei a formação e o desenvolvimento de alguns aspectos oriundos do
culto do Santo Daime, tentarei dispor trechos dos hinos de forma à ressaltar traços
característicos da própria cosmologia daimista.
Opto também por utilizar alguns hinos de pessoas do Céu do Gamarra para
demonstrar que, mesmo com o Santo Daime atingindo outro tipo de indivíduo – ou seja, não
51
44
Também conhecida como yagé ou caapi na região do Alto Amazonas (GOURLART, 1996; GOULART,
2002). Ou ainda como cipó, vegetal, natema, daime, hoasca, dentre outros nomes (LABATE; PACHECO,
2002).
45
Este campo de conhecimento tem estudado a questão da ayahuasca muito influenciado pela frequente
elaboração de documentos envolvendo casos legais sobre o uso sacramental feito pelas religiões, especialmente
o Santo Daime e a União do Vegetal, que se expandiram para fora dos limites territoriais brasileiros. Para um
melhor detalhamento do movimento de expansão do uso da ayahuasca ver os trabalhos de Balzer (2002); Assis e
Labate (2014).
46
Para uma visão mais ampla dos usos rituais de algumas dessas plantas consultar O uso ritual das plantas de
poder (LABATE; GOULART, 2005).
52
47
O que os daimistas chamariam de “luz”.
48
A DMT quando fumada, ou administrada por via intravenosa, pode produzir efeitos potentes quase
imediatamente. Quando utilizada por ingestão oral, na forma de chá, os efeitos químicos são menos potentes
(PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010).
53
49
Folguedo tradicional da região maranhense.
54
50
O tambor de mina é a alcunha concedida no Maranhão aos cultos de possessão de origem africana,
usualmente, realizados em terreiros e que englobam diversos sistemas rituais diferentes cuja origem é ligada a
grupos étnicos distintos (LABATE; PACHECO, 2002). De acordo com Barros (2008), Mina faz alusão aos
“negros minas”, denominação geral concedida aos escravos oriundos de regiões da África ocidental.
51
Tratando do campo religioso brasileiro, Sanchis (1997) assinala a matriz católica, africana e, em algumas
regiões, a pajelança indígena como matrizes primordiais de tal campo. Então, seguindo essa linha, o Santo
Daime dialoga e reelabora, de certa maneira, as três matrizes essenciais.
52
Concordando com Labate e Pacheco (2002), ao contrário do tambor de mina, as referências a pajelança na
cultura maranhense datam de meados do século XIX.
53
Ocorre a “passagem” de uma série de entidades espirituais em uma única sessão.
55
Ou ainda:
Tomem cuidado
É o fermento fariseu
Não bem dizer a Doutrina
E que é negar a Deus55
Vimos o uso do termo “doutrina” em dois momentos: o primeiro sendo utilizado pelo
fundador do Santo Daime em seu hino Flor de Jagube, já o segundo sendo empregado pelo
dirigente do Céu do Gamarra – núcleo do Daime onde foi realizada esta presente pesquisa –
no seu hino, Ateu. Ambos se assemelham ao uso do termo na pajelança, visto seu caráter de
trazer ensinamentos e preceitos, mais especificamente sob a forma de música cantada
(LABATE; PACHECO, 2002). No Maranhão, o termo serve para designar as cantigas dos
rituais seja do tambor de mina, da pajelança ou do terecô, associadas a entidades espirituais
ou a momentos específicos dos rituais.
Outros elementos de destaque da cosmologia da pajelança, em sintonia com o
imaginário empregado no Santo Daime, são o trinômio banzeiro, maresia e balanço; e a
noção de firmeza. No referido estado nordestino, o trinômio é utilizado como referência para
as ondas agitadoras do mar (LABATE; PACHECO, 2002). No contexto religioso, o uso
concerne à presença e à vinda dos encantados e ao impacto do transe de possessão. Já a
firmeza é uma característica crucial dos bons curadores, sendo compreendida como sinônimo
de segurança e exatidão no feito de determinada tarefa.
No Santo Daime, o trinômio maranhense e a noção de firmeza parecem se aproximar
das noções cosmológicas daimistas de balanço e firmeza. Entendendo o ritual enquanto uma
batalha pela doutrinação e pela salvação, o fardado deve estar sempre “firme” para “suportar
a força do daime”, ou seja, aguentar o “balanço”56. Em outras palavras, os daimistas tem
54
Mestre Irineu, O Cruzeiro, hino 38.
55
Fábio Pedalino, Iniciação, hino 50.
56
“Balanço” pode ser entendido com a própria força da bebida, ou melhor, como o efeito manifestado no corpo
e no psicológico do adepto. Também, pode ser compreendido como uma referência ao apocalipse do fim dos
tempos (LABATE; PACHECO, 2002).
56
como serviço lutar com disciplina e firmeza 57 contra o mundo de ilusão, isto é, contra perigos
espirituais e dúvidas que “balançam” a sua fé. Assim, a firmeza “designa a força individual
nos trabalhos, a perseverança moral e também a postura ilibada e irretocável de fortaleza e
boa conduta. Os daimistas entendem a firmeza como um modus vivendi” (ASSIS, 2013, p.
38). No discurso de Fábio Pedalino, padrinho do Céu do Gamarra: “tendo firmeza, sempre se
terá como conservar o amor e todas as coisas boas que Deus nos dá”. Vejamos isso
materializado em alguns hinos:
Firmeza, firmeza
Que o Mestre está chegando
58
Império Juramidam
Ou:
E a tormenta
Quando vira o destino
É a falta de fé
Em que Cristo voltou 59
E:
Eu balanço, eu balanço
Eu balanço tudo enquanto há
Chamo o cipó, chamo a folha e chamo a água
Para unir e vir me amostrar60
57
Mesmo o xamanismo indígena ayahuasqueiro tendo tais características (GROISMAN, 1991), Labate e
Pacheco (2002) sugerem o fato de elementos normalmente indicados como influências do curandeirismo
amazônico, ou como uma mescla do vegetalismo ayahuasqueiro, serem advindos da tradição de cura da
pajelança maranhense.
58
Fábio Pedalino, Renascimento, hino 20.
59
Fábio Pedalino, Ancestral, hino 25.
60
Mestre Irineu, op. cit, hino 46.
57
E ainda:
A Rainha é a Divina
Virgem da Conceição
A Rainha é a Divina
Virgem da Conceição63
E:
61
Mestre Irineu, op. cit., hino 108.
62
Fábio Pedalino, Quinto livro, hino 4.
63
Fábio Pedalino, Iniciação, hino 37.
64
Mestre Irineu, op. cit., hino 1.
58
65
Apesar de não existirem informações sobre a participação de Irineu em festejos do Divino Espírito Santo, há
referências de sua atuação no bambaê de caixa, uma espécie de folguedo feito como diversão no término da
festa. Também, a mãe de Irineu Serra era muito católica sendo viável supor sua convivência com determinada
tradição (LABATE; PACHECO, 2002).
59
Assim como Goulart (1996; 2002), Labate e Pacheco (2002) tentam demonstrar uma
correlação entre o catolicismo popular – no caso de Goulart 66 (1996; 2002), o catolicismo
rústico –, e a doutrina do Santo Daime. Para a dupla de autores, diversos elementos presentes
no Santo Daime desse catolicismo podem ter sido absorvidos através da variante maranhense,
extremamente grifada pelo imaginário, ou cosmologia, da festa do Divino Espírito Santo. Isto
posto, podemos pensar nas formas de sociabilidade religiosamente moduladas e festivamente
vivenciadas (PEREZ, 2011), tendo a possiblidade de serem as responsáveis da vitalidade
atual do campo67 religioso brasileiro, visto suas associações e combinações multivariadas,
polifônicas, polissêmicas (PEREZ, 2011), “fazendo da efervescência grupal o espetáculo
societal por excelência e da hibridação de códigos um dos mais significativos mecanismos de
orientação social” (PEREZ, 2011, pg. 179).
Os termos “império” e “reinado”, que, na festa do Divino, são usados para designar o
grupo de crianças – no qual a festa gira em torno – no Santo Daime são utilizados na
expressão “Chefe Império Juramidam”, ou “Mestre Império Juramidam” 68. Ou ainda, na
denominação da plantação de Psychotria viridis69, como “reinado”. Exemplificando:
Existem, ainda, semelhanças entre a questão da música. Tanto no Santo Daime quanto
na festa do Divino, a música consiste em um elemento central na execução do ritual. No caso
do primeiro, “os seguidores do Santo Daime e seus pesquisadores compartilham de uma
mesma opinião ao descreverem esta doutrina como uma religião musical” (REHEN, 2011, p.
177). Observam-se uma série de afinidades em relação a temática, estrutura poética,
musicalidade e estilo entre as cantigas da festa e os hinos do Santo Daime (LABATE;
PACHECO, 2002). Para Sandra Goulart, é o Santo Daime quem recupera o significado
sagrado da festa, do canto e também da dança, justamente pelo fato da organização dessa
66
Goulart (2002) assinala três práticas fundamentais na formação do Santo Daime: o mutirão, o compadrio e as
festas aos santos cristãos. Seu argumento é baseado em mostrar a constituição do conjunto ritual do Santo
Daime criando corpo a partir das festas aos santos cristãos, presentes no meio rústico do Brasil.
67
Pierre Sanchis vai compreender a lógica do campo religioso brasileiro com as instâncias diversificadas de
imputação e sentido para a vida, coletiva e individual, coexistindo legitimamente e competindo entre si
(SANCHIS, 1995).
68
Esta expressão significa que Mestre Irineu é comandante de um império celestial na Terra que virá a ser
concretizado através de seus ensinamentos presentes na doutrina.
69
Os daimistas utilizam a expressão “folha rainha” para designar as plantas desta espécie.
70
Fábio Pedalino, op. cit., hino 3.
60
religião não se conceber a partir de uma aceitação irrestrita da ética cristalizada pelo
catolicismo ortodoxo (GOULART, 2002). Logo, a falta da música, da dança e da festa é
entendida “como um empecilho para a comunicação com a realidade sagrada” (GOULART,
2002, p. 291).
A “festa de São Gonçalo” é outra manifestação religiosa do catolicismo popular
maranhense, que encontra ecos na proposta ritualística do Santo Daime. Em tal festejo
religioso, presente no Maranhão desde o século XIX, os casais fazem uma dança
característica e recitam versos em louvor do santo, usualmente com o intuito de pagar uma
promessa.
Assim como no Santo Daime, na festa de São Gonçalo, realizam passos conhecidos
como “bailados”. A disposição do lugar onde são realizados ambos os rituais também
guardam semelhanças (LABATE; PACHECO, 2002). Nota-se, dessa maneira, um ponto de
congruência com a religiosidade popular, pois, nessa, dançar é compreendido como um meio
de estabelecer comunicações com os seres espirituais (GOULART, 2002). Outro ponto de
simetria diz respeito às vestes rituais, sendo, em ambas, as roupas são chamadas de “fardas”,
consistindo em terno branco para os homens e vestido, da mesma cor, para as mulheres.
Por último, a festa de São Gonçalo é acompanhada por melodias instrumentais
tocadas em instrumentos como a viola, o cavaquinho, o violão e a rabeca. Nota-se, no
repertório o destaque de dois ritmos: valsas e marchas, que são dois, dos três71, ritmos
utilizados nos rituais do Santo Daime (LABATE; PACHECO, 2002).
