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UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EXAMINE A CONSCIÊNCIA:

O ACESSO AO CONHECIMENTO NA DOUTRINA DO SANTO DAIME

Paulo César Caminha Ramos Filho

Juiz de Fora

2016
UNIVERSIDADE FEDERAL DE JUIZ DE FORA
INSTITUTO DE CIÊNCIAS HUMANAS
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM CIÊNCIAS SOCIAIS

EXAMINE A CONSCIÊNCIA:

O ACESSO AO CONHECIMENTO NA DOUTRINA DO SANTO DAIME

Paulo César Caminha Ramos Filho

Dissertação de Mestrado apresentada ao


Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais
da Universidade Federal de Juiz de Fora
(PPGCSO-UFJF) como requisito parcial à
obtenção do título de mestre em Ciências Sociais.
Orientador: Professor Dr. Marcelo Ayres
Camurça Lima

Juiz de Fora, 2016.


EXAMINE A CONSCIÊNCIA:

O ACESSO AO CONHECIMENTO NA DOUTRINA DO SANTO DAIME

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Ciências Sociais (área de
concentração: Diversidade e fronteiras conceituais)
da Universidade Federal de Juiz de Fora, como
requisito parcial para obtenção do grau de Mestre.

Aprovada em ___/___/_____

BANCA EXAMINADORA

_______________________________________
DR. MARCELO AYRES CAMURÇA LIMA – Orientador
Universidade Federal de Juiz de Fora

_______________________________________
DRA. ELIZABETH DE PAULA PISSOLATO
Universidade Federal de Juiz de Fora

_______________________________________
DRA. SANDRA LUCIA GOULART
Faculdade Casper Líbero
À Fernanda Vivacqua, com amor e pelo amor que nos conduz.
AGRADECIMENTOS

Agradeço a toda minha família pelo apoio incondicional. Em especial, à minha mãe
Suely e ao meu pai Paulo, minhas avós Elisa e Ana, minha irmã Patrícia, minhas tias Emília e
Sibely, meu tio Altair, minha prima Elisa, minha madrinha Silvana, meu padrinho Hans e
meus avôs, in memorian, Diamantino e Jacinto. Amo todos vocês!
À Fernanda Vivacqua, pela ajuda técnica crucial e pelo companheirismo.
Aos meus amigos, irmãos, Lucas, Hugo, Zureta, Guilherme, Rennan, Pedro, Marcelo,
João, Primo, Matheus, Kaio e Igor.
A todos os amigos do PPGCSO, principalmente ao Matheus, Samuel, Will, Paula
Boarin, Paula Emília, Rafael, Janis, Dani, Nara e Bárbara.
À UFJF, pelo incentivo à pesquisa.
Ao meu orientador, Marcelo Camurça, pela generosa orientação e a tranquilidade em
conduzir o processo.
À professora Elizabeth Pissolato, pelos comentários, sempre preciosos, durante minha
vida acadêmica.
À professora Sandra Goulart, por ter aceitado o convite para a banca.
A todos os professores do PPGCSO.
À Anne, pela tradução cuidadosa.
Ao Padrinho Fábio Pedalino e à Madrinha Suzana Pedalino, pela abertura para o
trabalho e, também, a dedicação, de ambos, à doutrina.
A todos os amigos do Céu do Gamarra. Sem vocês, essa pesquisa não seria possível!
Em especial, ao João, à Ana, à Yohana, ao Toy, à Mari, à Camila Oliveira, à Amanda
Abrahão, ao Cláudio, ao Breno, à Dede e ao Wallysson.
Ao Jhow e ao Léo Júnior, irmãos de doutrina e grandes parceiros argonautas.
À Flor.
Ao Santo Daime, o professor dos professores.
Ao Mestre Irineu e ao Padrinho Sebastião, líderes espirituais.
A Deus.
Examine a consciência
Examine direitinho
Sou Pai e não sou filho
Mas eu não faço assim

Chamo de um a um
A todos eu mostro o caminho
Fazendo como eu mando
Tudo fica bem facinho.

(Padrinho Sebastião – Examine a Consciência)

Para poder reconhecer


É preciso conhecer
Árvore do conhecimento
Está destrinchada aqui

(Padrinho Fábio Pedalino – Árvore do Conhecimento)

Sou o daime, um ser divino


O Mestre Juramidam
Que vem para revelar
Todos teus pensamentos
Guardados em teu ser
Liberto teus sentimentos

(Madrinha Suzana Pedalino – Sou o daime)


RESUMO

O presente trabalho se dedica a pensar, antropologicamente, três temáticas relacionadas ao


Santo Daime. Para isso, a dissertação cumpre-se em três capítulos. Primeiramente, partindo
de um relato pessoal, busco tratar temas relativos à etnografia. Dessa forma, procuro abordar,
principalmente, o entre lugar do daimista/antropólogo; os controles oriundos da experiência
etnográfica; e, a necessidade de levar a sério os deslocamentos de ponto de vista
proporcionados pelo contato com a bebida, considerada sagrada. Então, em um segundo
momento, por intermédio das categorias nativas de “planta professora”, “doutrina”,
“trabalho” e “hino”, almejo perceber o Santo Daime enquanto uma religião que propõe, aos
seus adeptos, o acesso ao conhecimento em termos de deslocamentos de perspectiva, ou
melhor, de ponto de vista. Isto é, dentro de uma correlação entre teoria e prática, essas
categorias – aliadas a um estado de consciência alterado, proporcionado pela ingestão do
daime – concedem a oportunidade do indivíduo experimentar um ponto de vista, outrora
desconhecido. Por fim, através de dados etnográficos, obtidos em uma igreja do Santo
Daime, o Céu do Gamarra, e, em razão do processo de criação desse novo sujeito, analiso o
poder do Santo Daime de adquirir uma centralidade na vida dos fiéis, suspendendo, assim, a
circulação, dos mesmos, em outras religiões.

Palavras-chave: Santo Daime; Etnografia; Pontos de vista; Conhecimento; Hino.

ABSTRACT

The present work is dedicated to thinking, anthropologically, three themes related to Santo
Daime. To this end, the essay meets in three chapters. First, starting from a personal report, I
seek to deal with themes related to the ethnography. In this way, I try to address, especially
the in-between place of the Santo Daime practitioner/anthropologist; the controls resulting
from the ethnographic experience; and, the need to taking seriously the shifts in the points of
view provided by the contact with the drink, considered sacred. Then, in a second moment,
through an intervening of the native categories of the “plant professor”, "doctrine", "work"
and "hymn", I long to understand the Santo Daime as a religion which proposes to its
supporters, the access to knowledge in terms of shifts of perspective, or rather, of point of
view. That is, within a correlation between theory and practice, these categories – allied to a
state of altered consciousness, provided by the ingestion of daime – grant the opportunity for
the individual to experience a point of view, once unknown. Finally, through ethnographic
data, obtained in a church of the Santo Daime, the Heaven of Gamarra, and, on account of the
process of creating this new subject, I analyze the power of the Santo Daime of acquiring a
centrality in the life of the faithful, interrupting, thus, their circulation in other religions.
Keywords: Santo Daime; Etnography; Points of view; Knowledge; Hymn.
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .....................................................................................................................11

CAPÍTULO 1 – NA FORÇA DO DAIME: NOTAS METODOLÓGICAS,


ETNOGRÁFICAS E PONTOS DE VISTA ........................................................................19

1.1 Na força do daime ........................................................................................................... 23

1.2 Entre o daime e a antropologia: questões de antropólogos ayahuasqueiros ............ 33


1.2.1 “Problemas” do engajamento com os sujeitos pesquisados .......................................... 35
1.2.2 Dimensões da experiência etnográfica: dois controles ................................................. 39
1.2.3 Pontos de vista? ............................................................................................................ 42

CAPÍTULO 2 – UM ITINERÁRIO PELA DOUTRINA DO SANTO DAIME............. 50

2.1 Perspectivas psicofarmacológicas, químicas e etnobotânicas da ayahuasca ............ 51

2.2 Situando o Santo Daime no espaço e no tempo ........................................................... 53


2. 2. 1 A ida à Amazônia e o surgimento do Santo Daime .................................................... 60

2. 2. 2 Padrinho Sebastião e o Cefluris .................................................................................. 64

CAPÍTULO 3 – O DESPERTAR DO DAIME ...................................................................73

3.1 O Céu do Gamarra ........................................................................................................ 73

3.2 O despertar do daime: mudanças de vida através do Santo Daime ........................... 79


3.2.1 Planta professora, doutrina, trabalho e hino .................................................................. 83
3.2.2 “O daime completou minha busca espiritual” ............................................................... 85
3.2.3 “O hino é um manual de instruções para o divino” ....................................................... 94
3.2.4 “Tudo que acontece na minha vida é porque eu decidi tomar daime” ....................... 103

CONCLUSÃO .....................................................................................................................109
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ............................................................................114

ANEXOS........................................................................................................................... . 123
11

INTRODUÇÃO

Em outubro de 2012, mais precisamente, no dia doze, meu primeiro encontro com o
Santo Daime foi realizado. A primeira experiência foi, de fato, marcante e de caráter
decisório para a elaboração do presente trabalho. Pois, nesse ritual, durante a viagem extática,
proporcionada pela ingestão do daime 1, me propus a produzir algo relacionado ao Santo
Daime em minha jornada acadêmica. 2
Primeiramente, a ideia seria redigir um artigo sobre algum aspecto relevante da
doutrina do Santo Daime. Contudo, decidi prestar o processo seletivo para o mestrado no
Programa de Pós Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal de Juiz de Fora.
Assim, procurei o professor Marcelo Camurça, por sua excelência nos estudos sobre religião
e campo religioso, e pedi sua orientação. Conjuntamente, então, decidimos optar pelos
estudos sobre o Santo Daime em sua relação e dinâmica com o campo religioso brasileiro.
Em um segundo momento, a pesquisa versaria em tentar entender o Santo Daime como uma
doutrina genuinamente cristã que agregou e reelaborou diversos elementos de outras
doutrinas religiosas – como o xamanismo, o espiritismo kardecista, elementos das religiões
afro-brasileiras e traços do esoterismo europeu – compreendendo aquela religião enquanto
um universo autenticamente sincrético, nos termos propostos por Pierre Sanchis (1995;
1997). Logo, o objetivo era perceber, etnograficamente, de qual maneira o Santo Daime
lidava com as tensões e dinâmicas do campo religioso brasileiro.
Todavia, na pesquisa de campo e com a frequência nos rituais do Santo Daime meu
interesse começou a se transformar. Percebia, durante conversas com os membros da igreja, a
centralidade, em suas falas, da mudança ocorrida em suas vidas através do contato com o
daime. Diferentes formas de lidar com a realidade, com o mundo em sua volta, ou seja,
mudanças relativas a vida cotidiana e ao entendimento da realidade, isto é, mudanças de
ponto de vista devido – usando uma expressão daimista – ao encontro proporcionado pelo
contato com a doutrina do Santo Daime eram coisas que recorrentemente eu ouvia daquelas
pessoas. Outro atributo da construção do Santo Daime enquanto religião, ou melhor, algo

1
Para fins de diferenciação, nessa dissertação, daime será entendido enquanto a bebida, o chá. Já a expressão
Santo Daime significará a religião, a doutrina.
2
Tal proposta está ligada a algumas motivações principais. Primeiro, para mim, parecia necessário tornar
público algo sobre o Santo Daime, pois, o que havia lido, antes de ingressar nesse campo de estudos, era
carregado por uma série de preconceitos e pré-noções. Segundo, produzir algo sobre o Santo Daime se
configurava em um “pagamento de dívida” pelo teor de minha experiência pessoal no ritual. Terceiro, com o
desenrolar dos acontecimentos, visualizei uma oportunidade, dentro do campo antropológico, de discutir
questões metodológicas, caras a antropologia, por intermédio de minha pertença a dois domínios: um pessoal e
outro acadêmico.
12

muito importante no corpus daquela doutrina, e que me despertava interesse tanto pessoal
quanto acadêmico, eram os hinos – as músicas entoadas durante os trabalhos 3.
Como Labate (2004) observa, “os hinos são considerados mensagens, conteúdos,
ensinamentos recebidos do Astral, portanto, são um fenômeno mediúnico [...] os hinos
possuem centralidade absoluta, pois toda doutrina está contida nos principais hinários”
(LABATE, 2004, p. 216, grifo da autora). Dessa forma, comecei a deduzir, justamente por
sua centralidade e pelo seu caráter de verdade revelada para os daimistas, os hinos enquanto
uma espécie de base daquele conhecimento nativo. Dito de outra maneira, os hinos seriam
algo como um “receptáculo doutrinário do movimento religioso, já que não existem outros
veículos reconhecidos pelos daimistas como legítimos difusores da doutrina. Eles conduzem
os rituais e são o eixo norteador da experiência extática” (FERREIRA, 2008, p. 9).
Além dessas questões, das mudanças de ponto de vista, da temática e essencialidade
da música na doutrina do Santo Daime, constatei a necessidade, enquanto antropólogo e
daimista, de debater as nuances envolvidas em uma etnografia onde o antropólogo é também
nativo – ou o nativo também é antropólogo – e dos efeitos práticos para a pesquisa da
ingestão de uma substância psicoativa. Labate (2004) argumenta que, em geral, nos trabalhos
acadêmicos sobre o tema, os pesquisadores da área possuem um vínculo ideológico com o
consumo da bebida. Entretanto, a antropóloga salienta a inexistência de uma reflexão
ordenada a respeito de tais questões. Por isso, me pareceu extremamente relevante, ainda
mais se tratando de uma pesquisa antropológica, fazer tal reflexão e debater alguns caminhos
– não de solução definitiva – mas, de apontamentos acerca da condição de daimista e
antropólogo.
Labate (2002), ao realizar um ótimo levantamento e mapeamento em relação às
pesquisas acadêmicas e da literatura sobre as religiões ayahuasqueiras brasileiras 4, revela os
diversos usos da ayahuasca sendo abordados através da ótica das crenças e dos sistemas
simbólicos. Por conseguinte, temas como sincretismo, xamanismo e a cura são
constantemente trabalhados. Dessa maneira, tendo essas afirmações como base e também,

3
A expressão trabalho é utilizada pelos daimistas para designar os seus rituais. Ao longo da dissertação a
centralidade desse conceito será exposta.
4
São três as religiões ayahuasqueiras brasileiras, advindas da região norte do país. O Santo Daime, objeto dessa
dissertação, a União do Vegetal e a Barquinha. A União do Vegetal, ou UDV, tem como base o cristianismo,
embora teça ligações também com elementos de culturas indígenas e africanas, aproximando-se de formações
espíritas, justamente por ter a reencarnação com um de seus pilares (GENTIL, L; GENTIL, H, 2002). Seu
fundador foi um seringueiro e ficou conhecido como Mestre Gabriel (BRISSAC, 2002). Já a Barquinha, religião
que segue os preceitos e ensinamentos deixados por Daniel Pereira de Matos, ou Mestre Daniel, possui uma
estrondosa influência de elementos do catolicismo popular, das religiões afro, do xamanismo indígena e da
filosofia do Círculo Esotérico da Comunhão do Pensamento (ARAÚJO, 2002).
13

como dito anteriormente, as percepções advindas da própria experiência etnográfica, eu


decidi alterar o tema da presente pesquisa.
Então, a presente pesquisa possui três pilares essenciais: a questão etnográfica e
metodológica de ser daimista e antropólogo ao mesmo tempo; a temática dos deslocamentos
de pontos de vista; e por fim, a relevância e centralidade dos hinos na doutrina do Santo
Daime. Para isso, a dissertação se divide em três capítulos.
Na introdução, são realizados apontamentos iniciais sobre a pesquisa e uma breve
revisão bibliográfica da literatura acadêmica sobre o Santo Daime. A ideia é situar o leitor
sobre os principais estudos antropológicos feitos sobre o tema.
No primeiro capítulo, o objetivo é sustentar a importância do antropólogo situar o seu
local de fala e as condições que cercam o fazer antropológico. Partindo de um relato pessoal,
sobre uma experiência com o daime, me proponho a discutir temas tocantes a etnografia. São
abordadas discussões como: o entre lugar do daimista/antropólogo; os controles por ele
sentidos durante a etnografia; e, por fim, é proposta a necessidade de levar a sério os
deslocamentos de perspectiva proporcionados pelo daime. O intuito é compreender, através
das categorias nativas de “planta professora”, “doutrina” e “trabalho”, o Santo Daime
enquanto uma religião que pensa o acesso ao conhecimento em termos de deslocamentos de
perspectiva, ou pontos de vista.
O segundo capítulo consiste em um percurso histórico pela formação da doutrina do
Santo Daime. O foco é situar o leitor sobre o surgimento e as trajetórias do Santo Daime,
antes do seu movimento expansionista para outras regiões do Brasil. Tal capítulo é escrito
com base em informações bibliográficas, acadêmicas e nativas, sobre o Santo Daime.
Percebendo o hino enquanto o veículo de conhecimento da doutrina do Santo Daime, ao
longo do texto, eles são dispostos enquanto recursos metodológicos, isto é, a medida em que
a história é contada, trechos de hinos são dispostos de forma a dar luz a aspectos marcantes
da própria cosmologia daimista.
A história do Céu do Gamarra, igreja localizada na região sul de Minas Gerais, é
explorada no início do terceiro capítulo. Nessa igreja foi onde aconteceram minhas
experiências pessoais e etnográficas com o Santo Daime. A construção desse capítulo se
manifesta por intermédio da busca das razões motivadoras pelas quais indivíduos, vindos, em
sua maioria, das camadas médias urbanas, desistiram de uma vida, de certo modo, “tranquila”
na cidade e decidiram deslocar suas vidas para o entorno de uma igreja, no interior de Minas
Gerais. Paralelamente, tentarei demonstrar, etnograficamente, a maneira pela qual os adeptos
do Céu do Gamarra entendem os hinos da doutrina. Parto da perspectiva de que os hinos são
14

uma espécie de base do conhecimento no Santo Daime. Ao mesmo tempo, ao guiarem o


daimista durante a experiência de êxtase e também amparando o adepto nas decisões da vida
cotidiana – os hinos – são apreendidos enquanto detentores de uma potencialidade
auxiliadora no processo de deslocamento de ponto de vista do fiel.
Portanto, para seguirmos em frente, é importante, ainda nessa introdução, uma breve
contextualização do universo que rege essa pesquisa. O Santo Daime é um movimento
religioso brasileiro nascido em meados da década de 30, século XX, na região Norte, mais
precisamente no estado do Acre. O maranhense Raimundo Irineu Serra, posteriormente
conhecido, pelos adeptos do Santo Daime, como Mestre Irineu, nasceu na cidade de São
Vicente Férrer, no final do século XIX, e por conta do fluxo migratório, encorajado pela
extração de látex, mudou-se para o Acre. Raimundo Irineu Serra é conhecido por ser o
fundador5 da Doutrina do Santo Daime, cujo eixo central do ritual está na ingestão de uma
bebida considerada sagrada, com características psicoativas. 6
A ayahuasca, yajé, caapi, ou daime, é obtido a partir das folhas do arbusto Psychotria
viridis e do cipó Banisteriopsis Caapi, denominados, respectivamente, pelos membros do
Santo Daime como folha rainha e jagube. O princípio ativo, observado na composição da
bebida, é o DMT, dimetiltriptamina. (PIRES, A.; OLIVEIRA, C.; YONAMINE, M, 2010). De
acordo com Goulart (1996), a identificação correta da planta se deve ao botânico Richard
Spruce, em 1852, durante uma festa indígena realizada na fronteira entre a Colômbia e o
Brasil.
Mas, ainda concordando com Goulart (1996), o contratempo da mesma planta com
nomes diferentes preocupou os intelectuais da área, até o início do século XX, tendo como
consequência a dificuldade para a classificação botânica do psicoativo. Todavia, com o passar
do tempo, “foi se tornando mais evidente que termos como ayahuasca, caapi, yagé, se
referiam a uma única planta” (GOULART, 1996, p. 10, grifo da autora).
Seria, então, o Santo Daime apenas mais uma nomeação para a beberagem já
conhecida como ayahuasca, yagé ou caapi? Creio que não. A resposta negativa está ancorada
nas informações trazidas por Goulart (1996). Para a antropóloga, o Santo Daime rompe com a

5
O mito de fundação do Santo Daime, basicamente, é contado da seguinte maneira: Após a ingestão da
ayahuasca, Irineu teve um contato com a Rainha da Floresta, identificada por ele como sendo a Virgem da
Conceição. A partir desse momento, ela teria começado a “guiar” Irineu, para – este último – construir a
doutrina do Santo Daime (GOULART, 1996; MACRAE, 1992).
6
A bebida leva o nome de Daime ou Santo Daime. Os seus usos ritualizados saíram do contexto das sociedades
indígenas amazônicas para se difundirem desde os seringueiros da floresta até cultos urbanos espalhados pelo
Brasil e pelo mundo (ALMEIDA, 2002). O nome mais conhecido é ayahuasca, cujo significado é, em quíchua,
vinho das almas (LABATE, 2002; LUNA, 1986).
15

antiga tradição de uso do chá, não só no que tange aos povos indígenas do Alto Amazonas,
mas, também no tocante ao universo de crenças do curandeirismo amazônico. Melhor
dizendo, o Santo Daime, embora, de acordo com Goulart (1996) tenha suas origens no
curandeirismo amazônico, “se afasta desta tradição, baseando-se numa nova moral e, em
última instância, inaugurando outras formas de consumo da ayahuasca na sociedade do
homem branco” (GOULART, 1996, p. 13).
Por traços de sua formação – muito marcada pelo intermédio de uma constante
agregação e reelaboração de uma série de elementos culturais – Labate e Pacheco (2005),
afirmam a existência de um consenso acadêmico, onde três grandes matrizes estariam
presentes no culto do Santo Daime: a indígena ou amazônica oriunda do consumo e preparo
da bebida, juntamente, com alguns aspectos relativos ao ritual; a europeia cuja influência é
coadunada ao catolicismo e esoterismo; e, por fim, a matriz afro-brasileira sinalizada pela
existência de entidades, do panteão africano ou afro-brasileiro, no meio daimista.
Dessa maneira, o Santo Daime é um movimento religioso extremamente marcado por
uma espécie de porosidade, entre suas fronteiras, e por uma característica marcante: o uso de
uma bebida, considerada sagrada, para o alcance, segundo os membros da doutrina, do
autoconhecimento, do desenvolvimento espiritual e de estados de contato com realidades
extra materiais.
Sem dúvidas, a relação entre reflexão teórica e prática religiosa deve ser
compreendida em um espectro mais amplo, longe de um aparente antagonismo (LABATE,
2004). Especificamente, a relação entre a antropologia e a religião, ou espiritualidade, pode
ser refletida pelas ideias de Carvalho (1998). Para o autor, tanto a antropologia quanto o
esoterismo são, concomitantemente, descendentes do projeto da modernidade e ambos
também são críticos dos seus sistemas de valores. Ademais, é de ser observar o surgimento
das disciplinas acadêmicas sobre o estudo das religiões, na metade do século XIX,
coincidindo com o crescimento religioso esotérico. Concordando com José Jorge de
Carvalho, a antropologia, que se recusa a fragmentar o real, seria como uma espécie de
ciência sagrada, visto que, inspirada numa simbologia de busca, ela também seria um
caminho esotérico. Dessa forma, “antropologia e esoterismo possuiriam, ainda, diversos
pontos comuns, tais como as noções de oralidade, tradição, iniciação e adepto (LABATE,
2004, p. 36).7

7
A ilustração de paralelos entre ciência e religião não implica em dizer que são coisas equivalentes. Cada uma,
a sua maneira, possui seus próprios códigos de ética e sistemas próprios de regras (LABATE, 2004).
16

De acordo com Soares (1990), “o daime ocupa um lugar sui generis, é porque
encanta, recruta, fascina, mas também inquieta, choca, mobiliza polêmicas e enseja críticas
radicais” (SOARES, 1990, p. 267). Com o campo antropológico o Santo Daime não lidou de
outra maneira, sendo um universo que inquietou, e ainda inquieta, e mobiliza pesquisas
acadêmicas sobre o tema. Rehen (2007; 2011) contabilizou, à época de sua dissertação de
mestrado, no ano de 2007, o número de vinte e sete dissertações e teses sobre o Santo Daime.
Contudo, hoje, esse número se expandiu, tendo em vista a crescente utilização da ayahuasca
pelo globo, atraindo, desse modo, cada vez mais pessoas interessadas ao estudo dos mesmos
(LABATE; ROSE; SANTOS, 2008). Entendendo a constituição e a proliferação de um
campo de estudos sendo balizado por uma bibliografia, construída sobre um determinado
objeto, o campo de estudos antropológicos sobre o Santo Daime possuí autores e trabalhos
extremamente importantes, que se constituem em referências obrigatórias para qualquer
pesquisador com o propósito de mergulhar na temática. Então, uma breve revisão, desses
trabalhos, se faz necessária para situar o leitor sobre os traços abordados pelos textos –
digamos “clássicos”8 – produzidos por antropólogos acerca da doutrina do Santo Daime.
Clodomir Monteiro da Silva (1983), em estudo pioneiro, posta o Santo Daime como
sendo uma religião inserida no contexto de práticas xamânicas. Destarte, a doutrina seria
grifada por um transe xamânico coletivo e individual. Para esse autor, o daime, tal como o
xamanismo, estaria conectado a uma atividade de cura e seus líderes seriam xamãs.
Couto (1989), em sua dissertação de mestrado, define, inspirado em Victor Turner e
Mary Douglas, os trabalhos do Santo Daime como “ritos da ordem”. Para o autor, os rituais
dessa religião tenderiam a fortalecer a estrutura e a ordem, ao contrário dos ritos de inversão,
como o carnaval. Ademais, Couto argumenta que no Santo Daime, cada participante seria um
xamã, em potencial, ou melhor, os adeptos seriam capazes de realizar o voo xamânico e a
doutrina seria uma espécie de xamanismo coletivo.
Fróes (1986), em seu trabalho, descreve os rituais do Santo Daime e faz um estudo
sobre o surgimento da comunidade liderada por Sebastião Mota de Melo 9, o Padrinho
Sebastião, assim como seus princípios religiosos e comunitários. Apontando a relação entre o
daime e a cura de doenças, com um trecho sobre as características botânicas da bebida, a

8
Na impossibilidade de retomar aqui, mesmo brevemente, o grosso das publicações sobre o assunto, opto por
selecionar alguns textos mais importantes. Isto é, ou são pioneiros no campo de estudo ou possuem um grande
números de citações por parte de outros trabalhos. Para uma abordagem mais complexa acerca da bibliografia
produzida sobre a questão ver o artigo de Labate (2002).
9
Padrinho Sebastião foi um líder do Santo Daime e ficou conhecido por ser o fundador do Cefluris (Centro
Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra). O Cefluris foi a instituição responsável pela
expansão do Santo Daime para outros estados brasileiros e, posteriormente, para países da cena internacional.
17

autora discute se o movimento religioso nascido em plena floresta amazônica se trata de uma
exemplificação do messianismo.
Soares (1990), embora não se dedique exclusivamente ao tema do Santo Daime, em
um artigo sobre a doutrina, apresenta alguns resultados de uma pesquisa maior, tocante a
temática da “nova consciência religiosa”. Embora sintético, apenas dez páginas, o artigo é
fonte de inspiração para diversos pesquisadores da área na tentativa de explorar questões ali
levantadas como hipóteses. Diversos pontos, ressaltados por Soares, são sedutores, como: o
fenômeno de uma religiosidade alternativa encontrando eco nas grandes cidades e,
principalmente, através das camadas médias urbanas; o fato de a revolução sexual e social
ganhar novas leituras, a partir da ótica do Santo Daime; a expansão da doutrina pelo Brasil,
reforçando uma maneira singular de “reinvenção” da identidade brasileira. Enfim, embora
seja o menor dos textos, talvez seja o com a capacidade mais alargada de suscitar
questionamentos para quem o lê.
Macrae (1992), em seus escritos, similarmente a Couto (1989), interpreta o Santo
Daime através da ótica do xamanismo. Em seu livro, Macrae especifica os trabalhos feitos no
Santo Daime, buscando uma compreensão de sua ritualística, e analisa o uso da bebida desde
os vegetalistas até os tipos mais atuais do culto. Ganha destaque também a proximidade do
Santo Daime com o Kardecismo, através da assimilação de ideias como evolução espiritual,
carma, reencarnação e doutrinação de espíritos, presentes em ambas as cosmologias.
A dissertação de Goulart (1996) é uma grande referência no tema da formação do
culto do Santo Daime. Esta doutrina religiosa, de acordo com a autora, se vincula a duas
grandes tradições culturais: o antigo catolicismo popular e o vegetalismo amazônico. Goulart
também vai relacionar o surgimento do Santo Daime a todo um conjunto de mudanças
ocorridas no meio rural do Brasil, quer dizer, para a autora, o Santo Daime nasce em um
momento onde se consolida, no país, uma nova conjuntura sócio cultural.
Groisman (1999) demonstra o cenário social da Vila do Céu do Mapiá, igreja central
do Cefluris. Para o autor, o Santo Daime se orienta através da noção de ecletismo – noção
retirada do próprio estatuto do Cefluris. O ecletismo evolutivo, concordando com Groisman,
é o fator que possibilita a convivência entres os diversos sistemas cosmológicos compositores
do Santo Daime. Sendo uns dos primeiros a tratar sobre a peia – dificuldades encontradas
pelos indivíduos advindas da ingestão do chá – o autor ainda trata sobre temas como cura e
doença em seus escritos.
Labate (2002; 2004; 2005; 2008; 2009) é responsável pela organização de vários
livros tratando do uso ritual de plantas de poder e, em geral, da ayahuasca. Seu estudo mais
18

significativo foi sua dissertação de mestrado, publicada em 2004. A reinvenção do uso da


ayahuasca nos centros urbanos (2004) traz à tona um estudo que revela a utilização de
técnicas e rituais diversos – terapias corporais, técnicas de meditação, terapias psicológicas,
práticas de produção artísticas, como pintura e música vinculadas ao uso urbano da
ayahuasca. Os indivíduos relacionados a essas práticas, Labate (2004) denomina de neo
ayahuasqueiros, demonstrando suas práticas situadas em um campo auto delimitado como
“religioso”, em oposição a um uso entendido como profano de drogas.
Rehen (2007), em sua dissertação, analisa o conceito de recebimento e oferta dos
hinos, dando ênfase a dimensão de dádiva cravada nesses conceitos, assim como a da
instituição de uma micro política dos sentimentos. A interpretação da natureza musical do
Santo Daime e de sua estrutura melódica, poética e rítmica também é trabalhada durante o
texto.
Dessa forma, depois dessa breve tentativa de situar o leitor, através das propostas da
presente pesquisa – seus pilares e objetivos – e também de uma sumária revisão bibliográfica
sobre os principais textos que dialogam com o Santo Daime, podemos ir em frente e começar
a tocar temas específicos desse presente trabalho.
19

CAPÍTULO 1

NA FORÇA DO DAIME: NOTAS METODOLÓGICAS, ETNOGRÁFICAS E


PONTOS DE VISTA

Desejo, nesse capítulo, compartilhar com o leitor o nascimento desta pesquisa e os


caminhos pelos quais a mesma se desmembrou, assim como elucidar pontos metodológicos e
etnográficos que, em meu entendimento, são fundamentais, tanto para situar meu objeto de
estudo, quanto para o próprio esclarecimento de algumas questões envoltas no processo da
etnografia.10
Como observa Labate (2004), há uma estrondosa “conexão ideológica com a
utilização da ayahuasca por parte dos estudiosos da área” (LABATE, 2004, pg. 46),
juntamente com um envolvimento de ordem pessoal com os grupos analisados. Mas, a
reflexão inserida por alguns trabalhos, concordando com Labate, no que tange a conexão
ideológica ou a adesão pessoal, acaba por não aparecer explicitamente ao longo do texto, “ou
figuram de forma escamoteada” (LABATE, 2004, pg. 46).
Contudo, hoje, o antropólogo, a meu ver, tem de ter outra postura. Ao invés de
escamotear sua relação com os interlocutores, escondendo o ambiente da produção do seu
próprio discurso e também da fala de seus interlocutores, ele deve expor suas dúvidas, limites
e condições – tanto no que diz respeito às de ordem material e subjetiva, envolvidas no
processo etnográfico; quanto na sua capacidade, sempre limitada, de conhecer o outro –
juntamente com a exposição dos caminhos que condicionaram a sua interpretação da
realidade, cuja característica intrínseca é ser sempre parcial (CALDEIRA, 1988).
Dessa forma, gostaria de explicitar minha própria relação com o Santo Daime por,
essencialmente, dois motivos: primeiro, pela importância desse tipo de posicionamento
figurar no texto, de forma a tocar em pontos sobre o impacto pessoal e intelectual da
experiência com a ayahuasca e, em consonância com as afirmações de Labate (2004), como
sua ingestão “pode modificar a natureza da etnografia” (LABATE, 2004, pg. 53) – ou, no
meu caso particular, “iniciar” a etnografia. Segundo, pela questão do local de fala. Para
Uriarte (2012), há uma espécie de consenso na questão do lugar de onde fala o antropólogo.
Para a autora, a fala antropológica, presente na escrita, não se confunde com a do nativo
porque o antropólogo, por mais próximo que tenha chegado, não é um nativo. Ou melhor, “o
Eu não é o Outro” (URIARTE, 2012, pg. 8), embora esse Eu também não seja o Eu que

10
Não tenho por objetivo esgotar, em um capítulo, todas as discussões tangentes aos temas aqui trabalhados. Os
pontos expostos são frutos de considerações acerca de minha própria experiência etnográfica.
20

iniciou a pesquisa. Em outras palavras, como observa Magnani (2012), considerando que a
natureza da explicação pela via etnográfica tem como pilar um insight, este último é capaz de
reordenar informações entendidas como fragmentárias, dispersas e soltas, em uma nova
formulação – que não é mais o arranjo nativo, embora parta dele, o leve em consideração e
tenha sido inspirada por ele – nem tampouco “aquele com o qual o pesquisador iniciou a
pesquisa” (MAGNANI, 2002, pg. 17).
Logo, quem fala? Eduardo Viveiros de Castro (2002), criticando a diferença de
Malinowski entre o que o nativo pensa – ou faz – e o que ele pensa que pensa – ou que faz –
afirma a voz do antropólogo como não sendo a do nativo, pois o que o nativo pensa não é
aquilo que o antropólogo pensa que o seu interlocutor pensa. Então, certamente, quem fala é
o antropólogo. Concomitantemente, quem detém o sentido do discurso é o antropólogo, “ele
quem explica e interpreta, traduz e introduz, textualiza e contextualiza, justifica e significa
esse sentido” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, pg. 115). Assim, nos termos de Roy Wagner
(2010), o antropólogo cria cultura.
Além disso, considerando os paradigmas científicos em constante transformação, tem
se verificado, especialmente no campo antropológico – através de seus próprios métodos,
objetivos e modos de escrita – um “questionamento da ‘objetividade’ da ciência cartesiana”
(LANGDON, 2005, pg. 23), juntamente com a atribuição de um novo valor a experiência
“vivida” (LANGDON, 2005).
Consequentemente, isto posto, a ciência antropológica está indo além daquele modelo
proposto pelas ciências naturais do século XIX, vistas as suas investidas de integrar as
singularidades do contexto e da subjetividade para a compreensão dos efeitos das substâncias
que dependem tanto do contexto quanto da experiência subjetiva (LANGDON, 2005). Ou
seja, “hoje a experiência subjetiva do pesquisador faz parte de sua análise” (LANGDON,
2005, pg. 23).
Tal posicionamento, acima explicitado, parece ser dúbio entre os antropólogos
ayahuasqueiros, termo proposto por Labate (2004). Com diversas gradações, no sentido de se
posicionarem ou não ao longo do texto, ou de elaborarem – ou não – uma sólida reflexão
metodológica acerca da pertença e participação nos rituais com a ayahuasca, alguns
intelectuais da área, como Macrae (1992), Goulart (1996), Groisman (1999), Labate (2004),
Oliveira (2008), Dias (2002) e Rehen (2007b), podem ser exemplos de uma relação pessoal
dos mesmos com o objeto de seus estudos, mesmo tal relação não sendo abordada
explicitamente em alguns textos.
21

Vejamos como se procede a abordagem desses autores. Concordando com Labate


(2004), um leitor mais atento verá, nas entrelinhas dos textos, alguns elementos que indicam
a relação pessoal dos autores com a temática abordada, “quando, por exemplo, os trabalhos
rendem suas homenagens: Groisman (1991) dedica a dissertação ao M. Irineu e P. Sebastião;
Macrae (1992) ao P. Sebastião; Goulart (1996) ao M. Irineu [...]” (LABATE, 2004, p. 45).
Mais especificamente, Macrae (1992) também agradece a oportunidade de “desenvolver um
maior autoconhecimento e um contato com questões da espiritualidade” (MACRAE, 1992, p.
8), além da possibilidade de realizar seu trabalho acadêmico. Ademais, o autor termina seu
livro com a fórmula utilizada para o encerramento dos rituais no Santo Daime. 11 Este recurso
estilístico utilizado por Macrae (1992) pode ser questionado nos termos de Labate (2004), ou
seja, “será que [...] esses autores esperam que suas obras funcionem como uma espécie de
trabalho espiritual para os leitores? Ou para si mesmos?” (LABATE, 2004, p. 45). Não há
uma resposta para a questão de Labate, mas, outros autores vão além dos meros
agradecimentos. Goulart (1996), em sua dissertação, tem um capítulo mais pessoal, em estilo
de literatura de viagem, através do qual conta ocorridos acontecidos em sua viagem à igreja
do Padrinho Sebastião. Groisman (1999) salienta que sua pesquisa foi participativa,
entretanto, crê que um possível envolvimento maior, de compromisso com o Santo Daime,
poderia prejudicar a pesquisa.
Outro grupo de pesquisadores vai um pouco além. Dias (2002), em seu artigo,
procurar “abordar a religiosidade do grupo através do tratamento dado a certas questões,
presentes em minha experiência, por fazerem parte do seu próprio imaginário” (DIAS, 2002,
p. 469). Oliveira (2008), em sua tese de doutorado, tem um capítulo, onde apresenta uma
experiência sua com o daime, para justificar “a possibilidade de se atender à necessidade do
fazer científico na qualidade do nativo” (OLIVEIRA, 2008, p. 27). Rehen (2007b), em sua
dissertação de mestrado, discute sua condição de daimista e antropólogo, porém, afirma que
“é na posição de antropólogo “distanciado” que assino este texto” (REHEN, 2007b, p. 20).
Labate (2004) é a pesquisadora que possui uma maior reflexão metodológica. Partindo de sua
relação pessoal com o objeto de estudo, a autora propõe a categoria de antropólogo
ayahuasqueiro. Tal conceito, de acordo com Labate (2004), seria como um meio possível
para estar conectado ao fenômeno a partir das perspectivas de dentro e de fora. Ainda, para

11
O encerramento do ritual se procede com o dirigente da igreja dizendo as seguintes palavras: "Em nome de
Deus, Pai da Virgem Soberana Mae, de Nosso Senhor Jesus Cristo, do Patriarca São José e de todos os Seres
Divinos Da Corte Celestial, com a ordem do Nosso Chefe Império Juramidam, estão encerrados os nossos
trabalhos. Meus irmãos e minhas irmãs, louvado seja Deus nas alturas, para que sempre seja louvada Nossa Mãe
Maria Santíssima sobre toda a humanidade".
22

Labate (2004), há diversas gradações dentre os antropólogos ayahuasqueiros, visto que há


antropólogos que “são mais ou menos ortodoxos ou apegados a seu pertencimento pessoal”
(LABATE, 2004, p. 53). Ainda nas palavras de Labate:

É importante que este tipo de posicionamento apareça no texto e não fique invisível:
como vimos, geralmente nada se fala sobre o impacto pessoal e intelectual da
experiência com a ayahuasca na vida dos sujeitos, nem sobre como o seu consumo
pode modificar a natureza da etnografia (LABATE, B. 2004, p. 53).