Com esta bagagem, Irineu Serra rumou-se para a região amazônica. Nesse tempo,
trabalhou em diversas ocupações como, por exemplo, em seringais e como soldado da força
policial. Durante uma estadia no Peru, foi apresentado, por outro negro e seu conterrâneo,
Antônio Raimundo Costa, a alguns caboclos que utilizavam a ayahuasca. Este determinado
uso tinha como finalidade atrair fortuna, saúde e felicidade, contudo, no rito, era frequente a
chamada de entidades espirituais indígenas, por isso muitos consideravam tal ritual como
sendo um pacto satânico (MACRAE, 2011). Dito de outra forma, através de relatos inseridos
no trabalho de Goulart (1996):
71
O outro ritmo usado nos rituais do Santo Daime é a mazurca.
61
Eles apagaram as luzes e, ao invés de chamar “Meu Deus!”, eles chamavam era
pelo Cão. Mas apareceu foi um cemitério. Eram dez, eram 20, eram mil, eram 600
mil cruzes. Quanto mais chamavam, mais apareciam. “Mas, não pode ser pensou
isso não é nada do Cão”. O Cão não gosta de cruz. Eu chamo por ele e vem a
cruz [...] (GOULART, 1996, p. 71).
Antônio Costa estava no quarto e ele na sala. Aí, o Mestre olhou a lua e abismou-se
com ela. Antônio Costa, lá de dentro disse: Raimundo, aqui tem uma Senhora que
quer falar contigo. Ela está com uma laranja na cabeça pra te entregar (...) Ela disse
que seu nome é Clara. E ela está te acompanhando desde o Maranhão. Ela disse
também que na próxima sessão vai te procurar. (GOULART, 1996, p. 71).
Sendo assim, na dita próxima sessão, a Senhora fez mais uma vez sua aparição, mas
agora dialogando com Irineu:
O que você está vendo Estou vendo uma deusa (...) Então, você tem
coragem de dizer que a ayahuasca é coisa do diabo Você disse que é o Cão,
Satanás Não é não. O que você está vendo nunca ninguém viu. Você está dizendo
que eu sou uma princesa, eu sou é uma Rainha Universal. Quem diz que a
ayahuasca é o diabo não viu o que você está vendo. Ela estava sentada no meio da
lua e trazia na cabeça uma águia em ponto de voo. (Revista do Primeiro Centenário
do Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra. Rio de Janeiro. Editora Beija-Flor,
dezembro,1992, apud GOULART, Sandra. Op. cit,.pg. 71-72).
Dentre os relatos, uma coisa é nítida: a miração é central. Clodomir Monteiro (2002),
ao definir miração,72 conceitua este estado como não se confundindo com visões
alucinatórias, ou seja, podem acontecer fenômenos análogos ao estados de transe, possessão
ou êxtase (SILVA, 2002). Logo, como debatido no primeiro capítulo, o poder da planta, na
atividade de concessão de conhecimento, está presente, justamente, pela sua capacidade de
deslocamentos de pontos de vista, levando em consideração a sua aptidão de inserir quem a
bebe em contato com realidades extramateriais. Dessa forma, é patente pensar no fato de, ao
entrar em contato com o chá, Irineu Serra ter passado por um desses possíveis deslocamentos.
Pois, como mostram os relatos, em suas mirações, Mestre Irineu viu coisas que ninguém
nunca havia visto. Paralelamente, como argumentado no primeiro capítulo, a planta é quem
permite “ver” e a pessoa somente “enxerga” o que a planta deseja, de acordo com seu
merecimento. Assim, Irineu Serra – através da permissão da planta e de seu merecimento –
no primeiro relato, e também no segundo, vê coisas que ninguém nunca viu, atestando a sua
singularidade para trabalhar com a ayahuasca.
Outro elemento comum às duas passagens é o fato de tanto a Senhora quanto Pizango
garantirem a Irineu a condição de ser o “escolhido”. Consequentemente, a transformação de
Pizango em ayahuasca tanto quanto o reconhecimento de Clara enquanto um ser divino são
captadas apenas por Irineu, fazendo ele ser o único a ter condições de trabalhar com o daime
(GOULART, 1996).
A narrativa mais veementemente repetida, ou fixada, no mito de origem do Santo
Daime é a primeira. Embora, na segunda narrativa, Pizango é também um caboclo, figura
presente em diversas manifestações religiosas de nuances afro-indo-brasileira. Todavia, o
escopo central é a visão de uma santa católica 73, que, ao questionar Irineu sobre o que ela
seria, constitui a separação entre o “bem” e o “mal”, entregando o “poder” a Irineu Serra
(MELO, 2011).
Então, está marcada a gênese do movimento daimista, é quando o Santo Daime
começa a aflorar dentro da floresta amazônica. É central observar tal momento como já
72
No âmbito do Santo Daime, a questão do merecimento é fulcral na miração, isto é, ela se transfigura em um
objetivo a ser alcançado por meio da conduta individual guiada, ou orientada, pelo trabalho espiritual. Portanto,
é através do merecimento que as mirações vem à tona para mostrar ao daimista certas coisas que ele não
esperava receber. Sendo assim, a miração é considerada um presente do astral concedido ao fiel, ou ainda, os
daimistas, com frequência, interpretam suas mirações como portadoras dos ensinamentos de Mestre Irineu
(MELO, 2011). Concordando com Soares, a miração forma é instrumento de trabalho mais nobre do adepto,
dotado de superiores efeitos didáticos (SOARES, 1990).
73
Posteriormente, a Senhora, de nome Clara, será resignificada como sendo a Virgem da Conceição, isto é, a
própria mãe de Jesus Cristo.
63
74
Irineu poderia apenas se alimentar com mandioca sem sal e não deveria conversar com ninguém e, muito
menos, pensar em mulheres (MACRAE, 1992).
64
Então, similar aos vegetalistas75, Irineu, passado um tempo recluso do convívio social
e a aplicação de uma dieta bastante restrita, recebeu ensinamentos diretamente da planta
professora ou do espírito associado a ela (MACRAE, 1992). O próprio tratamento de Mestre,
também reporta a tradição vegetalista (MACRAE, 1992).
Com isso, era o momento de trilhar caminhos próprios. Consequentemente, Irineu se
muda para Rio Branco, no estado do Acre, em 1930, para iniciar os trabalhos espirituais com
o daime. De acordo com Fróes (1986), é de 1935 a 1940 que Mestre Irineu vai trabalhando e
recebendo os valores da doutrina, juntamente com os hinos. Logo, percebemos o caráter de
construção gradual, uma estruturação lenta tanto do ritual quanto da doutrina, ou melhor, uma
aprendizagem realizada e incorporada. Portanto, os ingredientes constitutivos do Santo
Daime angariam um status de revelação (FERREIRA, 2008), trazendo à tona um alicerce
ritualístico e doutrinário como sustentáculo central, porém aberto e dinâmico para outras
reelaborações e assimilações.
Passando a liderar o novo movimento religioso, Irineu Serra também comandava uma
comunidade, organizada em torno da igreja, seguindo os princípios do trabalho coletivo e do
compadrio, estes extremamente conectados com a cultura rural brasileira. Goulart (1996)
afirma serem essas relações essencialmente comunitárias as estruturadoras do cerne inicial do
Santo Daime. Melhor dizendo, os traços da sociedade rural brasileira, no caso o compadrio e
o trabalho coletivo, assumem perfis próprios postos em um caldeirão, onde a liderança
carismática de Mestre Irineu ganha um papel destacado e agregador.
Por conseguinte, Irineu Serra começou a receber diversas pessoas no local onde se
realizava os rituais com o daime. Com isso, um seguidor, que posteriormente irá marcar
fortemente essa formação religiosa, se tornando uma de suas maiores lideranças, tem contato
com a doutrina. Trata-se de Sebastião Mota de Melo, ulteriormente conhecido como Padrinho
Sebastião e responsável pela expansão do Santo Daime para fora dos limites amazônicos.
Oriundo da região do Alto Juruá, Sebastião Mota cresceu dentro da floresta e, por
muito tempo, assim como Irineu, trabalhou voltado para a produção de látex dentro da
Amazônia. Contudo, diferentemente de Mestre Irineu, ele teve contato com a doutrina
75
Os vegetalistas são curandeiros, curadores de populações rurais localizadas no Peru e na Colômbia, que
dispõem e mantém elementos dos conhecimentos antigos, advindos dos indígenas, sobre as plantas. Para um
melhor detalhamento e conhecimento de suas práticas ver Luna (1986) e Labate (2011).
65
espírita, antes de se vincular ao Santo Daime, participando de trabalhos com banca espírita,
de mesa e atuação, onde recebia o espírito de um médium cirurgião chamado Dr. Bezerra de
Menezes (FRÓES, 1986; MORTIMER, 2000).
Certa vez, uma doença atingiu Sebastião Mota com uma força estrondosa. Assim, saiu
a procura de médicos e centros espíritas para dar um ponto final ao mal que o afligia. Porém,
nada disso conseguiu dar um basta ao mal estar. Mas, aos poucos, através de conversas
informais, foi descobrindo um certo centro em Rio Branco, onde havia uma pessoa com fama
de curador. Esta pessoa era Raimundo Irineu Serra e foi justamente para lá que Sebastião
rumou-se com o intuito de procurar sua cura através do chá sagrado (MORTIMER, 2000).
O primeiro contato entre os dois ocorreu da seguinte maneira:
Sebastião já estava mais do que curioso para ver o homem. Quando finalmente se
encontrou na sua presença, sentiu-se pequeno frente aquele negro de dois metros e
alguns centímetros de altura. [...] Tinha setenta e dois anos e irradiava cordialidade.
Não tinha aparência de velho. A cada instante chegava uma pessoa a pedir-lhe
benção. [...] Atencioso como de costume o Mestre Irineu ouviu Sebastião Mota de
Melo contando seu caso, dizendo-se doente e dando em poucas palavras um
panorama geral da situação. Terminados os relatos, ele fez apenas uma pergunta:
“você é um homem de verdade? Acredito que sim, disse Sebastião, já sou pai de
muitos filhos e nunca faltei meus compromissos. “Pois então”, retrucou o Mestre,
“vai com os outros, entre na fila e tome o Santo Daime que é o nosso remédio.
Depois do trabalho você me procura para dizer o resultado” (MORTIMER, Lúcio,
2000, p. 55).
Após o diálogo com Mestre Irineu, Sebastião foi tomar o daime e, durante o trabalho,
uma experiência extática muito forte acabou por mudar os rumos de sua vida material e
espiritual. Sebastião, em certo momento, desmaiou. Logo após, assistiu, a partir de uma ótica
externa a si próprio, seu corpo ser, literalmente, aberto e “limpo” por uma equipe de
médicos.76 A partir disso, começa sua jornada no Santo Daime, com duração até o fim de sua
vida, em 1990.
Rapidamente, Sebastião se tornou um membro assíduo, juntamente com seus filhos
Alfredo Gregório de Melo, Valdete, e sua esposa Rita, nos trabalhos realizados por Mestre
Irineu. Logo, recebeu a permissão para começar trabalhos espirituais e fazer seu próprio
daime no lugar onde residia, a Colônia Cinco Mil em Rio Branco, Acre (MORTIMER, 2000).
Em pouco tempo, começou a receber hinos 77 e, em um específico, ele começa a se afirmar
enquanto uma liderança dessa formação religiosa.
76
Para maiores informações acerca desta experiência ver Groisman (1999) ou Mortimer (2000).
77
Os hinos, devido a forma de seu recebimento, ou seja, advindos de um contato extra material com o astral,
assumem, para os daimistas, o caráter de verdade revelada. Isto é, uma vez reconhecido pelo grupo como um
autêntico, o hino se transfigura em uma espécie de guia de princípios e condutas.
66
Mas, como diz o ditado, “nem tudo são flores”. A rápida inserção e destaque de
Sebastião Mota acabou por causar tensões internas dentro do grupo, visto que, em relação a
diversos membros do Alto Santo, ele era um novato. Mas, com seu caráter carismático e de
liderança incontestável, Mestre Irineu controlava com sucesso a situação de iminente
conflito. Contudo, após a morte de Irineu Serra, a primeira grande quebra, causando um abalo
nas relações comunitárias do grupo, veio a se estabelecer, devido à falta da força
estruturadora do seu fundador original.
A liderança ficou com Leôncio Gomes, filho de Antônio Gomes, um dos daimistas de
maior destaque dentro da primeira geração. Entretanto, o apoio ao novo dirigente não era
compartilhado por todos. Em contra partida, Sebastião contava com a aceitação de diversos
outros membros da casa e continuava a realizar alguns trabalhos de daime em sua residência,
em outras palavras, “Sebastião Mota já aglutinava em torno de si um grupo de pessoas que o
viam como uma espécie de líder, como alguém capaz de organizá-los e suprir as suas
carências” (GOULART, 1996, p. 31).
É em 1974 que a ruptura se concretiza. De acordo com Fróes (1986) e Mortimer
(2000), o fato aconteceu devido a negação de Leôncio em usar a bebida preparada por
Sebastião na Colônia Cinco Mil, defendendo o monopólio do feitio do daime para os que a
faziam no Alto Santo. Ambos os autores e Goulart (1996), concordam em apontar o hino,
recebido por Sebastião – Levanto essa bandeira – como uma espécie de legitimação da
separação. Assim, mais uma vez, observamos o hino exercendo uma função cristalizadora e
legitimadora – exatamente devido ao seu caráter de verdade incontestável – para ditar a
tomada de decisões e práticas cotidianas. Devemos entender o fato de no conteúdo do hino
estarem presentes as instruções e conselhos para a conduta dos fiéis, sendo neles ilustradas as
visões de mundo daimista (LABATE; PACHECO, 2009).
78
Padrinho Sebastião, O Justiceiro, hino 28.
67
79
Nós precisamos de paz e não precisamos de guerra.
Além dessa questão pela “disputa do poder”, podemos tentar enxergar um sentido
mais místico acerca da mudança de ares feita por Sebastião Mota. De acordo com Rehen
(2013), Sebastião Mota teria contato frequente com “a Rainha da Floresta, aquilatando a
doutrina, o que seria inteiramente oposto à ideia de “dissidência. Assim, [...] o Padrinho
passou a receber as instruções divinas na posição de chefe espiritual” (REHEN, 2013, p. 35).
Continuando, ainda baseado em Rehen (2013), acreditava-se que o próprio Mestre Irineu
falava com Sebastião Mota, em espírito, “legitimando, guiando e apoiando suas decisões, o
que é perceptível nas letras de parte fundamental dos 182 hinos que compõem as duas
coletâneas de hinos recebidos por Sebastião Mota” (REHEN, 2013, p. 35).
Pensando nos termos de Groisman (1991), o aspecto místico religioso para
legitimação de Sebastião Mota é ainda mais amplo. Além do seu hinário, como demonstra
Rehen (2013), elencar a figura de Mestre Irineu – o Chefe Império Juramidam, a segunda
vinda do Cristo (GOULART, 1996) – a cura recebida por Sebastião é central. Logo, além dos
hinos, “o caráter da cura que recebeu da “Espiritualidade”, constituem-se sinais fundamentais
para a elevação de Sebastião Mota Melo à líder espiritual” (GROISMAN, 1991, p. 41).
Um relato, de um adepto do Santo Daime, introduzido por Goulart (1996) é
importante para pensar a questão:
Sobre a fala do adepto, Goulart (1996) salienta pontos fulcrais para pensarmos a
legitimidade alcançada por Sebastião Mota. Em primeiro lugar, a autora aponta o fato da
ligação entre Irineu Serra e Sebastiao Mota ser mobilizada não apenas para legitimar a
liderança do Padrinho Sebastião, mas, “sobretudo para comprovar que o padrinho possuía
uma “missão” maior, estando “destinado” a guiar-se e a “escolher” um povo” (GOULART,
79
Padrinho Sebastião, op. cit., hino 89.
68
1996, p. 194). Já a condição sagrada de Sebastião é promulgada por Irineu Serra, entendido,
através do hino relatado, como o próprio Cristo, pois, no relato, “o Cristo, o daime, o Mestre,
que é tudo uma coisa só”. Sobre isso, Goulart (1996), afirma que “o Mestre e o Cristo são o
“mesmo espírito”. Por outro lado, o padrinho Sebastião é visto como o filho de Isabel, ou
seja, como São João Batista” (GOULART, 1996, p. 194).
É interessante perceber a centralidade dos hinos nestas passagens. A interlocutora de
Sandra Goulart (1996) vai buscar a legitimidade do Padrinho Sebastião pelos hinos por ele
recebidos. Luna (1986) argumenta que para os xamãs qualquer cântico seria resultado da
identificação entre uma planta, ou um animal, e o seu receptor. Assim, o xamã, quando canta
suas músicas ritualmente passa a enxergar o mundo a partir do ponto de vista daquela planta
ou animal que o ensinou. Não seria aqui o caso, pensando nos deslocamentos de ponto de
vista trabalhados no primeiro capítulo, de Sebastião Mota estar afirmando sua liderança
porque a própria planta – enquanto um ser divino onde estaria o Mestre Irineu – o deixou
fazer? Creio que sim. Dessa forma, é válido afirmar que Sebastião Mota posta sua liderança
não só através de disputas pelo poder, materialmente falando, mas, sim, através de um viés
místico, legitimado pelos seus hinos e também por sua cura obtida através do daime.
Prosseguindo, é através de uma “mensagem do astral” que Sebastião decide buscar
novos horizontes. Em princípio, organizou uma igreja na própria Colônia Cinco Mil, junto
com sua família e fardados advindos do Alto Santo, favoráveis à sua liderança. Era o
primeiro passo da ação que teria como consequência a saída, anos depois, do Santo Daime do
eixo amazônico, ampliando sua área de influência para o resto do Brasil e, posteriormente,
para a cena internacional. 80
Sebastião Mota se empenhava para estruturar e mobilizar a comunidade com uma
base essencialmente comunitária, com um modus operandi voltado aos valores e morais,
fundamentalmente cristãos, que sustentavam a formação religiosa do Santo Daime
(FERREIRA, 2008; MORTIMER, 2000). No começo, uniram-se 25 colônias, formando uma
propriedade de 380 hectares, onde o fruto do trabalho realizado era partilhado por todos os
membros ali presentes.
Com o passar do tempo, os trabalhos espirituais realizados por Sebastião Mota
começaram a ecoar em todo o município de Rio Branco, Acre. Em consequência, houve um
aumento no fluxo de pessoas que buscavam uma solução para seus males, mas, outros vieram
atraídos por uma proposta de vida comunitária, isto é, enxergando aquilo com uma fuga da
80
Para informações mais detalhadas acerca da expansão do Santo Daime para outros países, os trabalhos de
Balzer (2002), Rehen (2011), Assis (2013) e Assis e Labate (2014) se constituem como boas referências.
69
81
Soares (1986) grifa esse tipo de indivíduo enquanto um andarilho. Melhor dizendo, é corriqueiro o
deslocamento físico fixo para a procura de diferentes formas de trabalhar a espiritualidade, com o intuito de
sempre requintar a experiência mística. Logo, suas devoções e crenças rituais possuem uma característica
experimental. As categorias de energia e trabalho são, entre eles, a moeda corrente, o equivalente universal, a
medida comum (SOARES, 1986).
70
Ou:
82
Estatuto Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal. Disponível em:
https://www.google.com.br/search?q=Nossa+Igreja%2C+tamb%C3%A9m+denominada+de+Centro%2C+pratic
a+o+culto+da+Fluente+Luz+Universal.+Centro%2C+significando+o+ambiente%2C+a+egr%C3%B3gora%2C&oq
=Nossa+Igreja%2C+tamb%C3%A9m+denominada+de+Centro%2C+pratica+o+culto+da+Fluente+Luz+Universal.
+Centro%2C+significando+o+ambiente%2C+a+egr%C3%B3gora%2C&aqs=chrome..69i57.311j0j4&sourceid=chr
ome&es_sm=122&ie=UTF-8#. Acesso em: 03/12/2015. O Cefluris, de acordo com seu site
http://www.iceflu.org.br, produziu seu estatuto em 1989.
83
Padrinho Alfredo, O Cruzeirinho, hino 126.
84
Mestre Irineu, O Cruzeiro, hino 29.
71
Éramos sete na canoa. Eu era a única mulher. Além do rapaz que viajava comigo
desde Porto Velho, havia mais dois cariocas. Um deles, um rapaz de uns 28 anos
começou a conversar comigo. Ele dizia que o Daime despertava nele uma “ligação
com a natureza”. Já nos primeiros contatos com a doutrina, ele começou a sentir a
presença, nos rituais, dos “seres da natureza”. Isto permitiu que ele se envolvesse
mais rapidamente com o Daime. Pois ele percebeu que a doutrina daimista “não era
um conjunto de dogmas, mas se baseava em princípios verdadeiros, que vinham do
mundo natural”. Agora, ali, naquela pequena canoa, sem “os aparatos da
civilização”, ele sentia toda a força da natureza. “Era o chamado do Daime” que, ao
mesmo tempo, “era o chamado da natureza” (GOULART, Sandra. 1996, p. 36-37).
Nem coração, nem razão: pulsa, lá, no interior sombrio e imperscrutável da selva,
algo que é vivo e se manifesta por excessos, é fonte inesgotável de vida e
permanente ameaça de aniquilamento e morte, algo que é irredutível e
irremediavelmente outro, exterior, distante e também central, intimo, próximo,
presente; enfim, algo que, na topologia simbólica da nação, ocupa o lugar do
inconsciente ou, talvez mais precisamente, do Id, do Isso, no modelo freudiano da
alma humana. (SOARES, 1990, p. 272-273).
85
Por nova consciência religiosa, deve-se, nos termos do autor, entender um tipo de ressurgimento do encanto
por práticas alternativas e esotéricas, presente no meio urbano, por parte das classes médias intelectualizadas.
73
CAPÍTULO 3
O DESPERTAR DO DAIME
86
Foram feitas, durante o período da pesquisa, entrevistas em profundidades com sete membros do Céu do
Gamarra.
74
escala” (REHEN, 2011, p. 39). Diversos são os exemplos de pessoas que realizaram tal
itinerário, rumo ao Céu do Mapiá, e depois vieram a fundar igrejas, em outros locais do
Brasil, cujo auxílio a difusão do Santo Daime, para fora do círculo da floresta, foi de grande
importância.
O carioca Paulo Roberto, psicólogo, foi pioneiro (REHEN, 2011). Ao comprar um
terreno em São Conrado, no Rio de Janeiro, “em conjunto com outros adeptos [...]
construíram uma pequena igreja de madeira em pleno Rio de Janeiro” (REHEN, 2011, p. 39).
Outros, também, são vanguarda no processo de expansão, por exemplo: Marco Imperial,
dirigente da igreja Rainha do Mar, cuja localização é, igualmente, no Rio de Janeiro, mas, em
Pedra de Guaratiba; Guilherme França, comandante da igreja sediada em Aiuruoca, no estado
de Minas Gerais; Alex Polari de Alverga 87, responsável por fundar o Céu da Montanha, em
Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro; e, o antropólogo, Fernando La Roque Couto, agente
ativo da fundação do Céu do Planalto, localizado em Brasília. Groisman (1991) e Macrae
(1992), salientam o nascimento de centros daimistas também em: Friburgo, Rio de Janeiro;
Brasília, Distrito Federal; Belo Horizonte, Santa Luzia e Caxambu88, Minas Gerais;
Florianópolis, Santa Catarina; e, em São Paulo capital.