Em outras palavras, grande parte dos pesquisadores desse campo optam por um
“distanciamento”, “não vendo necessidade de transmitir experiências pessoais e
transcendentais, talvez por um tipo de ‘defesa’ a uma possível crítica em relação ao
‘envolvimento’” (REHEN, 2007b, pg. 21).
Portanto, o objetivo de explorar tanto minha própria relação com o Santo Daime,
quanto o florescimento e as etapas da pesquisa, tendo em perspectiva as análises e
considerações metodológicas feitas pelos antropólogos ayahuasqueiros, está ajustado com o
pensamento de Camurça (2009), principalmente, ao que tange a uma tentativa de
evidenciação e explicitação seja do local de fala do pesquisador ou das condições objetivas e
materiais que cercam o fazer etnográfico. Ou seja, gostaria de inverter a observação, acima
exposta, feita por Rehen (2007b), isto é, estou escolhendo por, ao invés de omitir minha
experiência pessoal para “fugir” da crítica tangente ao “envolvimento”, exacerbá-la com o
intuito de grifar a experiência pessoal e subjetiva como um possível instrumento do
conhecimento.
E, também, não menos importante, tal propósito de dialogar com minhas próprias
experiências, concilia-se com a ideia de que o pesquisador, durante o exercício etnográfico,
percorre as diversas sensações encontradas pela sua visão, audição, olfato, tato e paladar
(LAPLANTINE, 2004). Logo, “a observação participante implica saber ouvir, escutar, ver,
fazer uso de todos os sentidos” (VALADARES, 2007, p. 154). Considerando, então, “o
mundo vivido”, em consonância com Merleau-Ponty (1994), como proporcionando um saber
sensível, corporal, apreendido pelos sentidos, de onde decorrem os demais conhecimentos, a
própria importância do corpo do pesquisador em sua prática deve ser considerada na análise.
Dessa maneira, devemos pensar a experiência etnográfica também enquanto uma forma de
experiência corporal, considerando a ideia de percepção enquanto experiência corporal, ou
seja, o corpo – sendo sujeito da percepção – absorve a realidade através de seus sentidos,
23

antes até das formas simbólicas, estas relacionadas aos processos de reflexão e ao raciocínio
(CSORDAS, 2008).

1.1 Na força do daime

Meu primeiro contato, ainda que não diretamente, com a doutrina do Santo Daime se
configurou durante o ensino médio. Durante os anos compreendidos entre 2006 e 2008,
cursei o ensino médio em uma escola particular – o Colégio Franciscano Santo Inácio –
localizada no município mineiro de Baependi. Tal cidade, posicionada ao sul de Minas
Gerais, de acordo com o censo realizado pelo IBGE em 2010, possuí uma população de
18.292 habitantes. Seu nome advém de uma referência ao rio que atravessa o município,
sendo oriundo do termo tupi mba'eapiny, cujo significado é "rio do monstro marinho"
(mba'eapina, monstro marinho indígena + 'y, rio) (NAVARRO, 2013).
Tipicamente uma cidade do interior de Minas Gerais, a economia de Baependi se
baseia, essencialmente, em atividades de agricultura, comércio, artesanato, comercialização
de pedras quartzito e no turismo. Este último, principalmente, por duas razões: a primeira,
pelas belas cachoeiras presentes na zona rural; segundo, por, recentemente, uma mulher que
residiu na cidade, Nhá Chica 12, ter sido beatificada pela Igreja Católica, atraindo assim uma
espécie de turismo religioso para a localidade.
Contudo, voltando ao principal, foi na escola, acima referida, que durante minha
permanência tive conhecimento de que cinco professores eram adeptos do Santo Daime 13. No
começo, eu não sabia ao certo sobre quais aspectos versava a doutrina do Santo Daime e
também pensava não ter a abertura pessoal necessária para indagar tais professores com
questões acerca de suas preferências religiosas. Mas, tinha conhecimento de suas filiações
religiosas e do funcionamento de uma igreja daimista na zona rural da cidade.
Desconhecendo também as perspectivas acadêmicas sobre o assunto, até porque
estava cursando o ensino médio e também, no momento, não tinha pretensões em adentrar no
mundo das ciências sociais e, consequentemente, da antropologia, fui procurar saber sobre a

12
Para maiores detalhes acerca de Nhá Chica, a tese de Simone Oliveira (2008) se constitui como uma
interessante referência.
13
A postura adotada pelos professores era de somente falar sobre o Santo Daime quando solicitados. O clima,
pelos alunos, era mais de curiosidade. Por isso, por vezes, os professores eram questionados sobre o que era o
Santo Daime. A resposta concedida, por eles, era a de que o Santo Daime seria uma religião cristã, baseada nos
ensinamentos da Sagrada Família – Jesus, Maria e José – que utilizava uma bebida sagrada cujo poder era o de
permitir o autoconhecimento.
24

religião em revistas não especializadas 14 sobre o assunto e através de conversas com meus
pares.
Não preciso antecipar o resultado, pois, eventualmente, meu leitor já o saiba.
Catastrófico, talvez, essa seja a palavra. As reportagens passavam aquela substância utilizada
ritualmente, em contexto religioso, como sendo um alucinógeno extremamente perigoso, com
efeitos tomados pela reportagem como ruins e nocivos para os humanos 15. O pensamento dos
meus pares, isto é, meus colegas de sala ou de colégio, com raras exceções, também era
povoado pela desinformação sobre o tema. Muitas das conversas giravam em torno daquela
bebida ser “coisa de doidão”.
Todavia, meus professores não aparentavam ser nem “doidões”, e, muito menos, suas
atividades religiosas os tiravam da consciência plena de suas tarefas. Quando indagados sobre
o Santo Daime, na maiorias das vezes, eram discretos e não aprofundavam muito no assunto.
Anos depois é que fui descobrir o porquê de tal posicionamento, ou seja, o motivo se
configurava em diversos ataques, sejam midiáticos, legais, ou pessoais, que a doutrina do
Santo Daime sofreu e sofre ao longo de sua existência.
O motivo de minha curiosidade, naquela altura, era um tanto quanto nacionalista, pois
girava em torno do Santo Daime ser uma religião nascida em ambientes amazônicos.
Contudo, na prática, como exposto, minhas investidas para melhor conhecer esse ambiente
cultural tiveram um insucesso. Sendo assim, em um momento, desisti de ir ao encontro de
tais informações.
No entanto, no ano de 2009, ingressei no curso de Ciências Sociais na Universidade
Federal de Juiz de Fora e, paralelamente, as experiências com psicoativos se tornaram mais
presentes em minha realidade, seja através de um maior contato com pessoas envolvidas
nesse meio de consumo de tais substâncias ou por meio de experiências pessoais. Então, meu
interesse pelo Santo Daime se alargou – antes visto sob uma ótica nacionalista, agora também
tinha incorporado a busca por plantas que expandissem a consciência.
Nessa época, descobri uma colega de curso fardada no Santo Daime. Após um tempo
de contato maior, ela se mostrou disposta a me apresentar tal religião. A igreja, por ela

14
Infelizmente, não me recordo, certamente, quais revistas li na época. Contudo, podemos observar algo mais
recente. De acordo com Assis e Almeida (2011), as revistas Isto É, Época e Veja em suas reportagens, sobre o
Santo Daime, além de mostrarem dados aleatórios, “fazem afirmações peremptórias desprovidas de
comprovação científica e estigmatizam as minorias religiosas que fazem uso da ayahuasca, demonizando esta
bebida sem nenhuma discussão com os membros desses grupos” (ALMEIDA; ASSIS, 2011, p. 8).
15
Para uma maior ciência do tratamento midiático para com o Santo Daime, ver o artigo de Glauber Assis e Ana
Paula Almeida (2011).
25

frequentada, foi edificada no bairro Floresta16, em Juiz de Fora. Porém, mesmo com a “porta
aberta” para solidificar a experiência com o daime, eu desisti. Os diálogos que tecia com ela
sobre a religião, incluindo seu funcionamento, aspectos do ritual e traços cosmológicos, não
me convenceram a concluir minha vontade, isto é, conhecer o Santo Daime.
Conquanto, em meados de 2012, comecei a frequentar, em Juiz de Fora, a casa de
uma pessoa também fardada no Santo Daime. Dessa vez, ela não era fardada em uma igreja
localizada nesse município. Mas, seu compromisso pessoal com o Santo Daime havia sido
firmado no sul de Minas, mais especificamente, na mesma igreja frequentada por meus
antigos professores do ensino médio, isto é, o Céu do Gamarra.
Flor17, pensando nos termos propostos por Soares (1989), fala o idioma alternativo.
Medicinas tradicionais, admiração à natureza, alimentos orgânicos, cuidados com o corpo,
esoterismo, primazia da intuição sobre a razão, energia, trabalho espiritual são práticas
recorrentes, seja em seus discursos ou na sua própria vida cotidiana.
Logo, manifestei, para com ela, meu intuito de conhecer a doutrina do Santo Daime.
Flor18 foi completamente aberta ao diálogo, me explicando o funcionamento do ritual, a
história da religião, os efeitos do chá, dentre outros aspectos que considerava relevantes
dentro da temática. Assim, depois de muita conversa, superei meus receios em participar de
um trabalho de daime. Ora, admito que não foi fácil para mim embarcar nessa experiência.
Embora quisesse conhecer aquele meio cultural e o uso ritual da ayahuasca, os seus efeitos no
organismo eram possibilidades que me freavam, o que se configurava enquanto um paradoxo.
Contudo, aos poucos, fui me abrindo para a ideia da experimentação.
Tal situação opera em sintonia com as ideias de Soares (1990), isto é, os indivíduos,
de carne e osso, guiados pelas inclinações, paixões e dúvidas, com frequência hesitam em
reconhecerem em si mesmos “a presença viva e conectora de uma agência comum e
transcendente” (SOARES, 1990, pg. 270). Entretanto, do modo observado por Soares (1990),
e como similarmente foi minha experiência, o modelo inserido pelo Santo Daime parece, e é,

16
Essa igreja foi estudada por Silveira (2007) sobre o viés da experiência do êxtase místico-religioso.
17
Opto, ao longo do texto, por uma alteração no nome de meus interlocutores, exceto no caso de, digamos,
figuras públicas do Santo Daime. Escolho, como substituição a seus nomes, a denominação de coisas da
natureza. Primeiro, em forma de homenagem, pelas suas admirações para com a natureza em si. Segundo,
pensando como Tim Ingold (2012), por essas coisas serem perpassadas por fluxos vitais, ou seja, terem vida,
assim como meus interlocutores.
18
Flor, durante o processo da pesquisa, foi uma espécie de “Doc”. Não necessariamente igual ao “Doc” de
Foote White (2005), embora tenha sido uma figura crucial na “abertura das portas”, tanto para a pesquisa quanto
para o interesse pessoal. Devido a minha proximidade, naquele momento, sua ajuda foi muito presente em
algumas reflexões, principalmente aquelas que advêm de algumas incertezas relativas às práticas daimistas.
Penso, usando as palavras de Valadares (2007), nessa pessoa como sendo um tipo de “intermediário que "abre
as portas"” (VALADARES, 2007, pg. 154).
26

forte, sedutor e atraente, operando no registro sensível, ou seja, proporcionando uma


experiência de êxtase sui generis.
Entendendo o campo onde o Santo Daime se prolifera, como tendo uma “cultura
religiosa errante” (AMARAL, 2000), essa religião se apresenta enquanto um “caso limite” de
“polarizar” esse campo, funcionando como “força de atração” e de “repulsão” (SOARES,
1990, p. 267). Pois, se a errância e o experimentalismo dão os tons à natureza das relações
entre os indivíduos e suas práticas religiosas de caráter alternativo, o Santo Daime “sai dessa
errância e se move em direção a um pouso mais circunscrito, mesmo que atravessado por um
trânsito”19. Dessa forma, voltando a minha experiência propriamente dita, o
experimentalismo, característico do mundo alternativo (SOARES, 1989; 1990), foi o
marcador para meu deslocamento rumo ao universo do Santo Daime.
O ritual estava marcado para o dia 12 de outubro de 2012. Decidi, nos dias anteriores,
seguir a dieta proposta em dias antecedentes ao ritual. Isto é, me abstive três dias antes, e
posteriormente, três dias depois, de ingerir carnes, praticar atos sexuais e beber álcool.
Todavia, durante esse período, tive um pequeno empecilho: fui diagnosticado com uma
amigdalite bacteriana fortíssima. Sendo assim, fui obrigado a começar um tratamento, dois
dias antes do ritual, com antibióticos e anti-inflamatórios. Confesso que, naquela altura, a
doença foi uma preocupação significativa para mim, mas, logo trataram de me avisar que não
haveria supostos efeitos colaterais na ingestão desses tipos de medicamentos juntamente com
a ayahuasca.
Assim sendo, decidi que iria doente, ou não. No dia do ritual, a amigdalite ainda me
atingia de forma constante, com inúmeras placas bacterianas posicionadas em diversos
lugares de minhas amígdalas. Como o ritual estava marcado para as onze horas da manhã,
acordei cedo, ingeri um desjejum reforçado com frutas, pães e suco e me dirigi ao Céu do
Gamarra, isto é, a igreja do Santo Daime, juntamente com um amigo, que também estava
indo pela primeira vez ao Santo Daime.
O Céu do Gamarra20 se localiza na zona rural de Baependi, Minas Gerais, mais
precisamente no Vale do Gamarra. Essa região ainda tem por característica uma vida isolada

19
Comunicação pessoal do professor Marcelo Camurça, obtida durante uma aula.
20
Uma série de igrejas do Santo Daime possuem a palavra Céu em seus nomes. Por exemplo, Céu do Gamarra
(Baependi, Minas Gerais), Céu do Matutu (Aiuruoca, Minas Gerais), Céu do Mapiá (Boca do Acre, Amazonas),
Céu do Mar (Rio de Janeiro, Rio de Janeiro), Céu de Maria (Osasco, São Paulo), entre outras. Porém, há igrejas
que não possuem a expressão em seus nomes, por exemplo, Luz da Floresta (Juiz de Fora, Minas Gerais) e Flor
de Jagube (Belo Horizonte, Minas Gerais). A explicação para a palavra Céu estar em diversas nomeações de
centros do Santo Daime está vinculada a própria denominação do Céu do Mapiá, a primeira igreja a colocar tal
expressão no nome. Nas palavras de Mortimer (2000), “a ideia deste nome veio de Pedro Mota, um dos filhos
27

e tipicamente rural. De acordo com Junqueira (2014), as relações sociais entre as famílias do
Vale do Gamarra são estreitas, visto que os casamentos acontecem, muitas das vezes, entre
primos ou familiares dos arredores, consequentemente, impossibilitando o distanciamento
entre os laços de parentesco. Os mutirões e os movimentos de solidariedade estão presentes
nessa área, mesmo com a presença, na região, de movimentos de transformação
(JUNQUEIRA, 2014). Transformações nascidas com o fluxo de pessoas, em sua maioria
vinculadas a um padrão urbano consideravelmente alto, chegadas a região a partir da década
de 1980, e ainda hoje em processo, constituindo, assim, o Vale do Gamarra enquanto um
entorno de várias possibilidades. Isto é, os motivos que levaram diversas pessoas a essa
região são distintos: alguns “nativos”, uns procurando viver parte da semana na cidade outra
na zona rural, outros Hare Krishnas, indo se instalar em uma comunidade lá localizada, e, por
último, os indivíduos interessados na igreja do Santo Daime (JUNQUEIRA, 2014).
O acesso ao Céu do Gamarra se dá através de uma estrada não asfaltada, cerca de
quarenta quilômetros do centro de Baependi. No caminho, é necessário passar por um bairro
da zona rural: São Pedro. O bairro é basicamente composto por algumas casas, uma escola e
o comércio local. A vista, durante o percurso, é bastante agradável, sendo possível visualizar
cachoeiras e serras. O vale do Gamarra está situado na Serra da Mantiqueira, ao sul de Minas
Gerais, sendo a região responsável por abrigar uma parte remanescente da Mata Atlântica,
tendo altitude média de 1.300 mm acima do nível do mar, com picos de até 2.340 mm de
altitude.
Logo na chegada ao Céu do Gamarra, há uma porteira com uma estrela de Davi e o
cruzeiro do Santo Daime e, mais um pouco a frente, uma placa com o anúncio: “Bem-vindo
ao Céu do Gamarra”.
A primeira construção, bem próxima a entrada, é o albergue. Nele, se hospedam
alguns visitantes que frequentam a igreja, seja usualmente ou a primeira vez, sendo a
contribuição para uso do local o valor de vinte reais. O recinto conta com camas, banheiro,
chuveiro, fogão e outros utensílios básicos de cozinha. Entretanto, alguns adeptos possuem
residências próprias no local. Em geral, são casas simples, porém, bem acolhedoras, devido
ao ambiente propiciado pela localização estratégica da comunidade
O Céu do Gamarra também possuí uma pousada chamada Espaço Lua Branca. 21 O
espaço abarca sete chalés; com acomodações para quatro pessoas cada; piscina, ofurô, sala de

do Padrinho, que recentemente havia colocado o nome de Céu numa colocação na boca do igarapé Trena, onde
pretendia morar” (MORTIMER, 2000, p. 231).
21
O nome da pousada é uma referência ao primeiro hino recebido por Mestre Irineu.
28

refeição com fogão a lenha, salão para práticas corporais; também para festas, palestras e
eventos em geral; mezanino de madeira para meditação, pomar com variedade de frutas,
internet, telefone fixo no casarão central e cachoeiras acessíveis com uma pequena
caminhada. O valor, para um fim de semana em um chalé de casal, gira em torno de 380
reais.
Nas dependências comuns no Céu do Gamarra há também uma cozinha geral.
Edificada com pedras, é um espaço que contém uma mesa grande; um espelho com o escrito
“Santo Daime” e com um desenho de beija flor; uma cristaleira, contendo pratos, garfos,
facas e utensílios em geral; um sofá; um sino e, por fim, um fogão a lenha.
Para se chegar ao local mais importante, a igreja, é preciso subir uma pequena ladeira
por um caminho de pedras, com um jardim a sua volta. A fachada frontal da igreja é
composta por plantas na parede de pedra. Em frente, há um Cruzeiro 22.
Durante a subida para a igreja não estava nervoso, mas, sim, ansioso. Chegando,
cumprimentei algumas pessoas, fiz uma troca de roupa, assinei uma lista onde todos os
presentes no ritual devem assinar e adentrei o recinto. Entrando no ambiente, foi possível
observar uma série de quadros na parede com conteúdo diverso: fotos do Mestre Irineu23;
Padrinho Sebastião24; Jesus Cristo; Padrinho Fábio e Madrinha Suzana25; pirâmides, dentre
outros. Olhando para cima, visualizei cinco estandartes com fotos de ilustres daimistas: dois
contendo uma imagem do Padrinho Sebastião; dois de Mestre Irineu; um da Madrinha Rita26.
No teto, estavam posicionadas “bandeiras de São João”27 com as cores verde e amarelo. Bem
ao centro do salão havia uma mesa redonda, cercada por instrumentos musicais – flauta,
sanfona, guitarra, violão, contrabaixo, zabumba, teclado e triângulo, sem contar os maracás.
Passando os olhos por cima da mesa, vi uma foto de Mestre Irineu; uma do Padrinho

22
O Cruzeiro é semelhante a Cruz de Caravaca, do cristianismo. De acordo com Rehen (2007), o Cruzeiro, ou
Cruz de Caravaca, teria sido revelada ao Mestre Irineu em uma de suas primeiras visões com o daime. Para os
adeptos “simboliza o poder do Santo Daime e do “astral”, assim como a volta do Cristo, cujo espírito estaria
presente em Irineu Serra e na própria bebida ingerida nos rituais” (REHEN, 2007, p. 34).
23
Mestre Irineu foi o fundador da doutrina do Santo Daime. No segundo capítulo dessa dissertação, abordarei
sua figura com mais ênfase.
24
Padrinho Sebastião foi o responsável pela expansão do Santo Daime para o sudeste e líder do Cefluris.
Também, no segundo capítulo as referências sobre suas ações são maiores.
25
Padrinho Fábio e Madrinha Suzana são os dirigentes da igreja do Céu do Gamarra. No início do capítulo três,
a formação do Céu do Gamarra, assim como o papel deles na edificação da igreja, será abordado.
26
Madrinha Rita que, atualmente, vive no Céu do Mapiá é uma figura importante no Cefluris. Ela é viúva do
Padrinho Sebastião e mãe do líder atual do Cefluris, Alfredo Gregório de Melo, o Padrinho Alfredo.
27
Bandeiras de São João são as tradicionais bandeirinhas de festa junina. No Santo Daime, elas refletem o
caráter festivo dos rituais.
29

Sebastião; um cruzeiro28; um vaso com flor; duas velas acessas; e Nossa Senhora Aparecida,
por conta da data. Embaixo da mesa, uma vela acessa e um copo de água.
Tomando como base a entrada principal, indo para a direita, percebi uma porta que
dava acesso a uma sala que é utilizada pelos homens, para descanso ou troca de roupa. Lá, há
também um banheiro com três cabines individuais, cada uma contendo vaso sanitário. O
mesmo ocorreria caso tomasse o rumo da esquerda e fosse para o espaço das mulheres.
Dentro do espaço da igreja, ainda havia mais um elemento: o “quartinho do daime”.
Neste espaço, o daime fica guardado durante o ritual. O quarto continha também dois quadros
na parede, copos, um armário – com hinários para serem emprestados – e uma mesa.
O ritual começou às onze horas da manhã com a reza do terço. Após terminada a
oração, era o momento em que o daime seria servido aos presentes. Entrei na fila, tentando
relaxar para apreender melhor a experiência, e tomei o daime – o que se repetiu por mais duas
vezes durante o ritual, já que, ao todo, foram servidas três doses da bebida. Admito que
esperava um paladar menos aceitável, contudo, o gosto da bebida, para mim, se mostrou bem
agradável, algo parecido com um vinho, porém um pouco mais fermentado, se comparado
com os habituais.
Logo, me dirigi ao espaço reservado para os homens não fardados29 presentes no
salão. Percebi a seguinte disposição no ritual: homens de um lado, mulheres de outro. As
mulheres ocupavam três fileiras com a divisão entre casadas e solteiras, se colocando à
esquerda, tomando como base a entrada do salão. Os homens seguiam a mesma disposição,
porém, se colocando a esquerda do recinto. Os visitantes, ou não fardados, se posicionavam
atrás dos fardados, no seu batalhão específico.30

28
Normalmente, as pessoas colocam nomes em um papel no cruzeiro para pedir oração. Em cima, ficam os
nomes dos vivos; embaixo os dos mortos.
29
Os membros que assumem um compromisso com a doutrina do Santo Daime são denominados como
fardados e utilizam uma vestimenta especial nos rituais. A veste ritual é denominada de farda. A farda utilizada
nos trabalhos oficiais, ou seja, a farda branca, para as mulheres é composta de: saia branca longa pregueada,
com um saiote verde pregueado sobreposto, duas faixas verdes transversais e entrelaçadas no peito e uma estrela
(de cinco pontas) ao lado direito do peito. No outro lado, uma “rosa”, para as casadas, ou uma “palminha”, para
as solteiras, além de fitas coloridas, no ombro esquerdo, costuradas na blusa e, por fim, uma coroa com
lantejoulas, sapatos e meias brancas. Para os homens: camisa, paletó, calça, sapato e meias brancas; gravata azul
escuro; e a estrela de cinco pontas do lado direito do peito.
30
Essa divisão entre os sexos, de acordo com os adeptos, gera um equilíbrio entre as forças que circulam no
espaço, sendo o próprio Mestre Irineu quem recebeu essa instrução da Rainha da Floresta. O ritual é entendido,
então, como um gerador que produz um campo energético contendo o polo negativo; as mulheres (yin); e o polo
positivo; os homens (yang). Justamente por isso que, durante o ritual, homens só atendem homens e as mulheres
somente tem contato com mulheres.
30

Com todos os presentes de pé, foram entoadas as orações: Chave de Harmonia e


Consagração do Aposento31. Depois, o trabalho começou “de fato”, com a entoação de
músicas, denominadas como hinos. Como bem salientou José Jorge de Carvalho (2009), o
mundo das religiões da ayahuasca é um mundo de encantamento e, parte desse encanto,
provém da sua dimensão musical (CARVALHO, 2009). O comentário de Carvalho é certeiro.
Todo o ritual foi perpassado pela música, ou melhor, pelos hinos. Para os daimistas, o hino é
recebido através de um contato extra material com o astral, ou como Rehen (2007a)
denomina, “os hinos seriam dádivas de seres sobrenaturais que as oferecem para os adeptos”
(REHEN, 2007a, p. 187).
Creio ser impossível relatar, seja por falhas na capacidade de comunicação do próprio
autor ou por se tratar de uma experiência subjetiva, em sua plenitude, as diversas sensações
sucedidas, em minha experiência, pela ingestão da ayahuasca. Melhor dizendo, “nada
substitui a experiência” (LABATE; PACHECO, 2009). Mas, algumas palavras podem ajudar:
amor, medo e cura.
Inicialmente, senti apenas uma sensação de conforto. Sabia que estava com a
consciência levemente alterada, mas, nada além disso. A sensação maior se dava pela secura
presente em meus lábios, mas, de forma cíclica, ora desaparecia e ora retornava. Estava, de
fato, observando as pessoas ao meu redor, com o intuito de tentar perceber seu
comportamento, pois, reparava algumas me olhando atentamente durante o ritual. Sem
dúvidas, elas me fitavam para tentar perceber caso eu tivesse alguma alteração
comportamental muito grande durante a cerimônia, pois, era minha primeira experiência com
o daime.
Mas, concomitantemente, eu tentava observar ao meu redor para apreender como se
dariam os efeitos em meu corpo. Raul Magalhães (1994) atenta para o fato de que os
indivíduos, sob efeito de substâncias psicoativas, principalmente em suas primeiras
experiências, no esforço de organizar suas sensações, procuram descobrir em si mesmos as
manifestações do outro. Ou seja, “saber, ou crer que o outro “está vendo o que eu vejo”
tranquiliza-me quanto a possíveis pânicos relativos à minha loucura individual”
(MAGALHÃES, 1994, pg. 25).
Um efeito mais forte, ou em termos nativos, a força do daime, se mostrou para mim
na segunda dose. Minha visão ora ficava muito clara, de forma que conseguia enxergar tudo
muito nitidamente, com as cores brilhando, contudo, minha noção de espaço era, por alguns

31
Para os daimistas, essas orações são uma forma de iluminar o ambiente para que o trabalho possa começar.
Nos anexos desta dissertação elas estão disponíveis em sua totalidade.
31

momentos, extremamente alterada, afetando assim no meu bailado 32. Minha noção de tempo
foi completamente desequilibrada, não saberia afirmar quantas horas, ao certo, haviam se
passado.
Assim, com esse efeitos ocorrendo simultaneamente e cada vez se dando de maneira
mais latente, um receio começou a fluir em minha mente. Sentia medo. Sentia que não queria
estar ali. Pensava porque havia trocado meu feriado – com inúmeras possibilidades de lazer –
para estar naquele ritual, bebendo aquele chá, com aquelas pessoas, que, nesse momento, para
mim se configuram enquanto indivíduos sem noção nenhuma da realidade por acreditarem
que aquele líquido tinha algum “poder”.
Sim, no meu primeiro contato com o campo, mesmo, naquela altura, não tendo
nenhuma pretensão de ingressar nos estudos sobre o Santo Daime, mas já tendo contato com
a teoria antropológica, não relativizei. Ao contrário, interpretava o exótico como sendo
necessariamente ruim.
Isto posto, uma série de lembranças dos mais variados aspectos – família, amigos,
relações sociais, universidade, conflitos, dentre outros – passavam por minha consciência
como imagens muito bem ilustradas. Algumas, eu conseguia me desfazer de forma rápida,
outras não, ficavam sorrateiramente indo e vindo, num movimento cíclico. Em especial, uma
memória da qual não conseguia me livrar, advinda de um conflito ocorrido em 2007,
perpassava minha própria condição. Percebi, então, que precisaria resolvê-la e que aquele
momento era o apropriado.
Dito em palavras, parece fácil33. Embora, na experiência proporcionada pela
ayahuasca, solucionar o conflito não foi tão simples. Para todos os efeitos, consegui. Em tal
momento, senti um forte sentimento de amor, de conexão com o universo. Havia conseguido
me livrar de uma, das tantas coisas, que geravam uma sensação de pesar.
Constatei que meu corpo transpirava em excesso. O suor escorria pelo meu rosto, até a
ponta de meu nariz. Parecia a transpiração estar tirando algo do meu corpo. Contudo,
continuei o ritual embalado por aquele sentimento “pré reflexivo, pré racional: o amor”
(MAGALHÃES, 1994, p. 194). A sensação era de plena felicidade e conexão com todas as
formas de vida presentes no universo.

32
O ritual é acompanhado pela música e pela dança, o bailado. A estrutura rítmica dos hinos são de três tipos:
marcha; em compasso quarternário; mazurca; com compasso binário composto; e valsa; com compasso ternário.
A cada um desses ritmos, um bailado diferente é executado.
33
Nunca é demais lembrar da aparente barreira entre quem participa e quem não participa do jogo ritual
(ALMEIDA, 2004). Melhor dizendo, “signos não são transportáveis de um contexto para o outro como se
fossem pacotes de significantes e significados” (ALMEIDA, 2004, pg. 17).
32

Terminado o ritual, veio o entendimento. Quando fui observar minha garganta frente
ao espelho, para ver a situação de minha inflamação nas amígdalas, a surpresa: todas,
completamente todas, as placas bacterianas haviam se desaparecido. Eu estava curado da
amigdalite.
Com isso, passei a frequentar mais sistematicamente os rituais do Santo Daime. Fato
que me leva a pensar em consonância com Soares (1990), ou seja, a pessoa frequentadora do
Santo Daime restitui sentido para suas viagens astrais à “luz da cosmologia 34 implicada no
Daime” (SOARES, 1990, p. 271). Exemplificando, no momento em que me senti livre da
amigdalite ou desprendido de problemas da ordem cotidiana estava, de certa forma,
reafirmando a cosmologia dessa religião. Ou melhor, “o triunfo individual realiza a glória
coletiva, reforçando o grupo, suas identidades e seus valores” (SOARES, 1990, p. 271).
Assim, me concebi jogando o jogo de linguagem proposto pelo daime, isto é, fortalecendo
meu próprio idioma religioso com o qual investigava minhas próprias experiência sensitivas.
Acabando por corroborar a proposta cosmológica inserida pelo Santo Daime, no puzzle de
mirações, com a qual o adepto “explora suas aventuras anímicas pelo cosmos” (SOARES,
1990, p. 271).
Um último ponto relativo a essa primeira experiência se faz necessário. Labate (2004)
salienta o fato do uso da ayahuasca, pelos antropólogos, ter a possibilidade de modificar a
natureza da etnografia. Concordo com as afirmações feitas pela autora, todavia, devido a
minha própria experiência, gostaria de afirmar o uso da ayahuasca também possuindo uma
probabilidade de “iniciar a etnografia”.
Digo, nesses termos, porque minha própria ideia de estudar o Santo Daime se
construiu durante o ritual acima descrito. Ou seja, durante meu estado alterado de
consciência, proporcionado pela contato com a bebida, foi onde me propus a fazer um estudo
acadêmico sobre o Santo Daime. Pois, se o daime me mostrou sua força retirando minha
doença e me fazendo jogar o seu jogo de linguagem, realizar algo sobre o Santo Daime no
meio onde atuava, para mim, parecia necessário, uma espécie de “pagamento de dívida” pela

34
Algumas considerações, acerca da cosmologia daimista se fazem necessárias. Groisman (1991) demonstra as
noções espíritas de carma, encarnação, livre arbítrio e reencarnação ordenando a experiência, no mundo, do fiel.
Dessa maneira, por intermédio dessas noções, é que a morte, a doença e os infortúnios podem ser explicados.
Temos, por exemplo, similarmente aos ideais espíritas, o Santo Daime operando a dualidade entre matéria e
espírito através da divisão dos mundos; um o mundo da ilusão, outro o mundo espiritual. Goulart (1996)
argumenta o fato de a ideia de comunhão, entre o homem e o mundo natural, se constituindo enquanto a base da
cosmologia do Santo Daime. Em sua estrutura cósmica as deidades principais são: A Ranha da Floresta; que
concedeu a missão de criação do Santo Daime para Raimundo Irineu Serra, sendo identificada como a Virgem
da Conceição; Jesus Cristo; e, Juramidam, que é entendido como o Cristo Salvador, se configurando enquanto a
representação de Mestre Irineu no plano astral.
33

experiência naquela manhã de feriado. Ao mesmo tempo, sentia a necessidade de estar


naquele local novamente para vivenciar aquela experiência religiosa outra vez. Então, saí de
lá decidido a levar tal proposta adiante e estabelecer uma relação acadêmica com o campo de
estudos sobre o Santo Daime, mas, concomitantemente, também estava determinado a viver
mais amplamente as experiências religiosas com o daime.

1.2 Entre o daime e a antropologia: questões de antropólogos ayahuasqueiros

O ponto proposto tem o propósito de suscitar uma série de questionamentos e


discussões. Meu escopo é desenvolver duas questões tangentes a tal debate. Primeiro,
trabalharei um argumento relativo aos “problemas” do engajamento com os sujeitos
pesquisados. Em um segundo momento, o ponto das dimensões da experiência etnográfica
serão inclusos no debate, juntamente com a tentativa pensar a questão da observação
participante mesclada com o uso de uma substância psicoativa.
É crucial perceber a antropologia enquanto uma disciplina cuja sofisticação não se
opera em um espaço virtual, fechado e abstrato (PEIRANO, 2014). Dessa forma, o
refinamento da própria teoria antropológica floresce através do permanente contato com
novos dados, advindo de novas pesquisas de campo. Logo, “todo antropólogo está, portanto,
constantemente reinventado a antropologia; cada pesquisador, repensando a disciplina”
(PEIRANO, 2014, p. 381).
A etnografia é, por excelência, a força motriz da antropologia, pois, ela não é apenas
método, mas, simultaneamente, também é teoria. Em outras palavras, “monografias não são
resultado simplesmente de “métodos etnográficos”; elas são formulações teórico-
etnográficas” (PEIRANO, 2014, p. 383, grifo da autora). Na academia, nós, antropólogos,
passamos por um extenso período de estudos relativos à teoria antropológica. Livros, artigos
e trabalhos, envolvendo as experiências etnográficas de diversos autores são lidos, relidos,
apresentados e estudados. Em tais escritos, está presente a importância do ir a campo.
Malinowski (1976), Evans-Pritchard (1978) e Roberto Da Matta (1987) são exemplos de
autores que salientam a importância do trabalho de campo. Ou ainda, como ilustra Rabinow
(1992):

Los miembros del departamento de antropología de la Universidad de Chicago pertenecían


a dos mundos diferenciados: los que habían realizado trabajo de campo y los que no; este
último grupo no eran antropólogos “autenticos”, independientemente del dominio que
pudieran tener de temas antropológicos. El profesor Mircea Eliade, por ejemplo, era un
34

hombre de gran erudición en el campo de las religiones comparadas y se le respetaba por


su saber enciclopédico, pero se subrayaba repetidamente que no era un antropólogo: su
intuición no había sido alterada por la alquimia del trabajo de campo (RABINOW, P.
1992, p. 25).