Posicionada dentro deste caldeirão de formação de novas igrejas, ou melhor, inserida
nesta segunda geração de centros daimistas, está o Céu do Gamarra, fundado pelo casal Fábio
e Suzana, em meados da década de 1980.89 A igreja se constitui, juridicamente, enquanto a
entidade Ceflugg90, embora tenha sido dada por Sebastião Mota, ou Padrinho Sebastião,
considerado uma figura central no Cefluris.
Agora, com o intuito de situar, historicamente, a formação do Céu do Gamarra,
demonstrarei como foram trilhados os caminhos de construção de tal centro religioso. Para
isso, o trabalho de Ferreira (2008), assim como informações obtidas através das entrevistas,
são referências primordiais.
87
Alex Polari é hoje um dos dirigentes do Cefluris. Para mais informações ver:
http://www.santodaime.org/origens/alex.htm (Acesso em 15/02/2016).
88
Aqui, creio em um pequeno descuido de Edward Macrae e Alberto Groisman. Muito provavelmente, ambos,
estariam se referindo ao Céu do Gamarra, pelo fato dos dirigentes da igreja, na época, residirem em Caxambu e,
também, por este centro ser a primeira igreja vinculada ao Santo Daime do sul de Minas Gerais. Todavia, a
igreja se localiza no município vizinho, isto é, Baependi, mais precisamente no vale do Gamarra. Hoje, o
Padrinho Fábio Pedalino e a Madrinha Suzana Pedalino residem exatamente no espaço do Céu do Gamarra, ou
seja, não mais em Caxambu.
89
Em 2015, o Céu do Gamarra comemorou seu aniversário de 28 anos no mês de setembro.
90
Centro Eclético da Fluente Luz Universal Germano Guilherme. De acordo com Ferreira (2008), a não filiação
ao Cefluris não é reflexo de alguma discordância ritual ou doutrinária. O Cefluris enxerga a igreja como
legítima, não tendo nenhum problema com sua direção. O motivo maior da não filiação é o fato do Céu do
Gamarra ser autossuficiente na produção do daime.
75
Silva. Quanto a opção do casal por uma pertença dentro da doutrina, através do fardamento,91
podemos pensar nos moldes de Soares (1990), logo, entender o Santo Daime enquanto um
ponto de inflexão, dentro do campo da nova consciência religiosa, vista a suspensão “do
trânsito incessante” (SOARES, 1990, p. 298), possivelmente transformando em
“engajamento formal: batismo ou ‘fardamento’” (SOARES, 1990, p. 267).
Paralelo ao estreitamento dos vínculos do casal com a doutrina do Santo Daime, o
Céu do Mar recebeu uma visita ilustre. O Padrinho Sebastião fez as malas e rumou-se para o
Rio de Janeiro, à procura de tratamento médico pela idade e por problemas de saúde. 92 Era a
primeira vez que o seringueiro, agora líder espiritual, saía dos confins da floresta amazônica.
Sua saída, muito condicionada pela sua posição de Padrinho, conferia a Sebastião uma
facilidade mais ampla de acesso as oportunidades de tratamento, vinculadas a uma medicina
científica. Conjuntura contrária aquela da época, onde era apenas um seringueiro. Como a
igreja ainda estava em seu início, ocorreu um verdadeiro mutirão para acolher, de forma
agradável, o Padrinho Sebastião e sua família.
Ao casal Pedalino coube zelar pelo bem estar do Padrinho Sebastião, e de sua família,
se colocando disponíveis para qualquer solicitação. Pouco a pouco, as relações, entre os três,
foram se tornando cada vez mais próximas. Em determinado momento, Sebastião Mota
convidou Fábio e Suzana para um trabalho espiritual, feito excepcionalmente para os dois.
Tal trabalho, contou com mais nove pessoas selecionadas apenas para dar suporte ao ritual.
Após se servirem de um copo grande e cheio de daime, ambos, passaram pelas mesmas
experiências extáticas, sob o comando do Padrinho Sebastião, que, também, de acordo nossos
interlocutores, presenciava exatamente o mesmo estado de consciência.
Labate (2004) aponta a miração como um “meio de revelação espiritual” (LABATE,
2004, p. 116). O Padrinho Sebastião, enquanto líder espiritual, sob o efeito da bebida,
mostrou para o casal, também sob o mesmo efeito, “toda a história do Santo Daime e o que o
futuro reservava para o Rio de Janeiro, quando ela viu ondas enormes inundando a cidade”
(FERREIRA, 2008, p. 40). Albuquerque (2007) explica a miração como sendo um estado de
expansão da consciência. Logo, o indivíduo, sob o efeito do chá, pode vir a ter visões de
cores mais intensas, contatos com seres extra materiais e insights para a vida cotidiana,
91
Durante um diálogo, ao final de um trabalho, o Padrinho Fábio me disse que já havia passado por algumas
religiões, antes de conhecer o Santo Daime. Tal fato, possuí extrema consonância com os postulados, acima
explicitados, de Soares (1989; 1990).
92
Para uma maior compreensão dos motivos que levaram Sebastião Mota a viajar para o sudeste, ver Bença
Padrinho! (MORTIMER, 2000).
77
a feitura da bebida sagrada; e, também, a inexperiência para o manejo das relações sociais
constituídas em uma comunidade religiosa que, por vezes, são complexas e conflitantes.
Em 13 de setembro de 1987 foi fundada a igreja, no local desejado primeiramente, ou
melhor, onde o casal obtinha uma propriedade rural. Trata-se do município de Baependi,
localizado no sul de Minas Gerais. Em um primeiro momento, o novo núcleo daimista
funcionou, provisoriamente, no centro da cidade. Com o desenrolar dos atos, foi se
constituindo um grupo de fardados, ainda em número reduzido, mas interessados na dinâmica
espiritual do grupo.
A propriedade rural do casal se localizava a cerca de 40 km do centro de Baependi. A
dificuldade para se chegar ao local era enorme, dado o ambiente inóspito de uma estrada de
terra não tão bem cuidada.93 Contudo, pela beleza, e pelo fato de Sebastião Mota ter visto o
lugar em uma viagem astral, as intempéries para a fixação da nova igreja foram vencidas.
Neste ponto, é interessante perceber, mais uma vez, a miração exercendo papel
central. Soares (1990) interpreta a doutrina, através do jogo de imagens da miração, sendo –
exatamente pela sua flexibilidade e abertura – reconstruída e alcançada, pelo que entendem
ser, a via da graça divina (SOARES, 1990). Isto posto, sendo a planta – em conjunto com o
merecimento – os responsáveis pelo o que a pessoa “vê” e quando “vê”, juntamente com a
ocorrência de Sebastião Mota ter enxergado o local, do Céu do Gamarra, em uma miração, e
a doutrina ser “revelada e misticamente investigada pela e como visão” (SOARES, 1990, p.
268, grifo do autor), podemos afirmar a fixação do local escolhido advindo do contato com
realidades extra materiais, isto é, outros mundos possíveis. É importante observar o Santo
Daime operacionalizando o acesso ao conhecimento, em termos de deslocamentos de
perspectivas, pois, o Padrinho Sebastião, através do contato com a planta, em sua viagem
astral – em comunicação com o outro mundo – obteve o conhecimento, durante a miração,
para o local ideal da edificação do Céu do Gamarra.
Mesmo com variados contratempos, após dois anos, o sonho da sede fixa se tornou
realidade. Atualmente, o número de fardados e de participantes ativos, nos rituais da igreja,
gira em torno de trinta a cinquenta pessoas. 94 A igreja também passou por um movimento de
93
Hoje, a estrada está em melhores condições, facilitando o acesso.
94
De fato, existem alguns trabalhos onde o número de pessoas é maior do que em outros. Há também o
problema de diversos fardados não residirem na região, refletindo de forma direta, ou indireta, na frequência dos
mesmos. Porém, a igreja, por ser um núcleo reconhecido na região, recebe alguns visitantes, nos rituais, o que
acaba por aumentar, um pouco, o número de pessoas em determinadas sessões.
79
expansão, para além de suas fronteiras originais, com a edificação de um núcleo situado em
Varginha, Minas Gerais; e, outro em São Carlos, no estado de São Paulo 95.
95
Em maio de 2013, membros da igreja realizaram um trabalho, com o intuito de começar um novo ponto do
Santo Daime ligado ao Céu do Gamarra, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Contudo, houve apenas uma
sessão, devido a uma gama de fatores que dificultam a criação de um novo núcleo. Mas, Juiz de Fora já conta
com duas igrejas, vinculadas ao Cefluris, localizadas no bairro Floresta. Uma delas foi pesquisada por Silveira
(2007), sobre o viés da experiência do êxtase místico-religioso.
80
[...] parece forte, atraente e sedutor; mantém dialogo com tradições teológicas,
apesar da assumida filiação ao cristianismo, com as incertezas do tempo, com as
fragilidades e os grandes sonhos humanos; além disso, opera no registro sensível,
facultando uma experiência extática de tipo muito particular e significativamente
sintonizada com o estoque conhecido de vivencias das gerações que ousaram
alterar, por meios artificiais, o fluxo da consciência, no afã de buscar, entre outros
96
Concordando com Soares (1989; 1990), o mundo “alternativo”, da nova consciência religiosa, é
extremamente marcado pelo nomadismo religioso, místico e simbólico. Logo, o traço distintivo, da nova
consciência religiosa, seria o fato de determinar uma relação extremamente particular “com as religiões, no
plural – com a religiosidade” (SOARES, 1989, p. 138, grifo do autor).
82
Pra mim os hinos são isso. É tipo um manual de instruções para o divino. No caso,
pra você encontrar a centelha divina que existe dentro de você, despertar o seu
melhor e trazer essa contribuição do seu eu divino para o mundo, para a sociedade,
pro seu trabalho. Eu acredito muito nisso.
Na verdade eu já tinha uma busca espiritual, já tinha isso assim dentro de mim lá
em Salvador mesmo. Daí conheci a minha esposa na Bahia e ela estudava na
Unicamp. Então, eu sai de Salvador e fui para Campinas. E, na verdade, o Padrinho
Fábio resolveu fazer um trabalho em Campinas na república de um dos membros do
Céu do Gamarra. Como eu estava lá, eu fui. Nessa época estava em Campinas e fui
nesse trabalho na república. Quando fiz esse primeiro trabalho já me identifiquei
total, que era uma questão musical e ainda mais uma questão crística, era uma
doutrina cristã, que era uma coisa que eu sempre tive em mim, já buscava, aí
encontrei. Daí, eu já vim para o Gamarra, para o sul de Minas, já mudei para o
Gamarra direto. Aí o Fábio me arrumou uma fazenda lá em cima, a fazenda Lua
Nova que a gente chamava. E aí eu já fiquei pra cá, pro sul de Minas. Aí minha
esposa ficou grávida e eu voltei para Campinas e depois nos mudamos para
Caxambu. Mas, minha família toda, eu, minha esposa, e meus filhos, foi toda
fundada dentro da doutrina.
97
Lótus é a única não fardada deste grupo. Porém, frequenta os rituais do Santo Daime e afirma “eu nunca fiz
um trabalho que eu pensei em não voltar”.
86
Aqui, é perceptível aquela característica do Santo Daime que Soares (1990) alertou.
Isto é, o Santo Daime conclama a suspensão mística. Lírio já tinha uma busca espiritual,
desde os tempos quando morava em Salvador. Contudo, com a experiência, proporcionada
pelo daime, ele suspende a sua busca, ou melhor, se depara com o seu “encontro”. Assim, “o
daime inverte as expectativas e conclama a uma parada protoinstitucionalizante ou
protorotinizante, a uma suspensão da circulação mística [...]” (SOARES, 1990, p. 267-268).
Como explicação para a sua suspensão, Lírio expõe:
Eu acho que o daime ele desperta uma consciência cristã que completou a minha
busca espiritual. Agora dentro dessa doutrina você tem um crescimento que vai
demorar a sua vida inteira. Mas, eu digo assim, minha família toda prosperou dentro
da doutrina. Então eu me mantive aqui por conta disso. Agora o que me fez mudar
foi a minha esposa e eu ter encontrado meu caminho espiritual no daime. O daime
completou minha busca espiritual.
O despertar98 do daime, desse modo, foi também fundamental para traçar a trajetória
de Lírio. Ao mesmo tempo, o leitor pode perceber, nas falas de meu interlocutor, a
centralidade da família e do casamento. Tais valores são relevantes no meio daimista. Rehen
(2007b) atenta para o fato de, através do daime, “toda essa mudança de padrões e ideais teria
como reflexo o redimensionamento de ideias sobre família, profissão, política, educação,
identidade e corpo” (REHEN, 2007b, p. 51). Similarmente, Soares (1990) introduz a ideia
que, no meio “alternativo” da nova consciência religiosa – local onde o Santo Daime fascina,
encanta e recruta – posturas rebeldes, antes valorizadas, entram em declínio, em
contraposição a valores previamente considerados tradicionais. Então, o que ocorre nessa
troca de valores é, como observa Camurça (1990), o Santo Daime operacionalizando a
tentativa de reestabelecer uma ordem da tradição, mas, também, tocando um valor da
modernidade e procurando ordenar as disfunções do sistema moderno. Portanto, “a
reestruturação que o daime opera está ainda no campo da modernidade” (CAMURÇA, 1990,
p. 25).
O crescimento gradual, ao qual Lírio se refere, pode ser pensando da seguinte
maneira: a demora de uma vida inteira para o crescimento, dentro da doutrina, está
relacionado ao que disse sobre a perspectiva da planta. Destarte, a planta, ao prover a
possibilidade do adepto “ver” o mundo espiritual e, consequentemente, aprender com ele,
somente faz este movimento de acordo com o status do merecimento individual. Dito de
outra maneira, a própria planta baliza a experiência de contato com o sagrado, mediado pelo
98
Adiante, tentarei explorar como o despertar do daime se manifesta através do deslocamento de ponto de vista.
87
julgamento do merecimento, nos termos que ela quer, quando quer e da forma por ela
estabelecida.
Levando em consideração, também, o aspecto da miração, da doutrina ser investigada,
pelo indivíduo pela e como visão (SOARES, 1990), o crescimento há de se prolongar ao resto
da vida, pois, ao restituir sentido às suas mirações, o adepto estará fazendo isto à luz da
cosmologia inserida pelo Santo Daime. Por conseguinte, o revigoramento do idioma
religioso, oferecido pelo Santo Daime, faz o fiel interpretar suas mirações através da
cosmologia doutrinária, tendo como resultante o prolongamento do crescimento dentro da
doutrina.
Prosseguindo, Sol nos demonstra a maneira como ele conheceu a doutrina do Santo
Daime:
Similar a Lírio, Sol também já possuía, em sua vida, a presença de uma busca
espiritual. Fato que demonstra, mais uma vez, a errância e o experimentalismo dando os tons
à natureza das relações entre estes indivíduos e suas práticas religiosas anteriores ao Santo
Daime. Vejamos as experiências de Sol:
Eu fui batizado na igreja Católica, fiz primeira comunhão, depois crisma, na igreja
Católica, e fui para um retiro espiritual católico. Foi por volta de 92, eu acho. Ai
depois, nesse retiro, eu gostei muito da energia, foi uma coisa muito forte assim.
Mas, eu vi uns radicalismos, por exemplo, ‘troque sua camiseta de rock por um
amuleto espiritual’. Eu tinha uma banda punk na época e aquilo me espantou. Ai eu
cai em reflexão. Depois eu fui fazer ensino médio e fiquei ateu um tempo, depois
agnóstico. Busquei o espiritismo, achei muito legal a cosmologia espírita, toda a
parte de organização da religião espírita, porém não gostei muito. Ai fiquei vagando
um tempo, meio agnóstico, mas acreditando em Cristo. Por eu estar estudando
história fiquei um pouco afastado de Jesus Cristo, mas, na verdade eu fui entender
99
O nome do professor foi alterado para preservar sua identidade, assim como todos os outros que aparecerão
nas falas de meus interlocutores.
88
depois que o que me afastava era a igreja Católica e não o Cristo. Ai depois eu vim
a conhecer o Santo Daime e foi uma coisa muito forte. Eu sempre tive uma vontade,
mais depois que eu comecei a estudar povos tradicionais, de ter uma vida marcada
mais ritualisticamente. Eu comecei a ver os índios, achei aquilo legal e por achar
legal eu comecei a desejar aquilo pra mim. Ai apareceu o daime e casou tudo.
Todas as peças desencaixadas se encaixaram no quebra cabeça e montou. E aí eu
sou músico também, percursionista, e aí a musicalidade do daime foi o anzol que
me pegou muito forte. Claro que tem a parte espiritual, desenvolvimento, mas a
musicalidade, envolvida com tudo isso, foi muito forte, a ponto de eu ver meus
braços estarem tocando o instrumento e eu assistindo de fora tudo aquilo.
Fica clara a busca de Sol por uma realidade espiritual. De católico a ateu, de espírita a
agnóstico, ele foi suspender sua procura justamente no Santo Daime. Goulart (1996) aponta a
doutrina do Santo Daime detentora da força de livrar o sujeito “do trágico destino da eterna
ausência de rumo, ao qual uma geração inteira parecia estar fadada” (GOULART, 1996, p.
205). Sol também afirma o caráter marcante da miração, ao perceber seus braços tocando o
instrumento enquanto assistia tudo “de fora”. Assistir tudo de fora pode parecer a um leitor –
que não tenha contato com o Santo Daime – algo como uma alucinação. Contudo, alucinação
não se configura enquanto um tratamento adequado para a questão. Este estado de
consciência, advindo da miração, segue a um impulso de ruptura com o cotidiano. Assim,
está em relação a dicotomia dos mundos inserida pelo Santo Daime. Ou seja, o mundo
material seria o mundo de “ilusão”, em contraponto, o mundo espiritual, “a realidade”. Logo,
tudo que acontece no ritual – as mirações, as visões, as sensações – são obtidas através de um
contato com o mundo espiritual, o mundo da “realidade”, o outro mundo possível.
Além disso, os daimistas, referenciando o daime, “o identificam mais propriamente
como um ‘ser divino’” (GROISMAN, 1991, p. 172), ou como Flor discorre: “aquele liquido
é um ser, não é uma bebida. É um ser, é o Santo Daime”. Isto posto, a interpretação não é
correlacionada a existência de algo com traços alucinatórios. Similarmente, Groisman (1992)
afirma que compreender o daime enquanto um alucinógeno acaba por produzir um equívoco
semântico e conceitual. Semântico, pelo fato de não corresponder a maneira como aquele
grupo entende a substância, e, conceitual, pelo motivo de, ao denominar a planta enquanto
alucinógena, se reduzir bruscamente o entendimento dos efeitos provocados em quem a
ingere.
Sol grifa a musicalidade como sendo acentuada no Santo Daime. Envolvida com a
parte espiritual, para nosso interlocutor, a música é central no Santo Daime. Apreendendo, tal
qual Labate e Pacheco (2009), a música enquanto a “‘mais abstrata’ das artes, por outro lado,
ela só pode ser entendida na cultura enquanto processo cultural, como produto da interação
entre seres humanos” (LABATE; PACHECO, 2009, p. 103). Sendo assim, conceber a
89
música, dentro do universo do Santo Daime, é compreende-la como um estímulo que conduz
a experiência, guiando “o sujeito extático durante a sua excursão psíquica” (LABATE;
PACHECO, 2009, p. 103). Por isso, o hino é considerado um manual de instruções para o
divino, pois ele, conjuntamente à ação da planta, tem a capacidade de despertar a consciência
do daimista.
Ainda, Rehen (2007b) acredita que a experiência mística do Santo Daime, embora
muito fundada pelo teor das visões provocadas pela bebida, esteja baseada em uma percepção
auditiva da realidade “devido à centralidade dos hinos e aos efeitos psicotrópicos também
ligados ao campo da audição, e na relação entre as mensagens musicadas e as imagens
visualizadas pelos crentes” (REHEN, 2007b, p. 124). O estímulo auditivo é ressaltado por
Lua: “a música foi uma coisa muito forte no meu encantamento, que depois virou paixão,
pelo Santo Daime”. Logo, o hino representa uma ponte ritual (GROISMAN, 1999) que liga
as forças do cosmos e estrutura, ou organiza, o ritual de acordo com o seu conteúdo. Vejamos
sua centralidade através de uma estrofe do hino “O Povo”, do Padrinho Fábio Pedalino: “A
profecia está nos hinos/ Presta atenção vamos guardar/ Pra quando o dia chegar/ Poder cantar
saber louvar”.
Assim sendo, é possível, dessa maneira, perceber a centralidade da música no Santo
Daime, ou melhor, do hino. Deve-se, então, captá-lo como uma força operando, em
consonância com a planta, na capacidade de potencializar a abertura para o mundo espiritual,
sendo tal força a responsável por chamar a atenção de meus interlocutores – Sol e Lua – em
suas experiências.
Continuando, Estrela demonstra os traços de seu contato primórdio com o daime:
O relato de Estrela traz uma dimensão interessante a ser pensada. O fato dela ter
tomado o daime fora do âmbito do Santo Daime e grifar a ideia de que “não foi uma coisa
bem direitinho assim”, atesta para a importância, conforme já assinalei, do controle
doutrinário sobre a experiência com o chá. O proceder “direitinho” pode também estar
vinculado a noção de corrente espiritual. Para os daimistas, a corrente espiritual, enquanto
parte integrante do rito, é um elemento fomentador das performances tanto individuais quanto
coletivas, vista sua capacidade de emergir uma sintonização de forças cósmicas
(GROISMAN, 1999). Portanto, a corrente é o resultado do somatório da composição das
forças espirituais, pessoais e coletivas participantes do ritual. Nas palavras de Groisman:
Seja pelo motivo dos controles ou da corrente espiritual, a fala de Estrela demonstra
uma preocupação acerca da potência de deslocamento da planta, caso não seja
operacionalizada dentro da doutrina, estabelecida em um ritual com forte controle sobre a
experiência.
Dando sequência, Estrela, assim como Lírio e Sol, possuía uma busca espiritual:
Minha família não tinha nenhuma prática religiosa, meus pais são bem materialistas
históricos. Então, não fui criada com nenhuma tradição religiosa. Eu tenho uma
memória, na escola, em uma rodada que a professora perguntou: “o que você acha
que acontece depois quando a gente morre?” Aí eu virei e falei: “a gente vira
adubo”. Era o que eu ouvia em casa. Aí ela me indagou: “mas você não acredita em
nada?”. E eu não acreditava em nada. Aí com uns 14, 15 anos eu comecei a sentir
falta de alguma coisa que eu não sabia o que era. Nessa época, eu tinha amigas
budistas, espíritas, católicas, protestantes, batistas, então foi uma época que eu
comecei a procurar. Eu procurei muito mas não achei nada. E aí na época da
faculdade, ainda não tinha me achado mas sabia que eu me sentia muito bem
próxima da natureza, tinha uma sensação boa que preenchia aquele vazio que
incomoda. Aí na faculdade é a época de experimentarmos muita coisa né e até a
primeira vez que eu tomei daime eu não acreditava em Deus. Aí nessa minha
primeira experiência com o Santo Daime que eu aí: “uau!”. Aí eu que entendi que
você sente Deus e não compreende racionalmente. Foi nessa primeira experiência
que eu tive essa percepção do que era Deus, porque eu gostava tanto da natureza e
porque essas coisas estavam tão vinculadas.