Particularmente, em meu caso, o interesse pessoal foi o catalisador para as pretensões


científicas, não somente na delimitação do objeto de estudo, mas, também para a escolha
específica de onde o trabalho de campo se realizou. Isto é, desenvolvi essa pesquisa na igreja
onde estabeleci o meu primeiro contato pessoal com o Santo Daime, ou seja, no Céu do
Gamarra.
A razão para a escolha do lugar onde realizei a pesquisa se pautou em dois pontos:
uma maior facilidade de entrada no campo, pois já conhecia, em alguns casos antes mesmo
de ir até a igreja, algumas pessoas que frequentavam tal meio e também pelo Céu do Gamarra
se constituir no primeiro núcleo daimista do sul de Minas Gerais, atestando assim sua
singularidade nessa região. Dessa forma, de certa maneira, meu acesso ao campo foi
facilitado por duas coisas; primeiro, as relações pessoais outrora tecidas e também, não
diretamente, mas muito importante, pelo fato de estar lá, tomando daime, junto com aquelas
pessoas.
Como dito anteriormente, os antropólogos ayahuasqueiros, frequentemente, possuem
uma dupla inserção no campo: uma de relação pessoal, outra antropológica. No meu caso, a
importância de assumir um tratamento acadêmico para o assunto, se configurou justamente
por um contato mais estreito, feito a partir da participação em diversos rituais dessa
manifestação religiosa.
Contudo, é importante ressaltar um ponto na relação dos antropólogos com o sagrado.
Groisman (1999) salienta que sua participação no Santo Daime, durante sua pesquisa, não
incluiu o fardamento, pois, na visão desse autor, tal compromisso, com seus deveres e
responsabilidades para com a doutrina pode, mas, não necessariamente, prejudicar a pesquisa
proposta.
Mesmo minha relação com o Santo Daime não incluindo o fardamento, sou tentado a
discordar de Groisman (1999), preferindo adotar outra postura. Assim, em contraste,
Camurça (2009), valorizando a experiência de campo do antropólogo na etnografia, sinaliza a
positividade do antropólogo em ter a oportunidade de experienciar o sagrado, devido a
abertura da possibilidade fecunda de interpretação do fenômeno focalizado no exercício
etnográfico. Seguindo, este autor coloca a polaridade de “tornar-se nativo”, ou manter um
distanciamento para a compreensão da alteridade, como talvez não sendo as dimensões mais
35

importantes do dilema etnográfico. O crucial, então, seria “explicitar as condições de


produção do discurso etnográfico todo o tempo, assim como o lugar de onde fala o
antropólogo e sua interlocução com o nativo” (CAMURÇA, 2009, p. 59). Mas, ao explicitar
o local de fala e interlocução do antropólogo com o nativo, é necessário compreender o
processo etnográfico enquanto um processo de construção subjetiva (RABINOW, 1992), ou
melhor, a informação obtida no processo não é processada dentro de um laboratório, mas, em
um espaço de interação interpessoal de caráter subjetivo (RABINOW, 1992).
Dito isso, passarei a discutir mais sistematicamente a relação proposta entre os
problemas do engajamento com os sujeitos pesquisados, ou objeto da pesquisa, partindo do
pressuposto indicado por Peirano (2006), ou seja, “a teoria é o par inseparável da etnografia,
e o diálogo íntimo entre ambas cria as condições indispensáveis para a renovação e
sofisticação da disciplina” (PEIRANO, M. 2006, p. 7).

1.2.1 “Problemas” do engajamento com os sujeitos pesquisados

Tratando dos rumos da reflexão metodológica, Ruth Cardoso (1986) demonstra certa
preocupação dentro do campo das ciências sociais. Tal discussão, para a antropóloga, passa
por uma ênfase tanto no papel do pesquisador, juntamente com seu envolvimento, quanto nas
consequências disto para a pesquisa. Mas, concomitantemente, há uma diminuição no que
tange ao espaço dedicado ao debate propriamente metodológico (CARDOSO, 1986).
Logo, a discussão estaria caminhando para um conformismo para com o ecletismo
enquanto uma boa saída, ou um bom caminho, para o conhecimento e qualquer indagação
colocada “por este ou aquele método é impertinente” (CARDOSO, 1986, pg. 95). Por isso, o
debate se reduz em relação a relevância do tema pesquisado e também na maneira pela qual o
cientista se engaja no estudo, se transformando, para Cardoso, em um porta voz dos anseios e
carências, ou das “verdades”, dos nativos. Isto posto, “o critério para avaliar as pesquisas é
principalmente sua capacidade de fotografar a realidade vivida” (CARDOSO, 1986, pg. 95).
Prosseguindo, Cardoso não nega a importância dedicada a valorização da pesquisa de
campo, todavia, seu alerta diz respeito a exercer uma reflexão sobre a utilidade das técnicas
empregadas pela antropologia em sua construção científica. Considerando a antropologia
como uma ciência que não se define pelo seu objeto, mas, sim, através de seu método,
podemos pensar em tal análise enquanto uma nítida preocupação direcionada a aplicação e
importância do método.
36

Exemplificando o problema, Cardoso (1986) demonstra uma inconformidade com a


relação entre a defesa do engajamento e a “exigência” do pesquisador ser “aliado” dos
sujeitos pesquisados. Então, de acordo com a autora, a ideia onde o conhecimento não pode
se livrar de uma dose de ideologia, ou melhor, a constatação da falsidade da neutralidade
axiológica, postou o antropólogo enquanto um aliado de grupos minoritários, que foram
priorizados nos estudos. Mas, a natureza do impasse, digamos assim, reside fatalmente na
constatação do movimento de intensificação da participação ser justificado por meio de
razões políticas, ao invés de ser pensado como instrumento de conhecimento (CARDOSO,
1986).
Assim sendo, como lidar com os problemas inseridos por Ruth Cardoso? Para isso,
parto do mesmo pressuposto colocado por Labate (2004) e, de certa forma, por Camurça
(2009), isto é, uma abordagem objetiva, não no sentido de existir uma absoluta neutralidade,
mas uma tentativa de explicitar e evidenciar, ao máximo, tanto o lugar de falar do
pesquisador, quanto as condições materiais que envolvem a pesquisa. Logo, algo parecido
com o argumento da necessidade de precisar as relações sociais em seu contexto e estudar as
condições sociais de produção dos discursos (CARDOSO, 1986).
No que tange a questão da filiação, ou adesão, a determinadas práticas religiosas e a
participação no ritual, também me sinto em consonância com as afirmações de Labate (2004),
ou melhor, para os adeptos do Santo Daime talvez eu seja mais um cientista, um pesquisador,
do que um daimista; por outro lado, na academia, o meu provável vínculo religioso é, quase
sempre, posto em pauta com diversas questões, como por exemplo: “Você é fardado?”; “Mas,
você toma o daime?”; “Como você pensa na pesquisa enquanto toma o chá?”. Sem dúvidas, a
título de reflexão, foi na academia onde mais me perguntaram sobre assumir compromissos
com a religião, sendo que, entre os adeptos, essa questão muito raramente é levantada para
mim.
Pensemos, nos termos propostos por Cardoso (1986), ou seja, a adesão enquanto
instrumento de conhecimento e não através de relações políticas. Mesmo com a possibilidade
dos nativos me reconhecerem mais enquanto um pesquisador, sou, de certa maneira, de
dentro do grupo, pois divido experiências extáticas com eles. Todavia, também sou de fora,
por ser um cientista interessado no grupo e não ter uma posição de filiação rigorosa ao Santo
Daime. Como forma de construção de conhecimento, por ser de dentro, tenho acesso
privilegiado a esse universo (LABATE, 2004), muito pelos adeptos saberem qual a intenção,
não compreendendo minha busca por entendimento enquanto uma busca por
37

sensacionalismo, por exemplo. Em outras palavras, “isto facilita a pesquisa antropológica”


(LABATE, 2004, pg. 37).
Embora Labate (2004) compreenda a relação de inserção enquanto algo positivo para
a pesquisa, é fulcral entender alguns pontos. Camurça (2009) atenta para o fato da
interiorização das crenças do grupo religioso, pelo antropólogo, se dar em forma de
metáforas. Ou melhor, o pesquisador, para ter sua inserção aceita e bem vista, “mimetiza pela
etiqueta da convivialidade o comportamento de seus “nativos” nos rituais e preceitos, mas
com uma percepção interior diferenciada destes” (CAMURÇA, 2009, p. 56). Como
consequência, mesmo com a posição do antropólogo de se diluir no cotidiano do grupo, o
resultado de suas experiências subjetivas, em muitas vezes, acaba por ficar de fora dos
resultados finais da pesquisa. Claramente, as experiências, principalmente com substancias
psicoativas, enfrentam uma dificuldade para serem relatadas no modelo científico proposto
pela academia. Como ilustra Dias:

Este foi um sério dilema que tive que enfrentar, ao ter que omitir fatos e experiências que
considerava relevantes, por não se enquadrarem dentro dos paradigmas acadêmicos. A
rigor, eu deveria me ater à análise objetiva dos aspectos antropossociais do objeto.
Descrevê-lo, classificá-lo e enquadrá-lo dentro de um dos códigos existentes, de maneira
lógica e racional. (DIAS, W. 2002, p. 460).

Continuando, para Labate, o trunfo do antropólogo está justamente em ocupar um


espaço entre (LABATE, 2004), isto é, nem lá; nem cá. Logo, para a antropóloga, algo muito
similar ao que DaMatta (1978) cristalizou na expressão: “transformar o exótico no familiar
e/ou transformar o familiar em exótico” (DAMATTA, 1978, p. 28). Contudo, uma colocação
se faz necessária acerca do entre. Tal lugar – entre – não deve ser compreendido enquanto
“uma correlação localizável que vai de uma para outra e reciprocamente” (DELEUZE, G;
GUATTARI, F, 2011, p. 49). Isto é, “o meio não é média” (DELEUZE, G; GUATTARI,
2011, p. 49), mas, justamente, um lugar onde as coisas ganham velocidade (DELEUZE, G;
GUATTARI, F, 2011). Consequentemente, o antropólogo, nessa situação, não consegue
descolar a visão antropológica do olhar daimista, ou vice versa, como sendo apenas uma
transição de pensamentos.
Então, é designando o entre, em tais termos, onde está um dos possíveis caminhos
para pensar a imersão enquanto instrumento de conhecimento. Para isso, é crucial apreender
esse entre como constituindo uma direção perpendicular, “um movimento transversal que as
carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que rói suas duas margens e adquire
velocidade no meio” (DELEUZE, G; GUATTARI, F, 2011, p. 49).
38

Dessa forma, caso o pesquisador se situe adequadamente neste espaço entre, uma
visão múltipla e mixada do objeto pode vir à tona. Ou seja, a “velocidade do meio” pode ser
salientada, no texto, a partir da construção de uma visão que potencialize as próprias
multiplicidades da pesquisa. Então, o antropólogo deve trabalhar com essas duas frentes –
pesquisador e adepto – de forma multifacetada, concebendo tal relação não enquanto apenas
“sou de dentro” e “sou de fora”, mas, como um tipo específico de florescimento de
conhecimento, que cresce a partir de um movimento transversal. Ou ainda, não menos
importante, o antropólogo, nessa posição, deve explorar o caráter multifacetado de sua devida
inserção, dito de outra maneira, explanando tanto seu próprio local de fala, em sua condição
múltipla, quanto compreendendo as próprias multiplicidades como sendo a realidade
(DELEUZE, G; GUATTARI, F, 2011).
Em vista disso, é necessário grifar dois pontos; primeiro, o fato de ter a experiência
extática junto com os nativos supõe uma relação de que o pesquisador está do nosso lado
(LABATE, 2004), construindo, assim, uma relação de confiança mútua, cujo
desenvolvimento está ligado, fortemente, ao bom andamento da pesquisa. Segundo, a ideia
nativa de que o próprio pesquisador deve experimentar o daime por si mesmo, no sentido de
que ele é o “professor dos professores”, trazendo ensinamentos que não seriam entregues de
outra forma.
Este último ponto já me foi ressaltado em campo, em um diálogo com o dirigente do
Céu do Gamarra, Fábio Pedalino. No caso, foi me dito a necessidade, para qualquer pessoa
que estudasse o Santo Daime, de se examinar na força, ou seja, tomar o daime e conhecer
seus efeitos. Sem dúvidas, isso reflete, de certa forma, a própria relação construída de um
sentimento de cumplicidade, dos adeptos, para com a bebida.
Para finalizar esse tópico, entendo que não é garantia de qualidade para a pesquisa a
inserção pessoal dentro do ritual, entretanto, como tentei demonstrar, ela pode ter um caráter
extremamente produtivo. Contudo, uma autoanálise faz-se, portanto, necessária e convém ser
inserida na própria história da pesquisa (VALADARES, 2007). Ou ainda, reconhecendo a
identificação enquanto necessária para “apreender” de dentro as categorias culturais
(DURHAM, 1986), é fulcral sempre voltar a atenção para o risco de explicar determinado
complexo cultural através das próprias categorias nativas, ao invés de interpretar tais
“categorias através da análise antropológica” (DURHAM, 1986, p. 33). Por fim, de certa
forma, ver e presenciar não condiz absolutamente com conhecer e compreender. Logo, o que
vemos e encontramos não é fatalmente conhecido (VELHO, 1978). Assim, a “realidade” é
sempre interpretada a partir do ponto de vista do observador, ou melhor, é necessário
39

perceber o estudo acadêmico da sociedade enquanto objetividade relativa, mais ou menos


ideológica e sempre interpretativa (VELHO, 1978).

1.2.2 Dimensões da experiência etnográfica: dois controles

Durante a etnografia, uma miríade de questões surgem e/ou advém da experiência


etnográfica. O pesquisador deve estar atento para as maneiras possíveis de lidar com as
impressões, os afetos, os equívocos e o imprevisível, com o intuito de que tais fatos possam
render na hora da análise. Tentarei, então, discutir alguns temas que circulam a experiência
etnográfica de forma que consiga uni-los com a minha própria experiência em/no campo.
Contudo, antes, farei algumas considerações sobre pontos que envolvem a experiência de
estar no campo.
Ver, na linguagem cotidiana, ou do senso comum, significa um contato imediato com
o mundo que não necessita nenhum tipo de treinamento. Contudo, o olhar do etnógrafo,
quando não inquieto, deve ser, no mínimo, questionador, em busca da significação das
variantes (LAPLANTINE, 2004). Logo, a percepção etnográfica não é da estrutura do visto
imediatamente, mas da visão – e também do conhecimento – “mediada, distanciada,
diferenciada, reavaliada, instrumentalizada [...] e, em todos os casos, retrabalhada pela
escrita” (LAPLANTINE, 2004, p. 17).
Entretanto, a descrição etnográfica não deve se conter apenas a uma percepção
meramente visual. A mobilização da totalidade da inteligência do antropólogo, de sua
sensibilidade, e até de sua sensualidade, são fatores que merecem atenção. Por isso, é pela
visão, audição, olfato, tato e paladar que o pesquisador percorre as diversas sensações
encontradas (LAPLANTINE, 2004). Especificamente, no caso do contato com a ayahuasca,
ou seja, em um campo de estudos que trata de estados alterados de consciência, a experiência
sensitiva possui “tanto ou maior importância do que o cognitivo, o conhecimento via intelecto
ou razão” (LABATE, 2004, p. 42). Assim, concordo com as reflexões de Labate, ao
vislumbrar uma coexistência entre a experiência sensível e a constante reflexão cognoscível
“que acompanha essa experiência, seja na forma de auto reflexão moral, ou de especulação
sobre a experiência sensível, ou de contemplação da forma” (LABATE, 2004, p. 42).
Como dito anteriormente, tomar o daime junto com os participantes pode estabelecer
uma relação de confiança mútua, elementar para o bom andamento da pesquisa. Laplantine
(2004) também reforça esse tipo de reflexão, ao demonstrar a não possibilidade de existência
da etnografia caso a relação entre pesquisador e pesquisado não possua uma confiança mútua
40

e um intercâmbio (LAPLANTINE, 2004). Ou melhor, incluir-se subjetivamente, e não


apenas socialmente, é parte do objetivo científico, assim como do modo de conhecimento
característico do trabalho do etnólogo (LAPLANTINE, 2004). Então, de fato, a experiência
no campo, isto é, a observação participante, supõe construção subjetiva (RABINOW, 1992),
uma interação entre os interlocutores da pesquisa e o pesquisador, colocando as informações
obtidas sempre em conexão com o comportamento e as relações desenvolvidas com o grupo
estudado (VALADARES, 2007).
Logo, não devemos encarar a observação participante enquanto uma prática simples,
pois, em sua existência há uma série de problemas teóricos e práticos que devem ser
gerenciados pelo próprio pesquisador (VALADARES, 2007). Aqui, gostaria de tocar em um
último ponto, tangente aos problemas práticos surgidos durante a pesquisa, isto é, a questão
dos controles.
É perceptível a dificuldade, como exposto acima, do antropólogo ayahuasqueiro sair,
com facilidade, seja de sua percepção enquanto daimista ou enquanto antropólogo. Para isso,
busquei uma saída pensada nos termos propostos por Deleuze e Guattari (2011), ou seja,
perceber o entre enquanto um local onde as coisas adquirem velocidade, ao contrário de uma
coexistência localizável, que se move de uma condição para a outra sem impasses.
Embora, como Valadares (2007) demonstra, as dificuldades práticas devem ser
administradas pelo pesquisador. Assim, através de minha própria experiência, percebo um
imbróglio em determinada questão, que gostaria de abordar. Tal ponto é relativo ao seguinte
ponto: como operam os controles, simultaneamente situados, do sujeito antropólogo e do
sujeito daimista?
Seria ingênuo afirmar o deslocamento de uma forma de percepção para a outra como
sendo uma tarefa simples. É importante ter em mente o fato de que os dois controles operam
de forma concomitante no entre lugar. De fato, não é meu escopo esgotar o assunto, mas,
gostaria de propor uma possível forma de lidar com a situação. Para isso, brevemente e
separadamente, vou expor alguns traços daquilo que estou denominando como controle
antropológico e daimista. Comecemos pelo último.
Zinberg (1984) grifa a necessidade de levar em consideração não apenas a atividade
química e farmacológica da substância, mas, também, o set – a atitude da pessoa no momento
da ingestão – e o setting; a interferência, ou influência, do meio, seja físico ou social, no qual
se opera o uso. Para o autor, a forma do uso “controlado” é pautado por valores, regras de
conduta e padrões de comportamento, cujas orientações são seguidas pelos indivíduos
envolvidos naquela atividade ritual. Dessa forma, Macrae (2005), ilustrando os rituais do
41

Santo Daime, afirma: “todos envolvem a toma do daime e a entrada em um estado de


consciência alterado, dentro de um setting social e físico, que contém e direciona as
‘viagens’” (MACRAE, 2005, p. 463, grifo do autor).
Vejamos algumas regras de conduta, ou controles, propostas pelo Santo Daime:
abstenção de carne, álcool e sexo são determinações dietéticas e comportamentais que devem
ser seguidas para um bom aproveitamento da experiência, atestando a dimensão do ritual. Ao
mesmo tempo, ocorre um controle da dosagem do chá oferecido aos participantes e a
formação de uma organização, respeitando uma hierarquia, onde o dirigente da igreja e os
fiscais 35 têm a incumbência de manter a ordem ritual e doutrinária durante a sessão.
Especificamente, no momento do rito, cada indivíduo é “um guerreiro”, fazendo parte do
“exército da Rainha”, comandado pelo “General Juramidam” 36, ou seja, tal guerra se
configura na batalha pela doutrinação e salvação, “limpar-se” da sujeira dos atos e também
dos pensamentos que não condizem com os princípios doutrinários. Sendo assim, para se
“limpar” é necessário tomar o daime, bailar, cantar e compor a corrente espiritual durante o
trabalho.
Já o controle antropológico se manifesta, em poucas palavras, da seguinte maneira:
em consonância com Foote White (2005) e Valadares (2007), é importante tomar nota e
manter o diário de campo para uma auto disciplina, na observação e na anotação sistemática
dos eventos ocorridos. Normalmente, no dia após a participação no ritual, anoto acerca das
experiências lá vivenciadas, sejam subjetivas ou físicas, juntamente com detalhes que tangem
à estrutura e ao andamento das atividades e, por fim, algumas coisas básicas como:
quantidade de doses servidas, número de hinos cantados, orações entoadas, modo como se
procede a abertura e fechamento dos trabalhos, isto é, características específicas do modus
operandi ritualístico do Santo Daime. Além disso, é necessário lembrar o fato do controle
antropológico estar sempre operando no sentido do antropólogo estar “observando” as
condutas sociais de seus interlocutores e a estrutura cultural e social ali manifestada.
Para Labate (2004) a participação em um ritual que tem por base a ingestão da
ayahuasca pode levar “a técnica da observação participante a um ponto em que ela se
desmonta” (LABATE, 2004, p. 50, grifo da autora). Ou ainda, “há participação integral que
afeta drasticamente a natureza da observação” (LABATE, 2004, p. 50-51). Como saída para
tal questão, a autora destaca a importância do posicionamento do antropólogo não ficar
invisível durante o texto, colocando o trânsito entre daimista e antropóloga como possível,

35
O fiscal é um fardado que tem a responsabilidade de zelar pelo bom andamento do ritual.
36
A expressão – Juramidam – equivale ao nome de Mestre Irineu no plano astral.
42

em sua experiência. Creio ser uma ótima resolução, mas, paralelamente, acredito que,
enquanto antropólogos, nesse caso específico, podemos ir um pouco além.

1.2.3 Pontos de vista?

Este ir além significa, ao meu ver, compreender os dois tipos de controle –


etnográfico e daimista – operando de forma simultânea no sujeito, isto é, sem afirmar uma
possibilidade de separação dessas esferas. É reconhecer que o uso da ayahuasca propõe –
embora o ritual, como exposto acima, empregue normas de conduta – uma mudança
arriscada, no sentido de que os efeitos e as intensidades da experiência só podem ser medidas
por quem se sujeita a ela. Arriscada também na acepção de gerir os “problemas” como
vômitos, diarreia e alterações sensoriais advindos do uso da ayahuasca. E, por último, não
menos importante, arriscada no aspecto da ingestão do chá conduzir a um deslocamento de
perspectiva, ou melhor, de ponto de vista.
Partindo do pressuposto nativo de que o daime não é uma droga, mas um “ser divino”,
uma “planta professora”, dotado de um poder imenso e até mesmo de vontade própria
(MACRAE, 2005), e, juntamente, com a particularidade da experiência provocada para cada
indivíduo, penso a ayahuasca inserindo nos adeptos – e também no antropólogo –
“perspectivas móveis, em suma – pontos de vista” (VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 349).
Se Durkheim (2003) estiver certo e a antropologia; ou sociologia; da religião forem
também uma forma de antropologia; ou sociologia; do conhecimento, na medida em que se
dedicam a entender como é possível conhecer através de categorias ou conceitos outros, isto
é – nativos ou religiosos –, o Santo Daime pode ser pensando como uma religião constituída
com essa premissa: o daime permite o “autoconhecimento”, o “desenvolvimento espiritual”
através do contato com outras realidades, no caso, extramateriais.
Mas, para seguirmos, é necessário levar a sério os deslocamentos de perspectivas
proporcionados pela ayahuasca, ou seja, entender essas “realidades extramateriais” como
sendo uma forma de experienciar a realidade, ou, outra realidade, outra forma de enxergar o
mundo. “Outrem é a expressão de um mundo possível” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p.
131). Daí, trata-se de pensar tais realidades encarnando justamente outros pontos de vista?
Para mim, a resposta é afirmativa em tal ponto e, para isso, se faz necessário entender
algumas categorias – “planta professora”, “doutrina” e “trabalho”.
A planta, o daime ou a ayahuasca é quem concede a possibilidade de conhecimento,
por ser uma “planta professora” ou um “ser divino”. Então, o daime é quem possibilita o
43

acesso ao conhecimento, assim, “acreditam que toda a vez que alguém toma essa bebida tem
a oportunidade de entrar em contato com Deus [...] (MACRAE, 2005, p. 462). Ou ainda,
como afirma o Padrinho Fábio Pedalino, dirigente do Céu do Gamarra: “o Céu do Gamarra é
uma escola cujo objetivo é apenas o entendimento e o conhecimento das coisas espirituais”.
Tal acesso ao conhecimento, retomando Zinberg (1984), se dá através do contato com o chá e
com as regras de condutas prescritas no ritual. Todavia, os daimistas também têm
formulações parecidas. Nesse caso, Fábio Pedalino comenta: “o daime sem a doutrina é como
um veículo sem a estrada”. Dessa maneira, me parece importante o fato de tentar perceber
como a própria planta exerce sua potência transformadora, deslocadora.
Logo, a potência de deslocamento é o daime, a doutrina é o guia. Aqui, o daimista
também compreende, similarmente a Zinberg (1984) e Macrae (2005), a importância do
controle rígido sobre a experiência. Assim, é de se assumir o risco do deslocamento de ponto
de vista proporcionado pela ayahuasca, de modo que sempre alguém mais experiente deve
tomar a frente da sessão ou, pelo fato de existirem, no caso do Santo Daime, os fiscais e toda
uma fórmula dietética antes e pós ritual. Reconhecer esse tipo de risco é uma possibilidade de
entender a potência da planta como deslocadora de pontos de vista e o risco desse
deslocamento, na condição do Santo Daime, sem a orientação da doutrina.
O poder da planta, digamos, pedagógico, no sentido de aquisição do conhecimento,
reside na sua capacidade de deslocar os pontos de vista, uma vez que se trata de, ao tomá-la,
entrar em contato e também perceber realidades extramateriais. Tais realidades não
encarnariam justamente outros pontos de vista a respeito da própria vida? Ou ainda, até que
ponto o dar a conhecer do daime não é precisamente acessar um ponto de vista outro acerca
da vida material, possibilitando, dessa forma, um gesto de estranhamento da vida do sujeito?
A questão, nos termos ressaltados por Flor, está assim delineada:

Ele (o daime) começa a te mostrar [...] você não começa a interpretar aquilo de uma
única maneira [...] você começa a ter outros contatos com as pessoas e com as suas
práticas do dia a dia, você muda o seu ponto de vista, ele não fica limitado a uma só
visão, você começa a ver vários pontos de uma coisa que você veria de um jeito só.

O deslocamento, então, se procede através do contato com o daime no ritual. Contudo,


ele também se alastra para as próprias práticas cotidianas, alargando a perspectiva do adepto
sobre as coisas do mundo. Para o daimista, o mundo físico, isto é, a realidade material, o aqui
e agora, é o “mundo de ilusão”. Ilusão no sentido de que o outro mundo – o espiritual – é a
realidade, sendo preciso conseguir enxergar esse fato, e, também, pela condição desse mundo
44

material conter uma miríade de ilusões, visto que a “verdade” só pode ser alcançada pelo
contato com o mundo espiritual. Podemos ver isso na estrofe de um hino: “O espírito que
vem a terra trazer a evolução; Despertar pro mundo espiritual; É deste reino que vem toda
inspiração das artes da ciência e do amor; De lá também vem a vida material [...]”.37
Por isso, para despertar rumo ao mundo espiritual, todo adepto deve, além de tomar o
daime nos trabalhos, ajustar seus comportamentos às concepções da doutrina, pois aí está o
alicerce para a transformação pessoal, uma vez que, como dito anteriormente, o “daime sem a
doutrina é como um veículo sem a estrada”. Nesse ponto, é importante destacar o uso do
termo trabalho, devido ao seu uso para se referir a uma multiplicidade de práticas. Por
exemplo: o ritual é trabalho; o ato de fazer o daime, ou melhor, o feitio 38, é trabalho; uma
passagem ocorrida no ritual é trabalho; a concentração 39 é trabalho; a cura é trabalho; o canto
é trabalho; o êxtase é trabalho; o hinário é trabalho; a conduta da vida cotidiana é trabalho.
Sem dúvidas, essas assimilações derivam de um ponto em comum, isto é, o trabalho no plano
astral (OLIVEIRA, 2008). Nos hinos, o verbo trabalhar é conjugado de diversas maneiras,
embora todas se refiram ao seguinte raciocínio: a obrigação do adepto de concluir tarefas que
são substanciais para seu crescimento dentro da doutrina e para, consequentemente, atingir a
realização espiritual plena. Assim, podemos pensar tal como Soares (1989), ou seja, trabalho
designa o empenho espiritual (SOARES, 1989), relativamente agregado ao cuidado direto
com o corpo.
Então, o trabalho é o objetivo do adepto (OLIVEIRA, 2008), ou ainda, no trabalho o
sentido da espiritualidade se firma como uma ratificação de que a luta é coletiva, sendo que
cada indivíduo deve desempenhar seu papel, cumprir sua missão (GROISMAN, 1999).
Portanto, estamos diante de uma via de mão dupla, pois, se o ritual, ou trabalho, é de extrema
importância para o alcance da espiritualidade, o trabalho das práticas cotidianas também é.
Pois, a compreensão, aparentemente, assim acontece: tudo que acontece no ritual é espelho,
ou depende de como o daimista está naquele momento, visto que o trabalho resume a sua
vida. Dito isto, cabem duas considerações. Primeiro, o trabalho, concomitantemente, depende
de como o adepto está no momento, mas, também é de responsabilidade da corrente
espiritual. Segundo, a ideia de trabalho não pode ser entendida fora do seguinte eixo: trabalho

37
Fábio Pedalino, O Espírito da Evolução, Quinto Livro, hino 1.
38
O feitio é o ritual onde se faz o daime. Nele, as mulheres são responsáveis pelo cuidado referente as folhas
rainha. Os homens ficam por conta de macerar o cipó jagube. No Céu do Gamarra o feitio é realizado durante a
semana santa.
39
A concentração é um tipo de ritual onde os indivíduos tomam o daime, permanecem sentados e em silêncio. O
objetivo desse tipo de trabalho é tentar um mergulho individual mais profundo.
45

material, ou cotidiano; trabalho material no ritual, isto é, cantar, tocar e bailar; trabalho
espiritual, miração40, incorporação, êxtase.
Então, percebendo as noções nativas de “planta professora”, “doutrina” e “trabalho”,
como sendo uma espécie de base de uma teoria nativa do conhecimento e da transformação
pessoal, o Santo Daime parece ser uma religião que pensa o conhecimento em termos de
deslocamentos de perspectivas, ou pontos de vista. Melhor dizendo, a planta concede a
possibilidade, através do trabalho, de alcançar o ponto de vista da doutrina, ou da própria
planta – uma vez que, nesse caso, elas não podem ser pensadas separadamente – permitindo
ao adepto a possibilidade de ver a si mesmo e a sua vida com outros “olhos”. E, assim, se
transformar. Dessa forma, é notável essa aquisição de conhecimento se realizando como um
deslocamento controlado 41 em direção ao outro, especificamente, ao outro mundo, conjugado
com seus impactos na vida neste mundo.
Não seria o caso de analogias prósperas da forma como o sujeito em contato com o
chá adquire conhecimento e a prática antropológica? Não é meu intuito afirmar o
conhecimento operando em tais manifestações da mesma maneira ou visando os mesmos
fins. Pois, parece compreensível que o Santo Daime e a antropologia pouco coincidem nesse
sentido. Mas, podemos pensar nos seguintes termos: o antropólogo voltado para o estudo
desse religião corre riscos – ou seja, a operação arriscada de se tomar o chá evoca a aventura
arriscada de ir a campo e vice versa.
O conjunto de teorias, expostas anteriormente, do Santo Daime, orientadoras do
deslocamento de perspectiva, tem paralelos com o conjunto de teorias balizadoras da nossa
disciplina? Os dois42, de certa forma, são auxiliadores da construção de tipos específicos de
conhecimento, de maneiras singulares, de multiplicação dos dois mundos. A antropologia,
não tendo “a tarefa de explicar o mundo de outrem” (VIVEIROS DE CASTRO, 2002, p. 132)
multiplica o nosso mundo, realizando esse possível como virtual (VIVEIROS DE CASTRO,
2002). O Santo Daime multiplica as próprias perspectivas de compreensão do cotidiano e
concede a oportunidade do conhecer através do êxtase.

40
Clodomir Monteiro da Silva (2002), ao definir miração, diz que este estado não se confunde com visões
alucinatórias, ou seja, podem acontecer fenômenos análogos ao estados de transe, possessão ou êxtase.
41
Controlado no sentido de levar em conta o setting (ZINBERG, 1984; MACRAE, 2005), mas, também, se
estamos levando a sério o deslocamento de ponto de vista ocasionado, na acepção de que o sujeito somente vê,
sente ou desloca o ponto de vista de acordo com a vontade da planta. Melhor dizendo, a planta é quem permite
“ver” e a pessoa só “vê” o que a planta quer, de acordo com seu merecimento.
42
Carvalho (1998) aponta a antropologia e o esoterismo como sendo descendentes do projeto da modernidade e
críticos dos seus sistemas de valores. A ciência antropológica, que se recusa a fragmentar o real, para Carvalho
(1998), seria uma espécie de ciência sagrada, pois, inspirada em uma simbologia de busca, ela também seria um
caminho esotérico. Isto é, “antropologia e esoterismo seriam cúmplices de um mesmo cosmopolitanismo”
(LABATE, 2004, p. 36).
46

E o trabalho do daimista não possui possíveis paralelos com o trabalho do


antropólogo? O adepto, através do trabalho, está sempre imerso num esforço arriscado de
conceder sentido, de produzir sentido, a partir da perspectiva que a planta “deixa” que ele
veja, isto é, jogando o jogo de linguagem do Santo Daime (SOARES, 1990). O antropólogo
também joga um jogo de linguagem, mas, outro; o da etnografia. Um comportamento, um
objeto ou uma palavra postam o antropólogo em uma empreitada, também arriscada, de
conceder sentido, de produzir sentido a partir daquilo que aquela cultura “deixa” transparecer.
Então, enquanto o antropólogo “faz o que pode, inventando a cultura para tentar conferir um
mínimo de ordem e inteligibilidade lá onde a plenitude da vida as dispensa completamente”
(GOLDMAN, 2011, p. 203), o daimista também tenta conceder uma ordem e um
entendimento de seus deslocamentos, através da cosmologia proposta pelo Santo Daime.
À vista disso, podemos pensar tanto o antropólogo, quanto o daimista, imersos em um
esforço contínuo de conceder e produzir sentido para as manifestações que lhes parecem
importantes. Assim, os dois estão em uma atividade de reconhecer o outro. Este outro é
outrem (VIVEIROS DE CASTRO, 2002), ou seja, a representação de um mundo possível.
Vimos os paralelos entre a absorção do conhecimento no Santo Daime e na
antropologia e também sobre o trabalho do daimista e do antropólogo. Assim, o leitor pode
estar se perguntando: “mas, e o antropólogo ayahuasqueiro?”. Imerso no entre (DELEUZE,
G; GUATTARI, F. 2011), não sendo possível descolar a visão antropológica do olhar
daimista através de uma mera transição de pensamentos, como ele lida com os controles do
Santo Daime e da etnografia? Ou ainda, de qual maneira ele vivencia os deslocamentos de
ponto de vista? Para ilustrar a questão, “não estaria aí a originalidade da antropologia: nessa
aliança, sempre equívoca, mas amiúde fecunda, entre as concepções e práticas provenientes
dos mundos do “sujeito” e do “objeto?” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 20).
Vamos começar pela questão dos controles. Rehen (2007b) diz que nos rituais,
“quando todos cantam com pequenos cadernos na mão, eu ali, portando minha “farda” [...]
dobrava as pontas das páginas de determinados hinos para tê-los como exemplos em minha
dissertação” (REHEN, 2007b, p. 21). Oliveira (2008) confessa que “em alguns momentos
duvidei da minha capacidade em abstrair a presença como seguidor da doutrina e escrever
uma tese científica sobre o assunto (OLIVEIRA, 2008, p. 21). Labate (2004) comenta sentir
uma “obrigatoriedade implícita por parte dos diversos grupos que cogitei em algum
momento estudar de que eu tomasse a ayahuasca com eles para poder realizar a pesquisa”
(LABATE, 2004, p. 47, grifo da autora).
47

Assim, podemos observar os controles daimistas e antropológicos operando nestes


três autores de modo simultâneo. Rehen (2007b), enquanto submisso ao controle daimista da
experiência – cantar, bailar, tocar – também estava sob o controle etnográfico – observar,
interpretar, ver – de modo a separar os hinos a serem utilizados em sua dissertação sob o
efeito do daime. Oliveira (2008) duvida da sua capacidade de ser membro do Santo Daime e
realizar um trabalho acadêmico sobre o assunto. Tal medo, vista minha argumentação nesse
capítulo, não é necessariamente um problema, devido a própria potencialidade do entre lugar.
Mas, é uma forma de controle exercida, paralelamente, por ambos os lados. O próprio
Oliveira, em sua tese, resolve seu problema afirmando que “já não sinto desconforto algum,
principalmente porque sei de onde estou falando e, mais ainda por acreditar que esteja claro
que utilizarei isto como vantagem metodológica na coleta dos dados (OLIVEIRA, 2008, p.
29). Labate (2004), por sua vez, também é cerceada pelos dois controles, operando
simultaneamente, pois, ao tomar a ayahuasca para reforçar que o pesquisador está do lado do
adepto (LABATE, 2004), o controle etnográfico aparece e o controle do ritual com a
ayahuasca também, uma vez que há o setting (ZINBERG, 1984).
Em minha própria experiência, convivi com os controles de Rehen (2007b) e Labate
(2004)43. Por vezes, durante o ritual, pensava em coisas que poderiam ser utilizadas no
trabalho acadêmico e também, em alguns momentos, senti a obrigatoriedade de estar lá
dividindo experiências extáticas com meus interlocutores. Dessa forma, o antropólogo
ayahuasqueiro está imerso nos dois tipos de controle, operando nele de forma simultânea,
paralela. Cabe a ele, como elenca Valadares (2007), gerir os problemas práticos advindos do
trabalho de campo, e, indo além, das questões pessoais que podem surgir em um momento
onde etnografia e experiência religiosa caminham lado a lado.
A segunda questão, ou seja, a maneira pela qual o antropólogo lida com seus
deslocamentos de ponto de vista, ou de perspectiva, prefiro responder a partir de minha
própria experiência com o daime e a antropologia.
Como dito na introdução, meu tema de pesquisa, no início, era outro. Versava sobre
questões acerca do lugar ocupado pelo Santo Daime no campo religioso brasileiro. Contudo,
durante o campo, através de diálogos profícuos com meus interlocutores, meu interesse
mudou. Ainda, minha própria frequência nos rituais ingerindo o daime também foi crucial
para essa mudança.

43
O anseio de Oliveira (2008) para mim nunca foi um real problema, pois, sempre vislumbrei a possibilidade da
realização de um trabalho acadêmico na condição de “nativo” e “pesquisador”.
48

Logo, se, como argumentado anteriormente, o Santo Daime é uma religião que pensa
o acesso ao conhecimento em termos de deslocamentos de perspectiva, ou pontos de vista, e
levando a sério a teoria nativa do conhecimento, não seria o caso dessa mudança ser
ocasionada pelo contato com a planta, ou melhor, pela própria vontade da planta? Creio que a
resposta de um daimista seria afirmativa, uma vez que a planta concede a possibilidade,
através do trabalho, de alcançar o ponto de vista da doutrina, ou da própria planta – já que,
nesse caso, elas não podem ser pensadas separadamente – permitindo ao adepto a
possibilidade de ver a si mesmo e a sua vida com outros “olhos”. Sendo a capacidade da
planta de deslocar os pontos de vistas de quem a toma e, pensando nos termos de Viveiros de
Castro (2015), ou seja, “os estilos de pensamento praticados pelos povos que estudamos são a
força motriz da disciplina” (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 24), estou querendo suscitar
que, de certa forma, minha mudança de tema foi uma maneira de vivenciar e perceber os
deslocamentos de ponto de vista no Santo Daime. Estrela, uma daimista do Céu do Gamarra,
argumenta: “o daime traz esse entendimento, as coisas acontecem pelo jeito que elas têm que
acontecer. O importante é você dar o primeiro passo, porque aí Deus coloca o chão embaixo,
mas você tem que ir”. Portanto, o daime, a planta, operando juntamente com a doutrina, traz
o entendimento de o porquê as coisas acontecem como acontecem. Com base em meu
argumento, esse entendimento advém do contato com a planta, com a experiência extática,
com o deslocamento.
Dessa maneira, além de observar esse movimento de mudança de ponto de vista
através de meus interlocutores, queria suscitar a minha própria percepção a essa noção de
deslocamento, sendo advinda do meu próprio deslocamento controlado em direção ao outro,
especificamente, ao outro mundo, conjugado com seus impactos na vida neste mundo, uma
vez que, como salientando anteriormente, a planta é quem permite “ver” e a pessoa só “vê” o
que a planta quer. Isto é, o meu próprio deslocamento de perspectiva, através do daime,
influiu diretamente nas condições de produção desta pesquisa.
Meu leitor poderá estar se perguntando acerca da veracidade de tais argumentos, ou
seja, se a planta realmente permite esse acesso ao conhecimento e se, talvez, o que eu esteja
falando não passe de mera bobagem, ancorada distantemente dos moldes propostos pela
ciência. Para isso, fico com a afirmação de Viveiros de Castro (2015), ao refletir sobre a
tarefa da antropologia: “é comprometer-se com o projeto de elaboração de uma teoria
antropológica da imaginação conceitual, sensível a criatividade e reflexividade inerentes à
vida de todo coletivo, humano e não humano (VIVEIROS DE CASTRO, 2015, p. 25, grifo
meu)”.
49

Feito isso, chega o momento de observamos mais claramente a construção e os rumos


da doutrina do Santo Daime.
50

CAPÍTULO 2

UM ITINERÁRIO PELA DOUTRINA DO SANTO DAIME

O presente capítulo tem por objetivo situar o leitor acerca do surgimento e das
trajetórias da doutrina do Santo Daime, antes do seu movimento expansionista, para que
possamos, a frente, localizar o florescimento e a situação, especificamente, do Céu do
Gamarra.
Para isso, o capítulo é escrito baseado em informações bibliográficas sobre a história
do Santo Daime. Dentre a bibliografia, estão presentes formulações textuais acadêmicas e
também publicações nativas, como o caso de Mortimer (2000). Vale lembrar, como discutido
no capítulo anterior, que “o grupo das publicações acadêmicas e não acadêmicas se
interpenetra” (LABATE, 2002, p. 269), seja pelo fato de grande parte dos pesquisadores
possuírem uma afinidade com o daime, todavia nem sempre explicitada, ou pelo motivo de
muitos dos escritos internos serem “elaboradas por estas mesmas pessoas” (LABATE, 2002,
p. 269).
Utilizarei, em algumas passagens do texto, os hinos, assim como a bibliografia e
algumas informações coletadas em entrevistas com os daimistas. Como Rehen (2011)
observa, os hinos cantados durante as cerimônias religiosas do Santo Daime trazem narrativas
“que destacam algumas passagens de vida de Raimundo Irineu Serra e Sebastião Mota de
Melo, consolidando-as como “mitos” fundadores desta religião” (REHEN, 2011, p. 26).
Ainda, considerando a música na doutrina como uma “espécie de signo que condensa
metonimicamente a vivência religiosa como um todo” (LABATE; PACHECO, 2009, p.104),
opto por pensar a possibilidade dos hinos enquanto um recurso metodológico. Pois, se para os
daimistas eles são entendidos enquanto verdades reveladas, ou seja, como coloca José
Oliveira, “o hino é a base de todo o conhecimento e é, ao mesmo tempo, o mecanismo pelo
qual esse conhecimento é transmitido para os seguidores da doutrina do Santo Daime”
(OLIVEIRA, 2008, p. 17). O pesquisador, então, deve usufrui-los no texto, de modo que eles
sejam esclarecedores da trajetória de constituição mesmo da doutrina e da comunidade. Isto
é, a medida em que narrarei a formação e o desenvolvimento de alguns aspectos oriundos do
culto do Santo Daime, tentarei dispor trechos dos hinos de forma à ressaltar traços
característicos da própria cosmologia daimista.
Opto também por utilizar alguns hinos de pessoas do Céu do Gamarra para
demonstrar que, mesmo com o Santo Daime atingindo outro tipo de indivíduo – ou seja, não
51

seringueiros e oriundos de camadas médias urbanas – algumas categorias encontram eco


desde a formação da doutrina até os dias atuais. Concomitantemente, o uso dos hinos, no
texto, se faz importante pela questão da legitimação, ou melhor, “novos ‘padrinhos’
legitimam a criação e direção de novos centros, justificando a sua condição de ‘escolhido’
através da prova maior da manifestação do sagrado: os hinos” (GOULART, 1996, p. 95).
Então, nesse capítulo, formularei, através de um viés histórico cronológico, a
edificação da doutrina do Santo Daime, desde seu surgimento até momentos posteriores à sua
expansão. Inicialmente, situarei uma breve discussão referente as formulações
farmacológicas, químicas e etnobotânicas da ayahuasca.

2.1 Perspectivas psicofarmacológicas, químicas e etnobotânicas da ayahuasca

De fato, uma série de disciplinas demonstram interesse em torno da ayahuasca 44,


dentre elas, alguns exemplos: antropologia, sociologia, botânica, farmacologia, medicina,
psicoterapia, direito 45, psicologia cognitiva, artes e literatura (LUNA, 2005).
Considerando o Alto Amazonas, cerca de setenta grupos indígenas ainda fazem uso
ritual desta bebida (LUNA, 2005), que influencia, de certa forma, uma série de aspectos de
sua vida social e religiosa (LUNA, 1986). Porém, a ayahuasca é apenas um componente de
todo um conjunto de plantas de poder utilizadas por uma grande parte da população pré-
colombiana. Estão inclusas neste rol46 também o peiote, fungos psilocibinícos, o tabaco, a
coca, o cacto São Pedro, os rapés e espécies de Virola (LUNA, 2005).
A ayahuasca consiste, basicamente, na cocção de duas plantas: as cascas e caule da
liana malpighiácea Banisteriopsis caapi com as folhas do arbusto da rubiácea Psychotria
viridis (PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010). Diversas outras plantas de diferentes
famílias podem ser utilizadas na preparação do chá, elevando os números à casa de duzentas
espécies documentadas (LUNA, 2005).

44
Também conhecida como yagé ou caapi na região do Alto Amazonas (GOURLART, 1996; GOULART,
2002). Ou ainda como cipó, vegetal, natema, daime, hoasca, dentre outros nomes (LABATE; PACHECO,
2002).
45
Este campo de conhecimento tem estudado a questão da ayahuasca muito influenciado pela frequente
elaboração de documentos envolvendo casos legais sobre o uso sacramental feito pelas religiões, especialmente
o Santo Daime e a União do Vegetal, que se expandiram para fora dos limites territoriais brasileiros. Para um
melhor detalhamento do movimento de expansão do uso da ayahuasca ver os trabalhos de Balzer (2002); Assis e
Labate (2014).
46
Para uma visão mais ampla dos usos rituais de algumas dessas plantas consultar O uso ritual das plantas de
poder (LABATE; GOULART, 2005).
52

Tem-se ainda que levar em conta que as taxonomias indígenas reconhecem


diferentes ayahuascas onde a taxonomia científica não faz distinções, pois a
primeira, ao contrário da segunda, é baseada aparentemente mais no efeito que as
plantas produzem do que em sua morfologia, ou está associada com frequência a
características tais como sabor, cor ou odor, sem valor classificatório na taxonomia
botânica científica (LUNA, 2005, p. 335).

Concentrando nos aspectos farmacológicos da ayahuasca, podemos observar o


encontro de dois alcaloides na liana Banisteriopsis caapi, a harmina e a tetra-hidroharmina.
Já na Psychotria viridis há um terceiro alcaloide, de extrema importância, pois é o agente
visionário 47 (LUNA, 2005), o DMT, ou, dimetiltriptamina. Não sendo ativa oralmente, a
DMT48 é desativada no sistema digestivo e no fígado através da ação de uma enzima
nomeada como MAO (monoaminaoxidasa), que faz parte do sistema de defesa do organismo
contra possíveis substâncias tóxicas (LUNA, 2005). É a harmina na liana que impossibilita a
ação da enzima MAO, proporcionando a não desativação da DMT para que ela chegue até o
sistema nervoso central.
Consequentemente, devido à ação em conjunto, isto é, a competição da DMT por
receptores serotonínicos e a restrição da tetra-hidroharrnina dos receptores pré-sináticos, tem-
se uma elevação nos níveis de serotonina na sinapse, causando assim alterações notáveis no
que diz respeito tanto ao nível da percepção quanto ao emocional.

Podemos dizer, grosso modo, que a ayahuasca atua simultaneamente de duas


maneiras: os altos níveis de serotonina colocam a pessoa em um especial estado de
alerta; a ação da DMT no sistema nervoso faz com que o sujeito esteja como que
“sonhando”. [...] Trata-se, portanto, de uma grande descoberta feita pelas
populações amazônicas, a partir de uma flora de cerca de oitenta mil espécies
diferentes (LUNA, 2005, p. 338).

Todavia, o objetivo não é grifar a farmacologia como detentora de verdades absolutas


acerca da ação desencadeada pelo uso da ayahuasca, ou seja, é necessário também levar em
conta o set, ou melhor, a atitude da pessoa no ato do consumo, observando paralelamente a
sua estrutura de personalidade, e, concomitantemente, o setting, quer dizer, o contexto físico
e social onde o consumo ocorre, em outras palavras, as características culturais do uso
(MACRAE, 2005; ZINBERG, 1984).

47
O que os daimistas chamariam de “luz”.
48
A DMT quando fumada, ou administrada por via intravenosa, pode produzir efeitos potentes quase
imediatamente. Quando utilizada por ingestão oral, na forma de chá, os efeitos químicos são menos potentes
(PIRES; OLIVEIRA; YONAMINE, 2010).
53

2.2 Situando o Santo Daime no espaço e no tempo

A história da doutrina do Santo Daime está diretamente vinculada com os rumos


tomados pela vida de Raimundo Irineu Serra. Posteriormente conhecido como Mestre Irineu,
pelos adeptos daquela formação religiosa, a vida de Irineu não tem início na floresta
amazônica, mas seu começo se materializa longe dessa realidade: mais precisamente, no
estado do Maranhão, na cidade de São Vicente Ferrer.
É na região da Baixada Maranhense que se localiza o município de São Vicente
Ferrer. A área conta com cerca de 18 mil habitantes, sendo quatro mil em caráter urbano e o
restante repartido em vários povoados do interior (LABATE; PACHECO, 2002).
De acordo com Labate e Pacheco (2002), existem algumas versões para justificar a
partida de Irineu Serra à floresta amazônica, mais rigorosamente ao Acre. Na primeira, ele
teria se enredado em uma briga e, após levar uma surra do tio, como “lição”, resolveu deixar
sua terra natal. A segunda envolve um conselho do tio, visto que Irineu teria se apaixonado
por uma prima mais velha e o relacionamento não contava com a aprovação de sua mãe. A
pesquisa de Labate e Pacheco (2002) confirma a primeira versão do caso, onde a briga teria
começado após um festa de bambaê.49
Ou seja, é baseada em problemas de ordem pessoal e em busca de novas alternativas e
rumos a partida de Irineu Serra para a Amazônia, no início do século XX, no ímpeto da
exploração de látex. Antes de se fixar no estado do Acre, Irineu ainda vagou por Belém e
Manaus, para depois se fixar em Brasiléia, região localizada na fronteira do Brasil com a
Bolívia e o Peru (GOULART, 2008).
O Santo Daime é caracterizado como sendo uma doutrina que agregou e reelaborou
um conjunto diverso de elementos culturais. O xamanismo amazônico, movimentos
esotéricos, o espiritismo kardecista e matrizes de religiões afro-brasileiras, baseados em um
alicerce cristão, estão presentes nessa religião. Labate e Pacheco (2005) afirmam a existência
de um consenso acadêmico onde três grandes matrizes estariam presentes no culto do Santo
Daime: a indígena ou amazônica, advinda do consumo e preparo da bebida e alguns aspectos
ligados ao ritual, a europeia, cuja influência se mostra através do catolicismo e esoterismo, e,
por fim, a matriz afro-brasileira marcada pela presença de entidades afro no meio daimista.
Assim sendo, é crucial observar as influências culturais de Irineu desde sua partida do

49
Folguedo tradicional da região maranhense.
54

Maranhão rumo à extração de látex e, consequentemente, para a construção da doutrina do


Santo Daime, lhe rendendo o status de Mestre Irineu.
Importantes obras sobre o Santo Daime, como as de Clodomir Monteiro (1983),
Groisman (1999) e Macrae (1992), argumentam, embora rapidamente, a relação de Irineu
com o Maranhão. Nestes casos, a ênfase recai sobre a participação dele no tambor de mina 50.
Entretanto, Labate e Pacheco (2002), em pesquisa de campo realizada no Maranhão, afirmam
não terem encontrado evidências claras para um grande impacto do tambor de mina sobre
Irineu. Ainda, os autores vão salientar duas grandes influências advindas desta época da vida
de Mestre Irineu: a pajelança e o catolicismo popular51.
A pajelança52, também designada como cura ou linha de pena, é uma manifestação
religiosa característica da cultura cabocla do Maranhão, cuja formação contém traços e
elementos do catolicismo popular, do tambor de mina, das culturas indígenas da medicina
rústica e de diferentes aspectos da cultura e da religiosidade popular do Maranhão (LABATE;
PACHECO, 2002). Como característica, a pajelança concede importância ao tratamento de
doenças e aflições, com um transe de possessão peculiar 53 e uso de certas substâncias como o
tabaco e defumação. Ainda sobre a pajelança, Ferretti (2008) sinaliza o uso do termo para a
denominação de um sistema médico religioso anterior ao tambor de mina, onde o curador, ou
pajé, em transe e inspirado por entidades espirituais, faz o diagnóstico, trata as enfermidades
e prepara medicamentos naturais.
Tendo a pajelança como universo de referência, alguns elementos adquirem corpo
também no Santo Daime. Primeiramente, o termo “doutrina” tem uso frequente no Santo
Daime como sendo a forma dos fiéis se referirem a religião como um todo. Tal expressão é
extremamente utilizada no Maranhão, para identificar as cantigas dos rituais do tambor de
mina e da pajelança, sendo associada seja a entidades espirituais especificas ou a momentos
específicos que formam o ritual (LABATE; PACHECO, 2002). Há também utilização desta
expressão em diversos hinos. Eles também são considerados “doutrinas”, não somente pela
sua característica de carregar preceitos e ensinamentos para os adeptos, mas, justamente, pelo

50
O tambor de mina é a alcunha concedida no Maranhão aos cultos de possessão de origem africana,
usualmente, realizados em terreiros e que englobam diversos sistemas rituais diferentes cuja origem é ligada a
grupos étnicos distintos (LABATE; PACHECO, 2002). De acordo com Barros (2008), Mina faz alusão aos
“negros minas”, denominação geral concedida aos escravos oriundos de regiões da África ocidental.
51
Tratando do campo religioso brasileiro, Sanchis (1997) assinala a matriz católica, africana e, em algumas
regiões, a pajelança indígena como matrizes primordiais de tal campo. Então, seguindo essa linha, o Santo
Daime dialoga e reelabora, de certa maneira, as três matrizes essenciais.
52
Concordando com Labate e Pacheco (2002), ao contrário do tambor de mina, as referências a pajelança na
cultura maranhense datam de meados do século XIX.
53
Ocorre a “passagem” de uma série de entidades espirituais em uma única sessão.
55

fato de introduzir tais ensinamentos e preceitos sob a configuração de música cantada


(LABATE; PACHECO, 2002), como por exemplo:
A minha mãe que me mandou
Trazer Santa Doutrina
Meus irmãos todos que vem
Todos trazem este ensino54

Ou ainda:

Tomem cuidado
É o fermento fariseu
Não bem dizer a Doutrina
E que é negar a Deus55

Vimos o uso do termo “doutrina” em dois momentos: o primeiro sendo utilizado pelo
fundador do Santo Daime em seu hino Flor de Jagube, já o segundo sendo empregado pelo
dirigente do Céu do Gamarra – núcleo do Daime onde foi realizada esta presente pesquisa –
no seu hino, Ateu. Ambos se assemelham ao uso do termo na pajelança, visto seu caráter de
trazer ensinamentos e preceitos, mais especificamente sob a forma de música cantada
(LABATE; PACHECO, 2002). No Maranhão, o termo serve para designar as cantigas dos
rituais seja do tambor de mina, da pajelança ou do terecô, associadas a entidades espirituais
ou a momentos específicos dos rituais.
Outros elementos de destaque da cosmologia da pajelança, em sintonia com o
imaginário empregado no Santo Daime, são o trinômio banzeiro, maresia e balanço; e a
noção de firmeza. No referido estado nordestino, o trinômio é utilizado como referência para
as ondas agitadoras do mar (LABATE; PACHECO, 2002). No contexto religioso, o uso
concerne à presença e à vinda dos encantados e ao impacto do transe de possessão. Já a
firmeza é uma característica crucial dos bons curadores, sendo compreendida como sinônimo
de segurança e exatidão no feito de determinada tarefa.
No Santo Daime, o trinômio maranhense e a noção de firmeza parecem se aproximar
das noções cosmológicas daimistas de balanço e firmeza. Entendendo o ritual enquanto uma
batalha pela doutrinação e pela salvação, o fardado deve estar sempre “firme” para “suportar
a força do daime”, ou seja, aguentar o “balanço”56. Em outras palavras, os daimistas tem

54
Mestre Irineu, O Cruzeiro, hino 38.
55
Fábio Pedalino, Iniciação, hino 50.
56
“Balanço” pode ser entendido com a própria força da bebida, ou melhor, como o efeito manifestado no corpo
e no psicológico do adepto. Também, pode ser compreendido como uma referência ao apocalipse do fim dos
tempos (LABATE; PACHECO, 2002).
56

como serviço lutar com disciplina e firmeza 57 contra o mundo de ilusão, isto é, contra perigos
espirituais e dúvidas que “balançam” a sua fé. Assim, a firmeza “designa a força individual
nos trabalhos, a perseverança moral e também a postura ilibada e irretocável de fortaleza e
boa conduta. Os daimistas entendem a firmeza como um modus vivendi” (ASSIS, 2013, p.
38). No discurso de Fábio Pedalino, padrinho do Céu do Gamarra: “tendo firmeza, sempre se
terá como conservar o amor e todas as coisas boas que Deus nos dá”. Vejamos isso
materializado em alguns hinos:

Firmeza, firmeza
Que o Mestre está chegando
58
Império Juramidam

Ou:

E a tormenta
Quando vira o destino
É a falta de fé
Em que Cristo voltou 59

E:

Eu balanço, eu balanço
Eu balanço tudo enquanto há
Chamo o cipó, chamo a folha e chamo a água
Para unir e vir me amostrar60

Outro elemento em comum é o tucum – uma palmeira encontrada em diversas áreas


brasileiras – estabelecendo, no Maranhão, uma relação forte com dois grandes grupos de
entidades espirituais em contexto de pajelança: a família de Légua Boji e a família dos
Surrupiras (LABATE; PACHECO, 2002). Ou ainda, o tucum “tem ligação com ‘seres
encantados’ caracterizados pelo castigo dado às pessoas ‘desobedientes’, segundo os
preceitos do universo da pajelança” (REHEN, 2007b, p. 60). Então, a faculdade deles é o
castigo de pessoas que lhe desagradem por quaisquer motivos. No Santo Daime, é possível
observar um uso similar:

57
Mesmo o xamanismo indígena ayahuasqueiro tendo tais características (GROISMAN, 1991), Labate e
Pacheco (2002) sugerem o fato de elementos normalmente indicados como influências do curandeirismo
amazônico, ou como uma mescla do vegetalismo ayahuasqueiro, serem advindos da tradição de cura da
pajelança maranhense.
58
Fábio Pedalino, Renascimento, hino 20.
59
Fábio Pedalino, Ancestral, hino 25.
60
Mestre Irineu, op. cit, hino 46.
57

Essa é a Linha do Tucum


Que traz toda a lealdade
Castigando os mentirosos
Aqui dentro desta verdade61

E ainda:

Chamo Tucum para castigar


Cinismo com seu mal estar
Falso testemunho jamais levantar
62
Há castigo e vai chegar

Há também algumas entidades espirituais compartilhadas pelas duas cosmologias em


destaque, sendo Currupipipiraguá um dos exemplos. Existem também congruências em
recursos estilísticos, como é o caso da expressão “Eu vim beirando a terra/Eu vim beirando o
mar”, presente no hinário de Mestre Irineu, que é um recurso muito empregado em cantigas
da pajelança e tambor de mina, onde os encantados discorrem sua chegada na primeira pessoa
(LABATE; PACHECO, 2002).
Completando o quadro, Labate e Pacheco (2002) argumentam o fato de, embora
Nossa Senhora da Conceição seja reconhecida em todo o Brasil, no Maranhão ela é figura
destacada na religiosidade popular, em especial na pajelança. No Santo Daime, a mãe de
Jesus Cristo ocupa um lugar de destaque, sendo identificada como a Rainha da Floresta ou
Virgem Mãe. Conforme Couto salienta, “essa Senhora é fundamental, pois é o elo de ligação
com o plano espiritual. Consagrada como Mãe, Rainha, Lua Branca, ela é identificada pelos
fiéis como Nossa Senhora da Conceição” (COUTO, 2002, p. 388). São dois exemplos:

A Rainha é a Divina
Virgem da Conceição
A Rainha é a Divina
Virgem da Conceição63

E:

Tu sois a flor mais bela


Aonde Deus pôs a mão
Tu sois minha advogada
64
Oh! Virgem da Conceição

61
Mestre Irineu, op. cit., hino 108.
62
Fábio Pedalino, Quinto livro, hino 4.
63
Fábio Pedalino, Iniciação, hino 37.
64
Mestre Irineu, op. cit., hino 1.
58

Continuando, um dos festejos mais antigos, vinculados ao catolicismo popular


brasileiro, é a festa do Divino Espírito Santo. Tomado como herança advinda do catolicismo
português, sendo sua existência constatada em quase todas as regiões do país, com diferenças
locais (LABATE; PACHECO, 2002), no Maranhão, evidências históricas datam seu início a
partir do século XVII65, sendo, até 1920, uma das mais populares festas religiosas do país
(PEREZ, 2011). Para Gonçalves e Contins (2008), o conjunto de atividades produtoras de tal
festa ocorrem sob a “inspiração de categorias mágico religiosas e morais, tendo sua razão
profunda de existir na obrigação coletiva e individual de ‘agradar ao Divino’”
(GONÇALVES; CONTINS, 2008, p. 69). Dessa maneira, a totalidade das atividades – sejam
técnicas, psicológicas, fisiológicas, econômicas ou estéticas – são desempenhadas como uma
espécie de “contra dádiva oferecida ao Divino Espírito Santo, em agradecimento pelas graças
concedidas” (GONÇALVES; CONTINS, 2008, p. 69).
Certamente, as folias do Divino, ou festa do Divino Espírito Santo, demonstram,
através destes nomes sugestivos, a face de divertimento festivo e carnavalesco da cerimônia,
ou ainda, a festa, a religião e a cidade “em ampla e íntima articulação” (PEREZ, 2011, pg.
143). Então, é importante perceber as festas como manifestando uma sociedade – para usar a
expressão de Roberto DaMatta – colocando em close up as coisas do mundo social
(DAMATTA, 1977), que desde seu primórdio vive do espetáculo, das mudanças e da fusão
de vários códigos e de registros intermutáveis (PEREZ, 2011). Ou seja, é crucial
compreender a religiosidade brasileira, nesse caso, como um modo de vivenciar o religioso,
não feita para a imposição de uma moral rígida e códigos fixos (PEREZ, 2011). Ou ainda,
perceber nosso sincretismo (SANCHIS, 1995) vinculado a uma forma específica, ou peculiar,
de religiosidade festiva e espetacular (PEREZ, 2011).
Goulart (2002) é quem vai ressaltar, especificamente, o caráter festivo dos rituais do
Santo Daime, ao pensar uma relação evidente entre as cerimônias daimistas e a arcaica
devoção aos santos, dado o marcante caráter festivo da própria tradição do catolicismo
popular. Logo, podemos pensar nos adeptos do Santo Daime permanecendo intimamente
conectados com uma religiosidade que não desmembra a festa e o sagrado (GOULART,
2002). Em outras palavras, “as festas do passado são, de certa forma, o ponto de partida para
a constituição tanto do calendário ritual quanto da forma assumida pelas cerimônias da
religião do Santo Daime (GOULART, 1996, p. 147).

65
Apesar de não existirem informações sobre a participação de Irineu em festejos do Divino Espírito Santo, há
referências de sua atuação no bambaê de caixa, uma espécie de folguedo feito como diversão no término da
festa. Também, a mãe de Irineu Serra era muito católica sendo viável supor sua convivência com determinada
tradição (LABATE; PACHECO, 2002).
59

Assim como Goulart (1996; 2002), Labate e Pacheco (2002) tentam demonstrar uma
correlação entre o catolicismo popular – no caso de Goulart 66 (1996; 2002), o catolicismo
rústico –, e a doutrina do Santo Daime. Para a dupla de autores, diversos elementos presentes
no Santo Daime desse catolicismo podem ter sido absorvidos através da variante maranhense,
extremamente grifada pelo imaginário, ou cosmologia, da festa do Divino Espírito Santo. Isto
posto, podemos pensar nas formas de sociabilidade religiosamente moduladas e festivamente
vivenciadas (PEREZ, 2011), tendo a possiblidade de serem as responsáveis da vitalidade
atual do campo67 religioso brasileiro, visto suas associações e combinações multivariadas,
polifônicas, polissêmicas (PEREZ, 2011), “fazendo da efervescência grupal o espetáculo
societal por excelência e da hibridação de códigos um dos mais significativos mecanismos de
orientação social” (PEREZ, 2011, pg. 179).
Os termos “império” e “reinado”, que, na festa do Divino, são usados para designar o
grupo de crianças – no qual a festa gira em torno – no Santo Daime são utilizados na
expressão “Chefe Império Juramidam”, ou “Mestre Império Juramidam” 68. Ou ainda, na
denominação da plantação de Psychotria viridis69, como “reinado”. Exemplificando:

Mestre Império Juramidam


E o universo a comandar
Todos tenham a certeza
De um dia lá voltar.70

Existem, ainda, semelhanças entre a questão da música. Tanto no Santo Daime quanto
na festa do Divino, a música consiste em um elemento central na execução do ritual. No caso
do primeiro, “os seguidores do Santo Daime e seus pesquisadores compartilham de uma
mesma opinião ao descreverem esta doutrina como uma religião musical” (REHEN, 2011, p.
177). Observam-se uma série de afinidades em relação a temática, estrutura poética,
musicalidade e estilo entre as cantigas da festa e os hinos do Santo Daime (LABATE;
PACHECO, 2002). Para Sandra Goulart, é o Santo Daime quem recupera o significado
sagrado da festa, do canto e também da dança, justamente pelo fato da organização dessa

66
Goulart (2002) assinala três práticas fundamentais na formação do Santo Daime: o mutirão, o compadrio e as
festas aos santos cristãos. Seu argumento é baseado em mostrar a constituição do conjunto ritual do Santo
Daime criando corpo a partir das festas aos santos cristãos, presentes no meio rústico do Brasil.
67
Pierre Sanchis vai compreender a lógica do campo religioso brasileiro com as instâncias diversificadas de
imputação e sentido para a vida, coletiva e individual, coexistindo legitimamente e competindo entre si
(SANCHIS, 1995).
68
Esta expressão significa que Mestre Irineu é comandante de um império celestial na Terra que virá a ser
concretizado através de seus ensinamentos presentes na doutrina.
69
Os daimistas utilizam a expressão “folha rainha” para designar as plantas desta espécie.
70
Fábio Pedalino, op. cit., hino 3.
60

religião não se conceber a partir de uma aceitação irrestrita da ética cristalizada pelo
catolicismo ortodoxo (GOULART, 2002). Logo, a falta da música, da dança e da festa é
entendida “como um empecilho para a comunicação com a realidade sagrada” (GOULART,
2002, p. 291).
A “festa de São Gonçalo” é outra manifestação religiosa do catolicismo popular
maranhense, que encontra ecos na proposta ritualística do Santo Daime. Em tal festejo
religioso, presente no Maranhão desde o século XIX, os casais fazem uma dança
característica e recitam versos em louvor do santo, usualmente com o intuito de pagar uma
promessa.
Assim como no Santo Daime, na festa de São Gonçalo, realizam passos conhecidos
como “bailados”. A disposição do lugar onde são realizados ambos os rituais também
guardam semelhanças (LABATE; PACHECO, 2002). Nota-se, dessa maneira, um ponto de
congruência com a religiosidade popular, pois, nessa, dançar é compreendido como um meio
de estabelecer comunicações com os seres espirituais (GOULART, 2002). Outro ponto de
simetria diz respeito às vestes rituais, sendo, em ambas, as roupas são chamadas de “fardas”,
consistindo em terno branco para os homens e vestido, da mesma cor, para as mulheres.
Por último, a festa de São Gonçalo é acompanhada por melodias instrumentais
tocadas em instrumentos como a viola, o cavaquinho, o violão e a rabeca. Nota-se, no
repertório o destaque de dois ritmos: valsas e marchas, que são dois, dos três71, ritmos
utilizados nos rituais do Santo Daime (LABATE; PACHECO, 2002).

2.2.1 A ida à Amazônia e o surgimento do Santo Daime

Com esta bagagem, Irineu Serra rumou-se para a região amazônica. Nesse tempo,
trabalhou em diversas ocupações como, por exemplo, em seringais e como soldado da força
policial. Durante uma estadia no Peru, foi apresentado, por outro negro e seu conterrâneo,
Antônio Raimundo Costa, a alguns caboclos que utilizavam a ayahuasca. Este determinado
uso tinha como finalidade atrair fortuna, saúde e felicidade, contudo, no rito, era frequente a
chamada de entidades espirituais indígenas, por isso muitos consideravam tal ritual como
sendo um pacto satânico (MACRAE, 2011). Dito de outra forma, através de relatos inseridos
no trabalho de Goulart (1996):

71
O outro ritmo usado nos rituais do Santo Daime é a mazurca.
61

Eles apagaram as luzes e, ao invés de chamar “Meu Deus!”, eles chamavam era
pelo Cão. Mas apareceu foi um cemitério. Eram dez, eram 20, eram mil, eram 600
mil cruzes. Quanto mais chamavam, mais apareciam. “Mas, não pode ser  pensou
 isso não é nada do Cão”. O Cão não gosta de cruz. Eu chamo por ele e vem a
cruz [...] (GOULART, 1996, p. 71).

Em um outro momento, Irineu Serra e Antônio Costa novamente ingeriram


ayahuasca, então:

Antônio Costa estava no quarto e ele na sala. Aí, o Mestre olhou a lua e abismou-se
com ela. Antônio Costa, lá de dentro disse: Raimundo, aqui tem uma Senhora que
quer falar contigo. Ela está com uma laranja na cabeça pra te entregar (...) Ela disse
que seu nome é Clara. E ela está te acompanhando desde o Maranhão. Ela disse
também que na próxima sessão vai te procurar. (GOULART, 1996, p. 71).

Sendo assim, na dita próxima sessão, a Senhora fez mais uma vez sua aparição, mas
agora dialogando com Irineu:

 O que você está vendo Estou vendo uma deusa (...) Então, você tem
coragem de dizer que a ayahuasca é coisa do diabo Você disse que é o Cão,
Satanás Não é não. O que você está vendo nunca ninguém viu. Você está dizendo
que eu sou uma princesa, eu sou é uma Rainha Universal. Quem diz que a
ayahuasca é o diabo não viu o que você está vendo. Ela estava sentada no meio da
lua e trazia na cabeça uma águia em ponto de voo. (Revista do Primeiro Centenário
do Mestre Imperador Raimundo Irineu Serra. Rio de Janeiro. Editora Beija-Flor,
dezembro,1992, apud GOULART, Sandra. Op. cit,.pg. 71-72).