91
Estrela, em sua busca, afirma a sensação de bem estar ao entrar em contato com a
natureza. Goulart (1996) aponta o grupo religioso, liderado por Sebastião Mota de Melo,
valorizando os princípios de igualdade e uma “relação ‘harmônica’ com a natureza,
princípios estes que são apresentados como indícios de um rompimento com as bases da
sociedade moderna ocidental” (GOULART, 1996, p. 205). A antropóloga demonstra o tema
da natureza como sendo, para o daimista do “sul”, um traço extremamente relevante na
arquitetura de seu desenvolvimento espiritual. Portanto, “para os membros das novas igrejas
do Santo Daime a natureza é uma resposta à desordem e à irrealidade que a cultura passou a
encarnar” (GOULART, 1996, p. 218). Sol também discorre sobre a importância da natureza:
Não tem uma vida tranquila na cidade, é um modo de vida totalmente artificial que
não é capaz de proporcionar paz e segurança. Tudo que se diz que lá tem, não tem.
Totalmente distante da natureza, que é uma coisa importante, não tem como mais eu
não estar ligado na natureza. A questão da natureza é muito forte, a questão social
também porque a cidade é o lugar mais fácil de se esconder do mundo inteiro.
Como diz Tom Zé “aglomerada solidão”. Você desaparece na multidão. Isso é um
ponto muito importante, a questão da natureza.
Deus, para Estrela, não é compreendido racionalmente, mas sentido. Esta afirmação
está em consonância com as proposições empreendidas por Soares (1990). Ou seja, o Santo
Daime prescinde de maiores empenhos racionais, de uma maior precisão conceptual,
doutrinária ou teológica, pois, “dispõe desse extraordinário dispositivo de mixagem, de fusão”
(SOARES, 1990, p. 270, grifo do autor). Este dispositivo é o êxtase regulado e induzido que
possibilita, ao adepto, o poder de experienciar “com a visualidade imaginária, com emoção e
os correspondentes ecos fisiológicos, a inteligibilidade do absoluto” (SOARES, 1990, p. 270-
271). Há de dizer, então, que a doutrina não precisa de uma fundamentação teológica rígida,
justamente porque já tem a capacidade sensível do êxtase projetar a experiência sobre quem
participa do ritual.
Ainda sobre suas experiências pessoais, anteriores ao Santo Daime, Estrela diz:
Eu lembro até hoje que eu senti isso no meu primeiro trabalho espiritual e isso me
acompanha até hoje que é esse sentimento de comunhão. Primeiro o sentimento de
plenitude, de ter aquele vazio preenchido e segundo, esse sentimento de comunhão
com as coisas, de ter consciência que eu estou ligada a todos os seres vivos do
universo.
Tal sentimento, de comunhão com todos os seres vivos do universo, de ter o vazio
preenchido e a consciência de ligação com os seres do universo pode ser o “tesouro” ao qual
Camurça (1990) se refere. Isto posto, a experiência sensível do êxtase substitui, para Estrela,
o clamor da revolução social (SOARES, 1990), introduzindo outra forma revolucionária,
imbuída de um sentimento cristão, o amor.
Prosseguindo, Soares (1990) percebe uma insatisfação com as experiências religiosas
vivenciadas na infância e na adolescência. É nesse clima onde Flor e Lótus mostram suas
perambulações, por outras religiões, antes do pouso no Santo Daime. Flor diz:
93
Eu sempre tive ligação com religião, sempre gostei, minha mãe é católica, minha
avó e toda minha família. Só que eu cresci vendo um tanto de coisa que ninguém
via, minha mãe falava que era assombração. Eu sempre fui de ir em todas as igrejas,
aí fui sempre na da minha mãe (católica), batizei, crismei. Fui também na igreja da
minha tia que é evangélica. Aí comecei a ir em outras igrejas pelo que eu via. Via e
não gostava porque via seres, fumaça, se alguém estivesse comigo no momento
também via. Daí comecei a ir no centro espírita e foi bom pra mim, foi uma etapa.
Aí eles começaram a ver que eu era médium mesmo. Só que lá era muito teórico,
eles me ensinavam várias coisas, mas na prática eu ainda continuava com medo. Eu
acho que o centro espírita tem muitos livros, palestras. Eles ensinam muito por esse
lado. Quando a pessoa é médium eles são muito fechados, você tem que mostrar de
muitas maneiras, tem que se dedicar exclusivamente aquilo, lendo várias coisas.
Mas a pratica mesmo não me resolveu. O daime não, você já chega e aprende o lado
prático junto com a teoria. Na primeira vez que fui, me senti diferente, mas nada
anormal. Isso foi em 2008, há sete anos. E desde então eu não vi mais espíritos.
Todas as vezes que eu vi depois que eu tomei daime não foram coisas sem sentido.
Lótus:
Fui na umbanda mas eu era pequena. Não fui com a cabeça que tenho hoje. Não
sabia muitas coisas. A minha prima, a avó dela tem um terreiro, aí eu ia lá pra tomar
passe, mas não sabia de nada. Fui no centro espírita também, mas não sempre, ia só
pra tomar passe também. E fui na católica também, mas católica não praticante. A
diferença, é bem de você ir numa missa e ouvir o padre falar. Sempre saí da missa e
pra falar verdade nunca pensei no que foi. Nunca refleti sobre o que eu ia mudar
depois de uma missa. Já no daime, abriu, mudou completamente tudo de como eu
vejo as coisas, do que eu sou hoje.
As duas daimistas, conforme visto acima, passaram por diversas religiões antes do
Santo Daime. Ambas atestam, mesmo não explicitamente em suas falas, a importância da
experiência sensível, do êxtase no Santo Daime, como forma de conhecimento. Flor posta a
experiência do Santo Daime enquanto uma maneira de aprender a teoria junto com a prática.
Logo, mais uma vez, é o caso do Santo Daime não precisar de um aspecto teológico definido,
pois, o próprio êxtase, a própria planta, com o adepto interpretando suas mirações e sensações
à luz da cosmologia implicada no Santo Daime (SOARES, 1990), é quem concede a
oportunidade de adquirir conhecimento, em contraposição, na fala de Flor, aos livros e
palestras do centro espírita.
Assim, para os adeptos, teoria e prática andam juntas no Santo Daime. A prática é a
experiência sensível, a miração, o êxtase – a teoria é o constante empreendimento de
interpretação do vivido no ritual. Portanto, “a ingestão da bebida e a vivência orientada de
seu efeito compõem o lócus privilegiado de comunicação do sujeito com o poder que habita o
chá, fonte de aprendizado” (MELO, 2011, p. 132). Também, teoria e prática podem ser
pensadas a partir da categoria de trabalho. Categoria central, responsável por inserir duas
frentes: a primeira, a participação no ritual, no trabalho, como fulcral para a obtenção da
94
Uma vez foi em casa, outra na igreja. Uma das coisas que você sente é a força. Não
tem palavras para descrever o que é a força. Ela vai chegando e você vai sentindo,
receber um hino é tipo isso. Você está em um estágio e começa a chegar uma coisa
diferente e você começa a sentir e vai sentindo, vai sentindo e vai se abrindo para
aquilo, ou fechando também. E aí de acordo com o que você vai sentindo, você vai
escutando a melodia, escutando a letra [..] eu já escutei a letra e a melodia juntas, eu
sabia que era um hino do Santo Daime.
Lua:
100
Conforme Goulart (2002) demonstra, qualquer adepto pode vir a receber um hino, contudo, comumente, os
hinos mais cantados e mais valorizados são os das lideranças desta religião. Por isso, o hinário mais importante
da doutrina é o do Mestre Irineu. Um hinário seria um conjunto de hinos.
96
entendimento, também, uma espécie de espaço e tempo histórico para a legitimação dos hinos
enquanto verdades. Em suas palavras:
O leitor, novamente, pode observar a ideia dos hinos, enquanto uma nova Bíblia, por
meio de outro hino:
101
Fábio Pedalino, Hinário do Renascimento, hino 15 (Montanhas do Astral).
102
Fábio Pedalino, Hinário Ancestral, hino 22 (Novo Horizonte).
97
O hino é essencial porque você sente a força para te colocar num campo diferente,
um plano diferente do dia a dia. A partir que você está nesse plano você tem que
aprender alguma coisa sob o efeito da bebida. Os hinos são os ensinamentos
passados para sermos uma pessoa melhor.
Então, a frase de Girassol é bem didática para pensar na proposta. No ritual, o adepto
é alçado a um "plano diferente do dia a dia”. Este plano é justamente o do contato com a
98
realidade espiritual, com o outro mundo possível. Estando lá, o adepto deve procurar
aprender alguma coisa, sendo que esse aprendizado pode ser auxiliado pelo hino. Estrela
ilustra bem este ponto:
É para ter um resultado prático na sua vida, isso para mim é muito importante.
Aplicar na sua vida, no caminho do amor, de você não falar dos seus irmãos, de
você estar sempre se esforçando, buscando a perfeição, estar sempre procurando
aprender, embora não se aprenda muito aprende sempre um bocadinho. Então, pra
mim é um must do. Pra mim não adianta nada tomar daime, cantar os hinos, ai
entende um monte de coisa mas ai volta pro dia a dia e fica falatório da vida dos
outros, não é honesto com seu irmão, não é integro no seu trabalho.
No hino, você tem os ensinamentos cristãos. Porque o Mestre Irineu fala que
replantou as santas doutrinas. Então, na verdade, o que está sendo falado ali são
coisas cristãs, ensinamentos cristãos, que facilitam a pessoa que tem essa busca de
caminhar pelos caminhos de Cristo de exercer essa cristandade, os hinos vão ser
uma forma de facilitar esses ensinamentos.
Lírio continua sua frase assim: “É uma lembrança, um despertar. Na verdade, quando
você toma o daime, você desperta, você sai da ilusão”. Então, o daime tem a capacidade de
tirar o indivíduo da ilusão, de desperta-lo. Logo, algo bem parecido com a formulação que
tenho exposto ao leitor. O daime é quem tem a capacidade de deslocamento, a doutrina seria
o guia para a procedência do deslocamento. E o hino aparece enquanto algo que pode facilitar
o deslocamento, ensinando o adepto a se portar perante o mundo. Mas, além disso, o hino
também, durante o ritual, age em sintonia com a planta para a organização do êxtase, do
deslocamento. Portanto, os hinos “permitem a identificação com a própria divindade, o que é
facilitado pelas modificações na percepção que conduzem a um alargamento dos sentidos
usuais” (LABATE, 2004, p. 237). Daí, sua condição de “manual de instruções para o divino”
vista na exposição de Estrela. Abaixo, o leitor pode visualizar trechos de dois hinos – e um
na íntegra – que demonstram as ideias organizadas neste ponto. O primeiro, diz respeito a
99
saída da ilusão; o segundo, acerca do teor cristão dos ensinamentos do Santo Daime; e, o
terceiro toca em pontos da ação do daime sobre o indivíduo:
Aconselho eu
Os fundamentos da redenção
Esqueçam a religião do mundo
O saber do Vinho é cristão104
Te pego da ilusão
Te trago a miração
Te mostro a verdade
Te jogo lá embaixo
Te levo nas alturas
Te dou as formosuras
Te falo da união
Do coração dos teus irmãos
Da gratidão e esperança
Te afirmo a firmeza
A confiança e o amor
Te mostro também a dor
Sou o daime, um ser divino
O Mestre Juramidam
Que vem para revelar
Todos teus pensamentos
Guardados em teu ser
Liberto teus sentimentos
Só cuide bem de si
E peco para ti
Para que não te enganes
Sou a flor desta doutrina
Te firmes bem em mim
Na luz deste jardim105
Dessa forma, na questão do ritual, podemos conceber o Santo Daime como sendo uma
doutrina musical. Todos os rituais dessa religião – exceto o de concentração, que é feito em
silêncio – são perpassados pela música. Todavia, o leitor deve estar se questionando sobre de
qual forma se procede a ação conjunta dos hinos e do daime no ritual. Em outras palavras,
como o hino ajuda o adepto a “viajar” dentro da doutrina? Ou ainda, de qual maneira o hino
intensifica o contato, operacionalizado pela ingestão da planta, com o mundo espiritual?