Em outros relatos, brota a figura de um mestre curandeiro, denominado Don Pizzon


ou Pizango, como sendo um ser espiritual ligado a bebida (MELO, 2011). Usando o espanhol
como idioma ou falando como descendente inca, esta pessoa grifa os poderes de Irineu da
seguinte forma:

O Mestre foi convidado por Antônio Costa a conhecer um caboclo de nome


Pizango, que era um caboclo peruano, descendente dos Incas (...) Era Pizango, por
assim dizer, um caboclo que sabia aonde as andorinhas moravam. Quando eles
tomaram o Daime (eram aproximadamente doze pessoas e estavam mirando), o
caboclo aproximou-se. Só quem viu foi Raimundo Irineu Serra. Veio dar a entender
que o Mestre era o único que estava em condições de trabalhar com a bebida. Na
altura do trabalho, Pizango veio e entrou dentro da cuia que estava servindo o
Daime. Naquele tempo se tomava Daime na cuia grande. O caboclo Pizango vira-se
para Irineu e diz para ele convidar os companheiros a olhar dentro da cuia e
perguntar se estavam vendo alguma coisa. A resposta foi não! Eles olhavam e
diziam que só viam o Daime. Aí Pizango falou:  Só usted tem condições de
trabalhar com o Daime. Ninguém mais está vendo o que tu está vendo. Ele se
deslocou dali para casinha que defuma a borracha (o defumador), pedindo para
alguém levar um “baço”, a vasilha com Daime, pra lá (...) Quando o trabalho
terminou, só encontraram a vasilha seca. O Daime tinha sido consumido. (Revista
do Primeiro Centenário do Mestre Imperador Raimundo IrineuSerra, 1992, apud
GOULART, Sandra. Op. cit., pg. 77.)
62

Dentre os relatos, uma coisa é nítida: a miração é central. Clodomir Monteiro (2002),
ao definir miração,72 conceitua este estado como não se confundindo com visões
alucinatórias, ou seja, podem acontecer fenômenos análogos ao estados de transe, possessão
ou êxtase (SILVA, 2002). Logo, como debatido no primeiro capítulo, o poder da planta, na
atividade de concessão de conhecimento, está presente, justamente, pela sua capacidade de
deslocamentos de pontos de vista, levando em consideração a sua aptidão de inserir quem a
bebe em contato com realidades extramateriais. Dessa forma, é patente pensar no fato de, ao
entrar em contato com o chá, Irineu Serra ter passado por um desses possíveis deslocamentos.
Pois, como mostram os relatos, em suas mirações, Mestre Irineu viu coisas que ninguém
nunca havia visto. Paralelamente, como argumentado no primeiro capítulo, a planta é quem
permite “ver” e a pessoa somente “enxerga” o que a planta deseja, de acordo com seu
merecimento. Assim, Irineu Serra – através da permissão da planta e de seu merecimento –
no primeiro relato, e também no segundo, vê coisas que ninguém nunca viu, atestando a sua
singularidade para trabalhar com a ayahuasca.
Outro elemento comum às duas passagens é o fato de tanto a Senhora quanto Pizango
garantirem a Irineu a condição de ser o “escolhido”. Consequentemente, a transformação de
Pizango em ayahuasca tanto quanto o reconhecimento de Clara enquanto um ser divino são
captadas apenas por Irineu, fazendo ele ser o único a ter condições de trabalhar com o daime
(GOULART, 1996).
A narrativa mais veementemente repetida, ou fixada, no mito de origem do Santo
Daime é a primeira. Embora, na segunda narrativa, Pizango é também um caboclo, figura
presente em diversas manifestações religiosas de nuances afro-indo-brasileira. Todavia, o
escopo central é a visão de uma santa católica 73, que, ao questionar Irineu sobre o que ela
seria, constitui a separação entre o “bem” e o “mal”, entregando o “poder” a Irineu Serra
(MELO, 2011).
Então, está marcada a gênese do movimento daimista, é quando o Santo Daime
começa a aflorar dentro da floresta amazônica. É central observar tal momento como já

72
No âmbito do Santo Daime, a questão do merecimento é fulcral na miração, isto é, ela se transfigura em um
objetivo a ser alcançado por meio da conduta individual guiada, ou orientada, pelo trabalho espiritual. Portanto,
é através do merecimento que as mirações vem à tona para mostrar ao daimista certas coisas que ele não
esperava receber. Sendo assim, a miração é considerada um presente do astral concedido ao fiel, ou ainda, os
daimistas, com frequência, interpretam suas mirações como portadoras dos ensinamentos de Mestre Irineu
(MELO, 2011). Concordando com Soares, a miração forma é instrumento de trabalho mais nobre do adepto,
dotado de superiores efeitos didáticos (SOARES, 1990).
73
Posteriormente, a Senhora, de nome Clara, será resignificada como sendo a Virgem da Conceição, isto é, a
própria mãe de Jesus Cristo.
63

evidenciando e marcando o caráter fluído, assinalado pela reelaboração de diversos elementos


de diferentes matrizes desta formação religiosa. A identificação da Senhora como sendo a
Virgem da Conceição coloca, de certa maneira, o simbolismo cristão assumindo um papel
central no Santo Daime e, concomitantemente, servindo de eixo aglutinador, ou norteador,
para a fusão de outras matrizes religiosas dentro de sua construção simbólica e ritual.
Destarte, é exatamente o ícone do catolicismo, Nossa Senhora da Conceição, quem guia
Mestre Irineu para uma jornada de iniciação dentro dos limites da floresta amazônica.
Desta maneira, a própria Nossa Senhora da Conceição, também entendida na doutrina
do Santo Daime como sendo a Rainha da Floresta, concedeu instruções a Irineu a respeito de
uma dieta74 e lhe ordenou uma reclusão na mata tomando ayahuasca durante oito dias
(MACRAE, 1992). Logo, Irineu passou por diversas experiências extáticas, onde se destaca a
visão que ele teve da lua se aproximando e trazendo uma águia. Era a Rainha da Floresta
vindo entregar para ele os “ensinos” (MACRAE, 1992). Esta miração fornece, ao mesmo
tempo, o tema do primeiro hino recebido por Mestre Irineu– Lua Branca – e o símbolo do
Santo Daime, onde a lua designa a ideia desta manifestação religiosa ter sido ensinada pela
Virgem Mãe e a águia faz referência ao poder de visão concedido aos adeptos (MACRAE,
1992).
Podemos pensar, neste ponto, nas três fases do rito de passagem, proposto por Van
Gennep (2011). Para o autor, a primeira fase (separação) contém o afastamento simbólico do
indivíduo ou de um grupo – de um ponto fixo anterior na estrutura, ou de um conjunto de
condições culturais – portanto, abarca um comportamento simbólico; na segunda (período
“limiar”), as características do sujeito ritual, ou neófito, são ambíguas. Deste modo, está em
um domínio cultural que tem poucas ou, talvez, quase nenhuma das faculdades do estado
passado ou futuro; por fim, na terceira fase (reagregação ou reincorporação), a passagem é
configurada. Assim, quando Mestre Irineu começa a dieta, se afastando das atividades
sociais, corresponderia à fase de separação; a fase da margem diz respeito ao tempo da dieta
onde se passa suas provações e desafios na mata – isto é, suas mirações devido ao uso da
ayahuasca –sendo nessa fase uma espécie de “iniciado”. Para, assim, depois, se reintegrar na
próxima fase, reintegração, com uma nova condição: a de Mestre Império Juramidam,
justamente por causa das revelações e ensinamentos entregues pela Rainha da Floresta e pelo
daime.

74
Irineu poderia apenas se alimentar com mandioca sem sal e não deveria conversar com ninguém e, muito
menos, pensar em mulheres (MACRAE, 1992).
64

Então, similar aos vegetalistas75, Irineu, passado um tempo recluso do convívio social
e a aplicação de uma dieta bastante restrita, recebeu ensinamentos diretamente da planta
professora ou do espírito associado a ela (MACRAE, 1992). O próprio tratamento de Mestre,
também reporta a tradição vegetalista (MACRAE, 1992).
Com isso, era o momento de trilhar caminhos próprios. Consequentemente, Irineu se
muda para Rio Branco, no estado do Acre, em 1930, para iniciar os trabalhos espirituais com
o daime. De acordo com Fróes (1986), é de 1935 a 1940 que Mestre Irineu vai trabalhando e
recebendo os valores da doutrina, juntamente com os hinos. Logo, percebemos o caráter de
construção gradual, uma estruturação lenta tanto do ritual quanto da doutrina, ou melhor, uma
aprendizagem realizada e incorporada. Portanto, os ingredientes constitutivos do Santo
Daime angariam um status de revelação (FERREIRA, 2008), trazendo à tona um alicerce
ritualístico e doutrinário como sustentáculo central, porém aberto e dinâmico para outras
reelaborações e assimilações.
Passando a liderar o novo movimento religioso, Irineu Serra também comandava uma
comunidade, organizada em torno da igreja, seguindo os princípios do trabalho coletivo e do
compadrio, estes extremamente conectados com a cultura rural brasileira. Goulart (1996)
afirma serem essas relações essencialmente comunitárias as estruturadoras do cerne inicial do
Santo Daime. Melhor dizendo, os traços da sociedade rural brasileira, no caso o compadrio e
o trabalho coletivo, assumem perfis próprios postos em um caldeirão, onde a liderança
carismática de Mestre Irineu ganha um papel destacado e agregador.
Por conseguinte, Irineu Serra começou a receber diversas pessoas no local onde se
realizava os rituais com o daime. Com isso, um seguidor, que posteriormente irá marcar
fortemente essa formação religiosa, se tornando uma de suas maiores lideranças, tem contato
com a doutrina. Trata-se de Sebastião Mota de Melo, ulteriormente conhecido como Padrinho
Sebastião e responsável pela expansão do Santo Daime para fora dos limites amazônicos.

2.2.2 Padrinho Sebastião e o Cefluris

Oriundo da região do Alto Juruá, Sebastião Mota cresceu dentro da floresta e, por
muito tempo, assim como Irineu, trabalhou voltado para a produção de látex dentro da
Amazônia. Contudo, diferentemente de Mestre Irineu, ele teve contato com a doutrina

75
Os vegetalistas são curandeiros, curadores de populações rurais localizadas no Peru e na Colômbia, que
dispõem e mantém elementos dos conhecimentos antigos, advindos dos indígenas, sobre as plantas. Para um
melhor detalhamento e conhecimento de suas práticas ver Luna (1986) e Labate (2011).
65

espírita, antes de se vincular ao Santo Daime, participando de trabalhos com banca espírita,
de mesa e atuação, onde recebia o espírito de um médium cirurgião chamado Dr. Bezerra de
Menezes (FRÓES, 1986; MORTIMER, 2000).
Certa vez, uma doença atingiu Sebastião Mota com uma força estrondosa. Assim, saiu
a procura de médicos e centros espíritas para dar um ponto final ao mal que o afligia. Porém,
nada disso conseguiu dar um basta ao mal estar. Mas, aos poucos, através de conversas
informais, foi descobrindo um certo centro em Rio Branco, onde havia uma pessoa com fama
de curador. Esta pessoa era Raimundo Irineu Serra e foi justamente para lá que Sebastião
rumou-se com o intuito de procurar sua cura através do chá sagrado (MORTIMER, 2000).
O primeiro contato entre os dois ocorreu da seguinte maneira:

Sebastião já estava mais do que curioso para ver o homem. Quando finalmente se
encontrou na sua presença, sentiu-se pequeno frente aquele negro de dois metros e
alguns centímetros de altura. [...] Tinha setenta e dois anos e irradiava cordialidade.
Não tinha aparência de velho. A cada instante chegava uma pessoa a pedir-lhe
benção. [...] Atencioso como de costume o Mestre Irineu ouviu Sebastião Mota de
Melo contando seu caso, dizendo-se doente e dando em poucas palavras um
panorama geral da situação. Terminados os relatos, ele fez apenas uma pergunta:
“você é um homem de verdade? Acredito que sim, disse Sebastião, já sou pai de
muitos filhos e nunca faltei meus compromissos. “Pois então”, retrucou o Mestre,
“vai com os outros, entre na fila e tome o Santo Daime que é o nosso remédio.
Depois do trabalho você me procura para dizer o resultado” (MORTIMER, Lúcio,
2000, p. 55).

Após o diálogo com Mestre Irineu, Sebastião foi tomar o daime e, durante o trabalho,
uma experiência extática muito forte acabou por mudar os rumos de sua vida material e
espiritual. Sebastião, em certo momento, desmaiou. Logo após, assistiu, a partir de uma ótica
externa a si próprio, seu corpo ser, literalmente, aberto e “limpo” por uma equipe de
médicos.76 A partir disso, começa sua jornada no Santo Daime, com duração até o fim de sua
vida, em 1990.
Rapidamente, Sebastião se tornou um membro assíduo, juntamente com seus filhos
Alfredo Gregório de Melo, Valdete, e sua esposa Rita, nos trabalhos realizados por Mestre
Irineu. Logo, recebeu a permissão para começar trabalhos espirituais e fazer seu próprio
daime no lugar onde residia, a Colônia Cinco Mil em Rio Branco, Acre (MORTIMER, 2000).
Em pouco tempo, começou a receber hinos 77 e, em um específico, ele começa a se afirmar
enquanto uma liderança dessa formação religiosa.

76
Para maiores informações acerca desta experiência ver Groisman (1999) ou Mortimer (2000).
77
Os hinos, devido a forma de seu recebimento, ou seja, advindos de um contato extra material com o astral,
assumem, para os daimistas, o caráter de verdade revelada. Isto é, uma vez reconhecido pelo grupo como um
autêntico, o hino se transfigura em uma espécie de guia de princípios e condutas.
66

Sou eu, sou eu, sou eu, eu posso afirmar


O mestre me chamou, para eu me declarar
[...]
Meus irmãos vou lhes dizer, para todos aprenderem
Que debaixo da minha ordem é que eu agora quero ver
[...]
Sou eu, sou eu, sou eu, o Mestre me afirmou
78
Olha o relho na minha mão, aonde está o chiqueirador.

Mas, como diz o ditado, “nem tudo são flores”. A rápida inserção e destaque de
Sebastião Mota acabou por causar tensões internas dentro do grupo, visto que, em relação a
diversos membros do Alto Santo, ele era um novato. Mas, com seu caráter carismático e de
liderança incontestável, Mestre Irineu controlava com sucesso a situação de iminente
conflito. Contudo, após a morte de Irineu Serra, a primeira grande quebra, causando um abalo
nas relações comunitárias do grupo, veio a se estabelecer, devido à falta da força
estruturadora do seu fundador original.
A liderança ficou com Leôncio Gomes, filho de Antônio Gomes, um dos daimistas de
maior destaque dentro da primeira geração. Entretanto, o apoio ao novo dirigente não era
compartilhado por todos. Em contra partida, Sebastião contava com a aceitação de diversos
outros membros da casa e continuava a realizar alguns trabalhos de daime em sua residência,
em outras palavras, “Sebastião Mota já aglutinava em torno de si um grupo de pessoas que o
viam como uma espécie de líder, como alguém capaz de organizá-los e suprir as suas
carências” (GOULART, 1996, p. 31).
É em 1974 que a ruptura se concretiza. De acordo com Fróes (1986) e Mortimer
(2000), o fato aconteceu devido a negação de Leôncio em usar a bebida preparada por
Sebastião na Colônia Cinco Mil, defendendo o monopólio do feitio do daime para os que a
faziam no Alto Santo. Ambos os autores e Goulart (1996), concordam em apontar o hino,
recebido por Sebastião – Levanto essa bandeira – como uma espécie de legitimação da
separação. Assim, mais uma vez, observamos o hino exercendo uma função cristalizadora e
legitimadora – exatamente devido ao seu caráter de verdade incontestável – para ditar a
tomada de decisões e práticas cotidianas. Devemos entender o fato de no conteúdo do hino
estarem presentes as instruções e conselhos para a conduta dos fiéis, sendo neles ilustradas as
visões de mundo daimista (LABATE; PACHECO, 2009).

Levanto esta bandeira porque assim meu Pai mandou


Todos que olharem pra ela tem o mesmo valor [...]
Pai, Filho, Espírito Santo! Todos três em um só se encerra

78
Padrinho Sebastião, O Justiceiro, hino 28.
67

79
Nós precisamos de paz e não precisamos de guerra.

Além dessa questão pela “disputa do poder”, podemos tentar enxergar um sentido
mais místico acerca da mudança de ares feita por Sebastião Mota. De acordo com Rehen
(2013), Sebastião Mota teria contato frequente com “a Rainha da Floresta, aquilatando a
doutrina, o que seria inteiramente oposto à ideia de “dissidência. Assim, [...] o Padrinho
passou a receber as instruções divinas na posição de chefe espiritual” (REHEN, 2013, p. 35).
Continuando, ainda baseado em Rehen (2013), acreditava-se que o próprio Mestre Irineu
falava com Sebastião Mota, em espírito, “legitimando, guiando e apoiando suas decisões, o
que é perceptível nas letras de parte fundamental dos 182 hinos que compõem as duas
coletâneas de hinos recebidos por Sebastião Mota” (REHEN, 2013, p. 35).
Pensando nos termos de Groisman (1991), o aspecto místico religioso para
legitimação de Sebastião Mota é ainda mais amplo. Além do seu hinário, como demonstra
Rehen (2013), elencar a figura de Mestre Irineu – o Chefe Império Juramidam, a segunda
vinda do Cristo (GOULART, 1996) – a cura recebida por Sebastião é central. Logo, além dos
hinos, “o caráter da cura que recebeu da “Espiritualidade”, constituem-se sinais fundamentais
para a elevação de Sebastião Mota Melo à líder espiritual” (GROISMAN, 1991, p. 41).
Um relato, de um adepto do Santo Daime, introduzido por Goulart (1996) é
importante para pensar a questão:

O Mestre Irineu entregou o comando para o padrinho. Ele entregou espiritualmente.


Tá no próprio hinário do padrinho. Não tem aquele hino do padrinho Sebastião:
“Nos três eu te procurei...” Pois é, naquele hino o Mestre entregou o comando do
trabalho pro padrinho (...) Tem também aquele outro hino do padrinho, quando o
padrinho afirma que o Mestre é filho de Maria, e ele é filho de Isabel. Então, tudo
isso foi o Mestre que revelou para o padrinho... revelou espiritualmente, através dos
hinos, porque os hinos que a gente recebe são tudo revelação divina que o Cristo, o
Daime, o Mestre, que é uma coisa só, né, nos envia (...) O Mestre entregou o
trabalho para o padrinho Sebastião porque não podia ser outro, né? Ele estava
destinado a formar um povo. Era a missão dele, escolher um povo, preparar... deixar
ele bem limpinho para quando viesse o dia todos nós tivesse pronto para receber
Deus. (GOULART, S. 1996, p. 193-194)

Sobre a fala do adepto, Goulart (1996) salienta pontos fulcrais para pensarmos a
legitimidade alcançada por Sebastião Mota. Em primeiro lugar, a autora aponta o fato da
ligação entre Irineu Serra e Sebastiao Mota ser mobilizada não apenas para legitimar a
liderança do Padrinho Sebastião, mas, “sobretudo para comprovar que o padrinho possuía
uma “missão” maior, estando “destinado” a guiar-se e a “escolher” um povo” (GOULART,

79
Padrinho Sebastião, op. cit., hino 89.
68

1996, p. 194). Já a condição sagrada de Sebastião é promulgada por Irineu Serra, entendido,
através do hino relatado, como o próprio Cristo, pois, no relato, “o Cristo, o daime, o Mestre,
que é tudo uma coisa só”. Sobre isso, Goulart (1996), afirma que “o Mestre e o Cristo são o
“mesmo espírito”. Por outro lado, o padrinho Sebastião é visto como o filho de Isabel, ou
seja, como São João Batista” (GOULART, 1996, p. 194).
É interessante perceber a centralidade dos hinos nestas passagens. A interlocutora de
Sandra Goulart (1996) vai buscar a legitimidade do Padrinho Sebastião pelos hinos por ele
recebidos. Luna (1986) argumenta que para os xamãs qualquer cântico seria resultado da
identificação entre uma planta, ou um animal, e o seu receptor. Assim, o xamã, quando canta
suas músicas ritualmente passa a enxergar o mundo a partir do ponto de vista daquela planta
ou animal que o ensinou. Não seria aqui o caso, pensando nos deslocamentos de ponto de
vista trabalhados no primeiro capítulo, de Sebastião Mota estar afirmando sua liderança
porque a própria planta – enquanto um ser divino onde estaria o Mestre Irineu – o deixou
fazer? Creio que sim. Dessa forma, é válido afirmar que Sebastião Mota posta sua liderança
não só através de disputas pelo poder, materialmente falando, mas, sim, através de um viés
místico, legitimado pelos seus hinos e também por sua cura obtida através do daime.
Prosseguindo, é através de uma “mensagem do astral” que Sebastião decide buscar
novos horizontes. Em princípio, organizou uma igreja na própria Colônia Cinco Mil, junto
com sua família e fardados advindos do Alto Santo, favoráveis à sua liderança. Era o
primeiro passo da ação que teria como consequência a saída, anos depois, do Santo Daime do
eixo amazônico, ampliando sua área de influência para o resto do Brasil e, posteriormente,
para a cena internacional. 80
Sebastião Mota se empenhava para estruturar e mobilizar a comunidade com uma
base essencialmente comunitária, com um modus operandi voltado aos valores e morais,
fundamentalmente cristãos, que sustentavam a formação religiosa do Santo Daime
(FERREIRA, 2008; MORTIMER, 2000). No começo, uniram-se 25 colônias, formando uma
propriedade de 380 hectares, onde o fruto do trabalho realizado era partilhado por todos os
membros ali presentes.
Com o passar do tempo, os trabalhos espirituais realizados por Sebastião Mota
começaram a ecoar em todo o município de Rio Branco, Acre. Em consequência, houve um
aumento no fluxo de pessoas que buscavam uma solução para seus males, mas, outros vieram
atraídos por uma proposta de vida comunitária, isto é, enxergando aquilo com uma fuga da

80
Para informações mais detalhadas acerca da expansão do Santo Daime para outros países, os trabalhos de
Balzer (2002), Rehen (2011), Assis (2013) e Assis e Labate (2014) se constituem como boas referências.
69

engrenagem capitalista e também motivados a conhecer o tal chá sagrado da região


amazônica (GOULART, 1996; MORTIMER, 2000). Muitos, guiados por um mote
aventureiro, extremamente corriqueiro nas décadas de sessenta e setenta, vieram tanto de
diferentes regiões do país, quanto de diversos lugares do globo. Dito de outra maneira, é o
tipo de indivíduo caracterizado por Soares (1986) como religioso por natureza81. Ou,
podemos pensar as religiosidades contemporâneas grifadas por um double blind (PEREZ,
2011), ou seja, o esvaziamento das religiões tradicionais e a exploração de uma religiosidade
mais nômade e mais sincrética, assinalando tanto uma recomposição quanto uma renovação
da sensibilidade religiosa, da experiência do sagrado e também do divino (PEREZ, 2011).
Mesclando progressivamente o “povo da floresta” com “o povo da cidade”, verificou-
se a necessidade do novo centro possuir um registro público, institucional. Assim, em 1974,
nascia o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS),
personificando a Colônia Cinco Mil enquanto uma entidade religiosa e filantrópica. Mesmo
evidenciado a matriz cristã e estabelecendo seu trabalho espiritual nos moldes deixados por
Mestre Irineu, o Cefluris não nega as outras influências, muito menos a incorporação de
novas influências em seu corpus doutrinário, deixando transparecer um auto reconhecimento
da formação de uma doutrina sincrética a partir do cristianismo. Vejamos uma parte de seu
estatuto:

Nossa Igreja, também denominada de Centro, pratica o culto da Fluente Luz


Universal. Centro, significando o ambiente, a egrógora, o local onde se realizam as
sessões espirituais previstas por este Estatuto que regulamenta nossa prática
espiritual. Eclético, porque incorpora em seus ensinamentos, fundamentos
reconhecidamente verdadeiros e que fazem parte de outras tradições e doutrinas que
também consagram os mesmos princípios do Ecletismo Evolutivo. Fluente, na
medida que a tradição flui constantemente na direção da evolução, do
aperfeiçoamento e do progresso espiritual, como um ininterrupto jorro de Luz. E
Universal, querendo significar com isso a validade e abrangência cósmica dos
ensinamentos professados pela nossa Igreja. [...] A Igreja do Culto Eclético da
Fluente Luz Universal é uma instituição de natureza civil, de caráter religioso,
filantrópico, que tem por fundamento a crença em Deus como Ser Supremo e
princípio de todas as coisas; em Jesus Cristo, Redentor dos homens e cujo sangue
vertido para a remissão da humanidade vem a estar simbolizado no Sacramento
Daime; na Virgem Soberana Mãe, como nossa Rainha e Protetora; no Mestre
Império Juramidam, como o nome adotado na presente Era pelo Espírito Crístico;
no nosso guia espiritual e chefe desse rebanho, São João Batista, no Rei Salomão
e todos os seres da Corte Celestial, falanges e entidades de luz que trabalham por
amor a Deus e favorecem a evolução espiritual da humanidade. A Igreja do Culto
Eclético da Fluente Luz Universal funda seus procedimentos na Harmonia, no

81
Soares (1986) grifa esse tipo de indivíduo enquanto um andarilho. Melhor dizendo, é corriqueiro o
deslocamento físico fixo para a procura de diferentes formas de trabalhar a espiritualidade, com o intuito de
sempre requintar a experiência mística. Logo, suas devoções e crenças rituais possuem uma característica
experimental. As categorias de energia e trabalho são, entre eles, a moeda corrente, o equivalente universal, a
medida comum (SOARES, 1986).
70

Amor, na Verdade e na Justiça; afirma sua filiação à grande família cristã;


respeita as tradições espirituais de outros povos e culturas; é tributária das
revelações espirituais xamânicas e enteógenas dos antigos habitantes da Américas;
considera o Santo Daime um veículo divino, o Paráclito em forma vegetal, enviado
pelo Pai, para que se cumprisse a promessa das Escrituras sobre a vinda do
82
Consolador Prometido.

Embora os passos do reconhecimento público terem um relativo sucesso, as condições


materiais da Colônia Cinco Mil se encontravam em declínio. Os motivos abrigavam desde o
desgaste das terras usadas, na periferia de Rio Branco, até o aumento do custo de vida numa
cidade. Por isso, Sebastião resolve retornar para dentro da floresta e, com uma autorização do
INCRA, em 1980, o “povo do Padrinho Sebastião” (MORTIMER, 2000) se mudou para o
seringal Rio do Ouro, no município de Boca do Acre, no Amazonas. É importante
problematizar a mudança não apenas como advinda de questões materiais, mas incluir
também o motivo espiritual, ou melhor, o ethos da comunidade daimista.
O espaço ocupado por Padrinho Sebastião e seus seguidores era uma mata virgem,
propiciando enormes dificuldades e problemas para a consolidação de uma comunidade
estável no local. Mas, concomitantemente, devemos salientar a importância da cosmologia
daimista nesse ponto. Para os adeptos, a natureza é algo tomado como sagrado; a bebida, isto
é, o daime, vem da floresta; a iniciação de Mestre Irineu se deu nas matas; e, também, a
Virgem da Conceição se manifestou na lua, logo, e lá que ela está. Dessa maneira, a ideia da
natureza como portadora, ou manifestação, do transcendente é algo fulcral. Buscando
exemplo nos hinos, temos:

Eu ligado em natureza, a natureza me convém


O que ela me transmite é o que de melhor existe
83
Amar e querer bem.

Ou:

Sol, lua, estrela, a terra, o vento e o mar


84
É a luz do firmamento, é só quem eu devo amar.

82
Estatuto Igreja do Culto Eclético da Fluente Luz Universal. Disponível em:
https://www.google.com.br/search?q=Nossa+Igreja%2C+tamb%C3%A9m+denominada+de+Centro%2C+pratic
a+o+culto+da+Fluente+Luz+Universal.+Centro%2C+significando+o+ambiente%2C+a+egr%C3%B3gora%2C&oq
=Nossa+Igreja%2C+tamb%C3%A9m+denominada+de+Centro%2C+pratica+o+culto+da+Fluente+Luz+Universal.
+Centro%2C+significando+o+ambiente%2C+a+egr%C3%B3gora%2C&aqs=chrome..69i57.311j0j4&sourceid=chr
ome&es_sm=122&ie=UTF-8#. Acesso em: 03/12/2015. O Cefluris, de acordo com seu site
http://www.iceflu.org.br, produziu seu estatuto em 1989.
83
Padrinho Alfredo, O Cruzeirinho, hino 126.
84
Mestre Irineu, O Cruzeiro, hino 29.
71

É válido salientar a forma, não hegemônica, de relação do daimista com a natureza.


Mesmo tendo certa harmonia com os princípios contemporâneos de conservação e
preservação dos recursos naturais, para o daimista, conservar a natureza é, mais do que
qualquer necessidade econômica ou material, uma questão de cunho espiritual. Logo, a
sacralidade da natureza a transfigura enquanto o lugar mais apto para o desenvolvimento da
doutrina. Goulart (1996) grifa esta grande importância à natureza como uma característica
intrínseca ao Cefluris e devido a responsabilidade desta instituição no movimento de
expansão do Santo Daime, o discurso com o tom ecológico assumiu um papel de extrema
importância na expansão. Vejamos uma passagem em que Sandra Goulart (1996) narra sua
experiência de ida a floresta amazônica para conhecer a igreja do Padrinho Sebastião:

Éramos sete na canoa. Eu era a única mulher. Além do rapaz que viajava comigo
desde Porto Velho, havia mais dois cariocas. Um deles, um rapaz de uns 28 anos
começou a conversar comigo. Ele dizia que o Daime despertava nele uma “ligação
com a natureza”. Já nos primeiros contatos com a doutrina, ele começou a sentir a
presença, nos rituais, dos “seres da natureza”. Isto permitiu que ele se envolvesse
mais rapidamente com o Daime. Pois ele percebeu que a doutrina daimista “não era
um conjunto de dogmas, mas se baseava em princípios verdadeiros, que vinham do
mundo natural”. Agora, ali, naquela pequena canoa, sem “os aparatos da
civilização”, ele sentia toda a força da natureza. “Era o chamado do Daime” que, ao
mesmo tempo, “era o chamado da natureza” (GOULART, Sandra. 1996, p. 36-37).

É justamente nesse ambiente da floresta, tomado como sagrado, onde,


simbolicamente, a construção dessa nova comunidade angaria um significado particular,
extremamente fincado no universo católico, ou seja, a construção da Nova Jerusalém. Assim,
a edificação da cidade santa estaria concretizada e reelaborada em plena floresta amazônica,
estruturada em volta de uma bebida milenarmente utilizada por diversas formas culturais
(FERREIRA, 2008).
Mas, a construção da sede em Boca do Acre não durou muito tempo. Em 1982, as
terras ocupadas pelo Padrinho Sebastião foram identificadas pelo INCRA como propriedade
de uma empresa, a Agropecuária Paraná. Portanto, em 1983, o grupo parte para uma
localidade ainda mais no interior da floresta, o igarapé Mapiá, no Amazonas. Com inúmeras
dificuldades, devido à distância de qualquer núcleo urbano e também pelo acesso ser
disponível apenas com viagens de barco, que podem durar até dois dias, o “povo do Padrinho
Sebastião” começou a se assentar em seu novo território (MORTIMER, 2000).
Contudo, um novo horizonte começava a ganhar corpo. E ele era advindo desde a
época, da já distante, Colônia Cinco Mil. Melhor dizendo, foi a atração de um grande número
72

de pessoas – conectadas a “nova consciência religiosa”85 (SOARES, 1989) – vindas de outros


lugares do Brasil, que se mostrou enquanto a porta de saída do Santo Daime dos limites
amazônicos (SILVEIRA, 2007; REHEN, 2011). Em consequência disso, com a ida do Santo
Daime para fora da floresta, a economia local começou a florescer melhor e o Céu do Mapiá
passou a ser entendido como o centro irradiador da Doutrina do Santo Daime (GROISMAN,
1999). Sendo entendido por muitos como a concretização da Nova Jerusalém (FERREIRA,
2008). Nas palavras de Soares:

Nem coração, nem razão: pulsa, lá, no interior sombrio e imperscrutável da selva,
algo que é vivo e se manifesta por excessos, é fonte inesgotável de vida e
permanente ameaça de aniquilamento e morte, algo que é irredutível e
irremediavelmente outro, exterior, distante e também central, intimo, próximo,
presente; enfim, algo que, na topologia simbólica da nação, ocupa o lugar do
inconsciente ou, talvez mais precisamente, do Id, do Isso, no modelo freudiano da
alma humana. (SOARES, 1990, p. 272-273).

É rigorosamente relacionado a este movimento de expansão, liderado por Padrinho


Sebastião, que o Santo Daime vai se fincar nas montanhas da Serra da Mantiqueira, em
Minas Gerais.

85
Por nova consciência religiosa, deve-se, nos termos do autor, entender um tipo de ressurgimento do encanto
por práticas alternativas e esotéricas, presente no meio urbano, por parte das classes médias intelectualizadas.
73

CAPÍTULO 3

O DESPERTAR DO DAIME

Neste capítulo, primeiramente, a partir do movimento expansionista do Santo Daime,


o objetivo é traçar o surgimento do Céu do Gamarra. Em um segundo momento, o foco é
compreender, através de interlocuções com os adeptos, quais as motivações que levaram tais
indivíduos – oriundos de classes médias urbanas e, em sua maioria, de grandes centros –
abdicarem de uma vida, relativamente “tranquila”, na cidade, e optarem por se vincular a uma
igreja do Santo Daime, localizada no interior das Minas Gerais. A questão do ponto de vista,
ou deslocamento de perspectiva, abordada no primeiro capítulo, é necessária para podermos
compreender melhor tais questões. Paralelamente, buscarei uma percepção de como os
adeptos, do Céu do Gamarra, entendem os hinos da doutrina. Para isso, parto do pressuposto
de que os hinos, recebidos por um contato com o astral, são pensados enquanto parte da base
de conhecimento do Santo Daime. Assim, a música, entoada ritualmente, também possui a
potencialidade de ajudar no deslocamento de perspectiva do adepto, guiando, este último,
tanto durante a experiência de êxtase quanto na vida cotidiana.
Portanto, o capítulo é construído a partir de dados etnográficos86 e referências
bibliográficas. Concomitantemente, prossigo com o uso metodológico dos hinos, ou seja, a
utilização deles, ao longo do texto, com o intuito de explorá-los, na qualidade de
esclarecedores da trajetória de constituição do Santo Daime. Logo, compreendendo-os como
auxiliadores do deslocamento de perspectiva, ou seja, uma espécie de veículo do
conhecimento nativo. Melhor dizendo, os hinos, para o daimista, seriam algo como um
manual de instruções.

3.1 - O Céu do Gamarra

Concordando com Goulart (1996) e Rehen (2011), um dos principais fatores


motivacionais do surgimento de diversos núcleos daimistas – situados fora da região
amazônica – foi a chegada de pessoas advindas de outros lugares, que não a região norte, à
igreja de Sebastião Mota de Melo. Conforme expõe Rehen (2011), “andarilhos,
‘mochileiros’, pesquisadores, artistas e turistas fomentaram a expansão da doutrina em larga

86
Foram feitas, durante o período da pesquisa, entrevistas em profundidades com sete membros do Céu do
Gamarra.
74

escala” (REHEN, 2011, p. 39). Diversos são os exemplos de pessoas que realizaram tal
itinerário, rumo ao Céu do Mapiá, e depois vieram a fundar igrejas, em outros locais do
Brasil, cujo auxílio a difusão do Santo Daime, para fora do círculo da floresta, foi de grande
importância.
O carioca Paulo Roberto, psicólogo, foi pioneiro (REHEN, 2011). Ao comprar um
terreno em São Conrado, no Rio de Janeiro, “em conjunto com outros adeptos [...]
construíram uma pequena igreja de madeira em pleno Rio de Janeiro” (REHEN, 2011, p. 39).
Outros, também, são vanguarda no processo de expansão, por exemplo: Marco Imperial,
dirigente da igreja Rainha do Mar, cuja localização é, igualmente, no Rio de Janeiro, mas, em
Pedra de Guaratiba; Guilherme França, comandante da igreja sediada em Aiuruoca, no estado
de Minas Gerais; Alex Polari de Alverga 87, responsável por fundar o Céu da Montanha, em
Visconde de Mauá, no Rio de Janeiro; e, o antropólogo, Fernando La Roque Couto, agente
ativo da fundação do Céu do Planalto, localizado em Brasília. Groisman (1991) e Macrae
(1992), salientam o nascimento de centros daimistas também em: Friburgo, Rio de Janeiro;
Brasília, Distrito Federal; Belo Horizonte, Santa Luzia e Caxambu88, Minas Gerais;
Florianópolis, Santa Catarina; e, em São Paulo capital.
Posicionada dentro deste caldeirão de formação de novas igrejas, ou melhor, inserida
nesta segunda geração de centros daimistas, está o Céu do Gamarra, fundado pelo casal Fábio
e Suzana, em meados da década de 1980.89 A igreja se constitui, juridicamente, enquanto a
entidade Ceflugg90, embora tenha sido dada por Sebastião Mota, ou Padrinho Sebastião,
considerado uma figura central no Cefluris.
Agora, com o intuito de situar, historicamente, a formação do Céu do Gamarra,
demonstrarei como foram trilhados os caminhos de construção de tal centro religioso. Para
isso, o trabalho de Ferreira (2008), assim como informações obtidas através das entrevistas,
são referências primordiais.

87
Alex Polari é hoje um dos dirigentes do Cefluris. Para mais informações ver:
http://www.santodaime.org/origens/alex.htm (Acesso em 15/02/2016).
88
Aqui, creio em um pequeno descuido de Edward Macrae e Alberto Groisman. Muito provavelmente, ambos,
estariam se referindo ao Céu do Gamarra, pelo fato dos dirigentes da igreja, na época, residirem em Caxambu e,
também, por este centro ser a primeira igreja vinculada ao Santo Daime do sul de Minas Gerais. Todavia, a
igreja se localiza no município vizinho, isto é, Baependi, mais precisamente no vale do Gamarra. Hoje, o
Padrinho Fábio Pedalino e a Madrinha Suzana Pedalino residem exatamente no espaço do Céu do Gamarra, ou
seja, não mais em Caxambu.
89
Em 2015, o Céu do Gamarra comemorou seu aniversário de 28 anos no mês de setembro.
90
Centro Eclético da Fluente Luz Universal Germano Guilherme. De acordo com Ferreira (2008), a não filiação
ao Cefluris não é reflexo de alguma discordância ritual ou doutrinária. O Cefluris enxerga a igreja como
legítima, não tendo nenhum problema com sua direção. O motivo maior da não filiação é o fato do Céu do
Gamarra ser autossuficiente na produção do daime.
75

O contato de Fábio e Suzana com o Santo Daime se materializa, em um primeiro


momento, através da descoberta, de Suzana, da obra de Alex Polari, O livro das Mirações,
onde é discorrida a experiência do autor com a bebida. Em um segundo momento, por meio
de conversas, dentro do seu círculo social, Fábio Pedalino, descobriu a existência de uma
igreja do Santo Daime, no Rio de Janeiro, mais precisamente, em São Conrado, bairro onde
residiam.
É sabido o fato de São Conrado ser um bairro de classe média carioca. Assim, é
importante pensar nos termos de Soares (1989; 1990), ou seja, os frequentadores desta igreja
eram, sobretudo, “indivíduos de camadas médias urbanas, em geral com acesso a bens
culturais razoavelmente sofisticados” (SOARES, 1990, p. 265). O autor coloca o Santo
Daime ocupando um lugar sui generis, dentro do contexto da nova consciência religiosa,
pois, uma vez que, a errância e o experimentalismo “definem a natureza das relações entre os
indivíduos e as perspectivas religiosas ‘alternativas’ [...] o daime inverte expectativas e
conclama [...] a uma suspensão da circulação mística” (SOARES, 1990, p. 267-268). Então, é
imerso dentre deste contexto, analisado por Soares, isto é, o da emergência de uma “nova
consciência religiosa” – uma espécie de experimentalismo cultural e religioso, um tipo de
“renascimento” do interesse, seja intelectual, político ou existencial, por práticas alternativas,
terapias e disciplinas esotéricas, pelas classes médias, intelectualizadas, presentes nas
metrópoles urbanas (SOARES, 1989) – onde o casal, responsável pela fundação do Céu do
Gamarra, deu seus primeiros passos na doutrina do Santo Daime.
O primeiro trabalho espiritual, realizado por Suzana e Fábio, na igreja Céu do Mar,
aconteceu em novembro de 1985, sendo, de alguma maneira, determinante para o futuro do
casal de classe média carioca. No ritual, Fábio Pedalino passou por uma forte experiência
extática, causada pela ingestão do daime, “que determinou de maneira inequívoca o futuro
desse jovem carioca de classe média” (FERREIRA, 2008, p. 38). A experiência com o daime,
como coloca Ferreira (2008), determinou o futuro da vida de Fábio Pedalino. À vista disso,
não seria um exemplo de uma questão explorada no primeiro capítulo? Como disse, o poder
da planta, no sentido de aquisição do conhecimento, está, justamente, na sua capacidade de
deslocar pontos de vista, já que, ao ser ingerida, ela coloca a possibilidade de entrar em
contato e perceber realidades extra materiais.
Dessa maneira, o impacto, de tal contato com a planta, para o casal, alterou os rumos
de suas vidas materiais, pois, em cerca de cinco meses, frequentando os rituais e também os
espaços e momentos de confraternização, envolvendo a comunidade, eles já estavam
fardados. Ou seja, faziam parte, oficialmente, do grupo dirigido por Paulo Roberto Souza e
76

Silva. Quanto a opção do casal por uma pertença dentro da doutrina, através do fardamento,91
podemos pensar nos moldes de Soares (1990), logo, entender o Santo Daime enquanto um
ponto de inflexão, dentro do campo da nova consciência religiosa, vista a suspensão “do
trânsito incessante” (SOARES, 1990, p. 298), possivelmente transformando em
“engajamento formal: batismo ou ‘fardamento’” (SOARES, 1990, p. 267).
Paralelo ao estreitamento dos vínculos do casal com a doutrina do Santo Daime, o
Céu do Mar recebeu uma visita ilustre. O Padrinho Sebastião fez as malas e rumou-se para o
Rio de Janeiro, à procura de tratamento médico pela idade e por problemas de saúde. 92 Era a
primeira vez que o seringueiro, agora líder espiritual, saía dos confins da floresta amazônica.
Sua saída, muito condicionada pela sua posição de Padrinho, conferia a Sebastião uma
facilidade mais ampla de acesso as oportunidades de tratamento, vinculadas a uma medicina
científica. Conjuntura contrária aquela da época, onde era apenas um seringueiro. Como a
igreja ainda estava em seu início, ocorreu um verdadeiro mutirão para acolher, de forma
agradável, o Padrinho Sebastião e sua família.
Ao casal Pedalino coube zelar pelo bem estar do Padrinho Sebastião, e de sua família,
se colocando disponíveis para qualquer solicitação. Pouco a pouco, as relações, entre os três,
foram se tornando cada vez mais próximas. Em determinado momento, Sebastião Mota
convidou Fábio e Suzana para um trabalho espiritual, feito excepcionalmente para os dois.
Tal trabalho, contou com mais nove pessoas selecionadas apenas para dar suporte ao ritual.
Após se servirem de um copo grande e cheio de daime, ambos, passaram pelas mesmas
experiências extáticas, sob o comando do Padrinho Sebastião, que, também, de acordo nossos
interlocutores, presenciava exatamente o mesmo estado de consciência.
Labate (2004) aponta a miração como um “meio de revelação espiritual” (LABATE,
2004, p. 116). O Padrinho Sebastião, enquanto líder espiritual, sob o efeito da bebida,
mostrou para o casal, também sob o mesmo efeito, “toda a história do Santo Daime e o que o
futuro reservava para o Rio de Janeiro, quando ela viu ondas enormes inundando a cidade”
(FERREIRA, 2008, p. 40). Albuquerque (2007) explica a miração como sendo um estado de
expansão da consciência. Logo, o indivíduo, sob o efeito do chá, pode vir a ter visões de
cores mais intensas, contatos com seres extra materiais e insights para a vida cotidiana,

91
Durante um diálogo, ao final de um trabalho, o Padrinho Fábio me disse que já havia passado por algumas
religiões, antes de conhecer o Santo Daime. Tal fato, possuí extrema consonância com os postulados, acima
explicitados, de Soares (1989; 1990).
92
Para uma maior compreensão dos motivos que levaram Sebastião Mota a viajar para o sudeste, ver Bença
Padrinho! (MORTIMER, 2000).
77

“permitindo uma observação mais clara dos próprios sentimentos e pensamentos”


(ALBUQUERQUE, 2007, p. 74).
Deste modo, através da miração, o casal teve a revelação, apontada na citação trazida
por Ferreira (2008). A revelação, no Santo Daime, é um aspecto que envolve a “Santa Luz”
(GROISMAN, 1996). A “Santa Luz” tem sua origem no Pai Eterno, em Deus, que a envia
para seus filhos (GROISMAN, 1996). Por conseguinte, “a ‘Santa Luz’ origina-se da
divindade, e, ao mesmo tempo, revela-se em alguém cuja existência estava, até então,
obscurecida pelo ‘Mundo da Ilusão’” (GROISMAN, 1996, p. 346). Como a revelação advém,
então, da miração, ocasionada pelo contato com a planta na doutrina, o indivíduo que jogar
este jogo de linguagem, do Santo Daime, acaba por reforçar seu idioma religioso (SOARES,
1990). Em outras palavras, “o espantoso poder de reencontrar, na memória divina, trabalhada
imaginariamente, o futuro – que é a verdade da crença e sua confirmação, sob a forma de
destino” (SOARES, 1990, p. 271). Este futuro, ou destino, do casal, seria, como exposto
acima, sair do Rio de Janeiro.
Com o término da sessão, Sebastião Mota sugeriu, aos dois, a criação de uma igreja,
em Boca do Acre; no estado do Amazonas. Cientes da dificuldade de trocar uma vida na
cidade do Rio de Janeiro por outra na floresta amazônica, o casal ainda tinha dúvidas, mas, o
peso da liderança espiritual de Padrinho Sebastião, juntamente com seu insistente pedido,
fizeram ambos concordarem com a proposta de fundar um novo núcleo daimista.
No entanto, ao invés de Boca do Acre, o casal sugeriu o sul de Minas Gerais,
localidade onde já tinham adquirido uma propriedade. Embora o Padrinho Sebastião tenha
sido sensível ao pedido, ele exigiu uma condição: a ida dos dois ao Céu do Mapiá,
pessoalmente, para obterem o daime a ser utilizado na empreitada inicial de seus trabalhos
espirituais.
Imersos nessa jornada de iniciação no Santo Daime, o casal, já alocado no Céu do
Mapiá, enfrentou uma série de trabalhos espirituais e um feitio especial para a fundação da
nova igreja. O fato desta trajetória de iniciação ser feita sobre a égide de Sebastião Mota foi,
sem dúvida, marcante para legitimar o casal a se tornar liderança do Santo Daime.
Passados 45 dias na floresta amazônica, Fábio e Suzana, retornaram para o sudeste,
portando oitenta litros de daime. Os primeiros trabalhos foram feitos na cidade de
Cambuquira, Minas Gerais, em um espaço improvisado dentro da casa onde residiam. Uma
gama de problemas vieram à tona, neste espaço de tempo. Por exemplo: a falta de apoio para
a condução do ponto, muito motivada pela não garantia de recursos advindos de sua antiga
igreja, o Céu do Mar, onde até o momento estavam filiados; a ausência de matéria prima para
78

a feitura da bebida sagrada; e, também, a inexperiência para o manejo das relações sociais
constituídas em uma comunidade religiosa que, por vezes, são complexas e conflitantes.
Em 13 de setembro de 1987 foi fundada a igreja, no local desejado primeiramente, ou
melhor, onde o casal obtinha uma propriedade rural. Trata-se do município de Baependi,
localizado no sul de Minas Gerais. Em um primeiro momento, o novo núcleo daimista
funcionou, provisoriamente, no centro da cidade. Com o desenrolar dos atos, foi se
constituindo um grupo de fardados, ainda em número reduzido, mas interessados na dinâmica
espiritual do grupo.
A propriedade rural do casal se localizava a cerca de 40 km do centro de Baependi. A
dificuldade para se chegar ao local era enorme, dado o ambiente inóspito de uma estrada de
terra não tão bem cuidada.93 Contudo, pela beleza, e pelo fato de Sebastião Mota ter visto o
lugar em uma viagem astral, as intempéries para a fixação da nova igreja foram vencidas.
Neste ponto, é interessante perceber, mais uma vez, a miração exercendo papel
central. Soares (1990) interpreta a doutrina, através do jogo de imagens da miração, sendo –
exatamente pela sua flexibilidade e abertura – reconstruída e alcançada, pelo que entendem
ser, a via da graça divina (SOARES, 1990). Isto posto, sendo a planta – em conjunto com o
merecimento – os responsáveis pelo o que a pessoa “vê” e quando “vê”, juntamente com a
ocorrência de Sebastião Mota ter enxergado o local, do Céu do Gamarra, em uma miração, e
a doutrina ser “revelada e misticamente investigada pela e como visão” (SOARES, 1990, p.
268, grifo do autor), podemos afirmar a fixação do local escolhido advindo do contato com
realidades extra materiais, isto é, outros mundos possíveis. É importante observar o Santo
Daime operacionalizando o acesso ao conhecimento, em termos de deslocamentos de
perspectivas, pois, o Padrinho Sebastião, através do contato com a planta, em sua viagem
astral – em comunicação com o outro mundo – obteve o conhecimento, durante a miração,
para o local ideal da edificação do Céu do Gamarra.
Mesmo com variados contratempos, após dois anos, o sonho da sede fixa se tornou
realidade. Atualmente, o número de fardados e de participantes ativos, nos rituais da igreja,
gira em torno de trinta a cinquenta pessoas. 94 A igreja também passou por um movimento de

93
Hoje, a estrada está em melhores condições, facilitando o acesso.
94
De fato, existem alguns trabalhos onde o número de pessoas é maior do que em outros. Há também o
problema de diversos fardados não residirem na região, refletindo de forma direta, ou indireta, na frequência dos
mesmos. Porém, a igreja, por ser um núcleo reconhecido na região, recebe alguns visitantes, nos rituais, o que
acaba por aumentar, um pouco, o número de pessoas em determinadas sessões.
79

expansão, para além de suas fronteiras originais, com a edificação de um núcleo situado em
Varginha, Minas Gerais; e, outro em São Carlos, no estado de São Paulo 95.

3.2 O despertar do daime: mudanças de vida através do Santo Daime

Feita essa incursão sobre o surgimento do Céu do Gamarra, apontando o efeito da


miração – que traz à tona a revelação – e suscitando o deslocamento de perspectiva, causado
pelo contato com a planta na doutrina, como sendo os alicerces para a construção da igreja,
agora, irei dedicar um espaço para dialogar com a própria trajetória de vida de alguns adeptos
do Céu do Gamarra. Logo, o objetivo é tentar captar as motivações indutoras de uma
mudança de modo de vida. Em outras palavras, quais seriam os determinantes para estas
pessoas, vindas das camadas médias urbanas, deslocarem suas trajetórias pessoais para uma
igreja, localizada em Baependi, do Santo Daime?
Contudo, antes, é importante tecer algumas considerações teóricas sobre este tipo de
indivíduo. Primeiramente, é crucial perceber o que se entende por modernidade. Para
Giddens (1990; 1991), há uma relação entre a modernidade e a dúvida radical. Com o
surgimento de uma série de escolhas possíveis, concomitante ao florescimento de uma
multiplicidade de classes de especialistas, a modernidade questiona o indivíduo sobre qual
maneira, este último, deve viver. Assim, um sentido de identidade e de busca por si mesmo,
em cada indivíduo, ganha forças.
Consequentemente, o self se afirma enquanto um projeto reflexivo. Ou ainda, nas
palavras de Beatriz Labate (2004), “a criação de narrativas biográficas coerentes,
continuamente revistas. Os ‘futuros’ são organizados reflexivamente no presente, entre as
múltiplas possibilidades” (LABATE, 2004, p. 90). Então, o consumo da ayahuasca pode estar
se tornando cada vez maior devido a este projeto de autoconhecimento, uma vez que isto está
em sintonia com a “ênfase contemporânea, quase obsessiva, na busca de si mesmo”
(LABATE, 2004, p. 91). É nos moldes desta busca, enfatizada por Labate (2004), que
pretendo seguir com os autores.
Goulart (1996), caracterizando o daimista do “sul”, isto é, aquele distinto do
participante do Santo Daime, enquanto a religião se manteve apenas no norte do país – ou

95
Em maio de 2013, membros da igreja realizaram um trabalho, com o intuito de começar um novo ponto do
Santo Daime ligado ao Céu do Gamarra, na cidade de Juiz de Fora, Minas Gerais. Contudo, houve apenas uma
sessão, devido a uma gama de fatores que dificultam a criação de um novo núcleo. Mas, Juiz de Fora já conta
com duas igrejas, vinculadas ao Cefluris, localizadas no bairro Floresta. Uma delas foi pesquisada por Silveira
(2007), sobre o viés da experiência do êxtase místico-religioso.
80

seja, o seringueiro, ou aquelas pessoas de camadas sociais populares – relaciona o surgimento


desse indivíduo à crise da sociedade moderna. Deste modo, o processo de conversão dos
habitantes de grandes cidades estaria ligado a aspectos como: a idealização da natureza, o
desencanto com a vida nas grandes metrópoles e o ceticismo. Portanto, Goulart (1996)
procurou estabelecer, pela experiência de conversão de seus interlocutores, “sinais de uma
tentativa de rompimento com atitudes que, segundo muitos estudiosos, acentuam e
prolongam as contradições da modernidade” (GOULART, 1996, p. 224).
Seguindo, Goulart (1996) aponta o fato de que, anteriormente a conversão dos
daimistas do “sul”, eles vivenciaram, em suas experiências pessoais, vários dos dilemas
emocionais “frequentemente apresentados como indícios da crise de valores da sociedade
moderna” (GOULART, 1996, p. 222). Dessa maneira, para a antropóloga, uma série de
membros do Santo Daime descreveram uma situação, anterior a conversão, onde se
identificavam como ameaçados pela realidade exterior. Ao mesmo tempo, os daimistas do
“sul” classificavam, concordando com Goulart (1996), tudo aquilo que é externo ao indivíduo
como artificial e ilusório. Vale lembrar, como elencado no primeiro capítulo, para o daimista,
o mundo físico, perceptível a olhos nus, é o “mundo de ilusão”. Porém, o outro mundo – o
espiritual – é a realidade. Em virtude disto, a “verdade” somente pode ser alcançada pelo
contato com o mundo espiritual.
Continuando, esse “tipo” de daimista, frequentemente, ainda nos termos de Goulart
(1996), enfatiza que, anteriormente a tomada de conhecimento do Santo Daime, vivia uma
insatisfação ligada ao fato de “não se encontrar”. Sua guinada ao universo religioso do Santo
Daime, então, acaba por preencher o vazio relacionado ao não encontro. Estrela, uma de
nossas interlocutoras, diz: “o prêmio da procura é o encontro”. Este encontro está vinculado
aos mesmos anseios trazidos por Goulart (1996). Melhor dizendo, o Santo Daime possuindo
o poder de ordenar, de deslocar o ponto de vista destas pessoas, operando uma nova maneira
de se ajustarem ao mundo vivido.
Outro pesquisador que pode nos ajudar na questão é Luiz Eduardo Soares (1989;
1990). O autor destaca o fato de estar florescendo, entre pessoas de classe média, das grandes
metrópoles, algo denominado como “nova consciência religiosa”. A motivação para tal
fenômeno advém, nos termos de Soares (1989), de uma insatisfação, destes indivíduos, com
as experiências religiosas vivenciadas em tempos passados. Simultaneamente, esse
afastamento, dos laços religiosos antigos, não significa o desaparecimento da curiosidade ou
inclinação religiosa destas pessoas (SOARES, 1989). Ademais, a “insatisfação é extensiva às
81

‘crenças’ que se apresentaram, em momentos determinados das trajetórias individuais, como


alternativas à religião” (SOARES, 1989, p. 121).
Portanto, a nova consciência religiosa é capitalizada por indivíduos de camadas
médias urbanas, com acesso a bens materiais, representativos de trajetórias conectadas com
“o programa ético político moderno típico” (SOARES, 1990, p. 265). Então, a meditação, a
contemplação da natureza e o equilíbrio com o cosmos, são coisas desejadas por estas
pessoas, em contraste a posturas “rebeldes ativas, antes valorizadas. O ‘holismo’ místico
ecológico substitui [...] o clamor das ‘revoluções’ social e sexual” (SOARES, 1990, p. 121).
Mas, qual seria o lugar do Santo Daime no contexto da nova consciência religiosa?
Esta doutrina, inicialmente, para Soares, pareceu apenas mais, dentre outras, manifestações
do fenômeno. Marcada pelo experimentalismo espiritual – ou seja, a frequência de indivíduos
buscando apenas experimentar os efeitos do chá – fato muito comum entre os que dividem o
universo da nova consciência religiosa 96, a doutrina mostrou-se enquanto um ponto de
inflexão de tal campo.
Percebendo a errância e o experimentalismo como sendo característicos deste campo,
Soares (1990) aponta o Santo Daime como um “caso limite”. Pois, o daime inverte estas
expectativas e insere uma parada na circulação mística, ou melhor, no trânsito incessante,
próprio da nova consciência religiosa.
Se a busca por substâncias que alterassem a consciência, durante os anos sessenta e
setenta, para Soares (1990), estava ligada a “libertação” dos “entraves repressivos presentes
na cultura” (SOARES, 1990, p. 271), ou seja, as dificuldades responsáveis por uma repressão
às paixões autênticas e espontâneas, como o desejo; o Santo Daime, ao contrário, anuncia sua
libertação ancorada na dissipação dos tormentos sexuais e dos impulsos vinculados ao corpo.
Por isso, no olhar do Santo Daime, quem ambiciona a liberdade é o espirito, para poder se
reconciliar “com sua origem perdida, com a suprema unidade fraturada, com sua própria
essência alienada” (SOARES, 1990, p. 271). Assim, o modelo do Santo Daime:

[...] parece forte, atraente e sedutor; mantém dialogo com tradições teológicas,
apesar da assumida filiação ao cristianismo, com as incertezas do tempo, com as
fragilidades e os grandes sonhos humanos; além disso, opera no registro sensível,
facultando uma experiência extática de tipo muito particular e significativamente
sintonizada com o estoque conhecido de vivencias das gerações que ousaram
alterar, por meios artificiais, o fluxo da consciência, no afã de buscar, entre outros

96
Concordando com Soares (1989; 1990), o mundo “alternativo”, da nova consciência religiosa, é
extremamente marcado pelo nomadismo religioso, místico e simbólico. Logo, o traço distintivo, da nova
consciência religiosa, seria o fato de determinar uma relação extremamente particular “com as religiões, no
plural – com a religiosidade” (SOARES, 1989, p. 138, grifo do autor).
82

fins – e não raro -, o que os anos 60 denominaram de “auto conhecimento””


(SOARES, L. E. 1990, p. 270)

Compreendendo o poder de atração do Santo Daime fortemente ligado a crise da


modernidade, Camurça (1990) destaca a singularidade da doutrina como sendo o resgate a
uma ética ancestral, em contraposição a situação, colocada pela crise da modernidade, “de
anomia social em que vivemos” (CAMURÇA, 1990, p. 21). Para o antropólogo, algo que era
da ordem da tradição, então, reaparecia no domínio da modernidade, sem que isso
significasse o fim da mesma e o retorno do tradicional. Paralelamente, percebia-se que o
surgimento da modernidade também não eliminava, em sua totalidade, a esfera da tradição.
Desta forma, é justamente nesta tensão, constitutiva entre tradição e modernidade, onde
Camurça (1990) insere o Santo Daime. Portanto, “a tensão começa na própria extração social;
os participantes: grupos de seringueiros e caboclos da Amazônia ao lado de pessoas egressas
da sociedade moderna” (CAMURÇA, 1990, p. 22).
Em similaridade com Soares (1990), Camurça (1990) enxerga o ponto de inflexão do
Santo Daime dentro do contexto da nova consciência religiosa. Ou seja, o autor também
percebe indivíduos, oriundos de camadas médias urbanas, com acesso a bens culturais,
rompendo com suas vidas anteriores e aderindo, completamente, uma vida nos parâmetros
místicos religiosos. Ainda em consonância com Soares (1990), Camurça (1990) observa a
doutrina invertendo alguns comportamentos dos indivíduos, como por exemplo: questões
ligadas a impulsos sexuais do corpo. Sendo assim, é apresentada a “retomada da tradição
como questão ontológica e epistemológica essencial” (CAMURÇA, 1990, p. 24). Há de se
perceber este processo, de absorção da proposta do Santo Daime, como sendo gradual e, de
certa maneira, representativo da tensão entre elementos da tradição e da modernidade no
Santo Daime (CAMURÇA, 1990).
Logo:

O Daime aparece como “oposto da transgressão”, preocupado com uma


“moralidade civil crítica”, no sentido de restabelecer uma ordem, que é uma ordem
ancestral mas também um valor de modernidade, pois procura recompor o sistema
anômico, corrigindo lhe as disfuncões. Portanto a reestruturação que o Daime opera
está ainda no campo da modernidade (CAMURÇA, M. 1990, p. 25).

Feitas estas considerações gerais sobre o ethos do indivíduo frequentador do Santo


Daime, posso, agora, começar a apresentar ao meu leitor os apontamentos, acerca de suas
experiências pessoais, realizados por meus interlocutores.
83

3.2.1 Planta professora, doutrina, trabalho e hino

Conforme explicitado, o Céu do Gamarra surge em meados da década de 1980. Em


consequência, grande parte dos membros, da referida igreja, obteve seu primeiro contato com
o chá ao longo da vida, já possuindo outras experiências místicas e religiosas. Quero, através
da fala de meus interlocutores, demonstrar, ao leitor, a maneira pela qual estas pessoas
chegaram ao Céu do Gamarra e por quais razões decidiram dedicar suas vidas ao Santo
Daime. Ou ainda, como diria Soares (1990), o que torna o Santo Daime um ponto de inflexão
no campo alternativo, da nova consciência religiosa? Em outras palavras, o que levou, estes
indivíduos, de camadas médias intelectualizadas, a dedicarem suas vidas ao Santo Daime,
nesta comunidade particular do Gamarra?
Para isso, o caminho adotado será baseado em colocações trazidas no primeiro
capítulo. Isto é, para seguir em frente, se faz necessário ter em mente o que denominei de
uma teoria nativa do conhecimento e da transformação pessoal do Santo Daime. As noções
de “planta professora”, “doutrina” e “trabalho” são importantes e devem ser, como proposto
anteriormente, levadas a sério. Vejamos, rapidamente, estas noções.
A planta é quem concede a possibilidade do conhecimento, visto a sua característica
de “ser divino” ou “planta professora”, pois, ao ingeri-la, a pessoa tem a oportunidade de
entrar em contato com realidades extra materiais, cada vez mais sublimes, como a
experiência do contato com o divino. Então, o acesso ao conhecimento procede através do
contato com a planta dentro de um ritual com normas prescritas. Dito isto, a potência de
deslocamento é o daime, enquanto a doutrina é o guia.
Compreendendo a potência da planta – enquanto deslocadora de ponto de vista – a
doutrina constitui sua importância perante o risco do deslocamento. Por isso, sua orientação
se faz crucial no processo. Logo, o daimista, além de tomar o daime, tem por obrigação
orientar seus comportamentos à luz das concepções doutrinárias. Somente assim, ele poderá
despertar para o mundo espiritual, uma vez que tomar o daime sem a orientação da doutrina é
um ato indevido.
Ao conduzir suas ações nos moldes propostos pela doutrina, o daimista se vê perante
uma situação dúbia. Ou seja, se o ritual, ou trabalho, é fulcral, pois lá é obtido o contato
direto com a planta; o trabalho das práticas cotidianas contém importância similar, porque,
seguindo as coordenadas doutrinárias, o daimista estará aplicando os ensinamentos, providos
no ritual, em sua vida.
84

Gostaria, agora, de acrescentar mais uma noção, demonstrando sua potência


deslocadora, central na doutrina – os hinos. Quando se trata do conjunto musical do Santo
Daime, ou melhor, dos hinos, possivelmente, em um primeiro momento, o traço básico a ser
revelado, através de um adepto, é o fato dos mesmos serem recebidos, isto é, não compostos.
Então, o ato da não composição, e sim, a ocorrência de recebimentos, demonstra a construção
nativa no que tange aos hinos e a música. Ou melhor, como observa Rehen (2007a),
dificilmente um hino será chamado de música, ou vice versa.
Assim sendo, não havendo um processo de composição declarada, como o hino vem à
tona? Para os daimistas, o hino é recebido por meio de um contato extra material com o
astral, ou como Rehen (2007a) denomina, “os hinos seriam dádivas de seres sobrenaturais
que as oferecem para os adeptos – neste caso chamados de ‘aparelhos’ – que apenas
‘recebem’ para então cantar em conjunto com outros membros do grupo” (REHEN, 2007a, p.
187). Com a proposta de inserção de uma variação terminológica para os eventos espíritas de
psicografia e clarividência, Labate e Pacheco (2009), se baseando em outros escritos,
demonstram o recebimento de um hino enquanto um processo de psico-musico-grafia ou
clariaudiência.
Por intermédio do trabalho e da doutrina, a planta pode vir a deslocar o ponto de vista
do adepto. Mas, de onde provém os ensinos para este processo? É justamente nos hinos –
entendidos como um veículo do conhecimento no Santo Daime – onde são emanados estes
ensinamentos. José Oliveira (2008), sobre os hinos, afirma “cumprindo no dia a dia com as
instruções recebidas, o adepto vai galgando degraus do conhecimento, pois é somente através
dos ensinos que ele é capaz de progredir material e espiritualmente” (OLIVEIRA, 2008, p.
223). Sobre isso, Estrela insere a seguinte reflexão:

Pra mim os hinos são isso. É tipo um manual de instruções para o divino. No caso,
pra você encontrar a centelha divina que existe dentro de você, despertar o seu
melhor e trazer essa contribuição do seu eu divino para o mundo, para a sociedade,
pro seu trabalho. Eu acredito muito nisso.

Minha proposta, ao articular os hinos com as noções nativas anteriores, é pensar o


hino operando junto com a planta – e também com a doutrina – no deslocamento de ponto de
vista do adepto. Pois, como Sol afirma: “quando a gente toma daime, e o daime vai
potencializar toda nossa abertura para o mundo espiritual, não tem como você não estar tendo
contato com esse fator inspirador do hino que vai te levar a essa reflexão”. Assim, podemos
visualizar a planta concedendo a abertura para o indivíduo experienciar o sagrado – o outro
85

mundo possível – e o hino auxiliando o adepto a absorver as peculiaridades da experiência.


Dessa maneira, como nos disse Lírio: “o hino, os hinários, dentro da doutrina, são os veículos
que a gente consegue viajar dentro da doutrina”.
Auxiliando o adepto a “viajar” dentro da doutrina e intensificando a acessibilidade
rumo ao mundo espiritual – aguçando o contato com o outro mundo, operacionado pela
ingestão do chá, na doutrina – a assimilação do que é o hino é crucial, tal como as noções de
“planta professora”, “trabalho” e “doutrina”. Somente assim, é possível entender o Santo
Daime aplicando o acesso ao conhecimento em termos de deslocamentos de ponto de vista.

3.2.2 “O daime completou minha busca espiritual”

Acima, mencionei o fato de nenhum de meus interlocutores ter nascido “dentro” da


doutrina do Santo Daime. Logo, eles a conheceram durante sua vida, já imbuídos de
experiências com outras religiões. Todas estas pessoas são oriundas de camadas médias
urbanas intelectualizadas – com passagens pela universidade – e com acessos, relativamente,
facilitados a bens materiais, em comparação com o grosso da sociedade. Sol, Lua, Estrela,
Flor, Lírio, Lótus97 e Girassol são indivíduos que optaram por uma dedicação ao Santo
Daime. Baseado na literatura antropológica, sobre o Santo Daime, e naquilo que denominei
como sendo uma teoria nativa do acesso ao conhecimento mostrarei a maneira pela qual esse
processo de suspensão, em relação à busca espiritual, vem à tona.
Vejamos nas palavras de Lírio como ele conheceu o Santo Daime:

Na verdade eu já tinha uma busca espiritual, já tinha isso assim dentro de mim lá
em Salvador mesmo. Daí conheci a minha esposa na Bahia e ela estudava na
Unicamp. Então, eu sai de Salvador e fui para Campinas. E, na verdade, o Padrinho
Fábio resolveu fazer um trabalho em Campinas na república de um dos membros do
Céu do Gamarra. Como eu estava lá, eu fui. Nessa época estava em Campinas e fui
nesse trabalho na república. Quando fiz esse primeiro trabalho já me identifiquei
total, que era uma questão musical e ainda mais uma questão crística, era uma
doutrina cristã, que era uma coisa que eu sempre tive em mim, já buscava, aí
encontrei. Daí, eu já vim para o Gamarra, para o sul de Minas, já mudei para o
Gamarra direto. Aí o Fábio me arrumou uma fazenda lá em cima, a fazenda Lua
Nova que a gente chamava. E aí eu já fiquei pra cá, pro sul de Minas. Aí minha
esposa ficou grávida e eu voltei para Campinas e depois nos mudamos para
Caxambu. Mas, minha família toda, eu, minha esposa, e meus filhos, foi toda
fundada dentro da doutrina.

97
Lótus é a única não fardada deste grupo. Porém, frequenta os rituais do Santo Daime e afirma “eu nunca fiz
um trabalho que eu pensei em não voltar”.
86

Aqui, é perceptível aquela característica do Santo Daime que Soares (1990) alertou.
Isto é, o Santo Daime conclama a suspensão mística. Lírio já tinha uma busca espiritual,
desde os tempos quando morava em Salvador. Contudo, com a experiência, proporcionada
pelo daime, ele suspende a sua busca, ou melhor, se depara com o seu “encontro”. Assim, “o
daime inverte as expectativas e conclama a uma parada protoinstitucionalizante ou
protorotinizante, a uma suspensão da circulação mística [...]” (SOARES, 1990, p. 267-268).
Como explicação para a sua suspensão, Lírio expõe:

Eu acho que o daime ele desperta uma consciência cristã que completou a minha
busca espiritual. Agora dentro dessa doutrina você tem um crescimento que vai
demorar a sua vida inteira. Mas, eu digo assim, minha família toda prosperou dentro
da doutrina. Então eu me mantive aqui por conta disso. Agora o que me fez mudar
foi a minha esposa e eu ter encontrado meu caminho espiritual no daime. O daime
completou minha busca espiritual.

O despertar98 do daime, desse modo, foi também fundamental para traçar a trajetória
de Lírio. Ao mesmo tempo, o leitor pode perceber, nas falas de meu interlocutor, a
centralidade da família e do casamento. Tais valores são relevantes no meio daimista. Rehen
(2007b) atenta para o fato de, através do daime, “toda essa mudança de padrões e ideais teria
como reflexo o redimensionamento de ideias sobre família, profissão, política, educação,
identidade e corpo” (REHEN, 2007b, p. 51). Similarmente, Soares (1990) introduz a ideia
que, no meio “alternativo” da nova consciência religiosa – local onde o Santo Daime fascina,
encanta e recruta – posturas rebeldes, antes valorizadas, entram em declínio, em
contraposição a valores previamente considerados tradicionais. Então, o que ocorre nessa
troca de valores é, como observa Camurça (1990), o Santo Daime operacionalizando a
tentativa de reestabelecer uma ordem da tradição, mas, também, tocando um valor da
modernidade e procurando ordenar as disfunções do sistema moderno. Portanto, “a
reestruturação que o daime opera está ainda no campo da modernidade” (CAMURÇA, 1990,
p. 25).
O crescimento gradual, ao qual Lírio se refere, pode ser pensando da seguinte
maneira: a demora de uma vida inteira para o crescimento, dentro da doutrina, está
relacionado ao que disse sobre a perspectiva da planta. Destarte, a planta, ao prover a
possibilidade do adepto “ver” o mundo espiritual e, consequentemente, aprender com ele,
somente faz este movimento de acordo com o status do merecimento individual. Dito de
outra maneira, a própria planta baliza a experiência de contato com o sagrado, mediado pelo

98
Adiante, tentarei explorar como o despertar do daime se manifesta através do deslocamento de ponto de vista.
87

julgamento do merecimento, nos termos que ela quer, quando quer e da forma por ela
estabelecida.
Levando em consideração, também, o aspecto da miração, da doutrina ser investigada,
pelo indivíduo pela e como visão (SOARES, 1990), o crescimento há de se prolongar ao resto
da vida, pois, ao restituir sentido às suas mirações, o adepto estará fazendo isto à luz da
cosmologia inserida pelo Santo Daime. Por conseguinte, o revigoramento do idioma
religioso, oferecido pelo Santo Daime, faz o fiel interpretar suas mirações através da
cosmologia doutrinária, tendo como resultante o prolongamento do crescimento dentro da
doutrina.
Prosseguindo, Sol nos demonstra a maneira como ele conheceu a doutrina do Santo
Daime:

Em 1996, eu comecei a fazer cursinho em Campinas e tinha um professor chamado


Paulo99, que dava aula nesse cursinho. Em uma das aulas, ele começou a falar de
uns povos da floresta amazônica que consumiam a bebida ayahuasca, dentro da
abordagem do curso de história do cursinho. E meu irmão, que também fazia o
cursinho, já conhecia o Santo Daime e perguntou ao professor se era do pessoal do
Santo Daime. Daí, o professor disse que também tinha isso e tal. Depois, no
intervalo das aulas, a gente foi conversar com ele para saber se ele sabia de algum
lugar pois estávamos interessados em ir.[...]Ai depois disso, em setembro de 98, a
gente veio pra Minas fazer o trabalho de aniversário da igreja. Na época não tinha
nenhuma casa, tinha o albergue e a igreja e mais nada. A gente chegou lá a pé,
estava super cansativo, foram 16 pessoas, todos juntos. Aí quando cheguei lá no
Gamarra eu falei: eu sou daqui. Eu nem tinha visto a igreja, nem nada. Quando eu
cheguei lá eu vi só uma subida, aquela que é calçada hoje, ela não era calçada, era
uma vala, o pessoal subia de carro ali. Aí olhei aquilo, aquele lugar, as cachoeiras
todas e me senti pertencente ali e resolvi vir pra cá.