Antes, são necessárias algumas pontuações.
A própria percepção dos hinos se manifesta de uma forma diferente para quem já teve
a experiência com a bebida e para quem nunca teve o contato com o daime. Melhor dizendo,
como salienta Almeida (2004), os hinos vistos por alguém de fora podem parecer uma
construção poética simples, contudo, para quem já os sentiu na força do daime, a experiência
de ouvir um hino é completamente diferente. Por isso, considerando a música uma espécie de
arte, é fulcral visualizar o seu entendimento somente na cultura, como fruto da relação entre
os indivíduos. Então, podemos pensar, no caso do ritual do Santo Daime, que não é factível a
separação entre pessoa – corpo –, substância – ayahuasca – e música – hinos (LABATE;
PACHECO, 2009).
A não separação entre estes elementos advém precisamente da operação simultânea
durante o ritual. Isto é, o daime opera, com o auxílio dos hinos, na pessoa, de modo a ensinar
o indivíduo – justamente porque é um ser divino, possuidor de inteligência e personalidade
própria (LUNA, 1986; LABATE, 2004) – a se portar perante a realidade de acordo com os
ensinamentos percebidos nos hinos. Como os hinos são frutos da doutrina; do contato com a
planta na doutrina; entendidos enquanto verdade revelada; podemos inseri-los como o meio
pelo qual a planta passa seus ensinamentos durante a experiência extática.
Isto posto, é importante perceber a própria ação da planta propiciando duas
oportunidades de “conhecer”, em simultâneo. Primeiro, o êxtase, a experiência de entrar em
contato com outra realidade, o poder de experienciar o sagrado. Segundo, a oportunidade de
aprender através das mensagens contidas nos hinos, pois, como alerta Flor: “quando você
está cantando o hino, você está aprendendo”. Obviamente, durante o ritual, tais coisas se
procedem de forma concomitante.
101
Às vezes a gente faz uma oração na cidade, sem tomar daime, e sente a força
também vibrando. Embora seja uma simples oração, poucos hinos, na cidade, o
pessoal está focado no propósito da oração a coisa toca emocionalmente e abre
espiritualmente tanto quanto tivesse tomado daime.
Às vezes eu sinto até a força só de ouvir o hino. Eu acho que é por conta da nossa
memória. A gente sentiu isso uma vez e não vamos mais esquecer. Então, quando
você toma uma vez você muda uma coisa na sua cabeça que é experimentar algo
novo que você nunca havia experimentado. Isso fica na memória, essas sensações
vem e voltam.
Retomando a questão sobre ouvir um hino dentro ou fora do ritual, Estrela, Sol e Lírio
discorrem:
Estrela:
Sol:
É diferente. Tem duas situações em que escutamos hinos fora do trabalho: uma para
estudar e a outra porque a gente está afim de ter uma lembrança, ou precisando tirar
da cabeça coisas que não são legais e focar numa coisa mais explicadora. São duas
situações diferentes. Em todas elas a gente acaba tendo entendimentos, sacações e
insights. Mas, quando a gente escuta ele dentro do trabalho, quando a gente toma
daime, e o daime vai potencializar toda nossa abertura para o mundo espiritual, não
tem como você não estar tendo contato com esse fator inspirador do hino que vai te
levar a essa reflexão. Eu vejo essa diferença. Muitas vezes estudando hinário ou
ouvindo casualmente, que até é uma coisa que a gente não faz muito, você pode vir
a ter um momento, mas tomando daime não tem jeito você está no momento. O
daime e o hinário, os dois se complementam formando o Santo Daime.
102
Lírio:
Logicamente que quando você toma o daime você acessa o mundo espiritual. Então,
esses ensinamentos dentro da espiritualidade, na hora do trabalho, você vai ter um
entendimento grande que talvez você sem ingerir a bebida, na vida normal, você
não consiga perceber o que você percebe ali.
entendimento dos hinos, sendo, estes últimos, advindos, justamente, deste mundo – local este
que a planta concede a possibilidade do adepto perceber.
Então, os hinos são “mensagens do astral” ou um “manual de instruções para o
divino” que, potencializados pela ação da planta, são entendidos enquanto – juntamente com
a ação deslocadora do chá – um meio do adepto estar em contato com o conhecimento dado
pelo Santo Daime. Desta maneira, é através da operação simultânea entre planta, hino,
doutrina e trabalho que o Santo Daime opera seu acesso ao conhecimento.
Até o momento, falei do deslocamento de perspectiva do Santo Daime, talvez, de uma
forma mais teórica. Por isso, nesse momento, se faz necessário apresentar ao leitor dados
etnográficos acerca da questão.
3.2.4 “Tudo que acontece na minha vida é porque eu decidi tomar daime”
está criando o sujeito daimista, formando o adepto, pois, “o ponto de vista cria o sujeito; será
sujeito quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2013, p. 373, grifo do autor). Paralelamente, Lírio atenta para o perigo de
confundir o daime com um simples alucinógeno, dado que a sua experiência demonstrou o
inverso. Para Zuluaga (2002), as mudanças de consciência no indivíduo são, há vários
séculos, entendidas como “perturbações ou patologias e se definem com o termo alucinação”
(ZULUAGA, 2002, p. 130, grifo do autor). Não obstante, tais práticas, ao contrário de uma
mera alucinação, buscariam “uma comunicação com a realidade espiritual, outra realidade, e
uma alteração de consciência para perceber de modo diferente a realidade material”
(ZULUAGA, 2002, p. 131).
Antes do contato com o daime, Lírio se adjetivou como sendo “despirocado”. Em um
de seus hinos – Na Linha do Oriente – surgem afirmações similares: “Foi com fraqueza que
cai neste caminho/ Perdi as minhas asas, deixei de ser um passarinho/ Peço a Jesus que me
torne fortaleza/ Pra reconstruir minhas asas pra voar nesta beleza”. Depois do daime, ele se
vê como adepto dos valores cristãos trazidos pela vivência na doutrina. Goulart (1996)
enfatiza tais valores como “a necessidade de uma transformação ética, a qual implica numa
valorização da vida ultraterrena em detrimento das coisas mais diretamente ligadas a vida
mundana” (GOULART, 1996, p. 173). A decorrência da importância dos valores cristãos no
Santo Daime parte, em um primeiro momento, da própria diferenciação entre o daime e
ayahuasca, conforme demonstra Assis (2013), ou seja, “o daime seria diferente da ayahuasca;
algo consagrado, análogo ao que representa a hóstia para os católicos, consubstanciado no
sangue de Jesus” (ASSIS, 2013, p. 85). O hino “O Mensageiro”, de Fábio Pedalino, explicita
bem o argumento:
106
Fábio Pedalino, Hinário do Renascimento, Hino 28 (O Mensageiro).
105
Então, o Santo Daime fez com Lírio, antes “despirocado”, aquilo que Soares (1990)
alertou, isto é, a neutralização dos desejos. Em contrapartida, o concedeu uma “nova
consciência”, aliada ao modo de como se portar em sociedade, ao entendimento da natureza,
em conjunto com os valores cristãos. Dessa forma, o daime mostrou a Lírio, em suas
palavras, “o que é verdade mesmo”. Mas, como o daime mostra isso? Aqui, aquelas noções
nativas sobre as quais discorri são necessárias.
A planta – o daime –, ao dar o adepto a chance de estabelecer contato com outras
realidades, manobra o deslocamento de perspectiva do indivíduo. A doutrina, na qualidade de
um sistema de valores, baliza esta experiência arriscada de deslocamento, através da noção de
trabalho enquanto algo a ser cumprido. Já o hino, concede a possibilidade da pessoa entrar
em contato direto com os ensinamentos propostos pelo Santo Daime. Então, é por intermédio
das mensagens contidas nos hinos, em ação com o deslocamento de ponto de vista efetuado
pela planta, que o Santo Daime mostra, nas palavras de Lírio, “o que é verdade mesmo”.
Pois, se o hino é entendido enquanto uma verdade revelada, mandada pelo astral, suas
mensagens e ensinamentos também são absorvidas enquanto verdades que devem ser postas
em prática na vida cotidiana. Logo, “o Santo Daime, enquanto bebida sagrada, que permite a
ligação do daimista com os planos astrais” (FERREIRA, 2008, p. 100) e os hinos se
configurariam enquanto um manual para a apreensão dos ensinamentos dentro e fora do
contexto de experiência extática.
Tendo como referência o hino e o daime, conforme demonstrei, Sol diz:
Mudou meu ponto de vista totalmente. Mas não consigo falar somente sobre a
bebida. O daime tem o hinário, os dois se complementam formando o Santo Daime.
Pra mim mudou completamente porque trouxe pro meu presente a forma de como
eu devo me comportar e agir e entender o que está acontecendo no mundo hoje.
Quando a gente é universitário que mudar o mundo todo, mas, quando a gente
começa a tomar daime, percebe que é difícil mudar até a si próprio. A gente parte
do ponto que primeiro é preciso eu me entender, aí a gente vai começar a ajudar
pessoas a mudarem também, que a gente não muda ninguém. Mudou totalmente, o
daime me trouxe uma paz e uma serenidade muito grande pro momento que
estamos vivendo no mundo e todas as mudanças que estão vindo. E o ser humano
não sabe nada a respeito disso ainda, mas o daime ensina que a gente tem que
esperar e ter fé e que aqueles que estão antenados com Deus, buscando fazer o bem
vão estar de certa forma sobre a proteção de Deus. É isso que me norteia hoje em
dia, eu consigo andar hoje aqui é por causa disso, sinceramente não sei onde estaria
se eu não tivesse seguido a doutrina. Tudo que faço hoje e tudo que acontece na
minha vida é porque eu decidi tomar daime.
A afirmação de Sol traz à tona aquilo que venho chamando atenção, ou seja, a via de
mão dupla na correlação entre daime e hino. Em outras palavras, o hino, ao ajudar o daimista
a entender, absorver e guiar sua experiência de êxtase, auxilia o deslocamento de ponto de
106
vista operacionalizado pelo contato com a bebida, fazendo o membro interpretar sua
experiência pelo teor de suas mensagens e ensinamentos. Contudo, a planta que tem a
potência, o poder, de exacerbar o contato com o outro mundo efetua, também, uma
aceleração no processo de recepção e compreensão das mensagens contidas nos hinos. É
importante lembrar que o hino provém, precisamente, do astral – do mundo espiritual –
mundo este que a própria planta é quem propicia ao adepto ter conhecimento. Algo similar
com as idéias de Luna (1986), ou seja, quando o xamã canta suas músicas durante a
cerimônia ele passa a ver o mundo a partir do ponto de vista daquela planta ou animal que o
ensinou.