Similar a Lírio, Sol também já possuía, em sua vida, a presença de uma busca
espiritual. Fato que demonstra, mais uma vez, a errância e o experimentalismo dando os tons
à natureza das relações entre estes indivíduos e suas práticas religiosas anteriores ao Santo
Daime. Vejamos as experiências de Sol:

Eu fui batizado na igreja Católica, fiz primeira comunhão, depois crisma, na igreja
Católica, e fui para um retiro espiritual católico. Foi por volta de 92, eu acho. Ai
depois, nesse retiro, eu gostei muito da energia, foi uma coisa muito forte assim.
Mas, eu vi uns radicalismos, por exemplo, ‘troque sua camiseta de rock por um
amuleto espiritual’. Eu tinha uma banda punk na época e aquilo me espantou. Ai eu
cai em reflexão. Depois eu fui fazer ensino médio e fiquei ateu um tempo, depois
agnóstico. Busquei o espiritismo, achei muito legal a cosmologia espírita, toda a
parte de organização da religião espírita, porém não gostei muito. Ai fiquei vagando
um tempo, meio agnóstico, mas acreditando em Cristo. Por eu estar estudando
história fiquei um pouco afastado de Jesus Cristo, mas, na verdade eu fui entender

99
O nome do professor foi alterado para preservar sua identidade, assim como todos os outros que aparecerão
nas falas de meus interlocutores.
88

depois que o que me afastava era a igreja Católica e não o Cristo. Ai depois eu vim
a conhecer o Santo Daime e foi uma coisa muito forte. Eu sempre tive uma vontade,
mais depois que eu comecei a estudar povos tradicionais, de ter uma vida marcada
mais ritualisticamente. Eu comecei a ver os índios, achei aquilo legal e por achar
legal eu comecei a desejar aquilo pra mim. Ai apareceu o daime e casou tudo.
Todas as peças desencaixadas se encaixaram no quebra cabeça e montou. E aí eu
sou músico também, percursionista, e aí a musicalidade do daime foi o anzol que
me pegou muito forte. Claro que tem a parte espiritual, desenvolvimento, mas a
musicalidade, envolvida com tudo isso, foi muito forte, a ponto de eu ver meus
braços estarem tocando o instrumento e eu assistindo de fora tudo aquilo.

Fica clara a busca de Sol por uma realidade espiritual. De católico a ateu, de espírita a
agnóstico, ele foi suspender sua procura justamente no Santo Daime. Goulart (1996) aponta a
doutrina do Santo Daime detentora da força de livrar o sujeito “do trágico destino da eterna
ausência de rumo, ao qual uma geração inteira parecia estar fadada” (GOULART, 1996, p.
205). Sol também afirma o caráter marcante da miração, ao perceber seus braços tocando o
instrumento enquanto assistia tudo “de fora”. Assistir tudo de fora pode parecer a um leitor –
que não tenha contato com o Santo Daime – algo como uma alucinação. Contudo, alucinação
não se configura enquanto um tratamento adequado para a questão. Este estado de
consciência, advindo da miração, segue a um impulso de ruptura com o cotidiano. Assim,
está em relação a dicotomia dos mundos inserida pelo Santo Daime. Ou seja, o mundo
material seria o mundo de “ilusão”, em contraponto, o mundo espiritual, “a realidade”. Logo,
tudo que acontece no ritual – as mirações, as visões, as sensações – são obtidas através de um
contato com o mundo espiritual, o mundo da “realidade”, o outro mundo possível.
Além disso, os daimistas, referenciando o daime, “o identificam mais propriamente
como um ‘ser divino’” (GROISMAN, 1991, p. 172), ou como Flor discorre: “aquele liquido
é um ser, não é uma bebida. É um ser, é o Santo Daime”. Isto posto, a interpretação não é
correlacionada a existência de algo com traços alucinatórios. Similarmente, Groisman (1992)
afirma que compreender o daime enquanto um alucinógeno acaba por produzir um equívoco
semântico e conceitual. Semântico, pelo fato de não corresponder a maneira como aquele
grupo entende a substância, e, conceitual, pelo motivo de, ao denominar a planta enquanto
alucinógena, se reduzir bruscamente o entendimento dos efeitos provocados em quem a
ingere.
Sol grifa a musicalidade como sendo acentuada no Santo Daime. Envolvida com a
parte espiritual, para nosso interlocutor, a música é central no Santo Daime. Apreendendo, tal
qual Labate e Pacheco (2009), a música enquanto a “‘mais abstrata’ das artes, por outro lado,
ela só pode ser entendida na cultura enquanto processo cultural, como produto da interação
entre seres humanos” (LABATE; PACHECO, 2009, p. 103). Sendo assim, conceber a
89

música, dentro do universo do Santo Daime, é compreende-la como um estímulo que conduz
a experiência, guiando “o sujeito extático durante a sua excursão psíquica” (LABATE;
PACHECO, 2009, p. 103). Por isso, o hino é considerado um manual de instruções para o
divino, pois ele, conjuntamente à ação da planta, tem a capacidade de despertar a consciência
do daimista.
Ainda, Rehen (2007b) acredita que a experiência mística do Santo Daime, embora
muito fundada pelo teor das visões provocadas pela bebida, esteja baseada em uma percepção
auditiva da realidade “devido à centralidade dos hinos e aos efeitos psicotrópicos também
ligados ao campo da audição, e na relação entre as mensagens musicadas e as imagens
visualizadas pelos crentes” (REHEN, 2007b, p. 124). O estímulo auditivo é ressaltado por
Lua: “a música foi uma coisa muito forte no meu encantamento, que depois virou paixão,
pelo Santo Daime”. Logo, o hino representa uma ponte ritual (GROISMAN, 1999) que liga
as forças do cosmos e estrutura, ou organiza, o ritual de acordo com o seu conteúdo. Vejamos
sua centralidade através de uma estrofe do hino “O Povo”, do Padrinho Fábio Pedalino: “A
profecia está nos hinos/ Presta atenção vamos guardar/ Pra quando o dia chegar/ Poder cantar
saber louvar”.
Assim sendo, é possível, dessa maneira, perceber a centralidade da música no Santo
Daime, ou melhor, do hino. Deve-se, então, captá-lo como uma força operando, em
consonância com a planta, na capacidade de potencializar a abertura para o mundo espiritual,
sendo tal força a responsável por chamar a atenção de meus interlocutores – Sol e Lua – em
suas experiências.
Continuando, Estrela demonstra os traços de seu contato primórdio com o daime:

Eu fiz Unicamp, e lá na saída do bandejão ficava o Carlos, descendente de


Kaxinawá e ele vem de uma linha de pajés. A primeira vez que eu tomei daime foi
com o Carlos, em 2000. E não foi o daime do Gamarra, né. Foi um esquema
mais...foi Santo Daime no sentido que o Carlos e a esposa eram fardados, mas, foi,
assim, no meio da floresta...foi uma mistura de trabalho xamânico com Santo
Daime...não foi uma coisa bem direitinho assim, como a gente está acostumado aqui
na igreja. Aí eu fiquei tomando daime com o Carlos, mas nada muito regular, as
vezes eu ia um mês, depois ficava dois meses sem ir, depois ia outra vez. Até que
um dia o Carlos virou pra mim e falou: ‘agora você não vai poder vir tomar daime
sem ser fardada’. Ele me pressionou e aí eu espirrei. Ele disse: “você pode tomar
três vezes, depois tem que decidir se farda ou segue teu rumo”. Nisso, na época, eu
não estava afim de assumir esse compromisso e aí eu desencanei. Depois disso, isso
foi em 2000, três anos depois eu comecei a trabalhar com um daimista, que
frequentava aqui. Foi até engraçado, pois ele era acunpunturista, e estava tratando
de uma amiga minha que sofria de crise de pânico. E aí, era uma república, você
chega vai entrando, fui entrando na casa da minha amiga e ele estava atendendo ela.
Ai só ouvi ele falando: “você não tem vontade de experimentar...pra quem tem esse
problema é muito legal”. Aí eu já entrei no quarto dela dizendo: “nossa, eu quero!
Onde você toma daime?” Daí, na época, eles faziam os trabalhos na casa dele, lá em
90

Campinas. Aí eu comecei a fazer trabalho lá todo dia 15 e 30. Aí depois de um ano


fazendo trabalho lá, acabou que vim conhecer aqui o Céu do Gamarra.

O relato de Estrela traz uma dimensão interessante a ser pensada. O fato dela ter
tomado o daime fora do âmbito do Santo Daime e grifar a ideia de que “não foi uma coisa
bem direitinho assim”, atesta para a importância, conforme já assinalei, do controle
doutrinário sobre a experiência com o chá. O proceder “direitinho” pode também estar
vinculado a noção de corrente espiritual. Para os daimistas, a corrente espiritual, enquanto
parte integrante do rito, é um elemento fomentador das performances tanto individuais quanto
coletivas, vista sua capacidade de emergir uma sintonização de forças cósmicas
(GROISMAN, 1999). Portanto, a corrente é o resultado do somatório da composição das
forças espirituais, pessoais e coletivas participantes do ritual. Nas palavras de Groisman:

Somente quando a corrente está suficientemente concentrada pode possibilitar a


chegada da força do Daime. Ela é, por outro lado, uma sintonização da energia
oriunda do plano espiritual. Quando a corrente está forte, há a possibilidade de cada
um ascender a planos mais altos da espiritualidade, conforme o merecimento
pessoal (GROISMAN, 1999, p. 70).

Seja pelo motivo dos controles ou da corrente espiritual, a fala de Estrela demonstra
uma preocupação acerca da potência de deslocamento da planta, caso não seja
operacionalizada dentro da doutrina, estabelecida em um ritual com forte controle sobre a
experiência.
Dando sequência, Estrela, assim como Lírio e Sol, possuía uma busca espiritual:

Minha família não tinha nenhuma prática religiosa, meus pais são bem materialistas
históricos. Então, não fui criada com nenhuma tradição religiosa. Eu tenho uma
memória, na escola, em uma rodada que a professora perguntou: “o que você acha
que acontece depois quando a gente morre?” Aí eu virei e falei: “a gente vira
adubo”. Era o que eu ouvia em casa. Aí ela me indagou: “mas você não acredita em
nada?”. E eu não acreditava em nada. Aí com uns 14, 15 anos eu comecei a sentir
falta de alguma coisa que eu não sabia o que era. Nessa época, eu tinha amigas
budistas, espíritas, católicas, protestantes, batistas, então foi uma época que eu
comecei a procurar. Eu procurei muito mas não achei nada. E aí na época da
faculdade, ainda não tinha me achado mas sabia que eu me sentia muito bem
próxima da natureza, tinha uma sensação boa que preenchia aquele vazio que
incomoda. Aí na faculdade é a época de experimentarmos muita coisa né e até a
primeira vez que eu tomei daime eu não acreditava em Deus. Aí nessa minha
primeira experiência com o Santo Daime que eu aí: “uau!”. Aí eu que entendi que
você sente Deus e não compreende racionalmente. Foi nessa primeira experiência
que eu tive essa percepção do que era Deus, porque eu gostava tanto da natureza e
porque essas coisas estavam tão vinculadas.
91

Estrela, em sua busca, afirma a sensação de bem estar ao entrar em contato com a
natureza. Goulart (1996) aponta o grupo religioso, liderado por Sebastião Mota de Melo,
valorizando os princípios de igualdade e uma “relação ‘harmônica’ com a natureza,
princípios estes que são apresentados como indícios de um rompimento com as bases da
sociedade moderna ocidental” (GOULART, 1996, p. 205). A antropóloga demonstra o tema
da natureza como sendo, para o daimista do “sul”, um traço extremamente relevante na
arquitetura de seu desenvolvimento espiritual. Portanto, “para os membros das novas igrejas
do Santo Daime a natureza é uma resposta à desordem e à irrealidade que a cultura passou a
encarnar” (GOULART, 1996, p. 218). Sol também discorre sobre a importância da natureza:

Não tem uma vida tranquila na cidade, é um modo de vida totalmente artificial que
não é capaz de proporcionar paz e segurança. Tudo que se diz que lá tem, não tem.
Totalmente distante da natureza, que é uma coisa importante, não tem como mais eu
não estar ligado na natureza. A questão da natureza é muito forte, a questão social
também porque a cidade é o lugar mais fácil de se esconder do mundo inteiro.
Como diz Tom Zé “aglomerada solidão”. Você desaparece na multidão. Isso é um
ponto muito importante, a questão da natureza.

Deus, para Estrela, não é compreendido racionalmente, mas sentido. Esta afirmação
está em consonância com as proposições empreendidas por Soares (1990). Ou seja, o Santo
Daime prescinde de maiores empenhos racionais, de uma maior precisão conceptual,
doutrinária ou teológica, pois, “dispõe desse extraordinário dispositivo de mixagem, de fusão”
(SOARES, 1990, p. 270, grifo do autor). Este dispositivo é o êxtase regulado e induzido que
possibilita, ao adepto, o poder de experienciar “com a visualidade imaginária, com emoção e
os correspondentes ecos fisiológicos, a inteligibilidade do absoluto” (SOARES, 1990, p. 270-
271). Há de dizer, então, que a doutrina não precisa de uma fundamentação teológica rígida,
justamente porque já tem a capacidade sensível do êxtase projetar a experiência sobre quem
participa do ritual.
Ainda sobre suas experiências pessoais, anteriores ao Santo Daime, Estrela diz:

Eu participava de um partido clandestino leninista revolucionário, inclusive fui


fundadora e até dirigente. Eu continuo acreditando na revolução, só que agora é a
revolução do amor e mudando uma pessoa de cada vez. Mas eu ainda acredito,
continuo sendo revolucionária, continuo sendo comunista.

Soares (1990) destaca, no meio da nova consciência religiosa, a presença de


indivíduos, com “passagens pelo divã psicanalítico e pela militância partidária” (SOARES,
1990, p. 265). Esta última característica se assemelha a passagem ilustrada por Estrela. Ela
caminhou da esquerda, da militância política partidária, para, atraída pela fé religiosa – pela
92

experiência sensível do êxtase –, o Santo Daime. Em vistas disso, existiriam pontos de


contato entre a doutrina e a esquerda?
Camurça (1990) crê na existência de afinidades eletivas entre a esquerda e o Santo
Daime, “entre o ponto de saída e o ponto de chegada deste percurso” (CAMURÇA, 1990, p.
30). O antropólogo argumenta que a busca do “tesouro” – ou seja, a vivência de momentos de
liberdade e verdade junto aos companheiros - teria sido a motivação maior dos indivíduos da
esquerda. Contudo, ao caírem na burocratização, da política partidária, “não teriam terminado
por abandonar a política passando a buscar nas formas alternativas da religiosidade o
‘tesouro’ tão almejado?” (CAMURÇA, 1990, p. 31). Caso meu leitor acredite na afirmação
de Estrela, a resposta para a pergunta de Camurça é afirmativa. Estrela abandonou a política
– mesmo seguindo comunista e confirmando, ainda, sua crença na revolução; mas, a do amor;
– e ingressou no Santo Daime.
Ainda sobre as afinidades eletivas entre esquerda e Santo Daime, Camurça (1990)
aponta um sentimento comum entre ambos. A ideia de fazer parte de uma entidade, cuja
perduração se procede para além da vida individual, é, de acordo com o autor, um consolo
perante a finitude. Logo, fazer parte de uma instituição maior – esquerda ou Santo Daime –
leva o indivíduo a perpetuar esforços maiores para a instituição/totalidade.
Camurça (1990) fixa o poder de atração do partido como um infinito “sentimento
oceânico”, parafraseando Jorge Amado. Na fala Estrela, pode-se observar, também, um
sentimento extremamente forte:

Eu lembro até hoje que eu senti isso no meu primeiro trabalho espiritual e isso me
acompanha até hoje que é esse sentimento de comunhão. Primeiro o sentimento de
plenitude, de ter aquele vazio preenchido e segundo, esse sentimento de comunhão
com as coisas, de ter consciência que eu estou ligada a todos os seres vivos do
universo.

Tal sentimento, de comunhão com todos os seres vivos do universo, de ter o vazio
preenchido e a consciência de ligação com os seres do universo pode ser o “tesouro” ao qual
Camurça (1990) se refere. Isto posto, a experiência sensível do êxtase substitui, para Estrela,
o clamor da revolução social (SOARES, 1990), introduzindo outra forma revolucionária,
imbuída de um sentimento cristão, o amor.
Prosseguindo, Soares (1990) percebe uma insatisfação com as experiências religiosas
vivenciadas na infância e na adolescência. É nesse clima onde Flor e Lótus mostram suas
perambulações, por outras religiões, antes do pouso no Santo Daime. Flor diz:
93

Eu sempre tive ligação com religião, sempre gostei, minha mãe é católica, minha
avó e toda minha família. Só que eu cresci vendo um tanto de coisa que ninguém
via, minha mãe falava que era assombração. Eu sempre fui de ir em todas as igrejas,
aí fui sempre na da minha mãe (católica), batizei, crismei. Fui também na igreja da
minha tia que é evangélica. Aí comecei a ir em outras igrejas pelo que eu via. Via e
não gostava porque via seres, fumaça, se alguém estivesse comigo no momento
também via. Daí comecei a ir no centro espírita e foi bom pra mim, foi uma etapa.
Aí eles começaram a ver que eu era médium mesmo. Só que lá era muito teórico,
eles me ensinavam várias coisas, mas na prática eu ainda continuava com medo. Eu
acho que o centro espírita tem muitos livros, palestras. Eles ensinam muito por esse
lado. Quando a pessoa é médium eles são muito fechados, você tem que mostrar de
muitas maneiras, tem que se dedicar exclusivamente aquilo, lendo várias coisas.
Mas a pratica mesmo não me resolveu. O daime não, você já chega e aprende o lado
prático junto com a teoria. Na primeira vez que fui, me senti diferente, mas nada
anormal. Isso foi em 2008, há sete anos. E desde então eu não vi mais espíritos.
Todas as vezes que eu vi depois que eu tomei daime não foram coisas sem sentido.

Lótus:

Fui na umbanda mas eu era pequena. Não fui com a cabeça que tenho hoje. Não
sabia muitas coisas. A minha prima, a avó dela tem um terreiro, aí eu ia lá pra tomar
passe, mas não sabia de nada. Fui no centro espírita também, mas não sempre, ia só
pra tomar passe também. E fui na católica também, mas católica não praticante. A
diferença, é bem de você ir numa missa e ouvir o padre falar. Sempre saí da missa e
pra falar verdade nunca pensei no que foi. Nunca refleti sobre o que eu ia mudar
depois de uma missa. Já no daime, abriu, mudou completamente tudo de como eu
vejo as coisas, do que eu sou hoje.

As duas daimistas, conforme visto acima, passaram por diversas religiões antes do
Santo Daime. Ambas atestam, mesmo não explicitamente em suas falas, a importância da
experiência sensível, do êxtase no Santo Daime, como forma de conhecimento. Flor posta a
experiência do Santo Daime enquanto uma maneira de aprender a teoria junto com a prática.
Logo, mais uma vez, é o caso do Santo Daime não precisar de um aspecto teológico definido,
pois, o próprio êxtase, a própria planta, com o adepto interpretando suas mirações e sensações
à luz da cosmologia implicada no Santo Daime (SOARES, 1990), é quem concede a
oportunidade de adquirir conhecimento, em contraposição, na fala de Flor, aos livros e
palestras do centro espírita.
Assim, para os adeptos, teoria e prática andam juntas no Santo Daime. A prática é a
experiência sensível, a miração, o êxtase – a teoria é o constante empreendimento de
interpretação do vivido no ritual. Portanto, “a ingestão da bebida e a vivência orientada de
seu efeito compõem o lócus privilegiado de comunicação do sujeito com o poder que habita o
chá, fonte de aprendizado” (MELO, 2011, p. 132). Também, teoria e prática podem ser
pensadas a partir da categoria de trabalho. Categoria central, responsável por inserir duas
frentes: a primeira, a participação no ritual, no trabalho, como fulcral para a obtenção da
94

comunicação com a espiritualidade; a segunda, o trabalho das práticas cotidianas enquanto


um meio de pôr em prática aquilo aprendido no ritual. Então, a teoria e prática, referenciado
por Flor, opera em momentos simultâneos no Santo Daime.
Lótus também movimenta sua fala pela questão do êxtase. Ao contrapor a missa ao
ritual do Santo Daime, a daimista diz que, na igreja Católica, nunca teve a reflexão após a
missa, contudo, com o daime, ocorreu a mudança de como ela enxerga as coisas atualmente.
Novamente, meu leitor pode perceber o fato do êxtase – do deslocamento de ponto de vista –
projetando a experiência sensível, dando forma a experiência religiosa, levando a pessoa a
enxergar sua vida com outros “olhos”.
Dessa forma, é notável observar o Santo Daime “completando” e “culminando” a
busca espiritual de meus interlocutores. Ou seja, a afirmação de Soares (1990) fazendo
sentido, isto é, o Santo Daime propondo aos seus adeptos uma parada e um ponto de chegada
para sua circulação mística.
Agora, irei discorrer, mais atentamente, acerca dos hinos da doutrina para, adiante,
poder salientar como se procederam os deslocamentos de pontos de vista de meus
interlocutores.

3.2.3 “O hino é um manual de instruções para o divino”

Anteriormente, ao discorrer sobre as categorias nativas de trabalho, planta professora


e doutrina, inseri mais uma noção crucial na cosmologia do Santo Daime – o hino. Sendo a
planta a potência de deslocamento, a doutrina o guia, e o trabalho o meio em que a planta
concede a possibilidade do adepto alcançar o ponto de vista que o ser divino, presente na
bebida, deixa com que ele alcance, gostaria de propor o hino enquanto um potencializador
desta operação. Logo, o hino teria o poder de intensificar o contato do adepto com o outro
mundo, isto é, com o mundo espiritual.
Rehen (2007b) afirma a diferenciação entre um hino e uma música, no que se refere
ao processo de criação. A música, em seu processo de autoria, pode ser alterada e
influenciada pelo seu criador. Já o hinos, que são recebidos, não. Similarmente, Labate e
Pacheco (2009) definem o hino enquanto “mensagens/revelações que emanam de entidades
espirituais do Astral e são captadas (ou filtradas) pelo indivíduo” (LABATE; PACHECO,
2009, p. 37 grifos dos autores). Então, “trata-se, em essência, da habilidade de canalizar a
energia espiritual em forma de música” (LABATE; PACHECO, 2009, p. 37).
95

Flor e Lua, fardadas do Céu do Gamarra, discorrem acerca do processo de um


recebimento100 de hino. Flor discorre:

Uma vez foi em casa, outra na igreja. Uma das coisas que você sente é a força. Não
tem palavras para descrever o que é a força. Ela vai chegando e você vai sentindo,
receber um hino é tipo isso. Você está em um estágio e começa a chegar uma coisa
diferente e você começa a sentir e vai sentindo, vai sentindo e vai se abrindo para
aquilo, ou fechando também. E aí de acordo com o que você vai sentindo, você vai
escutando a melodia, escutando a letra [..] eu já escutei a letra e a melodia juntas, eu
sabia que era um hino do Santo Daime.

Lua:

Recebi um hino que se chama A chave da iluminação. Eu estava na ESALQ/USP,


em uma aula de meteorologia, em um dos departamentos mais antigos de lá que é o
de engenharia. Aquela construção antiga e tal, na sala de aula, começou a vir o hino
e foi um dos únicos hinos da minha vida, que eu senti, estou recebendo um hino.
Meu coração acelerou, e eu não tenho aquela coisa da musicalidade, de saber o tom
do violão para poder tocar meu próprio hino. Mas veio a melodia, já veio cantado
para mim. E uma coisa curiosa que aconteceu foi que no mesmo momento em que
eu estava recebendo esta frase “aqui no meio dessa tempestade, para iluminar
precisa sabedoria” começou a chover, foi uma tempestade na ESALQ/USP.

Os relatos confirmam o processo de não composição dos hinos. No primeiro, quem


fala é uma pessoa que possui habilidade com instrumentos musicais, todavia, o segundo é de
Lua cuja frase é “eu não tenho aquela coisa da musicalidade”. Portanto, para receber um hino
não é necessário uma iniciação prévia na arte da música, ou qualquer coisa parecida.
Concordando com Rehen (2007a), “o recebimento do hino seria despertado por um
sentimento [...] que toma conta do daimista, o envolve.” (REHEN, 2007a, p. 193). Por
conseguinte, o hino é entendido na qualidade de verdade revelada.
Oliveira (2008), considerando o teor de revelação encravado nos hinos, demonstra o
Santo Daime não possuindo um livro fundador como a Bíblia ou o Corão. Mas, apresentando,
por intermédio dos hinos, “algumas das mesmas categorias, leis, códigos e mandamentos que
são encontrados nos textos sagrados da bíblia” (OLIVEIRA, 2008, p. 173). Tais categorias,
ao mesmo tempo, refletiriam a história da religião e funcionariam de base e guia para o
indivíduo.
Então, justamente pelo seu caráter de verdade, de recebimento, de dádiva, uma alusão
é feita pelos adeptos entre os hinos e a Bíblia. Para Fábio Pedalino, Padrinho do Céu do
Gamarra, os hinos seriam uma espécie de terceiro testamento, o que reflete, em meu

100
Conforme Goulart (2002) demonstra, qualquer adepto pode vir a receber um hino, contudo, comumente, os
hinos mais cantados e mais valorizados são os das lideranças desta religião. Por isso, o hinário mais importante
da doutrina é o do Mestre Irineu. Um hinário seria um conjunto de hinos.
96

entendimento, também, uma espécie de espaço e tempo histórico para a legitimação dos hinos
enquanto verdades. Em suas palavras:

O Velho Testamento é a história do povo de Deus, o Novo é a história de Deus e os


hinários são a bem aventurança prometida por Deus. O Velho é o tempo do pai, o
Novo o tempo do filho e os hinários são o tempo da Mãe. O hinário é uma nova
Bíblia, simples e transcendental.

A afirmação do Padrinho Fábio também demonstra um aspecto cosmológico da


doutrina do Santo Daime. O tempo da Mãe remonta ao mito de fundação do Santo Daime,
quando a Virgem da Conceição, ou, como Irineu Serra a identificou, a Rainha da Floresta,
concedeu ao Mestre Irineu a permissão para “trabalhar” com o daime e o auxiliou na
fundação da doutrina. Assim, a cosmologia do Santo Daime utilizando as marcas temporais –
tempo do Pai, tempo do Filho e tempo da Mãe – acaba por fechar a Santíssima Trindade
cristã. Ou, como Fábio Pedalino expõe “é o segredo da Santíssima Trindade, Pai, Mãe e Filho
unidos pelo Espírito Santo, é a base da doutrina, a Sagrada Família”. Vejamos, manifestado
em um hino, a centralidade da Virgem da Conceição no Santo Daime:

E a Virgem Senhora Mãe


É a Mãe desta verdade
Que cobre com Vosso manto
Toda a irmandade101

O leitor, novamente, pode observar a ideia dos hinos, enquanto uma nova Bíblia, por
meio de outro hino:

Com a esperança de alcançar


Também juntos este Novo Horizonte
O Novo Tempo o testamento que chegou
Para ficar102

E também nas palavras de Lírio:

Os hinos são como se fossem a continuação da escritura da Bíblia. [...] Então os


hinos são a estrada por onde caminhamos, aprendemos e lembramos, são
relembranças porque tudo já foi falado na verdade. O próprio Cristo quando esteve
no mundo já falou como tinha que ser, só que matamos ele e esquecemos de como
era. Aí os hinos são uma maneira de ter uma relembrança.

101
Fábio Pedalino, Hinário do Renascimento, hino 15 (Montanhas do Astral).
102
Fábio Pedalino, Hinário Ancestral, hino 22 (Novo Horizonte).
97

Deste modo, os hinos estariam vinculados a continuação de escrita da Bíblia. Seus


ensinamentos, ordens e instruções seriam equivalentes aqueles mencionados no livro sagrado,
pois, são uma forma de relembrar aqueles ensinamentos e noções. Com isso, o leitor pode
perceber a centralidade da temática dos hinos, seja para os adeptos ou para a cosmologia do
Santo Daime.
Continuando, é importante salientar o fato dos hinos, no ritual, serem bailados.
Existem três tipos de ritmos: valsa (movimentos pendulares, sem passos, pés fixos no chão,
com o corpo indo ora para direita ora para esquerda); marcha (passos laterais para esquerda e
para a direita); e mazurca (movimento de 180 graus com o corpo girando por completo de um
lado para outro) (REHEN, 2007b). Goulart (2002), pensando nas características do ritual do
Santo Daime, aponta os daimistas como intimamente ligados a uma religião que não separa a
festa e o sagrado. Assim sendo, “o destaque fornecido à dança é característico da
religiosidade popular. Nesta, dançar é um meio de estabelecer comunicação com os seres
espirituais” (GOULART, 2002, p. 289).
Tendo tal importância, o hino também está ligado a questão do êxtase. No Santo
Daime, a viagem extática e corporal é obtida através dos membros estarem bailando e
cantando “em uma só voz”. Então, no bailado, há uma grande relação entre o tempo da
música e o tempo do corpo; passando, este último, “a ser também um instrumento musical”
(LABATE; PACHECO, 2009). Ainda na temática do êxtase, ou como os daimistas dizem na
força do daime, um falso hino não passa, ou seja, o daime mostra caso o adepto tenha
“forçado” um recebimento, ou até mesmo composto o hino, porque os cânticos da doutrina
“são de natureza mágica: enviados por entidades sobrenaturais – não sendo inventados pela
mente humana” (REHEN, 2007a, p. 192).
Anteriormente, me propus a apresentar os hinos como potencializadores da operação
por onde se procede a aquisição de conhecimento do Santo Daime. Como disse, o hino está
ligado a questão do êxtase, a questão de acessar uma outra realidade mediante a ingestão de
uma planta professora. Sobre o entendimento dos hinos, Girassol expõe:

O hino é essencial porque você sente a força para te colocar num campo diferente,
um plano diferente do dia a dia. A partir que você está nesse plano você tem que
aprender alguma coisa sob o efeito da bebida. Os hinos são os ensinamentos
passados para sermos uma pessoa melhor.

Então, a frase de Girassol é bem didática para pensar na proposta. No ritual, o adepto
é alçado a um "plano diferente do dia a dia”. Este plano é justamente o do contato com a
98

realidade espiritual, com o outro mundo possível. Estando lá, o adepto deve procurar
aprender alguma coisa, sendo que esse aprendizado pode ser auxiliado pelo hino. Estrela
ilustra bem este ponto:

É para ter um resultado prático na sua vida, isso para mim é muito importante.
Aplicar na sua vida, no caminho do amor, de você não falar dos seus irmãos, de
você estar sempre se esforçando, buscando a perfeição, estar sempre procurando
aprender, embora não se aprenda muito aprende sempre um bocadinho. Então, pra
mim é um must do. Pra mim não adianta nada tomar daime, cantar os hinos, ai
entende um monte de coisa mas ai volta pro dia a dia e fica falatório da vida dos
outros, não é honesto com seu irmão, não é integro no seu trabalho.

Consequentemente, o hino aparece como sendo uma “instrução”. “O hino é um


veículo, assim como o daime [...] é uma instrução”, pontua Flor. Sendo assim, o caráter
instrucional do hino advém pontualmente pelo seu tom de verdade revelada e, também, pela
sua capacidade de moldar a percepção cotidiana do adepto através de suas instruções. Os
ensinamentos, contidos nos hinos, empreendem lições ligadas a uma ordem moral, por
exemplo: honra, honestidade, solidariedade, respeito, amor e ideias de que ações contra o
bem estar da irmandade devem ser passíveis de punição divina. Sobre o teor dos
ensinamentos, Lírio diz:

No hino, você tem os ensinamentos cristãos. Porque o Mestre Irineu fala que
replantou as santas doutrinas. Então, na verdade, o que está sendo falado ali são
coisas cristãs, ensinamentos cristãos, que facilitam a pessoa que tem essa busca de
caminhar pelos caminhos de Cristo de exercer essa cristandade, os hinos vão ser
uma forma de facilitar esses ensinamentos.

Lírio continua sua frase assim: “É uma lembrança, um despertar. Na verdade, quando
você toma o daime, você desperta, você sai da ilusão”. Então, o daime tem a capacidade de
tirar o indivíduo da ilusão, de desperta-lo. Logo, algo bem parecido com a formulação que
tenho exposto ao leitor. O daime é quem tem a capacidade de deslocamento, a doutrina seria
o guia para a procedência do deslocamento. E o hino aparece enquanto algo que pode facilitar
o deslocamento, ensinando o adepto a se portar perante o mundo. Mas, além disso, o hino
também, durante o ritual, age em sintonia com a planta para a organização do êxtase, do
deslocamento. Portanto, os hinos “permitem a identificação com a própria divindade, o que é
facilitado pelas modificações na percepção que conduzem a um alargamento dos sentidos
usuais” (LABATE, 2004, p. 237). Daí, sua condição de “manual de instruções para o divino”
vista na exposição de Estrela. Abaixo, o leitor pode visualizar trechos de dois hinos – e um
na íntegra – que demonstram as ideias organizadas neste ponto. O primeiro, diz respeito a
99

saída da ilusão; o segundo, acerca do teor cristão dos ensinamentos do Santo Daime; e, o
terceiro toca em pontos da ação do daime sobre o indivíduo:

Me concentro, é o Santo Daime


O Daime vai se concentrar
E encontrar a solução
Que nos tira da ilusão
Sou luz, estou ciente103

Aconselho eu
Os fundamentos da redenção
Esqueçam a religião do mundo
O saber do Vinho é cristão104

Te pego da ilusão
Te trago a miração
Te mostro a verdade
Te jogo lá embaixo
Te levo nas alturas
Te dou as formosuras
Te falo da união
Do coração dos teus irmãos
Da gratidão e esperança
Te afirmo a firmeza
A confiança e o amor
Te mostro também a dor
Sou o daime, um ser divino
O Mestre Juramidam
Que vem para revelar
Todos teus pensamentos
Guardados em teu ser
Liberto teus sentimentos
Só cuide bem de si
E peco para ti
Para que não te enganes
Sou a flor desta doutrina
Te firmes bem em mim
Na luz deste jardim105

Prosseguindo, os hinos também estão ligados a dois fatores importantes na doutrina: a


questão do merecimento e a percepção do ritual. Quanto ao primeiro, o adepto precisa, para
receber um hino, merecer. Pois, entendendo o hino enquanto um presente (REHEN, 2007a), o
“aparelho” – corpo da pessoa, na visão daimista – precisar estar “limpo”, isto é, é necessário
estar seguindo os preceitos doutrinários colocados pelo Santo Daime. De certa maneira, o
recebimento de um hino também significa que o adepto está “evoluindo espiritualmente” pelo
fato de estar escutando as mensagens do astral, ou dos seres espirituais, ou de Deus,
recebendo-as, assim, em hinos. Sobre isso, Sol introduz:
103
Fábio Pedalino, Hinário do Renascimento, hino 35 (Sou Luz, Estou Ciente).
104
Fábio Pedalino, Quinto Livro, hino 3 (Divina Flor).
105
Madrinha Suzana, Império do Sol, hino 75 (Sou o Daime).
100

É um entendimento recebido. O sagrado. Ele é recebido, meio uma psicografia.


Quando ele vem é porque a gente está num estado de entendimento ou até mesmo
necessidade, que ele vem como uma síntese explicatória. E ele se materializa ali,
traduz aquela mensagem.

Dessa forma, na questão do ritual, podemos conceber o Santo Daime como sendo uma
doutrina musical. Todos os rituais dessa religião – exceto o de concentração, que é feito em
silêncio – são perpassados pela música. Todavia, o leitor deve estar se questionando sobre de
qual forma se procede a ação conjunta dos hinos e do daime no ritual. Em outras palavras,
como o hino ajuda o adepto a “viajar” dentro da doutrina? Ou ainda, de qual maneira o hino
intensifica o contato, operacionalizado pela ingestão da planta, com o mundo espiritual?
Antes, são necessárias algumas pontuações.
A própria percepção dos hinos se manifesta de uma forma diferente para quem já teve
a experiência com a bebida e para quem nunca teve o contato com o daime. Melhor dizendo,
como salienta Almeida (2004), os hinos vistos por alguém de fora podem parecer uma
construção poética simples, contudo, para quem já os sentiu na força do daime, a experiência
de ouvir um hino é completamente diferente. Por isso, considerando a música uma espécie de
arte, é fulcral visualizar o seu entendimento somente na cultura, como fruto da relação entre
os indivíduos. Então, podemos pensar, no caso do ritual do Santo Daime, que não é factível a
separação entre pessoa – corpo –, substância – ayahuasca – e música – hinos (LABATE;
PACHECO, 2009).
A não separação entre estes elementos advém precisamente da operação simultânea
durante o ritual. Isto é, o daime opera, com o auxílio dos hinos, na pessoa, de modo a ensinar
o indivíduo – justamente porque é um ser divino, possuidor de inteligência e personalidade
própria (LUNA, 1986; LABATE, 2004) – a se portar perante a realidade de acordo com os
ensinamentos percebidos nos hinos. Como os hinos são frutos da doutrina; do contato com a
planta na doutrina; entendidos enquanto verdade revelada; podemos inseri-los como o meio
pelo qual a planta passa seus ensinamentos durante a experiência extática.
Isto posto, é importante perceber a própria ação da planta propiciando duas
oportunidades de “conhecer”, em simultâneo. Primeiro, o êxtase, a experiência de entrar em
contato com outra realidade, o poder de experienciar o sagrado. Segundo, a oportunidade de
aprender através das mensagens contidas nos hinos, pois, como alerta Flor: “quando você
está cantando o hino, você está aprendendo”. Obviamente, durante o ritual, tais coisas se
procedem de forma concomitante.
101

Em consequência, partindo dessa não separação, é recorrente os adeptos afirmarem


que ao escutarem um hino – fora do ritual, sem o uso da bebida – sentem a força do daime.
Ou melhor, nas palavras ditas por Flor “quando escuto um hino, às vezes, parece que tomei
daime”. Sendo assim, podemos pensar em um local onde a música passa, de certa maneira, a
se confundir com a experiência de um estado alterado de consciência (LABATE; PACHECO,
2009). Sol, acerca da confusão da música com a experiência do êxtase, diz:

Às vezes a gente faz uma oração na cidade, sem tomar daime, e sente a força
também vibrando. Embora seja uma simples oração, poucos hinos, na cidade, o
pessoal está focado no propósito da oração a coisa toca emocionalmente e abre
espiritualmente tanto quanto tivesse tomado daime.

Girassol também tem uma formulação parecida sobre a questão:

Às vezes eu sinto até a força só de ouvir o hino. Eu acho que é por conta da nossa
memória. A gente sentiu isso uma vez e não vamos mais esquecer. Então, quando
você toma uma vez você muda uma coisa na sua cabeça que é experimentar algo
novo que você nunca havia experimentado. Isso fica na memória, essas sensações
vem e voltam.

Retomando a questão sobre ouvir um hino dentro ou fora do ritual, Estrela, Sol e Lírio
discorrem:
Estrela:

O daime, quando a gente ouve o hino dentro do trabalho que é comungando o


daime, ele tem essa propriedade de aumentar nossa percepção do mundo espiritual.
Então quando eu estou ali pra ter esse contato com o divino é lógico que o daime
potencializa isso. Talvez um estudo que eu fosse fazer sozinha eu demoraria meses
pra ter uma compreensão no daime uma noite você já destrincha toda uma história.
Mas eu acho que a diferença é a clareza da luz, assim que é bem mais intensa
quando você está sobre a luz do daime.

Sol:

É diferente. Tem duas situações em que escutamos hinos fora do trabalho: uma para
estudar e a outra porque a gente está afim de ter uma lembrança, ou precisando tirar
da cabeça coisas que não são legais e focar numa coisa mais explicadora. São duas
situações diferentes. Em todas elas a gente acaba tendo entendimentos, sacações e
insights. Mas, quando a gente escuta ele dentro do trabalho, quando a gente toma
daime, e o daime vai potencializar toda nossa abertura para o mundo espiritual, não
tem como você não estar tendo contato com esse fator inspirador do hino que vai te
levar a essa reflexão. Eu vejo essa diferença. Muitas vezes estudando hinário ou
ouvindo casualmente, que até é uma coisa que a gente não faz muito, você pode vir
a ter um momento, mas tomando daime não tem jeito você está no momento. O
daime e o hinário, os dois se complementam formando o Santo Daime.
102

Lírio:

Logicamente que quando você toma o daime você acessa o mundo espiritual. Então,
esses ensinamentos dentro da espiritualidade, na hora do trabalho, você vai ter um
entendimento grande que talvez você sem ingerir a bebida, na vida normal, você
não consiga perceber o que você percebe ali.

Assim, posso tentar responder, ao leitor, as questões elencadas anteriormente. O hino


ajuda o indivíduo a “viajar” dentro da doutrina, porque ele é um ensinamento, é o guia da
experiência de deslocamento. A “viagem” pode ser feita também fora do contexto ritual, pois,
o hino traz lembrança, entendimentos e insights se ouvido fora do ritual. Com a música se
confundido à experiência do êxtase (LABATE; PACHECO, 2009), o adepto pode, fora de
contexto ritual, experienciar um estado de alteração de consciência – “guardado” em sua
memória – através do contato com os hinos. Logo, o hino é quem conduz, aliado à força da
bebida – sentida mesmo fora do trabalho – “através da sua potente musicalidade ao transe
místico” (OLIVEIRA, 2008, p. 224).
O hino pode ser pensado como um guia que concede sentido às mirações do adepto
sob a força da bebida. Desta forma, o hino é quem concede a possibilidade do indivíduo
investigar suas aventuras pelo cosmos, propiciadas pelo chá. Ou ainda, “sem o hino corre-se
o risco de que o adepto se perca num universo demasiado vário para a limitada compreensão
humana” (OLIVEIRA, 2008, p. 224).
Isto é, o hino concede ao adepto o seu fator inspirador que o leva a reflexão. Sendo
esta reflexão, sob o efeito do daime, extremamente potencializada, conforme as falas de meus
interlocutores. Destarte, entendendo o hino enquanto algo que o adepto deve colocar em
prática, na sua vida, e, ao pensar o Santo Daime enquanto uma religião cuja proposta é
enquadrar o acesso ao conhecimento em termos de deslocamento de ponto de vista, é
perceptível constatar o hino ajudando a planta neste processo.
Pois, se já mostrei ao leitor a capacidade de deslocamento da planta sendo gerida de
forma controlada pela doutrina – a guia –, então, o hino, como parte da doutrina, advindo do
contato com a planta, pode ser considerado por excelência um guia auxiliar, mais usual, e
pedagógico. Ele, ao ajudar o indivíduo a absorver; a entender e a guiar; as nuances de sua
experiência extática acaba por auxiliar a planta no deslocamento de ponto de vista do
daimista, fazendo o fiel interpretar o êxtase através de suas mensagens e ensinamentos. Mas,
a via é de mão dupla. A planta, de acordo com meus interlocutores, tem a potência de
intensificar o contato com o mundo espiritual e, consequentemente, o processo de
103

entendimento dos hinos, sendo, estes últimos, advindos, justamente, deste mundo – local este
que a planta concede a possibilidade do adepto perceber.
Então, os hinos são “mensagens do astral” ou um “manual de instruções para o
divino” que, potencializados pela ação da planta, são entendidos enquanto – juntamente com
a ação deslocadora do chá – um meio do adepto estar em contato com o conhecimento dado
pelo Santo Daime. Desta maneira, é através da operação simultânea entre planta, hino,
doutrina e trabalho que o Santo Daime opera seu acesso ao conhecimento.
Até o momento, falei do deslocamento de perspectiva do Santo Daime, talvez, de uma
forma mais teórica. Por isso, nesse momento, se faz necessário apresentar ao leitor dados
etnográficos acerca da questão.

3.2.4 “Tudo que acontece na minha vida é porque eu decidi tomar daime”

Todos meus interlocutores afirmam o contato com o Santo Daime empregando


mudanças seja em suas vidas, práticas ou nas formas de enxergarem a realidade. Assim,
apresentarei ao leitor as caracterizações deles acerca da questão.
Sobre isto, Lírio expõe:

O daime ele te dá uma nova consciência da vida, de como é a natureza, de como é


que é a vida da pessoa no dia a dia, como você tem que se comportar perante a
sociedade e todas essas coisas. Inclusive, vamos começar um trabalho na
penitenciária, que a gente está mostrando para a sociedade de Baependi o que
realmente é o daime, simplificando o que é exatamente a consciência. Então, por
exemplo, se eu não tivesse entrado pro daime e não sei nem se eu estava vivo, do
tanto que eu era despirocado. Então, eu costumo dizer que foi o daime quem me
centrou, diferente do que outras pessoas falam que a bebida é alucinógena, pelo
contrário. Eu era muito doido, foi quando eu tomei o daime que eu me centrei e vi a
importância de desenvolver trabalhos como professor. Digamos, eu aprendi a vida
normal, você tem que ganhar o pão de cada dia, você tem que ter uma moradia,
sustentar seus filhos, sua família. O daime chama muito para essa consciência da
família, dos valores cristãos que, na verdade, são os valores verdadeiros da vida. A
doutrina, ela é simples, seguir é difícil. A gente quer sempre complicar a história,
achar que tem alguma coisa a mais, mas é uma coisa simples. É você fazer bem para
os outros, não fazer mal para ninguém, seguir uma vida moral dentro da própria
existência da sociedade. Não é o que falam que está certo e você acha que está
certo, inclusive o daime ele te dá muito uma consciência para o que é certo e
verdadeiro mesmo espiritualmente e dos valores. Não é porque alguém disse que
tem que ser aquilo não, o daime ele consegue te mostrar o que é a verdade mesmo.

Lírio traz perspectivas importantes para o argumento que venho desenvolvendo. O


leitor pode observar a ênfase concedida, por meu interlocutor, na mudança advinda de seu
contato com o Santo Daime. O daime lhe deu uma “nova consciência da vida”, ativada
através do deslocamento de perspectiva. Ao conceder esta nova consciência, o Santo Daime
104

está criando o sujeito daimista, formando o adepto, pois, “o ponto de vista cria o sujeito; será
sujeito quem se encontrar ativado ou ‘agenciado’ pelo ponto de vista” (VIVEIROS DE
CASTRO, 2013, p. 373, grifo do autor). Paralelamente, Lírio atenta para o perigo de
confundir o daime com um simples alucinógeno, dado que a sua experiência demonstrou o
inverso. Para Zuluaga (2002), as mudanças de consciência no indivíduo são, há vários
séculos, entendidas como “perturbações ou patologias e se definem com o termo alucinação”
(ZULUAGA, 2002, p. 130, grifo do autor). Não obstante, tais práticas, ao contrário de uma
mera alucinação, buscariam “uma comunicação com a realidade espiritual, outra realidade, e
uma alteração de consciência para perceber de modo diferente a realidade material”
(ZULUAGA, 2002, p. 131).
Antes do contato com o daime, Lírio se adjetivou como sendo “despirocado”. Em um
de seus hinos – Na Linha do Oriente – surgem afirmações similares: “Foi com fraqueza que
cai neste caminho/ Perdi as minhas asas, deixei de ser um passarinho/ Peço a Jesus que me
torne fortaleza/ Pra reconstruir minhas asas pra voar nesta beleza”. Depois do daime, ele se
vê como adepto dos valores cristãos trazidos pela vivência na doutrina. Goulart (1996)
enfatiza tais valores como “a necessidade de uma transformação ética, a qual implica numa
valorização da vida ultraterrena em detrimento das coisas mais diretamente ligadas a vida
mundana” (GOULART, 1996, p. 173). A decorrência da importância dos valores cristãos no
Santo Daime parte, em um primeiro momento, da própria diferenciação entre o daime e
ayahuasca, conforme demonstra Assis (2013), ou seja, “o daime seria diferente da ayahuasca;
algo consagrado, análogo ao que representa a hóstia para os católicos, consubstanciado no
sangue de Jesus” (ASSIS, 2013, p. 85). O hino “O Mensageiro”, de Fábio Pedalino, explicita
bem o argumento:

É presente da Rainha, a luz do Ocidente


Trabalho aqui na Terra e ganhou honestamente
Ayahuasca a bebida todos tentam explicar
Mas o Cristo verdadeiro, está o Daime a revelar106

Ou ainda, como o próprio Padrinho Fábio Pedalino coloca:

Quimicamente são bem próximos, mas a maneira de fazê-los os torna um pouco


diferentes. A Ayahuasca está ligada à cultura Inca e indígena e o Santo Daime ao
cristianismo. Eu diria que são irmãos, como todos nós somos.

106
Fábio Pedalino, Hinário do Renascimento, Hino 28 (O Mensageiro).
105

Então, o Santo Daime fez com Lírio, antes “despirocado”, aquilo que Soares (1990)
alertou, isto é, a neutralização dos desejos. Em contrapartida, o concedeu uma “nova
consciência”, aliada ao modo de como se portar em sociedade, ao entendimento da natureza,
em conjunto com os valores cristãos. Dessa forma, o daime mostrou a Lírio, em suas
palavras, “o que é verdade mesmo”. Mas, como o daime mostra isso? Aqui, aquelas noções
nativas sobre as quais discorri são necessárias.
A planta – o daime –, ao dar o adepto a chance de estabelecer contato com outras
realidades, manobra o deslocamento de perspectiva do indivíduo. A doutrina, na qualidade de
um sistema de valores, baliza esta experiência arriscada de deslocamento, através da noção de
trabalho enquanto algo a ser cumprido. Já o hino, concede a possibilidade da pessoa entrar
em contato direto com os ensinamentos propostos pelo Santo Daime. Então, é por intermédio
das mensagens contidas nos hinos, em ação com o deslocamento de ponto de vista efetuado
pela planta, que o Santo Daime mostra, nas palavras de Lírio, “o que é verdade mesmo”.
Pois, se o hino é entendido enquanto uma verdade revelada, mandada pelo astral, suas
mensagens e ensinamentos também são absorvidas enquanto verdades que devem ser postas
em prática na vida cotidiana. Logo, “o Santo Daime, enquanto bebida sagrada, que permite a
ligação do daimista com os planos astrais” (FERREIRA, 2008, p. 100) e os hinos se
configurariam enquanto um manual para a apreensão dos ensinamentos dentro e fora do
contexto de experiência extática.
Tendo como referência o hino e o daime, conforme demonstrei, Sol diz:

Mudou meu ponto de vista totalmente. Mas não consigo falar somente sobre a
bebida. O daime tem o hinário, os dois se complementam formando o Santo Daime.
Pra mim mudou completamente porque trouxe pro meu presente a forma de como
eu devo me comportar e agir e entender o que está acontecendo no mundo hoje.
Quando a gente é universitário que mudar o mundo todo, mas, quando a gente
começa a tomar daime, percebe que é difícil mudar até a si próprio. A gente parte
do ponto que primeiro é preciso eu me entender, aí a gente vai começar a ajudar
pessoas a mudarem também, que a gente não muda ninguém. Mudou totalmente, o
daime me trouxe uma paz e uma serenidade muito grande pro momento que
estamos vivendo no mundo e todas as mudanças que estão vindo. E o ser humano
não sabe nada a respeito disso ainda, mas o daime ensina que a gente tem que
esperar e ter fé e que aqueles que estão antenados com Deus, buscando fazer o bem
vão estar de certa forma sobre a proteção de Deus. É isso que me norteia hoje em
dia, eu consigo andar hoje aqui é por causa disso, sinceramente não sei onde estaria
se eu não tivesse seguido a doutrina. Tudo que faço hoje e tudo que acontece na
minha vida é porque eu decidi tomar daime.

A afirmação de Sol traz à tona aquilo que venho chamando atenção, ou seja, a via de
mão dupla na correlação entre daime e hino. Em outras palavras, o hino, ao ajudar o daimista
a entender, absorver e guiar sua experiência de êxtase, auxilia o deslocamento de ponto de
106

vista operacionalizado pelo contato com a bebida, fazendo o membro interpretar sua
experiência pelo teor de suas mensagens e ensinamentos. Contudo, a planta que tem a
potência, o poder, de exacerbar o contato com o outro mundo efetua, também, uma
aceleração no processo de recepção e compreensão das mensagens contidas nos hinos. É
importante lembrar que o hino provém, precisamente, do astral – do mundo espiritual –
mundo este que a própria planta é quem propicia ao adepto ter conhecimento. Algo similar
com as idéias de Luna (1986), ou seja, quando o xamã canta suas músicas durante a
cerimônia ele passa a ver o mundo a partir do ponto de vista daquela planta ou animal que o
ensinou.
Girassol, em seu argumento, também revela a correlação entre o daime e os hinos na
suspensão à caminho do mundo espiritual:

O daime conseguiu me mostrar uma visão de mundo, que eu não conseguia


perceber. E isso fez eu ver que o que realmente importa é o sentimento pela vida,
pelas pessoas que amamos. Essa fé faz eu fazer coisas boas pra tentar colher coisas
boas. O daime me mostrou, com sua linguagem, com seus hinos, com sua maneira
de mostrar a vida pra gente, me capturou, senti totalmente ligado a essa força da
floresta que age além do nosso corpo, que age no mundo espiritual.

Pensando nos termos do Santo Daime, seria o caso de, ao cantar as músicas no
trabalho – que são recebidas pelo contato com a planta na doutrina –, o daimista perceber o
mundo a partir da perspectiva, ancorada na doutrina, da própria planta. Dessa forma,
“conhecer é personificar, tomar o ponto de vista daquilo que deve ser conhecido”
(VIVEIROS DE CASTRO, 2013, p. 358). Todavia, esta operação, no Santo Daime, nunca se
dá por completo.
Pois, como Lírio informou, “o crescimento na doutrina dura a vida inteira”, ou como
pontua Flor: “o trabalho de daime ele é uma construção ao decorrer de sua vida”. Então,
alcançar o ponto de vista da planta por completo é uma tarefa árdua. Este procedimento
também não se dá em sua totalidade porque, como mostrei anteriormente, e se estamos
levando a sério o deslocamento de ponto de vista ocasionado, o sujeito somente vê, sente ou
desloca o ponto de vista de acordo com a vontade da planta. Sobre a impossibilidade de
conseguir alcançar, na totalidade, o ponto de vista da planta, Lotus insere:

Eu nunca fiz um trabalho que eu pensei em não voltar. Eu penso que no próximo eu
vou ficar mais ciente de certas coisas que fiz e vou mudar. Isso faz eu querer ir
mais. Não é querer atingir um estado de perfeição. Eu adoro ir no trabalho e ficar
com o daime. O que me faz querer tomar daime e aprender mais. Cada trabalho eu
tenho uma revelação, penso alguma coisa ou vem coisas que eu fiz e tenho que
107

mudar pra ficar bem comigo mesma. Eu quero sempre estar ali. Eu quero ir e
aprender mais coisa e estar mais dentro daquele mundo espiritual.

Então, como Lótus diz, “não é querer atingir um estado de perfeição”. Este estado de
perfeição é o ponto de vista da planta, da doutrina, da plenitude dos ensinamentos postados
nos hinos. Nas palavras de Fábio Pedalino, “porque, se trilharmos o caminho, alcançaremos a
perfeição, e é para isso que o fundamento doutrinário nos ensina a contínua correção de
pensamentos, sentimentos e atitudes”. Ou ainda, como o próprio Padrinho Fábio diz:

Doutrina é o grau pleno da consciência superior, enquanto que na irmandade cada


um se encontra num grau de entendimento. Às vezes isso cria pequenos conflitos. À
medida que a irmandade vai alcançando a consciência doutrinária necessária, os
conflitos se extinguem.

Logo, na medida em que o daimista vai tendo contato com o acesso ao conhecimento,
operacionalizado pela planta, no trabalho, e guiado pelos princípios doutrinários – através dos
ensinamentos dos hinos – ele começa a alcançar a consciência doutrinária; “um grau pleno da
consciência superior”. Contudo, para chegar a este ponto, a correção é contínua e pode durar
uma vida toda. Uma estrofe do hino “Transitoriedade”, de Fábio Pedalino, é esclarecedora:
“Estamos todos na ignorância/ necessitando da Luz de Deus”. Compreendendo o daime
enquanto um ser divino, um lugar onde próprio Cristo se “manifestou num vegetal, o qual é
animado por um ser, um ‘espírito’ cujo nome é Juramidam” (GOULART, 1996, p. 195), “a
luz de Deus”; ao qual o Padrinho Fábio se refere; advém exatamente da planta professora
sendo ingerida no contexto da doutrina dando espaço para o adepto experienciar a
“consciência superior”.
Lótus defende a importância da planta acerca do processo de deslocamento, mas,
paralelamente, atesta a importância dos guias – a doutrina, os hinos:

A planta é o principal porque muda alguma coisa em você. Com a doutrina e os


hinos você já tem uma formação. Se eu tomasse o daime em outro lugar eu não
saberia o que vou sentir. Eu não sei se eu tivesse feito isso estaria pensando dessa
forma agora. Eu acho que a doutrina mesmo, a história e os ensinamentos dos hinos
fizeram eu mudar, eu pensar, com certeza. Ambos, o chá e a doutrina andam juntos.

É de se perceber, através do relato de Lótus, a inseparabilidade – na questão do acesso


ao conhecimento – da bebida e da doutrina. Pois, como o relato destaca, o chá é que mudou
algo em nossa interlocutora, porém, a doutrina e os ensinamentos dos hinos também fizeram
ela mudar, pensar. Portanto, é, mais uma vez, o caso da articulação entre teoria e prática que
Flor alertou.
108

Tomando de empréstimo a fala de Lótus, a planta permite a mudança, é a prática. O


êxtase, a miração, o lugar onde o adepto tem a oportunidade de vivenciar uma experiência
sensível, de estabelecer contato com o sagrado, pois, o chá “é, antes de tudo, um ser divino”
(GOULART, 1996, p. 87). A doutrina e, consequentemente, os hinos concedem, como Lótus
coloca, “uma formação”. Dessa forma, seria o lugar da teoria. Mesmo o Santo Daime
prescindindo de um aspecto teológico forte (SOARES, 1990), a doutrina possui suas bases
para operar o processo de conhecimento. Uma vez que, ao interpretar suas mirações, de
acordo com a cosmologia comprometida ao Santo Daime, o adepto está reafirmando os
valores doutrinários – em suma valores cristãos – reforçando o grupo com suas identidades e
princípios. Já o alicerce da teoria são justamente os hinos, dada sua roupagem de “manual de
instruções”, de “verdade revelada”, ou de “ensinamentos”, que devem ser postos em prática
na vida ordinária. Assim, teoria e prática, no Santo Daime, operam de forma simultânea,
dentro do processo de aquisição do conhecimento proposto pela doutrina.
Dentro dessa ação simultânea entre teoria e prática – entre hino, planta, doutrina e
trabalho – o Santo Daime vai concedendo a oportunidade do adepto ter o conhecimento
proposto pela doutrina. Sendo o conhecimento obtido sempre parcial e conseguido de forma
gradual, o daimista sempre tem algo mais a aprender. Conforme Flor diz:

Até hoje o daime traz coisas pra mim que eu não enxergava. Quando eu comecei a
tomar daime, passei a entender a importância de ajudar os outros. O daime vai te
mostrando o porquê de você ser de tal maneira, ele vai te mostrando porque você
está ali naquele momento, ele te mostra a hora de mudar também.

Desta maneira, creio ter conseguido demonstrar ao leitor – através de meus


interlocutores e dos hinos – o modo pelo qual o acesso ao conhecimento é instrumentalizado
no Santo Daime.
109

CONCLUSÃO

A ayahuasca, ou daime – na sua versão cristianizada ou sincrético-religiosa - está


inserida no rol das denominadas plantas de poder ou plantas professoras. Conforme Labate,
Carneiro e Goulart (2005) observam, poder, no sentido delas possibilitarem aos indivíduos
um contato mais estreito com as “forças” e “poderes” oriundos de um outro lugar, que não o
mundo material. Professora, porque, muitas das vezes, tais plantas são habitadas por um
espírito, detentor de personalidade própria, com o qual nós, pessoas de carne e osso, podemos
ter uma relação de apreensão de conhecimento.
Paralelamente, ambas as definições, trazem um dado crucial. O uso dessas plantas não
deve ser compreendido enquanto desencadeador de uma alucinação, mas, sim, entendido pela
ótica da viabilização de um contato com um tipo específico de realidade – ainda que se trate
de uma realidade distinta e não perceptível sem a ajuda, e os efeitos, das próprias plantas.
Nós, antropólogos, fazemos um esforço de relativizar nossa ciência, afim de sublinhar
nossa disciplina como não possuidora do domínio sobre a verdade. Opção metodológica
extremamente rica para a análise das substâncias de poder, ou professoras. Pois, estas plantas
estão demasiadamente imersas dentro das culturas – onde, justamente, encontram e emanam
seus poderes – não devendo ser compreendidas a uma luz que foge de seu próprio contexto
histórico, social e cultural.
Macrae (2005), ao inserir a reação da ingestão, de tais plantas, vinculada ao seu
próprio contexto, seja ritual, social, cultural ou psicológico, confirma a argumentação acima.
Logo, as consequências da utilização, de fato, não devem ser destituídas das experiências
“corporais e psicológicas vividas pelos sujeitos, e estas, por sua vez, estão ligadas aos
valores, noções e saberes específicos de cada cultura” (LANGDON, 2005, p. 21).
A variedade das distintas experiências culturais, envolvidas no consumo das
substâncias psicoativas, foi abordada por diferentes disciplinas (LABATE; CARNEIRO;
GOULART, 2005), tais como: a psicofarmacologia e a neurobiologia, na tentativa de elucidar
os processos bioquímicos no cérebro; a etnobotânica, buscando relacionar à ciência aos
conhecimentos tradicionais; a psicologia, procurando a correlação entre o consumo das
substâncias psicoativas com a constituição dos sujeitos e de suas subjetividades; o direito, no
esforço de captar as razões legais para o consumo; e a antropologia, dando ênfase,
geralmente, nos contextos culturais, religiosos, míticos e rituais dos diferentes modos de
utilização destas plantas.
110

Este fenômeno, o de alteração da consciência, se notabilizou, durante a história, de


uma maneira central, nas reflexões – sejam elas religiosas, filosóficas, artísticas ou científicas
– a respeito do efeito das substâncias psicoativas. Tal estado, aquele de consciência alterada,
se configura enquanto um paradigma “de uma das mais intensas experiências culturais
humanas, objeto de devoção extática, de fascinação estética e de inquietação espiritual”
(LABATE; CARNEIRO; GOULART, 2005).
Assim sendo, todas estas formas de produção do conhecimento, vinculadas a nossa
noção de ciência, cada qual com sua peculiaridade, estão provendo ferramentas para a
construção de um campo mais organizado de conhecimento, acerca da miríade de questões
inseridas pelo consumo das plantas que alteram a percepção sobre a realidade. A presente
dissertação, então, buscou contribuir – através de um estudo antropológico – para a
ampliação desse campo maior de estudo, uma vez que, somente será possível uma
interpretação vasta do fenômeno caso as diferentes ciências estejam coadunadas, em relação à
abundância interpretativa trazida pelo tema em destaque.
Mesmo com a tentativa de alargar a perspectiva de um campo mais amplo de estudos,
esta dissertação se dedicou a um caso específico, isto é, o do Santo Daime. Doutrina, esta,
genuinamente brasileira. Plástica, edificada por intermédio das mais diversas ressignificações
e reelaborações simbólicas entre o xamanismo ameríndio, o esoterismo e o catolicismo
europeu, matrizes afro brasileiras e elementos new age. Híbrida, nascida, em plena
Amazônia, através de um seringueiro, negro, nordestino, que depois iria atingir indivíduos
das camadas alta e média urbana. Mágica, fazendo o Astral, com a ajuda do efeito da planta,
ter espaço em uma mente, em um pensamento. Este caldeirão de possibilidades, de
transformações, é o universo do Santo Daime.
Em termos antropológicos, este trabalho se dedicou, basicamente, a três temas:
primeiro; questões metodológicas, envolvidas em uma pesquisa onde o antropólogo é nativo,
e/ou, o nativo é antropólogo. Segundo; a maneira pela qual o acesso ao conhecimento é
processado pelo Santo Daime. Terceiro; as motivações através das quais indivíduos –
advindos de camadas médias urbanas – mudaram o curso de suas vidas para se dedicarem ao
Santo Daime.
Dessa forma, em ordem cronológica, trarei as conclusões implicadas – de modo
sucinto, pois, a discussão já está apresentada e discutida ao longo dos capítulos – ao alcance
dessa dissertação.
Primeiramente, tentei discutir o lugar do antropólogo, de seu local de fala, da
importância de se posicionar e, também, da relevância de dimensionar as condições do
111

próprio fazer etnográfico. Partindo de um relato pessoal, de experiência com o daime, intui
uma discussão calcada em questões etnográficas. Entendendo a etnografia, assim como
Rabinow (1992), enquanto um processo de construção subjetiva, percebo a própria teoria, tal
como Peirano (2006), sendo inseparável da etnografia. Contudo, esta percepção não se
manifesta apenas por contato com a bibliografia. Ou seja, ela advém, ao mesmo tempo, do
meu próprio contato com o daime durante a pesquisa.
Buscando conceder uma direção mais lúcida para a questão do pertencimento e dos
controles daimistas e antropológicos, procurei uma solução inserida por Deleuze e Guattari
(2011). Isto é, observar a potencialidade do entre. Perceber a própria condição, nestes termos,
é reconhecer as multiplicidades trazidas pelo duplo pertencimento.
Durante meu contato com o Santo Daime revi alguns entendimentos pessoais. Esta
revisão, de certa maneira, operou em consonância com os ideais propostos pelo Santo Daime.
Admiração da natureza, reconhecimento de um outro mundo – o espiritual – apreciação por
valores ligados a família, são coisas repensadas substancialmente, por mim, depois do daime.
O Santo Daime, concomitantemente, me recrutava – pessoalmente – e encantava, enquanto
um campo de estudos com bastante potencialidade. Antes do daime, frequentei um tempo a
igreja católica, mas, sem muito ânimo. Com o Santo Daime foi diferente, a cada trabalho
queria voltar mais para ter aquela experiência religiosa.
Os hinos, por exemplo, me despertavam atenção pessoal e acadêmica. Adquiri um
hábito de ouvir hinos fora do trabalho. Isto, para mim, era uma espécie de ouvir aquelas
mensagens para relembrar as experiências vividas no trabalho, ou, para tentar, repensar
algumas de minhas próprias ações no mundo. Antropologicamente, os hinos, pelo seu tom de
verdade revelada, eram uma possibilidade de pensar o modo como se procede o acesso ao
conhecimento, no Santo Daime.
Dessa maneira, foi através da mixagem, da potencialidade do entre (DELEUZE, G;
GUATTARI, F. 2011), que esta pesquisa veio à luz. Assim, fica difícil precisar, certamente, o
que é formulação etnográfica e o que é construção pessoal. Contudo, o leitor pode observar o
entre operando fortemente durante a etnografia e, concomitantemente, ao longo deste texto.
Digamos que os conceitos aqui expostos são de responsabilidade e construção do
antropólogo; mas, de um antropólogo, cujo maior interlocutor, durante a pesquisa, foi um
sujeito não humano, isto é, o próprio daime.
Viveiros de Castro (2015), alerta para a construção de uma teoria antropológica da
imaginação conceitual, suscetível a criatividade e reflexividade imanente à vida de todo
coletivo, seja ele humano ou não humano. Portanto, reconhecer isso, é assegurar o daime
112

refletindo sua potencialidade tanto materialmente – logo, nas condições de produção desta
pesquisa – quanto na questão dos deslocamentos ao outro mundo, deixando o daimista e
antropólogo; que aqui fala; preocupado não somente em procurar sentido nos movimentos e
ações dos indivíduos daquela cultura, mas, paralelamente, concentrado, também, em
propiciar sentido as suas próprias mirações.
Em um segundo momento, voltei meus argumentos para pensar o modo pelo qual o
Santo Daime opera o acesso ao conhecimento. O modelo é arriscado, controlado e forte. Por
meio da experiência de alteração da consciência, a planta concede a oportunidade – ao
indivíduo – de entrar em contato com o mundo espiritual, ou seja, o outro mundo possível.
Dentro da correlação entre teoria e prática, as categorias nativas de “planta professora”,
“doutrina”, “trabalho” e “hino” propiciam, ao adepto, a capacidade de experimentar um ponto
de vista, antes desconhecido.
Sintonizando os adeptos a este novo ponto de vista, o Santo Daime, com suas bases de
acesso ao conhecimento, cria o sujeito daimista, pois, estar agenciado ou ativado a um
determinado ponto de vista é, concordando com Viveiros de Castro (2015), estar sendo criado
enquanto sujeito. A criação deste sujeito, então, procede através do contato com a planta,
mediado pela doutrina e pela importância do trabalho, sendo moldado através dos
ensinamentos propostos pelo hinos e, consequentemente, investigando suas experiências
sensíveis – as mirações – a luz da cosmologia implicada no Santo Daime.
Isto posto, é precisamente em razão do processo de criação deste sujeito, da concessão
de uma “nova consciência de vida”, que o Santo Daime demonstra um poder de suspender a
circulação, ou trânsito, por outras religiões, de meus interlocutores. Logo, adquirindo
centralidade na vida desses indivíduos. Ao experimentar o contato com a “consciência
superior”, o adepto se vê em um constante empreendimento – duradouro ao longo de toda a
vida – de alcançar o ponto de vista daquilo que alterou seu próprio ponto de vista, ou melhor,
de tentativa de apreensão da totalidade do conhecimento inserido por aquela planta, entendida
como sagrada.
Assim, o presente trabalhou se esforçou para buscar elucidar tais questões. Contudo, é
importante salientar que, não existem garantias do sucesso desta operação de acesso ao
conhecimento e transformação, puramente porque alguém ingeriu o chá. É de se lembrar a
dependência, neste caso, da significação concedida, por cada indivíduo, em particular, a sua
própria experiência. Embora, tanto na literatura sobre o Santo Daime, quanto em minha
etnografia, é de se observar uma série de relatos tangentes ao encontro de um novo sentido
para a existência.
113

Concomitante, as conclusões inseridas por esta pesquisa, surgem alguns novos


questionamentos a serem explorados, por pesquisadores da área. Se o processo de adquirir
uma nova consciência se dá ao longo da vida toda, de certa forma, não há garantia de sucesso
na empreitada. Não seria, em termos etnográficos, bastante rico observar os fracassos
ocorridos, durante os trabalhos, de transformação pessoal, juntamente, com a explicação de
suas ocorrências? Ou ainda, se os adeptos do Santo Daime, aos quais me referi na dissertação,
possuíam outras experiências religiosas antes do contato com o daime, então, de qual maneira
se dá o processo de acesso ao conhecimento, por exemplo, nas crianças e adolescentes que já
nasceram dentro da doutrina?
Concluindo, é perceptível o uso da ayahuasca, concedendo uma permissão, a quem a
ingere, de transitar entre dois mundos possíveis, entre o mundo ordinário e a realidade
espiritual. Ora, são duas espécies de vegetais unidas que propiciam esta aventura. Teria o ser
humano descoberto, através dessa mistura de plantas, a alquimia necessária para entrar em
contato com o poder real da divindade, com o sagrado? Ou teria a própria planta, por suas
nuances de ser divino, de professora, guiado o ser humano a uma tarefa de exame espiritual e
de transformação rígida para os próximos passos da existência física? Estas questões,
provavelmente, permanecerão em aberto e não é tarefa nossa elucida-las. A elas, cabe a
própria busca de sentido, inesgotável, da existência do ser humano – no aqui, no agora e no
futuro – responder.
114

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123

ANEXOS

ORAÇÕES:

Chave de Harmonia:

Desejo Harmonia, Amor, Verdade e Justiça a todos os meus irmãos. Com as forças reunidas
das silenciosas vibrações dos nossos pensamentos, somos fortes, sadios e felizes, formando
assim um elo de fraternidade universal.

Estou satisfeito e em paz com o universo inteiro, e desejo que todos os serem realizem as suas
aspirações mais íntimas.

Dou graça ao Pai Invisível por ter estabelecido a Harmonia, o Amor a Verdade e a Justiça
entre todos os seus filhos.

Assim seja, Amém.

Consagração do Aposento:

Dentro do Círculo Infinito da Divina Presença que me envolve inteiramente, afirmo:


Há uma só presença aqui, é a da HARMONIA, que faz vibrar todos os corações de felicidade
e alegria. Quem quer que aqui entre, sentirá as vibrações da Divina Harmonia.

Há uma só presença aqui, é a do AMOR, Deus é o Amor que envolve todos os seres num só
sentimento de unidade. Este recinto está cheio da presença do Amor. No Amor eu vivo, me
movo e existo. Quem quer que aqui entre, sentirá a pura e Santa presença do Amor.

Há uma só presença aqui, é a da VERDADE. Tudo o que aqui existe, tudo o que aqui se fala,
tudo o que aqui se pensa é a expressão da Verdade. Quem quer que aqui entre, sentirá a
presença da Verdade.

Há uma só presença aqui, é a da JUSTIÇA, a Justiça reina neste recinto, todos os atos aqui
praticados são regidos e inspirados pela Justiça. Quem quer que aqui entre, sentirá a Presença
da Justiça.

Há uma só presença aqui, é a presença de DEUS, o BEM. Nenhum mal pode entrar aqui. Não
há mal em Deus. Deus, o Bem, reside aqui. Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina
Presença do BEM.

Há uma só presença aqui, é a presença de DEUS, a VIDA. Deus é vida essencial de todos os
seres. É a saúde do corpo e da mente. Quem quer que aqui entre, sentirá a presença da VIDA
e da SAÚDE.

Há uma só presença aqui, é a presença de DEUS, a PROSPERIDADE. Deus é Prosperidade,


pois Ele faz tudo crescer e prosperar. Deus se expressa na Prosperidade de tudo o que é
empreendido em Seu Nome. Quem quer que aqui entre, sentirá a Divina Presença da
PROSPERIDADE e da ABUNDÂNCIA.
124

Pelo Símbolo Esotérico das Asas Divinas, estou em vibração harmoniosa com as correntes
universais da Sabedoria, do Poder e da Alegria.

A Presença da Divina sabedoria manifesta-se aqui. A presença da Alegria Divina é


profundamente sentida por todos os que aqui penetram.

Na mais perfeita comunhão entre o meu EU inferior e o meu EU SUPERIOR, que é Deus em
mim, consagro este recinto à perfeita expressão de todas as qualidades Divinas que há em
mim e em todos os seres.

As vibrações de meu PENSAMENTO são forças de Deus em mim, que aqui ficam
armazenadas e daqui se irradiam para todos os seres, constituindo este lugar um Centro de
EMISSÃO e RECEPÇÃO de tudo o quanto é BOM, ALEGRE e PRÓSPERO.
125

FOTOS:

Foto 1: Faixada principal da igreja do Céu do Gamarra


Fonte: www.santodaime.com

Foto 2: Momento do ritual


Fonte: acervo do autor

Foto 3: Mulheres na fila para tomar o daime


Fonte: acervo do autor
126

Foto 4: Feitio do daime


Fonte: acervo do autor

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