Girassol, em seu argumento, também revela a correlação entre o daime e os hinos na
suspensão à caminho do mundo espiritual:
Pensando nos termos do Santo Daime, seria o caso de, ao cantar as músicas no
trabalho – que são recebidas pelo contato com a planta na doutrina –, o daimista perceber o
mundo a partir da perspectiva, ancorada na doutrina, da própria planta. Dessa forma,
“conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 358). Todavia, esta operação, no Santo Daime, nunca se
dá por completo.
Pois, como Lírio informou, “o crescimento na doutrina dura a vida inteira”, ou como
pontua Flor: “o trabalho de daime ele é uma construção ao decorrer de sua vida”. Então,
alcançar o ponto de vista da planta por completo é uma tarefa árdua. Este procedimento
também não se dá em sua totalidade porque, como mostrei anteriormente, e se estamos
levando a sério o deslocamento de ponto de vista ocasionado, o sujeito somente vê, sente ou
desloca o ponto de vista de acordo com a vontade da planta. Sobre a impossibilidade de
conseguir alcançar, na totalidade, o ponto de vista da planta, Lotus insere:
Eu nunca fiz um trabalho que eu pensei em não voltar. Eu penso que no próximo eu
vou ficar mais ciente de certas coisas que fiz e vou mudar. Isso faz eu querer ir
mais. Não é querer atingir um estado de perfeição. Eu adoro ir no trabalho e ficar
com o daime. O que me faz querer tomar daime e aprender mais. Cada trabalho eu
tenho uma revelação, penso alguma coisa ou vem coisas que eu fiz e tenho que
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mudar pra ficar bem comigo mesma. Eu quero sempre estar ali. Eu quero ir e
aprender mais coisa e estar mais dentro daquele mundo espiritual.
Então, como Lótus diz, “não é querer atingir um estado de perfeição”. Este estado de
perfeição é o ponto de vista da planta, da doutrina, da plenitude dos ensinamentos postados
nos hinos. Nas palavras de Fábio Pedalino, “porque, se trilharmos o caminho, alcançaremos a
perfeição, e é para isso que o fundamento doutrinário nos ensina a contínua correção de
pensamentos, sentimentos e atitudes”. Ou ainda, como o próprio Padrinho Fábio diz:
Logo, na medida em que o daimista vai tendo contato com o acesso ao conhecimento,
operacionalizado pela planta, no trabalho, e guiado pelos princípios doutrinários – através dos
ensinamentos dos hinos – ele começa a alcançar a consciência doutrinária; “um grau pleno da
consciência superior”. Contudo, para chegar a este ponto, a correção é contínua e pode durar
uma vida toda. Uma estrofe do hino “Transitoriedade”, de Fábio Pedalino, é esclarecedora:
“Estamos todos na ignorância/ necessitando da Luz de Deus”. Compreendendo o daime
enquanto um ser divino, um lugar onde próprio Cristo se “manifestou num vegetal, o qual é
animado por um ser, um ‘espírito’ cujo nome é Juramidam” (GOULART, 1996, p. 195), “a
luz de Deus”; ao qual o Padrinho Fábio se refere; advém exatamente da planta professora
sendo ingerida no contexto da doutrina dando espaço para o adepto experienciar a
“consciência superior”.
Lótus defende a importância da planta acerca do processo de deslocamento, mas,
paralelamente, atesta a importância dos guias – a doutrina, os hinos:
Até hoje o daime traz coisas pra mim que eu não enxergava. Quando eu comecei a
tomar daime, passei a entender a importância de ajudar os outros. O daime vai te
mostrando o porquê de você ser de tal maneira, ele vai te mostrando porque você
está ali naquele momento, ele te mostra a hora de mudar também.
CONCLUSÃO
próprio fazer etnográfico. Partindo de um relato pessoal, de experiência com o daime, intui
uma discussão calcada em questões etnográficas. Entendendo a etnografia, assim como
Rabinow (1992), enquanto um processo de construção subjetiva, percebo a própria teoria, tal
como Peirano (2006), sendo inseparável da etnografia. Contudo, esta percepção não se
manifesta apenas por contato com a bibliografia. Ou seja, ela advém, ao mesmo tempo, do
meu próprio contato com o daime durante a pesquisa.
Buscando conceder uma direção mais lúcida para a questão do pertencimento e dos
controles daimistas e antropológicos, procurei uma solução inserida por Deleuze e Guattari
(2011). Isto é, observar a potencialidade do entre. Perceber a própria condição, nestes termos,
é reconhecer as multiplicidades trazidas pelo duplo pertencimento.
Durante meu contato com o Santo Daime revi alguns entendimentos pessoais. Esta
revisão, de certa maneira, operou em consonância com os ideais propostos pelo Santo Daime.
Admiração da natureza, reconhecimento de um outro mundo – o espiritual – apreciação por
valores ligados a família, são coisas repensadas substancialmente, por mim, depois do daime.
O Santo Daime, concomitantemente, me recrutava – pessoalmente – e encantava, enquanto
um campo de estudos com bastante potencialidade. Antes do daime, frequentei um tempo a
igreja católica, mas, sem muito ânimo. Com o Santo Daime foi diferente, a cada trabalho
queria voltar mais para ter aquela experiência religiosa.
Os hinos, por exemplo, me despertavam atenção pessoal e acadêmica. Adquiri um
hábito de ouvir hinos fora do trabalho. Isto, para mim, era uma espécie de ouvir aquelas
mensagens para relembrar as experiências vividas no trabalho, ou, para tentar, repensar
algumas de minhas próprias ações no mundo. Antropologicamente, os hinos, pelo seu tom de
verdade revelada, eram uma possibilidade de pensar o modo como se procede o acesso ao
conhecimento, no Santo Daime.
Dessa maneira, foi através da mixagem, da potencialidade do entre (DELEUZE, G;
GUATTARI, F. 2011), que esta pesquisa veio à luz. Assim, fica difícil precisar, certamente, o
que é formulação etnográfica e o que é construção pessoal. Contudo, o leitor pode observar o
entre operando fortemente durante a etnografia e, concomitantemente, ao longo deste texto.
Digamos que os conceitos aqui expostos são de responsabilidade e construção do
antropólogo; mas, de um antropólogo, cujo maior interlocutor, durante a pesquisa, foi um
sujeito não humano, isto é, o próprio daime.
Viveiros de Castro (2015), alerta para a construção de uma teoria antropológica da
imaginação conceitual, suscetível a criatividade e reflexividade imanente à vida de todo
coletivo, seja ele humano ou não humano. Portanto, reconhecer isso, é assegurar o daime
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refletindo sua potencialidade tanto materialmente – logo, nas condições de produção desta
pesquisa – quanto na questão dos deslocamentos ao outro mundo, deixando o daimista e
antropólogo; que aqui fala; preocupado não somente em procurar sentido nos movimentos e
ações dos indivíduos daquela cultura, mas, paralelamente, concentrado, também, em
propiciar sentido as suas próprias mirações.
Em um segundo momento, voltei meus argumentos para pensar o modo pelo qual o
Santo Daime opera o acesso ao conhecimento. O modelo é arriscado, controlado e forte. Por
meio da experiência de alteração da consciência, a planta concede a oportunidade – ao
indivíduo – de entrar em contato com o mundo espiritual, ou seja, o outro mundo possível.
Dentro da correlação entre teoria e prática, as categorias nativas de “planta professora”,
“doutrina”, “trabalho” e “hino” propiciam, ao adepto, a capacidade de experimentar um ponto
de vista, antes desconhecido.
Sintonizando os adeptos a este novo ponto de vista, o Santo Daime, com suas bases de
acesso ao conhecimento, cria o sujeito daimista, pois, estar agenciado ou ativado a um
determinado ponto de vista é, concordando com Viveiros de Castro (2015), estar sendo criado
enquanto sujeito. A criação deste sujeito, então, procede através do contato com a planta,
mediado pela doutrina e pela importância do trabalho, sendo moldado através dos
ensinamentos propostos pelo hinos e, consequentemente, investigando suas experiências
sensíveis – as mirações – a luz da cosmologia implicada no Santo Daime.
Isto posto, é precisamente em razão do processo de criação deste sujeito, da concessão
de uma “nova consciência de vida”, que o Santo Daime demonstra um poder de suspender a
circulação, ou trânsito, por outras religiões, de meus interlocutores. Logo, adquirindo
centralidade na vida desses indivíduos. Ao experimentar o contato com a “consciência
superior”, o adepto se vê em um constante empreendimento – duradouro ao longo de toda a
vida – de alcançar o ponto de vista daquilo que alterou seu próprio ponto de vista, ou melhor,
de tentativa de apreensão da totalidade do conhecimento inserido por aquela planta, entendida
como sagrada.
Assim, o presente trabalhou se esforçou para buscar elucidar tais questões. Contudo, é
importante salientar que, não existem garantias do sucesso desta operação de acesso ao
conhecimento e transformação, puramente porque alguém ingeriu o chá. É de se lembrar a
dependência, neste caso, da significação concedida, por cada indivíduo, em particular, a sua
própria experiência. Embora, tanto na literatura sobre o Santo Daime, quanto em minha
etnografia, é de se observar uma série de relatos tangentes ao encontro de um novo sentido
para a existência.
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ANEXOS
ORAÇÕES:
Chave de Harmonia:
Desejo Harmonia, Amor, Verdade e Justiça a todos os meus irmãos. Com as forças reunidas
das silenciosas vibrações dos nossos pensamentos, somos fortes, sadios e felizes, formando
assim um elo de fraternidade universal.
Estou satisfeito e em paz com o universo inteiro, e desejo que todos os serem realizem as suas
aspirações mais íntimas.
Dou graça ao Pai Invisível por ter estabelecido a Harmonia, o Amor a Verdade e a Justiça
entre todos os seus filhos.
Consagração do Aposento:
Há uma só presença aqui, é a do AMOR, Deus é o Amor que envolve todos os seres num só
sentimento de unidade. Este recinto está cheio da presença do Amor. No Amor eu vivo, me
movo e existo. Quem quer que aqui entre, sentirá a pura e Santa presença do Amor.
Há uma só presença aqui, é a da VERDADE. Tudo o que aqui existe, tudo o que aqui se fala,
tudo o que aqui se pensa é a expressão da Verdade. Quem quer que aqui entre, sentirá a
presença da Verdade.
Há uma só presença aqui, é a da JUSTIÇA, a Justiça reina neste recinto, todos os atos aqui
praticados são regidos e inspirados pela Justiça. Quem quer que aqui entre, sentirá a Presença
da Justiça.
Há uma só presença aqui, é a presença de DEUS, o BEM. Nenhum mal pode entrar aqui. Não
há mal em Deus. Deus, o Bem, reside aqui. Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina
Presença do BEM.
Há uma só presença aqui, é a presença de DEUS, a VIDA. Deus é vida essencial de todos os
seres. É a saúde do corpo e da mente. Quem quer que aqui entre, sentirá a presença da VIDA
e da SAÚDE.
Pelo Símbolo Esotérico das Asas Divinas, estou em vibração harmoniosa com as correntes
universais da Sabedoria, do Poder e da Alegria.
Na mais perfeita comunhão entre o meu EU inferior e o meu EU SUPERIOR, que é Deus em
mim, consagro este recinto à perfeita expressão de todas as qualidades Divinas que há em
mim e em todos os seres.
As vibrações de meu PENSAMENTO são forças de Deus em mim, que aqui ficam
armazenadas e daqui se irradiam para todos os seres, constituindo este lugar um Centro de
EMISSÃO e RECEPÇÃO de tudo o quanto é BOM, ALEGRE e PRÓSPERO.
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FOTOS: