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A Revista Eletrônica Visagem é um dos resultados das ações do grupo de pesquisa de

mesmo nome, ambos são de iniciativa de alunos e alunas do Programa de Pós Graduação em
Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Pará - PPGSA/UFPA- coordenados pela
profa. Dra. Denise Machado Cardoso.
A revista tem como objetivo publicar trabalhos de pesquisa de estudantes e
pesquisadores(as) que envolvam a Antropologia Visual como metodologia, além de incentivar a
produção, debate e pesquisa dentro desta área, enriquecendo tais discussões e buscando incentivar
novos estudos, principalmente no que diz respeito à Amazônia.

Universidade Federal do Pará - UFPA.


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia-PPGSA.
Cidade Universitária Prof. José da Silveira Netto.
Rua Augusto Correia, no. 01, CEP: 66075-110 Belém-Pará-Brasil.
55-91-3201-8024 / 98159-0045 / 98864 9072
revistavisagem@ufpa.br
v. 05 | n. 01 | 2019
ISSN: 2446-8290

Universidade Federal do Pará - UFPA


Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia-PPGSA
Visagem - Revista de Antropologia Visual e da Imagem
ISSN: 2446-8290
http://www.grupovisagem.org/revista-eletronica
revistavisagem@ufpa.br

Indexadores:
Latindex
http://www.latindex.unam.mx/latindex/ficha?folio=24570

Sumários.org
http://sumarios.org/revistas/revista-eletr%C3%B4nica-visagem-antropologia-visual-
e-da-imagem

Comissão Editorial

Alessandro Ricardo Campos Leila Leite


Carmem Izabel Rodrigues Milton Ribeiro
Chiara Albino Socorro Amoras
Denise Machado Cardoso Tharyn Batalha

Conselho Editorial

Anaíza Vergolino Silva - UFPA/IHGPA Lourdes Gonçalves Furtado - PPGSA/UFPA


Angelica Motta Maués - PPGSA/UFPA Luiz Eduardo Robinson Achutti - UFRGS
Clarice Peixoto – PPCIS/UERJ Luis Felipe Hirano – UFG
Cornélia Eckert – PPGAS/UFRGS Mauricio Costa – PPGSA/UFPA
Edna Alencar – PPGSA/UFPA Marilu Campelo – GEAM/UFPA
Eloísa Martín - PPGSA/UFRJ Massimo Canevacci – USP
Eneida Assis – PPGSA/UFPA Marcelo Eduardo Leite – UFCA
Etienne Samain – UNICAMP Mônica Conrado – PPGSA/UFPA
Fabiana Pereira - PPGA/UFPE Renato Athias - PPGA-UFPE
Fabiano Gontijo – PPGA/UFPA Ricardo Campos – Universidade
Gilmar Santana - PPGCS/UFRN Aberta/Portugal
Greilson Lima- PPGA/UFPE Richard Parker - Columbia University
Heraldo Maués – PPGSA/UFPA Rodrigo Corrêa Peixoto - PPGSA/UFPA
Itamar Nobre - PPGEM/UFRN Rosana Pinheiro-Machado – University of
Jean Segata – PPGAS/UFRGS Oxford/Inglaterra
José da Silva Ribeiro - Universidade Rose Hikiji – GRAVI/USP
Aberta de Portugual/UFG Selda Vale – NAVI/UFAM
Katia Mendonça – PPGSA/UFPA Taíssa de Luca - GERMAA/UEPA
Larissa Pelúcio – FAAC/UNESP Vagner da Silva – CERNe/USP
Ligia Simonian – NAEA/UFPA Voyner Cañete - PPGSA/UFPA
Lisabete Coradini – PPGAS/UFRN Wilma Leitão - UFPA
Normatização
Chiara Albino

Organização
Chiara Albino
Lisabete Coradini

Revisão
Das/os autoras/es

Tradução
Das/os autoras/es

Projeto Gráfico e Diagramação


Chiara Albino

Projeto Gráfico Logomarca


Marcio Alvarenga

Projeto Gráfico online


Alessandro Ricardo Campos
Heitor Hatherly

Webdesigner
Heitor Hatherly

Capa
Foto: Ariel David Ferreira
Arte: Marcio Alvarenga
Edição: Chiara Albino

Capa de Apresentação ao Dossiê


Foto: Lisabete Coradini
Arte e Edição: Chiara Albino
v. 05 | n. 01 | 2019
ISSN: 2446-8290

6 Apresentação

ARTIGOS
Arthur Napoleão Figueiredo

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

19 Gênero, Canções e Emoções nos filmes da Jovem Guarda


Tatyana de Alencar Jacques

48 Os sons e os sentidos: música e formas de representação no circuito


da música brasileira em Lisboa/Pt
Daniela Moura Bezerra Silva

80 “Avisa lá que eu vou”: samba, samba-reggae e batucada em Barcelona,


Catalunya
Lisabete Coradini

104 Sonoridades migrantes na América Latina


José da Silva Ribeiro

133 A construção das linhas e do revestimento de Seu Rosário e de sua


violina em Parintins, AM
Danielle Colares Lins

152 Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma”


Agenor Vasconcelos Neto

175 Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena da canção


popular de Belém do Pará e a narrativa imagética
Nélio Ribeiro Moreira

199 A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró Nordestino:


como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião?
Ribamar José de Oliveira Júnior
Leonardo Lemos Zaiatz

223 “A pista é um laboratório”: corpos, afetos e experimentação em cenas


de música eletrônica underground
Gibran Teixeira Braga

253 Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


políticas e corpos em movimento no contexto da música eletrônica
bagaceira
Chiara Albino
ENSAIOS FOTOGRÁFICOS
Anaiza Vergolino e Silva

291 Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o forró


como espaço performático de sociabilidade e resistência
Sara Nuño de la Rosa García

299 Lugar de Bamba, Memoria de samba: ensayos para el desfile del


carnaval de la Piedade
Jane Seviriano Siqueira
Anibal Cotrina Atencio

307 Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina e feminina dos


Akwẽ Xerente
Ariel David Ferreira

VÍDEOS
Eneida Assis

318 Pascual Toro, flautero


Maria Eugenia Dominguez

320 Musicalidade, Boi de Máscaras, Composição e Cultura Popular


Rondinell Aquino Palha

322 Artífices do som: Josias Ramos e a rabeca de Bragança (PA)


Bernardo Wagner Marques Baptista

325 Turma do Vinil: mil e uma formas de ouvir


Lucca Totti
Oliver Bastos
Pedro Fadel
Rodrigo Torrero

ENTREVISTAS
Samuel Sá

331 María Eugenia Domínguez


Chiara Albino
Jainara Oliveira

339 Sobre as/os Autoras/es


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 06-17
ISSN: 2446-8290

Apresentação ao Dossiê

Música e modos de subjetivação


em perspectiva antropológica

Chiara Albino
Universidade Federal de Santa Catarina
tarsila.chiara@gmail.com

Lisabete Coradini
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
lisacoradini@gmail.com

6
Uma definição geral de música deve incluir tanto sons quanto seres
humanos. Música é um sistema de comunicação que envolve sons
estruturados produzidos por membros de uma comunidade que se
comunica com outros membros.

Anthony Seeger

Com a finalidade de aprimorar e estimular a discussão das


temáticas em torno da música e da produção de subjetividades, a
edição de volume 5, número 1, da Revista Visagem, enfoca o tema
“Música e Modos de Subjetivação em perspectiva antropológica”.

Neste dossiê nos propomos a explorar a relação mutuamente


constitutiva entre música e modos de subjetivação, particularmente a
multiplicidade de negociação de valores que descrevem as formas
pelas quais músicas produzem subjetividades e subjetividades
produzem músicas, sem, no entanto, considerar tal relação como
uma dicotomia, e sim como um contínuo. Esta ênfase no contínuo ao
invés da dicotomia concentra-se, sobretudo, na flexibilidade
descritiva dessas categorias. Ao enfatizar a relação entre música e
modos de subjetivação, este dossiê lembra que os sujeitos não apenas
escutam músicas, mas as valorizam moral e ideologicamente.

Além disso, neste dossiê pretendemos contribuir para


pensarmos sobre os variados tipos de participação nas práticas de
consumo e na produção, circulação e valorização de gêneros musicais,
pois compartilhamos a convicção analítica de que são múltiplas as
modalidades de engajamento. Assim, interessamo-nos por estudos
que quebram dicotomias simplistas, como, por exemplo, “produtor”
versus “consumidor”, entre outras. Interessamo-nos ainda por
estudos analíticos que discutem a afetação mútua entre sujeitos e
músicas, ou, mais precisamente, como produzem um ao outro.

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Ademais, de modo a ressaltar aspectos globais e locais, nossa


intenção não foi apenas tratar a relação entre música e modos de
subjetivação como uma discussão culturalmente particular, mas
também como intercultural e transnacional. Neste sentido, também
interessamo-nos por estudos que assinalam como as mediações
tecnológicas produzem músicas e modos de subjetivação, assim como
o componente visual/imagético e espacial na produção musical.

As contribuições recebidas fazem parte de pesquisas em


andamentos ou concluídas, que priorizaram a música e a produção de
subjetividades como categorias analíticas, visando assim a construção
de um quadro expressivo das principais abordagens teóricas e
experiências de pesquisas empíricas sobre a articulação analítica
proposta. Essas contribuições são produtos intelectuais de processos
de investigação, realizadas por diferentes autores e estão organizadas
em quatro seções: artigos, ensaios fotográficos, vídeos e entrevista.

Abrindo a seção Artigos, Tatyana de Alencar Jacques, Doutora


em Antropologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade Federal de Santa Catarina, participa
com o artigo intitulado “Gênero, Canções e Emoções nos filmes da
Jovem Guarda”, no qual apresenta uma reflexão sobre o amor
romântico a partir da análise dos filmes protagonizados por Roberto
Carlos, Wanderléia e Erasmo Carlos lançados entre 1968 e 1971. A
autora traz um diálogo entre a antropologia e a sociologia das
emoções para desvelar os padrões de masculinidade e feminilidade
presente nesses filmes.

Daniela Moura Bezerra Silva, Doutora em Sociologia pelo


Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade Federal
de Sergipe, argumenta sobre “Os sons e os sentidos: música e formas
de representação no circuito da música brasileira em Lisboa/PT”.
Nesse texto, problematiza as relações sociais que são estabelecidas a

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Apresentação 8
partir da prática musical – do ouvir, produzir e consumir a música
brasileira em Lisboa.

Lisabete Coradini, professora titular do Departamento de


Antropologia e da Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte, contribui com o texto
“Avisa lá que eu vou”: samba, samba-reggae e batucada em Barcelona,
Catalunya”, demonstrando como novos espaços sonoros e novas
maneiras de viver a música brasileira no exterior criam diálogos,
espaços de sociabilidade e a dissolução de fronteiras.

José da Silva Ribeiro, professor visitante da Universidade


Federal de Goiás - Faculdade de Artes Visuais, apresenta
“Sonoridades Migrantes na América Latina”. Neste texto o autor faz
uma reflexão e uma revisão crítica sobre os conceitos que giram em
torno do encontro entre culturas, como: hibridação, mestiçagem e
crioulização.

O texto de Danielle Colares Lins, mestre em Antropologia


Social pela Universidade Federal do Amazonas, “A construção das
linhas e do revestimento de Seu Rosário e de sua violina em Parintins,
AM”, é resultado de uma etnografia realizada na cidade de Parintins,
AM, nos anos de 2017 e 2018. A argumentação foca na importância
de se pensar em um instrumento como um agente social.

O artigo de Agenor Vasconcelos Neto, doutorando em


Antropologia Social pela Universidade Federal do Amazonas,
intitulado “Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os
instrumentos têm 'alma'” demonstra como a música popular articula
conceitos e práticas do pensamento indígena do povo Yepá Mahsã.
Para o autor a relação de afinidade que o instrumentista possui com o
instrumento é mais importante do que seu local de fabricação. Nesse
sentido, a música como faculdade humana é algo muito mais

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abrangente que discussões sobre gêneros musicais.

Nélio Ribeiro Moreira, Doutorando em Antropologia Social


pela Universidade Federal do Pará, em “Paisagens amazônicas da/na
musicalidade local: a cena da canção popular de Belém do Pará e a
narrativa imagética” problematiza sobre o uso do conceito de
paisagens amazônicas (rios, florestas, animais, lugares, etc.) na
construção de uma narrativa identitária, explicitando como essas
imagens e representações da Amazônia aparecem na cena
contemporânea da música popular de Belém do Pará.

Ribamar José de Oliveira Júnior, Mestrando em Ciências


Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte, e
Leonardo Lemos Zaiatz, Mestrando em Comunicação pela
Universidade Federal de Pernambuco, propõem no texto “A
emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró Nordestino:
como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião?”
analisar a relação estabelecida entre a produção artística de sujeitos
dissidentes e a difusão da música como produto midiático na
contemporaneidade, através da reflexão sobre as performances de
Getúlio Abelha e Pedra Homem.

O artigo de Gibran Teixeira Braga, doutor em Antropologia


Social pela Universidade de São Paulo, intitulado “A pista é um
laboratório”: corpos, afetos e experimentação em cenas de música
eletrônica underground” percorre duas cenas de festas de música
eletrônica underground, localizadas uma em São Paulo e outra em
Berlim, para, assim, mobilizar os conceitos de “musicar” e de “prazer-
processo”.

Fechando a seção Artigos, temos o artigo de Chiara Albino,


doutoranda em Antropologia Social da Universidade Federal de
Santa Catarina, intitulado “Economia performativa da

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Apresentação 10
infregatividade: Estado, subjetividades, políticas e corpos em
movimento no contexto da música eletrônica bagaceira”. Albino
apresenta uma descrição mais ampla da noção de infregatividade,
focando, ao mesmo tempo, seu sentido performativo e produtivo.
Como a autora argumenta, a infregatividade revela modos de conexões
entre o material/econômico e o cultural/performativo.

Na seção Ensaios Fotográficos, contamos com o ensaio


intitulado “Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o
forró como espaço performático de sociabilidade e resistência” de
Sara Nuño de la Rosa García, doutoranda em Antropologia Social da
Universidade Federal do Rio Grande do Norte.

Seguindo, temos o ensaio intitulado “Lugar de Bamba,


Memoria de samba: ensayos para el desfile del carnaval de la Piedade”
trabalho em coautoria de Jane Seviriano Siqueira, doutoranda em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina, e
Anibal Cotrina Atencio, Professor do Departamento de
Computação e Eletrônica da Universidade Federal do Espírito Santo.

Fechando a seção ensaio fotográficos, temos o ensaio


intitulado “Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina e
feminina dos Akwẽ Xerente”, de Ariel David Ferreira, doutorando
em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina.

Abrindo a seção Vídeos, temos o vídeo “Pascual Toro,


flautero”, de María Eugenia Domínguez, professora do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Santa Catarina. O documentário etnográfico foi gravado entre os
anos 2016 e 2019 no Chaco boreal paraguaio. O vídeo faz parte do
acervo do Musa - Núcleo de estudos Arte, Cultura e Sociedade na
América Latina e Caribe da UFSC.

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No vídeo “Musicalidade, Boi de Máscaras, Composição e


Cultura Popular”, de Rondinell Aquino Palha, graduando em
licenciatura em Letras na Universidade Federal do Pará, apresenta o
processo de concepção de uma "marcha do boi", um ritmo singular e
próprio da manifestação dos bois mascarados.

No vídeo “Artífices do som: Josias Ramos e a rabeca de


Bragança (PA)”, de Bernardo Wagner M. Baptista, Mestre pelo
Programa de Pós-graduação em Artes da Universidade Estadual do
Rio de Janeiro, através das narrativas de Josias Ramos, demonstra o
entrelaçamento entre os saberes e fazeres da rabeca em Bragança (PA).

Fechando a seção vídeos, temos a produção coletiva do vídeo


“Turma do Vinil: mil e uma formas de ouvir” de Lucca Perrone Totti,
Oliver Guimarães Bastos, Pedro Luiz Fadel Ferreira e Rodrigo Bastos
Torrero Diaz. Trata-se de um vídeo produzido pelos graduandos do
curso de Licenciatura em Música da Universidade Federal do Estado
do Rio de Janeiro (Unirio) no âmbito da disciplina “Experiência do
Filme na Etnomusicologia”.

Na seção Entrevista, publicamos uma entrevista com María


Eugenia Domínguez, professora do Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina. A
entrevista foi realizada pelas antropólogas Chiara Albino e Jainara
Oliveira, doutorandas em Antropologia Social do Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de
Santa Catarina. Nesta entrevista, María Eugenia fala sobre sua
trajetória pessoal e acadêmica, particularmente situada no campo da
antropologia social e dos estudos sobre migração, música e artes.
Nesse sentido, ela também comenta sobre a marca do seu trabalho e
quais correntes, disciplinas, autores/as e professores/as
influenciaram sua formação e suas pesquisas.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Apresentação 12
Por fim é importante dizer que esse dossiê traz um quadro de
abordagens teóricas e experiências de pesquisas empíricas, de artigos
de pesquisas em andamentos ou concluídas. E é produto de uma
cooperação investigativa que teve início com a organização do dossiê
“Paisagens sonoras” (2017) organizado por Chiara Albino na Revista
Equatorial do PPGAS/UFRN, quando à época era mestranda do
PPGAS/UFRN e orientanda de Lisabete Coradini. Bem como, com
a organização do Grupo de Trabalho “Musicalidades, espacialidades
e imagens” durante a III edição do Encontro de Antropologia Visual
da América Amazônica 2018 (EAVAAM) coordenado por Chiara
Albino e Lisabete Coradini. É importante ressaltar que alguns dos
trabalhos que compõem o presente dossiê foram apresentados nesse
Grupo de Trabalho, que tinha como objetivo realizar uma discussão
aproximativa da relação mutuamente constitutiva entre
musicalidades, espacialidades e imagens. Particularmente situado na
confluência entre a antropologia urbana, a antropologia da música e
a antropologia audiovisual, reunimos nele pesquisas em andamentos
ou concluídas que discutiram, sobretudo, as musicalidades, as
espacialidades e as imagens como categorias conceituais,
metodológicas e interpretativas da realidade social.

Nesse sentido, podemos entender esse dossiê como uma


passagem para outros projetos, outras redes, outras trocas, com a
certeza de que essas nos animam a continuar no caminho de entender
a música e a produção de subjetividades como categorias analíticas
enriquecedoras para a investigação e o saber antropológicos.

Agradecemos aos autores pelas enriquecedoras contribuições


para a publicação de mais um número da Revista Visagem. Bem
como, as valiosas contribuições de nossas/os pareceristas
anônimas/os, sem os quais esta edição não seria possível.
Agradecemos ainda ao Grupo Visagem a parceria estabelecida. Por
fim, registramos aqui nossa gratidão a todos que colaboraram neste

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projeto com solidariedade, compromisso ético-político e rigor


intelectual.

Este dossiê é publicado em um momento de retorno do


conservadorismo moral e de moralização da política, em que
presenciamos a ascensão de um governo federal de extrema-direita
que tem colocado em risco as estruturas do Estado democrático.
Neste momento de ar ticulação entre neoliberalismo e
neoconservadorismo - dois projetos socio-históricos distintos, mas
que confluem, nas últimas quatros décadas, como um marcador
temporal - torna-se particularmente relevante situar este dossiê num
contexto mais amplo de reflexões sobre a vulnerabilidade e a
condição precária induzida. Pois, não podemos nos esquecer, trata-se
de um governo que tem priorizado os cortes na área da educação, e,
assim, tem induzido à precarização importantes instituições de
fomento à pesquisa, como a CAPES e o CNPq.

Devido às suas políticas neoconservadoras, este governo


também promoveu a extinção do Ministério da Cultura (MinC). Ao
mesmo tempo, trata-se de um governo que considera algumas
populações descartáveis e defende uma política de segurança que
incentiva uma necropolítica (MBEMBE, 2011) de extermínio da
população negra, “periférica”, indígena e LGBT(s). Nesta situação
contemporânea, devemos enfatizar, presenciamos um governo que
censura práticas culturais populares e periféricas. Nessa perspectiva,
gêneros musicais, como o funk e o brega-funk, por exemplo, entre
outros gêneros originados da “periferia”, são alvos de recorrentes
ataques e desvalorização.

Neste sentido, contamos com duas capas neste dossiê. A


primeira capa da edição conta com a fotografia intitulada “Brupahi”,
de autoria de Ariel David Ferreira, e faz parte do ensaio fotográfico
“Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina e feminina dos

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Apresentação 14
Akwẽ Xerente”. Para Ferreira (2019, p. 315)

[E]m um momento em que há uma ofensiva aos direitos


indígenas mais fundamentais em detrimento de uma
exploração econômica cada vez mais voraz na região Norte
do Brasil, chamo atenção ao comprometimento e dever
social dos que outrora comeram, dançaram e encantaram-
se na mais convidativa festa dos Xerente.

A fotografia “Brupahi” nos convida a refletir sobre as nossas


formas de engajamento ético, as nossas formas de responsabilidades e
as nossas formas de solidariedades em relação às populações que estão
sendo induzidas socialmente a condições precárias. Em um
momento histórico de articulação entre neoliberalismo e
neoconservadorismo, como mencionamos anteriormente, esta foto
nos convida a refletir, especialmente, sobre o que significa viver
junto, no sentido de um imperativo ético e político.

A capa de apresentação ao dossiê conta com a fotografia do


grafite que faz parte dos muros da galeria aberta do espaço Zé Reeira,
Cidade Alta, Natal, RN, de autoria de Lisabete Coradini. O
sanfoneiro nos lembra os artistas da cultura popular brasileira, que
muitas vezes são marginalizados e perseguidos por uma parcela da
população que, usando de um discurso conservador e moralista,
tenta definir o que é ou não cultura de acordo com seu viés
ideológico.

Por fim, reafirmamos nosso compromisso moral e ético com


nossos interlocutores e com a população que financiou nossas
pesquisas. Esperamos que a “balbúrdia” nossa de cada dia continue
contribuindo para a diversificação do conhecimento e
“incomodando” aquelas pessoas contrárias à democratização da
educação. Que a população preta, periférica, LGBT(s) e indígena
continue acessando às Instituições Públicas de Ensino Superior e

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produzindo formas mais plurais de conhecimentos, assim como


ocupando espaços antes jamais ocupados.

Desejamos uma boa leitura!

Referências

FERREIRA, Ariel. Dasipê: recortes da festa de nomeação masculina


e feminina dos Akw Xerente. Dossiê “Música e modos de
subjetivação em perspectiva antropológica”. Revista Visagem, v. 5, n.
1, 2019.

MBEMBE, Achille. Necropolitica: seguido de sobre el governo


privado indirecto. Santa Cruz de Tenerife, Melusina, 2011.

SANTANA, Tarsila Chiara Albino da Silva. Dossiê “Paisagens


sonoras”. Revista Equatorial, v. 3, n. 5, jul/dez de 2016.

SEEGER, Anthony. Etnografia da música. Tradução de Giovanni


Cirino. Cadernos de campo, São Paulo, n. 17, p. 1-348, 2008.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Apresentação 16
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ISSN: 2446-8290

Seção Artigos

Arthur Napoleão Figueiredo

Arthur Napoleão Figueiredo exerceu diversas atividades de destaque na sociedade


belenense. Bacharel em direito por formação, assumiu alguns importantes cargos públicos como o
de titular vitalício de oficio de justiça da comarca da capital por concurso público realizado
perante o TJ-PA, no entanto, o grande mérito foi o pioneirismo deste pesquisador que sem
titulação de doutor tornou-se mito de origem dos estudos de antropologia na universidade federal
do Pará, catedrático em etnologia e etnografia do Brasil na antiga faculdade de filosofia.
Na UFPA desenvolveu com maestria atividades de ensino pesquisa e extensão quando
seus estatutos nem previam o desenvolvimento integrado dessas três áreas. Por conta disso, na
década de 70, em meio à estruturação das pró-reitorias o Departamento de Antropologia, já
representava vanguarda.
Como atividade de ensino, Napoleão Figueiredo se dedicou a formação um grupo coeso
de alunos seguidores, entre os quais destaca-se, Anaíza Vergolino.
Definiu diversas linhas de pesquisa entre elas os estudos de religião. Seria possível
afirmar que a antropologia urbana produzida no estado do Pará surgiu a partir da iniciativa
deste já maduro professor e de sua jovem assistente. foram eles os primeiros a reconhecer como
possível tema de investigação as religiões de matriz africana, desprezadas pela academia de
ciência da década de 60.
Juntos elaboraram um projeto denominado “Batuques de Belém”, que deixou para
posteridade além de preciosas etnografias, acervo áudio visual e museológico fruto das constantes
incursões a campo.
O material coletado acabou se transformando em atividade de extensão. Para grupos
sociais cuja história é contada “da boca para o ouvido”, a perecividade das palavras encontra nas
peças etnográficas pedras da memória, de forma que ainda é possível escutar as vozes dos afro-
religiosos paraenses afirmando que a sua história está dentro dos muros da universidade.
Aposentou-se em meados da década de 80 recebendo da UFPA (1964) diploma de Professor
Emérito e medalha comemorativa dos 30 anos de criação da referida universidade (1988). Seu
trabalho foi reconhecido pelo Museu Paraense Emílio Goeldi que lhe conferiu diploma de
Pesquisador Emérito MPEG/CNPQ e medalha dos 120 anos de fundação da instituição
(1986). Faleceu em 1989 no mesmo mês que aniversaria (março), deixando uma longa linhagem
acadêmica e uma prole de jovens herdeiros apaixonados pela ciência antropológica.

Texto: Taissa Tavernard de Luca

18
“Gênero, Canções e Emoções nos
filmes da Jovem Guarda

Tatyana de Alencar Jacques


Universidade Federal de Santa Catarina
Universidade do Estado de Santa Catarina
taty.aj@gmail.com

Resumo: Nesse artigo busco reflito sobre a concepção de amor romântico e sua relação com
questões de gênero que caracterizam os filmes protagonizados por Roberto Carlos, Wanderléa
Salim e Erasmo Carlos lançados entre 1968 e 1971. Esses três cantores foram as figuras chaves de
um movimento musical que se popularizou como Jovem Guarda, emergido na década de 1960,
fortemente ligado à rebelião jovem e que teve a apropriação do rock como marca distintiva. Nos
filmes analisados, Roberto, Erasmo e Wanderléa não apenas interpretam personagens, mas
engajam-se na construção de suas figuras midiáticas, constituindo narrativas que criam
significados por meio da articulação de imagens, canções e emoções, que desvelam padrões de
masculinidade e de feminilidade. Com isso, olhando e interpretando esses filmes, busco ressaltar
como não apenas a performance das emoções, mas sua própria constituição, é definida por
relações de gênero.
Palavras-chave: Filme Musical; Canção; Relações de Gênero; Antropologia das
Emoções.

19
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 19-47
ISSN: 2446-8290

Gender, Songs and Emotions in the


motion pictures of Jovem Guarda

Abstract: In this paper we approach the conception of romantic love and its relations to gender
issues that characterize the motion pictures starring Roberto Carlos, Wanderléa Salim and
Erasmo Carlos, released between 1968 and 1971. These three singers were the key figures of a
musical movement popularized as Jovem Guarda (Young Guard), emerged in the 1960s, strongly
related to young rebellion and that had the rock appropriation as a distinctive mark. In the films
analyzed, Roberto, Erasmo and Wanderléa not only interpret characters, but engage in the
construction of their media figures, constituting narratives that create meanings by the
articulation of images, songs and emotions that unveil masculinity and femininity patterns.
Therefore, watching and interpreting these films, we seek to emphasize that the performance of
emotions, as well as their own constitution, is defined by gender relations.
Keywords: Musical Film; Songs; Gender Relations; Anthropology of Emotions.

20
Género, Canciones y Emociones em las
peliculas de la Joven Guarda

Resumen: En este artículo reflexiono sobre la noción de amor romántico y su relación con
aspectos de género que caracterizan las películas protagonizadas por Roberto Carlos, Wanderléa
Salim y Erasmo Carlos lanzados entre 1968 y 1971. Estos tres cantantes fueron figuras claves de
un movimiento musical que se popularizó como Joven Guarda, que surgió en la década de 1960,
fuertemente ligado a la rebeldía juvenil y que tuvo la apropiación del rock como marca distintiva.
En las películas analizadas, Roberto Carlos, Erasmo y Wanderléa no solo interpretan personajes,
sino que participan en la construcción de sus figuras mediáticas, construyendo narrativas que
crean significados por medio de la articulación de imágenes, canciones y emociones, que revelan
patrones de masculinidad y de feminidad. Así, mirando e interpretando estas películas, señalo
que no solo la perfomance de las emociones, sino su propia constitución es definida por las
relaciones de género.
Palabras clave: Película Musical; Canción; Relaciones de Género; Antropología de las
Emociones.

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Buscando dialogar com a antropologia e a sociologia das emoções,


nesse artigo reflito sobre as relações de gênero articuladas em torno do
ideal de amor romântico características dos filmes protagonizados por
Roberto Carlos, Wanderléa Salim e Erasmo Carlos realizados e lançados
entre 1968 e 1971 1 . Afastando-me de concepções naturalistas e
essencialistas que constituem o amor como um sentimento imutável e
universal, considero o amor romântico como um sentimento histórico,
vivenciado, concebido e representado de diferentes formas (PIAZZESI,
2015; CERDEIRA, 2012; KOURY, 2014). Com isso, proponho tomar o
conceito de amor como um fenômeno social que constitui e é constituído
por imaginários, visões de mundo, gestos, ações, práticas discursivas,
vocabulários e significados específicos (PIAZZI, 2015). Buscarei abordar os
filmes aqui em questão e as canções que neles figuram como repositórios
centrais para a configuração e o acompanhamento desses imaginários,
tendo em vista que eles se relacionam intimamente às formas sociais
instituídas e instituintes de se sentir e expressar certas emoções que são
objeto da análise sociológica e antropológica das emoções (KOURY,
2009). Percebo que nas canções as emoções não são apenas encenadas e
representadas, com seu caráter intersubjetivo e intertextual, a canção
contribui para a própria construção social das emoções. Tenho como
ponto de partida a ideia de que as emoções não são somente expressadas,
mas criadas e configuradas pelo discurso (ABU-LUGHOD, 1990).
Roberto, Erasmo e Wanderléa, apelidados respectivamente de Rei,
Ternurinha e Tremendão, foram as figuras chaves de um movimento
musical, emergido na década de 1960, que se popularizou como Jovem
Guarda e que caracterizava-se pela forte relação com a ideia de rebelião
jovem e pela apropriação do gênero musical rock. Tiveram suas figuras
públicas construídas por diferentes mídias. A própria expressão Jovem
Guarda refere-se a um programa de televisão estrelado por Roberto Carlos,
que vai ao ar em 1965. Há também grande produção de material na mídia
impressa da época, além de discos e dos filmes aqui tratados. Nesses filmes,
Roberto, Erasmo e Wanderléa não apenas interpretam personagens, mas
engajam-se na construção de suas figuras midiáticas, articulando narrativas

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 22


que criam significados e papéis sociais tendo como matéria prima a
utilização de canções, imagens, imaginários, episódios, situações, atitudes,
valores, visões de mundo e emoções, que desvelam e constituem padrões
de comportamento, de masculinidade e de feminilidade.
Entre 1968 e 1971, são quatro os filmes estrelados por alguma das
figuras do trio em questão. Juventude e Ternura (1968), de Aurélio Teixeira,
estrela Wanderléa. Os outros três filmes foram realizados por Roberto
Farias. Roberto Carlos em Ritmo de Aventura (1968) estrela Roberto Carlos;
Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa (1970) é o único filme que estrela
tanto Roberto, quanto Wanderléa e Erasmo; Roberto Carlos a 300
Quilômetros Por Hora (1971), estrela Roberto Carlos e Erasmo Carlos. Esses
quatro filmes eram integrados por números músicas e foram lançados no
circuito comercial, durante a época mais dura da ditadura militar.

Rock, rebeldia e romantismo

Com o golpe militar de 1964, são instituídos altos níveis de restrição


dos direitos civis e de censura. Isso leva à emergência de diversos
movimentos de rebelião artística. Vários músicos posicionam-se contra o
regime e são exilados do país. Contudo, os membros da Jovem Guarda não
reagem à repressão militar. Essa falta de posicionamento político, somada
à relação com o rock americano e britânico foi considerada, por
intelectuais e músicos populares da época, como uma forma de alienação
(MENEZES BASTOS, 2005). O texto de Martins (1966), A Rebelião
Romântica da Jovem Guarda, é um depoimento interessante nesse sentido.
Para o autor, a Jovem Guarda não se caracterizaria pelo intuito de
inovação, tratando-se de uma rebelião romântica, de caráter conservador e
caracterizada pela falta de objetivo e propósito. Na visão de Martins, o
movimento funcionaria mesmo como uma forma de controle da
juventude pelos adultos:
é interessante repetir-se que a Jovem Guarda, apesar de querer
ser um movimento independente de juventude, como
oposição ao mundo já estruturado, tem toda a aprovação e
tutela dos adultos. Isto porque ela não ameaça ninguém e nem

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põe em dúvida as verdades aceitas pela sociedade. Pelo


contrário, parece animar nos jovens uma pureza de propósitos
e uma ingenuidade de adolescentes que encantam os adultos.
A oposição fica apenas nas roupas e nos cabelos e, portanto, é
inofensiva (MARTINS, 1966, p. 51).

Todavia, o hedonismo tipicamente incorporado pelos integrantes


da Jovem Guarda, que se liga diretamente a sua apropriação do rock, tem
sido tratado pela literatura sobre esse gênero musical como forma de
oposição a valores conservadores e ao estilo de vida típico de sociedades
racionalizadas e tecnocratas (FRITH, 1981; SECA, 1988; JACQUES,
2007). Assim, é interessante nos determos brevemente sobre como autores
como Frith (1981), Seca (1988) e Wicke (1993) têm compreendido a
relação entre rebeldia e juventude e sobre como são construídos os lugares
femininos nessa relação.
Conforme Wicke (1993), o rock'n'roll – primeiro subgênero de
rock, fortemente apropriado pelos músicos da Jovem Guarda – surge nos
Estados Unidos no início dos anos 1950, ligado ao lazer e à cultura jovem.
Na época, a repressão ideológica que caracteriza o período de guerra fria e
de restauração do capitalismo após a 2ª Guerra Mundial – configurada,
sobretudo, pela política anticomunista instituída pelo senador Joseph
McCarthy – gera um país extremamente rígido e conservador. Com isso,
em seu cotidiano, experiência no mundo e confronto com as condições de
trabalho, os jovens não encontrariam sentido na visão de mundo que se
popularizou como american way of life – segundo a qual, qualquer pessoa,
independente de classe social, poderia ascender socialmente por meio da
determinação, trabalho duro e talento. Assim, percebem no prazer
proporcionado pelo consumo da cultura de massa e no universo hedonista
articulado pelo rock'n'roll de artistas como Little Richard, Chuck Berry e
Elvis Presley, uma alternativa às demandas de uma sociedade conservadora
e repressora.
É interessante notar, todavia, que a relação emergente, já na década
de 1950, entre rock e juventude não se liga simplesmente à questão etária,
mas aos valores de liberdade e prazer associados a uma fase da vida marcada
pela espontaneidade, na qual ainda não foram assumidas as

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 24


responsabilidades da vida adulta (FRITH, 1981; SECA, 1988). Contudo,
Frith faz notar como, apesar da forte ligação do rock com a ideia de
sensualidade, a liberdade sexual permanecia pouco inclusiva com relação
às mulheres, que continuavam subordinadas aos homem e associadas à
vida convencional e ao casamento, percebido, nas décadas de 1950, 1960 e
1970 – nos Estados Unidos e também no Brasil, como retornarei à frente –,
como espécie de carreira da mulher.
Conforme Frith, o rock implicaria na parceria entre amigos, as
mulheres sendo excluídas e percebidas como não musicais e ameaçadoras
da solidariedade masculina, uma vez que representantes da família e de
seus valores – inclusive do amor romântico. Frith chama a atenção para
como, se por um lado, aos meninos interessaria a música propriamente
dita, o interesse das meninas recairia sobre revistas e imagens dos astros,
ligando-se diretamente a sua territorialização na esfera doméstica.
Conforme o estudo de Frith, as garotas não se relacionariam com as
performances, mas com o romantismo das letras, seu mundo de escuta não
sendo a rua, onde essas performances ocorreriam, mas o quarto de dormir.
Com isso, o próprio discurso do rock transformaria os meninos em
performers públicos e as meninas em consumidoras privadas.
A territorialização dos homens nos shows, enquanto performers, e
das mulheres em casa, enquanto consumidoras observada por Frith em
suas análises do universo da produção e consumo de rock nas décadas de
1950, 1960 e 1970 trata-se de um grande sistema de constituição de papéis
generificados ligados a diversos subgêneros de rock que tem sido acusado
por diferentes autores e autoras em diferentes épocas e contextos. Vale,
nesse sentido, mencionar o trabalho de Sara Cohen (1991), que, na década
de 1980, realiza uma etnografia com bandas de rock independente de
Liverpool, observando como também nesse contexto as mulheres não são
apenas outsiders, mas indesejáveis e ameaçadoras da solidariedade dos
músicos e de sua criatividade, o meio rock sendo tomado como uma
espécie de família masculina, na qual as mulheres geram tensão. Com isso,
os relacionamentos amorosos seriam vistos pelos músicos como perigosos,
pois as mulheres, vilãs, tomam a atenção do músico em relação às bandas e

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à socialização com os outros músicos. Cohen ainda observa o papel


extremamente restrito ocupado pelas mulheres nos territórios de criação e
produção musical. Enquanto os homens se ocupariam da composição e da
execução dos instrumentos, elas seriam, em sua maioria, cantoras de
fundo. Também Robert Walser (1993), em seu trabalho sobre o universo
do heavy metal, subgênero de rock que emerge em fins da década de 1960,
observa como as mulheres seriam constantemente representadas como
fatais, misteriosas e ameaçadoras do controle masculino. Walser faz notar
como o heavy metal sustenta fantasias de virtuosidade e controle, estando
ligado à ideia de potência e poder masculino.

Consumo, desejo e imagens do feminino

Passemos, com isso, às imagens do feminino constituintes e


constituídas pela Jovem Guarda. Enquanto artistas do movimento, as
mulheres eram, sobretudo, cantoras. Wanderléa foi a mais popular entre
elas, mas não a única, também Martinha, Silvinha e Vanusa ligam-se à
Jovem Guarda. Destaca-se também, a atuação de Lilian Knapp, da dupla
Leno & Lilian, apontada como a única entre as cantoras da Jovem Guarda
que compunha canções, em parceria com Leno (FROES, 2000).
É justamente a estória de uma cantora que determina o enredo de
Juventude e Ternura. No filme, Wanderléa interpreta Beth, uma jovem que
deseja tornar-se cantora e tem sua carreira financiada por Estênio
(Anselmo Duarte), um rico e influente contrabandista de bebidas. Estênio
apaixona-se por Beth ao vê-la cantar em uma casa noturna. Sabendo por
Paulinho (Bobby di Carlo), músico que acompanha Beth em suas
performances, que “o que ela quer é cantar”, envolve-se com a produção de
sua carreira como forma de aproximar-se da cantora. Sua intenção é deixá-
la “contente” e distraí-la com “essa estória de cantar”, nas palavras do
personagem (TEIXEIRA, 1968). Estênio contrata Guy Machado (Ênio
Gonçalves) – que também se apaixona por Beth – para compor seu
repertório e atuar como, nas palavras de Estênio, “responsável pela parte
musical” (TEIXEIRA, 1968). São as ações e disputas entre Estênio e Guy

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

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que desencadeiam a narrativa. Beth ocupa-se em cantar e tem sua vida e
carreira dirigida por esses dois homens. Isso fica claro na sequência em que
Estênio descobre o namoro entre Beth e Guy, flagra os dois e vai acertar as
contas com Guy mesmo em presença de Beth, que é disputada pelos dois
como um objeto sem desejo ou sentimento. No fim do filme, Estênio é
preso e Beth pode assumir seu namoro com Guy.
Para refletir sobre as imagens do feminino produzidas por
Wanderléa nesse filme, percebo como de extremo interesse a abordagem,
fundamentada na psicanálise, proposta por Laura Mulvey, que busca
demonstrar “o modo pelo qual o inconsciente da sociedade patriarcal
estruturou a forma do cinema” (1983, p. 437) em um sistema no qual a
imagem da mulher está intimamente ligada ao prazer erótico. Para pensar
essa questão, Mulvey recupera de Freud a noção de escopofilia, relacionada
ao prazer de olhar, ao “ato de tomar as outras pessoas como objetos,
sujeitando-as a um olhar físico, curioso e controlador” (MULVEY, 1983, p.
441). Assim, em um filme narrativo comum, tal como Juventude e Ternura, a
presença da mulher funcionaria como momento de contemplação erótica,
que congelaria o fluxo da ação. Nas palavras da autora, a mulher no filme
funcionaria
como objeto erótico para os personagens na tela e para o
espectador no auditório, havendo interação entre essas duas
séries de olhares. O recurso do corista que se apresenta no
palco, por exemplo, permite que os dois olhares sejam
tecnicamente unificados sem nenhuma quebra aparente na
diegese (MULVEY, 1983, p. 445).

Com isso, Mulvey faz notar como, enquanto os personagens


homens teriam papéis ativos, fazendo deflagrar a história e o fluxo dos
acontecimentos fílmicos e não podendo “suportar o peso da objetificação
sexual” (1983, p. 445), as mulheres são constituídas enquanto
enclausuradas em
uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas
fantasias e obsessões através do comando linguístico,
impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa
a seu lugar como portadora de significado e não produtora de

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significado (MULVEY, 1983, p. 438).

Nos números musicais de Juventude e Ternura, Wanderléa tem seu


rosto, gestualidade e performance esmiuçados seja pelo olhar de Estênio,
seja pelo de Guy. É sempre o olhar de um homem que constitui o ponto de
vista da câmera e também o do espectador. Por outro lado, por mais que o
fluxo dos acontecimentos e da carreira de Beth seja todo controlado pelas
ações dos homens, o desejo da personagem está dado “o que ela quer é
cantar”, mesmo que pela voz de um homem, Paulinho. Beth – assim,
como Wanderléa – sonha, portanto, em ter uma vida profissional e, além
disso, tornar-se uma figura pública, em um contexto no qual, segundo
Friedan (1971), o casamento e os filhos são constituídos como destino da
mulher.
Chamo a atenção ainda para que isso se dá durante um período de
ditadura militar, quanto, segundo Ana Maria Colling (2015), há
invisibilidade radical do feminino, a mulher sendo confinada à vida
doméstica e tendo no casamento sua forma de aceitação social. Além disso,
Wanderléa incorpora símbolos da revolução sexual – calças justas,
minissaia e biquíni – em uma conjuntura na qual mesmo a pílula
anticoncepcional é vista como símbolo de promiscuidade pelos
conservadores (COLLING, 2015) e questões morais e políticas são sempre
relacionadas. Com isso, articula imagens do feminino ambíguas e
complexas, nas quais, mesmo que apenas para falar de amor, a mulher tem
voz e, mesmo que politicamente invisível, migra da esfera privada para a
social.
Percebemos de forma ainda mais marcante a complexidade das
construções de feminilidade e masculinidade ligadas aos integrantes da
Jovem Guarda quando comparamos Juventude e Ternura a Roberto Carlos em
Ritmo de Aventura. Nesse filme, Roberto Carlos interpreta a si mesmo. Na
moldura do filme, seu personagem também está gravando um filme de
ação, os dois planos de ficção se misturando, os bandidos do filme fictício
tornando-se, finalmente, aqueles do filme que assistimos. Ritmo de
Aventura caracteriza-se pelo humor e pela irreverência, nisso diferindo de
Juventude e Ternura. No filme, as mulheres são as fãs de Roberto, e Brigite

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

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(Rose Passini) a vilã, que no fim do filme alia-se às fãs para salvar Roberto
dos outros bandidos.
É interessante notar a diferença na produção das imagens de
Wanderléa em Juventude e Ternura e de Roberto em Ritmo de Aventura.
Enquanto nos números musicais do primeiro filme o corpo de Wanderléa
é constituído a partir de primeiríssimos planos e detalhes de olhos, boca e
gestualidade, a cantora tendo seu corpo totalmente fragmentado e dessa
forma transformado pela câmera em objeto do olhar, Roberto Carlos é,
normalmente, filmado em plano médio ou distante, tocando guitarra. É
claro que é necessário considerar que os filmes tiveram diferentes diretores
de fotografia – José Rosa, no caso de Juventude e Ternura e José Medeiros, no
caso de Ritmo de Aventura –, contudo, chamo a atenção para que são filmes
do mesmo ano, feitos pelos expoentes de um mesmo movimento e,
estreitamente ligados às carreiras musicais desses expoentes.
Diferentemente da comprometida Beth de Juventude e Ternura,
Roberto, de Ritmo de Aventura, é esperto, descompromissado e despojado.
Contudo, assim como Wanderléa, Roberto é objetificado pela escopofilia,
aqui acionada pelo olhar feminino. Apesar da diferença da constituição
dos corpos de Wanderléa e Roberto pela fotografia dos filmes, os números
musicais de Ritmo de Aventura são, em sua quase totalidade, constituídos
pelo olhar de mulheres no contra campo, seja das fãs de Roberto, seja da
vilã Brigite, que o vigia. Roberto Carlos é constituído como objeto do
desejo feminino, ou seja, mesmo tendo em vista o interesse da abordagem
de Mulvey, ao contrário do que a autora observa, ainda que em um filme
convencional, lançado no circuito comercial, em uma época fortemente
marcada por valores conservadores, também o corpo masculino pode
sustentar-se como objeto do prazer de olhar.
Os olhares das mulheres do universo diegético, certamente,
confluem com aqueles das fãs nas salas de cinema. Aqui, a figura da
mulher consumidora transfigura-se na de dona do olhar. As performances
de Roberto Carlos, sua figura midiática como espetáculo, suscita questões
sobre o lugar das mulheres como público alvo dos filmes e discos da Jovem
Guarda. Se Frith (1981) aponta o papel de consumidoras para as mulheres

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no universo de produção de rock, Muraro (1971) faz notar como, no que


percebe como sociedade de consumo das décadas de 1950 e 1960, o
homem ganharia e a mulher gastaria. No âmbito das inovações
tecnológicas, Sterne (2003) também aponta constituições do homem
como criador territorializado no laboratório e da mulher como
consumidora territorializada na esfera doméstica. Contudo, Sterne faz
notar como as mídias emergentes no final do século XIX levam à
participação sem precedentes das mulheres na cultura de massa, elas
consistindo nas principais usuárias de aparelhos domésticos tais como o
rádio, o fonógrafo, o telefone e a televisão.
Nos filmes e performances de Roberto Carlos a figura da mulher
consumidora transfigura-se na de dona do olhar. Nesse sentido, as
mulheres podem ser percebidas não como consumidoras passivas, mas
como sujeitas criativas, cujo consumo, antes de inerte, é ativo e marcado
por seu desejo e, portanto, não deve ser compreendido apenas sob a égide
da dominação masculina, mas sob a perspectiva de sua agência. Para
visualizar essa agência e o consumo das mulheres através de seus próprios
olhos e não daqueles de seus dominadores, a ideia de transfiguração do
político, como tem sido tratada por Maffesoli (2002), parece um caminho
interessante.
Maffesoli observa como em determinados contextos de socialidade
a esfera do político implode, dando lugar a emergência de uma razão
interna constituída pelo compartilhamento de paixões e sentimentos.
Com isso, “o político, em seu aspecto universal, normativo, racional e
contratual, deixa lugar ao doméstico naquilo que ele tem de particular,
libertário do imaginário e afetual” (MAFFESOLI, 2002, p. 282). Nesse
contexto, o vivido no cotidiano, as paixões compartilhadas e as emoções
comuns prevalecem ao foco político nos aspectos racionais da organização
social. Para Maffesoli essas paixões e emoções comuns consistiriam em
uma espécie de lençol freático que sustentaria toda a vida em sociedade e
teria potencial de desestabilização do equilíbrio político. Desta forma, o
autor aponta como a destruição da ordem estabelecida
pode ser violenta, as revoltas e as revoluções estando aí para

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Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 30


prová-lo, ela pode também simplesmente consistir em
abandonar e permitir o acesso, de maneira durável, à uma
nova ordem das coisas que os detentores do poder não haviam
previsto (MAFFESOLI, 2002, p. 130).

Maffesoli percebe que a socialidade de base seria constituída por


uma potência instituinte, que seria canalizada pelo poder instituído mas
que, contudo, continuaria a exercer “uma pressão subterrânea que explode
na primeira ocasião” (2002, p. 150), a energia canalizada pelo poder
político se transfigurando. As imagens tão conhecidas por nós de mulheres
gritando e chorando nos shows de Roberto Carlos não estariam
relacionadas à explosão dessa potência de base constituída por
sentimentos comuns? É interessante notar como essas imagens apontam
para a associação entre a categoria emoção e o feminino conforme tratada
por Abu-Lughod e Lutz (1990), as qualidades que definem o emocional
também definindo as mulheres. Com isso, assim como as emoções, as
mulheres são tipicamente vistas como naturais, irracionais, caóticas,
subjetivas, físicas e descontroladas – em oposição ao cultural, racional,
ordenado, objetivo, mental ou intelectual – e, portanto, perigosas, uma vez
que sua histeria e descontrole pode quebrar as fronteiras ideológicas
(ABU-LUGHOD; LUTZ, 1990).
O compartilhamento de paixões em torno dos ídolos pode gerar
solidariedade entre mulheres, ídolos e imagem servindo de pretexto para
agrupamentos. Sua relação imagética com os astros, ligada a seu
confinamento em casa, conforme trata Frith (1981), não implica em que
na esfera doméstica, também não se constituam socialidades marcadas
pela ludicidade e por afetos e prazeres compartilhados pelas mulheres. A
agência feminina na esfera do consumo e na constituição do universo
doméstico pode ser, com isso, um meio de transfigurar a canalização de
energia social, uma vez que o território da política estaria saturado
enquanto domínio masculino.
O Diamante Cor de Rosa (1970) é o único filme no qual vemos
Roberto, Erasmo e Wanderléa atuarem juntos. É um filme de caráter
humorístico no qual essas três figuras midiáticas interpretam a si mesmas.
O trio viaja ao Japão. Lá, em uma loja para turistas, Wanderléa encanta-se

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por uma estatueta. Pierre (José Lewgoy), o vilão, também interessado na


estatueta, diz ser seu o objeto. Contudo, a vendedora dá à Wanderléa outra
estatueta idêntica. Os vilões perseguem o trio e Pierre quebra a estatueta de
Wanderléa. O trio de mocinhos deve pegar seu avião para Israel, mas
Wanderléa volta escondida à loja para adquirir outra estatueta. Então, a
vendedora entrega a Wanderléa aquela que seria a verdadeira estatueta.
Roberto e Erasmo viajam sem Wanderléa. Quando chegam a seu hotel em
Israel, recebem da recepcionista a estatueta. Wanderléa reaparece com a
notícia de que dentro da estatueta haveria um mapa para um tesouro com
um “diamante cor de rosa do tamanho de um bonde” (FARIAS, 1970). Por
fim, o trio descobre que o tesouro está escondido no Rio de Janeiro, é
perseguido pelos bandidos, mas consegue encontrá-lo.
Diferentemente do que ocorre em Juventude e Ternura, não há
romantismo e nem estória de amor em Diamante Cor de Rosa. Mas, como
nesse primeiro filme, Wanderléa encontra-se não no universo doméstico
da família, mas no da identificação e companheirismo jovem e, mesmo,
enquanto integrante da família masculina dos músicos, uma vez que se
trata de um filme que tematiza o companheirismo entre os três amigos. É
interessante notar como é sua agência, enquanto consumidora, encantada
por uma estatueta, que desencadeia toda a ação do filme.

O Rei e o Tremendão: companheirismo e masculinidade

O último filme aqui tratado, Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por


Hora, estrela Roberto Carlos e Erasmo Carlos e gira em torno, sobretudo,
da construção de masculinidades. Roberto interpreta Lalo, mecânico que
sonha em ser piloto de corrida e que é treinado por Pedro, chefe da oficina,
interpretado por Erasmo. Lalo apaixona-se por Luciana (Libânia
Almeida), namorada de Dr. Rodolfo Lara (Raul Cortez), dono da oficina e
piloto profissional, que, contudo, para de correr devido ao trauma de um
acidente. Lalo cobiça a namorada e a carreira do patrão. Para satisfazer o
desejo de Luciana, aficionada por corridas, Dr. Rodolfo inscreve-se no
Grande Prêmio do Brasil. Contudo, não consegue vencer o trauma e pede a

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 32


Neuza (Cristina Martinez), sua secretária, que cancele a inscrição.
Seduzida por Pedro, Neuza não cancela a inscrição. Lalo corre no lugar do
patrão e vence a corrida, mas não consegue conquistar Luciana. Pedro casa-
se com Neuza.
Trata-se de um filme sobre a relação entre carros, velocidade,
masculinidade e sobre o companheirismo masculino, Wanderléa estando
excluída nesse caso. O tema da velocidade é recorrente não apenas nesse
filme, mas também em Ritmo de Aventura e em canções de Roberto e
Erasmo, tais como As Curvas da Estrada de Santos (1969) e Parei na
Contramão (1963). Na dupla, Pedro (Erasmo) é o “cérebro”, aquele que faz
cálculos de velocidade e cria estratégias para que Lalo (Roberto) ganhe a
corrida. Lalo é o “coração”, instintivo, passional, mas que conta com a
inteligência de Pedro para conquistar seus objetivos, esses dois
personagens estando diretamente relacionados às figuras midiáticas do
Rei Roberto e do Tremendão Erasmo, mais descompromissado e não tão
apaixonado e romântico quanto Roberto – o que pode ser acompanhado
em canções de Erasmo como Minha fama de Mau (1965) ou Terror dos
Namorados (1965) –, mas que, por outro lado, assume o papel de “cérebro”
da dupla, como no filme A 300 Quilômetros Por Hora.

Performatividade de gênero e o amor romântico nas canções

Como já disse, nesse artigo, busco dialogar com a sociologia e a


antropologia das emoções de forma a desestabilizar a ideia de que os
sentimentos teriam uma essência universal ligada à natureza humana
(REZENDE e COELHO, 2010), e também evidenciar como, enquanto
representações socialmente elaboradas, as emoções e sentimentos são
constituídos e expressos de forma generificada.
Conforme Koury (2009), a abordagem das emoções remonta a
autores clássicos fundamentais à constituição da antropologia e da
sociologia como matrizes de conhecimento, tais como Durkheim, Mauss,
Simmel, Weber e Tarde. Enquanto especialidades de produção de
conhecimento, a sociologia e a antropologia das emoções começam a

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consolidar-se na segunda metade da década de 1970, caracterizando-se pela


problematização da subjetividade enquanto construção e forma de
expressão social. Com isso, os fenômenos emocionais são compreendidos
como fenômenos sociológicos, as emoções vividas por um ator social
estando diretamente ligadas a construtos e sistemas culturais e sociais.
Koury faz notar como as emoções sentidas por determinado indivíduo
provém de uma cultura emocional dada específica e historicamente
definida. As emoções são constituídas de forma intersubjetiva, estando
ligadas a modelos de relações sociais relativamente contínuos. Com isso, as
emoções experienciadas por determinado ator social são produzidas pela
relação entre os indivíduos, a cultura e a sociedade, portanto, são
mediadas por conteúdos simbólicos e práticas sociais que incluem relações
de gênero e papéis sociais previstos para homens e mulheres.
Para refletir sobre como as emoções são diferentemente construídas
por homens e mulheres, a noção de performatividade de gênero de Judith
Butler (2000) apresenta-se como um caminho interessante. A autora
propõe essa noção para apreender as formas pelas quais o corpo é
sexualmente construído por normas regulatórias, a própria ideia de “sexo”
consistindo em um constructo. O “sexo” não é “um simples fato ou a
condição estática de um corpo”, tratando-se de “um processo pelo qual as
normas regulatórias materializam” o próprio corpo (BUTLER, 2000, p.
152). Com isso, Judith Butler faz notar como a diferença sexual “não é,
nunca, simplesmente, uma função de diferenças materiais que não sejam,
de alguma forma, simultaneamente marcadas e formadas por práticas
discursivas” (2000, p. 151). Segundo Butler, a performatividade
constituiria “aquele poder reiterativo do discurso para produzir os
fenômenos que ele regula e constrange” (2000, p. 152). A autora chama a
atenção exatamente para como a questão da performatividade está ligada à
necessidade dessa reiteração, uma vez que “a materialização não é nunca
totalmente completa” e que “os corpos não se conformam, nunca,
completamente, às normas pelas quais sua materialização é imposta”
(2000, p. 151).
No que diz respeito à compreensão da constituição dessas

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 34


identidades discursivas generificadas faz-se central um concepção de
identidade não enquanto ligada a uma suposta essência do indivíduo, mas
enquanto constructo, que pode funcionar como uma forma prescritiva e
normativa e que envolve lutas por poder e legitimidade. Essa questão é
apontada por Butler, que mostra como o sujeito é formado mediante
processos de exclusão e de diferenciação, se constituindo “mediante a
criação de um domínio de sujeitos desautorizados, pré-sujeitos,
representações de degradação, populações apagadas da vista” (1998, p.32).
Com isso, a produção e regulação do sujeito autorizado a falar a partir de
determinada identidade é condicionada por relações de dominação,
funcionando como instrumento de hegemonia.
A partir da análise do repertório de Wanderléa, Roberto e Erasmo,
apresentados nos filmes aqui em questão, percebo que as canções
constituem-se como gênero discursivo central na construção e
performance generificada das emoções. As canções constroem sujeitos
discursivos específicos descrevendo seus estados mentais, criando
“contornos físicos e sensoriais” a conteúdos psíquicos e incorpóreos e
convertendo “ideias e emoções em substância fônica conduzida em forma
de melodia” (TATIT, 2002, p. 18). Há nas canções a elaboração de todo um
vocabulário para a expressão das emoções. Com isso, escolher um
repertório de canções aponta diretamente para como os artistas articulam
esse léxico, de forma a se relacionar com as emoções e estabelecer lugares e
posições de fala para suas figuras midiáticas.
Nos filmes aqui analisados, o processo de figuração típico da canção
é engajado na narrativa fílmica, os significados da narrativa emergindo de
forma intertextual, a partir da constituição de uma cadeia intersemiótica
(MENEZES BASTOS, 2013) entre imagens, texto e canção. Constituindo
sejam personagens sejam figuras midiáticas – ou ambos, no caso dos filmes
em questão – , assim como pontos de vista discursivos específicos, a canção
aponta para a questão do engajamento das práticas musicais na construção
de subjetividades, ou seja, de diferentes formas de se perceber e constituir
como sujeito social a quem “se pode falar” (HALL, 2005, p. 112-113). A
canção, desta forma, implica sempre na construção de um sujeito

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discursivo e de um sujeito para quem se dirige o discurso.


Ouvimos em Juventude e Ternura, as canções Ternura (1965 – Estelle
Levitt e Kenny Karen), Finalmente Encontrei Você (1965 – Renato Corrêa e
Roberto Corrêa), Te amo (1967 – Roberto Corrêa – Sylvio Son) e Foi Assim
(1965 – Renato Corrêa e Ronaldo Corrêa). Todas são canções de amor e,
com exceção de Finalmente Encontrei Você - que apresenta andamento mais
rápido e características rítmico-harmônicas normalmente associadas ao
rock-, são todas baladas, o que aponta para as construções de feminilidade
operadas pela escolha do repertório de Wanderléa. Nesse sentido, Walser
(1993) e Cohen (1991) fazem notar como características musicais também
são generificadas. Assim, sonoridades ligadas ao rock e tidas como
agressivas, densas ou incisivas apontariam para as ideias de potência e
poder masculino, enquanto sonoridades típicas das baladas, percebidas
como aveludadas ou suaves, assumiriam relações com o gosto e o universo
feminino.
Amor, casamento, paquera e, por vezes, sexo, são temas recorrentes
nas canções de Roberto, Erasmo e Wanderléa, sendo tematizados de
formas distintas por cada uma dessas figuras midiáticas. Wanderléa, assim
como as outras cantoras da Jovem Guarda, tem seu repertório configurado
por uma maioria de canções românticas, que tematizam o amor sofrido,
proibido, adiado ou não correspondido. É fato que, já desde a Jovem
Guarda, as canções românticas fazem parte do repertório de Roberto
Carlos, que posteriormente, constitui o amor romântico como um
elemento central de suas canções e figura midiática. Contudo, ele não
cant a apenas sobre amor, t ambém celebra, carros, fest as,
irresponsabilidade e diversão. Em Ritmo de Aventura interpreta, além de
Eu Sou Terrível (1967 – Roberto Carlos e Erasmo Carlos), Por Isso Corro
Demais (1967 – Roberto Carlos), Por Isto Estou Aqui (1967 – Roberto
Carlos) e Negro Gato (1966 – Getúlio Côrtes). Eu Sou Terrível e Negro Gato
são músicas que apontam diretamente para a apropriação de
características rítmico-harmônicas tidas como distintivas do rock. Nessas
canções, Roberto se constitui como Terrível ou como Negro Gato, na gíria da
época, como uma brasa. Essas são canções que tematizam aventuras

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 36


boêmias e irresponsáveis.
Roberto Carlos também fala de amor nas baladas Por Isso Corro
Demais e Por Isto Estou Aqui. Note-se, contudo, que, quando canta sobre
amor, na quase totalidade das vezes, Roberto assume um ponto de vista
ativo, falando de sua própria ação. Fala do que ele vai fazer e não do que
aquele ou aquela a que se dirige a canção teria feito. Enquanto na canção
Ternura, Wanderléa se coloca em um papel de vítima, cantando:
Uma vez você falou, que era meu o seu amor,
Que ninguém mais vai separar você de mim.
Agora você vem dizendo adeus,
que foi que eu fiz pra que você me trate assim? (Salim, 2005).

Roberto quando canta sobre amor, em Por Isso Corro Demais, diz:
Meu bem cada momento que eu fico sem te ver,
aumenta a saudade que eu sinto de você.
Então eu corro demais, sofro demais.
Corro demais, só pra te ver meu bem” (Carlos, 1967).

Além disso, Roberto Carlos é compositor, em Por Isso Corro Demais,


o próprio Roberto Carlos escolhe o que quer dizer e como. Por outro lado,
Ternura é uma versão da música Somehow It Got To Be Tomorrow, de Estelle
Levitt e Kenny Karen, adaptada para o português por Rossini Pinto,
produtor de Wanderléa e, provavelmente, nos termos que estão no filme
“responsável pela parte musical” (TEIXEIRA, 1968). Essa questão
evidencia o controle e regulação da constituição de sujeitas discursivas nos
domínios e campos musicais, incluindo o da canção.
Assim como Juventude e Ternura e Roberto Carlos em Ritmo de Aventura,
Roberto Carlos e o Diamante Cor de Rosa é integrado por números musicais,
os dois primeiros de Roberto – Não Vou Ficar (1969 – Tim Maia) e Custe o
que Custar (1968 – Edson Ribeiro e Hélio Justo) –, o terceiro de Erasmo –
Preciso Chamar Sua Atenção (1970 – Roberto Carlos e Erasmo Carlos) –, o
quarto de Wanderléa – Você Vai Ser o Meu Escândalo (1970 – Roberto
Carlos e Erasmo Carlos) –, e o número final com os três –É Preciso Saber
Viver (1970 – Roberto Carlos e Erasmo Carlos). Essa última canção, que

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celebra a amizade do trio, é a única do filme cuja temática não aponta para
a construção de relações de gênero, mas gira em torno de conselhos para o
bem viver.
Em seus dois números musicais, Roberto Carlos interpreta canções
que tematizam relações amorosas. Em Não Vou Ficar, Roberto sinaliza seu
desejo de rompimento de uma relação: “com você não posso mais ficar”
(Carlos, 1969). Em Custe o que Custar, Roberto Carlos assume-se como
aquele que escolhe de quem vai gostar, pra quem vai “dar seu coração”,
cantando:
Já nem sei pra quem eu dou meu coração.
Preciso acreditar
que gosto de alguém
e essa tristeza
vai ter que acabar e custe o que custar (Farias, 1970).

Observe-se, com isso, como nas duas canções, Roberto assume um


papel de sujeito que exerce escolhas em se tratando de amor. Erasmo, em
seu número musical, interpreta Preciso Chamar Sua Atenção, uma canção de
amor. Nela, assim como Roberto Carlos em seus números, Erasmo assume
um papel ativo. A temática da canção gira em torno do que o sujeito faria
para “ter” e “chamar a atenção” da mulher desejada. O sujeito discursivo,
portanto, escolhe seu par romântico e busca conquistá-lo.
Também Wanderléa interpreta uma canção de amor em Diamante
Cor de Rosa. Contudo, a cantora tematiza o amor sofrido, proibido,
interdito pelas amarras sociais, que deve ser escondido, que põe em jogo
sua reputação. Note-se como a própria ideia de reputação está diretamente
ligada à territorizalição da mulher na esfera doméstica e a sua associação à
família. Ainda chamo a atenção para que, apesar de escrita pela dupla
Roberto Carlos e Erasmo Carlos, essa música nunca constou no repertório
de nenhum dos dois, parecendo ser uma canção composta especialmente
para Wanderléa e ligada a construções de feminilidade.
Há em Roberto Carlos a 300 Quilômetros Por Hora apenas dois
números musicais, que encerram o filme. O primeiro apresentado por
Roberto Carlos e o segundo por Erasmo Carlos. De Tanto Amor (1971), de

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Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 38


Roberto Carlos, tematiza o amor não correspondido de Lalo por Luciana.
Mesmo nessa canção, cuja temática gira em torno do rompimento,
Roberto Carlos assume um lugar de sujeito que tem escolhas e que pode
submeter aquela a quem dirige seu discurso:
Eu vim aqui amor,
só pra me despedir,
e as últimas palavras desse nosso amor,
você vai ter que ouvir (CARLOS, 1970).

De Tanto Amor aponta para o redirecionamento da carreira de


Roberto Carlos nos anos 1970, quando torna-se um cantor romântico,
tendo as baladas como gênero discursivo central de sua figura midiática.
Masculino e Feminino (1971 – Homero Moutinho Filho), a canção
interpretada por Erasmo Carlos, tematiza o casamento de Pedro e Neuza
(Cristina Martinez). Durante esse número, vemos Pedro (Erasmo) indo
embora com Neuza após seu casamento. Note-se, com isso, como o
casamento emerge nesse contexto enquanto oposto à família masculina de
Pedro e Lalo. Pedro parte com Neuza e Lalo fica sozinho. Na canção
Masculino e Feminino, Erasmo Carlos intercala suas frases com a cantora
Marisa Fossa. Essa intercalação de frases masculinas e femininas tematiza a
rotina do casamento. Nela é interessante observarmos como as falas
femininas aparecem como mais compromissadas e engajadas do que
aquelas de Erasmo:
Já são seis horas, meu bem (Erasmo).
Vire o relógio, meu amor (Marisa).
Faz tanto tempo, nem sei (Erasmo).
Neste silêncio de nós dois (Marisa).
Vim pela vida, cansei (Erasmo).
Perdidos sonhos me entreguei (Marisa).
Me dê um cigarro, meu bem (Erasmo).
Primeiro um beijo, meu amor (Erasmo).

No texto, Romeu e Julieta e a Origem do Estado, Viveiros de Castro e


Benzaquen de Araújo abordam o drama Romeu e Julieta, de Shakespeare,
como um texto paradigmático e arquetípico para a compreensão do amor
no ocidente moderno. Com sua análise, os autores buscam investigar quais

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relações sociais são subsumidas pela categoria amor e concluem que a


noção de amor de Romeu e Julieta define um tipo de relação entre indivíduo
e sociedade. Com a noção de amor, as relações interindividuais seriam
valorizadas, o indivíduo libertando-se dos laços sociais. Nas palavras dos
autores: “O amor (...) é visto como uma relação entre indivíduos, no
sentido de seres despidos de qualquer referência ao mundo social, e
mesmo contra este mundo” (1977, p. 131).
Com a categoria amor, o indivíduo desponta como noção de pessoa
central, a experiência amorosa colocando em questão “a relação entre
indivíduo e sociedade” (REZENDE e COELHO, 2010, p. 119). O amor
emerge como uma categoria que envolve opções individuais por relações
sociais, estando em jogo fatores afetivos e emocionais. Esse tipo de relação
seria oposto às relações marcadas pela obrigatoriedade. Com isso, o amor
desconsideraria a lógica social, sendo pensado enquanto liberdade
individual frente à sociedade. O amor estaria associado a um destino
individual que cumpriria uma lógica cósmica.
Contudo, no que diz respeito às representações e construções da
noção de amor articuladas pelas imagens e canções produzidas por
Roberto Carlos, Erasmo Carlos e Wanderléa Salim, que podem ser
acompanhadas nos filmes aqui abordados, a emancipação do indivíduo
com relação às normas sociais, apontada por Viveiros de Castro e
Benzaquen de Araújo, parece dizer respeito à forma com que o amor
romântico é vivenciado apenas pelos homens. Uma vez que o casamento e
os filhos são percebidos, nesse contexto, como destino e mesmo carreira da
mulher (FRIEDAN, 1971), o amor romântico, enquanto deflagrante do
casamento, aponta diretamente para a expectativa feminina de
cumprimento de seu papel na ordem social e na construção da família.
Com isso, é interessante ter em vista como, conforme faz notar Piazzi
(2015), o amor também implica em ideais normativos que regulam a
relação entre “o amor e o resto do mundo” (p.7).
Homens e mulheres vivenciam o individualismo característico das
sociedades modernas de formas diversas, assim como se relacionam
diferentemente com as esferas do público e do privado. A mediação das

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Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 40


emoções na construção do individualismo moderno já é interesse de
autores clássicos como Simmel e Weber, também sendo pauta de estudos
precursores da antropologia e da sociologia das emoções no Brasil, tais
como os estudos de Gilberto Velho sobre a cultura emocional das classes
médias urbanas e os estudos de DaMatta sobre a construção da identidade
nacional no Brasil, nos quais também está em pauta a questão da expressão
dos sentimentos como forma de mediação entre o público e o privado
(KOURY, 2009). Como venho tratando, essa dicotomia entre público e
privado aponta diretamente para relações de gênero que territorializam as
mulheres na esfera privada do consumo e os homens na esfera pública da
produção técnica, tecnológica, científica ou artística (FRITH, 1981;
STERNE, 2003). Nesse sentido, Koury aponta como, ainda hoje, a
territorialização dos homens na rua e das mulheres no lar faz sentido na
organização de muitos casais, implicando em diferentes questões que
permeiam “desde a questão do cuidado com a família, crescimento dos
filhos, organização da casa, pela mulher; e da segurança financeira pelo
homem; até a questão da fidelidade ao marido/namorado/amante”
(KOURY, 2014, p. 207–208). Percebo que a territorialização da mulher na
esfera doméstica aponta diretamente para a sua objetificação no que diz
respeito à formação da família monogâmica ocidental. As mulheres são
territorializadas na esfera privada porque a ela pertencem.
Em sua Filosofia do Amor, Simmel (1993) faz algumas observações
interessantes para pensar a relação entre o amor romântico, o doméstico e
a propriedade privada aqui proposta. Simmel relaciona o “sentimento
específico de amor e de fidelidade” ao casamento monogâmico e aponta
como esse implica em trocas nas quais a mulher constitui-se enquanto
“objeto de valor econômico” (p. 37) que circula nas relações de
parentesco, a questão da prostituição apontando para a impessoalidade, a
troca de sexo por dinheiro implicando na não reciprocidade e não
continuidade das relações. O pensamento de Simmel parece-me de
extremo interesse, pois ele aponta para uma questão central no que diz
respeito à crítica feminista às teorias de parentesco, qual seja o fato de que a
percepção das mulheres como bem econômico a ser trocado diz mais sobre

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a sociedade moderna do que sobre as sociedades ditas primitivas, que


servem como base para a construção dos esquemas de parentesco.
Conforme Mac-Comarck (1980), a ideia de que as mulheres seriam
espécies de “mercadorias trocadas” fundamenta-se em uma percepção
etnocêntrica do que homens e mulheres fazem, havendo na elaboração da
estrutura uma seleção de comportamentos específicos. Assim, o esquema é
construído a partir das relações estabelecidas entre os homens, o papel
ativo das mulheres nas transações matrimoniais sendo apagado. Note-se
como com a oposição entre atividade e passividade, voltamos ao esquema
de dominação apontado por Abu-Lughod e Lutz (1990), que elenca de um
lado o feminino, o descontrole, o natural, o irracional e o caos e de outro o
masculino, o controle, a cultura, o racional e a ordem.

Considerações finais

Refletindo sobre a forma como o amor romântico é constituído nos


filmes e nas canções do movimento musical que se popularizou como
Jovem Guarda, busquei dialogar com a sociologia e com a antropologia das
emoções de forma a fazer paralelos com questões mais amplas referentes a
construções de masculinidade e feminilidade, tais como a territorialização
das mulheres no doméstico e dos homens no público, a objetificação das
mulheres em relação ao privado – que também não deixa de relacionar-se a
objetificação de seu corpo pelo olhar no cinema – e a relação dessas
construções de gênero com uma série de dicotomias que envolve aquelas
entre emoções e razão, passividade e atividade, descontrole e controle,
natureza e cultura. Contudo, também busquei apontar que, se por um
lado, conforme observa Mulvey (1983), a construção de imagens e
universos femininos no cinema convencional dissimula estruturas
profundas do olhar patriarcal, por outro também pode haver
transfiguração, transgressão e inversão das relações de sujeição em lugares
inesperados e não previstos pelas estruturas de poder, como, por exemplo,
no olhar feminino para a figura midiática de Roberto Carlos, que
podemos acompanhar no filme Roberto Carlos em Ritmo de Aventura. Nesse

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Gênero, canções e emoções nos filmes da Jovem Guarda 42


contexto, as emoções podem funcionar como pivôs para inversões de
relações de poder, paixões compartilhadas funcionando como fulcro
central para a constituição de socialidade entre mulheres e como potência
transgressora e transfiguradora dos papéis sociais normalmente previstos.
O fato de assumirem papéis de consumidoras e estarem territorializadas na
esfera da vida doméstica não implica em que as mulheres também não
tenham agência e constituam suas existências de forma criativa.
Evidentemente que lutamos pela igualdade de direitos e pelo pleno
reconhecimento de nossas capacidades artísticas, profissionais e de
liderança política. Isso, contudo, não implica em que, mesmo em situações
de controle, mulheres de outras gerações não tenham encontrado
caminhos criativos para objetificar e desejar, os papéis sociais não estando
determinados de forma tão evidente quanto àquela prevista pelas
estratégias de dominação.
Todavia, é importante ter em vista que, mesmo enquanto potências
transformadoras, as emoções não deixam de ser configuradas por relações
sociais que envolvem valores, visões de mundo e cosmologias específicas
que têm suportes centrais na arte, incluindo o cinema e a música. No que
diz respeito às canções aqui abordadas, busquei evidenciar como, cantoras
e cantores da Jovem Guarda, quando falam de amor, articulam discursos
específicos que trazem à tona a questão de que homens e mulheres
vivenciam as emoções de formas distintas, respondendo a expectativas
diferenciadas. Com isso, percebo que as canções, não apenas da Jovem
Guarda, mas de outros estilos de rock e gêneros musicais, constituem-se
com campos discursivos centrais na configuração do imaginário
constituinte do amor romântico, consistindo em uma fonte importante
para o acompanhamento da historicidade das emoções e da forma com
que elas reverberam, se desdobram, constituem ou dissolvem no universo
social.

Notas

1. Esse artigo resulta de minha pesquisa de Pós-doutorado realizada no Programa


de Pós-Graduação em Música da Universidade do Estado de Santa Catarina,
para a qual obtive bolsa da CAPES.

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ISSN: 2446-8290

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música
brasileira em Lisboa/Pt

Daniela Moura Bezerra Silva


Universidade Federal de Sergipe
Universidade Tiradentes
ellabmoura@yahoo.com.br

Resumo: A proposta do artigo é discutir as relações sociais que são estabelecidas a partir da
prática musical – do ouvir, produzir e consumir a música. Partimos do argumento de que, como
produção humana, a música possui um papel relevante na construção e reconstrução de
identidades sociais, e, por consequência, caracteriza as cidades modernas ao contribuir para a
construção de imagens da cidade. Destacamos aqui o valor metodológico que os estudos sobre os
sons têm para as Ciências Sociais, pois nos permite conhecer e entender as trajetórias e
configurações sociais construídas no contexto das cidades, os estilos de vida e as formas de
estrutura social. Nosso recorte espacial é o circuito de “música brasileira” em Lisboa que composto
por várias paisagens sonoras, que não apenas demarcam o espaço urbano, como constroem
representações sobre a referida cidade.
Palavras-chave: Música; Paisagem Sonora; Circuito.

48
The sounds and the meanings: music and
representation forms in the Brazilian
circuito of music in Lisbon

Abstract: The purpose of this article is to discuss the social relations that are stablished from the
musical practice of listening, producing and consuming music. We start from the argument that,
as a human production, music has a relevant role in the construction and reconstruction of social
identities, and, consequently, characterizes modern cities by contributing to the construction of
images of the city. We highlight here the methodological value that studies on sounds have for the
Social Sciences, because it allows us to know and understand the trajectories and social
configurations built in the context of cities, lifestyles and forms of social structure. Our spatial
clipping is the circuit of "Brazilian music" in Lisbon that consists of several Soundscape, which not
only demarcate the urban space, but also construct representations about the city.
Keywords: Music; Soundscape; Circuit.

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ISSN: 2446-8290

Los sonidos y los sentidos: música y formas


de representación en el circuito de la
música brasileira en Lisboa/Pt

Resumen: La propuesta del artículo es discutir las relaciones sociales que son establecidas a
partir de la práctica musical – de oír, producir y consumir la música. Partimos del argumento de
que, como producción humana, la música tiene un papel relevante en la construcción y
reconstrucción de identidades sociales, y, por consecuencia, caracteriza las ciudades modernas al
contribuir para la construcción de imágenes de la ciudad. Destacamos aquí el valor metodológico
que los estudios sobre los sonidos tienen para las Ciencias Sociales, pues nos permite conocer y
entender las trayectorias y configuraciones sociales construidas en el contexto de las ciudades, los
estilos de vida y las formas de estructura social. Nuestro recorte espacial es el circuito de “música
brasileira” en Lisboa que es compuesto por varios paisajes sonoros, que no solo demarcan el
espacio urbano, como construyen representaciones sobre la referida ciudad.
Palabras clave: Música; Paisaje sonoro; Circuito.

50
Introdução¹

O presente artigo faz parte das discussões apresentadas na Tese de


doutorado intitulada O circuito da “música brasileira” em Lisboa/Pt: consumo,
imaginários e estilos de vida, que teve por objetivo analisar as relações entre
consumo e estilos de vida e a partir do estudo da presença e manutenção
de um circuito de “música brasileira”² fora do Brasil, especificamente na
cidade de Lisboa/Portugal.
A escolha desta cidade como campo de pesquisa decorreu, entre
outros motivos, pelo fato de encontrarmos dentro do circuito turístico de
Lisboa um circuito de “música brasileira” que aparece, inclusive, como
propaganda da cidade. Partimos da ideia de que esse consumo de “música
brasileira” trata- se, na verdade, de um consumo de símbolos e de estilos de
vida ligados a um imaginário sobre o Brasil.
A metodologia utilizada para realização da pesquisa foi a observação
de campo em universo real, que ocorreu em 2014, com uma visita inicial
com o intuito de realizar o mapeamento do circuito e estabelecer contato
com os donos dos estabelecimentos; e em 2015, com a participação efetiva
nos espaços, com a intenção de perceber as lógicas e dinâmicas no circuito;
a observação de campo em universo virtual, no qual acompanhamos nos
sites e páginas das redes sociais e propagandas dos eventos, as interações do
público e as agendas de eventos, o que foi feito nos anos de 2016 a 2017.
Tomamos nesse estudo, a música como uma forma de interação
social que possui um caráter de identificação ou diferenciação, que por
esses processos ajuda a formar diferentes itinerários em torno do que é
classificado como música brasileira, e consequentemente, distintos
circuitos ligados a esse tipo de música, quando os indivíduos escolhem
frequentar este e não aquele circuito, vemos em ação o papel
representativo dos processos de identificação, isto é, no momento em que
produtores e consumidores selecionam traços simbólicos que demarcam o
que seria a música brasileira, estabelecem que gêneros musicais não
podem ser classificados de tal forma.
Aqui discutiremos as contribuições do estudo das sonoridades a

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esse trabalho em dois sentidos: a música brasileira como formadora de


paisagens sonoras e consequentemente imagens da cidade de Lisboa e o
percurso metodológico adotado no estudo dos sons. Por fim, discutiremos
a prática musical (o consumir e o produzir) como formas de representação
que constroem narrativas e quadros estéticos sobre grupos e cidades, o que
nos auxilia na compreensão dos estilos de vida contemporâneos.

Música, paisagens sonoras e as cidades


Se a cidade soa e ressoa, será que a Sociologia e as restantes
Ciências Sociais a ouvem? Se as cidades soam e ressoam é
recomendável escutar e escutar-se.
Carlos Fortuna

Soundscape (ou paisagem sonora) tem por definição qualquer


ambiente acústico tomado como campo de estudos. Esse conceito foi
desenvolvido por Murray Schafer (1998), na obra A afinação do mundo, e
desde então tem sido encarado como uma abordagem pioneira, pois o
autor tomou os sons em suas variedades (ruídos, músicas, barulho de
máquinas, etc.) como protagonistas, e os indivíduos como também
ouvintes, algo que no período em que escreveu ainda era negligenciado
como campo de pesquisa.
A partir dos sons, Schafer (1998) fez uma espécie de reconstrução
do passado, para então comparar com o presente e, deste modo, observar
que alterações ocorreram. Para o autor, a transição da sociedade de rural
para a urbana teria modificado não apenas a dinâmica social, pois esse
processo transformou por completo o campo acústico, agora mais
marcado pelos sons industriais (barulho da fundição de ferros, o bater de
martelos, etc.) ³.
Essa proposta de percepção do mundo, que dá atenção às novas
formas de sensibilidade, surgiu inicialmente com a preocupação de
entender como os ambientes são impostos e/ou ouvidos na sociedade
moderna ou pós-industrial, sobretudo que novos hábitos seriam revelados
com esse tipo de estudo. Para Schafer (1998), a Revolução Industrial e o
advento da eletricidade trouxeram modificações profundas nos sons das

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 52
cidades, agora cada vez mais ruidosas.
Aos poucos, as novas abordagens consideram o processo sensorial
dos sujeitos e passaram a adquirir importância na investigação do social. O
ouvir foi se construindo como face importante para o entendimento das
experiências dos indivíduos na sociedade à qual pertence, e o sons
começaram a ser entendidos como formas de interação social, com
linguagem, regras, valores, padrões de comportamento e até mesmo
hierarquias próprias.
Formada por vários campos sonoros que se intercruzam, a paisagem
sonora dá destaque ao fator humano, na verdade, ao processo de recepção
que este faz dos sons:
Paisagem sonora é qualquer campo de estudo acústico.
Podemos referir-nos a uma composição musical, a um
programa de rádio ou mesmo a um ambiente acústico como
paisagem sonora. Podemos isolar um ambiente acústico como
campo de estudo, do mesmo modo que podemos estudar
características de uma determinada paisagem [...]. Uma
paisagem sonora consiste em eventos ouvidos, não em objetos
vistos (SCHAFER, 1998, p. 23-24).

Pesquisas recentes nas Ciências Sociais (MACHADO, 2010;


RODRÍGUEZ, 2010; VEDANA, 2010) tomam a paisagem sonora como
uma categoria que possibilita o entendimento de elementos sonoros a
partir de um lugar específico, o que significa dizer que a cidade pode ser
pensada em suas sonoridades. Trata-se do contexto em que os indivíduos
partilham sentidos. A acústica de uma paisagem sonora atribui a esta um
sentido que está diretamente relacionado com a experiência social,
subjetividades e vivências pessoais, observadas no interior de uma
sociedade (VEDANA, 2010).
“As paisagens sonoras modernas, mas concretamente as das grandes
cidades, sugerem um estado de espírito condicionado de forma
permanente pelo som ambiente socialmente vivido” (FORTUNA, 1998).
Em outras palavras, as cidades contemporâneas possuem também
identidades sonoras, que contribuem para a formação de “imagens da
cidade” (FORTUNA, 1998), deste modo, os sons fazem parte da

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composição imagética dos centros urbanos, assim como os recursos


visuais.
Para Leite (2008), as imagens – em suas diferentes apresentações –
acompanham o cotidiano citadino, o que é, inclusive, a marca da cultura
urbana, pois nas cidades contemporâneas vemos uma multiplicidade de
identidades, de estilos de vida e suas representações e a exacerbação dos
traços culturais distintivos. Nesse contexto, a imagem urbana tanto pode
ser o resultado de uma dimensão visual, o que faz com que ela se torne um
produto, ou pode ser vista como um processo no qual narrativas sobre as
cidades se inscrevem.
As imagens das cidades, como construções simbólicas, buscam
suporte na memória, em narrativas históricas, nas percepções dos
indivíduos, nos sentimentos compartilhados. Entre os sons, a música se
apresenta como mediadora importante no processo de construção de elos
de identificação. Partilhar um mesmo ambiente sonoro pode criar
sentimentos de unidade e coletividade.
Adorno (2009) já havia dito que essa forma de expressão cultural se
assemelharia ao discurso, no sentido de emitir algo humano, pois
possuiria orações, interrogações e exclamações – produziria vocábulos – de
modo que estaria carregada de sentido e intencionalidade. O fenômeno
musical contempla muito mais do que estímulos sensoriais, definidos em
um dado contexto: ele estimula lembranças, desperta interesses e cria
expectativas.
As sonoridades ou as experiências sonoras são tomadas, neste
trabalho, como elementos capazes de agrupar os indivíduos em distintos
espaços, que não apenas demarcam as cidades, mas acabam ditando um
conjunto de atividades e comportamentos, que, quando somados ao
território, dão forma a um circuito específico de lazer e sociabilidade.
Damos atenção ao papel duplo da paisagem sonora. O primeiro
tem a ver com a função de demarcar espacialmente a cidade, processo que
acontece no próprio deslocamento de músicos e ouvintes pelo território
urbano em busca de uma experiência sonora específica, o que constrói um
circuito no entorno do som, no caso deste estudo, da música brasileira. O

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 54
segundo papel refere-se a sua contribuição à formação e sustento de
imagens sonoras, o que se dá no momento de percepção e visualização
desse circuito. Partimos, portanto, de uma perspectiva que reconhece a
“música brasileira” enquanto produto comercial, atrativo ao turismo, mas
que vai além disso, vendo-a também como um processo que ultrapassa as
barreiras do sonoro.
Para ilustrar, vejamos a seguinte situação: durante a Copa de 2014,
um dos jogos do Brasil foi exibido para o público na Casa do Brasil, em
Lisboa. A maioria presente era de brasileiros, mesmo assim, antes, no
intervalo e após o jogo, bailarinos faziam apresentações de dança. Suas
roupas estampavam alguns símbolos ligados ao país, como a própria
bandeira, o carnaval e a ideia da mulata e do malandro. A animação pela
vitória do jogo ultrapassou os portões da casa, e já na rua se aglomeraram
alguns brasileiros – inclusive a pesquisadora. Não demorou muito alguns
estrangeiros chegaram para participar da festa, muito mais por curiosidade
e reconhecimento de que ali se tratava de algo ligado ao Brasil.
Em meio a toda aquela agitação, um casal de turistas franceses
puxou uma conversa sobre o jogo, perguntaram se estávamos felizes pelo
resultado. Depois disseram que uma das coisas que mais gostavam em
Lisboa era justamente a presença marcante da música brasileira, que, uma
vez na cidade, as suas atividades de lazer à noite eram focadas em perseguir,
por assim dizer, esse som e seus espaços, uma opinião compartilhada por
outros turistas ali presentes.
Essas expressões “de fora” fazem-nos entender a importância ou
necessidade da criação de uma narrativa “oficial” no que diz respeito a
“música brasileira” em Portugal: é a “banda que nasce da fusão de
influências de dois países irmãos”, ou “o resultado da mistura de
culturas”, ou o gênero que é “primo do fado”, ou ainda a “música de raízes
portuguesas”. Observamos, portanto, a preocupação em elencar símbolos
que promovam ou retomem as ligações históricas entre os países, em um
sentido de afinidade, fraternidade e intercâmbio cultural.
Nesse esforço de demonstrar uma aproximação cultural, as músicas
brasileiras que se destacam – no sentido de que estão presentes em

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estabelecimentos situados na área turística da cidade, ou que aparecem em


programas televisivos, ou ainda, na agenda oficial de atividades artísticas–
são justamente aquelas que em suas histórias de origem buscam a ideia de
intercâmbio de culturas e/ou a mistura de sotaques é evidenciada: choro,
samba e ritmos juninos.
Deste modo, a “música brasileira” vai fazendo parte da imagem
sonora da cidade de Lisboa, assim como outros estilos da chamada
“música migrante” (MONTEIRO, 2011). Essa multiplicidade de sons
tanto funciona como elemento de identificação, para os que estão fora de
seus países, quanto como produto estetizado a ser vendido pela mídia, por
pequenos empresários, pelos Estado português e brasileiro ou até pelos
próprios músicos.
Podemos mencionar alguns exemplos de textos que se debruçaram
sobre música em Lisboa, com foco em outros estilos musicais migrantes,
como o trabalho de Marcon (2013) sobre o kuduro em Portugal4, um estilo
de música eletrônica surgida em Luanda, com forte representação entre os
jovens imigrantes angolanos. Diz ele: “a partir de tal repertório, esses
jovens socializam-se e mantêm um senso de experiências coletivas
próprias, que reproduz os sons, a linguagem oral e corporal dos países de
origem ou de ideias generalizadas que se constroem sobre as origens
nacionais ou sobre a África” (MARCON, 2013).
Marcon (2013) discute o processo de produção, reprodução e
circulação do kuduro, além das suas formas de identificação e
representação. Para o autor, existe um estilo de vida ligado a esse tipo de
música, o que faz com que este represente uma importante forma de
sociabilidade da juventude periférica da região metropolitana de Lisboa.
Aos poucos, o kuduro sai das periferias e passa a ser apresentado como
música lusófona5, que integra programas de rádio e TV locais, um fato que
nos permite pensar sobre as novas configurações sociais e políticas no
cenário pós-colonial.
Já Monteiro (2011) estudou a diáspora cabo-verdiana a partir da
música6, esta como principal elemento cultural utilizado ou evocado por
esses imigrantes. Ele apresenta como ela vai tomando espaço no cenário

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 56
musical português, a partir de uma espécie de retrospectiva sobre a
presença desta no país, e, nesse percurso, apresenta-nos os espaços em
Lisboa em que podemos ouvir tal gênero e as formas de sociabilidade ali
encontradas.
Assim como acontece com a música cabo-verdiana, a presença da
“música brasileira” em Lisboa não é recente. Desde os anos de 1950 é
possível observar a sua inserção no mercado fonográfico português, por
meio de programas de rádio e de apresentações de artistas nacionais. A
“música brasileira” aparece aqui como parte de um projeto político que
tenciona a aproximação das culturas. É nesse ponto que esse tipo de
sonoridade se difere de outras “músicas migrantes”, pois não parece ter
havido “lutas”, por assim dizer, para a conquista de seu espaço fora do
Brasil. Por vezes ela é apresentada como o ponto positivo do processo de
colonização, um discurso muito presente entre os que organizam,
divulgam e frequentam o circuito que estudamos.
Na atualidade, a “música brasileira” em Portugal se apresenta ainda
com mais força. Esse tipo de expressão sonora forma na referida cidade
diferentes circuitos de lazer e sociabilidade, uns, voltados ao turismo local
– esse é o que estamos estudando, o qual se encontra desenhado dentro do
circuito turístico da cidade – outros, aos brasileiros que residem em
Lisboa.
Para ilustrar a presença dessa música na cidade, descreveremos duas
situações de campo ocorridas no ano de 2015, intituladas de “Ouvindo a
“música brasileira” em Lisboa, ou, enquanto espero os entrevistados”:
Situação 1

Na primeira semana de dezembro em Lisboa, no ano de 2015,


após um longo período de contato via redes sociais
(Facebook) consegui marcar uma entrevista com o
líder/organizador do festival Baião in Lisboa e do grupo Luso-
Baião e professor de forró. Essa entrevista foi marcada para o
início da tarde do dia 07, uma segunda- feira. Nosso primeiro
contato no mundo real se daria em meio aos preparativos para
o festival, na sede do projeto e local onde a maior parte das
atividades se desenvolveria, no Ateneu Comercial de Lisboa,
localizado na Rua Portas de Santo Antão, número 110, uma

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área bastante movimentada da cidade, devido ao comércio


voltado ao turismo.
Naquela altura, a única forma de comunicação que tinha com
o entrevistado era o Facebook e como tinha pouco tempo que
estava na cidade, só conseguia acessar a rede de minha casa
temporária. Acontece que no período que saí do residencial
para o Ateneu, o futuro entrevistado enviou uma mensagem
alterando a hora da entrevista, agora marcada para o final da
tarde, uma informação que não foi vista a tempo.
Depois de aguardar por mais de uma hora, observando toda a
movimentação no prédio, resolvi almoçar em um Restaurante
que tinha wi-fi grátis para poder verificar o que aconteceu. Em
frente ao restaurante, um teatro, o Politeama (Rua Portas de
Santo Antão, 109) que em alto-falantes divulgava um novo
espetáculo musical chamado República das Bananas que
trazia em sua trilha sonora músicas de Carmen Miranda, na
verdade a chamada ao público foi feita em um pot-pourri7 de
músicas dessa cantora, apresentada como a portuguesa que
divulgou o samba para o mundo – mais tarde soube que o foco
do espetáculo não estava na música e sim em uma crítica a
Portugal dos dias de hoje, apresentada como musical.
Naquele momento, minha atenção se concentrou na
movimentação às portas do Politeama e em uma pergunta:
por que a chamada para o espetáculo dava tanto foco a
Carmen Miranda e sua ligação com o Brasil, se esse não é o
propósito do show?
Ainda na mesma rua, ainda aguardando notícias do
entrevistado, em um outro teatro, um outdoor anunciando o
show de natal da cantora brasileira de música sertaneja, Paula
Fernandes. Pois bem, chega a hora da entrevista e subo a
ladeira ao lado do Ateneu (era a entrada para o Espaço Baião),
passo por um bar alternativo ainda não aberto, em que os que
organizavam o espaço ouviam rock progressivo brasileiro dos
anos 70 e chego ao espaço de forró. Encontro ali um amplo
salão para as aulas de dança, com balcões forrados de chita
(tecido de algodão muito colorido, conhecido no Brasil por
ser usado na indumentária junina), paredes cobertas de
esteiras de palha, de cordéis e xilogravuras. Na vitrola, um
disco de Luiz Gonzaga, e abaixo dela outros discos de artistas
regionais. Num canto, potes de barro e cartazes dos festivais
anteriores.
A entrevista é realizada e ao final desta o organizador do
Festival expõe sua interação com demais grupos de “música
brasileira” na cidade, porém, como ouvinte e apreciador, não
como músico. Ele menciona um evento que aconteceria em

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 58
algumas horas, uma apresentação de uma roda de choro no
bar Bartô. Seguindo a sonoridade – na verdade a trilha da
“música brasileira” em Lisboa e nas imediações – compareço à
dita roda de choro.
No Bartô (bar do espaço do chamado Chapitô, uma
Organização Não Governamental voltada para as artes) se
apresentava o grupo Clube do Choro de Lisboa, que
anteriormente atuava nas segundas-feiras no Miniteatro da
Calçada (uma associação cultural que promovia teatro,
música, cinema, dança, artes em geral, que se situava na
Calçada do Combro). Para minha surpresa (não havia
informações nas páginas das redes sociais sobre a mudança
dos locais de apresentação do grupo) os encontros do grupo
no Bartô se tornaram permanentes, pois o líder do grupo e
antigo dono do miniteatro passou a administrar o espaço. Ele
é um antigo conhecido, anteriormente entrevistado
enquanto atuava no Miniteatro (na ocasião da primeira visita
a campo). Falo de minha ida ao Espaço Baião e daí ele me
apresenta outro professor de forró e capoeirista, um brasileiro
do Estado de Pernambuco, que mantém um projeto de dança
afro-brasileira no Bairro Alto.
Na volta a pé para casa – que não era muito distante dali –
lembro de prestar atenção a toda aquela decoração natalina e
pensar que, em meio a todo aquele cenário de luzes e cores, o
que se houve na cidade não são os célebres sinos de natal, mas
muito choro, forró e samba. Mas poderia ser apenas um
ouvido condicionado...

Situação 2

Na primeira vez que estive no Botequim Brasil – um dos locais


que faz parte do circuito de “música brasileira” estudado neste
trabalho – cheguei um pouco mais cedo do que o horário
habitual de efervescência do espaço. Depois de falar com os
músicos que estavam ensaiando para a apresentação de logo
mais, fui tomar um café em um estabelecimento próximo dali,
o Café a Brasileira, muito frequentado por turistas que
querem fazer seu registro com a estátua de Fernando Pessoa.
Naquele dia havia um grupo afro-caribenho que se
apresentava em frente ao café. Traziam em seu repertorio
músicas dançantes que animavam os turistas, incluindo o
samba (tipo escola de samba). Interessante que dois dos
músicos trajavam um agasalho verde e amarelo, com a
bandeira do Brasil. O cajón (instrumento de percussão
originário do Peru que parece uma caixa em que o músico

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senta em cima) também estampava a bandeira, apesar de não


haver nenhum brasileiro naquela formação.
Essa não foi a única surpresa da noite. Voltando ao Botequim,
ouvi um som muito familiar, o forró. Vinha de um prédio
quase em frente à Praça Luís de Camões. A música vinha do
Centro Cultural Arte Pura (um espaço dedicado a ofertar
aulas de ritmos afro-brasileiros, segundo descrevem em seu
anúncio, com destaque ao maracatu, samba, forró e capoeira.
Esse era o projeto mantido pelo capoeirista pernambucano
que conheci no Clube do Choro de Lisboa (narrado na
Situação 1).

A análise detida dessas situações (não previstas) que se deram


durante a pesquisa de campo nos leva a algumas constatações. A primeira
delas é a de que a cidade corresponde a mais do que um território; ela é
composta também por seus odores, imagens, sentimentos e sonoridades.
Em outras palavras, os sons e demais sentidos são formas de experimentar
a vida urbana, e a música, em especial, tem a capacidade de criar uma
espécie de aura que interfere no próprio cotidiano citadino.
Uma segunda observação se refere ao fato de não existir silêncio na
cidade. A música, dentre os demais sons, é protagonista aqui. Ela se
apresenta como uma “bruma sonora” (SCHAFER, 1998) – expressão que
caracteriza a mistura de múltiplos sons e, consequentemente, a
dificuldade de identificar precisamente o que se ouve – que adentra os
ambientes, uma vez que, na atualidade, a música não depende mais do
tempo e espaço para se fazer ouvida. É estar no Bairro Alto, por exemplo, e
ter os ouvidos invadidos por músicas de diferentes nacionalidades, como a
brasileira, a cabo-verdiana, o próprio fado português – além do ressoar de
vozes e sons urbanos (o barulho do trânsito ou o som das garrafas rolantes
nas ladeiras do Bairro).
As paisagens sonoras que se formam no ambiente citadino
registram também as características de um determinado espaço. No caso
deste trabalho, a presença marcante da “música brasileira” em Lisboa
aponta inicialmente para as consequências do processo de globalização,
que tem como principal efeito a maior circulação de bens culturais, o que
tem interferido nos processos de identificação. Em um segundo

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 60
momento, alerta-nos para o fato de que estamos falando de músicas
ouvidas – em uma mesma língua –oriundas de uma ex-colônia de Portugal,
o que recai na questão da ligação histórica entre os países e as construções
simbólicas divulgadas pelo projeto da lusofonia.
As expressões culturais, como a literatura, as artes, a música, estão
carregadas de imaginários e intencionalidades. Por vezes, os símbolos que
trazem buscam remontar a uma ideia de origem ou de ligações de
afinidade e fraternidade. Para Bhabha, tanto a afiliação quanto o
antagonismo podem ser encarados como estratégias performáticas desse
contato/embate cultural: “Não deve ser lida apressadamente como o
reflexo de traços culturais ou étnicos preestabelecidos, inscritos na lápide
fixa da tradição” (BHABHA, 2013, p.21). Existe, portanto, um complexo
jogo de negociações que precisa ser considerado.
Podemos pensar na música brasileira, e demais estilos da chamada
música lusófona – música produzida nos países que formam a
Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, a CPLP –, atrelada à
imagem da cidade, como uma das formas de negociação. O próprio termo
“música lusófona” pode ser visto como uma dessas estratégias, assim,
diferentes estilos vão sendo incorporados a essa imagem, o que fortalece a
ideia de uma unidade, seja pela língua ou por expressões sonoras
partilhadas. Deste modo, a música atua aqui como elo identificador e
como mediadora das relações entre os países.
Segundo Quintela (2011), desde os anos de 1970 tem havido na
Europa, de forma geral, um investimento ativo no campo das mediações
culturais, cada vez mais direcionadas ao panorama político. Esse fato levou
a um aumento das chamadas políticas culturais patrocinadas pelos
Estados. Nesse contexto, começa a haver um investimento na “reativação”
ou construção de memórias que possam ser compartilhadas através de
práticas coletivas de sociabilidade:
Cada vez mais, encontra nas práticas e consumos culturais um
elemento de reforço da coesão social e da qualificação das
competências individuais. No âmbito desse processo, o setor
cultural veio a ser considerado, a par de outros, como um dos
domínios de competência e atuação direta do Estado,

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fundamental para a criação de melhores condições de


bem-estar e para o reforço da coesão social (QUINTELA,
2011 apud HENRIQUES, 2002).

A música parece cumprir bem esse papel. Essa expressão cultural é


capaz de “atualizar uma identidade de grupo, uma etnicidade, uma
geração” (HENNION, 2003, p. 85). A “música brasileira” em Lisboa
aparece como expressão da afinidade entre os povos, como produto da
união destes, como representação dos cruzamentos culturais, como traço
de identificação.
Por fim, andar pela cidade é também ouvi-la. Através desse sentido,
nós percebemos que nela habitam músicos e que música é procurada e
consumida; observamos quais as características de um tempo ou de uma
sociedade. Ouvir a noite de Lisboa permitiu ainda notar o quão ligada à
“música brasileira” está a imagem dessa cidade e o que isso pode indicar.
Ser “um andarilho na cidade” (CERTEAU, 1994) possibilitou o
desenrolar do que chamamos de situação de campo, mas o encontro dos
locais apresentados nelas se deve, sobretudo, ao fato de aquele tipo de
música ser familiar à pesquisadora em trânsito, que acabou funcionando
como uma espécie de filtro diante da variedade de sons encontrados nos
espaços percorridos: “A escuta é percebida como o centro de um complexo
relacionamento entre o ouvinte e seu meio ambiente, onde todos os sons
pertencem a um campo contínuo de possibilidades dentro do domínio da
música, incorporando sons, ruídos” (PEREIRA, 2007, p.3)
Sabemos que nas relações de sonoridades, memórias são ativadas, o
que pode gerar situações de reconhecimento ou até mesmo
estranhamento. Os sons podem ainda ser motivadores de diferenças
socioespaciais e culturais, uma vez que produz ordens morais, tensões e
valores. No caso do presente trabalho, operam na construção de relações
sociais de indivíduos e grupos, nos processos de identificação e sustento de
estilos de vida.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 62
Acompanhando sonoridades: o mapeamento do circuito turístico de
música brasileira em Lisboa/PT

O consumo da “música brasileira” em Lisboa/PT forma na cidade


mais de um circuito musical. De modo geral, podemos apontar três tipos
de circuitos: um circuito que é mantido e consumido por brasileiros8, um
circuito do “exótico”9 (músicas de diferentes países que possuem esse
apelo), e um circuito que chamamos de oficial, por aparecer na agenda de
atividades culturais da cidade. Trabalhamos aqui com este último, que
além de ser o mais divulgado, está inserido em um circuito turístico-
comercial da cidade.
Mapear o referido circuito foi uma tarefa realizada em dois
momentos distintos da pesquisa, o que se deve ao fato de este estar em
constante processo de mudanças, com saídas de locais ou novas inserções.
O primeiro mapeamento remete ao período de elaboração do projeto de
doutorado, em 2011, após a defesa da dissertação de mestrado com o tema
“Puxo o cavaquinho para cantar de galo”: conflito e solidariedade no circuito do
choro de Aracaju/SE, em que parte das discussões apresentadas foi
submetida à Second International Conference of Young Urban Researchers,
ocorrida em Lisboa/PT. Entre os comentários ouvidos na seção, um
despertou especial curiosidade: “temos muitos grupos de choro na
cidade”. A afirmação acabou direcionando as práticas de lazer durante o
período de permanência na cidade e, de certo modo, apresentou um dos
circuitos de “música brasileira” existente ali.
Realizar o novo mapeamento exigiu o cumprimento de três
importantes etapas de pesquisa. A primeira foi a comparação entre o
circuito previamente identificado, ou seja, aquele que foi construído
durante a elaboração do projeto de doutorado, e o existente na atualidade,
no intuito de perceber a sua dinâmica e fluidez. O cumprimento dessa fase
iniciou-se antes mesmo da primeira visita ao campo, ocorrida no mês de
junho de 2014. Tal etapa contou com a busca, no ambiente virtual, dos
grupos e locais que fizeram parte do que chamaremos aqui de primeiro
circuito (do período de elaboração do projeto), e, posteriormente, com a
extensão da pesquisa online para o termo ““música brasileira em Lisboa”,

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o que acabou revelando alguns outros locais.


Com um pequeno roteiro de espaços a serem visitados, deu-se início
a segunda etapa de pesquisa, com a realização de visitas aos locais
identificados, a fim de estabelecermos os primeiros contatos com os
músicos, professores de dança e os organizadores de eventos que tinham o
foco na música brasileira. Ainda nesse momento, houve o
acompanhamento das atividades virtuais do circuito.
A delimitação do circuito permitiu elaborar uma agenda de
atividades referentes à “música brasileira” em Lisboa/PT. A partir desse
ponto, o passo foi acompanhar com frequência as atividades presenciais
dos grupos, no intuito de perceber a dinâmica dos espaços, o público e os
símbolos ativados para divulgação de suas atividades. A tabela abaixo
apresenta os espaços que compunham o circuito estudado.

Tabela 1: Agenda de “música brasileira” em Lisboa (2014-2016)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 64
A maneira como essas etapas foram desenvolvidas para elaboração
do mapeamento já nos revela uma particularidade que precisa ser
problematizada: a importância de utilização do ambiente virtual para os
grupos e como fonte de pesquisa. O uso de tal recurso precisa ser discutido
por revelar uma importante característica de nossos tempos, que é o uso
crescente do universo virtual e suas redes sociais. Ao mesmo tempo, a
utilização de sites, blogs e páginas das redes sociais divulgam as atividades e
revelam informações sobre os grupos, configurando-se como fontes
relevantes de investigação.
Alguns cientistas sociais, ao longo das últimas décadas, têm
chamado a atenção para a necessidade de pensar as relações sociais de
acordo com as mudanças no campo tecnológico. Nos anos de 1990,
Castells (1999) apontava para a configuração da “sociedade em rede”, uma
sociedade que não poderia ser pensada sem levar em conta os avanços da
internet e as transformações trazidas por esse fator.
Na atual fase do avanço tecnológico, a internet tem se configurado
como importante fonte para a coleta de dados, o que a torna produtiva
para a pesquisa social. Ela nos apresenta a novas possibilidades de
interações, de modo que um número crescente de cientistas sociais tem
seguido as atividades virtuais em seus variados temas de pesquisa. Não
considerar de alguma maneira o universo virtual torna mais difícil
entender – e diria acompanhar – determinadas facetas da vida social e da
cultura:

Os websites de redes sociais levam os complexos marcadores de


várias culturas e ambos manifestam e forjam novas conexões e
comunidades. [...] Não só tornou-se socialmente aceitável que
pessoas busquem e se conectem por meio desse arsenal de
conectividade mediada por computador, como também esses
“lugares” e atividades relacionadas se tornaram lugar-comum
(KOZINETS, 2010, p. 15).

O espaço virtual – como parte do campo de pesquisa a ser


investigado ou como uma das fontes de informação ao pesquisador –
permite considerar alguns elementos importantes, tais como quem está
em determinado ambiente, ou quem divulga e organiza as informações, ou
que tipo de material é levado a público, ou ainda – e talvez o ponto mais

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relevante – o que se pretende representar. Contudo, é preciso levar em


consideração as limitações que esse campo pode oferecer. Estabelecer as
interações adequadas com o pesquisado, ou saber que tipos de
informações poderemos encontrar na rede, configuram algumas das
dificuldades metodológicas do trabalho no universo virtual.
Ao optarmos por fazer uma pesquisa que recorra de alguma forma a
tal espaço, deparamo-nos constantemente com o dilema que Geertz
(1978) já discutia: as interpretações de segunda ou terceira mão. Por
exemplo, no caso deste estudo, temos os que fazem (os músicos, os
produtores e os donos dos estabelecimentos), os que observam e dão suas
interpretações sobre o que eles fazem (público e os donos dos
estabelecimentos em que se apresentam), os que compartilham na rede, e
depois o pesquisador com a tarefa de analisar os significados em torno dos
textos ali apresentados.
Chegamos então a dois caminhos possíveis: usar a internet tanto
como texto que precisa ser interpretado, uma vez que transmite
significados sociais, quanto como espaço onde as interações sociais
também ocorrem. Segundo argumenta Hine (2004), a internet é um
depósito de textos – a serem entendidos no contexto de sua produção – em
que encontramos interações que nos dão pistas sobre as visões de mundo
daqueles que pesquisamos e sobre as estratégias usadas nos processos de
identificação.
Outro ponto que precisamos considerar, ao optarmos por utilizar
tal recurso metodológico de pesquisa, é o fato de a comunicação mediada
por computador, as interações online, poderem ser analisadas como
cultura e/ou como artefato cultural, deste modo, ela é reflexo de uma
sociedade marcada pelo avanço tecnológico.
Se é cultura, a comunicação mediada por computadores é resultado
de uma construção social e analisá-la envolve utilizar os métodos e técnicas
de pesquisa das Ciências Sociais. Nesse percurso, é preciso considerar
como se formam as chamadas comunidades virtuais, as variações do
comportamento online, como os indivíduos jogam com suas identidades.
Entender a internet enquanto artefato cultural significa tomá-la como um

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Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 66
objeto construído discursivamente, que pode ter – e terá – variados
interesses, tais como comerciais, publicitários, entre outros (HINE, 2004).
No caso da construção do mapa do circuito, apesar de este
levantamento contar também com a interação face a face, o uso da rede
enquanto ferramenta de pesquisa foi imprescindível, sobretudo, por
fornecer as indicações dos espaços, por permitir a observação dos tipos de
propaganda que tais locais usam em sua divulgação e por possibilitar o
contato posterior com os músicos e organizadores dos eventos ligados à
“música brasileira” em Lisboa. Seja como cultura ou como artefato
cultural, o fato é que é inegável a contribuição que o uso da internet pode
conferir à pesquisa social.
Precisamos considerar que ao manter uma página na internet, com
fotos de eventos e um cronograma de apresentações, os grupos dedicam
especial cuidado a forma como fazem isso. Por trás de cada escolha terá
uma intenção e esta precisa fazer parte de nossas análises. Na comunicação
virtual, trocamos e compartilhamos mais do que informações: nela
encontramos um complexo sistema de significados, vemos manifestos
valores, costumes, modos de pensar.
Se a comunicação é representação simbólica, uma vez que está
baseada na produção e consumo de sinais, o que entendemos por
realidade sempre foi virtual, pois virtual significa o que existe na prática,
ainda que não estritamente. A multimídia nos apresenta a virtualidade
real, ou seja, “um sistema em que a própria realidade é inteiramente
captada, totalmente imersa em uma composição de imagens virtuais no
mundo do faz de conta, no qual as aparências não apenas se encontram na
tela comunicadora da experiência, mas se transforma na experiência”
(CASTELLS, 1999, p. 395).
De fato, o acompanhamento das atividades sonoras dos grupos
pesquisados em um meio virtual apresenta-nos um campo importante de
pesquisa, porém, o mapeamento do circuito que escolhemos estudar só foi
completado por aquilo que Certeau (2007) chamou de “caminhada pelo
cotidiano na cidade”, que permitiu conhecer grupos e locais que não são
encontrados no espaço virtual ou em propagandas (folders, cartazes) da

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cidade. Essa seria a nossa terceira fase do levantamento.


Em uma tarde de domingo, após ter visitado um dos mais
importantes pontos turísticos da cidade, o Castelo de São Jorge, caminhar
até a hospedagem (localizada na Avenida Almirante Reis 34, Anjos)
pareceu uma boa opção. Depois de alguns poucos minutos de percurso,
veio a percepção de que talvez o caminho tomado não era o certo, e de fato
não era. Esse “desvio da rota” saiu em uma rua onde havia um café com
música ao vivo e um cantor brasileiro tocando Toquinho e Vinicius de
Morais. Em conversa com um dos garçons e com o músico, a informação
obtida foi a de que aos domingos (nos períodos de alta estação) costumava
acontecer ali um programa com músicas brasileiras, o que era bem
apreciado por turistas de diferentes locais.
Acompanhar o som que vinha daquele café nos pôs na rua de um
outro local, na verdade, um velho conhecido, o Bistrô Canto da Vila, que
fez parte do primeiro mapeamento, mas já não estava mais no mesmo
endereço. Na internet era possível encontrar sua nova localização, mas não
informações sobre atividades musicais, de modo que por um momento
este não fez parte da rota da pesquisa de campo. Naquele domingo,
encontramos uma porta fechada, na entrada de uma vila, sem maiores
informações. O fato é que o Bistrô estava agora vizinho a uma casa de fado,
então, dias depois voltamos àquela rua, já com a intenção de conhecer essa
casa. Nesse dia, observamos movimento no local e um som familiar: era o
Canto da Vila com as portas abertas e em pleno funcionamento de suas
atividades11.
Essa caminhada e o que ela acabou revelando traz à tona a
importância de adotarmos múltiplas abordagens quando temos a
intenção de estudar grupos urbanos ou as dinâmicas que acontecem no
interior das cidades. Como nos diz Benjamin (1994) sobre ser um flâneur,
no sentido de passear pelo tecido urbano, percebendo, a cada nova
caminhada, novos significados (ou como propôs Magnani (2002): ver a
paisagem urbana de perto e de dentro):
O pesquisador não apenas apreende o significado do arranjo
do nativo, mas ao perceber esse significado e conseguir

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Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 68
descrevê-lo agora nos seus termos (dele, analista), é capaz de
atestar sua lógica e incorporá-la de acordo com os padrões de
seu próprio aparato intelectual e até mesmo de seu sistema de
valores. Num nível mais geral essa experiência tem como
condição o pressuposto de que ambos, pesquisador e nativo,
participam de um mesmo plano: o dos “fenômenos
fundamentais da vida do espírito” (Lévi-Strauss, 1971, p. 28).
Ambos são dotados dos mesmos processos cognitivos que lhes
permitem, numa instância mais profunda, uma comunhão
para além das diferenças culturais. Afinal, “as milhares de
sociedades que existem ou existiram sobre a superfície da terra
são humanas e por esse título participamos delas de maneira
subjetiva: poderíamos ter feito parte delas e portanto
podemos tentar compreendê-las como se fôssemos parte
delas” (idem, p. 26) (MAGNANI, 2002, p. 16 e 17).

“De perto e de dentro” conseguimos perceber os arranjos espaciais


dos grupos, entender os critérios mobilizados em suas escolhas e
acompanhar as suas atividades cotidianas. É preciso, contudo, tomar
cuidado para não reduzirmos a análise à visão particularista do fenômeno.
O que o autor nos alerta é sobre a necessidade de observarmos os nossos
objetos de estudos de forma dinâmica e completa.
No caso desta pesquisa, a combinação entre observação de campo e
acompanhamento das atividades desenvolvidas em meio digital são duas
abordagens que se complementam e ajudam na aproximação com o
objeto. A primeira por permitir ver a dinâmica do circuito, como este se
organiza, quem são os seus frequentadores, além da interação face a face. A
segunda, por conseguirmos acompanhar uma agenda de atividades que
envolvem a “música brasileira” na cidade, estando ou não lá, como
também por termos acesso às imagens que os que mantêm e frequentam o
circuito pretendem passar sobre seus eventos e sobre si mesmos.
O resultado dessa combinação real/virtual está demonstrado no
mapa que se segue. A intenção foi expor de forma objetiva o processo de
levantamento dos locais que compõem o referido circuito12. Como
trabalhamos com a ideia de circuito, o que implica movimentar-se pelo
espaço urbano, demarcando nesse deslocamento uma rede de atividades, a
utilização de um mapa é importante tanto para apresentação do objeto,

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quanto para observações de características desse circuito.


O levantamento do circuito e de suas paisagens sonoras, bem como
a observação dessa agenda de atividades, revela mais do que os atuais
espaços que o compõem. Em um sentido mais geral, podemos refletir
sobre a escolha dos gêneros musicais executados, os nomes que
escolheram para sua propaganda e que tipos de imagem acionam na
divulgação dos eventos e o sentido de fazer isso. Apresenta ainda as
possíveis ligações entre os grupos, uma vez que cada espaço tem horário e
dias diferentes de apresentação, o que pode indicar uma interligação entre
eles e faz-nos pensar sobre a concentração dos locais em um determinado
ponto da cidade.

Prática musical e formas de representação

A música e o processo de identificação podem ser entendidos como


uma relação de duas dimensões: a primeira remete a uma experiência
privada, demonstrada na escolha que um indivíduo faz por um dado tipo
de música; a segunda forma é também uma maneira de inserção em um
grupo de estilo (CONTADOR, 2001). Deste modo, à medida que
declaramos uma determinada preferência musical, nós afirmamos
também que nos distinguimos no interior de uma sociedade.
O processo de identificação acontece, desta maneira, a partir da
noção do eu e dos outros. Baseados nessa afirmativa, entendemos a música
como uma dimensão simbólica que possui um caráter de identificação e de
diferenciação. A produção e a interpretação musical são marcas
identitárias, “o eu e o outro mergulhados em um território imagético”
(CONTADOR, 2004).
Para Contador (2004), as identidades sociais ligadas à produção
artística devem ser compreendidas a partir da ideia de etiquetagem. A
música, dentre outras produções, precisa de uma marca, daquilo que a
torna diferente dos demais estilos e que ao mesmo tempo faz com que esta
seja reconhecida pelos que compartilham uma mesma escolha sonora. Os
que executam um determinado gênero musical precisam da etiqueta e por

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Os sons e os sentidos: música e formas de


representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 70
meio dela se tornam reconhecíveis. Assim também é com os ouvintes, que
não apenas identificam a etiqueta, mas decidem se vão ou não “usá-la”.
No campo da “música brasileira” fora do país, corroboramos da
ideia de Contador de que a brasilidade é por si só uma etiqueta, um
espaço, um território, que delimita claramente o que se encaixa nessa
definição do que se afasta por completo dela: “A identidade sonora é por
isso, esse ato performativo do eu, cujos contornos são modulados pela
coerência atribuída aos signos extraídos de referências particulares, que
são outras tantas histórias e sonoridades com valor colectivo”
(CONTADOR, 2004, p. 159).
Ao evocar uma relação entre as experiências sonoras e estéticas, a
música ajuda a construir um imaginário, que, no caso desta pesquisa, elege
critérios que têm o poder de incluir ou excluir determinadas características
e práticas, une e/ou afasta os grupos, organiza e dita as lógicas de
funcionamento do circuito que nos propomos a estudar. Os discursos e os
sistemas de representações são os que constroem os lugares a partir dos
quais os indivíduos se posicionam:
Todas as práticas em que se intercambiam símbolos, todas as
práticas ligadas ao performático e às performances, com sua
clara base corporal, transformando-se em discursos, e tais
discursos têm implicações identitárias sem que seja necessária
qualquer troca de palavras. É dentro dessa concepção de
discursos que as práticas musicais também se transformam em
discursos, com precisas influências identitárias (VILA, 2012,
p. 250).

A representação é, portanto, algo visível. Os que representam são os


que possuem o poder de fazer isso, como também são os que definem que
elementos servem como elos de identificação. A construção narrativa do
que representa a “música brasileira” elabora alguns circuitos em torno
desse som e cada um deles tende a eleger e a valorizar diferentes critérios de
identificação: “Aquilo que é deixado de fora é sempre parte da definição e
da constituição do dentro. A definição daquilo que é considerado
aceitável, desejável, natural, é inteiramente dependente daquilo que é
considerado objeto, rejeitável, antinatural” (SILVA, 2000, p. 84).

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Por meio dessas várias classificações se formam diferentes circuitos


musicais em torno de uma mesma etiqueta (“música brasileira”), com
distintas formas de organização e dinâmica interna, bem como perfis
diferenciados de consumidores e produtores, possíveis de serem pensados
a partir da identificação com determinados símbolos, encontrados nos
espaços que compõem o circuito: “A experiência identitária musical em
movimento, em constante transformação, alude à performance, à estória e
à estética, no sentido em que se relaciona com o imaginário, com uma
imagética visual” (CONTADOR, 2001).
Quando observamos, por exemplo, a formação de diferentes
itinerários em torno do que é classificado como música brasileira, e nesse
contexto, distintos circuitos ligados a esse tipo de música, quando os
indivíduos escolhem frequentar este e não aquele lugar, vemos em ação o
papel representativo dos processos de identificação. Dito de outro modo, a
partir do momento em que aqueles que sustentam e frequentam o circuito
selecionam traços simbólicos que demarcam o que seria a música
brasileira, eles estabelecem que gêneros musicais não podem ser
classificados de tal forma.
Nesse sentido, podemos refletir sobre alguns pontos que se
destacam no circuito de “música brasileira” que estudamos. O primeiro
deles tem a ver com a seleção dos gêneros musicais – samba, choro, MPB e
forró – que são vinculados à “música brasileira”, que já não são
necessariamente os hits do momento no Brasil. Esse fato nos leva à
segunda questão: a visibilidade evidenciada nas propagandas turísticas,
nas redes sociais e nas informações sobre as atividades artísticas da cidade.
Em terceiro, observamos o apelo simbólico dos espaços, que reconstroem
ou reapresentam determinadas imagens ligadas ao país, como a figura do
malandro, da mulata e o caráter festivo do brasileiro. Por fim, temos a
identificação dos frequentadores dos espaços com tais símbolos, e nessa
escolha a demarcação de um circuito específico de música brasileira.
Os trabalhos de Frith (1996) caminham para a direção de que a
música articula as representações do indivíduo, nesse sentido, “fazer
música não é uma maneira de expressar ideias, é uma maneira de vivê-las”

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representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 72
(FRITH, 1996, p. 11). Ele diz:
qu a n d o re a g i m o s a n t e u m a c a n ç ã o , n o s ve m o s
inevitavelmente arrastados a alianças emocionais com os
músicos e com todos os outros fãs dos músicos em questão.
Devido a seu caráter abstrato, a música é, por natureza, uma
forma individualizante [...]. Ao mesmo tempo, e igualmente
significativo, a música é obviamente coletiva [...]. Alguém mais
tem estabelecido as convenções, que são claramente sociais e
claramente separadas de nós. A música representa, simboliza
e oferece a experiência imediata de uma identidade coletiva
(FRITH, 1996, p. 121).

A performance musical articula identidades construídas nas


experiências e nas memórias que invocadas (lembram o nosso passado,
uma narrativa compartilhada, etc.). Para Vila (2012), é esse ponto que
coloca a música como a expressão cultural de maior importância, em
termos de processos de identificação. Segundo o autor, ela articula a
identificação (processo subjetivo) ao corpo (matéria):
Uma determinada prática musical ajuda na articulação de
uma particular, imaginária identidade narrativizada ancorada
no corpo, quando os executantes e os ouvintes de tal música
sentem que ela, de seus diferentes componentes: som, letra,
interpretação etc. oferece elementos identificatórios
(evidentemente, ao longo de um complicado processo de
negociação entre as interpelações musicais e as linhas
argumentais de suas narrativas) para os esboços de tramas
argumentativas (de identidades existentes ou imaginadas) que
organizam, provisória e localmente, suas narrativas
identitárias em encontros particulares (VILA, 2012, p. 263-
264).

O processo a que o autor se refere é o de, por exemplo, ser músico e


estar fora de seu país e primar por executar músicas do cancioneiro
popular (o relato de músicos do circuito), ou acompanhar um som familiar
na cidade (como se deu o interesse da pesquisa e a descobertas de alguns
dos espaços do circuito); ou ainda escolher um determinado tipo de
música pelas experiências que acredita que esta pode proporcionar (relato
de alguns entrevistados entre os frequentadores do circuito):

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O indivíduo vai ao encontro da música com esboços de


tramas argumentais que, uma vez chegado o momento da
escuta ou da dança, relacionam-se com os distintos elementos
simbólicos (alguns dos quais são interpelações lisas e planas)
que a música lhes propõe. Alguns desses esboços são mais
estruturados e, por isso, oferecem um menor grau de
liberdade em relação à interpelação musical que outros menos
estruturados. Isso não quer dizer que haja uma relação
unívoca entre esboços de tramas argumentais e interpelações
musicais. E isso ocorre por várias razões. Primeiro, porque na
relação com a música entra em ação o mesmo tipo de ativação
performativa que ocorre em qualquer encontro identitário,
em que a performance é o que, em definitivo, determina o
tipo de identificação que se ativa local e provisoriamente.
Segundo, porque a música é muito mais polissêmica que a fala
e ativa possibilidades de identificação múltiplas em relação a
seus diferentes componentes (som, letra, atuação, o que se
comenta da música etc.) (VILA, 2012, p. 270).

É preciso destacar que os indivíduos carregam consigo uma vastidão


de narrativas que interferem diretamente no processo de identificação,
recepção dos sons, bem como suas performances. Por exemplo, em uma
das noites de choro no Bartô, o Clube do Choro tocou uma conhecida
música, intitulada Carinhoso, de autoria de Pixinguinha13. De repente, um
grupo de brasileiros em uma das mesas começa a cantá-la e logo os que
conheciam a letra acompanham, inclusive os músicos. Os que não sabiam,
olhavam admirados – e até mesmo tentando entender o que se passava –
para o grande coro que se formou no local. Toda a atenção recebida
naquela “performance de grupo” acabou dando o tom da noite, pois cada
vez mais animados, os brasileiros cantavam os “sons da terra natal” e os
músicos, por sua vez, executavam choros com letras, o que não costumava
ser comum ao repertório do grupo.
Uma situação semelhante se deu no Canto da Vila, no seu primeiro
espaço. Em uma certa noite, o local se tornou um grande atrativo para
jovens que estavam aproveitando a noite no Bairro Alto. Isso se deu pela
interação entre brasileiros do público com os músicos da ocasião (pelo
pedido de músicas), todos com o objetivo de passar a melhor impressão

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

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representação no circuito da música brasileira em Lisboa/Pt 74
sobre o Brasil, principalmente no quesito animação.
Nesse sentido, podemos afirmar que os diferentes critérios de
identificação se articulam com determinadas formas de representação.
Essas formas de identificação – pela nacionalidade, pelas lembranças
pessoais, pelas expectativas – contribuem para o sustento das atividades do
circuito de música que nos propomos a estudar. A observação dos espaços,
as entrevistas com seus organizadores e a conversa com os frequentadores
nos permitem elaborar um quadro geral dos critérios de identificação.

*****

Procuramos discutir a relevância do estudo das sonoridades para a


compreensão das dinâmicas do cotidiano das modernas cidades, e no
estabelecimento de relações de identificação e/ou diferenças.
Defendemos que os sons podem nos ajudar a compreender um dado
contexto social, suas hierarquias, cisões e símbolos. Nesse percurso
destacamos inicialmente o valor do estudo da música para as Ciências
Sociais, sobretudo no entendimento na construção e manutenção de
estilos de vida, bem como das imagens das cidades modernas.
Defendemos que o circuito de “música brasileira” em Lisboa é composto
por várias paisagens sonoras, que demarcam o espaço urbano por meio da
manutenção de um conjunto de atividades e constroem representações
sobre a referida cidade – o que é feito quando os produtores e
consumidores selecionam traços simbólicos que delimitam o que seria a
música brasileira.

Notas

1. As discussões apresentadas no artigo fazem parte da pesquisa de doutorado


com bolsa, financiado pela CAPES, concluído em fevereiro de 2018.
2. A opção de usarmos aspas em referência a música brasileira decorre do fato de
reconhecermos que diferentes grupos possuem distintas visões sobre o que
seria a tal música brasileira.
3. As novas paisagens sonoras, as constituídas após a Revolução Industrial, seriam
marcadas pela baixa fidelidade de sons (lo-fi), o que se deve a grande

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quantidade de informações sonoras que a modernidade apresentará. A música


merece uma atenção especial, pois esta representa uma primeira tentativa
humana de fixação de sons, de engessamento destes.
4. Em O kuduro como expressão da juventude em Portugal: estilos de vida e processos de
identificação.
5. Termo usado em referência a estilos musicais produzidos em Angola, Brasil,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique, Portugal, São Tomé e Príncipe e
Timor-Leste.
6. Em Música Migrante em Lisboa: trajectos e práticas de músicos cabo-verdianos.
7. Modo de executar várias músicas em uma única faixa.
8. Músicas que são populares no Brasil, como o sertanejo e o axé baiano.
9. Em geral músicas latinas e africanas.
10. Informação dada pelo proprietário do estabelecimento, o que serve, inclusive,
como propaganda comercial.
11. Depois de 2016 houve uma diminuição das atividades musicais nesse local.
12. Nessa etapa de trabalhos, nós precisamos recorrer ao Google Maps para
ilustração do mapeamento.
13. ‘‘ Maestro, compositor, saxofonista e arranjador brasileiro, a autor de Carinhoso
e Lamentos, considerado um dos maiores compositores da música popular
brasileira, contribuiu diretamente para o choro. Integrou os grupos Caxangá e
Oito Batutas e com este último saiu em turnê internacional, apresentando a
música popular brasileira’’. Fonte: https://pixinguinha.com.br/.

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de 2014.

79 Daniela Moura Bezerra Silva


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 80-103
ISSN: 2446-8290

“Avisa lá que eu vou”: samba, samba-reggae


e batucada em Barcelona, Catalunya

Lisabete Coradini
Universidade Federal do Rio Grande do Norte
lisacoradini@gmail.com

Resumo: Trata-se de um trabalho sobre novos espaços sonoros e novas maneiras de viver a
música brasileira no exterior. Analisei como a internacionalização da música brasileira e a
chegada de imigrantes brasileiros proporcionaram a criação de novas cenas musicais na cidade de
Barcelona, Catalunya. Realizei um mapeamento de determinadas práticas de consumo,
produção e recepção musical por meio do samba, samba-reggae e batucada (festas populares,
festas mayores, correfocs, carnaval, festa de Santa Eulália, Semana Santa). As análises teóricas
seguiram os princípios e ferramentas da antropologia urbana, antropologia sonora e audiovisual.
O que apresento é o resultado ainda parcial dessa pesquisa realizada durante meu pós-doutorado
no GRAFO (Equipos de Investigación en Antropología Fundamental y Orientada), Universidad
Autonoma de Barcelona (UAB), no período entre julho 2017 e julho de 2018.
Palavras-chave: Antropologia Sonora; Samba; Batucada; Barcelona.

80
“Avisa lá que eu vou”: samba, samba-reggae
and batucada in Barcelona, Catalunya

Abstract: This is a study on new soundscapes and new ways of experiencing Brazilian music
overseas. I have analyzed how the internationalization of the Brazilian music and the settling of
Brazilian immigrants led to the creation of new musical contexts in the city of Barcelona,
Catalunya. I've mapped certain consumption practices, musical production and reception
through samba, samba-reggae and batucada (popular festivities, festas mayores, correfocs,
carnival, Festival of Santa Eulália, Holy Week). The theoretical analyses followed the principles
and tools of urban and audio-visual anthropology, and anthropology of sound. Herein I present
the partial results of the research conducted during my postdoctoral stage at GRAFO (Equipos de
Investigación en Antropología Fundamental y Orientada), Universidad Autonoma de
Barcelona (UAB), between July 2017 and July 2018.
Keywords: Anthropology; Audio-Visual; Anthropology; Samba; Batucada; Barcelona.

81
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 80-103
ISSN: 2446-8290

“Avisa lá que eu vou”: samba, samba-reggae


y batucada en Barcelona, Catalunya

Resumen: Se trata de un trabajo sobre nuevos espacios sonoros y nuevas maneras de viver la
musica brasileira no exterior. Se analizó cómo la internacionalización de la música brasileña y la
llegada de inmigrantes brasileños propició la creación de nuevas cenas musicales en Bracelona,
catalunya.. Se realizó un mapeo de determinadas prácticas de consumo, producción y
receptividad musical através del samba, samba-reggae y batucada (fiestas populares, efemérides,
correfocs, carnaval, fiesta de Santa Eulalia, Semana Santa). Los análisis teóricos siguieron los
principios y herramientas de la antropología urbana, la antropología del sonido y el audiovisual.
Lo que presento es el resultado aún parcial de esta investigación llevada a cabo durante mi
investigación posdoctoral en GRAFO (Equipo de Investigación em Antropología Fundamental y
Orientada), Universidad Autónoma de Barcelona (UAB), entre julio de 2017 y julio de 2018.
Palabras clave: Antropología; Antropología audiovisual; Samba; Batucada;
Barcelona.

82
Introdução

O sentido da audição não pode ser desligado à vontade. Não


existem pálpebras auditivas. Quando dormimos, nossa
percepção sonora é a última porta a se fechar, e é também a
primeira a se abrir quando acordamos (SCHAFER. 2001,
p.29).

[...] Entrei em contacto, aqui, com um grupo de jovens


escritores catalães que publicam duas revistas. Clandestinas,
esclareço, porque o catalão, desde 1939, é perseguido aqui. A
princípio não podiam nem falar; a partir do desembarque dos
americanos na África, passaram a tolerar a língua oral; a partir
de 1945, fim da guerra, passaram a permitir os livros em
catalão, se em pequenas tiragens fora do comércio; e,
finalmente, de um ano para cá, permitem os livros – com
restrições – mas não as revistas e os jornais. Como eu ia
dizendo, acima, conheço esses jovens catalães, ávidos de
intercâmbio e de que se conheça, fora da península, sua
“cultura ameaçada” (JOÃO CABRAL,1948, p89).

Com o objetivo de dar continuidade às pesquisas e às atividades que


venho desenvolvendo como docente do Departamento de Antropologia
da UFRN e coordenadora do Núcleo de Antropologia Visual (NAVIS),
encaminhei um projeto a ser desenvolvido na UAB, em Barcelona, cujo
objetivo principal era o de questionar e refletir sobre metodologias
audiovisuais e sonoras, baseado na vertente prática do meu trabalho como
realizadora de documentários etnográficos, aos quais me dedico desde
2000. E finalmente, em diálogo com o Grupo de Pesquisa GRAFOS
(UAB), o projeto mais amplo ganhou novos desmembramentos. Assim, a
minha investigação passou a abordar um trajeto muito particular
percorrido por algumas manifestações da música brasileira na Espanha,
que resultou no projeto “tecendo redes: Música brasileira em Barcelona” e
no documentário “As vozes femininas no samba em Barcelona”. O que
apresento é o resultado ainda parcial dessa pesquisa realizada durante meu
pós-doutorado, no período de julho de 2017 e julho de 20181.
Venho problematizando um histórico de pesquisa e debates sobre a
antropologia urbana, audiovisual e, mais recentemente, sonora. As

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ISSN: 2446-8290

inovações tecnológicas estão na origem dessa nova atitude metodológica


que, além de criar condições para a nova forma de observação das
atividades humanas, também proporciona uma nova forma de apresentar
e divulgar os resultados da pesquisa. Além de tratar dos desafios
contemporâneos, a minha proposta faz parte de uma perspectiva crítica,
realizando trabalhos compartilhados com os interlocutores.
Hoje temos a tecnologia como aliada. Qualquer câmera
profissional fotográfica grava imagens e sons em alta definição e, desta
forma, podemos realizar excelentes etnografias audiovisuais. Se temos a
dinamização da técnica a nosso favor, faz-se necessária uma reflexão sobre
métodos que potencializem a relação e o convívio dos etnógrafos
audiovisuais com os temas a serem abordados.
Segundo Novaes (2008), “o mundo de hoje é, cada vez mais, um mundo
de imagens e de interatividade”. A antropologia até pouco tempo tinha sido,
predominantemente, uma disciplina de palavras: uma disciplina na qual
se fala, sobre a qual se escreve e que se lê. A pesquisa com uso da imagem
nas Ciências Humanas não é só uma estratégia de captação de dados e
ilustração do contexto de pesquisa, mas ela acontece na construção
conceitual e de interpretação da realidade social no momento da ação. No
campo da Antropologia Audiovisual Brasileira, entre os autores que
refletem sobre o lugar da Etnografia e da história da Antropologia,
destacaria Clarice Peixoto (1999), que revela, através de suas experiências,
como apresentar cinematograficamente os resultados de uma pesquisa;
Eckert e Rocha (2014), que propõem uma etnografia da duração nas
etnografias urbanas; Satiko e Caffé (2014), que falam sobre a “ausculta
audiovisual” na produção audiovisual; e Ana Lúcia Ferraz (2010) que
discute a noção de tempo nos filmes etnográficos.
Afinal, qual é o lugar do visual e do som na antropologia social? De
que forma construímos algo no audiovisual com imersão? Mergulhando
profundamente com o compromisso e determinação de levar um pouco da
história de vida de uma pessoa ou de um lugar com delicadeza para muitos.
Esta é a metodologia mais adequada para construir algo com
humanização. Se tivermos tempo para compreender o tempo do outro e

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 84
suas escolhas, mostramos interesse em ouvir suas histórias e isso vem a ser
um compromisso com o registro das imagens construídas. Esse
compromisso visa ampliar os diálogos sobre as metodologias críticas na
orientação do fortalecimento de um campo acadêmico em antropologia
urbana, visual e sonora.
Em 2014, na minha primeira exploração etnográfica em Barcelona,
tive acesso a informações importantes a partir das investigações sobre o
tratamento informativo das imigrações realizadas pelos grupos de pesquisa
MIGRACOM e GRAFOS da UAB, nos anos de 1996, 2000 e 2002, que
serviram de insumo inicial para a reflexão sobre as práticas sonoras
naquela cidade.
Desde meu primeiro contato com a cidade de Barcelona, observei
que havia músicos de rua e constatei a ausência de músicos brasileiros.
Será que o ritmo do samba não é apropriado para espaços públicos,
estações de metrô e ruas? Passei a indagar se existia “samba” em Barcelona.
Cabe ressaltar que meu olhar já estava domesticado, afinal nos
últimos anos havia me dedicado a compreender o universo do samba na
cidade de Natal-RN por meio do projeto de extensão “Narrativas,
memórias e itinerários”2. O bairro das Rocas é o bairro tradicionalmente
ligado ao samba e nesse projeto realizei documentários e um CD com o
Mestre Zorro e Samba Canguleiro, sambistas “roqueiros” (expressão
nativa para identificar quem nasceu no bairro das Rocas). Sendo assim,
passei a prestar atenção na sonoridade de Barcelona, e vislumbrei um
campo de estudo ainda pouco explorado.
Passei a caminhar pela cidade, como nos ensina Careri no livro
“Walkscapes, o andar como prática estética” (2017): “recorrer el territorio
levantando mapas no convencionales”. A cidade pode ser descrita sob o ponto
vista estético e geométrico, construído para determinadas visibilidades,
mas também pode ser descrita por um ponto de vista estético
experimental. Tim Ingold (2015, p. 13) argumenta que: “[...] se mover,
conhecer e descrever não são operações separadas que se seguem uma as outras em
série, mas facetas paralelas do mesmo processo – o da vida mesma [...]”.
Tendo como base esta perspectiva, dei início à pesquisa, percorri

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ISSN: 2446-8290

bares e restaurantes. Comecei a participar de grupos do Facebook, como


Brasileiros em BCN, Músicos brasileiros em BCN, Brasileiras em BCN e,
aos poucos, fui me aproximando dos músicos migrantes brasileiros em
Barcelona. A pesquisa ganhou impulso em razão do workshop que
participei com a professora Vania Bastos, Dança de blocos Afro: legado e
resistência, no Centre Civic Pere Vila, em outubro de 2017. Naquela ocasião
conheci diferentes profissionais ligados a música, como professores de
dança de salão, gafieira e samba, capoeiristas, dançarinos, músicos e,
também, interessados em aprender a música e a dança brasileira. Eu era a
única aluna brasileira; as demais alunas eram espanholas ou de outras
nacionalidades.
Durante minha estadia, participei de dois workshops que
proporcionaram uma maior aproximação ao universo da música em BCN,
foram eles: Escuchar voces, tejer redes: apuntes sobre feminismo y música popular,
com a Prof.ª Dr.ª Silvia Martínez (ESMUC – UAB), em dezembro 2017 e
Salsa en Barcelona: escenas, representaciones y personajes, com Alba Marina
González (UB), em novembro de 2017. Nesse ínterim, realizei um
levantamento bibliográfico nas seguintes universidades: Universidad de
Barcelona, Universidad Autonoma de Barcelona, Universidad Pompeu
Fabra.
Para aprofundar essa pesquisa, foram utilizados procedimentos
metodológicos baseados em observação participante, entrevistas, registro
audiovisual, audição de rádio e análise de websites e Facebook. As análises
teóricas seguiram os princípios e ferramentas da antropologia urbana,
antropologia sonora e audiovisual.
Percorri lugares de encontro, rodas de samba, espetáculos, bares e
restaurantes, com o objetivo de mapear as ressignificações das cenas
musicais brasileiras. Insisto aqui na importância da teoria da deriva, como
explica Guy Debord (1958, p.1):
Entre los diversos procedimientos situacionistas, la deriva se
presenta como una técnica de paso ininterrumpido a través de
ambientes diversos. El concepto de deriva está ligado
indisolublemente al reconocimiento de efectos de naturaleza
psicogeográfica, y a la afirmación de un comportamiento

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 86
lúdico-constructivo, lo que la opone en todos los aspectos a las
nociones clásicas de viaje y de paseo.

Além disso, cabe ressaltar que a técnica da escrita do diário de


campo também fez parte da minha rotina, em que percebemos melhor as
dúvidas e acertos junto às pessoas envolvidas.
Realizei entrevistas gravadas com quatro mulheres negras residentes
em Barcelona, duas delas professoras de samba: uma de gafieira e samba
rock, a outra integrante da escola de samba Unidos de Barcelona.
A meu ver, o audiovisual propicia uma relação intensa que
possibilita um aprofundamento na vida das pessoas. A lente necessita de
uma ampliação para reconhecer as pessoas. Nesse sentido, segui o
compromisso e a determinação de levar a história de vida das pessoas com
muita delicadeza para muitos3.
Como dizia Jean Rouch, “filmar é relação e missão” (2003 apud
REBOLO, 2005). Precisamos nos mover em campo e fazer essas pessoas
que nos interessam mover-se também. Entrar neste mundo imagético do
outro sem julgar e sem valorar é modificar nosso próprio olhar4.
Com uma câmera na mão dei início ao mapeamento das “cenas
musicais” (STRAW, 1991). Ou seja, uma identificação de bares e
restaurantes com música brasileira, que são os seguintes: Jamboree, Guzzo,
Bendita Salsa, Marula Café, El Monaterio, El Rouge, Gryzzly, Ovella
Negra, Diobar, Cantinho Brasileiro, Spirit Barcelona, Berimbau, Panela
de Barro, El foro Club. A maioria desses bares está localizada na área
central, como o bairro Gótico, Born e Gracia. Antes do show, bares como
o Diobar e o Bendita Salsa, oferecem aulas de samba ou forró. A intenção,
além de sensibilizar os frequentadores para aprender a sambar, é de
convidar os interessados para aulas de dança em academias ou estúdios de
dança.

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Foto 1: Convite

É interessante observar como as redes de sociabilidade se


constroem a partir desse contato. Will Straw (1991, p. 373) faz uma
reflexão interessante sobre as redes de sociabilidade que se formam através
da circulação do rock alternativo e da dance music nas grandes cidades
(Detroit, Montreal, Toronto, Los Angeles e Londres). Para o autor, “cena
musical” é o espaço cultural em que uma variedade de práticas musicais
coexiste, interagindo entre elas numa variedade de processos de
diferenciação. Esse conceito permite entender que a “cena musical
brasileira” é muito mais ampla, fluida e densa.
Uma outra cena importante para a música brasileira na cidade de
Barcelona é o Dia do Brasil. Na realidade, é um dos eventos mais
importantes para a comunidade brasileira. Esse evento acontece todos os
anos em setembro, no Pueblo Espanhol, e é uma referência ao dia 07 de
setembro, Dia da Independência do Brasil. Esse evento está em sua nona
edição, que desde 2014 conta com a Mostra de Cinema Dia do Brasil, nos
cinemas Girona de Barcelona5.
Para obter dados mais específicos sobre a música brasileira, comecei
a escutar o programa de rádio Caipirinha Libre, um programa de entrevistas
e bate-papo, que acontece todas as quartas-feiras das 18h00 às 20h00 ao
vivo na página contrabanda.org e na Radio 91.4 FM. É um programa de
rádio com DJs residentes em Barcelona, que conta com a participação de
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 88
convidados, músicos e artistas que residem ou estão de passagem pela
cidade. Segundo o locutor, é uma forma de manter informações
atualizadas sobre a música brasileira.
Essa primeira aproximação me colocou diante de uma questão:
como o samba e os brasileiros circulam pela cidade criando espaços de
sociabilidade e cooperação entre grupos sociais que costumeiramente se
mantêm separados e distantes? Como se constroem outras práticas que
produzem a diluição provisória de fronteiras de todo tipo?
Outras questões relevantes surgiram ao longo da pesquisa: como a
internacionalização da música brasileira e a chegada de imigrantes
brasileiros proporcionaram a criação de novos espaços sonoros e novas
maneiras de viver a música em Barcelona? Para responder essa e outras
questões será preciso entender um pouco mais sobre o samba, o samba-
reggae e a batucada. No entanto, para propósito desse artigo não tratarei
profundamente desse aspecto, existe uma ampla bibliografia sobre samba
e as transformações do samba reggae. Contudo vou me aventurar a
descrever os meus primeiros contatos com essa cena musical no exterior.

Foto 2: Escola de Samba Unidos de Barcelona

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Samba, samba reggae e batucada

“Come and make me rock rock rock


Samba reggae
Come and make me jump jump jump
Samba reggae
E esse som vem lá do Pelourinho
Tão envolvente segue o seu caminho
Quando toca envolve a multidão
E o Olodum é a banda do povão”

Samba Reggae,Olodum

Uma extensa bibliografia nos mostra que o samba acabou se


tornando, por vários motivos, um tema polêmico e complexo. Autores
como Muniz Sodré (1988), Hermano Vianna (2004), Carlos Sandroni
(2006), entre outros, elencaram alguns aspectos nesse processo seminal do
samba e do seu caráter híbrido.
Para Muniz Sodré (1998), o samba antes de ser música e
sociabilidade, foi dança. O samba foi durante muitos anos discriminado e
reprimido pela polícia e, segundo o autor, a cultura negra encontrou no
samba seu sistema de reafirmação de identidade étnica.
Por sua vez, Hermano Vianna (2004) em “O mistério do samba”,
afirma que o samba transformou-se em símbolo da identidade nacional
num momento histórico bem específico e foi resultado de um longo
processo de interação entre grupos sociais. Para o autor, essa "virada" se
deu nas décadas de 1920 e 1930, quando inaugurava-se uma ideia de
brasilidade. Segundo Vianna, o ritmo musical saiu da condição de gênero
musical marginal para ocupar um lugar central na música popular
brasileira. Vianna afirma que foi a partir de uma ação de caráter político
enunciado pelo sentimento de nacionalismo da década de 1930 que
desencadeou a construção de um discurso sobre a identidade da cultura
popular brasileira.
Cabe ressaltar que vários autores já pesquisaram sobre esse tema e
sua intensa rede de significados, de produções, de espaços e de formas de
se relacionar com a indústria fonográfica, como Cavalcanti (1995);

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 90
Goldwasser (1975); Lopes (1981); Tramonte (1996), entre outros.
Diversos trabalhos na área da antropologia e da sociologia apontam
para a dificuldade de precisar sua origem, mas todos concordam que desde
o início o samba se manteve atrelado a camadas mais pobres da sociedade.
Alguns autores apontam que esse ritmo é proveniente da Bahia, uma
região de forte ascendência africana, e que começou a se expandir no Rio
de Janeiro.
Com relação a “origem” do samba reggae, o pesquisador Ariza
(2006) afirma que os blocos Olodum e Muzenza desenvolveram fusão
rítmica afro-baiana com o reggae, que se denominou samba-reggae. No
entanto, há muita discussão sobre quem foi o criador do samba-reggae e de
sua estrutura rítmica, e não há um consenso. O nome Neguinho do Samba
(membro do Ilê, que em 1983 ingressou no Olodum) é apontado como o
criador desse ritmo. Mas essa inovação é também atribuída ao bloco
Muzenza, por ter sido o primeiro a estabelecer relações diretas com Bob
Marley. O bloco de percussão Muzenza surge em 1987, com o sucesso que
fizeram com a música “Faraó” no desfile de carnaval. Até hoje, como
aponta Ariza (2006, p. 307), o bloco permaneceu vinculado à rítmica dos
grandes blocos percussivos, ao contrário do axé-music e outros, que
atingiram o grande mercado.
O bloco Olodum foi um dos primeiros blocos que emergiram na
década de 1980, e o mais bem-sucedido comercialmente. O Olodum
introduziu diferentes estruturas rítmicas, que são basicamente uma
variação rítmica do samba da roda. Em 1990, o Olodum gravou uma
música com o cantor e compositor americano Paul Simon, o que fez o
grupo ser conhecido fora do país. Em 1996, Michel Jackson gravou o
videoclipe They don't care about us, dirigido por Spike Lee6. Olodum, além
de ter sido um inovador musical, também criou um programa social,
incluindo escolas, roupas e empregos para as crianças de rua e uma
variedade de serviços comunitários.
O bloco Olodum ampliou sua importância dentro do mercado
brasileiro e ganhou difusão no exterior, principalmente no final dos anos
1980. Olodum é um dos múltiplos grupos musicais brasileiros que

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ganharam evidência no cenário internacional. Sua presença tem sido


reconhecida e se espalhou pelo mundo.
Na década de 1990, outros blocos surgiram na Bahia, como o Axé
ou Timbalada sob a direção musical de Carlinhos Brown, que apresentou
o timbal em seus desfiles bem como a construção de instrumentos com
materiais reciclados. Os membros do grupo Timbalada eram
percussionistas e cantores, jovens pobres do bairro do Candeal7.
O bloco Timbalada surge com a figura de Carlinhos Brown, músico
performático, que utilizava pinturas no corpo8. Outro bloco importante e
de influência africana foi o Ara Ketu que, fundado em 1980, passa a
incorporar percussão, saxofones, guitarras, trompetes, guitarras elétricas e
teclados ̶ samples e sintetizadores9.
Nos anos 1980, surge na Bahia um outro gênero musical: o axé
music. O axé music é uma mistura, uma fusão musical de toques de rituais
de candomblé, soul, reggae, pop, ritmos latinos. O axé utiliza também
teclado e guitarra e tem banda com no máximo 10 pessoas. A partir da
década dos anos 1990, ganha repercussão internacional, associada à
música de artistas como Luiz Caldas, Sarajane, Chiclete com Banana,
entre outros10.
Para Goli Guerreiro (2000), no livro “a trama dos tambores, a cena
afro-pop de Salvador”, a produção de samba-reggae, ou seja, uma produção
local, se insere em um fluxo de globalização do mercado que privilegia uma
musicalidade “étnica”, na qual esta produção se encaixa como uma luva,
na medida em que recria sonoridades africanas, mesclando-as com ritmos
brasileiros e caribenhos. Na visão de Guerreiro (2000), o samba-reggae não
é um sucesso internacional, pois os artistas dificilmente se sustentam nos
mercados estrangeiros por muito tempo, e na maior parte dos casos, se
apresentam para plateias compostas por brasileiros que vivem fora do país.
Na minha pesquisa, percebi a presença do samba-reggae nas festas
populares, e principalmente nas festas mayores, como na festa de Mercê, festa
Gracia, Correfocs, carnaval, Festa de Santa Eulália, e até mesmo na Semana
Santa. É interessante ressaltar que o que conhecemos por samba-reggae é
denominado de “batucada” em Barcelona.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 92
Foto 3: Batucada KABUM, Festa de Gràcia, Barcelona

Pude constatar que a batucada desperta atenção dos moradores


locais e estrangeiros residentes na cidade. Um bom exemplo, Batalá
Barcelona, que se formou em finais de 2011. As batucadas são grupos de

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percussionistas formados entre 15 e 50 pessoas em média, que ocupam e


percorrem as ruas das cidades durante os eventos festivos europeus. Batalá
Barcelona tem mais de 30 percussionistas de várias nacionalidades;
Colômbia, Brasil, França, Itália, Reino Unido, Chile, México, Argentina,
Paraguai, Finlândia e da Espanha. É importante ressaltar que existem
vários tipos de batucadas, que se diversificam conforme os ritmos tocados
e o grau de apropriação dos elementos da cultura brasileira.
Sob o ponto de vista dos não brasileiros integrantes do Batalá, a
música possibilita ampliar os laços de amizade e o surgimento de outros
laços mais afetivos. Como também permite que todos os participantes,
profissionais e alunos, participem de festivais e eventos por toda a Europa,
e inclusive no Brasil.
Gostaria de retomar a pesquisa de Will Straw (1991) que afirma que
a cena musical não está restrita a lugares geográficos. Existe uma interação
entre os ensaios, as aulas, a participação em eventos, as saídas para tomar
cerveja. Participar da cena significa não só ampliar conhecimentos sobre a
música, mas também estabelecer relações afetivas.
Vale assinalar que durante o ano ocorrem eventos sobre música e
dança, como o 1º Festival Internacional de Percussão e Dança Brasileira
(22 e 23 de julho de 2017). Esses eventos, além de serem palco de
divulgação de trabalho, são também um momento para compartilhar
experiências entre os professores que residem no exterior (França,
Alemanha e Portugal).

Foto 4: convite

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 94
Algumas considerações
“Avisa lá que eu vou
Chegar mais tarde oh yes
Vou me juntar com o Olodum
Que é da Alegria
É denominado de vulcão
O estampido ecoou nos
Quatros cantos do mundo
Em menos de um minuto
Em segundos
Nossa gente é quem bendis
É quem mais dança
O gringos se afinavam na folia”

Nossa gente, Olodum

Mediante a análise do material coletado em diferentes etapas da


pesquisa pude compor uma “paisagem sonora” (SCHAFER. 2001) do
samba, samba reggae e da batucada em Barcelona e entender de que forma
esse fluxo global que coloca a música negra em posição de destaque,
repercute fortemente no exterior. A meu ver, a internacionalização da
música brasileira e a chegada de imigrantes brasileiros proporcionaram a
criação de novos espaços sonoros e novas maneiras de viver a música em
Barcelona.
O mapeamento dos lugares de encontro e sociabilidade permitiu
perceber determinadas práticas de consumo, produção e recepção musical
por meio do samba. A partir deste ponto, observei questões sobre o espaço
de sociabilidades, a reafirmação de identidades e a imigração de brasileiros
na capital catalã.
Nos últimos anos, Barcelona enfrenta um conflito sobre a onda de
migração, separatismo e turistificação. A meu ver, a questão da imigração é
muito importante para entender esse cenário. Infelizmente, há pouca
literatura sobre os migrantes brasileiros para complementar minhas
observações11. No entanto, é possível afirmar que a presença de músicos
brasileiros residentes promoveu uma expansão de cenas e sociabilidade.
Na pesquisa empírica pude constatar três movimentos migratórios
de brasileiros para Barcelona. Os anos 1970 são marcados com a chegada

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de muitos exilados políticos. Uma segunda vez ocorre no início do século


XXI, quando chegaram migrantes em busca de trabalho e qualidade de
vida, incluindo músicos, artistas, capoeiristas, e pessoas que trabalhavam
com serviços gerais, limpeza de casa, cabeleireiros, profissionais liberais,
advogados, que, a fim de construir uma rede mínima de renda inicial,
buscavam uma situação legal. Dessa forma, criam vários tipos de rede e são
frutos de um processo de criação de redes. Ao migrar, você tem que se
conectar ao país de destino e ser acolhido.
Com relação ao samba-reggae e à batucada, vimos que o incremento
da indústria fonográfica, em determinado momento, favoreceu a
internacionalização da música brasileira. As turnês internacionais foram
as grandes responsáveis pela divulgação da música brasileira em Barcelona,
além de promover o diálogo com outros gêneros como o jazz, rock, música
latina e caribenha.
Essas práticas de divulgação são importantes, pois a música se torna
conhecida e se cria um público consumidor. Existe um grupo de
profissionais, músicos e dançarinos que reside em Barcelona e que
“preserva” a música brasileira, ressignificando-a. Na maioria dos casos não
é sua principal fonte de renda.
Além disso pude perceber que grupos de brasileiros e espanhóis
estão transformando as práticas de consumo musical que os caraterizavam
anteriormente. Alguns brasileiros estão se “espanholizando”, se
apropriando das festas locais (Sant Joan, La Mercè); enquanto alguns
espanhóis estão se “abrasileirando” (com o samba-reggae e batucadas).
Fernando Ruiz Morales (2014,317), ao analisar o flamenco na
Bélgica, afirma que:
Cualquier expresión musical “local” (asociada a un grupo o
territorio específicos que son referentes inexcusables de tal
música) está allí donde hay aficionados, artistas, eventos,
público y demás usuarios. Y ello ocurre en lugares del mundo
donde los emigrantes la han llevado o donde personas en
principio ajenas a esta cultura local, que han conocido por
diversos canales, han decidido sumarse.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 96
Ainda para esse autor:
El flamenco constituye un código que otorga un marco de
referencia para los artistas que intervienen en él. Pero esto no
implica que compartan significados ni pautas de acción. Los
artistas allí residentes se posicionan de diferente manera ante
ese código, y articulan diversidad de trayectorias y respuestas.
Sus posicionamientos no derivan solo de las estrategias
individuales, sino que están mediatizados por factores
estructurales (MORALES, 2014,317).

Em minha pesquisa, pude perceber o interesse de muitos europeus


pela musicalidade brasileira, samba, samba reggae e batucada. O primeiro
motivo é a execução de ritmos que permitem celebrar o entusiasmo e a
alegria de estar juntos. E em segundo lugar, fazer parte de um grupo
musical que permite aos seus integrantes viajar pela Europa e, também,
conhecer de perto o Brasil, principalmente Salvador e Rio de Janeiro.
Vimos como diferentes estratégias de multiplicação desses ritmos
através das aulas de percussão, aulas de dança, organização de desfiles e
carnaval, apresentação musical e shows em bares e restaurantes. E, ao
mesmo tempo como a batucada está presente nas festas europeias, festas
mayores, carnaval, festa de Santa Eulália, Semana Santa Correfocs.
Na perspectiva de Born (2011), a música pode ser atravessada por
diversas formações de identidade social, desde as mais concretas e íntimas
às mais abstratas, animando a construção de comunidades imaginadas,
que reproduzem e evocam formações identitárias vigentes, fantasiadas ou
emergentes.
A difusão desses ritmos proporciona a criação de novos espaços
sonoros e novas maneiras de viver a música brasileira no exterior. Sendo
assim, os músicos brasileiros, os sambistas e os “batuqueiros” criam
diálogos, espaços de sociabilidade e provocam a dissolução de fronteiras.

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ISSN: 2446-8290

Foto 5: os tambores da batucada PercuDones, día 8 de março de 2018

Notas

1. Gostaria de agradecer a acolhida do meu tutor, o Prof. Dr. Jorge Grau Rebolo e
a excelente recepção no Grafo. Grafo é um Grupo de pesquisa que reúne
investigadores, doutores, alunos de doutorado e mestrado, bem como uma
ampla rede de parceiros e colaboradores no Brasil e no exterior. Para maiores
informações sobre o Grafo, ver; h p://grupsderecerca.uab.cat/grafo
2. Projeto de extensão “Narrativas, memórias e itinerários” que coordeno junto
com a Prof.ª Dr. ª Maria Angela Pavan (DECOm/UFRN). Nessas produções
audiovisuais, passamos a investigar os itinerários de vida de indivíduos e grupos
urbanos na cidade de Natal-RN, a partir de suas ações, gestos e vozes. Vozes
nem sempre uníssonas, mas reveladoras de interações, tensões e expressões
sobre a cidade. Entre as produções, estão: “No mato das Mangabeiras” (2014),
“Seu Pernambuco” (2014), “Mestre Zorro” (2016) e “As mulheres das Rocas são
as vozes do Samba” (2016).
3. O documentario “As vozes femininas no samba em Barcelona”, está em fase de
finalização.
4. Um dos meios mais utilizados nessa pesquisa foi a câmera na mão, mas a análise
das entrevistas ficarão para um outro artigo.
5. As bandas Barbados Samba e Sapato Branco fizeram a festa, interpretando
grandes clássicos do samba de gafieira. Estes dois grupos são formados por

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“Avisa lá que eu vou”: samba,


samba-reggae e batucada em Barcelona, Catalunya 98
brasileiros que moram em Barcelona. Além disso, DJs como MDC Suingue e
Massafera Soundsystem também participaram. Durante o dia, houve
apresentação de capoeira e maculelê com a Cordão de Ouro, batucada
Ketubara e desfile da Unidos de Barcelona. Paralelamente no cinema Girona
aconteceu a V Muestra de Cine Día de Brasil, com 4 filmes premiados em
importantes festivais. Ver mais detalhes em: h ps://estrangeira.com.br/dia-de-
brasil-em-barcelona/.
6. “ O l o d u m é a l e g r i a g e r a l ” v e r :
h p s : / / w w w.y o u t u b e . c o m / w a t c h ? v = A 3 o 3 0 YJ i Ws c & fe a t u r e = y o u t u . b e e
h ps://youtu.be/pdNHfnnNvV8. “Faraó”, na voz de Margareth Menezes, ver:
h ps :/ / yo u t u .b e/ 6 I UKG 7 fi j 9 w , “Requebra sim”, de Olodum, ver:
h ps://youtu.be/sKOrnzdr8rY
7. Recomendo assistir ao filme "El milagro de Candeal”do diretor espanhol
Fernando Trueba.
8. Ver música “Beija-flor”, de Timbalada: h ps://youtu.be/frQzLS85dL
9. h ps://youtu.be/UF5nopj1xik
10. h ps://youtu.be/yxDtGAcozxI
11. De acordo com os dados estatísticos há 12.749 mil brasileiros. Em janeiro de
2017 a 1 de enero de 2008, el número de residentes extranjeros empadronados
era de 280.817 mil personas, 17,3% del total de la población residente en la
ciudad. De esos residentes extranjeros, el 46% son latinoamericanos, un 25%
de la Unión Europea, un 16% de Asia y un 8% de África. Em termos de
nacionalidade, 24.000 italianos, 21.600 paquistaneses e 16.000 chineses
(empate com Equador). (Padrón Municipal de habitantes de la ciudad de
Barcelona, Ayuntamiento de Barcelona 2008, p. 1).

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ISSN: 2446-8290

Sonoridades Migrantes na América Latina

José da Silva Ribeiro


Universidade Federal de Goiás
jsribeiro.49@gmail.com

Resumo: Embora sejam muitos os objetos possíveis do processo de hibridação cultural ou


mestiçagem, ou “crioulização”. Elegi, para este trabalho, como objeto da hibridação cultural as
sonoridades migrantes. Para a reflexão proposta tentarei definir os conceitos que giram em torno
do encontro entre culturas, os objetos de hibridação e situações, contextos e locais em que esta
acontece. Talvez devesse utilizar preferencialmente o conceito de mestiçagem em vez de
hibridação ou hibridismo. Estou de acordo com os autores que consideram que a dimensão
temporal é o que distingue a mestiçagem de outras formas de união, como o hibridismo, o misto, a
mistura, que podem ser apreendidos estaticamente. A mestiçagem é mais sonora que visual, mais
musical que pictórica, mais narrativa que descritiva. Parece-me, pois, necessária uma revisão dos
termos e conceitos e a reflexão teórica e sua aplicação no objeto e situações abordadas nesta
apresentação.
Palavras-chave: Hibridação; Hibridismo; Mestiçagem; Crioulização; Sonoridades
Migrantes.

104
Sounds of emigration in Latin America

Abstract: Although there are many possible objects of the process of cultural hybridization or
mestizaje, or "creolization". For this work, I chose the object of cultural hybridization as migrant
sounds. For the proposed reflection I will try to define the concepts that revolve around the
encounter between cultures, the hybridization objects and situations, contexts and places in
which it happens. Perhaps you should prefer to use the concept of mestizaje instead of
hybridization or hybridism. I agree with the authors who consider that the temporal dimension is
what distinguishes mestizaje from other forms of union, such as hybridism, mixed
mix, which can be seized statically. Mestizaje is more sonorous than visual, more musical than
pictorial, more narrative than descriptive. It seems to me therefore necessary to review the terms
and concepts and the theoretical reflection and their application in the object and situations
addressed in this presentation.
Keywords: Hybridization; Hybridity; Crossbreeding; Creolization; Migrants Sounds.

105
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Sonidos de emigración en América Latina

Resumen: Hay muchos objetos posibles del proceso de hibridación cultural o mestizaje o
"creolización". Para este trabajo, elegí el objeto de la hibridación cultural como sonidos de
migrantes. Para la reflexión propuesta, intentaré definir los conceptos que giran en torno al
encuentro entre culturas, los objetos y situaciones de hibridación, los contextos y los lugares en los
que sucede. Quizás debería preferir utilizar el concepto de mestizaje en lugar de hibridación o
hibridación. Estoy de acuerdo con los autores que consideran que la dimensión temporal es lo que
distingue al mestizaje de otras formas de unión, como el hibridismo, mixto, mezcla, que puede ser
incautada estáticamente. El mestizaje es más sonoro que visual, más musical que pictórico, más
narrativo que descriptivo. Por lo tanto, me parece necesario revisar los términos y conceptos y la
reflexión teórica y su aplicación en el objeto y las situaciones abordadas en esta presentación.
Palabras clave: Hibridación; Hibridación; Cruzamiento; Creolización, Sonidos
Migrantes.

106
O que se assemelha não é forçoso que se reúna e
o que se reúne não é forçoso que se assemelhe.
O devir nunca se adivinha: esta é a dinâmica,
vibrante e frágil da mestiçagem.
(Laplantine e Nouss)

Introdução

Embora sejam muitos os objetos possíveis do processo de


hibridação cultural ou mestiçagem, ou “crioulização”. Elegi, para este
trabalho, como objeto da hibridação cultural as sonoridades migrantes na
América Latina. O que entender pois por sonoridades migrantes? Quais as
razões desta escolha? Como se reconfiguram na América Latina ou na
circularidade Cultural Euro-Afro-Brasileira ou Euro-Afro-Atlântica? Para
a reflexão proposta tentarei definir os conceitos que giram em torno do
encontro entre culturas, de objetos de hibridação, de situações, contextos
e locais em que acontece.
Estamos certos, como afirmam Laplantine e Nouss, que, em todas
as formas de estar no mundo e todas as formas de expressão,
a mistura nada tem de circunstancial, de contingente, de
acidental. A condição humana é o encontro, nascimento de
algo diferente que não estava contido nos termos em
presença. Não é, pois necessário reivindicar a miscigenação,
fazer a defesa da mestiçagem como se estivéssemos
confrontados com uma alternativa, porque ela não é senão o
reconhecimento da pluralidade do ser e do devir (2009, p.71).

No entanto, raramente a mestiçagem e o hibridismo foram


pensadas como tal. A reflexão sobre este fenómeno raramente existiu nas
sociedades não ocidentais e no ocidente foi sistematicamente ocultado.
Urge pois o pensamento mestiço sobre objetos e contextos precisos.
Escolhemos as sonoridades para esta reflexão como sequência de
trabalhos e da pesquisa anteriormente realizados em Portugal, em França e
na América Latina, mas também porque talvez a arte mais mestiça seja a
música, a mestiçagem mais auditiva que visual mais polifónica que dualista

107 José da Silva Ribeiro


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ou monista (Laplantine e Nouss). O cinema e o pós-cinema estiveram


sempre presentes nesta reflexão, como representação dos fenómenos
enunciados mas também por ser uma arte mestiça (colagem e a
montagem) e como arte migrante (muitos cineastas migram ou migraram
para os lugares ou sociedades em que é possível fazer cinema) e o
fenómeno migrante bem como as sonoridades migrantes desse processo
de mediação (como memória e como representação). O pensamento
mestiço é um pensamento de mediação, de participação de transformação
“dirigido para um horizonte imprevisível que permite restituir toda a
dignidade ao futuro” (2009, p.84). Se esta reflexão vem na sequência de
trabalhos anteriores ela é também o início de um percurso e, portanto, um
índice para investigação futura de que esta comunicação é início e abertura
para perspectivar a análise comparativa.

Sonoridades Migrantes

Poderemos encontrar o processo ou fenómeno da hibridação


cultural em toda a parte e nos diversos domínios da cultura – nas religiões
sincréticas, nas filosofias ecléticas, na culinária, nas artes, na arquitetura,
na literatura ou mesmo na ciência. Até a ciência é policêntrica e
contaminada pelo subjetivismo, pela reflexividade.
Escolhemos como objeto desta abordagem as sonoridades
migrantes. O que entender por sonoridades migrantes? Não pretendemos
apenas abordar a música mas um objeto mais amplo: as sonoridades.
Sonoridades das vozes, da fala, do acento e do ritmo linguístico, dos
rumores, das orações, das sonoridades dos lugares vividos, dos
instrumentos, do canto, dos reportórios, do grito de êxtase ou de dor, do
silêncio.
Pretendemos abordar as Sonoridades em contexto. Inscritas em
processo sociais e culturais.
[…] para nós, a música (e as sonoridades) não pode(m) mais ser
consideradas como fenómeno inerte dentro da cultura,
prática segunda, ou produto derivado: ela é socialmente
decisiva e psicologicamente ativa. Não é só indispensável à

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 108


festa, ao ritual, à possessão, à caça e a tantas atividades
humanas: pode construir categorias de pensamento e de ação.
Não contente em acompanhar a possessão, fornece-lhe o
enquadramento sonoro e gestual; do ritual, não é simples
acessório, mas um dos atributos principais; nas manifestações
coletivas reunindo músicos e público, indica o conteúdo da
ação comum; e quando alcança o domínio religioso, não o faz
como cenário ou simples suporte sonoro da devoção, mas
como essência do ato devocional, encarnando o divino […]:
divino do qual se pode pensar que é tanto mais sensível às
sonoridades humanas, quanto é ele mesmo de natureza
sonora.” (LORTAT-JACOB; OLSEN, 2004, p.14).

As sonoridades têm um papel importante em todas as sociedades e


culturas, ainda que de forma diferenciada em cada uma delas, é imperativo
que os antropólogos estejam abertos a este facto e à sua emergência tanto
nas sociedades “tradicionais” quanto nas complexas, na “antropologia em
casa”, “na moderna cidade ocidental” (FINNEGAM, 2002) ou nos
movimentos das populações – os migrantes, os povos nómadas, as
diásporas. As sonoridades viajam com os povos: a voz, a fala, canto, os
reportórios, as orações, o grito, o protesto e o silêncio, e no encontro
continuamente se misturam e/ou permanecem em tensão.
Algum de nós poderia imaginar Paris e os bal musette animados com
uma gaita ou por uma gaita-de-foles? Pois é verdade. La cabrette (gaita de
foles) foi durante muito tempo o instrumento que animou os bistrots
(bares) parisienses. La cabrette (gaita de foles) foi trazida para a cidade por
migrantes internos Auvergnats que distribuíam carvão e água quente1 até
que um instrumento inventado por um austríaco foi introduzido nos bals
musettes por emigrantes italianos. Este instrumento impor-se-á
rapidamente e fez durante muito tempo dançar, durante a primeira
metade do século XX, milhares de pares parisienses. O acordeão, la
musette2, tornou-se quase um ícone sonoro da identidade parisiense.
Muitas outras histórias semelhantes se poderiam contar em cada um de
nossos países (BEAURENAUT, 1993).
Procuramos incluir no conceito de sonoridades migrantes não
apenas os migrantes atuais, processo migratório propriamente dito como
fenómeno de todos os tempos e lugares e os encontros que daí advieram,

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mas também uma outra forma de transferência massiva de mão-de-obra o


tráfico atlântico de escravos3 e a colonização. As razões desta escolha
radicam na similitude entre estes dois processos sócio-históricos
diferenciados. Os migrantes partem por sua livre iniciativa (são livres), no
entanto, os constrangimentos são semelhantes aos dos escravos:
crescimento demográfico, as carências locais decorrentes de conflitos e de
catástrofes naturais, a pobreza nos locais de origem dos imigrantes;
crescimento dos recursos financeiros (capital financeiro) nos países ou
regiões receptoras, e as mudanças tecnológicas decorrentes da adoção de
novas tecnologias e de novos processos ou sistemas.
Aquando da escravatura na era do tráfico afro-atlântico, áfrica sofria
de “secas e conflitos afins - ou as guerras empreendidas por fatores locais –
ocasionalmente criavam refugiados cuja esperança de vida se tomava tão
precária que podiam ser comprados pelos europeus por muito menos que
o valor da mão-de-obra das pessoas que ali sobreviveriam… Nas terras ao
sul do Congo, conhecidas desde então por Angola, eram propensas a secas
prolongadas e, ao longo da década de 1570, entraram num período de
grave estiagem, instabilidade política e guerras - (crises económicas
temporárias ou a crises ecológicas….)” (MILLER,1997). O aumento do
capital decorre da exploração mineira (ouro e prata) e múltiplos fatores
levaram países europeus (Holanda, Alemanha, Itália) a, após a exploração
mineira em África e nas Américas, centrar investimentos na produção
açucareira (fábrica rural). A implantação da monocultura da cana do
açúcar e o desenvolvimento tecnológico a nível dos transportes (barcos
negreiros) e dos engenhos, a inovadora adaptação dos engenhos a novas e
mais eficazes energias – engenho hidráulico, iniciada na Ilha da Madeira e
já usado na moagem dos cereais, e dos engenhos de alta eficiência, com
três cilindros - o verdadeiro "engenho" do Brasil, tomou-se uma
importante contribuição à consolidação do açúcar e da escravidão no
nordeste brasileiro (MILLER,1997).
Porquê escravos africanos? Os colonos brasileiros voltaram-se,
inicialmente, para a mão-de-obra indígena capturada localmente ou
comprada aos caçadores de escravos paulistas, os bandeirantes, que se

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 110


fixaram no sudoeste. Como escravos, os índios eram notoriamente difíceis
de controlar e inclinados a desertar para as suas conhecidas florestas que
os rodeavam. Embora trabalhassem muito pouco, sofressem cruelmente e
morressem devido ao contacto com as doenças europeias4, os índios
(ameríndios), ofereciam uma vantagem crucial neste período inicial: o fato
de serem adquiridos por uma pequena fração dos custos da mão-de-obra
africana. Igualmente relevante para o processo em curso foi o fato de
poderem ser trocados por mercadorias, ou simplesmente capturados, em
vez de exigirem um dispêndio em moeda, como o exigiam os africanos
vendidos pelos comerciantes europeus. O baixo custo dos indígenas, por
conseguinte, compensou as severas desvantagens dos escravos africanos. A
hipótese de fomentar a imigração não se tornava possível: os imigrantes
provenientes da Península Ibérica não existiam em número suficiente, os
de Inglaterra e de outras regiões europeias surgiam apenas em momentos
de recessão económica. Se se tivesse, porém, optado pela imigração
elevado número de migrantes europeus deslocados para os lugares da
produção (Américas) diminuía o mercado europeu de consumo de
produtos provenientes do Novo Mundo e seriam elevados os custos de
pagamentos de salários e outros incentivos aos colonos livres.
A mão-de-obra africana era então a possível. Os africanos
escravizados, como propriedade que eram, adquiriram um valor
monetário e, como tal, representavam garantia financeira adicional nas
fronteiras da economia atlântica. África não estava incluída no padrão
monetário de ouro e prata da Europa e da Ásia. Adaptação dos escravos às
novas situações de trabalho e resistência às doenças e epidemias
(epidemiologia) constituíam uma vantagem em relação aos ameríndios.
Ao contrário dos ameríndios, os negros já estavam adaptados à agricultura
e pastorícia. Portugueses e espanhóis consideravam-nos melhores
trabalhadores – um africano poderia fazer o trabalho de quatro a oito
ameríndios e respondiam melhor aos requisitos sanitários. A Igreja
católica tinha também uma proteção militante em relação aos ameríndios
(MARQUES, 2004, p. 45).
Acresce a estes fatores o fato de muitos dos escravos virem de África

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cristianizados e se integrarem com suas práticas religiosas e dinâmicas


sociais em rituais cristãos – cultos dos santos e de Nossa Senhora do
Rosário, integração na procissão do Corpus-Christi, etc. A organização de
rituais, como a congada, coroação de reis cria simultaneamente um
processo de integração e de identificação. Uma tensão entre os elementos
da cultura africana e da cultura europeia e o consequente processo de
mestiçagem e de práticas religiosas sincréticas. A conversão do rei do
congo5 em finais do século XV e a consequente cristianização do reino,
prevalece, não obstante os conflitos internos, na etnia Bantu entre os
escravos africanos.
Finalmente após a abolição da escravatura sucedeu-se uma
imigração massiva da Europa para as Américas e, mais tarde, são migrantes
africanos que procuram aqueles mesmos destinos. Dá-se então o encontro
entre os dois grupos. Os descendentes de escravos e os migrantes de
origem africana e de origem europeia. O encontro destes grupos é também
encontro em torno das sonoridades migrantes e entre sonoridades
migrantes que se misturam.
Os cabo-verdianos na Argentina são um exemplo deste encontro. A
presença africana na Argentina decorrente de duas vagas – a da escravatura
que se verifica a partir do início do século XVIII (música daí decorrente -
candombe) e a imigração, sobretudo cabo-verdiana, que se inicia em finais
do século XIX (mornas e outras formas de expressão musical da
comunidade cabo-verdiana). A imigração dos cabo-verdianos para a
Argentina inicia-se em finais do século XIX. Adquire relevância nos anos
1920 com a presença de pequenos grupos. Os períodos de maior afluência
verificam-se entre 1927 e 1933 e depois de 1946. Quase sempre estes
períodos coincidem com dois fatores: os períodos de fomes cíclicas em
Cabo Verde e as facilidades de aceitação de imigrantes na Argentina
(MAFFIA, 1986). No Censo de 1980 a comunidade cabo-verdiana na
República Argentina tem cerca de 8.000 residentes e atualmente estima-se
que a população total seja de cerca de 12.000 a 15.000. Destes só cerca de
300 são originários de Cabo Verde. Os restantes nasceram na Argentina.
Em Cabo Verde o discurso da crioulização e da influência europeia foi

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 112


mantido pelas elites culturais e literárias. Após a independência a
componente africana ganha relevo, mas tende a perdê-lo após as mudanças
políticas de 1989 e 1991. Na diáspora, onde por vezes persistem os
símbolos da 1ª fase, o debate entre as duas correntes permanece nas opções
políticas e nos discursos locais, mas a componente africana parece
dominante. Também na expressão e nas escolhas musicais prevalece a
aproximação das duas componentes da cultura cabo-verdiana. No
entanto, na Unión Caboverdeana de Socorros Mútuos de Dock Sud - Argentina,
como noutros espaços migratórios (Portugal, Holanda, EUA), parecem
claras as contaminações por uma “africanidade global” (ALMEIDA, 2005)
manifestas nas estratégias de adesão dos dirigentes a redes relacionadas
com a cultura negra. É sobretudo a negritude, marcas raciais, que são
referidas na identificação com outros negros provenientes de outros
processos históricos e nas estratégias de relação com os movimentos da
globalização da africanidade.
São pois diversos os contextos em que estudo os processos de
hibridação cultural no âmbito das sonoridades migrante:

1. Em primeiro lugar no âmbito das sonoridades urbanas.


Sonoridades parisienses, pela paixão que sempre nos liga a Paris mas
também pela abordagem desta problemática no cinema
sistematizada no documentário Paris Musette (1993) de Jean-Pierre
Beaurenaut. Atualmente centramos a investigação nas sonoridades
migrantes no Porto e na base de dados sobre Imagens e sonoridades das
migrações6 e na cooperação com a Universidade Federal do Rio
Grande do Sul iniciada no VI Seminário Internacional imagens da
Cultura / Cultura das imagens com realização do Workshop
Paisagens sonoras urbanas, sonoridades das migrações, imagens sonoras da
cultura coordenado por Viviane Vedana, BIEV da Universidade
Federal do Rio Grande do Sul, Brasil e Migel Alonso, Universitat
Rovira i Virgili, Tarragona, Espanha.
2. Da mesma época, desde 1995, a reconstituição de um ritual cabo-
verdiano Colá S. Jon, na periferia urbana de Lisboa. Hoje largamente

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representado no cinema: Onde os tambores se inventam e Colá S. Jon Oh


que sabe (1995) de José da Silva Ribeiro, Fados (2007) de Carlos Saura,
Ilha da Cova da Moura7 (2010) Rui Simões. Este trabalho teve
continuidade em Cabo Verde e na Argentina (RIBEIRO E MAFFIA,
2007).
3. Interculturalidade Afro-Atlantica – Projeto iniciado em 2000 sobre
a Cultura Bantu na América Latina (Brasil, Cuba, Argentina e
Uruguay). Base de dados – Interculturalida aafro-atlântica8 (RIBEIRO,
2008).
4. O fado, a morna e a música brasileira são objeto do nosso interesse e
da nossa investigação porque referências incontornáveis de
mestiçagem sonora e musical.

Hibridação, mestiçagem, crioulização (problematização do conceito)

São muitos os termos utilizados na abordagem da relação ou


interação entre culturas. Termos que revelam as dificuldades dessa
abordagem e os múltiplos pontos de vista a partir dos quais podem ser
abordados. Peter Burke refere cinco metáforas.
Na metáfora económica refere termos como imitação, apropriação,
empréstimo, trocas culturais, transferência, acomodação e negociação.
Nos termos, existem múltiplas e distintas dinâmicas culturais uma mais
passiva da imitação, empréstimo, transferência, acomodação outra mais
ativa, apropriação, acomodação negociação e trocas culturais; uma
predominante recetora – apropriação, acomodação, outra emissora –
empréstimo, transferência.
A metáfora zoológica ou biológica os termos usados pelo autor são
mistura (miscelânea, mixórdia), sincretismo, hibridismo. No discurso da
cultura atual, o termo “bricolage” tornou-se equivalente de hibridismo. O
híbrido é puro por definição, esclarece Andrés Galera (comunicação
pessoal): a combinação pode dar a ideia de impureza, por o híbrido não ser
A nem B. Porém o facto de ser AB faz dele um novo tipo, original e puro. É
que o hibridismo diz respeito aos fenómenos da reprodução dos seres

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 114


vivos, o que é muito diferente da infinita reprodução mecânica das
imagens de que fala Walter Benjamin. Peter Burke considera o termo
hibridismo um termo escorregadio, ambíguo, ao mesmo tempo literal e
metafórico, descritivo e explicativo e consequentemente ele próprio
híbrido mas demasiado botânico, isto é, estuda a cultura como se tratasse
da natureza. Focaliza um resultado, um produto, um ser autónomo
exterior aos seus agentes falta-lhe a dimensão temporal que o distingue da
mestiçagem (LAPLANTINE E NOUSS, 2002). Sincretismo parece
remeter para algo que exclui o agente individual. Mistura (miscelânea,
mixórdia) soa a mecânico e por vezes a desprezível ou de pouca
importância.
As metáforas, metalúrgica e a culinária usam os termos de caldeira
de culturas, ensopado cultural ou caldo de culturas. Ambas se
problematizam em termos de produto – liga metálica ou cozinhado em
que sobressai a ideia que as diferenças (biológicas étnicas e culturais) no
encontro tendem a esbater-se com o tempo, dando origem, por fusão entre
os membros que compõem a população, a uma nova sociedade. O termo
mais técnico de aculturação, cunhado pelos antropólogos em finais do sec
XIX baseia-se na ideia que a cultura dominada acaba por adotar os padrões
da cultura dominante. Fernando Ortiz desenvolve a ideia de reciprocidade
no encontro entre culturas criando o termo transculturação. Assim a
influência não é apenas da cultura dominante mas recíproca – a cultura
dominada tem um papel importante na interação entre culturas.
A metáfora linguística aponta para os conceitos de tradução
cultural e crioulização. Para Peter Burke é a noção mais útil e menos
enganosa. O termo, utilizado inicialmente pelos antropólogos -
Malinowski e Evans Pritchard e mais tarde por historiadores da cultura e
da arte, tem a vantagem de remeter para o trabalho pelo tradutor, isto é,
pelos indivíduos ou grupos para a compreensão / apropriação /
subjetivação / interiorização do que é estranho, estrangeiro, exterior. O
conceito remete para relativismo cultural e para as dificuldades ou
impossibilidade da tradução – tradutor-traidor, traduttore-traditore.
Outro termo no âmbito da metáfora linguística é a crioulização, isto é,

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quando duas ou mais línguas baseadas nas suas afinidades e convergências


uma vez em contacto tendem a convergir e a criar uma terceira que
frequentemente adota a maior parte do vocabulário de uma das línguas e
por vezes a estrutura ou a sintaxe da outra. O antropólogo sueco Hannerz
descreve culturas crioulas como aquelas que tiveram tempo de se aproximar
de certo grau de coerência e podem juntar as coisas de novas maneiras. Isto
pode dar origem a estudos de convergência cultural. Convergência
cultural e cultura da convergência nas dinâmicas culturais, nas linguagens
(das sonoridades como arte e como linguagem) e nos media – convergência
de modo em que se tornam imprecisas as fronteiras entre os media.
Concluímos que existem muitos termos aplicáveis ao estudo das
interações culturais. Para Perter Burke precisamos de todos ou de vários
uma vez que uns enfatizam os agentes e ação humanas (apropriação,
tradução, etc.) outros, as modificações de que os agentes não têm
consciência (hibridação, crioulização, etc.).
Laplantine e Nouss optam por um único termo – mestiçagem, e
apresentam-na como algo inerente à condição humana mas raramente
pensada como tal, sugerem um amplo programa de pesquisa –
pensamento de separação, pensamento analítico de decomposição e
identificação dos elementos em presença e pensamento de fusão –
pensamento sintético visando a (re)composição a reconciliação dos
elementos em presença – no encontro entre culturas e nas linguagens, e o
histórico e devir do conceito e dos processos de mestiçagem.
A mestiçagem não deixa porém de ser constatada como condição
humana e expressão cultural e artística mas também como receio do
impuro, da dissolução das fronteiras e da identidade da perda de fronteiras
e marcas bem definidas.
A condição humana (a linguagem, a história, o ser no mundo)
é encontro, nascimento de algo diferente que não estava
contido nos termos em presença. Não é, pois, necessário
reivindicar a miscigenação, fazer a defesa da mestiçagem como
se estivéssemos confrontados com uma alternativa, porque ela
não é senão o reconhecimento da pluralidade do ser no seu
devir. No entanto paradoxalmente, a mestiçagem raras vezes
foi pensada como tal. O pensamento mestiço é um

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 116


pensamento minoritário. Ele nunca existiu, por assim dizer,
nas sociedades não ocidentais e foi sistematicamente ocultado
no Ocidente durante um período bastante longo… Visto a
anti-mestiçagem ser, em geral, a regra (a regra, a lei, a norma, o
paradigma), é esta que convém examinar primeiro, nas suas
duas vertentes opostas, embora tão fictícias uma quanto
outra, e que, paradoxalmente, se encontram no essencial: o
pensamento da separação, pensamento analítico da
decomposição em elementos, mas também da pureza que vai
dar lugar a tantas ficções identitárias; o pensamento da fusão,
neste caso um pensamento sintético que visa a reconciliação
dos contrários e está também muitas vezes na origem de
numerosos totalitarismos (LAPLANTINE E NOUSS, 2002,
p.72).

A primeira dimensão da mestiçagem que ressalta e se torna evidente


é visual e espacial como o verificamos na cor da pele dos humanos, na
pintura ou na arquitetura ou noutras artes visuais. Esta dimensão é
quantificável. Possível identificar seus elementos constituintes e verificar
suas fronteiras. Laplantine e Nouss consideram que
para nos libertarmos dessas fronteiras e dar-lhe toda a
amplitude conceptual que lhe é devida, é necessário passar do
espacial ao temporal, ou seja, ao qualitativo, ao incerto, ao que
flui e escapa… A dimensão temporal é o que distingue a
mestiçagem das outras formas de união, como o misto ou o
híbrido, que podem ser apreendidos estaticamente. Porque
não é um estado mas sim uma condição, uma tensão
irredutível, a mestiçagem está sempre em movimento, alter-
nadamente animada pelos seus diferentes componentes. A
sua temporalidade é a do devir, constante alteração nunca
consumada, uma força que avança, veículo das mudanças
incessantes que fazem o homem e a realidade. É por isso que
se podemos identificá-la ao longo da História, é-nos
impossível erigir monumentos à mestiçagem. O devir não é o
terceiro tempo de uma valsa cronológica que, conjugando
memória e encontro, se substituiria à tríade passado-presente-
futuro. O devir, que os percorre a todos, nunca está fixo nem
fixado, é imprevisível e irreversível. Por outro lado, se está
virada para o futuro, a mestiçagem não pode contar com ele
nem conjeturar resultados: um encontro pode não ter
amanhã. O que se assemelha não é forçoso que se reúna e o
que se reúne não é necessário que se assemelhe. O devir nunca

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se adivinha: esta é a dinâmica, vibrante e frágil, da mestiçagem


(LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.117-119).

As sonoridades como artes do tempo e as sonoridades migrantes


como resultantes de processo históricos que se dilatam no tempo são pois
objeto e situação privilegiada para o estudo da miscigenação ou para o
hibridismo, se pretendermos utilizar o termo mais frequentemente
utilizado na literatura anglo-americana. A dificuldade da análise decorre
precisamente do facto da dissolução das fronteiras, da dificuldade de
identificar os elementos constituintes da cultura e da expressão do
encontro. Daí o facto de a abordagem desta temática estar frequentemente
envolvida em controvérsias científicas como recentemente verificamos em
relação ao Fado (NERY, 2010).

Sonoridades na América Latina – circularidade cultural

Os contextos, locais e situações em que abordei estes encontros em


que as sonoridades migrantes ganham relevo são muito diversificados.
Têm, no entanto, muitas características comuns que permitem estudos
comparativos. Uma destas características é o acontecerem sempre em
situações de desigualdade económica, social e política: desigualdades
entre a situação de migrante e dos autóctones e perante o trabalho,
habitação e as instituições do país de acolhimento. Este, o caso de Paris em
relação aos migrantes internos mas especialmente em relação aos
migrantes estrangeiros (aos italianos em Paris Musette) em relação aos
migrantes portugueses em muitos dos filmes apresentados na base de
dados Imagens e sonoridades das migrações9. Não há neste caso um histórico
de encontros anteriores ao processo migratório como verificamos nas
situações pós-coloniais que abaixo referimos.
Na situação do encontro e das interações culturais na Cova da
Moura, no âmbito de realização do ritual Colá S. Jon há um histórico
colonial que configura este ritual como um encontro entre culturas em
Cabo Verde – africana e europeia. A sua realização em Portugal constitui
uma espécie de circularidade cultural. O mesmo acontece quando

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 118


imigrantes brasileiros comemoram no Porto a independência no Brasil
com a dança do S. Gonçalo e outras músicas e danças que partiram de
Portugal, se reconfiguraram nos novos contextos da cultura brasileira e
regressam ao local de origem como novas realizações. Neste processo há
ainda outras variantes. As sonoridades migrantes são apresentadas
espontaneamente ou controladas, integradas em processo sociais que
também lhes imprimem configurações específicas: 1) são integradas em
projetos comerciais – animação de bares, discotecas e outros espaços
públicos, projetos educativos – reconstituição nas escolas das práticas
culturais dos países de origem por agentes externos (animadores,
mediadores, etc.), 2) integradas em projetos de animação sociocultural ou
mesmo de criação de identidade e imagem institucional das organizações
que as promovem – associações culturais, empresas dos mais diversos
ramos de atividade económica – restaurantes, bares, agências de viagem,
turismo, 3) em processos de criação artística de músicos que compõem a
partir das referências (locais?).
A situação específica dos cabo-verdianos na Argentina caracteriza-se
por uma série de fatores específicos. O primeiro é o facto de a imigração se
fazer em dois contextos sócio-políticos diferentes: os primeiros imigrantes
argentinos partem para a argentina como portugueses e após a
descolonização em 1975 como cabo-verdianos; os cabo-verdianos, agora de
nacionalidade argentina, permanecem divididos entre os que se afirmam
anteriormente portugueses (evocando o cumprimento do serviço militar
obrigatório e a fidelidade ao juramento à pátria e à bandeira portuguesa),
os que mantendo a fidelidade à nova nação africana afirmando-se
cidadãos de Cabo Verde e para além desta fidelidade cabo-verdiana se
afirmam por uma “africanidade global” e desenvolvem estratégias de
adesão a redes internacionais relacionadas com a cultura negra/africana.
Neste caso são sobretudo a negritude e as marcas raciais as referidas na
identificação com outros negros provenientes de outros processos
históricos e nas estratégias de relação com os movimentos da globalização
da africanidade.
No caso específico da Interculturalidade Afro-Atlântica o encontro

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entre culturas é realizado em situação extrema de desigualdade – relação


entre o colono e o escravo, num contexto instável de administração
colonial e de transformações profundas nos sistema económico. A
situação é ainda mais complexa pela introdução do cristianismo neste
processo. Com efeito trata-se do estudo realizado de práticas culturais em
que se inscreve o culto dos santos e de Nossa Senhora do Rosário – a
congada, moçambiques, candombe (refiro apenas as guardas estudadas).
É neste contexto que se inscreve o trecho musical Senhora Rainha,
recolhido por Katia Teixeira junto de José Geraldo Alves (rei Congo do
estado de Minas Gerais) e interpretado pelos dois. Como canção ligada ao
congado prevalece o imaginário do marinheiro e Rainha. Talvez a rainha
evocada no congado, rainha Congo e mesmo a patrona do congado Nossa
Senhora do Rosário. A canção em Portugal tem o título Oh Laurindinha
vem à janela,10 inscreve-se no cancioneiro popular e refere uma mulher e um
homem que parte para a Guerra, não evoca pois nem o mar, nem a Rainha
sempre presente na congada. O contexto social de uso da canção é muito
diversificado. Inicialmente remetida para eventuais canções de amor que
acompanham as partidas de soldados que partiam para a guerra.

Ó laurindinha
Vem à janela
Ver o teu amor
Ai ai ai que ele vai para a guerra

Se ele vai para a guerra


Deixai-o ir
Ele é rapaz novo
Ai ai ai ele torna a vir

Ele torna a vir


Se Deus quiser
Ainda vem a tempo
Ai ai ai de arranjar mulher

Senhora Raínha
Venha na janela
Venha ver marinheiro
Que la vai para a guerra

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Sonoridades migrantes na América Latina 120


O outro contexto ou situação abordada é o das músicas urbanas e
mais precisamente o fado, a morna, a música brasileira, o tango. Todas se
caracterizam por ser músicas mestiças.
A administração colonial em Cabo Verde e os intelectuais cabo-
verdianos privilegiaram a morna mais que outras formas de expressão
musical cabo-verdiana. Trata-se do género musical que se aproximava mais
da canção portuguesa e brasileira, nomeadamente do fado, e, como tal,
justificava melhor uma política multirracial. É consensual que a morna é
originária da Ilha da Boavista (1780/1850), como afirma o músico e
musicólogo Vasco Martins “pelo menos uma espécie de proto-morna, com
possíveis influências do «doce lundum chorado», vindo de Portugal e da
«modinha» do Brasil”. Passou, depois, às outras ilhas

na Ilha Brava a terra em que os homens casam com o mar,


como no poema de Pierre Loti, a dulcíssima estância da
saudade, mercê da vida aventureira e trágica do seu povo a
morna fixou os olhos no mar e no espaço azul, e adquiriu essa
linha sentimental, essa doçura harmoniosa que caracteriza as
canções bravenses. Elevou-se de riso a pranto, e finou,
amorosamente, pelo portuguesíssimo diapasão da saudade
(Eugénio Tavares).
Foi o próprio Eugénio Tavares, como afirma Vasco Martins, um dos
primeiros compositores a “catalisar” as heranças da morna primordial da
Boavista, onde provavelmente nasceu e as influências do ultra-
romantismo português e do fado. Eugénio compunha as suas mornas
numa guitarra portuguesa, era um apaixonado pela poesia camoniana e da
época. A influência do fado é notória, sem evasivas. Mas a sua
personalidade de cabo-verdiano e as forças “mestiças” desta pequena
civilização fizeram, é claro, que as influências se tornassem num estilo
característico de morna. Talvez tenha sido Eugénio Tavares o primeiro
compositor a ter um estilo de morna próprio e de continuidade,
solidificando a “morna bravense” que influenciaria todas as ilhas,
inclusive a ilha da Boavista. É, no entanto, em S. Vicente (1910/1950) que
se tinha tornado um porto cosmopolita com a presença das companhias
inglesas e o movimento do porto que a morna

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evoluiu com os músicos Luís Rendall, Muchim d'Monte,


Miguel Patáda, músicos virtuosos da «escola brasileira»
(1910/1950). B.Léza, o mais representativo, compôs melodias
com o suporte harmónico dos «meios-tons» (acordes de
passagem ou modulativos entre acordes principais). As
influências directas da canção brasileira e do tango, então
muito na moda, foram decisivas para o amadurecimento
estético da Morna (MARTINS, 2008).

Vasco Martins descreve outras fases de desenvolvimento da morna,


nomeadamente a “electrificação da música de Cabo-Verde, incluindo a
Morna” nos anos 1960 e 1970; o nascimento de uma “nova Morna”
inspirada na «canção internacional» (bolero, canção americana - Nat King
Cole, Frank Sinatra, por exemplo - canção francesa, canção espanhola,
etc.) nos anos de 1980 (Dany Mariano, Ney Fernandes, Jorge Humberto,
Tito Paris, Betu, Antero Simas e muitos outros) e o advento atual de estilos
muito pessoais, específicos de cada artista o que pressupõe a maturidade
da Morna.
O fado tem origens comuns às da morna. Nasceu num cenário
extremamente complexo que se situa nos confins das culturas africanas e
ibérica (o lundu bantu e o fandango andaluz, (ele próprio originário do
flamenco). Legado de heranças múltiplas na Lisboa do século XIX, o fado
foi dançado no Rio de Janeiro11, é reinventado em Lisboa a partir dos anos
de 1830 como fado cantado (NERY, 2004; 2010). Objeto de apaixonados
debates ideológicos e de múltiplas controversas em relação à sua origem,
transforma uma vasta constelação de influências afro-brasileiras, vê serem-
lhe sucessivamente atribuídas

origens árabe, mourisca, cigana e Occitânia, o que tem o


mérito de chamar a nossa atenção para o facto de que se ele
não é puramente português, é porque Portugal apenas existe
enquanto exterior a si mesmo. Por último, a arte do fado (que
significa destino), é a expressão do sentimento da saudade,
esse sentimento mestiço que significa sofrer do prazer passado
e, ao mesmo tempo, ter prazer no sofrimento de hoje. Uma
espécie de blues dos povos latinos, o fado é um lamento
voluptuoso que / canta a dor entre duas margens, não

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 122


cessando de ir e vir sobre a terra e o mar, o céu e a terra, o
sonho e a realidade, o infinito do amor e a aceitação do
desamor que tem por nome destino (gente da minha terra12)”
(LAPLANTINE; NOUSS, 2002, p.108).

Lapalantine e Nouss apontam como processo de mestiçagem na


música popular a música brasileira

um exemplo chega-nos quando ouvimos cantar a brasileira


Maria Bethânia. O tempo sincopado parece decididamente
africano, a originalidade instrumental lembra as flautas
amazónicas e a melodia recorda-nos o fado português. Os três
elementos estão bem presentes, mas metamorfosearam-se
completamente ao contactarem uns com os outros
(LAPALANTINE; NOUSS, 2002, p. 107-108).

O mesmo me parece em muita da música brasileira ou nas


interpretações mestiças que músicas de um e outro lado do atlântico sai
dadas por sonoridades (acento, ritmo, expressão) – Foi por vontade de Deus13
ou música brasileira…
Como afirmamos acima as influências da canção brasileira e o
tango foram decisivas para o amadurecimento estético da Morna”
(MARTINS). As marcas da presença africana são relevantes na cultura
Argentina – Tango e o Candombe. Não deixam porém de surgir hipóteses,
de que os negros contribuíram, sobretudo através do candombe, de maneira
decisiva para a génese do tango (tango: bailar em Congo). O tango, de
raízes suburbanas, tem também uma "história negra" que se relaciona com
os ritmos afroargentinos, um "segredo" (uma história intencionalmente
ignorada) desvelado pelo antropólogo Norberto Pablo Círio. "Apesar de
sempre existir esse rumor sobre a presença negra no tango, esse assunto
nunca foi bem estudado e compreendido", explica ele, promotor da
exposição "Historia negra del tango", que recentemente (de 23 de Abril a
21 de Maio de 2010) se realizou em Buenos Aires no Museo Casa14 Carlos
Gardel.
Pablo Círio afirma

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Si hay una piedra en el zapato de la construcción de la


identidad argentina es la insoslayable participación de los
negros en la génesis de nuestra (hoy) música nacional, el
tango. Así, con diversa suerte algunos trabajos científicos y
otros no tanto, intentaron obliterar todo aquel lastre.
Omitiendo voluntariamente despreciaron la propia voz de los
negros, tanto la de su frondosa hemerografía, con 16
periódicos durante el período tratado que aún practican su
versión de la historia, llegando así al pálido (valga el adjetivo)
dictamen de que tangos de negros (p. 4).

También se advierte el uso sesgado y, por ende, tendencioso,


de la bibliografía. Por ejemplo, al dar cuenta del proceso
gestacional de la milonga citan al clásico libro de Lynch, pero
prescinden de su afirmación de que las consecuentes con tal
objetivo, validaron todo aquello que podría limitar su plan,
como la de los afrodescendientes música y poseen “No hay
mucho que decir de lo mismo fue creada por los compadritos
porteños "como una burla á los bailes que dan los negros en
sus sitios. Lleva el mismo movimiento de los tamboriles de los
candombes". También hubieran ahorrado lamentaciones
respecto a la escasez de fuentes sobre la antigua coreografía del
tango de haber citado el conocido artículo del diario Crítica
publicado en 1913, “El tango, su evolución y su historia”, que
alguien firmó con el seudónimo Viejo tanguero. Entre otros
aspectos, contiene una minuciosa descripción de cómo los
negros bailaban el tango antes de que comenzara a ser de
pareja enlazada (CÍRIO, 2007, p.151-152).

Parece pois certo que o Tango, elevado recentemente a património


imaterial da humanidade, é resultado de encontro entre culturas que se
verificou na argentina, periferia de Buenos Aires, nos finais do século XIX,
deriva de formas musicais de imigrantes italianos e espanhóis, dos crioulos
descendentes dos conquistadores espanhóis que já habitavam os pampas e
do "Candombe" africano. Há indícios de influência da "Habanera" cubana
e do "Tango Andaluz". O Tango nasceu como expressão das populações
pobres, oriundas de todas aquelas origens, que se misturavam nos
subúrbios da crescente Buenos Aires.
Também o Candombe do Uruguai, recentemente tornado
património imaterial da humanidade como prática comunitária - O

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 124


camdombe e seu espaço sócio-cultural: uma prática comunitária15, é uma prática
mestiça. Embora considerado como sobrevivência do acervo ancestral
africano da raiz Bantú, trazido pelos negros chegados ao Rio de la Plata e
remetendo genericamente para todos os bailes de negros é sinónimo de
dança negra, e evocação do ritual da raça negra. O espírito musical conta
dos lamentos dos escravos desafortunados, que contra a própria vontade
foram levados para a América do Sul, para serem vendidos e submetidos a
humilhações e duras tarefas. Eram almas sofridas, sob inconsolável
nostalgia da terra natal. Na época da colónia, os africanos recém-chegados
chamavam seus tambores de tangó, e também usavam tangó para
denominar o lugar onde realizavam suas danças candomberas. Com a
palavra tangó designava-se o lugar, o instrumento e a dança dos negros. O
Candombe tem configurações específicas em Montevideo em que se
tornou uma prática comunitária com afinidades com o Carnaval e a festa
de Reis como em Cuba, na Argentina em que se torna prática musical
fechada Shimmy Club, na Casa Suiza, ou no Brasil, Candombe na
Comunidade do Açude ou noutras Comunidades (grupos ou famílias) em
Minas Gerais, em que é caracterizado como prática mais ancestral que
outras Guardas (Congados, Moçambiques, Caboclinhos, Catopês,
Marujada, Vilão e Cavalhada) mas também ele integrado em práticas
atuais do culto do Rosário e dos processos de adivinhação e cura que lhe
estão frequentemente associados.

Conclusão

A mestiçagem, melhor que hibridação, reflete o processo e o devir


de incessantes mudanças resultantes do encontro entre culturas e entre
pessoas. A sua dimensão primordial é mais temporal que estática, mais das
artes do tempo que do espaço, mais da ordem da história ou da narrativa
que da descrição, mais sonora ou musical que visual, embora esta se nos
revele de imediato como colagem ou montagem. O estudo da mestiçagem
envolve três componentes fundamentais – a desconstrução, separação ou
análise dos elementos em presença, a síntese, construção e produção,

125 José da Silva Ribeiro


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ISSN: 2446-8290

junção, combinação ou reconfiguração dos elementos que remete para


uma prática criativa e as dinâmicas do devir, “o terceiro tempo de uma
valsa cronológica que, conjugando memória e encontro, se substituem à
tríade passado-presente-futuro” e por isso “o devir nunca se adivinha: esta
é a dinâmica, vibrante e frágil da mestiçagem” (LAPALANTINE; NOUSS,
2002, p. 118-119).
Na América Latina, o processo de mestiçagem ou de hibridação
cultural, segundo Cancili, decorre da inexistência de uma política
reguladora ancorada nos princípios da modernidade e se caracteriza como
o processo sócio-cultural em que estruturas ou práticas, que existiam em
formas separadas, combinam-se para gerar novas estruturas, objetos e
práticas. Esse hibridismo, desencadeador de combinatórias e sínteses
imprevistas, marcou o século XX nas mais diferentes áreas, possibilitando
desdobramentos, produtividade e poder criativo distintos das mesclas
interculturais já existentes na América Latina. Embora as elites
intelectuais e artísticas tivessem condicionado de modo muito
diversificado a difusão da cultura indígena e colonial junto da população,
a mestiçagem interclassista decorrente desses inter-relacionamento teria,
segundo Canclini, gerado formações híbridas em todos os estratos sociais
latino-americanos (1995, p.70-1) e em todos os modos de expressão. Não
serão estas também as dinâmicas culturais das periferias urbanas em que se
juntam os migrantes provenientes de múltiplos lugares à procura de
oportunidades numa sociedade pós-colonial?

Notas

1. G e o r g e s B r a s s e n s - C h a n s o n p o u r l ' a u v e r g n a t -
http://www.youtube.com/watch?v=R4YTPeNobjo
2. S o u s le ciel de paris - Edith Piaf -
h t t p : / / w w w. y o u t u b e . c o m / w a t c h ? v = 7 2 J C f 1 8 L G f c e Paris Musette
http://www.harmattantv.com/video_pop.php?url_video=http://vod.harmattantv .co
m/videos/_uploads/extraits/paris-musette.divx (ou
http://www.myskreen.com/programmes/jean+pierre+beaurenaut).
3. Há muita divergência entre os historiadores, alguns chegaram a projetar 50
milhões, mas R. Curtin (in The Atlantic slave trade: A census, 1969) estima
entre 9 a 10 milhões, a metade deles da África Ocidental, sendo que o apogeu

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 126


do tráfico ocorreu entre 1750 a 1820, quando os traficantes carregaram em
média uns 60 mil por ano. O tráfico foi o principal responsável pelo vazio
demográfico que acometeu a África no século XIX.
4. Segundo alguns autores tratou-se de uma das maiores catástrofes demográficas
da história de 70 ou 80 milhões de habitantes existentes no sec. XV, as
Américas baixaram para cerca de 8 milhões no século XVII (Marques,
2004:44).
5. O réu do Congo, mani Congo, foi baptizado, tomando o nome do rei de
Portugal D. João I e os outros fidalgos, nomes de fidalgos da “Casa d'El-Rei de
Portugal”, seguindo na linha analógica predominante desde o começo das
relações entre os dois povos (Vainfas e Souza, 2004).
6. http://ism.itacaproject.com
7. Ilha da Cova da Moura http://www.youtube.com/watch?v=U58U6mGJOmk
8. http://afro.itacaproject.com
9. http://ism.itacaproject.com
10. L a u r i n d i n h a , D u l c e Po n t e s -
http://www.youtube.com/watch?v=71vh8Dr5aUA&feature=related
11. Considerado no diário de Carl Schlichthorst “uma dança de negros tão imoral
e no entanto tão encantadora” ou no dizer de Johann-Friedrich Von Weech
“uma dança imitada dos africanos no qual os dançarinos cantam”. Rui Nery
sintetiza assim os diversos aspetos do fado dançado no Brasil “as melodias
cantadas são “muito livres” (Freycinet), e apesar de o caráter da dança ser de
“elegância”, “energia” e “ligeireza” o conato pode ser “de carácter
verdadeiramente poético” (almeida) (Nery, 2004).
12. Gente da moinha terra - http://www.youtube.com/watch?v=TeOhPR_0x8E
13. Estanha forma de vida, Amália - h p://www.youtube.com/watch?v=uFgctURyGp4;
Estanha forma de vida, Caetano Veloso - h p://www.youtube.com/watch?v=q-
w2jfW4PeQ.
14. M u s e o C a s a C a r l o s G a r d e l -
http://www.museocasacarlosgardel.buenosaires.gob.ar/
15. El candombe y su espacio sociocultural: una práctica comunitária -
http://www.youtube.com/watch?v=0BPks0_IztU e
http://www.unesco.org/culture/ich/index.php?RL=00182

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45m.

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SIMÕES, Rui (2010) Ilha da Cova da Moura, documentário, 81m.

Anexo

Decisão da Unesco acerca do Candombe - Decision 4.COM 13.74


The Committee (…) decides that [this element\] satisfies the criteria for inscription on
the Urgent Safeguarding List, as follows:
· R1: The candombe is a source of pride and a symbol of the identity of
communities of African descent in Montevideo, embraced by younger
generations and favouring group cohesion, while expressing the communities'

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 130


needs and feelings with regard to their ancestors;
· R2: Inscription of the element on the Representative List would provide an
important impetus to the visibility of intangible cultural heritage, creativity
and dialogue between the diverse communities concerned, while
strengthening its resistance to certain negative tendencies;
· R3: Both the State and the communities have elaborated safeguarding
measures and are committed to strengthening the candombe's viability
through inventory making, education and intergenerational transmission, as
well as awareness-raising activities;
· R4: The element has been nominated with the involvement, throughout the
entire process, of the relevant communities, including organizations,
transmitting bodies and individuals, and they have given their free, prior and
informed consent in writing;
· R5: The element is inscribed in the inventory of traditional feast days in
Uruguay, maintained by the Comisión del Patrimonio Cultural de la Nación.
Decisão da Unesco acerca do Tango (Decision 4.COM 13.01)
The Committee (…) decides that [this element\] satisfies the criteria for inscription on
the Urgent Safeguarding List, as follows:
· R1: The Tango is a musical genre that includes dance, music, poetry and
singing, and is considered one of the main manifestations of identity for the
inhabitants of the Río de la Plata region;
· R2: Inscription of the element on the Representative List would contribute to
visibility of intangible cultural heritage and a deeper understanding of the
Tango as a regional expression resulting from the fusion of several cultures;
· R3: The two nominating States have presented a number of joint and
individual safeguarding measures for the element by which the communities
and the authorities commit to the creation of specialized training and
documentation centres, as well as the establishment of an orchestra, museums
and preservation trusts;
· R4: The nomination of the element benefitted from the continuous
participation of the Uruguayan and Argentinian communities through
meetings, seminars, inter views and workshops, and community
representatives have signed documents to mark their free, prior and informed
consent;
· R5: The element is included in the inventories of intangible cultural heritage
that are being elaborated in Uruguay and Argentina.
Decisão da Unesco acerca do Fado (Decision of the Intergovernmental Committee:
6.COM 13.39)
The Committee (…) takes note that Portugal has nominated Fado, urban popular song
of Portugal for inscription on the Representative List of the Intangible Cultural

131 José da Silva Ribeiro


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Heritage of Humanity, described as follows:


Fado is a performance genre incorporating music and poetry widely practised by
various communities in Lisbon. It represents a Portuguese multicultural synthesis of
Afro-Brazilian sung dances, local traditional genres of song and dance, musical
traditions from rural areas of the country brought by successive waves of internal
immigration, and the cosmopolitan urban song patterns of the early nineteenth
century. Fado songs are usually performed by a solo singer, male or female, traditionally
accompanied by a wire-strung acoustic guitar and the Portuguese guitarra – a pear-
shaped cittern with twelve wire strings, unique to Portugal, which also has an extensive
solo repertoire. The past few decades have witnessed this instrumental
accompaniment expanded to two Portuguese guitars, a guitar and a bass guitar. Fado is
performed professionally on the concert circuit and in small 'Fado houses', and by
amateurs in numerous grass-root associations located throughout older
neighbourhoods of Lisbon. Informal tuition by older, respected exponents takes place
in traditional performance spaces and often over successive generations within the
same families. The dissemination of Fado through emigration and the world music
circuit has reinforced its image as a symbol of Portuguese identity, leading to a process
of cross-cultural exchange involving other musical traditions.
Decides that, from the information provided in nomination file 00563, Fado, urban
popular song of Portugal satisfies the criteria for inscription on the Representative List,
as follows:
· R1: A musical and lyrical expression of great versatility, Fado strengthens the
feeling of belonging and identity within the community of Lisbon, and its
leading practitioners continue to transmit the repertory and practices to
younger performers;
· R2: Inscription of Fado on the Representative List could contribute to further
interaction with other musical genres, both at the national and international
levels, thus ensuring visibility and awareness of the intangible cultural heritage
and encouraging intercultural dialogue;
· R3: Safeguarding measures reflect the combined efforts and commitment of
the bearers, local communities, the Museum of Fado, the Ministry of Culture,
as well as other local and national authorities and aim at long-term
safeguarding through educational programmes, research, publications,
performances, seminars and workshops;
· R4: Fado musicians, singers, poets, historians, luthiers, collectors, researchers,
the Museum of Fado and other institutions participated in the nomination
process, and their free, prior and informed consent is demonstrated;
· R5: Fado is included in the catalogue of the Museu do Fado which was
expanded in 2005 into a general inventory including also the collections of a
wide range of public and private museums and archives.
Inscribes Fado, urban popular song of Portugal on the Representative List of
the Intangible Cultural Heritage of Humanity.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sonoridades migrantes na América Latina 132


A construção das linhas e do revestimento
de Seu Rosário e de sua violina em
Parintins, AM

Danielle Colares Lins


Universidade Federal do Amazonas
daniellecolares_lins@yahoo.com.br

Resumo: Este artigo é referente à primeira parte do trajeto da linha musical do violino e de Seu
Rosário, como fruto de uma etnografia realizada na cidade de Parintins, AM, nos anos de 2017 e
2018. Para a construção deste conhecimento, apresento o violino, ou melhor, a violina, e Seu
Rosário como protagonistas, em trânsitos percorridos por ambos. Tendo como argumento o
instrumento como protagonista do conhecimento musical, perpasso pelas ideias de: objetos como
“fazedores de gente” e também de linhas e revestimento; as linhas apresentam-se nas pessoas do
violino e de Seu Rosário; e o termo revestimento das linhas é usado em referência às situações que
constituíram-se nas formas organizacionais musicais iniciais de Seu Rosário. O objetivo do
trabalho é lançar um olhar para reflexão e importância de se pensar em um instrumento como um
agente social chave, refletindo as relações humanas.
Palavras-chave: Violino; Seu Rosário; Linhas; Revestimento; Conhecimento Musical.

133
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The lines and coating construction of Mr.


Rosario and his violin in Parintins, AM

Abstract: This article refers to the first part of Mr. Rosario and his violin musical line pathes, as
a result of an ethnography carried out in the city of Parintins, AM, in 2017 and 2018. For the
construction of this knowledge, I present the violin, or rather, the sheviolin, and Mr. Rosario as
protagonists, in transits traversed by both. I present as argument, the instrument as protagonist of
the musical knowledge, I approach the following ideas: objects like “people makers” and also lines
and coating; the lines appear on the people of the violin and Mr. Rosario; and the term line
coating is used to refer to the situations that constituted the Mr. Rosario's early musical
organizational forms. The aim of this paper is to make a reflection on the importance of thinking
of an instrument as a key social agent, reflecting human relationships.
Keywords: Violin; Mr. Rosario; Lines; Coating; Musical Knowledge.

134
La construcción de las líneas y del
revestimiento de Señor Rosario y
de su violina en Parintins, AM

Resumen: Este artículo se refiere a la primera parte del camino de la línea musical de violín y de
Señor Rosário, como resultado de una etnografía realizada en la ciudad de Parintins, AM, en
2017 y 2018. Para la construcción de este conocimiento, presento el violín, o mejor, el violín, y
Señor Rosário como protagonistas, en tránsitos recorridos por ambos. Teniendo como argumento
el instrumento como protagonista del conocimiento musical, me permito por las ideas de: objetos
como "personas que crean" y también de líneas y revestimientos; las líneas aparecen en la gente del
violín y Señor Rosário; y el término cobertura de línea se usa para referirse a las situaciones que
constituyeron las primeras formas de organización musical de Señor Rosário. El objetivo de este
artículo es analizar la reflexión y la importancia de pensar en un instrumento como un agente
social clave que refleje las relaciones humanas.
Palabras clave: Violín; Señor Rosario; Líneas; Revestimiento; Conocimiento Musical.

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O violino e Seu Rosário - As linhas

- É aqui que mora o Sr. Rosário?


- Senhor Rosário? Depende. Quem gostaria?
- Sou Danielle, de Manaus, gostaria de falar com ele.
- Ah você está procurando o Seu Rosário... Ah tá ... Sou eu (risadas).
-Gostaria de falar com o senhor. Com o senhor e com o seu violino.

A minha primeira impressão daquele homem em sua terceira idade,


de cabelos grisalhos, deitado na rede, na varanda, foi a de um homem bem
- humorado. E de fato, Seu Rosário é um homem alegre. Conheci-o assim,
em uma manhã de sábado, à vontade e curioso para saber a razão da minha
presença. Buscou uma cadeira e convidou-me a sentar com ele, ali na
varanda.
Apresentei-me, falei os motivos pelos quais saí de Manaus e fui
encontrá-lo. Ele sentiu-se honrado com meu projeto de pesquisa, em saber
que iria ter seu trabalho divulgado, e prontificou-se a ajudar. Aos 86 anos
de idade e ainda em atividade musical, meu interlocutor gosta de falar
sobre suas composições, trabalhos, trajetória, falar da vida como um todo.
Quando falei sobre os objetivos de minha pesquisa, Seu Rosário foi
rapidamente buscar o violino para me mostrar suas músicas. “Desde que
minha esposa morreu, casei-me com a música”¸disse ele.
Vendo-o tocar neste nosso primeiro encontro, não pude deixar de
pensar nos caminhos percorridos por aquelas mãos até chegar ali.
Olhando-o, eu fazia um mapa mental dos possíveis lugares onde ele havia
se apresentado e ficava imaginando como se deu seu processo de
aprendizagem. Observei as posições dos dedos, a maneira como ele
segurava o instrumento, o som, afinação, o instrumento em si e todos estes
aspectos musicais que costumamos observar quando somos músicos
também. Mas havia um outro olhar, o olhar para além da questão musical.
Quem era aquele senhor que se apresentava à minha frente? O que o
motivava a tocar? Quem era o violino?

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 136
Figura 1: Seu Rosário. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora, 2017

137 Danielle Colares Lins


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De formato pequeno e acompanhado de um arco – este que por si só


provoca curiosidade ao produzir o som através do contato da crina com a
corda - o violino é um objeto que carrega uma história instigante desde sua
invenção, adaptações e trânsitos percorridos ao longo da história do
conhecimento da humanidade. Por ser um instrumento que se assemelha
à voz humana, no que tange à extensão, fraseados e melodias, este objeto
“fala”, “chora”, “sofre”, “grita”, seja como instrumento solo ou de
acompanhamento. E nesta similaridade com a voz humana, pode-se notar
o alcance das extensões do grave ao agudo com facilidade, bem como as
intensidades, possui sonoridades melancólicas ou alegres e pode ser
tocado em velocidades variáveis, exatamente como a voz humana.
A voz, que possui um timbre próprio, na qual estão impressos
fatores externos, e que pode ser maleável, adaptada, é o que me chama a
atenção neste instrumento. Estes fatores constituem-se nos aspectos
culturais de uma determinada parcela da sociedade e que nos convida a
refletir acerca dos instrumentos como nossos reflexos e, como atuam na
maneira de organizarmos nossas relações, pois ouvi-los é ouvir a nós
mesmos, nossas manifestações em um resultado material de processos
culturais.
Essa voz ou vozes, que se revelam e compõem as situações sociais
refletidas na música, me fazem pensar na afirmação “que a música possui
um papel central na construção e interpretação das relações sociais”
(BLACKING, 2007, p. 201). O autor, afirma que a música através de seus
vários discursos é também um elemento gerativo. Neste sentido, Blacking
me leva a pensar que a música não fica relegada apenas ao plano reflexivo
para espelhar as relações mas, que esta atua na própria criação de
comportamentos, como organizadora de um sistema social, interagindo
neste como elemento primordial para refletir sobre as ações.
Seguindo esta dinâmica, de um sistema musical que atua
diretamente no sistema social, e nas configurações que compõem este
sistema, o recorte no instrumento musical apresenta-se pertinente para
pensar nesta relação, no objeto, como protagonista, construtor na cultura
material.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 138
O violino peregrino e objetos “fazedores de gente”

Pensar em objetos e nas influências destes no modo de como


vivenciamos, as relações, é refletir em uma ferramenta que ocupa papel
relevante na interpretação, abordando a questão simbólica, que imprime
no aspecto material o conhecimento da sociedade. Em Trecos, troços e coisas,
Daniel Miller traz à tona a problematização dos objetos como “fazedores”
de relações ou melhor “fazedores” de pessoas e sob este viés, Miller
explicita um paradoxo: “A melhor maneira de entender, transmitir e
apreciar nossa humanidade é dar atenção à nossa materialidade
fundamental” (2013, p. 10). Nesta ótica, objetos não chegam somente a
representar pessoas, mas a constituí-las. O autor chama a atenção para o
fato de que os objetos, os instrumentos em sua grande maioria são
relacionados a peças de pouca importância, que ficam relegados a serem
apenas atores coadjuvantes, aparecendo pouco, atuando apenas como
cenário (2013, p.78). Quando invertemos essa relação, o objeto percorre o
caminho inverso, transformando- se em protagonista também.
Ao fazer um paralelo com o famoso trabalho de Malinowski, Os
argonautas do Pacífico Ocidental (1976) nas ilhas Trobiand, Miller chama a
atenção para o fato de que foi o circuito em torno dos objetos de valores
que fascinou Malinowski, foi o fato de descobrir que aneis, braceletes de
conchas e colares de Trobiand, propiciava o kula, a troca e que essa troca
trazia às pessoas fama e fortuna e que com a troca elas aprendiam “a ter
uma vida”, em uma teoria de que é a circulação que cria a sociedade
(p.101). Ao dar alguma coisa à outra pessoa, cria-se um vínculo, entre o
doador e o receptor.
Vejamos o exemplo em que um instrumento musical encontra-se há
anos sob a guarda de uma determinada família. É possível que este
instrumento tenha passado de pai para filho, ou pertenceu a outro
membro da família. É interesante mantê-lo, quer seja com o interesse de
passar este instrumento para outro membro familiar e, assim permanecer
no seio da família, ou ficar apenas como lembrança da pessoa a quem
pertenceu. No caso do violino, se o receptor do instrumento é uma

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ISSN: 2446-8290

criança, o violino ficará guardado até que esta cresça, pois há diferenças
nos tamanhos dos instrumentos.
Existe ainda uma outra razão para que se mantenha este
instrumento em casa. Há um ditado entre os violinistas que diz: “Violino é
igual a vinho, quanto mais velho melhor”. Esta ideia aplica-se devido à
dilatãção da madeira pela passagem do tempo, fazendo com que o som
fique mais “aberto”, e por este fator, pelo fato da madeira estar “amaciada”
, o violino torna-se um objeto mais valorizado. Contudo, é necessário que
esteja em uso, facilitando o processo de “abertura do som”.
Há outro fato interessante que confirma a ideia de Miller: quando
estamos em uma cidade, que não a nossa de origem, é comum quando
procuramos por um endereço exato, ou por uma pessoa especificamente,
citamos como referência algo característico da pessoa procurada. No meu
caso, quando fui a Parintins, e perguntando pelo endereço exato de Seu
Rosário, todas as pessoas o reconheciam pelo violino. No Liceu de Artes e
Ofícios Cláudio Santoro e até na gráfica em que estive, sempre ouvia das
pessoas: “Ah, conheço Seu Rosário, é o do violino, o das Pastorinhas”.
Penso que neste caso, o violino passa a ser o agente-chave, corroborando
com a ideia de que, o que nos torna característicos de nossa própria
sociedade, é o objeto, o agente de Seu Rosário é o próprio violino, como
protagonista de sua história musical na cidade.
Pensar nos aspectos de fabricação do instrumento é importante,
mas pensar no caminho percorrido deste objeto até o momento da
“tocada” é interessante para adentrar nos movimentos das linhas do
conhecimento. O caminho é percorrido por um caminhante, que aqui
chamarei de “o violino peregrino”. Peregrino, como termo usado para
designar um andarilho:

É como peregrinos, portanto, que os seres humanos habitam


a terra, para dizer sobre as pessoas ou coisas, que estão
fazendo seus caminhos nas linhas. A linha é uma pessoa ou
objeto que se move, ele torna-se uma linha, o peregrino é
exemplificado no mundo como uma linha de viagem.
(INGOLD, 2007, p. 221)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 140
As linhas são conectores e o peregrino costura o seu caminho por
este mundo, ao invés de atravessá-lo de um ponto a outro. Neste trabalho, a
peregrinação inicia-se desde o momento da criação do instrumento até a
chegada em Parintins.
A criação ou origem do violino, de maneira geral, são aspectos que
não abordarei, mas saliento a presença do violino em lugares que
contribuíram para seu uso como forma de expressão popular. Neste
sentido, (FIAMINGHI, 2009 apud ISIDORO, 2013) cita a presença do
violino na Inglaterra, Irlanda e Escócia, usados também em danças, bem
como na Suécia e Noruega. Isidoro (2013) afirma que na Argentina e nos
Estados Unidos há grande uso deste instrumento fora do ambiente
orquestral, principalmente no tango, no caso da Argentina; no jazz e no
country, no caso do segundo. No Brasil é interesssante a abordagem que
Gramani (2009) faz ao afirmar que o violino, como expressão popular,
ficou relegado apenas a manifestações religiosas. No Amazonas, além das
festas religiosas, como no caso das Pastorinhas, o violino também era
amplamente usado nas festas de terreiro. Este trânsito percorrido pelo
instrumento abre possibilidades para pensar em traços deixados que são
refletidos no aprendizado do violino, que podem ser representados por
ritmos, arcadas, modos de segurar o instrumento, traços que atravessam
gerações e lugares. Esta peregrinação faz com que o violino traga consigo
uma bagagem e que assuma significados e sentidos na comunidade em que
este está presente.
A construção do instrumento é geralmente realizada de duas
formas: pela lutheria ou pela construção de fábrica. Em ambos os casos há
uma diferenciação de som e predileção por parte de instrumentistas.
Devido à notoriedade do instrumento, percebe-se uma certa
romantização no processo de fabricação dos violinos. Segredos são
mantidos muitas vezes em relação à madeira ou pintura, a fim de garantir
durabilidade e boa sonoridade no instrumento que podem atravessar
séculos, e também fidelidade ao luthier. O músico e os luthiers em geral
reconhecem facilmente o violino produzido por seu fabricante. Ao realizar
um estudo do caiçara paulista e de sua produção musical em Ubatuba nos
cantos das praias, Setti (1985), aborda a questão da fabricação desse

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instrumento :

Sobre a fabricação do instrumento, tanto músicos como


artesãos conhecem inúmeros segredos, e é extraordinário
verificar a preocupação que demonstram nos detalhes quanto
à obtenção de melhores resultados na qualidade do som e
também quanto à percepção do desenho. (SETTI, 1985, p.
139).

Por este propósito, segundo a autora, o artesão está em constante


investigação, para melhorar a qualidade de som de seus violinos. Busca
novos materiais que o satisfaçam sob os pontos de vista estético e sonoro.
Procura-se sempre fazer com que o violino “fale” melhor. “Falar” melhor,
ter “alma” para ser violino, como agente que ganha mais espaço e a
antropomorfização ganha sentido. Ainda em seu livro, Setti reflete sobre
essa questão e afirma que a terminologia usada no litoral brasileiro para
nomear as diferentes partes dos instrumentos é expressiva, e há sempre
uma aproximação destas com o corpo humano:

Assim ouve-se falar em costas do violino; braço da viola;


ombro do violino; imbigo do violino; bunda do violão; corpo,
alma e cabecinha do violino. O processo de
antropomorfização dos instrumentos leva o caiçara a uma
aproximação destes com o ser humano, a ponto de atribuir
aos mesmos a capacidade para falar. Há um relacionamento
entre instrumento e músico; este refere-se comumente à “fala”
da viola ou do violino [...] Para o caiçara, o instrumento parece
estar construído à sua imagem; supõe-se que este tenha
capacidade para partilhar emocionalmente de sua vida,
atestando a humanização dos instrumentos pelos músicos
poetas. (SETTI, 1985, p.143)

De fato, o trato verbal alegórico facilita um íntimo relacionamento


homem-instrumento e confere ao último um poder excepcional, que
ultrapassa uma relação superficial de “instrumento-objeto”, mais do que
isso, promove uma relação direcionada para o domínio do “quase-
humano”. Oliveira (2004) descreve a mesma situação para o tratamento
com a viola. Na dissertação O tronco da roseira- uma antropologia da viola

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 142
caipira (2004), o autor comenta sobre o tratamento dos violeiros de
Piracicaba em relação às suas respectivas violas:

A personificação está na idéia de que o instrumento é também


ele uma pessoa. Este é o outro lado conotado pela prática de
batizar as violas: personificado, o instrumento precisa de um
nome. É útil lembrar que a viola tem um corpo: ela tem boca,
braço, “mão” (como alguns chamam o cravelhal). Ela também
tem alma (...) (OLIVEIRA, 2004, p.66).

Seu Rosário possui um instrumento que o acompanha há cerca de


15 ou 20 anos. É interessante notar que algumas vezes, em nossos diálogos,
Seu Rosário referia-se ao violino como “violina”. Ele me afirmou que
algumas vezes chama assim o violino, a “violina chinesa”. A violina de Seu
Rosário é de fábrica, instrumento construído em séries, em grande
quantidade para o mercado, sem um comprador específico. Ao perguntar
sobre seu instrumento, ele me dizia:

- E esse violino? O senhor comprou aqui em Parintins?

-Foi, mas essa seda ainda é a que veio nela, ainda é natural dela ,
essa violina já teve um, dois, três, quatro donos, eu sou o
quarto dono dela, ela custou R$ 580,00, ela nova, pra um
cidadão lá do Mato Grosso, depois ele vendeu pra um outro lá
1
pro Zé Açu , esse do Zé Açu vendeu pra um outro, aonde esse
outro não soube estimar o instrumento aí porque que a caixa
dela tá assim porque ele fazia brinquedo pros filhos dele e
depois veio para mim, comprei dele.

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Figura 2: A Violina de Seu Rosário. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora, 2017

Além dessa questão da personificação, percebi que o violino causa


admiração por ser um instrumento difícil de ser encontrado em certos
lugares e, que na maioria das vezes, é considerado um instrumento “culto”,
de música “erudita”, de orquestra. Um exemplo desta situação é que “um
músico de Ubatuba confirma este dado ao relatar que quando ia com seu
pai, nas primeiras décadas deste século, cantar reis em Cunha, causava
admiração com seu violino, tido como raridade nesse lugar.” (SETTI,
1985, p.134)
Por não possuir trastes ou casas2 o violino é considerado um
instrumento de difícil execução. Este fator, confere ao seu executante uma
posição privilegiada em relação aos demais músicos. (SETTI, 1985, p.134),
pois acredita-se que quem toca violino consegue desenvolver habilidades
musicais muito precisas, como a afinação. O mesmo fato é visto em um dos
interlocutores de Prass (2004), ao se referir aos violinistas: “O meu
falecido avô tocava violino. Aí sempre diziam que cara que toca violino tem

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 144
um ouvido que Deus o livre, né?” (Biskuim, mestre de bateria da escola de
samba Bambas da Orgia). Por ser um instrumento sem trastes, o
instrumento estimula o ouvido a desenvolver bem a afinação das notas, o
que faz, geralmente, de seu executante uma pessoa habilidosa neste
sentido. Seu Rosário, também fala dessa precisão que é desevolvida ao
tocar o instrumento:
3
Eu tava escutando uma noite dessas, lá na Santa Clara , que
um professor tava dizendo que o instrumento mais artístico
que existe no mundo é o violino. O saxofone, o clarinete,
teclado, sobretudo o teclado que é o último instrumento que
apareceu agora, que tá na moda, que faz sucesso, ele não é
instrumento, o teclado não é instrumento, é uma máquina
instrumental, o instrumento conhecido no mundo como
mais artístico é o violino, porque a gente aprende sem ter
ponto. Não tem ponto e a gente faz música.” (Entrevista de
Seu Rosário concedida à autora em março de 2017).

Neste ambiente, há um cuidado também ao manusear o


instrumento. Só pega o violino quem já sabe “tocar”. É comum ouvir
relatos, de um instrumento que está sob a guarda da família há um tempo:
“Meu irmão saía para trabalhar e eu pegava o violino, às escondidas.” Este
caso é relatado por Seu Rosário, mas em igual situação encontrou-se outro
violinista do Amazonas, Seu Didico. Da cidade de Itacoatiara, Seu
Raimundo Diniz dos Santos, foi um violinista retratado por Grigorova et
al em Seu Didico, um mestre do beiradão (2015). Ao explicar sua trajetória,
Seu Didico revela a situação em que também tinha que pegar o violino
escondido para aprender a tocar.
Essa situação convida para uma reflexão sobre a questão do
instrumento ou de instrumentos no geral, em que há um tabu, que muitas
vezes a naturalidade não é estimulada, há um ritual que não te deixa pegar
o instrumento, um medo de quebrar ou danificar, por parte da família ou
por parte dos professores, em que os alunos se sentem intimidados com o
instrumento, o que consequentemente pode vir a influenciar no
aprendizado. Para que haja uma relação em que o instrumento seja
também o protagonista do fazer musical é necessário que esta relação saia

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do patamar de “instrumento-objeto” e vire uma relação “quase-humano”,


uma relação em que a pessoa tem a chance de experimentar o instrumento,
de adquirir afinidade, de sentir este como uma parte de seu corpo e em que
um dado momento este instrumento realmente venha a ser corpo. Esta
pode ser mais uma questão que me remete a Blacking, no sentido de que
este autor fala sobre a música como um fator de inibição ou afloramento
social.
É interessante ainda chamar atenção para o fato da adaptabilidade
do violino como instrumento e os papéis que exerce. Entre os séculos
XVIII e XIX, na Europa, o violino, foi considerado um instrumento de
virtuoses, contudo, ao encontrar-se nas festas populares, este instrumento
assumiu a característica de ser um instrumento não solista. No trabalho de
Setti, em Ubatuba, a autora observa que o violino só pode ser entendido
como instrumento de conjunto naquele contexto. O caiçara confere ao
instrumento uma feição absolutamente diferente daquela que se atribuiu
ao violino na chamada música erudita, uma vez que aí este é entendido
como o instrumento dos grandes virtuoses. (SETTI, 1985, p.138). O
caiçara propõe um entrosamento em quotas iguais de responsabilidade
entre voz, viola, violino, sapateado e percussão, proclamando assim a
importância da música de conjunto. O violino para ele faz parte de um
todo. Entretanto quando se vê na circunstância de tocar sozinho, vai
desdobrando no violino atribuições diversas: o instrumento deve cantar (a
melodia), acompanhar (essa melodia) e sublinhar ritmicamente o
sapateado das danças. Assim como este, outros tocadores compreendem o
violino como instrumento para música coletiva e jamais poderiam
imaginá-lo como agente de música solista.
Seu Rosário, também tocou por muito tempo sua violina em um
grupo chamado O preferido e, essa experiência o propiciou uma vivência de
prática de conjunto, não apenas de solista. Por ser um instrumento
assemelhado à voz humana e, por esta razão é visto com muito interesse
pelos solistas, o violino, quando em conjunto precisa estar atento à outros
elementos importantes na música, como a harmonia, ritmo, a
corporeidade e desta forma, conversar com os outros intrumentos.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 146
Todas estas vivências explicitadas comprovam que o violino não é
apenas um instrumento musical, e sim um agente que participa
ativamente das relações diárias no contexto social/musical, não apenas de
Seu Rosário mas da cidade de Parintins.

As linhas e o revestimento

Neste sentido, percebo que a linha do violino também está sendo


tecida, na verdade o som do violino, que aqui chamo de voz, a voz como
um instrumento de personificação humana. A voz do violino como
protagonista, a voz de Seu Rosário, a voz de Seu Rosário no violino e
também das pessoas as quais estes protagonistas estão cercados. A linha
que é feita, que possui um histórico e um percurso através de várias outras
pessoas é a voz do violino como o primeiro som, os sons que vêm com o
instrumento, como a voz humana que vem em sua essência e pode ser
trabalhada, que muda de timbre, de tessitura. Essa mesma voz, essa linha
pode vir a ser tensionada, adaptada, manipulada a partir de fragmentos de
experiências, de vivências. Essa voz, ao passar pela estrutura fonológica nos
humanos ou a caixa ressonante do instrumento e ganhar o ar, modifica-se,
com sons que manifestam-se com o que chamo aqui de formas
organizacionais sociais iniciais.
As formas organizacionais sociais iniciais são os primeiros aspectos
inerentes à voz, o balbucio, as primeiras falas, como uma resposta ao
estímulo do ambiente. No violino, é o primeiro contato do arco com a
corda, os primeiros dedilhados, o ranger no instrumento, é o momento
em que ainda não há uma coordenação treinada para o contato mais
preciso, mais firme ou quando o arco toca superficialmente na corda
provocando um sopro no instrumento, não como “técnica” pensada e
preparada, mas como um reflexo do que pode vir a ser desenvolvido. A
constituição dessa linha, essa estrutura que responde aos estímulos, em
formas organizacionais sociais iniciais, ganhará corpo, forma, que será
moldada pelo próprio som e treino, que está em processo de modificação
e que não atinge um ponto fixo, mas vai adquirindo consistência

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conforme passam-se as experiências.


Essa é a linha de Ingold (2011, p.147), a linha que acredito ser
constituída pelas formas organizacionais sociais iniciais. A consistência é a
estrutura que denomino aqui de revestimento da linha. O revestimento
que é adquirido pelas experiências, pelas vivências. É um caminho que é
percorrido até encontrar uma sonoridade estável por um determinado
período de tempo. Esta sonoridade não é mantida a mesma, sua
consistência é determinada por fatores técnicos e sociais que encontram-se
na sociedade, onde as agências atuam e que dão o timbre à essa voz, a voz
que exprime o reflexo de todo seu trajeto. O revestimento das linhas de seu
Rosário e do violino peregrino é entremeado nas experiências de ambos,
desde às respectivas origens ao momento do ensaio, da apresentação, das
experimentações, composições, dos momentos que iniciam nas formas
organizacionais sociais iniciais a um momento de formas organizacionais
sociais coletivas, onde a música atua como agente.

Considerações Finais

Como o instrumento que fala, que chora, que grita, que sofre, que
tem em seu corpo a representação de uma pessoa e que é capaz de
“moldar” uma pessoa. Assim, me propus a investigar o violino como
“fazedor de gente”, a linha “não humana”. Ouvir o violino é ouvir a nós
mesmos: alegrias, tristezas, anseios, progressos, regressos e perceber que o
som encorpado, é o som revestido não é apenas o som revestido de técnica,
mas de vivências e, que a maturidade musical leva um tempo diferenciado
para cada indivíduo. Guardamos, em nossas linhas, níveis específicos de
aprendizagem, o que realmente faz sentido ao processo de aquisição de
conhecimento e com esta informação selecionamos o que é mais
interessante ao momento de execução musical. Este processo, deve ser um
dispositivo para a não segregação do conhecimento musical ou do
conhecimento como um todo, mas que seja considerado como um
elemento rico em possibilidades, visto que respondemos de diversas
maneiras, a determinados estímulos ambientais e sociais e desta forma,

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 148
refiro-me a uma pedagogia musical, ou melhor, uma pedagogia social que
abrange as mais variadas formas de aprendizagem. Assim, o violino é a
linha que caracteriza alguém, que é capaz de “moldar” uma pessoa e a
pessoa também é “moldada” por ele. O revestimento desta linha, ou seja, o
que encapa a linha condutora, é a experiência social, que constitui-se em
um fator importante para o conhecimento e sua transmissão.
Seu Rosário, a linha humana, que apreende, guarda e acessa o
conhecimento musical construído com doses de experiência, é, ele
próprio uma possibilidade, um modelo de como aprender música. O
revestimento da linha reflete não apenas as experiências vivenciadas no
fazer musical de Seu Rosário, mas o lugar de atuação deste, em que não há
separação formal entre ambiente e música, as influências, as trilhas
interligadas que ressoam no fazer musical explicitam relações sociais. As
situações de aprendizado, em qualquer âmbito, formal ou informal, são
revestidas pelas experiências, vivências que moldam o conhecimento,
revestindo-o.
Diante destas considerações, o presente trabalho contribui para a
reflexão de uma antropologia musical e uma pedagogia musical mais
inclusiva, na valorização, compartilhamento e não anulação de formas
“alternativas” de saberes, para a atuação de músicos, educadores e
interesssados de uma maneira geral, como uma ferrramenta para
promover mais qualidade nas relações e práticas sociais.

Notas

1. Zé Açu: Comunidade Nossa Senhora de Nazaré do Zé Açu, distante de 20 a 30


minutos de Parintins. A comunidade coloca cordão de Pastorinha no mês de
dezembro e também oferece muitos atrativos durante a época de cheia, como
praias, trilhas aquáticas e terrestres
2. Divisões nos braços de alguns instrumentos de cordas como violão, guitarra,
baixo, viola, cavaquinho e outros, para facilitar a execução de intervalos de
semitom.
3. Bairro industrial da cidade, que conta também com hospitais e escolas. A
cidade é dividida nas cores dos bumbás e Santa Clara fica localizado na parte
azul da cidade, cor do boi bumbá Caprichoso.

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Referências

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campo, São Paulo, n 16, p. 201- 218, 2007.

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das rabecas e de outros violinos. Per Musi, Belo Horizonte, n.20, 2009,
p.16-21.

GEORGIEVA, Maria Grigorova; BARRONCAS, Eliberto de Souza,;


VITOR, Railda Moreira (Org.). Seu Didico: um mestre do beiradão.
Manaus, B K Editora, 2015.

GRAMANI, D. O aprendizado e a prática de rabeca no fandago caiçara:


Um estudo de caso com os rabequistas da família Pereira da comunidade
do Ariri. 134f. Dissertação (Mestrado em Música). Universidade Federal
do Paraná, 2009.

INGOLD, Tim. Being Alive: Essays on movement, knowledge and


description. London: Routledge, 2011.

ISIDORO, Eliézer Anderson Batista. Um estudo comparativo do violino


na música popular brasileira. Fafá Lemos e Nicolas Krassik interpretam
Fafá em Hollywood. 95 f. Dissertação (Mestrado em Música), Programa de
Pós- Graduação em Música da Universidade Federal de Minas Gerais,
Escola de Música, 2013.

MALINOWSKI,Bronislaw. Argonautas do Pacífico Ocidental: Um


relato do empreendimento e da aventura dos nativos nos arquipelágos da
Nova Guiné/ Melanésia. 3 ed. São Paulo: Abril Cultural, 1984.

MILLER, Daniel. Trecos, troços e coisas: estudos antropológicos sobre a


cultura material, tradução Renato Aguiar. – Rio de Janeiro: Zahar, 2013.

OLIVEIRA, Allan de Paula. O tronco da roseira: Uma antropologia da


viola caipira. 170 f. Dissertação apresentada ao ao Programa de Pós
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina, 2004.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A construção das linhas e do revestimento de


Seu Rosário e de sua violina em Parintins, AM 150
PRASS, Luciana. Saberes musicais em uma bateria de escola de samba:
uma etnografia entre os bambas da orgia. Editora da UFRGS, Porto
Alegre, 2004.

SETTI, Kilza. Ubatuba nos cantos das praias: estudo do caiçara paulista e
de sua produção musical. São Paulo: Àtica, 1985.

151 Danielle Colares Lins


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ISSN: 2446-8290

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã:


os instrumentos têm “alma”

Agenor Vasconcelos Neto


Universidade Federal do Amazonas
agenor7@gmail.com

Resumo: A ideia deste artigo é discutir a afirmação que surgiu durante o trabalho de campo
desenvolvido entre músicos populares indígenas do Noroeste Amazônico brasileiro: todo
instrumento musical possui “alma”. A partir dessa afirmação, busca-se desenvolver relatos
etnográficos para sustentar que na prática da música popular entre os Yepá-Mahsã, os
instrumentos musicais são percebidos como “pessoas” (não-humanas). Desse modo, a música
kuxiymauara do Noroeste Amazônico constitui uma cena fértil para o pensamento e prática
indígena, especialmente no que se refere à música. Para a reflexão, expõe-se um pequeno conjunto
de dados etnográficos no qual exemplos descritivos apresentados pelos interlocutores demonstram
como a música popular articula conceitos e práticas do pensamento indígena do povo Yepá-
Mahsã. Esses exemplos buscam evidenciar como os instrumentos musicais estrangeiros são
concebidos por meio da cosmologia indígena e se relacionam com a origem dos “instrumentos
sagrados”. Reflito, inversamente, como a ideia de um instrumento “moderno” como a guitarra
foi, pouco a pouco, descontruindo-se para que eu compreendesse que, a partir da lógica Yepá-
Mahsã, todos os instrumentos musicais do mundo eram resultantes da ação dos deuses em um
passado mitológico.
Palavras-chave: Yepá-Mahsã; Kuxiymauara; Bahsamori; Biissíu; Jurupary.

152
Kuxiymauara music among the Yepá-Mahsã:
the instruments have “soul”

Abstract: The purpose of the article is to discuss the statement that emerged during the fieldwork
developed among indigenous popular musicians of the Brazilian Northwestern Amazon: every
musical instrument has a “soul”. I seek to develop ethnographic accounts to maintain that in the
popular music practice among the Yepá-Mahsã, musical instruments are perceived as “people”
(nonhuman). Thus, kuxiymauara music from the Northwestern Amazon is a fertile scene for
indigenous thought and practice, especially with regard to music. For reflection, we present a
small set of ethnographic data in which descriptive examples presented by the interlocutors
demonstrate how popular music articulates Yepá-Mahsã concepts and practices of thinking.
These examples seek to highlight how foreign musical instruments are conceived through
indigenous cosmology and relate to the origin of “sacred instruments”. I reflect, conversely, how
the idea of a “modern” instrument such as the guitar was slowly decaying so that I understood
that from Yepá-Mahsã logic all the musical instruments in the world were the result of the action
of the “gods” in a mythological past.
Keywords: Yepá-Mahsã; Kuxiymauara; Bahsamori; Biissíu; Jurupary.

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Música Kuxiymauara entre los Yepá-Mahsã:


los instrumentos tienen "alma"

Resumen: El propósito de este artículo es discutir la declaración que surgió durante el trabajo de
campo desarrollado entre los músicos populares indígenas del noroeste amazónico brasileño: cada
instrumento musical tiene un "alma". A partir de esta declaración, buscamos desarrollar relatos
etnográficos para mantener que en la práctica de la música popular entre los Yepá-Mahsã, los
instrumentos musicales se perciben como "personas" (no humanas). Por lo tanto, la música de
Kuxiymauara del noroeste del Amazonas es una escena fértil para el pensamiento y la práctica
indígena, especialmente con respecto a la música. A modo de reflexión, presentamos un pequeño
conjunto de datos etnográficos en el que los ejemplos descriptivos presentados por los interlocutores
demuestran cómo la música popular articula conceptos y prácticas del pensamiento indígena del
pueblo Yepá-Mahsã. Estos ejemplos buscan resaltar cómo los instrumentos musicales extranjeros
se conciben a través de la cosmología indígena y se relacionan con el origen de los "instrumentos
sagrados". Reflexiono, por el contrario, cómo la idea de un instrumento "moderno" como la
guitarra se estaba deteriorando lentamente, de modo que entendí que, desde la lógica Yepá-
Mahsã, todos los instrumentos musicales del mundo eran el resultado de la acción del Dioses en
un pasado mitológico.
Palabras clave: Yepá-Mahsã; Kuxiymauara; Bahsamori; Biissíu; Jurupary.

154
Introdução

A cidade de São Gabriel da Cachoeira, estado do Amazonas,


apresenta, proporcionalmente, a maior população indígena do Brasil.
Segundo dados do último censo realizado pelo IBGE1 em 2010, a
população do município é de 37.896 habitantes, dos quais 29.017 são
indígenas, em uma densidade populacional de 0,35 hab/km2 distribuídos
no vasto território do município brasileiro, que compreende 109.181,240
km². Segundo a Federação das Organizações Indígenas do Rio Negro, há
mais de 30 grupos etno-línguisticos diferentes2 que falam variações de 5
grupos linguísticos principais: aruák, tukano oriental, yanomami, maku e
nheengatu (língua geral).

Mapa 1:Município de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas (Google Maps)

155 Agenor Vasconcelos Neto


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Nas ruas comerciais do centro cidade se fala, além do português e


espanhol, diversas línguas indígenas. São reconhecidas oficialmente pelo
município 3: o nheengatu, o baníwa e o tukano. Conforme explica Maia
Figueiredo (2009, p.38), foi em 2002 a primeira vez que o estado brasileiro
cooficializou línguas indígenas. De fato, conforme essas instituições e a
bibliografia especializada, apresenta-se um multi-linguismo e um contexto
pluriétnico3 característico (ANDRELLO, 2004; MAIA FIGUEIREDO,
2009; ALMEIDA, 2007).
O certo é que em comunidades distantes, como Iauretê e Cucuy,
assim como na própria cidade de São Gabriel são faladas várias línguas e
convivem vários povos indígenas em uma dinâmica intensa de trocas.
Compartilham-se técnicas de construção, de pesca, de caça, de plantas
medicinais, objetos como raladores, cestaria, cerâmica, instrumentos
musicais e muitos outros. Desse modo, também se estabelece um fluxo de
troca social e cosmológico entre os seus habitantes. Ressalto,
especialmente para entender a música popular a partir da perspectiva
indígena, a rede de troca relacionada à visão de mundo, à cosmologia no
que diz respeito aos instrumentos musicais.
Neste contexto cultural pluriétnico, busco elaborar uma etnografia
da prática da música popular em São Gabriel da Cachoeira,
especificamente o que os interlocutores do trabalho denominam de
música kuxiymauara. Kuxiymauara é uma palavra em nheengatu que
significa “de antigamente”. Como me advertiu Negão dos Teclados, ela
pode ser usada para qualquer coisa que seja antiga, não apenas música.
Mas em São Gabriel, quando se diz “vamos tocar música kuxiymauara”, ou
então, “você sabe dançar kuxiymauara?”, refere-se a um costume local
específico de prática e consumo de um determinado repertório de música
popular.
O uso da categoria “kuxiymauara” entre os interlocutores da minha
pesquisa de doutorado, abriga um certo entendimento sobre a prática da
música – e da dança. As festas, ocasiões em que a música kuxiymauara
assume papel especial, fornece um momento para intensas trocas
socioculturais entre os grupos indígenas que pertencem ao contexto

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 156


pluriétnico local. Essa prática da música popular atualiza o entendimento
indígena sobre música e conecta vários povos que habitam a região há mais
de 5000 anos (DESCOLA, 1992), principalmente o povo Baré, Tukano,
Baníwa4.
É certo que cada um desses povos indígenas possui a
individualidade de sua língua, de seus conhecimentos ancestrais, mas
conforme a bibliografia (ANDRELLO, 2004; MAIA FIGUEIREDO,
2009; DESCOLA, 1992), existe a compreensão de que há uma rede de
troca simbólica entre os diferentes grupos indígenas dessa região. Um
exemplo clássico desse compartilhamento são as “flautas sagradas”, assim
como as cosmologias que explicam esses instrumentos. No cotidiano das
comunidades de São Gabriel da Cachoeira, verifica-se a presença desse
“sistema de trocas de bens ritualizado em festas intertribais”, como define
Líliam Cristina da Silva Barros (2009, p. 178). Essas festas são conhecidas
como Dabukuri, em língua nheengatu, e Póose em língua Yepá-Mahsã.
Muito das festas de santo, e do catolicismo da região, de maneira geral,
assimila elementos simbólicos dessa cultura indígena. Os autores da obra
Õmero – Constituição e circulação de conhecimentos Yepamahsã definem esses
eventos festivos da vida cotidiana dos povos do Alto Rio Negro da seguinte
maneira:
O póose aparentemente é uma festa de partilha de alimentos,
entretanto envolve outros sentidos e interesse, como disputa
de domínio de conhecimento, posição hierárquica,
casamentos, interação com os waimahsã (guardiões do espaço,
“espíritos da floresta”), que também tem seus interesses, sem
contar as acusações e agressões via useropehtise (feitiçaria). As
ações preventivas e protetoras de bahsese (benzimento)
mediadas pelos especialistas são imprescindíveis, antes e
depois do póose. [...] O póose representa a essência das relações
de trocas efetuadas entre os grupos afins. (BARRETO et al., P.
120-121, 2018).

A música popular entre os Yepá-Mahsã

De acordo com a cosmologia Yepá-Mahsã, o corpo de uma das


divindades primordiais seria constituído inteiramente por instrumentos

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musicais. Na literatura e em trabalho de campo, percebe-se a ideia


recorrente de que a música está na origem do universo. Dominar os
instrumentos pelos quais ela se apresenta é uma forma de reviver o
pensamento indígena sobre música, não apenas no aspecto conceitual de
sua cosmologia, mas também no sentido de prática da música popular.
Essa cena que a música popular proporciona é política na medida em que
(re)articula as práticas e pensamentos indígenas, que resistem à investida
colonial há mais de 500 anos. Em tese, a música popular, no caso da cena
kuxiymauara do Noroeste da Amazônia, apresenta um espaço inclusivo,
onde se negociam práticas, expressões e pensamentos Yepá-Mahsã. A
convivência com músicos dessa cena musical local me levou a entender
essa premissa básica da musicologia Yepá-Mahsã, em que se considera os
instrumentos como “pessoas”, portanto dotados de uma “alma”.
Como teclados eletrônicos, caixas de som amplificadas, guitarras e
outros instrumentos “modernos” se relacionam com os conceitos da
música indígena Yepá-Mahsã5? Com dados obtidos a partir de 2013 no
decorrer do trabalho de campo6 na cidade de São Gabriel da Cachoeira
(AM), busco evidenciar a ideia de que por meio da música popular entre
indígenas que vivem no município pratica-se a relação entre mito e música.
Essa relação é recorrente nos trabalhos antropológicos sobre a música
indígena em diversos contextos culturais das terras baixas da América do
Sul (MENEZES BASTOS, 2011; MONTARDO, 2015; SEEGER, 2015;
HILL, 2011; PIEDADE, 1997; HUGH-JONES, 2002; MAIA
FIGUEIREDO, 2009; BARROS, 2009; BRABEC DE MORI &
SEEGER, 2013; REICHEL-DOLMATOFF, 1968; DESCOLA, 1992). O
objetivo aqui é mostrar como essa relação entre mito e música se manifesta
na crença de que os instrumentos musicais são considerados pessoas entre
os indígenas que se dedicam a um gênero local de música popular
chamado kuxiymauara7.
Esse gênero local pode ser pensado, como sugere Julio Mendívil, a
partir do modelo de “biografias sociais e personalizadas” (2013, p. 6). Esse
conceito explica como as canções, mediante diversos processos de
historização, adquirem valores alternativos a partir dos diferentes

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 158


contextos culturais em que são assimiladas. Mendívil foca no
entendimento e na correlação entre uma canção e um público específico.
Nesse sentido, o kuxiymauara é a música popular, comercial, da rádio e das
indústrias fonográficas assimiladas em contexto cultural dos indígenas de
São Gabriel da Cachoeira.
O conceito de “biografias sociais personalizadas”, ao contrário do
pessimismo sentimental (SAHLINS, 1997), senso comum que escuta na
música popular indígena uma “cultura a morrer”, convida a entender a
relação essencial entre o contexto cultural e a música. Assim como David
Samuels (2004) chama atenção no seu estudo sobre música popular entre
os Apache da reserva São Carlos nos Estados Unidos: tocar blues ou outras
formas de música popular não torna o indivíduo “menos ou mais”
indígena.
Superficialmente, os músicos indígenas reproduzem um repertório
formado por músicas brasileiras, colombianas e venezuelanas – forrós,
merengues e cumbias. O domínio de um vasto repertório, a capacidade de
improvisar, compor letras e performances musicais, além da habilidade
especial para tocar até o amanhecer do dia, se destacam nos objetivos dos
músicos da cena kuxiymauara. Essas práticas se assemelham ao que é
descrito na bibliografia antropológica que aborda aspectos das práticas e
composições musicais em diversos contextos indígenas latino-americanos
(MONTARDO, 2009; CITRO, 2009; HILL, 2014; TRAVASSOS, 1997,
2007; DOMÍNGUEZ, 2009; OLIVEIRA, 2013).
Apresento os dados surgidos no decorrer do trabalho de gravação e
tradução das músicas de Jackson da Guitarra. Músico popular indígena
Yepá-Mahsã, nascido na comunidade de Tarucuá, localizada no município
de São Gabriel da Cachoeira. Gravamos em parceria um CD de
kuxiymauara com suas composições e de seu sobrinho, Charles Akuto. No
CD foram gravadas poucas músicas com letras em português e várias em
língua Tukano.

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Foto 1: Jack da Guitarra – Irimı.̄ Trabalho de campo, São


Gabriel da Cachoeira, 2016

Foi no decorrer das sessões de gravação que conheci os “parentes”8


Tukano de Jack que viviam em São Gabriel. Dividindo a guitarra com seu
sobrinho Charles, gravamos no estúdio do Machadinho. Feito de
madeira, o estúdio estava em um cômodo da casa do Machadinho
inteiramente dedicado aos instrumentos e sistemas de som. Machadinho
aluga seu equipamento para a realização das festas da cidade. Conforme a
demanda da região por música, eles trabalham em parceria e dividem as
funções.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 160


Foto 2: Estúdio da Casa do "Machadinho". Gravação do CD de Jack da Guitarra
(no centro). Charles Akuto na guitarra e Francinaldo no Teclado

Além das gravações do disco de Jack, acompanhei outras ocasiões


em que eles estavam se dedicando à música em apresentações para o
público. Certa vez, em um final de semana no bairro Tuyuka, Jack e Cueca
(Francinaldo, tecladista) fizeram um show com muito kuxiymauara. Nos
intervalos das sequências musicais da apresentação, os moradores do
bairro tocavam e dançavam a flauta kariçu. Nesse ambiente urbano de São
Gabriel, as músicas se complementavam em uma celebração que não
distinguia os gêneros musicais entre popular e tradicional, todos faziam
parte da festa e incitava o público a dançar e participar.

Foto 3:Jack da Guitarra (com microfone) e Francinaldo (teclado) tocando


kuxiymauara ao vivo no bairro Tuyuca em São Gabriel da Cachoeira

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Na convivência com Jack e seus parentes, surgiram as primeiras


relações sobre o mito Yepá-Mahsã e a prática da música, do pensamento
cosmológico Yepá-Mahsã e a conexão com a música popular kurimauara.
Apesar da recorrente ideia verbalizada pelos interlocutores do trabalho de
que São Gabriel é repleta de tecladistas – “São Gabriel tem mais tecladista
que gente”, costumavam dizer em tom de brincadeira –, não
conseguíamos nenhum teclado para realizar a gravação do CD de Jack,
nem emprestado, nem alugado, todos os parceiros se negavam a fornecer
seus instrumentos por variados motivos.
Primeiramente eu pensava que se tratava de certo cuidado especial,
um ciúme com o instrumento, como acontece entre músicos de maneira
geral. Mas fui advertido que, além disso, os instrumentos eram
“benzidos”. Eles eram levados aos velhos kumuã (pajé) para passar por um
processo de reza e defumação com tabaco que visava harmonizar as forças
do instrumento e do seu dono. Em 2016, as gravações de Jack deixavam
claro que os instrumentos não eram vistos como “seres inanimados”, mas
possuíam uma presença especial.
Em 2019 entendi melhor do que se tratava em uma comemoração
no Bahseriko-wii9 (Centro de Medicina Indígena), localizado em Manaus,
em uma situação semelhante a que vi no bairro Tuyuka em São Gabriel da
Cachoeira. Antes da programação de música kuxiymauara, participei de
uma performance tocando junto a um grupo de flautas kariçu com colegas
Tukano estudantes do PPGAS. A intensidade da performance me levou a
uma experiência que me fez entender melhor as potencialidades
sinestésicas da música em contexto indígena. Ao dançar ao mesmo tempo
que assoprava os tubos da flauta kariçu, eu tive uma “vertigem” que alterou
meus sentidos de audição e visão. Senti que poderia desmaiar a qualquer
momento. Olhei para Dagoberto (AZEVEDO, 2019, trabalho de campo)
e sua imagem se destacou nitidamente, enquanto no plano de fundo as
luzes ficavam borradas e sem foco. Conforme eu assoprava a flauta,
alterava-se a intensidade das luzes. Mesmo ele estando com roupas
“normais”, por um momento eu o vi com cocar, ou adereço de penas no
braço, não consigo recordar exatamente. Um pouco pensativo, após o fim

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 162


da performance, eu voltei imediatamente para minha cadeira. Tocado
pela experiência, falei que havia gostado bastante do kariçu e perguntei
como poderia adquirir um. Dagoberto (AZEVEDO, 2019, trabalho de
campo) respondeu que o mais importante não é eu ter gostado do kariçu,
mas “ele ter gostado de mim”.
Foi em Manaus que a ideia da “alma” dos instrumentos musicais se
esclareceu melhor, meses após a convivência com Jack e Charles. Com
ajuda de Gabriel Sodré Maia (2017, trabalho de campo), no processo de
tradução e transcrição das letras em tukano, fui advertido que para
entender o título do CD de Jack da Guitarra, Bahsanã a'tia (Vem dançar),
eu deveria compreender que “todas as discussões sobre música e outros
aspectos sociais dos Tukano desembocavam no bahsamori (conjunto de
instrumentos musicais)”.
Esse mote que se repete nas músicas de Jack – bahsana, bahsarã a'tia,
bahsari wi'i10 – está relacionado a aspectos socioculturais fundamentais do
povo Yepá-Mahsã11. Bahsamori12 é uma premissa ética e estética que também
se ajusta às festas de santo, e de maneira geral, à prática da música popular
entre os Yepá-Mahsã. A dança e a música formam um caminho para
entender aspectos relevantes da organização social do grupo.
Os indivíduos responsáveis por organizar as danças, músicas e
rituais são chamados de bayá. Há também os indivíduos que são sábios,
benzedores, conhecedores de mitos e plantas medicinais: os kumuã. O
bayá é um especialista no bahsamori. Como exemplo desse aspecto central
da música na sociabilidade dos grupos Yepá-Mahsã, o nome de bahsari wi'i
(“maloca” em Tukano) significa literalmente a “casa da dança/música”. É
nesse contexto musical que se iniciam ritualisticamente os jovens e se
transmite conhecimentos fundamentais acerca da perspectiva indígena
do mundo. Também é nessa casa que se guarda parte dos instrumentos
sagrados e com eles suas histórias.
Assim como na festa do bairro Tuyuka de que participei, em que
não havia uma divergência entre a prática das músicas kuxiymauara e
kariçu, o pensamento cosmológico Yepá-Mahsã explica a música popular
por meio dos conceitos de bahsamori (instrumentos sagrados). Era isso que

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Gabriel Sodré tentava me fazer entender quando dizia que “tudo vai dar
no bahsamori”. Na perspectiva musical Yepá-Mahsã há uma continuidade
lógica que perpassa todos os instrumentos do mundo por meio do mito de
Biisíu (Jurupary)13. Explicarei sucintamente essa relação a partir de algumas
narrativas míticas disponíveis e publicadas. Por fim, descrevo exemplos de
minha experiência no trabalho de campo sobre a relação entre a música
popular, seus instrumentos e a perspectiva indígena de pensamento.
Entre os grupos indígenas do Alto Rio Negro, de maneira geral, os
instrumentos sagrados (bahsamori) formam os traços distintivos de sua
música. As flautas sagradas são compartilhadas entre os Tukano, os Baníwa
e os Baré.14 Esses grupos as chamam de Miri'ã, Koai e Jurupary,
respectivamente. Compartilha-se seu uso em rituais de iniciação
masculina, normalmente em conjunto com chicotadas. Assim como
compartilham a história da cobra grande como narrativa de origem da
humanidade, as histórias de Jurupary, Biisíu e Koai possuem uma estrutura
de elementos estáveis entre esses grupos indígenas, mesmo com as
divergências linguísticas.
As obra publicada por Alcionilio Brüzzi Silva (1977, 1994), em que
se traduz as narrativas de sábios indígenas do Alto Rio Negro, foi-me
indicada por Jack da Guitarra, assim como por especialistas na
antropologia da música dessa região. As obras apresentam, além de outros
dados, a narrativa cosmológica15 do respeitado pajé/xamã Ponciano
Mendes, traduzida pelo seu filho Graciliano Mendes, do grupo Tariana.
Um passado “mítico” conecta todos os grupos em uma ancestralidade
comum. Neste período, Biisíu, Koai ou Jurupary ensinou aos humanos a
manusearem os instrumentos musicais.
Segundo essa narrativa, em um tempo anterior aos humanos de
hoje em dia, os grupos indígenas do Alto Rio Negro seriam descendentes
dos filhos oriundos da relação entre as “virgens”, primeiras mulheres, e os
“velhos trovões”. Além dos Tukano, diz Ponciano Mendes: “Haviam eles
[as virgens e os velhos trovões] criado os Baníwa” (apud. SILVA, 1994, p.
111). A cobra grande foi o “veículo” que teria transportado e distribuído
todos os vinte e dois povos que habitam o município de São Gabriel.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 164


Fundamentado nesse mito de criação do mundo, as populações do
Noroeste Amazônico sugerem e justificam o parentesco ancestral entre
todos eles.
Biisíu (Jurupary) foi o primeiro filho de parto normal oriundo da
relação entre os “trovões” com as “virgens”. Personagem mitológico
central que explica a música para esses povos indígenas: “Ele é o chefe das
festas e dirige as danças. Aquele que não quer dançar é açoitado. Ele é
também a cabeça dos instrumentos” (SILVA, 1994, p. 112).
Ele nasceu com o corpo cheio de buracos. Ao se mover, o vento
fazia-se vibrar por entre esses orifícios. Desse modo, Bissíu era “pura
música”, me explicou Gabriel Sodré Maia (2017, trabalho de campo). O
seu corpo era formado por instrumentos musicais, os primeiros
habitantes da terra perceberam isso após a morte de Biisíu, pois os enfeites
e adornos corporais escondiam os instrumentos. Sua mão era a flauta
kariçu, o seu braço a flauta japurutu, a sua perna a flauta jurupari. Assim
todos os órgão e membros de Biisíu eram instrumentos musicais.
Nesse passado mítico, Jurupary foi o primeiro animador das festas e
das danças. Como afirma Silva (1994), quem não queria dançar era
açoitado por Jurupary. Essa prática está presente nas festas da região até
hoje, não apenas nos rituais de iniciação. Todas as festas com música
kuxiymauara das quais participei duraram até a manhã do dia seguinte. Isso
era um compromisso levado muito a sério entre os músicos e o público.
Nessas narrativas míticas, Jurupary não só é o responsável pelas
festas. É também “o legislador”. Segundo a crença indígena, as mulheres
não podem ver as flautas sagradas, pois podem ficar doentes e até morrer.
É famosa a expressão “Lei de Jurupari”,formulada por Ermano Stradelli e
muito comentada na literatura antropológica. Graciliano Lana explicou
essa lei capital de interdição visual do seguinte modo:
As mulheres que virem esses instrumentos tornam-se impuras
e doentes (emprenhadas) e devem ser eliminadas. [...] As
mulheres não podem ver estes instrumentos. Desde o tempo
de Jurupari, no qual se conserva o segredo daquela música,
jamais os instrumentos foram vistos pelas mulheres. Os
homens matam as mulheres que veem estes instrumentos”
(SILVA, 1994, p. 94-113).

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Após ter ensinado tudo sobre música, danças e festas, Jurupary foi
enganado por algumas crianças. Ele não volta mais ao convívio dos
humanos daquele tempo e “se mata”. No lugar em que morreu nasceu
uma palmeira Paxíuba. As narrativas apontam que o “espírito” de Jurupary
foi para essa palmeira. É dela que se faz as flautas e outros instrumentos
percussivos. A ritualização da vida cotidiana entre indígenas do Alto Rio
Negro leva em conta que a palmeira não é apenas a matéria prima dos
instrumentos, mas a própria “encarnação” do Biisíu.
Mas Jurupary não está apenas nas flautas sagradas. Ele é “chefe das
festas e das danças”, assim como a “cabeça dos instrumentos”. É a sua
presença na terra, ainda em um passado mitológico, de acordo com essa
perspectiva indígena, que ensinou aos homens a “música”. Nesse sentido,
todos os instrumentos, não apenas os “sagrados”, “tradicionais” possuem
origem em Jurupary. Essa crença reforça a ideia da necessidade de “se
benzer” os instrumentos, mesmo teclados eletrônicos ou guitarras
elétricas. Nesses instrumentos “modernos”, ao passo que a manipulação
de poderosos conhecimentos estrangeiros pode ser perigosa, por outro
lado compõe parte essencial da personalidade masculina xamânica
dominar e “amansar” esses conhecimentos, assim como compor cantos,
músicas e dominar um vasto repertório (FELD, 2012; OVERING, 1990;
MONTARDO, 2009).
Como antes dito, o bahsamori (conjunto de instrumentos musicais)
engloba em sua lógica todos os instrumentos musicais, inclusive os
“ocidentais”, “do homem branco”. Justino Tuyuka, parceiro do NEAI16,
narrou uma cena que explica a relevância do bahsamori na
performatividade da música popular entre indígenas: a chegada das caixas
de som amplificadas na comunidade em que nasceu, na Colômbia. Por
volta de 1968, quando sua mãe ouviu pela primeira vez as caixas
amplificadas tocando cumbias e merengues em um volume “ensurdecedor”,
contou-me ele, ficou bastante intrigada e preferiu manter a mesma
proibição que é imposta a todas as mulheres e às crianças na cultura
Tukano quanto à flauta ritual Miriiã. A mãe do Justino achou conveniente
não manter contato visual com a fonte sonora de frequências tão fortes e

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 166


graves, dizia que não gostava de caixa de som palificada, pois fazia o seu
coração tremer e tirava a sua tranquilidade17.
Contei esse caso para Gabriel Sodré Maia que me disse fazer todo
sentido, pois o som alto, grave e forte vincula-se à presença de Biisíu.
“Tradicionalmente” as flautas de miriã fazem a mediação entre os Yepá-
Mahsã e Biisíu, mas em contextos mais recentes, as caixas de som alcançam
frequências sonoras semelhantes à flauta miriã. Ao praticar no cotidiano a
“lei de jurupary” aplicada à “moderna” caixa de som, a mãe de Justino
Tuyuka revela que a presença de Biisíu se aplica ao som musical,
independente da mídia. É uma constatação que corrobora com a
explicação que oferece Claudia Augustat (2011), em que “a incorporação
de outro contexto musical, a música popular por exemplo, permite a
continuidade de algumas práticas e conceitos indígenas”. Em suma, o som
é mais relevante que o objeto (a flauta, ou a caixa de som, por exemplo). O
valor que se dá ao objeto é determinado pelo ritual, mas também pela
forma como o indivíduo ritualiza sua vida cotidiana.
Em 2016, enquanto trabalhava com Ary até Ykuema18 para gravar
suas músicas, escutamos ao longe os efeitos característico da performance
de Walmir Camico no teclado eletrônico. Enquanto tocava, ele disparava
um som de “trovão”, uma explosão de graves que distinguia sua
apresentação. Ao escutar, Ary comentou: lá vai Walmir tocando o
“jurupary” dele. Foi apenas uma piada de Ary, mas que demonstra como
esses conceitos são usados no cotidiano.
Ao compreender a filosofia que a narrativa sobre Biisíu carrega,
percebi que os instrumentos musicais, como guitarras, teclados e outros
instrumentos eletrônicos “jamais” foram “modernos”. A perspectiva
indígena considera em um primeiro plano que sua origem remonta ao
passado mítico e ao conhecimento musical que os humanos
desenvolveram a partir dos ensinamentos de Bissíu. Desse modo, por
exemplo, as histórias sobre a “invenção” da guitarra elétrica que eu julgava
ser um instrumento “moderno”, originado em 1950, americano etc. não é
hegemônico em contexto indígena. Mesmo um instrumento “Made in
Japan” ou “Made in China” pode ser explicado por uma perspectiva

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cosmológica Yepá-Mahsã globalizante: “Made in Biisíu”.


A convivência com Jack da Guitarra e os diversos músicos indígenas
que conheci no decorrer do trabalho de campo me proporcionou
entender uma outra postura musical, menos colonizadora, em que, por
exemplo, mais importante é a relação de afinidade que o instrumentista
possui com o instrumento do que seu local de fabricação. Desse modo, a
música popular entre os Yepá-Mahsã também leva em consideração o fato
dos instrumentos serem “pessoas”. Nesse caso, são pessoas não-humanas e
formam uma “classe social” de seres invisíveis que habitam a floresta.
Representante ilustre dessa classe é Jurupary (e suas variantes
interculturais do Alto Rio Negro, Biissíu, entre os Tukano, e Koai, entre os
Baníwa).
Outra vez, no bairro Tuyuka, observei que um tocador de kariçu
estava molhando com cerveja suas flautas. Eu já sabia que se molhavam as
flautas com água para melhorar a tocabilidade, mas nunca havia visto
molhar com cerveja. Ao indagar o jovem que fazia isso, ele me disse que era
para “animar” mais a flauta. Caso semelhante me narrou Justino Tuyuka,
ressaltando que nas comunidades indígenas derrama-se caxirí para facilitar
que a flauta “se lembre” das músicas. Nesse contexto, propriedades
mnemônicas da bebida alcoólica se aplicam aos instrumentos.
Compreender que os instrumentos musicais são também “pessoas”
e tiveram sua origem em Biisíu alterou a forma como eu percebia a própria
música popular. Ao possibilitar a interação de pessoas, de comunidades,
assim como entre os humanos e os não humanos os principais elementos
de uma musicologia Yepá-Mahsã me mostraram, por meio da música
kuxiymauara, que a música como faculdade humana é algo muito mais
abrangente que discussões sobre gêneros musicais.

Considerações

Tentei aqui contar histórias que vivi em trabalho de campo no atual


cenário musical da cidade de São Gabriel da Cachoeira, Amazonas, Brasil.
Fui levado pelos interlocutores do trabalho de campo a conhecer “a

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 168


verdadeira música da região”, como me foi apresentado a música
kuxiymauara. Nos lugares onde estive e pude vivenciar essa música, por
vezes também referida como uma dança, nunca estive em um grupo
isolado. No salão de dança, assim como entre os instrumentistas e
cantores, o que eu presenciei foi uma grande interação entre os povos
indígenas do Alto Rio Negro, mediada pelo som da música popular e pela
dança corporal.
A música popular praticada entre indígenas da região do Alto Rio
Negro, especialmente entre os músicos e o público da cena do gênero local
kuxiymauara, proporciona um espaço simbólico para a reflexão e difusão
do pensamento indígena sobre a música. Ao invés de uma destruição de
sua cultura, o sofisticado pensamento Yepá-Mahsã engloba e explica todo
mundo ao seu redor. Desse modo, entende-se a guitarra, o teclado
eletrônico e outros instrumentos como saídos do corpo de Biiíiu
(Jurupary). Essa ideia aponta para a continuidade das práticas Yepá-Mahsã.
Uma das característica da música kuxiymauara como gênero musical-
performativo local seria a presença de práticas indígenas, que são
ritualizadas na vida cotidiana. As ideias sobre Biissíu alteram o sensório e
caracterizam a permormatividade no contexto indígena de São Gabriel da
Cachoeira, influindo na forma de perceber e praticar a música popular.

Pequeno glossário

· Biisíu: Demiurgo do mito Yepá-Mahsã que explica o surgimento das


músicas, cantos e danças. Trata-se da primeira criança nascida de
parto normal. Ele também é conhecido como Ūtãboho Õ'âkūhū,
“ser quartzo responsável pelos instrumentos musicais. Ele veio a
dar origem a todos os instrumentos musicais usados pelos Yepá-
Mahsã” (SODRÉ MAIA, p. 84, 2018). Vale ressaltar que Bissiu é
equivalente a Koai e Jurupary, demiurgo baníwa e baré
respectivamente.
· Música kuxiymauara: Termo português-nheengatu que significa
“música de antigamente”. Usado no Alto Rio Negro para designar
a prática da música popular em contexto indígena. Entende-se com
um gênero musical performativo local. Cumbia, lambada,

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guitarrada, forró e outros gêneros são performatizados e adquirem


profundos significados que se relacionam à história da região, à
paisagem, trajetórias pessoais e diversos outros elementos da vida
sociocultural. É muito comum se comprar Pen-Drive no centro da
cidade de São Gabriel da Cachoeira repleto de músicas
kuxiymauara para fazer festa no interior. Há programas de rádio AM
local que se dedicam ao tema, por exemplo o Boa Noite Rio Negro
apresentado por Deusita, do povo baré. Também se faz presente
nas festas de santo em comunidades indígenas. No trabalho de
Paulo Maia Figueiredo (2009, p. 237) a palavra kuxiymawara
aparece pela primeira vez em documentos acadêmicos. Também se
pode verificar na dissertação de Lizardo Salgado (2016, p. 133,
136,137,140,143,148) que um dos ingredientes para animar as
festas de santo é, conforme sua escrita, a música “cuxiima uara”.
· Nheengatu: Língua que se originou com a presença missionária
católica entre indígenas brasileiros do litoral. Introduzida na
Amazônia, foi adotada pelo povo baré do Alto Rio Negro e hoje é
considerada uma língua indígena oficial do município.
· Yepá-Mahsã: um dos 22 povos indígenas que habitam a região da
fronteira brasileira e colombiana, entre os rios uaupés e tiquié.
Também conhecido da região e na literatura antropológica como
Tukano.

Notas

1. E s t i m o u - s e e m 2 018 u m a p o p u l a ç ã o d e 4 4 . 816 h a b i t a n t e s .
h t t p s : / / c i d a d e s . i b g e . g o v. b r / b r a s i l / a m / s a o - g a b r i e l - d a -
cachoeira/panorama.
2. http://www.foirn.org.br/povos-indigenas-do-rio-negro/diversidade-
linguistica-no-alto-rio-negro/
3. Muitas vezes descrito como multi-étnico, pluriético, cosmopolita ou outras
nomenclaturas que destacam o sistema social diverso dos povos indígenas da
região.
4. Todas essas nomenclaturas são genéricas e utilizadas de maneira mais ou
menos uniforme na literatura antropológica. Baníwa se refere aos povos que
vivem nas margens do rio Içana. Tukano os que habitam a região do alto rio
Uaupés e rio Tiquié, fronteira entre Brasil e com a Colômbia. Yanomami os
povos que vivem aos pés do Pico da Neblina, fronteira entre Brasil e Venezuela.
Todos esses grupos se encontram convivendo na cidade de São Gabriel da
Cachoeira.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 170


5. Também conhecidos na literatura como Tukano.
6. Vivo em Manaus e realizo trabalho de campo na região desde 2013 de maneira
intercalada e multi-situada, tendo visitado várias comunidades e passado
vários meses na região desde então. A distância entre Manaus e São Gabriel da
Cachoeira é de 852 km. Chega-se a São Gabriel apenas de barco ou de avião.
De barco “expresso”, a viagem dura mais de 24h.
7. Palavra em língua nheengatu que significa “de antigamente”. A expressão
“música kuxiymauara” significa música de antigamente. Mas se refere à música
popular, que é incorporada pelos indígenas como algo muito antigo. A língua
nheengatu se originou da experiência missionária entre indígenas da costa
brasileira. Foi introduzida na Amazônia e adotada pelo povo Baré, que hoje
em dia não fala mais sua língua aruak.
8. Termo utilizado, de maneira geral, por indígenas em todo Brasil. Na região do
Alto Rio Negro, é muito comum a expressão “parente” para designar os
conterrâneos da região que integram o sistema pluriétino com mais de 22
povos. Mesmo com línguas diferentes, eles compartilham narrativa de origem
do mundo o mito da cobra grande, além da exogamia linguística como regra
de casamento.
9. Em língua Yepá-Mahsã, bahse é traduzido como “benzimento”, ko-wii é “casa”.
O sentido de “benzimento” está associado à prática do xamanismo.
10. Em língua tukano, respectivamente: “dança, vem dançar e casa de danças”. O
radical bahsa é um conceito que engloba canto, música e dança.
11. Para compreender as várias especialidades do núcleo social dos Yepá-Mahsã
sugiro checar a coleção Reflexividades Indígenas (Maia 2018, Rezende
Barreto, 2018; Lima Azevedo 2018; Lima Barreto 2018) publicado pelo
Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena (NEAI/UFAM)
12. Como explica Gabriel Sodré Maia (2018), o bahsamori não é composto apenas
por cantos, música e dança. Ele envolve uma rígida prescrição
comportamental (ética), que se chama em língua tukano betisé. Não basta
saber tocar, é preciso saber o que fazer, como fazer e quando fazer, pois todos
esses conhecimentos musicais estão relacionados e são aplicados conforme
fatores biológicos, astrológicos e temporais, explicados entre os Yepá-Mahsã
por meio de sua narrativa cosmológica.
13. Relaciona-se com todas as flautas sagradas citadas no início do trabalho. Pe.
Alcionílio Brüzzi Alves da Silva (1994, p.95) explica que o termo Tukano
oriental conhecido por miriiã “tem sido muitas vezes, também por narradores
indígenas, identificados como Jurupari da língua Nheengatu. Em língua
Arwake, a cuja família linguística pertence os Tariana, identifica como Koái”.
14. Na realidade em grande parte das terras baixas da América do Sul como
argumenta Rafael José de Menezes Bastos. É um equívoco pensar que se
tratam apenas de flautas. São flautas, trompetes, instrumentos de percussão e
muitos outros. O que se quer dizer é que o sistema não se resume a um grupo,
nem apenas a um instrumento, mas a vários (MENEZES BASTOS, 2011;
MONTARDO, 2015). A ideia de “instrumentos sagrados” é compartilhada
por grande parte dos povos da região e se destaca nas etnografias que se

171 Agenor Vasconcelos Neto


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ISSN: 2446-8290

ocuparam com o tema (HILL, 2011; PIEDADE, 1997; HUGH-JONES, 2002;


PAULO MAIA, 2009; BARROS, 2009)
15. Coletada em 1963 em língua Tukano por Ettore Biocca, republicada e
comentada por Alcionílio Brüzzi Alves da Silva na obra Crenças e Lendas do
Uaupés (1994).
16. Núcleo de Estudos da Amazônia Indígena, grupo de estudos da UFAM.
Participo do grupo desde 2016, desde então convivo com os estudantes
indígenas do PPGAS/UFAM. Parte dos meus dados são provenientes dessa
experiência e estudo da produção acadêmica desses autores (MAIA 2018;
REZENDE BARRETO, 2018; LIMA AZEVEDO 2018; LIMA BARRETO
2018; REZENDE TUYUKA, 2004; LIZARDO SALGADO 2016)
17. Como já explicado, prática conhecida na literatura antropológica como lei
“Lei de Jurupary”. Graciliano Lana descreve essa interdição visual da seguinte
forma: “As mulheres que veem esses instrumentos tornam-se impuras e
doentes (grávidas) e devem ser eliminadas. [...] As mulheres não podem ver
esses instrumentos. Desde o tempo de Jurupary, em que o segredo dessa música
é preservado, as mulheres nunca viram os instrumentos. Os homens matam
mulheres que vêem esses instrumentos” (SILVA, 1994, p. 94-113).
18. Ary até Ykuema e Walmir Camico são interlocutores fundamentais do meu
trabalho de campo, eles se autodenominam indígenas baré, cantor e músico
especialista em música kuxiymauara.

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Música kuxiymauara entre os Yepá-Mahsã: os instrumentos têm “alma” 174


Paisagens amazônicas da/na musicalidade
local: a cena da canção popular de Belém
do Pará e a narrativa imagética

Nélio Ribeiro Moreira


Universidade Federal do Pará
neliormoreira@gmail.com

Resumo: O artigo busca apresentar incipientes reflexões sobre o material visual com a
finalidade de fazer uma leitura dessas imagens em sua relação com a cena musical local por meio
do conceito de paisagens amazônicas, noção que busca enquadrar as representações visuais que
acionam a natureza local – rios, florestas, animais, lugares, etc. - e que foram inventados como
cultura regional. Nesse sentido, interessa ver como essas representações aparecem como narrativas
imagéticas na cena contemporânea da música popular de Belém do Pará. Fica patente que ao se
utilizar essas imagens como referencias os atores sociais que as produzem e veiculam – artistas,
mídia, etc. - têm como intuito referendar visualmente elementos identitários no projeto dessa cena
musical.
Palavras-chave: Antropologia Visual; Paisagens Amazônicas; Cena Musical; Belém do
Pará.

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ISSN: 2446-8290

Amazonian landscapes of local musicality:


the scene of the popular song of Belém do
Pará and the imaginary narrative

Abstract: The article seeks to present incipient reflections on the visual material in order to make
a reading of this imagery in relation to the local music scene through the concept of Amazonian
landscapes, a notion that seeks to frame the visual representations that trigger local nature - rivers,
forests, animals, places, etc. - which were invented as a regional culture. In this sense, it is
interesting to see how these representations appear as imagetic narratives in the contemporary
scene of popular music in Belém do Pará. It is evident that by using these images as references the
social actors who produce and convey them - artists, media, etc. - are intended to visually endorse
identity elements in the design of this music scene.
Keywords: Visual Anthropology; Amazonian landscapes; Musical Scene; Belém do
Pará.

176
Paisajes amazónicos de la musicalidad local:
la escena de la canción popular de Belém
do Pará y la narrativa imaginaria

Resumen: El artículo busca presentar reflexiones incipientes sobre el material visual para hacer
una lectura de esta imágenes en su relación con la escena musical local a través del concepto de
paisajes amazónicos, una noción que busca enmarcar las representaciones visuales que
desencadenan la naturaleza local: los ríos. Bosques, animales, lugares, etc. - Que se inventaron
como cultura regional. En este sentido, es interesante ver cómo estas representaciones aparecen
como narrativas imagéticas en la escena contemporánea de la música popular en Belém do Pará.
Es evidente que al usar estas imágenes como referencias, los actores sociales que las producen y las
transmiten (artistas, medios de comunicación, etc.). - tienen la intención de respaldar
visualmente los elementos de identidad en el diseño de esta escena musical.
Palabras clave: Antropología Visual; Paisajes Amazónicos; Escena Musical; Belém do
Pará.

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Introdução1

Efetivamente, a paisagem amazônica2 é um conceito que aqui utilizo


como sendo o conjunto de elementos da “natureza amazônica”3 que foram
construídos e em seguida tratados culturalmente pelo interesse estético do
ponto de vista social. Trata-se de que uma realidade apreendida e estilizada
em imagens, tendo em vista a potência de vir a ser um semióforo4, um meio
para instituir um símbolo de unidade entre musicalidade e imagética
como subsídio para o enredo. Portanto, trata-se de tomar a paisagem como
um agente, e não apenas um cenário, haja vista que ela é capaz de instituir
relações sociais de maneira que os motes imagéticos tomam o lugar em sua
recorrência discursiva. Para a musicalidade local as imagens visam ter
como um seu fundamento ser um referencial representativo dos elementos
geográficos que historicamente se consolidaram como formadores da
paisagem local/regional.
Aqui, a leitura se afunila na forma de acionamento desses
elementos na cena de música popular contemporânea de Belém do Pará
como um campo de possibilidades e um lugar de projeto (VELHO, 1994).
Tais motes imagéticos, como variações paisageira5 são observados em
apresentações musicais, nos festivais, nas entrevistas, nas reportagens em
vários veículos de comunicação (de âmbito regional, nacional e
internacional), em material impresso – encartes e capas de álbuns - e no
ciberespaço6. Nesse sentido, a perspectiva analítica aqui trabalhada se
assenta na ideia de que a paisagem é fruto da experiência no tempo em
articulação com o movimento da sensibilidade, formando um todo
inserido num projeto de experiência narrativa que visa juntar as partes em
uma memória compartilhada. Tem-se, assim, que a existência fragmentada
do real possa se manifestar como uma intencionalidade interpretativa7 que
tem como finalidade mostrar o todo da natureza (ECKERT, 2009).
Durante o campo da pesquisa para o doutorado8 em Antropologia
Social detectei que na cena da música popular contemporânea de Belém
do Pará, um dos campos da pesquisa, esses elementos tradicionais da
geografia amazônica como natureza se entretecem em um diálogo com o

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 178
urbano – e aqui vale atinar àquela leitura euclidiana sobre a natureza
“anfíbia” da cidade amazônica do início do século XX (CUNHA, 2003) -,
apontando imbricações incontornáveis entre a ideia de uma “natureza
amazônica com suas florestas e rios” e o “espaço urbano como resultado de
suas formas sociais”. Isso enseja e referenda discursos de âmbito estético
que acenam no sentido de destacar algumas características de Belém como
uma floresta-cidade:9 um núcleo urbano no qual se intenciona que seu
entorno natural, a floresta e o rio, sejam-lhe um integrante inerente. É isso
que passou a ser visto e mostrado pelas lentes de quem produz as paisagens
amazônicas para a musicalidade local, procedendo a uma imbricação
necessária a fim de que assim seja, mais que um referente visual nos
discursos imagéticos que ambientam a musicalidade local, um
constituinte fundamental desta.
Essa atmosfera particular representada nas imagens aqui
trabalhadas, na busca por expressar a disposição anímica dessa cidade
como espaço sensitivo, além de ser-lhe inegavelmente uma característica, é
também ativada como recurso legitimador do discurso cancional que visa
contribuir para produzir sensações. Como consequência, isso engendra
formas de comunicabilidade e sociabilidades precisas, haja vista o
reconhecimento comunitário dos códigos culturais que essas tais paisagens
amazônicas, como vocabulário e lugar de fala, acionam.
Por fim, recorro à noção de fixação de Simmel (2013) como um
fator importante para subsidiar essa noção de paisagem amazônica como
espaço praticado. Essa seria um “ponto de rotação” no sentido
simmeliano porque, sendo dotada de uma carga simbólica que lhe é
fundamental há ali o estabelecimento de uma fixidez sócio-espacial, o que
provoca precisas formas de relação nos indivíduos que se agrupam em
torno dela como um objeto. Portanto, a imagética da musicalidade local
seria um objeto de fixidez. Dessa forma se estabelecem, devido a essas
características precisas que constituem as paisagens amazônicas – estéticas,
de perspectivas sociais, físicas, politicas, de localização, de ambiência, etc.
–, agrupamentos e formas de sociabilidade pautadas em certa regularidade
na cena musical.

179 Nélio Ribeiro Moreira


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Musicalidade local e a paisagem amazônica

A antropologia visual é uma forma de conhecer o indivíduo no


convívio coletivo por meio da imagem e, notadamente, um campo de
conhecimento como “lugar de oportunidades” (RIBEIRO, 2005, p. 636).
Resultante das mudanças processadas com a possibilidade de reprodução
imagética ao longo do século XX, em tempos de globalização e recurso
digitais a observação antropológica do visual é um importante elemento
para estudo dos processos sociais. Como instrumento e objetivações
precisas, instaurando formas de percepção do espaço, da sociedade e da
cultura, estudar a imagem como “dado” construído socialmente e
construtor de sociabilidades é buscar ampliar a possibilidade analítica do
campo social, como uma metáfora da perspectiva social que pode ser
tratada pelo antropólogo, na medida em que estabelece novas percepções
do tempo e do espaço, da memória e do atual, documentando o processo
social (CANEVACCI, 2001; RIBEIRO, 2004). Sendo assim, é
importante acionar as imagens no estudo antropológico porque:
[A] antropologia visual apresenta-se como um campo de
investigação e de desenvolvimento de práticas que constituem
um desafio aos estudantes e às instituições universitárias no
âmbito das atuais mudanças do ensino superior. Constitui-se
como amplo campo interdisciplinar entre as ciências sociais e
as artes, as ciências e as tecnologias da comunicação. Institui-
se como processo simultâneo ou complementar de
investigação e produção escrita, audiovisual, multimídia,
hipermídia. Desloca-se das temáticas tradicionais de
investigação em antropologia para as temáticas atuais, sem no
entanto deixar de tratar de toda a tradição antropológica e,
simultaneamente, recuperar arquivos documentais das
práticas anteriores, criando assim uma relação mais próxima e
mais implicada (da disciplina e da universidade) na vida social
(RIBEIRO, 2005, pp. 637-638).

Nesse sentido, a proposta aqui apresentada é de que o recurso à


narrativa imagética na musicalidade local se propõe como um importante
constituinte dessa cena. Mais que apenas fazer-se ouvir, nota-se que essa

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 180
musicalidade tem no fazer-se ver um importante recurso ao seu conjunto
discursivo. De fato, as composições imagéticas, que aqui são tratadas
permitem que se possa vê-las como elementos de um enredo narrativo. É
por este caminho que vai a justificativa desse trabalho, haja vista que nas
incursões ao campo ao longo da pesquisa na cidade de Belém pude notar a
musicalidade do gênero da canção popular10 nessa cidade11 estão atreladas
às paisagens amazônicas, tomando estas manifestações visuais da cultura,
como um elemento dinâmico a corroborar à dinâmica da musicalidade
local.
Nesse ponto, é preciso salientar que a dinamização dos processos
de relação social promovida pelos fluxos de informação nos meios digitais
é um componente importante, haja vista que isso desencadeou e ainda
promove uma ampla produção e circulação de imagens. Digo isso porque
os registros imagéticos não são feitos de maneira despretensiosa. Cito o
caso de uma experiência em campo. Durante um evento de música que
ocorreu no bairro da Cidade Velha, às margem da Baia do Guajará, notei
que uma pessoa que acompanhava as apresentações estava fazendo
fotografias com certo profissionalismo. Me aproximei e perguntei se era
pra alguma reportagem, devido aos apetrechos de fotografia profissional
que portava. Ela me respondeu que não, que eram fotografias pra acervo
pessoal. Mas destacou em sua fala que queria encontrar uma forma de
enquadrar o rio, que era “necessário mostrar o lugar, com suas
características físicas [pois se] você tá na Amazônia é preciso fazer um
fundo que seja condizente [para as fotografias] com essa coisa da música
paraense que ressalta essas qualidades naturais da região [...] a cidade é ela
uma floresta [...]”.12
Se as fotografias feitas apenas como registro pessoal de um
momento já requerem certo arranjo performático, como no caso relatado
anteriormente, natural que sejam ciosos ainda mais aqueles que fazem
registros com objetivo de que suas imagens sejam publicizadas. Como foi
dito anteriormente, a facilidade de produção e circulação de imagens no
ciberespaço é um fator importante para que esse enquadramento da
natureza na musicalidade local se constitua como elementos importantes

181 Nélio Ribeiro Moreira


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ISSN: 2446-8290

de uma narrativa. Aqui me refiro a produção visual que é uma invenção


criativa, ou seja, às imagens produzidas para compor o discurso de caráter
artístico a ser midiatizado, como videoclipes, capas de discos, ilustração
em reportagens, layout de sites, programas televisivos, etc. Em suma, são
essas imagens processadas para essa finalidade que efetivamente se valem
das paisagens amazônicas como mote de legitimação identitária da cena
musical local pelo visual.
Isso, sem dúvida, enceta significações que são importantes para a
abordagem antropológica. Mais ainda, apontam uma imbricação entre a
Natureza e a Cultura. Ou seja, impõe à noção de paisagem como um dado
natural o artificial. Sendo assim, são construções que a análise
antropológica visa tratar a fim de demonstrar que a imagem da Natureza é
apenas figuração, um recorte do todo.
As paisagens amazônicas na musicalidade têm essa pretensão de
tomar a “paisagem natural” a fim de integrá-la em um todo complexo e
integrado, total. Sendo assim, a paisagem amazônica é uma performance,
haja vista que se trata de uma resposta deliberadamente acionada por
parte dos atores sociais que a produzem com o objetivo de mostrar um
todo natural que seja culturalmente perceptível.
Por isso é a paisagem amazônica uma organização visual, um
conjunto criativo que visa atender a demandas sociais, uma possibilidade
esteticamente construída do que é exterior para ser viabilizada como um
instrumento promotor de sociabilidade no âmbito do tempo e do espaço
como uma configuração. Essa perspectiva remete a que essa paisagem
amazônica seja portadora de uma funcionalidade precisa na cena musical
contemporânea. Todavia, é importante atentar que essa utilização da
imagética criativa do local já se notava no cenário musical de Belém, como
escopo geográfico-simbólico, em momentos anteriores. Nos anos 1980 já
era mote para e remeter o musical a uma significação como paisagem
revelada por um processo de percepção sonoro-visual (MOREIRA, 2014).
Vemos, por meio da leitura do material coletado e aqui utilizado,
que essa culturalização do ambiente natural por meio do paissageiro é
sistemática, busca instaurar um lugar de pertença por meio do recurso ao

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 182
imagético e tem em vista a territorialização do sonoro por meio do visual.
Como construção social, instaura uma identificação pela valoração do
espaço recortado como paisagem para a unidade. E aqui cabe tomar como
premissa que a paisagem suscita agência nos indivíduos porque ela está
dotada de disposição anímica, o que a faz ressoar no social e, dessa forma,
instaurar “um só e mesmo ato psíquico” (SIMMEL, 2009, p. 17). Isso se
manifesta, por exemplo, quando recorrentemente se apresenta o Ver-O-
Peso como um ponto de referência imagética para a musicalidade
belemense: é o lugar que se torna paisagem a fim de instaurar a unidade
referida anteriormente.
Aqui vejamos um dado. Trata-se do videoclipe da música “No
meio do pitiú” da cantora paraense Dona Onete. Lançado em 2016, esse
material sonoro-visual retrata um dos lugares, como espaço praticado
(CERTEAU, 1996), mais tradicionais da cidade: o emblemático mercado
localizado às margens da Baia do Guajará. Marco do início de ocupação do
que viria a ser a cidade de Belém, o Mercado do Ver-O-Peso é um dos mais
representativos lugares históricos da paisagem da cidade. Mesmo sendo
uma área de trabalho, lá é onde estão as mais representativas referências
culturais e regionais, por isso um lugar de diversas possibilidades
representativas como apreciações estéticas da paisagem regional
(LIMA,2010; LEITÃO, 2010).
A canção descreve o namoro entre duas aves: um urubu – que
habita desde muito tempo aquela área – e uma garça – que passou a habitar
ali recentemente. A narrativa dessa improvável história de amor entre as
duas aves, um carimbó estilizado chamado sintomaticamente de “No meio
do pitiú”13, ganhou narrativa imagética com a produção do videoclipe da
música de Dona Onete. Ao longo de 4 minutos e 20 segundos, as imagens
que compõem a narrativa visual enquadram-se em paisagens amazônicas
emblemáticas tendo como mote uma característica marcante daquela área,
o mau cheiro que exala na área devido à comercialização de peixes ali.
Pode-se ver no enquadramento que retrata a narrativa visual da
música os dançarinos de carimbó e a cantora, as imagens do urubu, o o rio
e a floresta. Nota-se que ali se procura uma harmonização, em interação

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simbiótica, entre Natureza e Cultura por meio de uma procedimento


estético que visa instaurar a unidade paisageira como finalidade.
No discurso visual (Fig. 1), os enquadramentos imagéticos
entrelaçam barcos, rios, ruas, automóveis, urubus, garças, trabalhadores, o
colorido das roupas da cantora e dos dançarinos, os prédios do entorno, a
floresta. Embora essa esteja distante, no fim das contas, ela também é
integrante fundamental da unidade paisageira proposta. O jogo de
imagens busca referendar a temática da música: a exaltação das
características miasmáticas daquela área da cidade por meio da mirada nos
urubus aparentemente em sobrevoo sobre a cantora.

Imagem 1: Um céu de urubus. Trecho do vídeoclipe “No meio do pitiú”, Dona


Onete. Fonte: h ps://www.youtube.com/watch?v=CkFpmCP-R04

Acima está um trecho do videoclipe da música. Nele vemos um


recorte que aponta no sentido daquela referida busca por uma narrativa
imagética que visa a unidade identitária. Pode-se dizer que a narrativa
imagético-musical tem consigo a intenção de uma cristalização porque se
associam à paisagem. Há, assim, uma convergência imagem-som que
pretende referendar uma aderência ao lugar como referência à história, à

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 184
cultura, à memória coletiva e às sociabilidades que o Ver-O-Peso incita
como práticas sociais. Portanto, como paisagem amazônica, o constituinte
visual da obra faz notar ali aquilo que Georg Simmel (2009) chamou de
Stimmung. Ou seja, ali estão articuladas as propostas de percepção e
possibilidades de afetação estética que visam desencadear numa associação
interativa dinâmica. Nesse sentido, a visualização do videoclipe como
conjunto artístico propõe que essa afetação se dê por meio uma
interligação visual como “prolongamento” da vida real.
Essa identificação com o regional ativada por meio da narrativa
sonoro-visual no objeto aqui tratado pode ser notada em vários gêneros
musicais da cidade. Anteriormente lidamos com um carimbó, mas outros
gêneros que se imbricam e acabam por compor com a canção popular da
cidade, como o samba e o brega, também recorrem às paisagens amazônicas.
Essa imbricação que ocorre na cena contemporânea certamente se deve,
em grande medida, a dinâmica desencadeada pelo evento musical Terruá
Pará14, uma iniciativa de política cultural do Estado e sua proposta de
mostrar a cultura musical da região como um conjunto sintético onde
“tudo é música paraense”, sem se pautar na arbitrária e tradicional divisão
em gêneros distintos, a fim de uma imprimir uma identidade (MOREIRA,
2012). Aliás, a artista Dona Onete é, em grande medida, resultado desse
evento.
Desde os anos de formação da MPB no Pará (anos 1960 e 1970),
resultando na Música Popular Paraense, como canção popular, o carimbó
teria sido a matriz de um tradição inventada por uma empreitada
“etnográfica” de intelectuais e artistas-pesquisadores locais (COSTA,
2010). Todavia, as paisagens amazônicas já compunham o discurso de uma
música regional desde os anos 1930 com o Maestro Waldemar Henrique
(MOREIRA, 2011). Nesse sentido, vejamos o disco Tamba-Tajá, nome de
uma música do referido artista, da cantora Fafá de Belém, de 1976. A
imagem da capa (Imagem 2) desse disco é uma performance fotográfica:
Fafá aparece embrenhada na mata, como um recurso para demonstrar
visualmente a interação humano-natureza regionalizada. (A propósito, a
contracapa é colorida em tons de verde, o que certamente busca fazer
referência à exuberância verde da floresta amazônica).

185 Nélio Ribeiro Moreira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 175-198
ISSN: 2446-8290

Imagem 2: Em performance nas brenhas desta mata. A capa do disco da cantora


Fafá de Belém, “Tamba-Tajá”, de 1976. Fonte: Moreira (2014)

Assim, também a cor verde está na capa de outro disco. Sobre uma
fotografia com folhagens e galhos é ela que dá o tom da capa do disco
“Amazônia” (Imagem 3), do cantor Nilson Chaves. Nessa imagem, a
natureza é “intencionada” em sua singularidade.

Imagem 3: Capa do disco


“Amazônia”, do cantor e
compositor Nilson Chaves.
Fonte: Moreira (2018)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 186
Portanto, ao problematizar a questão da invenção e dos usos da
paisagem na musicalidade local é preciso tem como sentido fazer notar
que a narrativa imagética faz parte, historicamente, do projeto dessa cena
da canção popular. Dessa forma, se pode dizer que há uma experiência
cultural articulada, cujo mote é fazer repercutir, também pelo visual, uma
dada sensibilidade a fim de promover uma conciliação e, assim, formar
uma unidade narrativa que possa ser instrumento de coesão social.
Segundo Pierre Sansot, o humano, na sua experiência, que é descontinua
e múltipla, se relaciona às imagens motivado pelo conhecimento que já
possui do conjunto destas, sendo, então, o imaginário uma imaginação
criadora (SANSOT, 1983). Então, à estética, como fator de cultura, a
imagética é o prolongamento da bagagem formadora do indivíduo. Isso se
expressa, segundo Mikhail Bakhtin (1998), numa “circularidade dos
sentidos”, o que sustenta a confiança dos indivíduos naquilo que
constitui-se em arena de convívio social; como imagética, as paisagens
amazônicas estão nas narrativas para exercerem essa função.
Um segundo conjunto visual é composto por uma programa de
televisão. Trata-se do programa Amazônia Samba15, veiculado pela rede de
TV Cultura e apresentado pelo cantor paraense Arthur Espíndola. Nele
temos outro meio de utilização da significação simbólica visual na música
popular paraense contemporânea. Por meio das paisagens amazônicas
acionadas como marca visual transcorrem apresentações musicais e
conversas. O próprio tema de abertura do programa é composto por um
“samba amazônico” que tem na sua letra referências a importantes
elementos da cultura local: o boto, o uirapuru, o cupuaçu. As locações de
filmagem (Fig. 4) foram realizadas às margens de um igarapé, um furo de
rio, tendo ao fundo uma floresta. Sucintamente, eis como se apresenta em
sua funcionalidade a forma paisageira, dando sustentação às
performances dos artistas da cena local.16
O fato de que o programa tem como patrocinador o Banco da
Amazônia (BASA) certamente requer que haja elementos “regionais” a
fortalecer os usos das variações paisageiras que ali estão. Pela perspectiva
de leitura aqui praticada se vê que esse conjunto imagético-musical é uma

187 Nélio Ribeiro Moreira


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ISSN: 2446-8290

interação objetiva que tem a finalidade de legitimar justificar a presença


dos músicos em um todo paisageiro que remeta às marcações sociais. Por
isso, na construção narrativa estão códigos imagéticos que
potencialmente podem ser re-significados. Nesse sentido, a paisagem
amazônica ali ativada é um constituinte “real” do vivido, como uma
duração social. Em outras palavras, ali está representado um pedaço da
natureza que busca remeter a um, que se instaura por aproximação,
quando procura mostrar a mata, o rio a partir de um mirante que serve de
palco para as apresentações.17

Imagem 4: Aqui, o igarapé e a


f loresta. Foto de programa
Amazônia Samba: Ar thur
Espíndola, Pedrinho Cavallero
e Almino Henrique. Fonte:
h ps://www.youtube.com/watc
h?v=PO-uB0V7sX4

Dessa forma, o recurso às paisagens amazônicas visa sustentar e


legitimar um tom emotivo na construção das narrativas identitarias. Isso é
utilizado como a representação da demonstração de um enraizamento
“com o natural” entre o visual e o sonoro da Amazônia.
A força de sentido dada pela interação sonoro-imagética é
orientadora do projeto atual na cena, haja vista que a paisagem amazônica é
um símbolo de unidade nesse trajeto discursivo. Em outras palavras, a
imagem territorializa o discurso cancional como mote de pertença numa
demonstração do enraizamento como construção narrativa imaginaria do
pelo ao local. Por isso as reportagens sobre música paraense são
“imaginadas” por elocuções verbais e títulos como “na floresta”, “à beira
rio”, etc18. Isso é representativo do interesse Natureza amazônica na
trajetória da musicalidade local.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 188
Assim, a paisagem amazônica pode ser lida como uma duração no
sentido de Gilbert Durand (SILVEIRA, 2009): elas evocam imagens que
foram coligidas, material e simbolicamente, a fim de constituir um acervo
imagético para a musicalidade local. Portanto, em sentido espacial, essa
paisagem amazônica é uma duração que se manifesta espacial, temporal e,
por conseguinte, socialmente, pois é resultado da ação humana que tem
como meta instituir uma camada de leitura que associa o indivíduo
(real/ideal) ao lugar (ideal/real). Disso resultam práticas de sociabilidade
precisas, promotoras de relações humanas numa construção sociocultural
de identidade regional. Portanto, se a “natureza amazônica” é “desordem”,
a paisagem amazônica é “ordem”, organização do dado real por meio da
apreensão sensível como duração.
Por outro lado, essa floresta e esse rio estilizados são fruto da
construção do que a experiência de vida urbana proporciona.
Anteriormente foi citado o fato de Belém ser uma cidade anfíbia, em que
que terra e água se imiscuem, encetando um continuum geo-simbólico.
Assim, essa situação representacional seria um fundo dinâmico para o
campo da musicalidade local, como instrumento utilizado na empreitada
que visa demarcar ações de um grupo especifico de atores sociais em seu
“território imaginário” para se posicionar em relação ao cenário musical
nacional. Isso pode ser retirado de uma leitura imagética das fotografias
que ilustram a reportagem “Pop no tucupi”, na edição 2586, nº 24, da
revista Veja de 13 de junho de 2018.
Na imagem de abertura a legenda diz: “A origem não pode limitar
minha liberdade artística”. Seu autor é o compositor e cantor paraense
Arthur Nogueira. Ele está centralizado e parece caminhar em direção à
câmera como se estivesse saindo do rio19, tangendo um violão. (Imagem 5).

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Imagem 5: Agora, o rio e a floresta. O cantor e compositor Arthur Nogueira.


Fonte: h ps://www.youtube.com/watch?v=PO-uB0V7sX4

Na reportagem não há a identificação do local fotografado.


Identifica-se apenas o autor da imagem, o fotógrafo Tarso Sarraf. Ele é o
mesmo que fez duas outras fotografias que “ilustram” a reportagem:
enquanto o cantor e compositor Felipe Cordeiro aparece com sua guitarra
em punho, tendo ao fundo as torres do Mercado do Ver-O-Peso, a rua, as
pessoas, os automóveis, o que sugere uma associação
Urbano/guitarra/caos (Imagem 6), a cantora Marisa Brito está sentada em
pedras, em uma praia de rio da região, tendo ao seu lado o violão, o que
por sua vez sugere o Natureza/violão/calmaria. (Imagem 7). Numa
palavra: pode-se ver que se trata de imagens que sugerem, paradoxalmente,
uma contraposição de discursos imagéticos na busca de uma unidade
identitária.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 190
Imagem 6: Urbano caótico e guitarra elétrica. O cantor, compositor e instrumentista
Felipe Cordeiro. Fonte: h ps://www.youtube.com/watch?v=PO-uB0V7sX4

Imagem 7: Violão, Sol e rio. A cantora Marisa Brito: Fonte:


h ps://www.youtube.com/watch?v=PO-uB0V7sX4

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Da imagem anterior (Imagem 7) pode-se destacar ainda a presença


do violão, assim como da imagem de Arthur Nogueira (Imagem 5). Um
dos motivos da sua presença ali pode ser o fato de que esse instrumento
remete, identitária e originalmente, à gênese da MPB,20 gênero ao qual os
artistas retratados buscam se associar. A presença do violão nas imagens
pode vir a ser um recurso para legitimação aos projetos desses artistas em
suas intenções de compor o circuito nacional da canção popular. Assim, ao
comporem dessa forma uma imagética regional numa revista de amplitude
nacional, certamente buscam inserirem-se no escopo nacional da MPB,
mas não sem retomar e utilizar instrumentalmente como mote discursivo
as paisagens amazônicas.

Considerações finais

Por meio das paisagens amazônicas, como variações paisageiras e


como duração, a Natureza e a Cultura são acionadas em interação, cuja
finalidade é instituir uma unidade visual-sonora. Assim vinculam-se
tempo e espaço, som e imagem num encadeamento, que se instaura em
certa complexidade, a fim de envolver vários elementos do campo social;
esses se expressam e visam expressar uma dinâmica que é processual,
tomando as paisagens como lugares praticado, como lugar físico tornado
social pelo simbólico (CERTEAU, 1996; 2008). São, portanto, resultado
da atividade humana como interação social por meio do estímulo de
elementos sensórios variados, desconexos mas que, como paisagem, se
tornam uma unidade sociologicamente compreensível.
A paisagem amazônica é uma unidade informativa percebida
porque representa (portanto, é objetiva) dados que já estão imbuídos de
uma carga algo sentimental, uma afecção. Por sua vez, isso dota os
indivíduos de uma pré-disposição em lidar com esses estímulos externos
(logo, subjetiva). Sendo assim, as paisagens amazônicas são resultado de uma
expressão da representação percebida que se manifesta em afetação interna
a fim de demonstrar uma unicidade sensível. Portanto, a paisagem
amazônica suscita agência nos indivíduos, haja vista que estes já têm uma

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 192
disposição anímica para essa interação com o lugar por meio da imagética.
Isso que ressoa no interior individual acaba por, certamente, promover
interação social.

Notas
1. Uma versão deste trabalho foi apresentada no III Encontro de Antropologia
Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 19 e 21 de setembro de
2018, Belém/PA, no GT “Musicalidades, Espacialidades e Imagens”.
Agradeço as observações feitas ao texto pelos integrantes do GT durante a
comunicação e aos pareceristas da revista que avaliaram o texto.
2. Esse termo é usado de distintas maneiras em outras abordagens. Aqui faço a
utilização a partir de uma definição conceitual que construí e que acredito ser
pertinente para a proposta desse trabalho.
3. Há uma intenso debate sobre a questão da dicotomia Natureza X Cultura,
como por exemplo, a proposta de Descola de humanização do mundo vegetal e
animal efetivada por povos autóctones, o que redunda em uma espécie de
ampliação da natureza como um continuum que integra homens, animais e
plantas (DESCOLA, 2005), numa integração entre o social e o biológico,
artefato e organismo, sujeito e objeto (INGOLD, 2015). Contudo, a paisagem
amazônica é uma construção imagética que se sustenta em recortes que visam a
um todo como uma ideia de natureza e, portanto, se propõe como uma
representação social que se encontra numa perspectiva de ser algo exterior ao
homem. Ou seja, se trata de uma construção antropológico-narrativa de um
espaço físico com características precisas e que idealmente está apartado do
humano.
4. Segundo Marilena Chauí, um semióforo é uma imagem, um sinal que liga o
invisível ao visível, assentando-se como um dado inquestionável no imaginário
popular. Geralmente, quem o utiliza é elite intelectual, a fim de fazer
sustentação da artificial unidade social. O semióforo, nesse sentido, destitui o
entendimento do processo histórico negando o dissenso, haja vista que
apresenta uma fundação, e não a formação, o que seria algo dotado de
historicidade (CHAUÍ, 2002).
5. O sistema de trocas entre o mundo sensível e o mundo das significações, a
paisagem como elemento fundamental nas formas de sociabilidade e
constituição de memórias (SANSOT, 1983; ECKERT, 2009).
6. Nota metodológica: como aqui se trata de uma reflexão sobre material que
compõe o corpus de um estudo ainda em curso e mais amplo cabe observar as
limitações em torno do volume de dados.
7. No sentido de não ser mera réplica, mas sim uma apreensão que visa à reflexão.
8. Em curso no Programa de pós-graduação em Sociologia e Antropologia
(PPGSA/UFPA) onde desenvolvo o projeto intitulado Urbi et Orbi: mundo da
canção popular de temática amazônica e processos globalizadores, sob a orientação

193 Nélio Ribeiro Moreira


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ISSN: 2446-8290

do Prof. Dr. Antonio Maurício Dias da Costa. Financiamento de bolsa de


pesquisa: CAPES.
9. Essa noção se remete, em inversão, ao conceito de “cidade-floresta” proposta
pelo historiador Agenor Sarraf. Para esse estudioso a “cidade-floresta” é o
espaço urbano que se constrói com o que os indivíduos, oriundos das
florestas, do meio rural, incorporam ao espaço urbano em construção com
suas vivências. Ou seja, é a manutenção de situações de vida da floresta no
espaço urbano em construção, sendo uma noção que remete a pensar de uma
urbanidade-singular (SARRAF, 2006, p. 24). No caso aqui tratado, trata-se de
um uso simbólico, de um florestar-singular, ou seja, de atribuir à cidade
elementos de floresta.
10. Aqui o objeto é a cena da canção popular, como um gênero musical, embora
esse uso da paisagem amazônica também seja acionado por outros gêneros,
como o brega e a música instrumental, por exemplo.
11. Essa trabalho tem como abrangência a cidade de Belém, mas a paisagem
amazônica é, também, acionada em cenas de outras cidades da região, como
pude detectar ao longo da pesquisa do doutorado.
12. Relato informal durante pesquisa de campo.
13. DONA ONETE. Banzeiro. (CD). Belém do Pará. 2016. Aqui é utilizada a versão
do videoclipe disponível em: h ps://www.youtube.com/watch?v=CkFpmCP-
R04
14. Esse evento foi patrocinado pelo Governo do Estado do Pará nos anos de 2006,
2011 e 2012 como meio de divulgação da música popular paraense para o
Brasil. Trata-se de um evento que se pautou no discurso que pretendia veicular,
no âmbito local, a ideia de unidade da diversidade, e no âmbito nacional, a
diversidade na unidade - bem como juntar modernidade e tradição - e, assim,
formatar um produto para a indústria cultural. Para mais informações ver:
MOREIRA, 2012.
15. Uma realização da TV Cultura e da Senda Produtora, com apoio do Banco da
Amazônia e da empresa de segurança Máxima Segurança.
16. Embora seja um programa sobre samba, vários artistas da cena da canção
popular e do circuito de bares da cidade, por ali passaram como por exemplo o
cantores Almino Henrique e Pedrinho Cavallero, e a cantora Alba Maria.
17. As gravações foram feitas no espaço do Restaurante Rural Terrado Meio, no
município de Marituba, na Região Metropolitana de Belém.
18. Por exemplo, como na reportagem “Encontro de sonoridades na beira do rio
Pará”. Belém, Jornal O Liberal, setembro de 2018.
19. Trata-se do “lugar à beira rio” Espaço Feliz Lusitânia, na área do Centro
Histórico de Belém, no bairro Cidade Velha, às margens da Baía do Guajará.
20. O violão é o instrumento por excelência da música popular brasileira, pois é o
instrumento da geração bossa nova, segundo o compositor Carlos Lyra.
Posteriormente, a MPB também o usou como instrumento basilar. Para Carlos
Lyra, isso tem uma pragmática, nada ideológico: é o mais acessível dos
instrumentos por ser mais barato. Por outro lado, o modernista Manuel
Bandeira já acenava, em 1924, sobre a necessidade de tomar o violão como

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 194
instrumento nacional por excelência. Mas, ainda segundo Carlos Lyra, o
compositor e pianista Tom Jobim nos anos da bossa nova já dizia: “A coisa está
mais para violão do que para piano”. (NAVES; COELHO; BACAL, 2006, pp.
85-86). De qualquer forma, há que se notar o recurso ao simbólico quando se
trata de lidar com o instrumento.

Referências

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“Pop ao tucupi: Quem são os artistas da nova geração que estão virando
pelo avesso a música do Pará”. (Disponível em:
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Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Paisagens amazônicas da/na musicalidade local: a cena


da canção popular de Belém do Pará e a narrativa imagética 198
A emergência de estéticas baitolas pelo
artivismo no forró Nordestino: como
dançam os corpos dissidentes a
música do Rei do Baião?

Ribamar José de Oliveira Júnior


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
ribamarjunior@ufrn.edu.br

Leonardo Lemos Zaiatz


Universidade Federal de Pernambuco
leonardo.zaiatz@gmail.com

Resumo: O presente trabalho tem como objetivo analisar através do enquadramento do


videoclipe, as performances artísticas de Getúlio Abelha e de Pedra Homem diante das expressões
do gênero musical do forró nordestino. Ao levar em consideração as contribuições de outros
pesquisadores sobre sonoridade e masculinidade no forró e sobre o “rural” e o “urbano” em estudos
de gênero e sexualidade, pretende-se esboçar a relação entre a produção artística de sujeitos
dissidentes e a difusão da música como produto midiático na contemporaneidade. Assim, o
estudo considera a performance das duas pessoas artistas como constitutiva entre as
musicalidades e as espacialidades de Nordeste, desse modo, oriundas da camada performática do
videoclipe diante da canção que possibilita o reconhecimento de corporalidades.
Palavras-chave: Performance; Forró; Transviado; Artivismo; Videoclipe.

199
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 199-222
ISSN: 2446-8290

The emergence of baitola aesthetics by the


artivismo in Brazilian northeastern forró:
how do the dissident bodies dance the
music of the King of Baião?

Abstract: The present essay seeks to analyze, through music videos, the performances of Getúlio
Abelha and Pedra Homem in the face of musical gender expressions of Brazilian northeastern
forró. Taking into consideration contributions of researchers regarding sonorities and
masculinities in forró, as well as “rural” and “urban” in sexuality and gender studies, the paper
seeks to sketch the relation between the artistic production of dissident subjects and the diffusion
of music as a mediated product in contemporaneity. Thus, the study takes the performance of both
artistic personas as constructive between the musicalities and spacialities of Brazilian northeast
region, and so, deriving from the performatic layer of music videos in the face of the song, which
makes the recognizing of corporalities possible.
Keywords: Performance; Forró; Transviado; Artivism; Videoclip.

200
La emergencia de estéticas baitolas por
el artivismo en el forró Nordestino:
¿cómo bailan los cuerpos disidentes
la música del Rey de Baião?

Resumen: El presente trabajo tiene como objetivo analizar a través del encuadramiento del
videoclip, las performances artísticas de Getúlio Abelha y de Pedra Homem ante las expresiones
del género musical del forró nordestino. Al tomar en consideración las contribuciones de otros
investigadores sobre sonoridad y masculinidad en el forró y sobre lo "rural" y lo "urbano" en estudios
de género y sexualidad, se pretende esbozar la relación entre la producción artística de sujetos
disidentes y la difusión de la comunicación música como producto mediático en la
contemporaneidad. Así, el estudio considera la performance de las dos personas artistas como
constitutiva entre las musicalidades y las espacialidades de Nordeste, de ese modo, oriundas de la
capa performática del videoclip ante la canción que posibilita el reconocimiento de
corporalidades.
Palabras clave: Performance; Forró; Transviado; Artivismo; Videoclip.

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v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 199-222
ISSN: 2446-8290

Eu estou bem armada pra lutar, minha arma é o meu corpo e


eu vou me atirar, sou uma bicha cangaceira pras volantes
enfrentar, me juntando com as coiteira para o geras circular
(ABELHA, Getúlio – Aquenda)

Introdução 1

Dia 29 de abril. Durante o show no Palco da Praça Verde no Festival


Maloca Dragão 2018, Getúlio Abelha cita reinterpretações do contexto
urbano pela via debochada e exagerada ao brincar com os termos Vogue
bike para o Terminal do Papi(cu). O ponto alto do show é a performance da
canção Laricado, lançada em 2017. Dia 14 de junho do mesmo ano, Pedra
Homem lança o clipe-canção Te Perder de Vista é Bom na plataforma do
Youtube. Profeflor e cantante, tanto o processo criativo de Pedra pela via
da autobiografia, como a performance de Getúlio pela via de flâneur
debochado, fazem parte de reinterpretações das paisagens nordestinas do
contexto rural e urbano através do que pode ser considerado uma estética
baitola, do ponto de vista da produção de artivismo no cenário musical.
Nesse sentido, o presente trabalho parte de analisar a performance
de Getúlio e Pedra pela ótica videoclíptica em que se produz o sujeito e suas
interseccionalidades, principalmente no que diz respeito aos marcadores
sociais de gênero e raça/etnia. O estudo considera as releituras do gênero
musical do forró nordestino através do que Colling (2018) denomina de
emergência dos artivismos nos últimos dez anos no Brasil. Ao analisar a
produção artivista no forró, toma-se a forma com que a produção de
sentido subverte lógicas de dominação rígidas no contexto social e no
recorte de Nordeste.
Perceber como os dois artistas desafiam as convenções da imagética
discursiva e transgridem a identidade masculina, vinculada a virilidade,
macheza e valentia na profusão do forró e nas paisagens nordestinas, faz-se
necessário para se pensar nas condições emergentes do artivismo a partir
da releitura do gênero musical e dos sujeitos dissidentes. Pensar um forró
dissidente a partir da afirmação de que o gênero enviadeceu, permite
questionar os limites e desafiar os significados na sonoridade do repertório

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 202
musical. Além disso, a análise pretende por meio das relações entre
musicalidades, espacialidades e imagens, compreender como a
performance dos artistas nos videoclipes podem compor eixos de agência e
mediação capazes de estabelecerem micropolíticas de gênero através da
difusão do forró em uma perspectiva dissidente de uma política desejante.
Portanto, o estudo considera a performance dos dois artistas como
constitutiva entre as musicalidades e espacialidades de Nordeste e
oriundas da camada performática do videoclipe diante da canção
(SOARES, 2014) que possibilita o reconhecimento de corporalidades.
Compreender a forma como essas corporalidades contestam, desafiam ou
fissuram dizibilidades e visibilidades no forró, faz parte das primeiras
análises entre os clipes Laricado de Getúlio e Te Perder de Vista é Bom de
Pedra. A materialização de gestos, o posicionamento de corpos e
enunciado de vozes das artistas inventam, por um horizonte subversivo,
paisagens transgressivas na imagética discursiva de Nordeste. Logo,
perceber a produção artística das cantoras na musicalidade do forró,
elenca uma análise diante do embaralhamento das identidades de gênero
na espacialidade de Nordeste, propondo intervenções no som de cabra
macho.

Forró tradicional, eletrônico, nordestinidades e machezas

O forró é um gênero musical marcado ao mesmo tempo por


convenções relativamente estáveis e ambiguidades, cisões “inconciliáveis”.
Entre sonoridades, endereçamentos, representações e divisões estilísticas,
abordar o forró é abordar também uma série de contradições e dispustas
inerentes ao próprio desenvolvimento deste gênero musical.
Para localizar a reflexão que buscamos realizar, elencaremos alguns
aspectos particulares sobre a evolução estilística do gênero. Ao escolher
como objetos empíricos os videoclipes de Te Perder de Vista é Bom de Pedra
Homem e Laricado de Getúlio Abelha, somos confrontados com uma das
principais cisões estilísticas no forró: o forró tradicional (pé de serra) e o
forró eletrônico. Embora ambas canções possam ser categorizadas sob o

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mesmo gênero musical, evocam universos simbólicos bastante diferentes.


No contexto da difusão do forró no Brasil, podemos apontar a obra
de Luiz Gonzaga como fator de grande importância. Foi na voz do
sanfoneiro pernambucano que o gênero (então enraizado na cultura
popular regional) ganhou contornos midiáticos que permitiram o
aumento do seu alcance para além das fronteiras do Nordeste, através do
suporte em disco e via rádio (ALBUQUERQUE JR, 2011; SANTOS,
2014; TROTTA, 2014).
O forró de Luiz Gonzaga apresentava algumas características que se
tornaram convenções no gênero. Aspectos sonoros (o som da sanfona, o
ritmo dançante do baião, o sotaque carregado do cantor) e temáticos (a
exaltação e a saudade do sertão, as dificuldades do ambiente inóspito o
flagelo da seca) contribuíram para a forte associação entre o forró e a região
Nordeste, e lançaram as bases da sonoridade que ficou conhecida como o
forró tradicional. (ALBUQUERQUE JR, 2011; SANTOS, 2014;
TROTTA, 2014).
Com o passar do tempo, houve um movimento progressivo de
afastamento de alguns aspectos do legado gonzagueano no forró em
direção a sonoridades e temáticas mais cosmopolitas. Desde a década de
70 surgiram artistas com propostas de reinvenção da sonoridade forrozeira
que buscavam modernizar o gênero, marcando um distanciamento dos
ideais rurais e de atraso que permeavam o forró tradicional (SANTOS,
2014).
Neste processo (longo e contínuo), o forró eletrônico é considerado
a ruptura mais radical com as referências tradicionais do gênero. O estilo
surgiu em Fortaleza na década de 90, e foi difundido pela rádio Somzoom
Sat (MARQUES, 2014; SANTOS, 2014; TROTTA, 2014), reverberando
aspirações de modernidade já existentes. Esta modernização visa maior
proximidade com o ambiente urbano e jovem, incorporando elementos
estéticos e sonoros da música pop, na forma de grandes festas, torres de
aparelhagem sonora e espetáculos visuais.
O estilo recebe muitas críticas e questionamentos de qualidade e
autenticidade pela maneira como atualiza elementos do forró tradicional,

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 204
embora desfrute de grande sucesso comercial. Podemos pensar estas
críticas ao forró eletrônico como “um discurso de forte carga emotiva, no
qual um sentido preservacionista herdeiro do folclorismo aparece como
eixo de disputas mercantis e simbólicas no mercado cultural” (TROTTA,
2014, p.28). O que nos interessa é perceber que este debate é acionado pela
construção de nordestinidades muito distintas, no qual se quer fazer crer
que modernidade e tradição são categorias inconciliáveis.
Nas entrelinhas deste tensionamento entre tradicional e moderno,
algumas representações se mantêm de maneira relativamente estável.
Nosso interesse repousa primordialmente sobre a figura do “cabra
macho”, que surge no forró tradicional e se atualiza para continuar
presente no forró eletrônico. Trotta (2014) coloca que “o nordestino
personagem das canções de Luiz Gonzaga será caracterizado muitas vezes
por sua atitude viril, posta à prova em enfrentamentos diversos”
(TROTTA, 2014 p.111). A atitude viril em questão está relacionada
principalmente com a exibição da valentia e força física em situações de
violência. No forró eletrônico, esta figura perdura:
O cabra macho do imaginário forrozeiro permanece como
tipo ideal dos personagens do forró, mas negocia sua macheza
com elementos do mundo atual. No forró eletrônico, essa
masculinidade afirmativa se conecta com símbolos
internacionais de machos, absorvendo modelos atualizados
de comportamentos másculos. (...). Assim, o personagem
ideal do forró eletrônico é um macho jovem e nordestino que
exerce sua macheza fundamentalmente em seu desempenho
erótico sedutor nas festas juvenis (TROTTA, 2014, p.112).

Enquanto o macho no forró tradicional é o sertanejo valente, que


utiliza de meios físicos para provar sua macheza, no forró eletrônico “o
macho em questão não é um humilde trabalhador, mas um valente
vaqueiro, ou um bem-sucedido fazendeiro, que pilota sua pick up e se
esbalda no forró” (TROTTA, 2014, p.113). Em ambos os casos, a
representação masculina no forró é calcada na heteronormatividade
pressupondo a capacidade de reagir ao enfrentamento físico ou de realizar

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a conquista amorosa de mulheres na festa como formas de legitimação da


masculinidade.
A partir deste entendimento, buscaremos desenvolver nossa
reflexão sobre a maneira com que os videoclipes de Pedra Homem e
Getúlio Abelha supõem, através do diálogo com as convenções
estabelecidas nas representações do forró, novas formas de
nordestinidade, construídas em descontinuidade ou mesmo em oposição
às normas do (e de) gênero.

Laricado, o forró enviadesceu

Situar o trabalho de Pedra Homem e de Getúlio Abelha na


produção do gênero musical do forró, diante das representações sociais e
recortes espaciais, faz-se necessário para se discutir a emergência do
artivismo nas paisagens musicais nordestinas, sobretudo, na insurgência
de projeções dissidentes. Colling (2018), ao elaborar uma reflexão sobre a
produção artivista nos moldes genealógicos foucaultianos, traça o cenário
de emergência de artistas ativistas do Brasil nos últimos dez anos. Para o
autor, a cena político-cultural insurge com produções potentes, criativas e
provocadoras com forte apelo das dissidências sexuais e de gênero.
Nesse sentido, para o autor, a produção artística brasileira que
problematiza as convenções das normas sexuais e de gênero se sintoniza em
uma perspectiva queer — apontada Pelúcio (2014) como uma reposta de
atrevimento das pessoas marginalizadas a ordem reguladora de corpos,
sexualidades e subjetividades. O termo, de origem norte-americana,
alcança outras reflexões na medida em que vem sendo trabalhado no país e
impulsionado pelo campo científico. Bento (2009) sugere, por meio do
que considera uma tradução cultural idiossincrática dos estudos queer, o
emprego do termo transviado para indicar uma releitura situada nos
marcadores sociais e nas contextualizações específicas da teoria. Sendo
assim, os estudos transviados partem de compreender a enunciação de
discursos no campo social e a relação que se interseccionam com os vetores
de gênero e sexualidade. Neste trabalho, ao considerar a emergência do

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 206
artivismo no Brasil e as traduções culturais de uma possível leitura queer em
contexto regional específico, apontam-se os estudos baitolas — termo
pejorativo comumente usado no Nordeste para ofender homens
homossexuais ou homens heterossexuais que escampam do estereótipo e
da norma de macheza — para se elaborar uma genealogia da arte ativista nas
paisagens do forró nordestino.
O que Colling (2018) faz não é apontar diferenças e semelhanças
entre as produções artísticas, mas pensar as condições emergenciais de
discursos provocadores e o seu impacto na produção de sentido. “Ao
germinarem rizomaticamente pelo país, esses artivismos dissidentes
impactaram e ainda vão impactar muito mais em nossas políticas do
desejo”, (COLLING, 2018, p. 163). O autor que anteriormente descreveu
as disparidades entre o movimento LGBT e ativismo queer (COLLING,
2015) aponta que a profusão de cenas artísticas dissidentes partem de
estratégias políticas no campo cultural, “pois os/as ativistas entendem que
os preconceitos nascem na cultura e que a estratégia da sensibilização via
manifestações culturais é mais produtiva”, (COLLING, 2018, p. 161).
Segundo o autor, a produção artivista se distancia de políticas geradas
diante do paradigma da igualdade e da afirmação das identidades levadas a
cabo por parte significativa do movimento LGBT, e se aproxima, de forma
desestabilizadora e subversiva, de políticas geradas pelo posicionamento
da dissidência.
Por isso, faz-se interessante tomar as considerações de Colling (2018)
sobre as diferentes formas de trabalho dos artivistas, principalmente no
que diz respeito ao movimento LGBT e ativismo queer. De acordo com o
autor, as ações do movimento LGBT,
(1) apostam quase que exclusivamente na conquista de marcos
legais, em especial do matrimônio ou de outras leis e
normativas; (2) possuem poucas ações que combatam os
preconceitos e as discriminações por meio do campo da
cultura; (3) explicam a sexualidade e as identidades de gênero
dentro de uma perspectiva que, a rigor, flerta ou adere com a
ideia de que há apenas dois gêneros (masculino e feminino) e
de que tanto os gêneros quanto as orientações sexuais são
“naturais” ou até gerados por componentes

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biológicos/genéticos; (4) através da afirmação das


identidades, forçam todas as pessoas não heterossexuais a se
enquadrarem em uma das identidades da sigla LGBT; (5)
consideram que, para conquistar direitos, as pessoas LGBT
precisam criar uma “representação respeitável”, uma “boa
imagem”, o que significa, no final das contas, uma aderência à
heteronormatividade (COLLING, 2018, p. 161).

Enquanto isso, com características similares, as ações dissidentes no


contexto da produção de sentido do artivismo queer,
(2) criticam a aposta exclusiva nas propostas dos marcos legais,
em especial quando essas estratégias e marcos reforçam
normas ou instituições consideradas disciplinadoras das
sexualidades e dos gêneros; (3) explicam as sexualidades e os
gêneros para além dos binarismos, com duras críticas às
perspectivas biologizantes, genéticas e naturalizantes; (4)
entendem que as identidades são fluidas e que novas
identidades são e podem ser criadas, recriadas e subvertidas
permanentemente; (5) rejeitam a ideia de que, para serem
respeitadas ou terem direitos, as pessoas devam abdicar de
suas singularidades em nome de uma “imagem respeitável”
perante a sociedade. (COLLING, 2018, p. 161).

A partir desse esboço é possível compreender mediante análise da


performance no videoclipe dos trabalhos de Getúlio Abelha e Pedra
Homem, se as obras compõem o esquema de produções artivistas. Levar
em consideração o contexto em que se produz, permite localizar a projeção
dos artistas no gênero musical do forró e a reverberação da mesma no
sentido de visibilizar discursos.
Colling (2018) aponta dentre as condições inter-relacionadas sobre
o tema, seis pontos chave para compreender o desenvolvimento de uma
arte ativista. Em um primeiro momento, o autor enfatiza uma maior
sensação de liberdade através da visibilidade de questões LGBT em
contraponto ao cenário de uma onda conservadora no Brasil, articulada
com grande incidência midiática e inclinada pelo ataque a pessoas LGBT.
Em um segundo momento, a normatização no movimento LGBT pode ter
dado espaço para a movimentação de outros modos de se fazer política

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 208
com instrumentos mais próximos de representações de vida.
Além disso, um terceiro momento da ampliação da temática LGBT
na mídia em geral, principalmente em telenovelas, filmes e programas de
televisão, também gerou, se não condições de emergência para esses
artivismos, pelo menos no sentido de se contrapor ao que a grande mídia
pensa e divulga como uma “boa imagem” para mulheres e pessoas LGBT.
Colling (2018) mostra que o crescimento dos estudos de gênero e
sexualidade, também pode ter colaborado para a grande profusão do
artivismo, até porque a produção artística ativista não aparece apenas para
momentos lúdicos e festivos, mas como também nas discussões teóricas.
Uma última questão apontada pelo autor é ao fato de que identidades
trans e de pessoas que se identificam como não binárias emergiram no
Brasil. “Além disso, a fexação, a não adequação às normas (corporais e
comportamentais) de meninos afeminados, mulheres lésbicas
masculinizadas e de outras várias expressões identitárias flexíveis,
provocaram a abertura do fluxo identitário antes mais rígido” (COLLING,
2018, p. 163).
A partir das considerações de autor é possível tecer a reflexão de que
as performances de Getúlio Abelha e Pedra Homem abrem o fluxo
identitário nordestino pela via cultural, por meio da reapropriação do
discurso que pauta o ideal de cabra macho e a invenção do falo como
compositores do gênero masculino. Para tanto, vale mostrar como essas
corporalidades contestam, desafiam ou fissuram dizibilidades e
visibilidades no forró, através da análise dos clipes Laricado de Getúlio e Te
Perder de Vista é Bom de Pedra

Cenas, enredos e contextos

O clipe da canção Laricado, lançado por Getúlio Abelha em 05 de


dezembro de 2017 no Youtube, atualmente2 possui mais de 95 mil
visualizações. O artista nascido no Piauí tem 25 anos, e iniciou sua
carreira no teatro, eventualmente se envolvendo também com a música.3
Foi através deste videoclipe que Getúlio Abelha ganhou destaque no

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cenário musical de Fortaleza.


O vídeo carrega em suas imagens significados que rompem de
sobremaneira com algumas expectativas inerentes ao forró. Conforme
aponta Soares (2005), o videoclipe é um produto midiático que se
constitui na relação entre som e imagem, estando, portanto, sujeito às
regras formais e lógicas dos sistemas reprodutivos da cultura pop. Neste
sentido, o gênero musical perpassa a imagética do videoclipe, pois “os
gêneros musicais estabelecem horizontes de expectativa no público
consumidor da música popular massiva, sendo, com isso, o videoclipe
criado a partir de certas regras que obedecem a uma imagética articulada a
tais gêneros ” (SOARES, 2005, p.3).
Estando filiado à vertente conhecida como forró eletrônico, o
videoclipe de Getúlio Abelha é atravessado pelas expectativas de conduta
sexual, valores morais e urbanidade que são atrelados a este estilo. A
análise de um videoclipe compreende elementos que estão além do
próprio audiovisual, especialmente quando esta análise coloca o gênero
musical como ponto de partida. Conforme coloca Soares (2005), também
são importantes “elementos visuais, codificações de figurinos, direção de
arte ou cenários enunciados ao longo da trajetória, bem como dados
biográficos, imagens que circulam na imprensa, capas de álbuns e uma
série de imagens associadas” (SOARES, 2005, p.12).
O clipe de Laricado foi gravado no Mercado São Sebastião em
Fortaleza, o que propõe uma ambientação urbana em afinidade com a
proposta cosmopolita do forró eletrônico. As cenas do videoclipe mostram
o cantor cantando, dançando e interagindo com os transeuntes, além da
execução de coreografias com seus dançarinos. Seu figurino, composto por
salto alto, meia calça, vestido, casaco preto (com mangas feitas de saco de
lixo) e brincos, denota um contraste entre o cotidiano do mercado e o
tempo do videoclipe.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 210
Figura 1: Getúlio Abelha no Mercado São Sebastião

Tendo isto em vista, se tomamos em consideração o título Laricado,


podemos inferir que a quebra do cotidiano e do rotineiro em direção a
experiências psicodélicas e extravagantes são temas da narrativa. Em
entrevista, o cantor declara: “Eu penso que é como se eu aparecesse no
meio do caminho das pessoas para distorcer o dia delas. As pessoas
acordaram, vieram trabalhar e, do nada, chegou um viado parecendo um
redemoinho, girando nos corredores.”4
A conduta sexual também é um elemento de forte presença na
canção. A urgência da satisfação do desejo contida no verso “mas é que eu
tô com fome/ eu vou enlouquecer/ se eu não comer comida eu vou comer
você”, e a relação sexual sublinhada nos versos “bota a comida pra dentro,
pádendimim” (pra dentro de mim) são balizadas no videoclipe pelas
constantes cenas de beijos e carinhos entre Getúlio Abelha, seus
dançarinos e atores.

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Figura 2: Beijo no videoclipe de “Laricado”

Práticas como o uso de metáforas e frases de duplo sentido são


empregadas corriqueiramente no forró eletrônico, de maneira bem
humorada, como forma de mascarar as tensões sexuais que as letras
sugerem (TROTTA, 2014). Estas práticas são marcas do aspecto erótico
que permeia profundamente o gênero do forró como um todo, tradicional
ou eletrônico:
O forró é uma música safada. Tendo sido criado no espaço
lúdico da festa, o gênero está estreitamente articulado com a
sedução dos encontros amorosos, com a dança de par e com a
libido. A safadeza do forró é constitutiva do gênero, presente
em letras picantes, na levada da sanfona, na dança erotizada e
na energia do “salão”, seja ele criado metaforicamente na terra
batida das fazendas do sertão ou no terreno cimentado nas
praças públicas. (TROTTA, 2014, p.77)

A canção “Laricado” expressa forte carga erótica em sua letra,


sugerindo, a cada verso, de forma irreverente, uma possibilidade de um
encontro sexual subversivo. Isto vai de encontro com as expectativas
colocadas pelo forró eletrônico, pois, conforme buscamos expor na
introdução, “o conservadorismo forrozeiro anula quase totalmente a
possibilidade de formação de casais homossexuais” (TROTTA, 2014,
p.77). Soares (2005) aponta que a relação do videoclipe com o gênero

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 212
musical no qual está inserido é uma negociação, ora afirmando, ora
negando as práticas estabelecidas.
Neste caso específico, as negociações que figuram na canção são
particularmente complexas. O fio condutor da narrativa, tanto no
videoclipe quanto na letra, é a necessidade de satisfazer o desejo sexual do
intérprete, pelo encontro com pessoa parceira, o que é sublinhado a todo
tempo pelo uso de duplo sentido na letra, negando abertamente a conduta
exclusivamente heterossexual que permeia o forró eletrônico.
A relação sexual, metaforizada através das referências a comidas
típicas do Nordeste, distancia-se da moral tradicional do forró, abrindo
espaço para uma representação masculina que rejeita estas normas
conservadoras, contrariando a ideia de que “no forró não há espaço
simbólico para um intercâmbio entre os papéis masculino e feminino e
muito menos para uma versão queer.” (TROTTA, 2014, p.81). Isto fica
evidente também no figurino do cantor, que parece sugerir certo nível de
androginia, borrando as linhas divisórias entre as categorias de masculino
e feminino, tornando-as inoperantes neste contexto, o que é reforçado
pela sugestão das trocas dos papéis sexuais tradicionais (você vai me comer,
eu vou comer você).
Podemos perceber tensionamentos também nas formas de dança
presentes no clipe. Soares propõe que a análise compreenda também
“como os corpos articulam as respostas corporais às músicas, codificam
formas de expressar uma identidade artística e agem sob as balizas das
configurações dos gêneros musicais” (SOARES, 2014, p.331). O forró, por
excelência, sempre foi considerado “um gênero em que se dança 'muito
junto' e seguindo o protocolo estabelecido: o homem conduz a dança e a
mulher o acompanha” (TROTTA, 2014, p.81). Neste sentido, o clipe
também apresenta alguns tensionamentos.
No curso do clipe, Getúlio Abelha canta a música enquanto dança
através do espaço do Mercado. Sua dança é marcada por um alto nível de
gestualidade, muitas vezes traduzindo através de gestos, o conteúdo da
letra. A observação do clipe permite perceber que a dança individual (em
partes até animalesca) é parte importante da narrativa, elucidando a falta

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que o parceiro faz para a satisfação do desejo, rejeitando em partes, a ideia


de uma dança necessariamente feita em duplas. Quando o vídeo retrata a
dança em pares, estes são pares homossexuais. Em todos os aspectos
performáticos, o videoclipe busca romper com normas estabelecidas no
gênero.

Figura 3: Getúlio Abelha dançando no Mercado São Sebastião

Figura 4: Dança em pares no videoclipe de “Laricado”

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 214
Neste sentido, é de forte carga política o videoclipe de Laricado.
Getúlio Abelha, em entrevista, declara que a proposta de sua música nasce
a partir do reconhecimento de que existe um processo de silenciamento da
diversidade no universo do forró eletrônico: “fui criado com essas
referências, mas hoje sinto que posso mostrar que existe outro caminho
possível para esse gênero e essa cultura”5 O videoclipe representa este
“outro caminho possível” através da elucidação de representações que o
forró apagou em seu desenvolvimento, confrontando através das imagens
e da letra, toda uma construção histórica neste gênero musical.
Por outro lado, o clipe Te Perder de Vista é Bom de Pedra Homem
apresenta imagens de gênero e sua interseccionalidade com a discursiva
das ruralidades. Distante do aspecto gore, urbano e plástico da obra de
Getúlio, Pedra não utiliza o deboche como instrumento para reverter
enunciados e sim aponta caminhos de subversão pela matriz da fábula, do
encantamento e da oralidade. Pedra parte da experiência de fabular a si em
modo desejante e ao evocar o cabra-fêmea, aponta o corpo como texto de
estado de escrita em que define como tensa-performativa-brincante.
Por isso, no vídeo clipe-canção se percebe o narrar e o descrever de
afetos pelo encontro, pelos processos que potencializam os sentidos
comum do corpo artístico. Ao retratar performances de gênero em
contextos alheios aos das "grandes metrópoles", Marques (2014) situa a
problematização do binarismo rural-urbano como elemento de
agenciamento de marcadores locais e de origem a partir de diferentes
contextos de produção. Portanto, “os estudos rurais estariam
amalgamados à consolidação de um imaginário social sobre a nação e suas
margens, em nome dos quais se calam as vivências, as práticas e
simbolizações dissonantes” (MARQUES, 2014, p. 11).
Já na primeira cena do clipe, Pedra traz na voz de uma senhora a
frase “toda saudade é uma espécie de velhice”, o que faz uma introdução a
imagética discursiva de que o Nordeste, como aponta Albuquerque Junior
(1999), surge como espaço vinculado a saudade e a memória. O cajado e o
chapéu de palha como figurino de Pedra Homem, evoca um enunciado de
mito, da profecia e de espiritualidade. Como a própria artista destaca,

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Pedra desviou/borrou em si estados de corpos que não desejava mais


replicar, uma vez que, a performance no videoclipe localiza uma região em
que o espaço e sujeito são marcados pela violência e valentia. Se para
Albuquerque Junior (1999), as artes e outras práticas culturais atuam
como maneira de construir narrativas e inventar uma região, no contexto,
o Nordeste, se pode considerar que Pedra, dentro do pensamento
regionalista e tradicionalista, vetoriza outros modos de ver e dizer sobre a
região.
O enredo de clipe retrata o processo de êxodo rural a partir de uma
perspectiva autobiográfica em que a personagem Pedra se desloca entre
um sujeito comum da zona rural e uma espécie de divindade do sertão que
caminha pelo chão de terra batida. Ao mesmo tempo que mostra a
personagem transitando entre ruralidade e urbanidade, o clipe-canção de
Pedra Homem retrata a emergência de um processo criativo próprio e a
ressignificação de uma corporalidade que aponta a adaptação de uma
vivência LGBT rural no contexto em que se produz o sujeito urbano.

Figura 5: Os quadros do clipe são marcados pela presença de sol e vestimentas


comumente utilizadas no sertão

A carga política do clipe-canção da artista faz intertextualidades


com outras obras, como por exemplo, o livro Grande Sertão Veredas de
Guimarães Rosa, lançado em 1956, e reposiciona enunciados quando em

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 216
uma das cenas, Pedra entrega o livro para uma pessoa que pode ser LGBT.
A desigualdade social é retrata pelas cenas em que aparecem moradores de
rua em contraste com o direito e acesso a cidade pelos espaços urbanos. O
estranhamento de Pedra com a arquitetura da cidade e superlotação dos
transportes públicos se comparam a sociabilidade retratada pela
simplicidade e sensibilidade da comunidade.

Figura 6: livro é dado para pessoa não-binária que aparece no clipe em situação de
rua

Ao apontar que somos feitos de mistério e fé, Pedra evoca uma


espiritualidade através da noção performativa de que o corpo para além da
materialidade, tem uma experimentação sensível ao substrato subjetivo do
sujeito. Com forte apelo a saudade e a reza, Pedra aparece como um sujeito
fluido, em constante processo de hibridização, voltado para a
possibilidade de reinterpretações do cabra macho pela reiteração do cabra
fêmea. Portanto, o cabra fêmea não é uma condição da natureza, reforçada
pela ordem compulsória, mas sim uma construção social potente para se
repensar imaginários e constituir discursos distantes de práticas
limitadoras de gênero e sexualidades, estando vinculado a produção
dissidente do corpo nordestino nas paisagens de sertão pelo forró.
O trabalho de Pedra ao mesmo tempo que rompe com binarismos
do masculino e feminino na construção imagética discursiva de Nordeste,
colabora para a cristalização de discursos que subjetivam o nordestino e
Nordeste através de uma só direção de verdade, baseada no discurso da

217 Ribamar Júnior e Leonardo Zaiatz


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ISSN: 2446-8290

seca e da saída para melhores condições de vida, como explica


Albuquerque Júnior (1999).
O Nordeste, na verdade, está em toda parte desta região, do
país, e em lugar nenhum, porque ele é uma cristalização de
estereótipos que são subjetivados como característicos do ser
nordestino e do Nordeste. Estereótipos que são operativos,
positivos, que instituem uma verdade que se impõe de tal
forma, que oblitera a multiplicidade das imagens e das falas
regionais, em nome de um feixe limitado de imagens e falas-
clichês, que são repetidas ad nauseum, seja pelos meios de
comunicação, pelas artes, seja pelos próprios habitantes de
outras áreas do país e da própria região (ALBUQUERQUE
JUNIOR, 1999, p. 307).

Portanto, levar em consideração o trecho da canção em que a


saudade é mencionada, aparece como ponto necessário para compreender
as dinâmicas entre a produção de uma performance que ao mesmo tempo
coopera e desafia as normas regulatórias do discurso e do sujeito no recorte
de Nordeste. Pedra aparece como uma fissura nos moldes e
enquadramentos da produção de masculinidade nordestina, sendo um
corpo que antes de tudo é terra. ''O Nordeste é uma sociedade onde a
coragem, o destemor e a valentia pessoal ainda influenciaram no status
dos indivíduos, no respeito que este teria do grupo, daí a necessidade
p e r m a n e n t e d e p rov a r s u a m a s c u l i n i d a d e , s u a m a ch e z a ”
(ALBUQUERQUE JR. 1999 p.182).

Figura 7: Nesta cena, um processo de subjetivação de si pela matriz


espiritual conduz a produção do corpo dissidente de Pedra

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 218
A performance de Pedra no videoclipe, indica um deslocamento
próprio do contexto em que o queer é recolocado pelo viés dos estudos
baitolas e produzido a partir das dissidências sexuais e de gênero e seus
aspectos rurais. Levar em consideração os marcadores sociais em que
elaboram as cenas performativas da obra, é imperativo para compreender a
articulação entre as condições de emergência do artivismo no gênero
musical do forró. Pedra, como cantante, como brincante, faz uma releitura
da performatividade (BUTLER, 2016) em uma perspectiva decolonial.
Aponta para os caminhos de reinterpretação e subversão da identidade
como invenção e reposiciona as invenções da tradição, nos moldes de
Albuquerque Junior (1999), criando linhas de fuga pelo arrasta pé.

Considerações finais

Abordar o forró é abordar toda uma construção discursiva sobre o


Nordeste, seus habitantes, seus hábitos, seus valores e suas práticas. Os
vínculos desta prática musical para com a região decorrem de tentativas de
criar narrativas imaginárias sobre a espacialidade, vista majoritariamente
como um lugar inóspito, onde homens fortes precisam lutar contra as
adversidades por sua sobrevivência ou um lugar de festas, nos quais os
homens saem para beber e procurar uma parceira para compartilhar a
noite.
Uma tentativa de produzir uma prática musical que consiga
estabelecer uma identidade regional para um território tão amplo quanto
o Nordeste é necessariamente amparada no silenciamento de vários
discursos que não obtiveram o mesmo êxito que o prevalente no forró
(TROTTA, 2010). Buscamos apresentar a presença de novos discursos
nesse terreno de masculinidades bem estabelecidas do forró que, quase 80
anos após o advento de Luiz Gonzaga, permanece congelado numa
heteronormatividade imutável.
Assim, Pedra Homem e Getúlio Abelha buscam, amparados em
universos simbólicos diferentes, construir novas possibilidades de
nordestinidade através dessa música que permanece bem sucedida no

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mercado musical contemporâneo. Seja no forró eletrônico ou no


tradicional, o tensionamento de identificações já estabelecidas é essencial
para que se criem novos espaços de representação neste âmbito cultural.

Notas

1. Artigo apresentado no GT “Musicalidades, Espacialidades e Imagens” do III


EAVAAM.
2. Fonte: https://www.youtube.com/watch?v=ig98KMa2ADs (Acesso:
19/02/2019).
3. Fonte:http://diariodonordeste.verdesmares.com.br/cadernos/zoeira/getulio-
abelha-som-original-do-nordeste-1.1871456 (Acesso: 20/02/2019).
4. Fonte: https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2018/01/getulio-abelha-
fala-sobre-o-hit-laricado-e-suas-referencias.html (Acesso: 04/03/2019).
5. Fonte: https://www.opovo.com.br/jornal/vidaearte/2018/01/getulio-abelha-
fala-sobre-o-hit-laricado-e-suas-referencias.html. (Acesso: 05/03/2019).

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A emergência de estéticas baitolas pelo artivismo no forró


Nordestino: como dançam os corpos dissidentes a música do Rei do Baião? 222
“A pista é um laboratório”: corpos,
afetos e experimentação em cenas de
música eletrônica underground

Gibran Teixeira Braga


Universidade de São Paulo
gibranteixeira@yahoo.com.br

Resumo: Neste artigo, percorro duas cenas de festas de música eletrônica underground,
localizadas uma em São Paulo e outra em Berlim. Tais festas são espaços de experimentação de
corpos e prazeres, através da relação entre música, dança, uso de drogas e erotismo. A partir de
pesquisa etnográfica e histórica, analiso as relações entre a música eletrônica underground e
determinadas formas de sociabilidades e usos do tempo. Para tanto, são mobilizados os conceitos
de musicar e de prazer-processo, desenvolvendo a metáfora da pista de dança como um
laboratório.
Palavras-chave: Música; Marcadores Sociais da Diferença; Corpo; Sociabilidade;
Dança.

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ISSN: 2446-8290

“The dancefloor is a laboratory”: bodies,


affections and experimentation in
underground electronic music scenes

Abstract: In this article, I follow two scenes of underground electronic music parties, located one
in São Paulo and another in Berlin. Such parties are spaces of experimentation of bodies and
pleasures, through the relation between music, dance, drug use and eroticism. From ethnographic
and historical research, I analyze the relationships between underground electronic music and
certain forms of sociability and uses of time. For this, the concepts of musicking and process
pleasure are mobilized, developing the metaphor of the dance floor as a laboratory.
Keywords: Music; Social Markers of Difference; Body; Sociability; Dance.

224
"La pista es un laboratorio":cuerpos,
afectos y experimentación en escenas
de música electrónica underground

Resumen: En este artículo, cubro dos escenas de fiestas de música electrónica underground, una
ubicada en São Paulo y otra en Berlín. Tales fiestas son espacios para experimentación de cuerpos
y placeres, a través de la relación entre música, danza, consumo de drogas y erotismo. A partir de
investigación etnográfica e histórica, analizo las relaciones entre la música electrónica
underground y ciertas formas de sociabilidad y uso del tiempo. Para ello, se movilizan los
conceptos de musicar y placer-proceso, desarrollando la metáfora de la pista de baile como
laboratorio.
Palabras clave: Música; Marcadores Sociales de la Diferencia; Cuerpo; Sociabilidade;
Danza.

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ISSN: 2446-8290

São Paulo, sexta-feira, 14 de novembro de 2018. Era noite de mais


uma Dando, festa de sexo que vem se destacando na cena1 paulistana por
tentar romper certa hegemonia dos homens cisgênero gays em tais
eventos. Uma das medidas que buscam incrementar a diversidade do
público é a entrada grátis para pessoas trans e mulheres cis. Além disso, a
equipe de funcionários, DJs e performers convidados também conta com
mulheres e pessoas trans.
À 1h da manhã, assumia o som a DJ Dany Bany2, 39 anos, negra e
lésbica. Os marcadores de gênero, raça e sexualidade são especialmente
relevantes neste contexto. Por um lado, as cenas de música eletrônica
underground3 foram, desde suas origens, protagonizadas por homens. No
entanto, as cenas de São Paulo e Berlim - tema das pesquisas de doutorado
(BRAGA, 2018) e de pós-doutorado em andamento4, têm se destacado
mais recentemente por um forte protagonismo feminino.
Por outro lado, tais origens remontam às comunidades gays negras e
latinas estadunidenses, especialmente nas cidades de Nova Iorque e
Chicago, tendo passado a partir dos Anos 1990 por um processo de
“heterossexualização” e “branqueamento”, que só recentemente vem
sendo contestado nas cenas underground contemporâneas.5 Dany é
integrante da coletividade de arte negra Námíbìa, protagonizada por
artistas gays, lésbicas e trans.6 A Námíbìa tem atuado em diversas frentes
desde sua fundação em 2017: realiza eventos próprios e participa de outros
em parceria com vários coletivos, focada na questão da diversidade.
Semanas antes da festa, Dany comentara comigo que passaria a
abrir todos as suas apresentações com a faixa “Pista”, composta pelos
produtores Juba, Ken e Gingerella, participantes centrais da cena.
Composta em 2017, “Pista” é fruto do crescimento da cena nos últimos
anos, em que se multiplicaram não apenas DJs em São Paulo e no Brasil,
mas também produções próprias.7 Os versos da faixa são enunciados que
ilustram bem a experiência clubber8 e a tornam de fato uma boa candidata a
abrir um set:
A pista é um laboratório
A pista é um divã
Um divã e uma avenida

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 226
A pista é um campo de batalha

As metáforas elencadas nos versos aludem à pista de dança como


um espaço de múltiplas experiências, de afeto e de conflito; encontram
eco no depoimento de vários interlocutores e nas minhas experiências no
trabalho de campo. Laboratório de novas relações com o próprio corpo,
com outros corpos, e com os próprios prazeres; campo de batalha entre
convenções restritivas acerca dos marcadores sociais da diferença e novas
possibilidades; divã onde se expõem e debatem sentimentos represados no
cotidiano. A imagem da avenida remete a processo e ao caráter sinestésico
dos sets: a sensação de se estar sempre em marcha, indo em direção a algo
indefinido, é uma presença constante quando se imerge em uma pista de
música eletrônica. Além disso, ao evidenciar as relações entre pista e
avenida, a faixa evoca a relação com a rua e com a cidade que marca a cena
paulistana.
A centralidade da pista para as festas pode ser apontada levando-se
em conta o duplo sentido do termo: “pista” tanto pode se referir ao espaço
físico onde luzes e música recebem os participantes para dançar, quanto ao
próprio conjunto de pessoas que se engaja no ato de dançar em uma festa.
Assim, é comum ouvir as expressões “a pista reagiu bem ao som”, “tal DJ
ganhou a pista, levou a pista à loucura”. As pessoas são também a pista.
Esse dado é relevante porque configura a relação fundamental das festas:
entre quem dança e o/a DJ. Kai Fikentscher (2000), que pesquisou
underground dance music9 em Nova Iorque, chama esse processo de
“performance interativa”: a música gravada (mediada) que se torna
imediata pelo/a DJ e a performance coletiva realizada pelos que dançam se
ligam como formas de performance interativas e simultâneas.
Enquanto Dany tocava, Gabriel* (gay, 33 anos), dançava com seus
amigos Luana*, (bissexual, 34), e o casal Mariana* (bissexual, 24) e
Roberto* (heterossexual, 25). À medida que os amigos imergiam mais na
música e na dança e as drogas batiam, Luana e Mariana tiraram suas blusas,
ficando de seios à mostra. Os quatro se alternavam em pares e trios de
dança; em certo ponto, Luana beijou Mariana, Gabriel beijou Mariana na
boca e nos seios, beijando em seguida Roberto. Posteriormente, Gabriel

227 Gibran Teixeira Braga


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 223-252
ISSN: 2446-8290

me contaria que não costuma beijar mulheres, e que aquela era apenas a
segunda vez que tocava os lábios em um peito de mulher.
Este episódio é um bom exemplo de como as cenas de música
eletrônica underground em São Paulo e Berlim se constituem em espaços de
experimentação do corpo e dos prazeres, a partir da relação entre música,
dança, uso de drogas e erotismo. Estes são os temas deste artigo, que
trabalharei tomando de empréstimo a metáfora do laboratório para
pensar na pista como lócus de experimentações em variados níveis, desde
a produção musical e as mixagens dos/as DJs, até as relações das clubbers10
com seus corpos e com os corpos de outras clubbers, permeadas pelos
efeitos das drogas.11

As cenas de São Paulo e de Berlim

A pesquisa é realizada em duas cenas de festas de música eletrônica


underground, localizadas nas cidades de São Paulo e Berlim. Estas festas são
frequentadas por um público diverso em termos de sexualidade,
m a j o r i t a r i a m e n te o r i u n d o d e c l a s s e s m é d i a s : e st u d a n te s
universitários/as, artistas e profissionais de comunicação (design,
publicidade, audiovisual), além dos/as DJs, músicos/musicistas e
produtores/as das festas. Elas reúnem pessoas para dançar e ouvir música,
consumir drogas lícitas e ilícitas e socializar.
A cena de São Paulo, conhecida por parte de seus participantes
como cena de festas independentes, é composta por eventos realizados em
espaços urbanos abertos da cidade, sem cobrança de entrada e outros
controles de acesso (as chamadas festas de rua), ou em espaços alternativos a
clubes convencionais, como bares, clubes de sexo, inferninhos, saunas,
galpões e fábricas desativadas. A opção por tais espaços está relacionada às
práticas realizadas nas festas, tais como nudez e semi-nudez, tolerância ao
uso de drogas ilícitas, uso pouco controlado dos espaços por parte dos
participantes, bem como à longa duração dos eventos(entre 10 e 15 horas);
estes fatores inviabilizam que clubes regulares abriguem as festas.
A cena de Berlim, que chamei de cena queer seguindo também uma
classificação êmica, é composta por festas que se caracterizam pela
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 228
combinação da música eletrônica underground com a frequência de um
público de sexualidades e performances de gênero diversas. Os clubes da
cidade gozam de bastante autonomia quanto aos horários de
funcionamento e na definição das práticas aceitas em suas dependências,
portanto lá tais eventos são realizados em clubes regulares, e podem chegar
a durar um fim de semana inteiro.
Na próxima seção, aponto certas especificidades quanto a estrutura
musical, formas de dança, fruição da música e relação artista/público
encontradas em contextos de Música Eletrônica de Pista (doravante
MEP). Para tanto, retomo alguns aspectos do surgimento deste gênero
musical que são fundamentais na compreensão do papel central que a
música desempenha na dinâmica das festas.

A pista como laboratório musical

As festas de ambas as cenas se caracterizam por contarem com DJs


(Disc Jóqueis), profissionais que, com o auxílio de dois (ou mais)
equipamentos de som (CDJs)12 e um mixer, mesclam faixas de música,
criando a sequência ininterrupta de som conhecida como set. Os sets são
majoritariamente compostos por subgêneros de MEP, em especial a house
e o techno. Em Berlim, aparece também a disco music, particularmente nas
pistas que ocupam áreas abertas no verão, as chamadas open air [ao ar livre].
Estes são gêneros de música feitos especialmente para a pista de dança, e
sua estrutura reflete esse objetivo, traduzido em uma gama crescente de
experimentações a partir dos avanços tecnológicos da música eletrônica.
Para entender a ideia da música como laboratório, passemos agora a um
breve histórico do surgimento destes estilos e nos impactos que eles
tiveram na dança e na sociabilidade. Estes efeitos estão no cerne da
formação das duas cenas pesquisadas, entre as décadas de 1980 e 1990 e
são mobilizados nos discursos dos atores até hoje.
O surgimento da disco, na Nova Iorque da virada dos 1960 para os
1970, é um destes momentos. A disco foi um movimento que transformou
profundamente a relação entre música, pista de dança e clubes. Produziu
ainda uma forma de sociabilidade fundamental para a afirmação de uma

229 Gibran Teixeira Braga


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nascente identidade gay. Seu berço foram as comunidades gays negra e


latina da cidade, reverberando a recente Revolta de Stonewall (1969) e os
movimentos feminista, pelos Direitos Civis e contra a Guerra do Vietnã.
A “revolução” social da disco é inseparável dos efeitos intensos que
exerceu sobre a música e a dança. Reflexo desta promessa de liberação, a
efervescência da pista de dança passava a ser cada vez mais o objetivo das
músicas tocadas. Pela primeira vez, o DJ se estabelecia como um artista,
sendo a figura central na produção de uma experiência única.13 As músicas
começavam então a ser pensadas especificamente para a pista de dança, o
que culminou na criação do single14 de 12 polegadas, que permitia que as
canções fossem mais longas, ocupando todo um lado do disco. Isto
significou um rompimento com a estrutura comercial da música popular,
cujas canções duravam por volta de três minutos. Ganhava-se em
intensidade, já que se podia dançar uma música por mais tempo. Além
disso, instrumentais mais longos no início e no fim das faixas facilitavam
que o DJ pudesse mixar duas músicas. Resolvia-se o problema da “quebra
de clima” (e da dança) provocada pela interrupção da batida ao fim de uma
faixa enquanto a outra estava por começar.
Nas cenas de música de pista, a estrutura do set favorece a produção
do que o etnomusicólogo Thomas Turino chama de “fluxo” [flow]. O
conceito designa um tipo de experiência gerada em contextos de música
participativa em que os participantes alcançam um “estado de
concentração intensificada, quando se está tão atento à atividade que
todos os outros pensamentos, preocupações e distrações desaparecem e o
ator está por completo no momento presente” (TURINO, 2008, p.4,
tradução minha).
As novidades na música ecoavam na dança e na produção de novas
formas de interação nos clubes. O historiador Tim Lawrence, em seu livro
“Disco and the queering of the dance floor” (2011), chama a atenção para
o potencial da disco “de propiciar uma experiência afetiva e social do corpo
que ultrapassava as concepções normativas das sexualidades gay e
heterossexual” (p.231, tradução minha). Para o autor, a disco transformava
a experiência de dança social,15 por não se organizar em torno do casal
heterossexual. No entanto, enfatiza ele, espaços pioneiros da disco não
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 230
eram frequentados exclusivamente por homens gays: acolhiam um
público heterogêneo não apenas em termos de raça, mas também de
gênero e sexualidade (inclusive lésbicas e heterossexuais).
A possibilidade de dançar sozinho significava a produção de uma
nova sociabilidade coletiva, em que era possível interagir com várias
pessoas, independente de gênero e sexualidade. A dança deixava de ser
apenas um meio de envolvimento com um possível parceiro erótico; as
trocas na própria pista de dança se tornavam o objetivo, a dança se tornava
um fim em si mesmo (LAWRENCE, 2011).
A falta de cantores e/ou instrumentistas performando as músicas e
o relativo anonimato do DJ produziram ainda uma nova forma de se
relacionar com a música, que privilegiava o aspecto sonoro em detrimento
da imagem do artista. Subvertia-se a hierarquia artista-produtor, público-
consumidor. Na pista de dança, quem dança é parte da atmosfera musical
tanto quanto quem emite o som (o DJ). Este ideal de um espetáculo
horizontal se traduz até mesmo no espaço físico – especialmente em festas
underground, as cabines dos/das DJs ficam na mesma altura do público,
diferente dos tradicionais palcos elevados de shows de música ao vivo.
Os subgêneros de MEP house e techno, estilos musicais
predominantes nas duas cenas da presente pesquisa, se desenvolveram a
partir da cena disco. Na década de 1980, os aspectos apontados acima se
aprofundam, dando origem a estilos musicais, frutos da combinação entre
novas tecnologias em produção de música sintética e o espírito das noites
da disco. A house foi o primeiro deles; um breve resumo de suas origens cabe
aqui, já que o gênero trouxe consigo novos deslocamentos nos marcadores
sociais da diferença, que veremos a seguir.
A house deve seu nome ao lendário clube Warehouse, em Chicago.
Entre 1977 e 1982, passavam pelo Warehouse todas as noites de sábado até
as tardes de domingo milhares de pessoas – a maioria homens gays negros.
Vestidos para suar, muitos turbinavam sua noite de dança com drogas
como LSD (ácido lisérgico) e MDA em pó (um precursor do MDMA,
conhecido como ecstasy). O fato de ser então o único clube da cidade
aberto até tão tarde contribuiu para que jovens heterossexuais e brancos
vencessem a resistência a dançar a música de Frankie Knuckles, um DJ

231 Gibran Teixeira Braga


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negro e gay, em uma pista dominada por outros homens gays e negros. Aos
poucos, a música de Knuckles contagiou também aquele público. Em
poucos anos, estabelecia-se na noite underground de Chicago uma sensação
de abertura sexual: casos de homofobia eram raros, senão inexistentes.

O musicar clubber

O etnomusicólogo Christopher Small (1998) cunhou o termo


musicking (que no âmbito do Projeto Temático optamos por traduzir por
musicar), numa tentativa de dessubstancializar a música, enfatizando seu
caráter processual ao transformar o substantivo em verbo. O musicar
abrange toda forma de engajamento musical, não apenas na composição,
produção e execução de música, mas também quando se está ensaiando,
ouvindo ou dançando. Circulação, recepção e apreciação da música são
elementos também fundamentais nesse processo. Nas palavras de Small,
“a música não é uma coisa, mas uma atividade, algo que as pessoas fazem”
(1998, p.2, tradução minha).
O conceito de musicar pode então ser aplicado às cenas das festas de
música eletrônica underground, já que são cenas em que a música compõe
um amplo conjunto de relações, desde a produção até a experiência da
performance interativa da pista de dança. Fikentscher descreve assim a
relação de reciprocidade e interdependência da pista:
Bem como a tecnologia de mediação musical é o instrumento
sine qua non para a produção, realização, e performance da
dance music como um fenômeno sônico, o corpo humano,
atráves da dança, se torna o instrumento sine qua non para a
produção, realização e performance da dance music como um
fenômeno visual e físico. Em si mesmas, as esferas sônica e
cinética são partes incompletas de uma forma de musicar na
qual o som pode ser experimentado fisicamente, e o corpo
humano dançante age como um instrumento musical (2000,
p.67, tradução minha)

Neste trecho, vemos como o autor mobiliza o conceito de Small


para afirmar que o corpo de quem dança é parte deste musicar. Certos
aspectos da MEP são fundamentais na experiência física das clubbers,
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 232
como a estrutura musical das faixas. Uma das principais características da
MEP é que ela quase sempre se organiza em torno do chamado loop.16Trata-
se da sequência de elementos sonoros que se repete na construção de uma
peça musical, às vezes de maneira idêntica, às vezes com adição e/ou
subtração de determinados elementos, bem como aumento e/ou
diminuição de ênfase dos mesmos. Os elementos que compõem os loops
são chamados, por sua vez, de riffs, frases musicais curtas. As composições
são produzidas a partir de sintetizadores, baterias eletrônicas, entre outros
equipamentos – atualmente, softwares de produção musical bastante
completos reúnem uma infinidade de sons. A estes, podem ser acrescidos
samples de outras gravações ou mesmo instrumentos gravados ao vivo.
Autores como Ferreira (2006) e Garcia (2011) apontam que as
frequências liberadas pelos espectros agudos e graves da música são
fundamentais para a sensação que se produz na audição da MEP.
Especialmente em espaços como clubes, sistemas potentes de som
multiplicam as sensações físicas, que ultrapassam a simples audição. Tais
sensações são provocadas no público a partir de três técnicas, segundo
Ferreira (2008). Estas técnicas são utilizadas por produtores/as da música
ao compô-la e por DJs ao manipulá-la na pista. São elas: efeitos de
intensidade (decibéis), através da manipulação do volume do som; efeitos
de diferentes faixas de frequência (hertz), diferenciando entre sons que
colidem com o corpo (agudos) e os que o penetram (graves); e efeitos de
velocidades (BPM – batidas por minuto), estimulando diversos ritmos na
dança. O mixer, equipamento indispensável para o/a DJ, serve para
manipular estes três dispositivos, ao controlar o volume, o BPM e as
frequências, que se dividem em altas, médias e graves. Através de controles
de equalização, estas podem ser rearranjadas na faixa de acordo com o
efeito desejado.
A repetição é um elemento também fundamental na fruição da
MEP, criando uma forma intensa e crescente de engajamento. Garcia
(2005) buscou traduzir teoricamente a obtenção de prazer na fruição deste
subgênero musical a partir da repetição. Partindo de uma crítica às
perspectivas ontológicas de Walter Benjamin e Sigmund Freud, autores
que tendem a ver a repetição como negativa, Garcia se baseia na prática e

233 Gibran Teixeira Braga


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ISSN: 2446-8290

na experiência para argumentar que a repetição pode ser prazerosa.


Para tanto, o autor toma de empréstimo a crítica feita por Karl
Bühler à concepção freudiana de prazer, que o liga à compulsão repetitiva
e o atrela necessariamente à busca por saciação. Para Bühler, ao invés
disso, poderíamos pensar em um modelo tripartite de prazer: prazer-
saciação (Lust der Befriedigung), prazer-função (Funktionlust), e o prazer da
maestria criativa (Schaffensfreude, Schaffenslust, Schöpferfreude) (GARCIA,
2005). Garcia explora as diferenças entre os dois primeiros tipos de prazer:
O primeiro destes termos, o prazer-saciação, Bühler considera
que seja a única forma de prazer que Freud reconhece: o
desejo se engendra por dispositivos de reconhecimento de
uma ausência, o prazer é gerado pelo preenchimento
(incompleto) dela. [...] O prazer-saciação coloca o sujeito
numa posição passiva, receptiva; não importa o quanto seja
buscada ativamente, a satisfação é sempre parcialmente
dependente da circunstância. […] No prazer-função, o sujeito
está numa posição ativa, não meramente perseguindo, mas
gerando seu próprio prazer. De novo em contraste com o
prazer-saciação, o prazer-função é coextensivo à atividade que
o gera, garantindo que o prazer continue ao menos por tanto
tempo quanto se está engajado no processo. (ibid, p.6,
tradução minha)

O autor, no entanto, aponta que certas interpretações atrelam


produtividade ao prazer-função, ao fundir função e maestria criativa.
Assim, ele busca se afastar da ênfase em produtividade subjacente ao
conceito de “prazer-função”, justamente para contemplar atividades “não-
produtivas”, como a fruição musical e a dança.
Meu entendimento do prazer-função se estende também a
atividades que não necessariamente produzem objetos para
saciar o desejo, como a dança e a performance musical; o
prazer-função portanto emerge propriamente do processo.
Por essa razão, gostaria de substituir o termo “função” - que
atrapalha ao implicar em teleologia e produção - por “prazer-
processo”. A distinção entre o prazer da produção e a terceira
categoria de prazer de Bühler que emerge da “maestria
criativa” é menos clara, e aqueles que o seguiram geralmente
fundem esta última categoria na precedente: a experiência de
maestria criativa é o que gera Funktionlust - o prazer de um

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 234
trabalho bem feito. Contudo, eu gostaria de manter esta
divisão e retraçar a linha divisória entre estas categorias de
uma nova maneira. Substituindo o mais complicado “prazer
da maestria criativa” por “prazer da criação”, eu veria a
diferença entre prazer da criação e prazer-processo como uma
questão de produtividade: o primeiro emerge da satisfação da
realização produtiva, enquanto o último emerge pela
atividade em si mesma. Se o prazer-saciação vem de receber e o
prazer da criação emerge de criar [making], o prazer-processo
emerge de fazer [doing]. (idem, ênfase no original)

Esta nova perspectiva sobre o prazer é a base sobre a qual Garcia


busca apresentar sua proposta de redenção da repetição. Através de
referências de teoria musical,17 o autor localiza no loop o lócus de onde se
obtém o prazer-processo, tanto na escuta quanto na dança deste tipo de
música. O gerúndio looping designa então a técnica de se criar um efeito
rítmico a partir da disposição dos loops em camadas. Esta prática produz
assim o paradoxal efeito de um “mesmo” em constante mudança.
Para quem ouve ou dança, isto significa que a repetição cíclica e por
consequência a audição repetida propicia que se perceba separadamente
as complexas camadas rítmicas. Garcia defende que a repetição e o looping
são processos abertos e contínuos, e é a partir destes processos que a pessoa
que ouve e dança a música eletrônica pode deslocar seu foco de atenção de
uma camada para outra, prolongando assim o prazer. A ideia do looping
como prolongação do prazer é o que fundamenta portanto o prazer-
processo da fruição da música eletrônica.
De maneira semelhante, Ferreira sublinha que “a repetitividade [é
um] elemento formal básico da MEP voltado à produção de um estado
hipnótico de transe” (2008, p.192). Este processo se traduz no duplo
sentido da noção de vibe, termo êmico que designa a atmosfera das festas,
dialogando com a vibração produzida pelo som, como visto acima. A
repetição atua no sentido de fazer a clubber “entrar na vibe” - ou no fluxo
(TURINO, 2008).
As características musicais apresentadas nos parágrafos acima se
combinam para produzir uma forma peculiar de dança, que tem impactos
no tipo de sociabilidade encontrado nas festas e propicia deslocamentos

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ISSN: 2446-8290

em termos de gênero e sexualidade, que remontam às dinâmicas


desenvolvidas a partir do surgimento da disco. Na disco e nos gêneros de
MEP subsequentes, não se dança necessariamente em pares de gênero
oposto, com posições definidas por gênero. Antes, pode-se dançar sozinho
ou alternando entre um ou mais parceiros ou parceiras o contato físico. O
resultado disso foi a popularização, a partir da década de 1970, de uma
dança em que a formação do par heterossexual e o cortejo deixam de ser
centrais.
A house e o techno significam um passo além, ao não apresentarem
qualquer forma de coreografia ou papeis de gênero pré-definidos no seu
dançar. Isto impactou na entrada de mais homens heterossexuais na pista,
que já não precisavam contar com grandes habilidades de dança. Brewster
& Broughton (2000) e Phil Jackson (2004) mostram como os ambientes
de clubes e festas de MEP terminaram por produzir espaços de
relacionamentos menos tensos entre homens e mulheres em geral, e entre
gays e heterossexuais. Este é um aspecto apontado e valorizado por muitos
de meus interlocutores como uma vantagem das festas underground sobre
ambientes de sociabilidade mainstream, quase sempre heteronormativos e
com posições de gênero mais demarcadas.18
Por fim, a especificidade dos eventos de MEP advém de uma relação
entre artista e público diferente de um concerto ou show de música
popular. Ao definir musicar, Small lembra que “em muitas culturas, se não
há ninguém dançando, não há música acontecendo, tão integrante do ato
musical é a dança” (1998, p.9, tradução minha). No contexto das festas
pesquisadas, também é verdade que se as pessoas não dançam, não há
evento. Ferreira aponta a particularidade da relação entre o/a DJ e seu
público, “relação baseada não na oposição entre um indivíduo criador e
um público imóvel, mas sim nas sondagens das tendências ao movimento
de uma coletividade por um indivíduo [...] equipado para a tarefa” (2008,
p.200). A performance interativa que caracteriza as festas é produzida com
a participação das clubbers, que complementam com seus corpos a
performance sônica do DJ.
O laboratório que produziu um novo musicar propiciou não apenas
novas formas de dança, mas também novos modos de interação nos
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 236
clubes. Na próxima seção, veremos como essas dinâmicas são
experimentadas pelos atores das cenas contemporâneas de São Paulo e
Berlim, com quem conversei e dividi inúmeros momentos na pista de
dança.

A pista como laboratório de corpos e afetos

Para entender as festas como um fenômeno social, proponho


ampliar ainda mais a ideia de prazer-processo apresentada acima,
aplicando-a à experiência mais ampla do tipo de festa das cenas de São
Paulo e Berlim. Pensar o prazer como um processo aberto e contínuo é um
bom caminho para compreender a dinâmica experimental destes espaços.
A sociabilidade clubber suscita o surgimento de um novo regime de uso do
tempo, especialmente nas festas longas, em que ciclos de dança, conversas,
práticas eróticas, descanso, e consumo coletivo de substâncias (drogas,
bebidas, comida) se alternam e se repetem por muitas horas, criando uma
modalidade de experiência que poderia ser descrita como um “habitar” da
festa. Estes ciclos correspondem aos loops da música: a repetição deste
habitar traz em seu bojo novos elementos de tempos em tempos, e é na
relação entre o que se repete e a novidade que se produz o prazer da
experimentação neste laboratório.
As festas são ambientes que ensejam intensas formas de
experimentação individuais e coletivas em relação a corpos e prazeres.
Abre-se assim a possibilidade de que a imersão na música e na dança
proporcionada por tais eventos e potencializada pelas drogas produza o
que Jackson (2004) chama de “novas formas de conhecimento” sobre si e
“experimentos sensuais na arte de ser humano”. Este processo íntimo,
entretanto, é compartilhado nos ambientes coletivos das festas: as relações
com desconhecidos, amigos, parceiros erótico-afetivos, são fundamentais
para a produção destes novos sentidos. Neste processo, se desafiam
normas sociais relativas a marcadores sociais da diferença, como gênero,
raça e sexualidade.
O caráter de contestação das normas transborda a experiência
corporal imediata e se publiciza no debate acerca da cena, configurando

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ISSN: 2446-8290

assim novas políticas do corpo e do prazer, vividas, compartilhadas e


discutidas. Espaços online, como as páginas de eventos e artistas e os perfis
públicos das clubbers nas redes sociais são cruciais para a própria
constituição da cena, agindo como extensão e loci de debate sobre os
rumos da mesma (BRAGA, 2018). Além disso, as intensas trocas durante
as festas e situações de sociabilidade afins, como esquentas, chill outs e
afters19 produzem um corpo coletivo de experiências e suporte mútuo neste
processo de produção de uma forma de “ocupar o mundo”, nos termos de
Jackson (2004), que tensiona os limites de prazer “recomendados” pela
sociedade mais ampla. Maria Isabel Mendes de Almeida, ao pesquisar
cenas eletrônicas cariocas, também mobilizou a ideia de um “estar no
mundo” em sua definição de vibe, que seria uma “espécie de energia
telepática que encarna a circunstância paroxística da experiência
compartilhada, a consistência 'oceânica' de um mesmo estar no mundo”
(ALMEIDA, 2007, p. 139).
Os sentidos possíveis de tais experiências são inúmeros e não
caberiam nestas páginas. Exploraremos aqui alguns desdobramentos
deste estar no mundo clubber, que dizem respeito a novas possibilidades de
interação que se desenham na pista de dança. Permeando estes
desdobramentos, a relação com as drogas tem um papel fundamental: as
substâncias são agenciadas e agenciam os sujeitos na produção destes
afetos e na configuração das cenas.
Um dado relevante sobre esta relação é o fato de que o uso muito
difundido de substâncias estimulantes está diretamente ligado à longa
duração das festas. O surgimento das festas after-hours20 nas duas cidades na
década de 1990 está ligado à intensificação da energia das clubbers, para
quem cinco ou seis horas de festa deixam de ser suficientes. A extensão dos
horários das festas implica em mais consumo de drogas, o que desencadeia
o efeito cíclico de produzir disposição para mais festa ainda. O contexto
berlinense favoreceu este processo, já que lá os clubes tiveram e têm mais
autonomia para definir seus tempos de funcionamento, resultando em
uma cena em que há festa ininterrupta (ou quase) durante todo o fim de
semana. As propriedades depressoras do álcool tornam pouco provável
que alguém consiga se manter por tanto tempo nas festas apenas à base de
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 238
bebidas alcoólicas. Logo, é comum a combinação com algum estimulante:
cocaína e anfetaminas, por exemplo, reduzem a depressividade do álcool,
e fornecem a energia necessária para uma longa jornada. Eis mais uma
forma de experimentação no laboratório da pista: na afirmação de um
hedonismo radical, testam-se os limites do corpo, tendo a música como
elemento onipresente.
Em São Paulo, a principal droga estimulante é a cocaína, devido à
facilidade com que é encontrada e o baixo preço (dependendo da
qualidade e de onde se compra, o grama pode custar módicos R$ 10,00).
Em Berlim, a droga mais utilizada como base de sustentação para as
muitas horas de festa é o speed (anfetamina em pó). O speed é barato para os
padrões de Berlim (o grama é vendido a no máximo 10 euros). Bastante
utilizado tanto em Berlim quanto em São Paulo é o ecstasy, comprimido
que combina MDMA e anfetaminas: lá, é conhecido pelo termo pill
(pílula, em inglês). Aqui, é chamado de bala. O MDMA também pode ser
encontrado em cristais ou em pó. Outra droga popular nas duas cenas é a
ketamina em pó, obtida a partir do líquido que é utilizado originalmente
como anestésico. Seu uso recreativo pela inalação de pequenas
quantidades de pó produz sensação de dissociação e altera a percepção de
tempo e de espaço. Em grandes doses, provoca o efeito chamado em
português de buraco e, em inglês, de K-hole. Trata-se de um estado de
dissociação extrema e alucinações visuais.
Enquanto speed e cocaína produzem sustentação física, MDMA e
ketamina são substâncias que ressaltam os efeitos da música e das luzes, o
que intensifica a experiência clubber. Um DJ interlocutor descreveu as
possibilidades criativas da fruição da música sob o efeito de drogas nos
seguintes termos:
A droga é superimportante, porque libera níveis de contato
com a música que, dependendo do DJ, ele já consegue
estabelecer uma relação esquizo, de loucura, de linhas de
pensamento, de percepção da música, que aí a droga só ajuda.
Dependendo da droga, você entra num nível de
temporalidade que é superimportante para a festa. O tempo
se expande, o tempo se contrai, dependendo do momento em
que você está.

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Muito mais utilizado na cena de Berlim do que na de São Paulo, o


GHB (ou GBL) contribui ainda para uma atmosfera extremamente sexual
nas festas – a droga produz um aumento impressionante na libido de
quem a consome. A presença maciça do GHB na cena berlinense é
apontada como um dos fatores que contribuem para que haja muito sexo
em quase todas as festas da cena.
Como os eventos podem durar dezenas de horas, não há a sensação
de urgência, de um curto prazo no qual se deve buscar a maximização da
experiência. Já festas mainstream geralmente começam meia-noite e
terminam entre 5h e 6h. Somando-se a isto o fato de que boa parte das
festas costuma encher entre 1h e 2h, tem-se um curto período de tempo
em que é preciso “cumprir” certos objetivos, tais como encontrar
parceiros/as sexuais, alcançar certo grau de embriaguez, dançar e
socializar com amigos ou conhecidos. Nas cenas, a combinação entre as
muitas horas das festas e a onda de drogas como o MDMA e a ketamina
propiciam uma sensação de bem-estar e relaxamento que distensiona tais
“obrigações”. Há tempo para se permitir longas conversas com pessoas
com as quais não há nenhuma pretensão erótica, para se sentar em algum
canto da festa e simplesmente observar o movimento ou apenas absorver a
música potencializada pelas drogas e se entregar para a dança. Usando
Garcia (2005), podemos pensar que tais festas são vividas como prazer-
processo, mais do que como prazer-saciação. Um interlocutor de Berlim
exprimiu esta sensação ao narrar a série de atividades que desempenha nas
festas:
Se vou na Cocktail ou na Homopatik, eu estou ao ar livre,
aproveitando o sol, eu dou uma volta, eu encontro gente, não
21
é como se eu estivesse dentro de um clube escuro. E aí, talvez,
eu bata um papo, ou tenha uma conversa séria com alguém,
talvez eu discuta com alguém... a gente usa umas drogas, e
talvez - provavelmente não - eu coma alguma coisa; eu não faço
isso frequentemente, mas algumas pessoas fazem uma
putaria... Aí são 24, 36, 48 horas, socializando, na verdade.
Não é que a gente vá lá por horas para dançar, eu ficaria
entediado se fosse só para isso, porque eu lembro de festas que
abriam às 23h e fechavam às 6h, e você tinha pouco tempo,

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 240
então era basicamente dançar e conversar.

Em meio às múltiplas possibilidades, a dança aparece com um


significado diferente da que possui em outros contextos. Há uma
valorização explícita do ato de dançar, mas isso não implica na construção
de hierarquias sobre a “qualidade” da dança. É uma dança sem papeis pré-
estabelecidos e não há prescrição de passos ou coreografia. Portanto, não
faz sentido definir o que é dançar “bem” ou “mal”. Assim, a reação mais
comum das pessoas a quem dança é de simpatia, não importando como
esta pessoa dance.
Há ainda uma relação de alternância entre individualidade e
coletividade que também altera a composição de grupos na pista de dança.
Enquanto em outros tipos de festa é comum ver grupos que se fecham em
rodas, dançando de costas para o resto da pista de dança, nas festas das
cenas não há rodinhas. As pessoas interagem mais facilmente com pessoas
que não conhecem, sem que isso signifique necessariamente interesse
sexual. Frequentemente se pode observar uma atmosfera de simpatia e
disposição para a troca, traduzida na quantidade de pessoas
desconhecidas sorrindo umas para as outras.22
Esta atmosfera de simpatia contribui para uma disposição ao
cuidado. Como se sabe que muitas clubbers estarão sob efeito de
substâncias psicoativas e que há sempre o risco de um mal-estar, é habitual
a preocupação em conferir se alguém precisa de ajuda. Em Berlim, por
exemplo, em pouco tempo percebi que era muito comum pessoas
desconhecidas abordarem alguém que estava sozinho na festa com a
seguinte pergunta: “are you OK? [você está bem?]”.
A empatia e o cuidado se desdobram na possibilidade de
construção de redes de afeto e confiança intensos na cena, outro aspecto
sempre lembrado pelos interlocutores. Vivian*, (20 anos, São Paulo), me
contou um episódio que ilustra a formação destas redes na cena. Em maio
de 2017, São Paulo sediou pela primeira vez uma edição do festival
holandês DGTL (Digital), que trouxe grandes nomes da música eletrônica
underground mundial, além de recrutar os artistas de maior destaque no
cenário nacional. O evento foi um sucesso de público, tendo

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surpreendido até mesmo os organizadores, com a marca de 9000


participantes. Bem como eu e grande parte dos frequentadores assíduos
das festas da cena, Vivian compareceu ao DGTL. Em determinado
momento, ela se perdeu dos amigos com quem fora ao evento. No
entanto, logo encontrou uma série de rostos conhecidos da cena e pôde se
sentir segura e acolhida. A interlocutora me narrou a experiência
posteriormente, entusiasmada e surpresa com o fato de que, mesmo em
um evento lotado, encontrou “sua turma”. Vivian afirmou que tivera a
forte sensação de pertencer a um grupo, fato que jamais havia
experimentado na cidade de onde veio, muito menor do que São Paulo.
Quanto mais se frequenta as mesmas festas, a rede de conhecidos
aumenta e diferentes níveis de afinidade se delineiam. O depoimento do
interlocutor Theo* (39, Berlim) dá conta deste processo:
Depois de um tempo, você conhece tanta gente...
Obviamente, nem todos são amigos, quero dizer, eles são
amigos de festa. Você sabe a diferença - eu não conto com eles
para me ajudar, não ligo pra eles na segunda ou na terça, mas
às vezes tem gente que, mesmo só estando junto em festas,
você se sente mais próximo. [...] Tem pessoas de que você
gosta, que você meio que fica esperando, mesmo que você
talvez nem saiba o sobrenome delas, ou tenha o número de
telefone delas. Às vezes eu até saio sozinho porque sei que vou
encontrar alguém.

Além disso, diversos registros apontam como certas drogas, em


particular o MDMA e suas propriedades empatogênicas (isto é,
produtoras de empatia), têm um papel na construção de uma cultura de
abertura e aceitação que foi e é central em certa flexibilização de barreiras
sociais nas várias cenas de música eletrônica underground ao longo das
últimas duas décadas. Uma destas barreiras diz respeito à usualmente
tensa relação entre homens heterossexuais e gays. Em Berlim, a liberdade
experimentada nas festas queer é lida como um reflexo da entrada da house
na noite da cidade no início dos Anos 1990 e da mistura entre gays e
heteros decorrente disso, impulsionada pela vibe empática propiciada pelo
ecstasy. O amplo campo de possibilidades aberto a relações entre homens
gays e homens heterossexuais é uma característica marcante da cena da
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 242
cidade. Se a presença de mulheres heterossexuais em ambientes
predominantemente frequentados por homens gays é comum em diversos
contextos, a participação dos homens heterossexuais em Berlim é
excepcional. É recorrente a amizade intensamente física entre homens
heterossexuais e gays, manifesta em mãos dadas, beijos e longos abraços.
O aumento das festas de longa duração em São Paulo e a
consequente atmosfera propiciada pelo uso de ecstasy por boa parte dos
participantes têm começado a produzir aqui esta interação entre homens
gays e homens heterossexuais, estes por vezes oriundos de uma cena de
clubes mais mainstream. É perceptível um grau de contato físico, afeto e
intimidade entre homens heterossexuais e homens gays pouco visto em
outros contextos de sociabilidade, aspecto apontado por muitos
interlocutores gays.23
Justamente em uma festa que durou vinte e cinco horas, presenciei
a abordagem de um rapaz heterossexual a meu amigo gay. Esfuziante, o
rapaz lhe disse: “sou hetero, mas queria te dizer que a sua vibe é muito boa.
Sempre dançando, sempre com um sorriso no rosto!”. O ímpeto que ele
teve em interagir carinhosamente com meu amigo ainda vinha temperado
pelo aviso de sua orientação sexual, o que pode indicar que para ele aquilo
foi uma ousadia que talvez não fosse imaginável em outras circunstâncias.
No caso de Berlim, em que a experimentação erótico-sexual é ainda
mais valorizada, não é raro conhecer nas festas rapazes que até bem pouco
tempo se entendiam como exclusivamente heterossexuais, mas que
passaram a diversificar suas relações no contexto da cena. Em
determinada ocasião, ouvi de um deles: “eu era heterossexual, mas aí eu
me mudei para Berlim...” A frase permaneceu incompleta, o que pode ser
interpretado da seguinte forma: o fato de que ele esteja variando o gênero
de seus parceiros não significa – pelo menos, não por enquanto – que ele
agora se identifique como bissexual ou homossexual. A ênfase parece estar
na ideia das múltiplas possibilidades, na experimentação que não
necessariamente se fixa, define e ocupa alguma das normas mais
reconhecidas pelo mundo mainstream.
É importante destacar que pensar sobre os efeitos do ecstasy sobre
as cenas significa dizer que se cria um ambiente no qual tais interações são

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previstas e valorizadas, independente de que os envolvidos estejam sob os


efeitos das drogas ou não. Estas formas de interação se cristalizam ao longo
do tempo; os códigos de sociabilidade se autonomizam dos efeitos
psicotrópicos das substâncias e se naturalizam nestes contextos.
Outro dado relativo ao relaxamento nas prescrições de gênero e
sexualidade é o deslocamento das posições de homens e mulheres
heterossexuais típicas em outros tipos de festa. Nas festas do campo, a
música, a dança, e a sociabilidade baseada em afetos não-sexuais parecem
ser mais relevantes que a caça. Assim, ainda que haja flerte e pegação entre
homens e mulheres, esta não segue a lógica das narrativas clássicas de
mulheres dançando rodeadas por homens engajados em investidas
sexuais sobre elas.
A possibilidade de uma experiência de festa mais livre é apontada
por muitas mulheres participantes das cenas. Bárbara* (33), que começou
a frequentar festas na cena paulistana de techno da década de 2000 -
predominantemente composta por heterossexuais e realizada em clubes
mais regulados, dividiu comigo seu alívio de estar agora em uma cena
onde ela se sente à vontade para fazer o que quiser:
E hoje em dia eu tenho uma preguiça violenta de estar num
rolê que não é o rolê da gente, em que a gente pode ser...
Quanto tempo a gente viveu tentando aparentar uma coisa
assim, sabe? Em coisas mínimas, por mais alternativo que
fosse, drogas e tals... no techno que eu frequentava, nos outros
rolês, eu não podia sair assim, usando uma regatinha sem
sutiã. Eu não podia ir com um short curto, eu não me sentia
confortável, porque homens e mulheres iam dar opinião
sobre isso. Aquela sua amiga que vai te falar que você não
depilou a perna, ou o cara que vai querer passar a mão em
você, entendeu? Hoje eu não tenho mais vergonha de nada,
ou até, sei lá, coisas idiotas, eu querer beber, ou eu querer
dançar do jeito que eu quiser, sentar onde eu quiser na festa,
eu não me sinto mais julgada. Eu me sentia muito julgada,
tudo que eu fazia, em todos os rolês em que eu estava.

Na fala acima, além de um distensionamento da interlocutora


quanto à reação dos homens, é sugerido um relaxamento da vigilância que
as mulheres exercem sobre seus próprios corpos e os corpos de outras

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 244
mulheres. A frequência de mulheres em festas com público formado
predominantemente por homens gays parece contribuir com esta
liberação. Em São Paulo, a cena das festas de sexo tem recebido cada vez
mais mulheres nos últimos anos, que encontram um espaço onde sua
nudez pode ser experimentada de forma mais relaxada.
Algum tempo depois da entrevista, encontrei Bárbara na festa
Ficken4Free [em tradução livre, “fuder de graça”], em São Paulo. Esta festa
fora idealizada por Mauro Feola em Berlim, onde ocupava o cruising bar
Ficken3000. Inspirado pelas festas gratuitas de São Paulo, o produtor quis
levar à capital alemã um evento que reproduzisse o ambiente descontraído
das festas de cá. Em 2018, voltando ao Brasil, trouxe consigo a festa, que
foi um sucesso, sendo reconhecida pela qualidade da música. Pela
primeira vez, Bárbara vestia apenas calcinha e sutiã em uma festa e não
escondia a satisfação com o feito.
A DJ residente da Dando Amanda Mussi lançou ainda uma bem-
humorada “campanha” que reflete esta sensação de libertação das
mulheres. Amanda pedia por “menos short sets de longo, mais long sets de
short!”. Ao mesmo tempo em que defende a liberdade das mulheres se
vestirem como quiserem, a frase celebra a tendência dos long sets, que são
valorizados por oferecerem aos artistas maior possibilidade de
experimentações musicais.
Retomemos então o episódio de campo descrito no início deste
artigo, a partir do qual é possível apreender os tipos de conexões e
corporalidades propiciadas pela pista de dança. Foi no contexto das festas
da cena de São Paulo que Gabriel, Luana, Mariana e Roberto interagiram
pela primeira vez, e através da atmosfera de abertura e empatia destes
ambientes, estreitaram laços, tendo compartilhado momentos de
intimidade e intensa emoção. Tempos depois, quando sua amizade já
estava significativamente estabelecida, este afeto se traduziu em breves
momentos eróticos, embalados pela música e por substâncias psicoativas.
No caso de Gabriel e Roberto, o afeto físico entre homens gays e
heterossexuais referido acima foi intensificado, mas tampouco significou
alguma ruptura para Roberto. Luana e Mariana, além do beijo,
desnudaram os seios, experimentando uma corporalidade pouco comum

245 Gibran Teixeira Braga


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ISSN: 2446-8290

em outras situações.
As experiências dos quatro amigos aconteceram durante o set de
uma DJ negra. Há alguns anos, isso seria improvável, visto que a cena de
São Paulo foi e ainda é majoritariamente branca e de classe média. No
entanto, como vimos acima, as origens da club culture apontam para um
movimento calcado na sociabilidade de pessoas cujos marcadores sociais
da diferença as alocavam em posições desprivilegiadas. Assim, esta
referência é muito presente nas duas cenas, que buscam visibilizar e
valorizar o trabalho de artistas não-brancos, não-homens, não-
heterossexuais. Em São Paulo, a Coletividade Námíbìa lançou nos
últimos anos as DJs negras e trans Ana Giselle e Valentina, além de contar
com diversas performers em cujas apresentações a raça é um tema
constante. Questões de origem e classe também são levantadas, tendo
como bons exemplos a ascensão de DJs e produtores de música vindos de
contextos periféricos, caso de RHR, negro, e de BadSista, negra e lésbica.
Na cena de Berlim, podemos destacar a presença de DJs trans e negras
renomadas, como as estadunidenses Honey Dijon e Lady Blacktronika e a
venezuelana Aerea Negrot. Podemos pensar então que, ao longo da
trajetória das cenas voltadas à pista de dança, esta também se configura em
um laborátorio de relações raciais.
Gostaria de concluir esta seção apresentando a visão de Jackson
(2004) sobre a experiência clubber, que ele chama de clubbing. O autor usa o
conceito de habitus de Bourdieu – processo pelo qual as estruturas sociais
se incorporam nos atores, e argumenta que
[…] a intensidade sensual do clubbing gera um corpo
alternativo em que o quadro estruturante do habitus é
temporariamente apagado, e esse apagamento é a base do
mundo social modificado que se encontra através do clubbing.
Obviamente esta não é a razão pela qual as pessoas vão a
clubes, elas não estão sentadas em casa pensando: “certo, vou
sair para apagar meu habitus”. É uma consequência não
intencional das drogas, da dança e da aglomeração de pessoas.
É uma experiência que impacta crescentemente as pessoas à
medida em que o corpo do clubbing começa a desafiar o corpo
legado a elas por sua própria cultura, assim transformando o
modo como elas negociam sua passagem por seu reino social e

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 246
se relacionam com os quadros de referência simbólicos e
ideológicos que governam aquele reino. Isto pode ser um
processo problemático – ainda assim, todos os meus
informantes concordaram que os riscos que eles às vezes
assumem valem a pena por que o clubbing acrescentou algo a
suas vidas que eles valorizam (JACKSON, 2004, p.5, tradução
minha).

Depoimentos de vários interlocutores se aproximam destas ideias.


Uma clubber de Berlim, por exemplo, traduziu este efeito corporal,
buscando substituir a noção moralizante de perder-se pela ideia da festa e
das drogas como produtoras de insights: “[...] nunca foi para me perder,
mas para me achar. Tem a ver com ter consciência do meu corpo, usar o
meu corpo como plataforma para descobrir o que me faz bem e o que me
faz mal”.
Assim, o clubbing, mais do que um alívio momentâneo das agruras
cotidianas ou uma fuga, parece configurar para muitos de fato um “estar
no mundo” clubber, ao transformar em maior ou menor grau suas vidas.
Como apontamos acima, trata-se de “uma forma de conhecimento” e
“uma forma de ocupar o mundo”, nos termos de Jackson. E neste habitar
se produzem deslocamentos sobre a forma de estar no mundo além das
horas da festa. A interlocutora Virginia* (39), uma mulher negra
estadunidense que se mudou para Berlim acompanhando o esposo
alemão (ambos trabalham em clubes relevantes na cena), resumiu assim
sua experiência clubber:
Talvez não seja coincidência que eu tenha começado a gostar
da cidade quando comecei a conhecer a cena dos clubes. Foi
na cena dos clubes onde pela primeira vez não me senti
rejeitada na cidade, onde me senti em casa pela primeira vez.
As pessoas eram tão livres, tão permissivas. […] [Eu] amava as
festas onde as pessoas realmente faziam qualquer merda que
elas quisessem, mas o ponto era viver e deixar viver, o que para
mim, tem sido a base da minha política sempre: minha
política pessoal, minha política “política”: se algo não fere
você ou outros, ok. […] A cena de festas de Berlim para mim
sempre foi sobre liberdade. Nem sobre aceitação - eu não
preciso ser aceita, nem andar por aí fazendo melhores amigos -
só quero ser livre.

247 Gibran Teixeira Braga


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ISSN: 2446-8290

No trecho acima, vemos como a interlocutora estende o modo de


vida clubber à sua posição no mundo mais amplo e localiza no clubbing o
processo pelo qual se encontrou em uma cidade que não era a sua, em um
país que não era o seu. Retomando o trecho de Jackson acima, Virginia
deixa claro aquele “algo valorizado” que o clubbing acrescentou em sua
vida.
Assim, para as clubbers que imergem intensamente no laborátorio
da pista, as experiências produzem mais do que suspensão efêmera de
certas normas, mas a possibilidade de inscrever em seus corpos novas
formas de se relacionar com elas próprias e com outros sujeitos, através de
arranjos diversos entre marcadores sociais da diferença como gênero, raça
e sexualidade.

Considerações Finais

Através da metáfora da pista-laboratório, vimos como uma forma


específica de relação com a música e a dança, expressa em duas cenas de
música eletrônica underground, pode ensejar experiências que colocam em
debate as articulações entre marcadores sociais da diferença e os usos do
corpo e do tempo. A pista é um espaço de referência tanto na produção
quanto na manipulação e fruição da música; é o elemento central na
produção de um musicar clubber.
As cenas de música eletrônica underground estão baseadas na dança
como uma expressão a um tempo individual e coletiva, em que a liberdade
dos passos é um valor prestigiado, bem como a interação entre pessoas de
diferentes identidades de gênero, preferências sexuais, raça e classe é um
parâmetro a ser seguido. O desafio às prescrições de uma sociedade
produtivista se traduz ainda na fruição extensiva do tempo do prazer, em
ciclos de repetição e novidade que geram o que Garcia (2005) chama de
prazer-processo. Em tempos de ascensão da extrema-direita nos dois
contextos, São Paulo e Berlim contam com um espaço em que a entrega à
música e a dança marca também uma forma de estar no mundo para
aqueles e aquelas que subvertem as normas. A pista é, além de um
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 248
laboratório, um campo de batalha, um espaço onde se ensaiam os
movimentos de uma resistência que se expressa através do prazer.

Notas

1. Utilizo o conceito de cenas seguindo a tendência contemporânea dos estudos


sobre culturas juvenis/subculturas e música (STRAW, 1991; DRIVER &
BENNET, 2015). Podemos pensar em cenas como conjuntos temporais e
espaciais de sociabilidades específicas que apresentam elementos estilísticos,
musicais e erótico-afetivos e compõem relativas unidades de símbolos
compartilhados. Além de uma categoria analítica, cena é também uma
categoria êmica, sendo utilizada por muitos dos frequentadores das festas.
2. Interlocutores que são pessoas públicas nas cenas (produtores/as e DJs) têm
seus nomes verdadeiros mantidos com a permissão destes. Os nomes que vêm
acompanhados de asterisco são fictícios.
3. A qualificação underground, quando atribuída à música, dá conta de marcar a
diferença entre os gêneros e artistas tocados nestas festas e outros gêneros e
artistas de música eletrônica mais celebrados pela indústria fonográfica e por
grandes festas e festivais, tidos como mainstream e de qualidade musical
inferior. Sobre a distinção underground/mainstream na música eletrônica, ver
Pedro Peixoto Ferreira (2006).
4. “O musicar clubber: corpo e subjetividades em cenas de música eletrônica
underground de São Paulo e Berlim”, pesquisa realizada no PPGAS/USP,
supervisionada pela Profa. Dra. Rose Satiko Gitirana Hikiji e vinculada ao
Projeto Temático O Musicar Local – Novas trilhas para a etnomusicologia, ambos
financiados pela FAPESP.
5. Uma boa análise deste processo de apagamento em escala internacional pode
ser encontrada no artigo “An alternate history of sexuality in club culture”, do
etnomusicólogo Luís-Manuel Garcia. Disponível em:
https://www.residentadvisor.net/features/1927. Acesso em: 29 abr. 2019.
6. A opção do grupo em se denominar “coletividade” no feminino, ao invés do
masculino “coletivo”, mais usual na cena, é parte de uma afirmação política de
gênero. https://www.facebook.com/coletividadenamibia/. Acesso em: 08 mai 2019.
7. A faixa foi lançada em 2018 pelo selo independente Pegada Records e está
disponível em https://soundcloud.com/pegadarecords/pista-juba-ken-feat-
gingerella?in=pegadarecords/sets/simulacre. Acesso em: 01° mai 2019.
8. O termo clubber surgiu nos EUA e na Europa no início da década de 1990,
tendo chegado ao Brasil poucos anos depois. Por aqui foi popularizado pela
coluna “Noite Ilustrada”, escrita pela jornalista Erika Palomino no diário
Folha de São Paulo ao longo da década. Na coluna, Palomino comentava a
efervescente cena de clubes de música eletrônica da época. Clubber deriva da
categoria club culture, cujo uso varia entre êmico e analítico, e é utilizada para se
referir à subcultura - ou cena, como prefiro - que se caracteriza pelo hábito de
seus participantes de se reunirem em ambientes como clubes e festas para

249 Gibran Teixeira Braga


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ISSN: 2446-8290

dançar música tocada por DJs (quase sempre subgêneros da música eletrônica)
e consumir psicoativos lícitos e ilícitos. Para uma análise acadêmica pioneira de
club cultures, ver o trabalho de Sarah Thornton (1995).
9. Outros autores de língua inglesa utilizam o termo EDM (electronic dance music)
para resumir os diversos subgêneros da música eletrônica feita para dançar.
Ferreira (2006) traduziu o termo para “música eletrônica de pista”, tradução
que adotarei neste artigo.
10. Utilizo clubber sempre no feminino porque é como aparece no campo de São
Paulo, replicando a tendência de certas sociabilidades LGBT de feminizar
substantivos.
11. Agradeço aos/às pareceristas anônimos/as pelas sugestões e a Marcio
Zamboni pela leitura cuidadosa de uma versão anterior deste artigo.
12. A CDJ funciona com música em formato digital, com pen-drives ou CDs e
corresponde ao toca-discos, reproduzindo boa parte de suas funções.
13. Aqui, uso “o DJ” porque no contexto da disco e dos primórdios da MEP, DJs
mulheres eram raríssimas ou nenhuma, segundo Brewster e Broughton
(2000), entre outros.
14. Single é o nome dado às faixas lançadas individualmente em discos,
acompanhadas apenas por um lado B. Com o surgimento do 12 polegadas e o
remix, passa a incluir mais versões e pode chegar a conter seis faixas.
15. Alguns autores de língua inglesa utilizam o termo social dancing para diferenciar
a modalidade de dança praticada em contextos de sociabilidade da dança
enquanto manifestação artística/profissional ou ritual.
16. De difícil tradução, loop significa uma série ou processo cujo fim está
conectado ao começo; termos aproximados em português seriam “volta” ou
“circuito”.
17. Não recuperarei tais referências neste artigo por uma questão de escopo e
espaço.
18. A polaridade underground/mainstream é mobilizada a todo tempo nas cenas,
não apenas para qualificar a música, mas festas, cenas, e mesmo
comportamentos e formas de estar no mundo. Underground é usado geralmente
no sentido do que acontece longe das vistas do grande público, do que é pouco
conhecido, do que não é ou não seria aceito pelo senso comum; e mainstream
caracteriza o que é convencional, dominante, normativo, careta.
19. Esquenta designa a reunião de amigos que precede a ida a uma festa, seja em um
bar ou na casa de alguém. Nestes momentos de reunião, toma-se uns drinques,
planeja-se a noite e/ou compra-se as substâncias que serão combustível da
jornada que se inicia. Chill-out é como se chama nas cenas o momento de
relaxamento coletivo pós-festa: para muitos, é a chance de baixar os efeitos
estimulantes e eufóricos das drogas. Se envolve música alta e dançante, se
transformando em uma continuação da festa, este momento tende a ser
chamado de after, variante de after-hours (ver nota seguinte).
20. O termo foi criado para nomear as festas que se iniciam pela manhã ou à tarde,
dando sequência às festas da noite anterior.
21. A Cocktail D'Amore e a Homopatik – que em 2016 passou a se chamar Buttons –
são as maiores e mais renomadas festas da cena berlinense.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 250
22. Abreu (2011) observou tendência semelhante nas raves, também atribuída aos
efeitos do ecstasy.
23. Garcia (2011) escolheu a intimidade como principal tema de sua etnografia
realizada em clubes de Paris, Chicago e Berlim. No trabalho, o autor destaca
como se produzem no contexto dos eventos normas relativas ao toque
diferentes daquelas que regem a vida cotidiana dos interlocutores.

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Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

“A pista é um laboratório”:corpos, afetos e


experimentação em cenas de música eletrônica underground 252
Economia performativa da infregatividade:
Estado, subjetividades, política e
corpos em movimento no contexto
da música eletrônica bagaceira

Chiara Albino
Universidade Federal de Santa Catarina
tarsila.chiara@gmail.com

Resumo: Baseando-me no trabalho de campo que realizo na cidade de Recife, uso o termo
infregatividade para me referir a uma forma de “performatização corporificada da dança”
produzida pelos sentidos erótico-dançantes da música eletrônica dançante bagaceira. A partir
desse uso inicial do termo, gostaria de aqui apresentar uma descrição mais ampla da
infregatividade, focando, ao mesmo tempo, seu sentido performativo e produtivo. Como
argumentarei, a infregatividade revela modos de conexões entre o material/econômico e o
cultural/performativo. Desde uma perspectiva descritivo-analítica dessa dupla dimensão,
apresento neste artigo minhas ideias iniciais sobre a economia performativa da infregatividade.
Também discutirei as interpelações e os modos de subjetivação nos quais os interlocutores são
produzidos pela experiência de serem sujeitos dançantes de uma “música periférica”, para, assim,
repensar o sujeito em termos de corpo.
Palavras-chave: Música Brega; Movimento Bregueiro; Infregatividade; Estado; Modos
de Subjetivação.

253
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 253-289
ISSN: 2446-8290

The performative economy of infregatividade:


State, subjectivities, politics, and bodies
in movement in the context of
bagaceira electronic dance music

Abstract: Based on the fieldwork done in Recife, I use the term infregatividade to refer to a form
of “embodied dance performativity” produced by the erotic-dancing senses of bagaceira electronic
dance music. Initially, I would like to present here a broader description of infregatividade,
focusing on its performative and productive sense. As I will argue, infregatividade reveals modes of
connection between material/economic and cultural/performative aspects. From a descriptive-
analytical perspective about this double dimension, I present in this article my initial ideas about
the performative economy of infregatividade. I will also discuss the interpellations and modes of
subjectivation in which the interlocutors are produced by the experience of being a dancing subject
of a “peripheral music”. This idea helps us to rethink the subject in terms of body.
Keywords: Brega Music; Movimento Bregueiro; Infregatividade; State; Modes of
Subjectivation.

254
Economía performativa de infregatividade:
Estado, subjetividades, política y cuerpos
en movimiento en el contexto de la
música electrónica de baile bagaceira

Resumen: Basado en el trabajo de campo que realizo en Recife, utilizo el término


infregatividade para referirme a una forma de “performatización de danza encarnada”
producida por los sentidos eroticos bailables de la música electrónica de baile bagaceira. A partir
de este uso inicial del término, me gustaría presentar aquí una descripción más amplia de
infregatividade, centrándome en su sentido performativo y productivo. Como argumentaré,
infregatividade revela modos de conexión entre material/económico y cultural/performativo.
Desde una perspectiva descriptiva-analítica de esta doble dimensión, presento en este artículo mis
ideas iniciales sobre la economía performativa de infregatividade. También discutiré las
interpelaciones y los modos de subjetivación en los que los interlocutores son producidos por la
experiencia de ser un sujeto de baile de una “música periférica” para repensar el sujeto en
términos de cuerpo.
Palabras clave: Música Brega; Movimento Bregueiro; Infregatividade; Estado; Modos
de Subjetivación.

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v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 253-289
ISSN: 2446-8290

Introdução1

Baseando-me no trabalho de campo2 que realizo na cidade de Recife


(SANTANA, 2017a; ALBINO, 2019b), uso o termo infregatividade3 para
me referir a uma forma de “performatização corporificada da dança”
produzida pelos sentidos erótico-dançantes da música eletrônica dançante
bagaceira4 (ALBINO, 2018, 2019a). A partir desse uso inicial do termo,
gostaria de aqui apresentar uma descrição mais ampla da infregatividade,
focando, ao mesmo tempo, seu sentido performativo e produtivo. Como
argumentarei, a infregatividade revela modos de conexões entre o
material/econômico e o cultural/performativo. Para tanto, faz-se
necessário fazer alguns esclarecimentos.
Seguindo Judith Butler (1993) e Margot Weiss (2011), minha
intenção é sugerir que, como uma prática performativa, a infregatividade
não é desprovida de materialidade. Em outras palavras, pretendo pensar a
infregatividade como uma performatividade material. Chamo essa relação
entre performatividade e materialismo de “materialismo performativo”. O
termo “performatividade”, segundo Judith Butler, “caracteriza, primeiro,
e acima de tudo, aquela característica dos enunciados linguísticos que, no
momento da enunciação, faz alguma coisa acontecer ou traz algum
fenômeno à existência”. Ou, mais precisamente, “a performatividade é um
modo de nomear um poder que a linguagem tem de produzir uma nova
situação ou de acionar um conjunto de efeitos”. Seguindo tal definição,
trata-se de ressaltar que “a questão não é apenas que a linguagem atua, mas
que atua de maneira poderosa” (BUTLER, 2018, p. 35). Isto implica
entender a performatividade “não como um “ato” [“act”] singular ou
deliberado, mas, antes, como a prática reiterativa e citacional pela qual o
discurso produz os efeitos que nomeia”5 (BUTLER, 1993 [2011], p. xii).
Baseado na noção de performatividade de Butler, o termo “materialismo
performativo” [“performative materialism”], de Margot Weiss (2011), “chama
a atenção para as relações entre o socioeconômico e o culturalmente
performativo, vinculando transformações sociais históricas a
performances locais e subjetivas”6 (Idem, p. 8)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 256
Desde uma perspectiva descritivo-analítica dessa dupla dimensão,
apresento neste artigo minhas ideias iniciais sobre a economia
performativa da infregatividade. Inspirada por essas autoras, a proposta
analítica que faço aqui também leva em consideração as relações entre
corpos, subjetividades e política entre homens com práticas
(homo)sexuais em Recife7. Mais precisamente, discutirei as interpelações e
os modos de subjetivação nos quais meus interlocutores são produzidos
pela experiência de serem sujeitos dançantes de uma “música periférica”,
para, assim, repensar o sujeito em termos de corpo, o que implica entender
“o corpo não como entidade autocontida e fechada, mas como um sistema
aberto e dinâmico de troca, produzindo constantemente modos de
sujeição e controle, bem como de resistência e devires”8 (LEPECKI, 2006,
p. 5). Dito de outra maneira, compreender o corpo como produto e
produtor de sentido, bem como investido de agência e subjetividade em
relação à noção biológica de corpo e, portanto, não como “coisa dada”.
Não se trata, contudo, de essencializar o sentido corporificado da
experiência dançante, reificando o corpo como sujeito; antes, pretendo
situar a discussão sobre a performatização corporificada da dança em
articulação com a construção do sujeito e da subjetividade (MALUF,
2002a, 2002b, 2015). Trata-se de apontar ainda que a dança
performatizada pelos interlocutores acontece num contexto de disputas
políticas.
Quando enfatizo a ideia de meus interlocutores serem interpelados
como sujeitos dançantes de uma “música periférica”, estou aqui me
referindo à noção de “infregatividade” e à música brega. No meu trabalho de
campo, a “infregatividade” tem sido pensada, provisoriamente, como uma
performatização corporificada da dança9 que é produzida pela sonoridade
da música eletrônica dançante bagaceira. Trata-se de um estilo de música
eletrônica que não pode ser analisado apenas pela sua composição
musical, pois importa também analisar os sentidos da “bagaceira” que
resultam da interação entre os dançantes10.
Gostaria de também pontuar que a classificação de uma música
enquanto uma música eletrônica bagaceira11 não pode ser dada de antemão,

257 Chiara Albino


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já que nem todo brega ou brega-funk pode ser classificado enquanto tal.
Inspiro-me aqui na noção de enact [“pôr em prática”] de Anne Marie Mol
(2005). Mol usa essa noção para mostrar que não existe uma doença
prévia, mas que ela é produzida em ação, na prática, e, que, portanto, não é
exterior ao sujeito. A partir dessa noção, acredito que o que estou
chamando aqui de “música eletrônica bagaceira” não existe anteriormente à
relação entre o sujeito, a música e a dança, pois a qualificação “bagaceira”
acontece quando a dança é posta em prática. A música eletrônica bagaceira
emerge, assim, como um estilo musical “mais envolvente”, que é
experimentada por meio de uma sensibilidade corporal que se expressa na
dança. Por “música eletrônica bagaceira”, em sua definição êmica, entende-se
um estilo de música eletrônica dançante “mais erotizada”, que incorpora
em sua composição os ritmos da “musicalidade local”. Nesse sentido, a
noção de “infregatividade” considera as experiências e vivências particulares
de cada sujeito e os demais elementos que a compõe, como o espaço físico,
as bebidas e as luzes.

Estado, disputas políticas e sensibilidades

No carnaval de 2017 o governo do estado de Pernambuco, por meio


da decisão da Fundação do Patrimônio Histórico e Artístico de
Pernambuco (Fundarpe), decidiu que os gêneros musicais como o brega, a
swingueira, o arrocha, o funk, o sertanejo, o pagode estilizado, o forró
eletrônico e o forró estilizado seriam vetados em atividades festivas
financiadas pelo poder público estadual. Tal ação delimitava que os
gêneros musicais aptos a integrar a programação multicultural financiada
pelo estado deveriam valorizar a cultura local. Com essa ação, o governo
estadual pretendia deixar a música brega fora da programação musical não
apenas do carnaval, mas também das festas juninas. Marcelo Granja,
secretário de Cultura de Pernambuco, informou que o governo do estado
deu “um apoio expressivo, mas não determinante, a mais de 50 cidades
pernambucanas”. Ele ressaltou, ainda, que o estado não estava
“discriminando gêneros musicais nem fazendo juízo de valor”, mas, sim,

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 258
privilegiando “a música que é menos tocada nas rádios”. Por fim, concluiu
que era “uma opção política do Estado”12. Tal decisão por sua vez provocou
uma mobilização política entre vários artistas locais, que procuraram o
apoio político institucional do deputado Edilson Silva do Partido
Socialismo e Liberdade (PSOL) para incluir o brega como expressão
musical genuinamente pernambucana.
A esse respeito, a cantora Michele Melo, popularmente conhecida
como “Madonna do Brega”, “Madonna de Pernambuco” e “Rainha do
Brega”, disse que:
A decisão do governo é absurda, um total desrespeito. Vários
artistas locais esperam essa época para fazer um caixa. Por mais
que as pessoas não aceitem ou finjam que não aceitem, nós
somos a maior empresa pernambucana gerando empregos
diretos e indiretos. Geramos renda para o vendedor de
cachorro quente, para o instrumentista no palco. Por que eu
não sou cultura? Se a nossa música toca todos os dias, em
todas as classes, por que eu não sou cultura? As pessoas
precisam deixar de ser hipócritas. Essa decisão é
preconceituosa. As bandas de brega ainda tocam frevo. Por
que o brega não pode ser tocado? (Michele Melo, janeiro de
2017; grifos meus).13

Em maio de 2017 foi aprovada a Lei n° 16.044/2017, proposta pelo


deputado Edilson Silva. Aprovada por unanimidade em duas rodadas de
votação na Assembleia Legislativa de Pernambuco (Alepe), a lei tornou o
brega expressão cultural de Pernambuco. “A provocação veio após uma
postura discriminatória do Governo”, afirmou o parlamentar referindo-se
ao episódio descrito acima. O parlamentar comentou ainda que, ao ser
procurado pelos artistas e ter conversado com eles, convenceu-se da
possibilidade e da necessidade de inscrever o brega na legislação
previamente existente no Estado.
Como bem cultural do estado, o brega foi, nos termos da Lei,
posicionado na mesma categoria do afoxé, baião, bumba meu boi,
caboclinho, capoeira, cavalo marinho, ciranda, coco, forró, frevo, mangue
beat, maracatu, mazurca, pastoril, reisado, repente, toré, urso e outras
expressões artísticas devidamente reconhecidos pela Fundação de Cultura

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do Estado de Pernambuco.14 A medida prevista em lei dispõe sobre a


garantia de apresentações de artistas e grupos que executam a Expressão
Cultural Pernambucana no Estado de Pernambuco. Nesse sentido, a
inclusão da música brega na Lei visa proporcionar que os artistas possam
acessar um financiamento diferenciado por meio de convênios culturais
entre Estado e Município, em eventos como Carnaval, São João e Natal.
Para o cantor Kelvis Duran, conhecido popularmente como o
“príncipe do brega”, “a medida pode garantir também a turistas e a fãs de
outros Estados o acesso ao estilo musical. Precisamos nos apresentar em
grandes eventos apoiados pelo Governo para sermos valorizados, não só
musicalmente, mas economicamente”.15
Para a repórter Wanessa Andrade, “a música brega é um ritmo que
mistura dor de cotovelo, sensualidade, romantismo e faz dançar. Isso tudo
é brega!16” No dia 24 de novembro de 2018 a Globo News exibiu o
documentário “Capital do Brega”17, que apresenta a importância do brega
para a cultura local. O documentário foi produzido pela repórter Wanessa
Andrade e editado por Renata Baldi, e reúne depoimentos de expoentes
do brega em Pernambuco, como os empresários do Rei Reginaldo Rossi, e
os artistas The Rossi, Michelle Melo, MC Troinha, MC Elvis, MC Loma e
as Gêmeas Lacração, Faringes da Paixão, Kelvis Duran, além dos deejays e
de outros produtores e empresários, e do pesquisador e professor da
UFPE, Thiago Soares.
O gênero musical é destaque na economia pernambucana, assim
como na geração de empregos diretos e indiretos, porque movimenta a
economia local: a exemplo de estilistas e costureiras que fazem o figurino
das bandas, dos empresários que trabalham com a produção de camisas
com “bordões” provenientes do “movimento bregueiro”18, dos dançarinos,
dos vendedores ambulantes, entre outros prestadores de serviços que, de
alguma forma, tiveram suas vidas “modificadas” com o crescimento do
“movimento bregueiro” e sua expansão para outras classes sociais. Aqui,
também gostaria de acrescentar a importância das “carrocinhas” de
bairros, que historicamente foram responsáveis pela circulação mais
imediata das músicas nas comunidades locais.19 Para o cantor MC

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 260
Sheldon, “Soltou na carrocinha, vai pra toda comunidade”.
Além das bandas que divulgam o som para outras localidades da
cidade, e da internet, que possibilitou a divulgação dos clipes, os deejays
também são responsáveis pela divulgação deste gênero musical em outros
locais da cidade. Esta forma de circulação musical produz “fissuras” na
economia musical local, que valoriza prioritariamente as produções
provenientes de uma elite branca, heterossexual e residente de bairros
nobres da cidade.
Victor20, um interlocutor desta pesquisa, disse que durante o
carnaval de 2017 “o brega foi destaque nas festas privadas ou nos sets dos deejays e
nas ladeiras de Olinda”. De acordo com Victor, a manifestação cultural da
música brega no carnaval foi politicamente importante, pois mostrou que,
apesar de o Estado não incentivar a participação dos artistas bregueiros na
programação do carnaval, as pessoas reconheciam o brega como uma
expressão da cultura local.
Esta disputa política em torno da música brega indica, portanto,
espaços de contestação. Os interlocutores também consideram o brega
como uma expressão cultural pernambucana válida, chegando a afirmar,
inclusive, que “Recife é brega!”. Diante desses impasses, o gênero musical
brega aparece enquanto espaço de contestação. O estilo musical
classificado como música eletrônica bagaceira na cidade de Recife é
representado pelo brega e brega-funk e tem como principal característica a
valorização dos aspectos da “musicalidade local”. Este estilo musical,
originado nas periferias da cidade, tem se disseminado para outros espaços
da cidade. Refiro-me aqui àquelas festas em ambientes privados, a exemplo
das festas “ixxfrega da paixão” do Bar do Ceú (antigo Santo Bar), da pista do
Bar Brasil no Clube Metrópole ou das festas Bailão Brega que ocorrem às
sextas-feiras no Clube Metrópole, ou, ainda, da festa Brega Naite,
organizada pelo coletivo pernambucano Golarrolê21. Para Cauã,22 nesse
sentido:
o fato de o brega sair da periferia e começar a passar na tv, ser tocado
em boates ou em festas consideradas descoladas, incomoda,
principalmente porque é uma forma da favela dizer que apesar de
toda a precarização, ausência de equipamentos de última geração,

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ausência do poder público em investimentos, entre outras coisas.


Mesmo assim a favela consegue se destacar e chamar atenção do
Brasil […]. Aqui, estou fazendo referência ao hit do verão 2018
“envolvimento”, da Mc Loma e as gêmeas lacração, que foi gravado
de forma bem caseira (Cauã, Recife, dezembro de 2018).

Tal disputa política também acontece no âmbito do circuito


comercial de bares, boates e festas voltado ao público LGBT de Recife23.
Como relatam os interlocutores, nos últimos anos, o brega tem disputado
espaço em “festas alternativas”, principalmente naquelas que ocorrem no
Catamaran, a exemplo da festa Brega Naite. Tais festas investem agora em
bandas e cantores de referência do brega pernambucano e em deejays que
remixam estilos musicais mais diversificados, como os estilos bagaceira e
brasilidades, fugindo assim do tradicional house music, que é um estilo
musical muito presente nas festas voltadas ao público LGBT. Dessa forma,
essas festas atraem um novo público e as boates consideradas mais
“elitizadas”, como o Clube Metrópole, também começaram a dedicar
algumas de suas festas ao brega, como a festa “Bailão Brega”.
O meu argumento aqui é que a música brega em particular, e a
música em geral, não é produzida apenas para ser ouvida e dançada, mas
também para ser vista. Seguindo a discussão de Marilyn Strathern (2010)
sobre antropologia e arte, gostaria de sugerir que o que pode e o que não
pode ser visto tem, ao mesmo tempo, uma “forma estética” e um
“momento de revelação”. Esses dois lados da ação sugerem uma
“alternância entre o que se oculta e o que se revela”. Desse modo, o termo
estética pode ser usado, nos termos de Strathern, para referir-se à
“apreciação de uma forma adequada” (Idem, p.3), e não à evocação ou à
faculdade de apreciação da beleza. Nesse sentido, pode-se afirmar que a
música brega produz um sentido estético. No contexto da minha pesquisa,
o que os diferentes sujeitos reconhecem como uma forma adequada ou
não informa o que deve e o que não deve ser valorizado como música brega
“genuinamente pernambucana”. No cerne dessa disputa política está a
relação que se estabelece entre “práticas estéticas” e “práticas políticas”.
Ou, mais precisamente, a “partilha do sensível”, nos termos de Jacques
Rancière. Por “partilha do sensível”, Rancière denomina

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 262
o sistema de evidências sensíveis que revela, ao mesmo tempo,
a existência de um comum e dos recortes que nele definem
lugares e partes respectivas. Uma partilha do sensível fixa
portanto, ao mesmo tempo, um comum partilhado e partes
exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares se funda
numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que
determina propriamente a maneira como um comum se presta
à participação e como uns e outros tomam parte nessa partilha
(RANCIÈRE, 2009, p. 15).

Pensar a “partilha do sensível”, no sentido denominado por


Rancière, nos possibilita a começar a perceber que as posicionalidades dos
sujeitos estão relacionadas de modos complexos às formas de visibilidade
das maneiras de fazer arte, e, também, que as posições de sujeito
produzidas nesse espaço de disputas políticas são performadas dentro do
campo do visual. Assim, para Rancière a estética deve ser entendida “como
o sistema das formas a priori determinando o que se dá a sentir”. Essa
estética, que está na base da política, é, portanto, “um recorte dos tempos e
dos espaços, do visível e do invisível, da palavra e do ruído que define ao
mesmo tempo o lugar e o que está em jogo na política como forma de
experiência” (Idem, p. 16). Nesse sentido, acredito que há ganhos analíticos
em aproximar Strathern e Rancière. Em vez de evocar o debate sobre o belo
e o sublime que habitualmente caracteriza as intervenções sobre as artes,
esses autores deslocam o debate e pensam as articulações dos “regimes
estéticos das artes”.
É a partir dessa perspectiva que se pode colocar a questão do estado,
no sentido etnográfico, isto é, como artefato cultural construído
empiricamente. Isso implica adotar uma visão simétrica do que é o estado
e o que ele faz. Seguindo Akhil Gupta e Aradhana Sharma (2006), não
tomo o estado como um dado, para, assim, me afastar da “suposição de
que “o estado” é um objeto conceitual ou empírico a priori”24 (Idem, p. 8).
Tal perspectiva da formação do estado nos permite entender como o ele é
culturalmente construído. Incluir a cultura em tal perspectiva, como
argumentam os autores, não requer uma essencialização das práticas
culturais. Daí por que ao operar analiticamente com os termos “cultura”,

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“cultura local” e “bem cultural”, não estou aqui tomando a ideia de cultura
como dada. Estou antes fazendo os conceitos que encontro em campo
operarem analiticamente. Ou seja, estou fazendo os conceitos dos
interlocutores realizarem o trabalho analítico. Assim, na medida em que
leva a sério os interlocutores, a minha análise etnográfica foca a ideia de
cultura tal como é constituída pelos interlocutores. E é aí que a disputa
política em torno da música brega como “expressão cultural de Pernambuco”
nos leva a prestar atenção à constituição cultural do estado. Desde uma
perspectiva antropológica, isso implica prestar atenção em
como as pessoas percebem o est ado, como seus
entendimentos são moldados por seus locais particulares e
encontros íntimos e corporificados com processos e
funcionários do estado, e como o estado se manifesta em suas
vidas. A análise desses processos culturais através dos quais o
“estado” é instanciado e experimentado também nos permite
ver que a ilusão de coesão e unitariedade criada pelos estados é
sempre contestada e frágil, e é o resultado de processos
25
hegemônicos que não devem ser tomados como garantidos
(GUPTA; SHARMA, 2006, p. 11).

Seguindo ainda Didier Fassin (2015 [2013]), entendo que o estado


“[é] mais do que uma burocracia com regras e procedimentos”26, pois o que
os agentes do estado pensam e fazem também está baseado em valores e
afetos. Dessa maneira, podemos dizer que “[a] proximidade com os agentes
revela o lado mais quente do Estado”27 (Idem, p. x). Para me aproximar do
estado, em vez de presumir que ele é uma entidade distinta, fixa, unitária e
unificada, considerei também produtivo enfatizar a sua vida moral. Nesse
sentido, ao tomar a decisão de não incluir a música brega na sua
programação multicultural, o governo do estado de Pernambuco, por
meio da Fundarpe, revela as práticas cotidianas das agências estatais que
constituem o estado como instituição. Dessa maneira, pode-se argumentar
que o Estado “é o que seus agentes fazem sob as múltiplas influências das
políticas que implementam, os hábitos que desenvolvem, as iniciativas que
tomam e as respostas que recebem de seus públicos”28 (Idem, p.ix).

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 264
Bregalizando no carnaval de Recife

No começo de fevereiro de 2019, em meio à polêmica sobre a


construção da programação do carnaval da Prefeitura de Recife e a
possibilidade do brega e do brega-funk ficarem de fora, mais uma vez, dos
quatros palcos principais29, soube da festa Bailão Brega, que aconteceria no
Clube Metrópole. Nos stories de sua conta no Instagram, o Clube
Metrópole divulgava que, apesar de o governo deixar novamente de lado,
em sua programação de carnaval, os artistas bregueiros, na Metrópole, ao
contrário, tais artistas estavam incluídos na programação festiva da boate,
assim, sua programação contava com atrações locais que representavam o
brega e o brega-funk. Ao longo do meu trabalho de campo, vi que outras
festas frequentadas pelos interlocutores também valorizavam os artistas do
“movimento bregueiro”, a exemplo da festa do coletivo pernambucano
Golarrolê, que no carnaval de 2019 realizou quatro dias de festas, sendo
um deles dedicado ao Brega Naite de “carnavrau”. Na programação, as
cantoras Eduarda Alves e As Amigas do Brega, além do Mc Sheldon e os
deejays Allana Marques & Original DjCopy e VJ: Tropical Groove. No dia
do desfile do Galo da Madrugada, destacava-se o camarote do Bregalize,
que contava com Eduarda Alves, Michelle Melo, Amigas do Brega,
Shevchenko e Elloco, e deejays, Bregoso, Rodrigo Porto, Domênica Pinto e
Riana Uchôa. Se, por um lado, o Estado deixava o brega, mais uma vez, de
fora da programação do carnaval, por outro lado, as festas privadas
realizavam o movimento contrário e investiram na contratação de artistas
consagrados do “movimento bregueiro”. Dito isso, a seguir compartilho um
pequeno recorte etnográfico do movimento bregueiro que acompanhei
durante o carnaval de 2019 em Recife. Separo a minha descrição em três
momentos, a saber, prévia carnavalesca, abertura do carnaval e
encerramento do carnaval. A partir daí busco apresentar um relato da
minha experiência etnográfica produzida durante as festas privadas
frequentadas por alguns interlocutores desta pesquisa.

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“O carnaval já começou faz tempo”. Bailão Brega com Michele Melo no


Clube Metrópole

Era fevereiro, e, em Recife, segundo meu interlocutor, o carnaval já


havia começado fazia tempo. Logo após o final das festas de réveillon, a
cidade já respirava prévias carnavalescas. Era uma sexta-feira e eu
acompanhava Victor na festa Bailão Brega, no Clube Metrópole, que
naquela noite contava com o show da “Rainha do Brega”, a cantora
Michelle Melo e os deejays, Adrienny e Paulo Marreta. Chegamos ao local
por volta das 23h e o movimento já era grande na rua das Ninfas/avenida
Manuel Borba30.
A deejay Adrienny abriu a noite com um set31 que valorizava as
produções locais do brega e brega-funk e brasilidades. A comunicação da
pista com a deejay se dava com a movimentação dos corpos e, em algumas
músicas, durante o refrão, a deejay baixava o volume e a pista cantava o
refrão das músicas: “esse hit é chiclete, na tua mente vai ficar/Sento, sento,
sento, sento, sento e quico devagar”32, música da Mc Loma e das Gêmeas
Lacração. Durante a execução da música “o meu corpo tá mexendo
sozinho”33, alguém gritou “isso é muito Recifeeeeee!”, nesse momento a pista
já estava mais cheia e o público seguia os compassos da música. Chamava a
atenção de Victor a quantidade de mulheres e casais heterossexuais, e ele
destacou que havia uma diferença de público nos dias dedicados à festa
Bailão Brega. Ele também destacou que nas noites sem shows de brega
romântico a presença do público masculino era bem mais marcante.
Depois da meia-noite a pista foi enchendo e a banda já estava
arrumando os instrumentos no palco. Os músicos começaram a fazer a
passagem de som que se misturava à música remixada pela deejay, que
naquele momento remixava sucessos que eram acompanhados pelos
músicos que faziam a passagem de som e pelas pessoas que cantavam. A
exemplo da música “garota de programa”: “Deixei de ser garota de
programa/deixei de ser uma qualquer/pois eu /fiz com você loucuras na
cama/e o telefone peguei quem sabe um dia ligar”. Nesse momento
algumas pessoas já dançavam “agarradinhas na maior malicinha”, nas
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

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política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 266
palavras de Victor. As pessoas também já direcionavam sua atenção ao
palco à espera da cantora Michele Melo. Aqueles que estavam sozinhos
aproveitavam o ritmo envolvente da música para chamar o outro para
dançar. Em meio à multidão chamava minha atenção um casal que
dançava na maior animação: enquanto um dos parceiros segurava o
quadril do outro parceiro com uma de suas mãos, com a outra, ele segurava
o seu copo de bebida, que mais parecia uma extensão do seu corpo durante
a movimentação. O palco ficou um pouco mais claro e a banda começou a
tocar a música “B.O”, que era cantada pelo público que estava todo em
direção ao palco, aguardando a entrada da cantora Michele Melo: “Chega
de papo é tanta conversa fiada /É tanta lusa pensando que sou otária/Me faço de
boba só pra ver suas mancadas/Estais me traindo bem ao lado da minha casa
(...)”34. Nesse momento Victor gritou “é muita sofrência!”

Foto 01: Deejay Adrienny. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora, 2019.

Michele entrou de forma triunfante. Segundo Victor “a cantora era


uma mistura de rainha do brega com traços da diva Madonna35”, nessa “mistura se
destacava a performance sensual. Não à toa ela é conhecida como Madonna do
brega”. O público ia à loucura e cantava junto, filmava, tirava fotos e
dançava. Nas palavras de Victor, “me surpreendeu! Gostei muito da produção”.

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Para ele, o destaque da noite foi uma das dançarina que, em sua avaliação,
“foi tão destaque quanto a Michele Melo”.

Foto 02: Show da Michele Melo. Fonte: Arquivo


pessoal da pesquisadora, 2019.

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Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 268
Foto 03: Show da Michele Melo. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora, 2019.

“Nosso palco é MULTICULTURAL e livre de preconceitos”. Abertura do


Carnaval da Metro

Em meio às disputadas políticas entre poder público e a ausência da


contratação dos artistas bregueiros locais para o carnaval de 201936, o Clube
Metrópole ressaltava em sua divulgação que no carnaval da Metro teria
brega “porque vai ter brega no carnaval sim!”.
Desde a fila para entrar já era possível notar que a casa estava cheia.
A dinâmica na pista de dança se assemelhava à dinâmica da festa Bailão
Brega, porém, de forma muito mais intensa, as pessoas pareciam mais
agitadas e os ambientes tinham muito mais pessoas. Em alguns locais
tinha um aglomeração maior de pessoas, principalmente próximo ao
palco e na parte superior (de onde se tinha uma visão privilegiada do palco
e da pista de dança). Acompanhava João e seus amigos e em alguns
momentos pensamos em desistir de acompanhar o show de tão perto do
palco, pois a sensação de falta de ar nós incomodava. Era por volta de 1h
da manhã quando começou o show das Amigas do Brega. Não
conseguimos um bom lugar para acompanhar o show e com muito esforço

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conseguíamos enxergar o palco. Para dançar era necessária uma


combinação de sintonia com o parceiro de dança e com as pessoas que por
ali circulavam. Para alguns a aproximação corporal com um desconhecido
era utilizada como tática na paquera, já para outros era algo desagradável,
“os corpos estão suados e não aguento”.

Fotos 04 e 05: Pista. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora, 2019.

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política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 270
A pista se transformava de acordo com as atrações. Nas
apresentações dos deejays a pista tinha uma iluminação mais diversificada e
mantinha um ambiente mais escuro, e as pessoas se distribuíam melhor
pelo espaço; já nas apresentações das bandas a iluminação se concentrava
no palco e as pessoas disputavam um espaço mais próximo ao palco.
Quando o fim das apresentações se aproximava uma fila começava a
se formar à porta do camarim e as pessoas aguardavam alguns minutos
para tirar foto com suas artistas preferidas. Alguns fãs de Eduarda
conseguiram que ela tirasse fotos com seus celulares enquanto cantava, já
as Amigas do Brega faziam sinal para os fãs de que elas só tirariam fotos
após o show acabar.
Entre a apresentação das Amigas do Brega e Eduarda Sedutora a
pista dava uma esvaziada e as pessoas circulavam por outros espaços, seja
para ir ao banheiro, comprar bebida, tomar um ar fresco, fumar um cigarro
ou ir para os outros espaços da boate. Aproveitamos essa dinâmica para
encontrar um local mais ventilado e mais próximo ao palco.

Fotos 06 e 07: Show das Amigas do Brega. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora,
2019.

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Fotos 08 e 09: Show da Eduarda Sedutora. Fonte: Arquivo pessoal da pesquisadora,


2019.

Durante o show da Eduarda Sedutora chamou minha atenção o


momento em que seu produtor fazia distribuição de um cd promocional.
Ao final do show fui ao camarim e ganhei um cd que contava com faixas de
outros artistas bregueiros produzidos pela Jozart Produções.

“Pra encerrar o Carnavrau com chave de ouro!”. Brega Naite Carnavrau

Era terça-feira de carnaval e para muitos era o último dia de folia


carnavalesca. A festa Brega Naite estava prevista para começar às 20h, mas
chegamos por volta das 21h30min. Na ocasião estava acompanhando
Victor e seus amigos. No percurso até o catamaran o trânsito estava com
um pequeno engarrafamento e o motorista do aplicativo, que nos levava de

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 272
carro, comentava que isso acontecia devido às festas naquela região, que
ficavam próximas ao recife antigo. As programações gratuitas contavam
com artísticas como Gaby Amarantos, Alceu Valença, Elba Ramalho e
Maestro Spok que se apresentaram no palco do Marco Zero no Recife
Antigo. Na festa Rec-Beat, entre as várias atrações estava prevista uma
apresentação especial do projeto da Terça do Vinil37.
Na festa Brega Naite, o ingresso social custava aproximadamente
R$60, R$50 estudante e R$ 120 open bar. Permanecemos na pista normal
e segundo Victor era nítido que “os boys bonitos estavam todos na parte open
bar”. O ambiente era super ventilado, além disso, tinha uma vista linda
para o rio Capibaribe. Na parte reservada para a alimentação tinha um
karaokê e uma área para descansar. No início do Show das Amigas do
Brega uma das cantoras parou de cantar e perguntou se as pessoas a
escutavam, pois o som estava com eco e atrapalhava a apresentação. Para
Victor era impossível ficar próximo ao palco, pois o som estava muito alto.
Preferimos ficar na metade e no fundo do ambiente, espaços mais
ventilados e que permitiam uma maior interação.

Foto 10: Apresentação dos deejays - Brega Naite. Fonte: Arquivo pessoal da
pesquisadora, 2019.

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A combinação entre música envolvente, bebidas, iluminação e


possíveis parceiros afetivos era mobilizada nas interações. Chamava
atenção de Victor um “gringo que tentava dançar brega” e, como mesmo
“duro”, o seu corpo respondia aos estímulos sensoriais.
Momento antes do início do show do Mc Sheldon três dançarinos
do “passinho do maloka” faziam uma apresentação no palco. Na pista
algumas pessoas faziam os movimentos característicos da dança que é
destaque do brega-funk. Para alguns o show do Mc Sheldon era mais
“agitado” e eram poucas as músicas que podiam ser dançadas em par,
preferindo o brega mais “bregoso” para dançar junto. Nesse sentido, as
músicas da Banda Amigas do Brega e Eduarda eram mais propícias para
esse tipo de dança.
Era por volta de 2h da madrugada quando Victor mencionou que
estava cansado e queria ir embora, já que trabalhava cedo no outro dia. O
interesse de todos era ficar até o show de Eduarda, porém era nítido o
cansaço de Victor que naquele dia já tinha ido pular o carnaval nas
ladeiras de Olinda.
Chamamos um carro pelo aplicativo e ao entrar no carro e
comentar sobre a programação da festa, o motorista comentou que era
amigo da cantora Eduarda e que trabalhava como produtor musical.
Aproveitei a oportunidade e falei a ele um pouco sobre a minha pesquisa.
Iniciamos uma conversa muito rica sobre o “negócio do brega em
Pernambuco”. M. comentava que “o negócio do brega” era uma área de
grande ascensão e que alguns cantores chegavam a fazer cinco shows em
uma única noite. Para ele, o brega começou a chamar atenção da mídia
pelo baixo valor investido e pelo alto rendimento e por sua capacidade de
circulação nacional e internacional, proporcionada pela ampliação do
acesso à internet e das redes sociais.

A gente investe pouco e ganha muito. [...]. É isso, aqui é brega. É


brega por onde você passa, é brega quando você acorda, é brega
quando você dorme. Aqui é tudo brega
O negócio da turma é só o brega, qualquer canto que for: brega.
Pronto, o prefeito nunca tinha botado um palco de brega e esse ano
colocou [se referindo à abertura do carnaval de Recife no polo

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 274
principal no Marco Zero] (M., Recife, março de 2019)

Modos de subjetivação, música e dança

Como se vê, a experiência de ser “sujeito dançante” de uma “música


periférica” implica modos de subjetivação profundamente marcados por
relações de poder e disputas políticas. Neste sentido, recuperando as
noções de subjetividade de Michel Foucault, Gilles Deleuze e Félix
Guattari, André Lepecki (2006) ressalta que não se deve confundir
“subjetividade” com a noção de sujeito fixo, pois uma reapropriação de tal
noção de “sujeito” resultaria na “reificação da subjetividade na figura
jurídica da pessoa”38 (Idem, p.8). O uso de Lepecki de “subjetividade”
indexa, ainda, modos de agência. Tal indexação, no entanto, não implica
uma recusa do efeito hegemônico dos mecanismos de sujeição e
dominação na constituição das subjetividades. Para complementar seu
argumento, Lepecki também recupera as noções de interpelação de Louis
Althusser e Judith Butler.
Neste artigo, aproprio-me da noção de cena de interpelação de
Butler, tal como colocada incialmente por Althusser (1996), para explorar
como o sujeito é produzido pela linguagem. A interpelação, na leitura de
Butler, refere-se à produção discursiva do sujeito social. No momento da
interpelação um tipo de reconhecimento é oferecido e aceito. Ser
interpelado é, portanto, uma das condições pelas quais um sujeito se
constitui na linguagem, e assim também se oferece ao sujeito a
possibilidade de existência social. Ademais, ao assinalar o duplo aspecto
da sujeição, qual seja, que a ação de um sujeito pressuporia sua própria
“subordinação”, Butler diz que a ““sujeição” significa tanto o processo de
se tornar subordinado pelo poder quanto o processo de se tornar um
sujeito” (BUTLER, 2017, p. 10). Para Butler, por fim, o apego apaixonado
à sujeição é gerado pelo poder, o que por sua vez conduz o sujeito a se
voltar sobre si mesmo.
Como Lepecki, também uso “subjetividade” de Foucault (2010)
para discutir como os interlocutores são interpelados e produzidos pela

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experiência de serem sujeitos dançantes de uma “música periférica”. Ao


contrário de Lepecki, porém, meu uso de “subjetividade” — ou “modos de
subjetivação” — não implica uma recusa ou negação da noção de “sujeito”.
Pois, como Butler (2017), e o próprio Lepecki, não uso a noção de “sujeito”
de maneira intercambiável com a noção de “pessoa” e a noção de
“indivíduo”. Dessa maneira, não estou aqui presumindo de antemão um
sujeito para a ação política.
Neste sentido, ao discutir a relação entre dança e teoria, e política e
dança, Lepecki (2012) argumenta que a política seria uma característica
essencial da arte. Lepecki recupera as noções de arte e política de autores
como Jacques Rancière e Giorgio Agamben. Como já mencionei
anteriormente, Rancière aponta o “regime estético das artes”, situando a
arte em um debate para além do belo ou do sublime, e colocando, assim, a
arte em uma discussão mais ampla sobre “a partilha e a distribuição do
sensível”. Agamben, por sua vez, aponta para a “abertura de potências”
que o binômio arte-política implicaria. Para formular tais noções,
Rancière e Agamben recuperam a noção de política de Hanna Arendt,
para quem a política pertenceria à arte. Em diálogo com esses autores,
Lepecki discute a relação entre a dança e a sua política.
Ao situar a dança no interior da política, o autor também dialoga
com alguns estudiosos do campo da dança, como, por exemplo, Mark
Franko, Randy Martin, Susan Manning e Bojana Kunst, entre outros.
Neste sentido, Lepecki argumenta que a dança deveria ser entendida tanto
como teoria social da ação, quanto como teoria social em ação. A dança
também deveria ser encarada como uma “epistemologia ativa da política
em contexto” (LEPECKI, 2012, p. 46), já que a relação dança-política não
seria uma relação metafórica, mas, sim, materialista. A coreografia
implicaria, portanto, uma antimetaforicidade, que requer um modelo
analítico atento a um empirismo particular. Tal antimetaforicidade
expande o campo coreográfico, pois sugere que a dança seja entendida
como coreopolítica, ou seja, “uma atividade particular e imanente de ação
cujo principal objeto é a política do chão” (Idem, p. 47). Mais
precisamente, Lepecki se interessa pela coreopolítica do concreto urbano.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 276
Assim, para Lepecki (2012, p. 55), “toda coreopolítica requer uma
distribuição e reinvenção de corpo, de afetos, de sentidos. É que toda
coreopolítica revela o entrelaçamento profundo entre movimento, corpo
e lugar”.
É especificamente a relação entre “entre danças e seus lugares; e
entre lugares e suas danças”, sugerida por Lepecki (2012, p. 47), que me
interessa aqui. Neste sentido, ao refletir sobre a relação entre a música
brega e os bares e a boates “LGBT”, assim como as “festas alternativas”, de
Recife, meu interlocutor diz que:

Começa a ser um ato político a partir do momento em que aquela


música sai daquele gueto, que é a fase inicial onde ela é concebida e
ela se expande. Começa a ser político por isso, porque geralmente esses
ritmos marginais são uma forma da favela dizer 'estamos aqui e
somos maioria e não consumimos o que vocês eruditos dizem ser
correto, a tal ponto de vocês estarem consumindo o que é da gente'.
Então, a visão política já começa daí, [...] a partir do momento em
que você se reconhece e se posiciona (Victor, Recife, janeiro de
2018)

Aqui, portanto, também gostaria de chamar a atenção para a


dimensão política da performatização corporal da “infregatividade” nesses
lugares. Heitor,39 nesse sentido, diz que:
não sei explicar exatamente como acontece. Há vários fatores
envolvidos além da música: [...] o boy precisa ser cheiroso.
Geralmente uma luz baixa, um jogo de luz acaba fazendo aquele
clima ser propício para a paquera. A música precisa ser envolvente.
[...]. Mas também depende da sintonia com o boy. Acho que é algo de
momento e por isso não tem uma fórmula. Como eu sou um pouco
tímido, a bebida também ajuda a chegar no boy (Heitor, Recife,
dezembro de 2018).

Uma das vezes que acompanhei Heitor à Festa Brega Naite, ele
estava “paquerando” um “boy” que estava a alguns metros de distância do
nosso grupinho. Após alguns minutos trocando olhares com um rapaz, ele
resolveu “chegar no boy” e chamá-lo para dançar. Depois, porém, de dançar
a primeira música, ele “largou o boy” e voltou para o grupo. Ao ser

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questionado sobre o motivo de ele não ter continuado a dançar,


respondeu que “não rolou sintonia”. “O boy era duro pra dançar e nem era tão
bonito assim”. A composição estética do “boy” também é relevante para se
“chegar junto”. Apesar de a “fama” de gostar de “cafuçu”40, Heitor me
confidenciou que havia diferença entre um cafuçu que vai ao Brega Naite e
um que frequenta a Boate MKB41. A diferença entre os espaços estaria
relacionada às diferenças de classe: na Boate MKB, o ingresso custa de
R$15 a R$20. Por isso, esta boate seria considerada “mais democrática”, e o
público de lá “mais popular”, pois “geralmente são pessoas da periferia”. Já no
Brega Naite, o ingresso custa de R$ 45 a R$ 60 e o open bar de R$ 120 a
R$160, e o público seria considerado “mais descolado e cult”.
Em meio a nossa conversa, recordei-me de uma das vezes em que fui
ao Brega Naite e, como de costume, umas das atrações era da “periferia”,
porém observei que algumas pessoas aparentavam um certo incômodo
com o público que ali estava, considerado por alguns como mais “galeroso”
ou “escamoso”42. Na ocasião, acompanhava Cauã e alguns colegas seus, que
relataram que “ultimamente a festa não estava mais tão seletiva assim”.
Questionei se não seria contraditório ir a uma festa onde a música vem da
“periferia” e ficar incomodado com o público da “periferia” que a
frequentava. Um dos interlocutores me explica que, no momento da
“paquera”, ao “selecionar” o parceiro de dança, esses homens, em sua grande
maioria, elencam critérios nos quais prevalece a estética corporal: “se é
bonito, se tem o corpo bacana, se tem um bom sorriso branco, se tem um cabelo bem
cuidado, se é cheiroso” .
Ainda a esse respeito, Felipe43 diz que:
do mesmo jeito que cada música tem uma linha musical e tem um
público pra alcançar, esses bregas bregosos, que são os bregas
românticos que eu falo… que têm essa coisa de você se atrair, ficar
com um cara dançando… é aquela dança mais envolvente... aquele
brega que é basicamente um entrando no outro, aquele roça e não
roça, aquela infregação… então, é basicamente isso. Como uma
linha da música é sempre uma traição que a pessoa sofreu, que você se
dedicou por um amor que não deu certo… e tu sabe que todo mundo
passa por isso, querendo ou não em alguma fase da vida vai passar
por isso. Então, aquele público que vai pra uma Metrópole sabe que

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 278
são aquelas músicas mesmo que vão tocar e que gosta dessa sensação
do brega que é poder dançar, se infregarem um no outro e tem a
questão que você sempre lembra do seu ex. Então, você vai lá dançar...
Essas músicas são sempre nessa linha de raciocínio. Aí a pessoa se
envolve, termina se envolvendo, porque vai contando uma história.
Tem aquele ritmo mais melancólico, eu não sei se eu posso dizer
melancólico, mas aquele ritmo que fica atrativo, que você deita no
ombro da pessoa, que vai aquele rala e não rala… Então, tu deixa se
levar mais pela situação e termina se entregando mais na dança.
Assim é muito bom dançar brega.

Logo em seguida, ele ressalta:


Claro que você não vai dançar com qualquer pessoa, eu falo por mim.
Um brega é uma música que é atraente para os dois. Então, é
basicamente você paquerar uma pessoa, você ver se aquela pessoa se
identifica com você… se vai querer ficar com você. E você começa
dançando com aquela pessoa. Tem a ver basicamente com a música
em si, o jeito de dançar, o toque e tal. Daí você termina ficando
(risos)... Então, tem sim uma seleção, você não fica com qualquer
pessoa. Eu particularmente não ficaria se fosse com uma pessoa que
não me atraísse fisicamente, ou de alguns aspectos de pessoas que eu
não gosto...então, se ele tivesse o jeito que eu gosto e tocasse uma
música dessa e rolasse aquela química e tal e me chamasse pra
dançar, então ia rolar. Agora se fosse diferente, eu já digo que não,
porque eu não iria sentir atração em dançar com aquela pessoa que
não me atrai fisicamente (Felipe, Recife, janeiro de 2019; grifos
meus).

Nesta pesquisa, o “sujeito dançante” de uma “música periférica” é,


portanto, subjetivado e interpelado por vários marcadores sociais da
diferença, e a performatização corporal da dança acontece num espaço de
disputas políticas. E os corpos dos interlocutores são lugares de constante
produção de modos de subjetivação. Ao performatizar a dança, eles
colocam o corpo em movimento, porém não no sentido de um
movimento ininterrupto. Na dança eles agem sobre seus próprios corpos,
mas também afetam os corpos dos parceiros e são afetados por esses
corpos. Entre esses corpos circulam “modos de agência” que revelam os
efeitos da sujeição na constituição dos sujeitos.
A dança produz seu processo de subjetivação e os sujeitos
submetem seus corpos e desejos às normatividades dos marcadores sociais

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da diferença. No entanto, entre uma pausa para ir ao banheiro, retomar o


fôlego ou comprar uma bebida, o sujeito pode reavaliar a posição que
ocupara no instante da dança e não retomar mais a dança com o mesmo
parceiro, seja porque “não rolou sintonia” , “o boy era duro pra dançar” ou,
porque, ele “nem era tão bonito assim”, ou, ainda, porque “estava exausto de
tanto dançar” .
Esta reavaliação da posição na dança também pode acontecer no
mesmo instante em que se dança, conduzindo o sujeito a “largar o boy” e
interromper a dança. Muitas vezes o sujeito interrompe a dança por
considerar que a música era “muito bregosa”, excitando-o demais. Ao
sublinhar essa erotização dos corpos experimentada através da excitação
que a música eletrônica bagaceira produz, vale lembrar o que Georges
Bataille (1987, p. 55) diz a respeito do erotismo:

O erotismo é a meus olhos o desequilíbrio em que o próprio


ser se coloca em questão, conscientemente. Em certo sentido,
o ser se perde objetivamente, mas então o sujeito se identifica
com o objeto que se perde. Se for preciso, posso dizer, no
erotismo: EU me perco.

Essa interrupção da dança devido à excitação acontece entre os


interlocutores quando seus parceiros explicitam que já são
comprometidos e que estão ali apenas como parceiros de dança, e não
como potenciais parceiros sexuais.

Considerações

Ao longo do trabalho de campo que realizo na cidade de Recife, a


infregatividade apareceu inicialmente como uma performatização
corporificada da dança, que é produzida pela sonoridade da música
eletrônica dançante bagaceira. Baseando-me no trabalho de campo, comecei
a pensar, nos últimos anos, nos modos de conexões entre o
material/econômico e o cultural/performativo que a infregatividade revela.
A partir daí neste artigo procurei apresentar uma descrição mais ampla da

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 280
infregatividade, uma que enfocasse tanto o seu sentido performativo como
o produtivo. Para pensar o que estou chamando aqui de economia
performativa da infregatividade, fiz uso da noção de performatividade, de
Judith Butler (1993; 2018), e da noção de materialismo performativo, de
Margot Weiss (2011). Dessa maneira, sugeri que, como uma prática
performativa, a infregatividade não é desprovida de materialidade. Pensar a
infregatividade como uma performatividade material exigiu, por
conseguinte, prestar atenção nas relações entre o socioeconômico e o
culturalmente performativo. Ao fazê-lo, enfatizei as performatividades
subjetivas. Isso me levou a considerar as relações entre corpos,
subjetividades e política entre homens com práticas (homo)sexuais em
Recife.
Como argumentei, no contexto da minha pesquisa a música brega
não é produzida apenas para ser ouvida e dançada, mas também para ser
vista (STRATHERN, 2010). Daí por que enfatizei as posições de sujeito
que são produzidas no espaço de disputas políticas em torno de tal música,
as quais são performadas dentro do campo do visual, pois as
posicionalidades dos sujeitos estão relacionadas de modos complexos às
formas de visibilidade das maneiras de fazer arte. Esta “partilha do
sensível” (RANCIÈRE, 2009) envolve relações entre “práticas estéticas” e
“práticas políticas”. Dessa maneira, por um lado, fez-se necessário adotar
uma visão simétrica do que é o estado e o que ele faz (FASSIN, 2015
[2013]). Isso implicou prestar atenção à constituição cultural do estado
(GUPTA; SHARMA, 2006), o que, no entanto, não significou uma
essencialização das práticas culturais. Em vez disso, operei analiticamente
com a ideia de cultura tal como é constituída pelos interlocutores. Por
outro, enfatizei as relações de poder e as disputas políticas que interpelam
e produzem a experiência de ser “sujeito dançante” de uma “música
periférica”. Nesse sentido, os modos de subjetivação dos interlocutores
são profundamente marcados por mecanismos de sujeição e dominação,
mas também por modos de agência (ALTHUSSER, 1996; BUTLER,
1997, 2017; LEPECKI, 2006, (2011) 2012; FOUCAULT, 1979, 1988;
MALUF, 2015).

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Notas

1. Uma versão inicial deste artigo foi originalmente escrita como trabalho de
conclusão da disciplina “Pessoa e Corporalidade”, ministrada pelas Profas.
Dras. Viviane Vedana e Vânia Zikan Cardoso. Na versão que ora apresento,
também acrescentei as discussões realizadas durante a disciplina “Seminários
Avançados II” (“Antropologia do sujeito”), ministrada pela Profa. Dra. Sônia
Weider Maluf. As duas disciplinas foram cursadas no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina em 2018. Agradeço às referidas professoras os diálogos que
estabelecemos em sala de aula.
Posteriormente, uma versão reduzida deste artigo foi apresentada na mesa
temática “Antropologia da Dança e Etnomusicologia: trânsitos teóricos”
durante o I Colóquio Latino Americano de Antropologia da Dança. Uma
segunda versão reduzida, por sua vez, foi apresentada no grupo de trabalho
“Entre arte e política: articulações contemporâneas em pesquisas
antropológicas” durante a XIII Reunião de Antropologia do Mercosul.
Agradeço também à Jainara Oliveira a leitura atenta e as provocações que
foram fundamentais para construção deste trabalho. Agradeço ainda às/aos
pareceristas anônimas/os da Revista Visagem. Cabe ressaltar, no entanto, que
as análises aqui expostas são de minha inteira responsabilidade.
2. O presente trabalho apresenta resultados iniciais da minha pesquisa de
doutorado em Antropologia Social desenvolvida no âmbito do Programa de
Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa
Catarina, com financiamento da CAPES (bolsa de doutorado) e orientação da
Profa. Dra. Sônia Maluf e coorientação da Profa. Dra. María Eugenia
Domínguez.
3. O termo infregatividade é mais usado pelos interlocutores e pela festa Brega
Naite, já o termo ixxfregação é mais usado para divulgação das festas do Bar do
Céu (antigo Santo Bar). Os dois termos possuem o mesmo sentido. Importa
apontar aqui que a categoria é mobilizada, em campo, muito além do ato de se
“infregar” no parceiro no momento da dança, pois envolve também
moralidades, sensibilidades e disputas políticas.
4. No meu trabalho de campo, a categoria “bagaceira” diz respeito a um estilo
musical. Devido à polissemia desta categoria, devo esclarecer que, diferente de
outros pesquisadores, não discuto a categoria “bagaceira” como um “apelido
pejorativo” atribuído às boates e aos bares, ou, a uma identidade sexual, ou,
ainda, à “oscilação” entre um estilo musical de “mau gosto” e um “mais
refinado”, mas, sim, como uma categoria que nomeia um estilo de música
eletrônica dançante “mais erotizada”.
5. No original: “not as a singular or deliberate “act,” but, rather, as the reiterative
and citational practice by which discourse produces the effects that it names”.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 282
6. No original: “draws attention to relationships between the socioeconomic and
the culturally performative, linking historical social transformations to local
and subjective performances”.
7. Os interlocutores desta pesquisa têm entre 22 e 46 anos e residem na cidade de
Recife, PE. A fim de preservar a identidade dos interlocutores, optei por
utilizar nomes fictícios. Neste trabalho, farei apenas uma breve apresentação
de cada interlocutor. Para este fim, utilizarei as notas de rodapé.
8. No original: “the body not as a self-contained and closed entity but as an open
and dynamic system of exchange, constantly producing modes of subjection
and control, as well as of resistance and becomings”.
9. Neste texto, não pretendo discutir o “valor estético” da “infregatividade”, pois,
assim como Lepecki (2006), mantenho aberta a questão ontológica da dança.
10. Destaco aqui dois tipos de danças provenientes do “movimento bregueiro”. A
“infregatividade” bem mais marcante no brega romântico, o “brega bregoso”,
tendo como característica a dança em parceria; e o “passinho do maloka”, bem
mais marcante no brega-funk e caracterizado pela dança de forma individual e
coreografada. Em campo, durante o show da cantora Michele Melo, pude
notar que os seus dançarinos, ao dançar o que seria a “infregatividade”,
incorporavam elementos presentes no “passinho do maloka”. Nesse sentido, as
fronteiras entre a “infregatividade” e o “passinho do maloka” são muito mais
flexíveis e por isso acredito que explorar a ideia de “movimento bregueiro” seja
rentável etnograficamente.
11. Ver, Santana (2017a).
12. D i s p o n í v e l e m : <
h p://www.diariodepernambuco.com.br/app/no cia/viver/2016/12/28/internas_viver,
681965/meio-ar s co-co menta-proibicao-de-generos-musicais-no-carnaval-de-pe.shtml
>. acesso em janeiro de 2019.
13. D i s p o n í v e l e m : <
h p://www.diariodepernambuco.com.br/app/no cia/viver/2016/12/28/internas_viver,
681965/meio-ar s co-comenta-proibicao-de-generos-musicais-no-carnaval-de-pe.shtml
>. acesso em janeiro de 2019.
14. D i s p o n í v e l e m : <
h p://legis.alepe.pe.gov.br/arquivoTexto.aspx? ponorma=1&numero=16044&complem
ento=0&ano=2017& p o= >. Acesso em janeiro de 2019.
15. Disponível em: < h p://www.alepe.pe.gov.br/2017/08/18/brega-e-reconhecido-como
expressao-cultural pernambucana/ >. Acesso em janeiro de 2019.
16. Reportagem disponível em: < h ps://www.youtube.com/watch?v=BCPpH3o-rhM >.
Acesso em janeiro de 2018.
17. Documentário disponível em: < h ps://www.youtube.com/watch?v=yTtSkJCjk9w >.
Acesso em janeiro de 2018.
18. Nesta pesquisa, o “movimento bregueiro” pode ser descrito de duas formas: a
primeira se refere ao movimento do brega enquanto uma cadeia produtiva e
econômica; a segunda, utiliza a ideia de “movimento no brega-funk” ou
“movimento brega” para se referir a um ritmo em constante transformação e

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reinvenção.
19. Em conversa com um produtor musical local, foi enfatizado que após a
popularização da internet e das redes sociais, a carrocinha foi perdendo espaço
e que atualmente a divulgação é praticamente proveniente das redes socais
(Youtube, Instagram, Facebook).
20. Pernambucano, 32 anos, administrador, autodenomina-se “bicha e preta”.
21. Coletivo Pernambuco Golarrolê é um importante nome no cenário de festas
da capital Pernambucana. Em julho de 2019 o coletivo completou treze anos de
trajetória, promovendo festas bastantes apreciadas pelos meus interlocutores,
como as festas Brega Naite, Odara Ôdesce, Maledita, Neon Rocks, Refresh,
Prainha e Putz54. A festa Brega Naite é uma festa interessante para analisar as
diferentes interações promovidas pela musicalidade mais regional da música
eletrônica dançante. Esta festa conta com apresentações de bandas e Mc(s) de
brega e brega funk, além de deejays que investem nos estilos pernambucolismo,
brasilidades e bagaceira. Ver, Santana (2017a).
22. Pernambucano, 30 anos, universitário, autodenomina-se “gay”.
23. As relações entre as boates recifenses inseridas em um “mercado GLS” e a
música eletrônica bagaceira apareceram, inicialmente, em minha pesquisa de
mestrado em antropologia social (SANTANA, 2017a, 2017b) a partir da
inserção dos estilos musicais brega e brega-funk na programação semanal das
festas inseridas neste “mercado GLS”. Nesse sentido, as boates, os bares e as
festas inseridas em um circuito comercial de bares, boates e festas voltado ao
público LGBT é de extrema relevância para circulação do brega e brega-funk
“para além da periferia”. Assim, verifica-se que esse movimento de expansão do
brega e do brega-funk “para além da periferia” também é responsável pelas
transformações pelas quais passaram esses estilos musicais em suas formas de
produção e de circulação, cujo foco anterior era o público heterossexual; mas
nos últimos anos passou a ser também o público LGBT(s).
Em maio em 2019 foi lançado o projeto “Bichas do Brega” no Clube
Metrópole, inspiradas nas Amigas do Brega, o projeto busca fazer paródias com
a temática da diversidade sexual com sucessos do brega. Clipe de Abertura
disponível em: < h ps://www.youtube.com/watch?v=4ufNL29h9Os >. Acesso em
junho de 2019; e clipe da paródia “libera o anel (paródia em plena lua de mel):
< h ps://www.youtube.com/watch?v=4XQxQJB7Ey0 >. Acesso em junho de 2019.
24. No original: “assumption that ''the state'' is an a priori conceptual or empirical
object”.
25. No original: “how people perceive the state, how their understandings are
shaped by their particular locations and intimate and embodied encounters
with state processes and officials, and how the state manifests itself in their
lives.Analyzing these cultural processes through which ''the state'' is
instantiated and experienced also enables us to see that the illusion of
cohesion and unitariness created by states is always contested and fragile, and
is the result of hegemonic processes that should not be taken for granted”.
26. No original: “It is more than a bureaucracy with rules and procedures”.
27. No original: “The proximity with the agents reveals the warmer side of the

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Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 284
state”.
28. No original: “is what its agents do under the multiple influences of the policies
they implement, the habits they develop, the initiatives they take, and the
responses they get from their publics”.
29. Na ocasião um jornal local mencionava que “das 77 atrações já anunciadas
para os quatro principais polos do Bairro do Recife e Pátio de São Pedro,
nenhuma faz parte do brega pernambucano - Praticamente todos os nomes das
várias vertentes do universo brega pernambucano estão fora dos palcos do
Bairro do Recife e terão que torcer para serem incluídos nos outros 40 polos
descentralizados, cuja programação ainda será divulgada (...) Por enquanto, a
participação de quatro cantores da cena brega local está confirmada para
acontecer apenas em um trecho do show de abertura da festa, no dia 1º de
m a r ç o , n o M a r c o Z e r o ” . D i s p o n í v e l e m :
<h ps://www.op9.com.br/pe/pop9/brega-e-barrado-dos-principais-palcos-do-
carnaval-do-recife/>. Acesso em junho de 2019.
30. A rua é famosa pela concentração de bares e boates voltados ao público
LGBT's, sendo o grupo Metrópole responsável por três estabelecimentos: o
Bar do Céu (antigo Santo Bar), o Miami Pub e o Clube Metrópole. Também
existe o Conchittas Bar e o Place Bar, além dos vendedores ambulantes de
comidas e bebidas. Para os frequentadores, o local serve como “esquenta” ou
como a própria festa, ocupando assim o espaço público. Ver Santana (2017a).
31. Sequência de músicas remixadas em uma apresentação.
32. Vídeo disponível em:< h ps://www.youtube.com/watch?v=pOpyq-T4fnQ >. Acesso
em junho de 2019.
33. Vídeo disponível em:< h ps://www.youtube.com/watch?v=aH8Cc6O8zec >. Acesso
em junho de 2019.
34. M ú s i c a d i s p o n í v e l e m :
<h ps://www.youtube.com/watch? me_con nue=137&v=PvUPn7dY01w>. Acesso
em junho de 2019.
35. No Brega Naite de setembro de 2019 a cantora lançou sua turnê “MMDNA
TOUR”, em que homenageia a cantora Madonna.
36. Victor chamava atenção para o fato da cantora Gaby Amarantos se apresentar
de forma consecutiva em vários carnavais em Recife e sempre no palco do
Marco Zero, considerado o palco principal. Para ele esse detalhe não visa
desvalorizar a importância da cantora, mas sim tensionar os motivos da
prefeitura contratar a cantora e não um artista local para o palco principal.
37. Trata-se de um projeto musical criado pelo deejay 440 para ocupar as ruas da
cidade com “música brasileira imperecível e de rua”, ocorre todas às terças-
feiras. Ver Santana (2017a).
38. No original: “reification of subjectivity in the legal figure of the person”.
39. Pernambucano, 38 anos, contador, autodenomina-se “homossexual e
branco”.
40. Categoria êmica para “aquele gay que é meio pedreiro, meio baixa renda” (Marcelo,
Recife, outubro de 2016).
41. A Boate MKB é um espaço estigmatizado por ser frequentado por um público

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mais popular, esse espaço é moralmente desvalorizado por ser considerado por
alguns interlocutores como um “local que cheira a sexo”, “cheio de garotos de
programas”, “povo feio e que se veste muito mal”, inclusive por alguns dos meus
interlocutores. A boate fechou para reforma em 2018 e desde então permanece
fechada. Ver Albino (2018).
42. Categoria êmica para jovens “com pinta de maloqueiro” ou um jovem “que é da
galera”.
43. Pernambucano, 23 anos, estudante, autodenomina-se “gay e pardo”.

Referências

ALBINO, Chiara. Música eletrônica bagaceira e os sentidos político-


dançantes da infregatividade em Recife. Sociabilidades urbanas – Revista
de Antropologia e Sociologia, v.3, n.8, ,2019a, p. 97-108.

ALBINO, Chiara. Música eletrônica bagaceira, homossexualidades


masculinas e modos de subjetivação em Recife-PE. Projeto de Tese.
PPGAS/UFSC, 2019b.

ALTHUSSER, L. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (Notas


para uma investigação). Slavoj Zizek (org). Um mapa da ideologia. Rio de
Janeiro: Contraponto, 1996.

BATAILLE, Georges. O Erotismo. Porto Alegre: L&PM, 1987.

BUTLER, Judith. Bodies that matter: On the discursive limits of “sex”.


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Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 286
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287 Chiara Albino


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 253-289
ISSN: 2446-8290

MOL, Annemarie. The body multiple: ontology in medical practice.


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STRATHERN, Marilyn. Porcos e celulares: uma conversa com Marilyn


Strathern sobre antropologia e arte. (Entrevista concedida à Alessandra
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Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Economia performativa da infregatividade: Estado, subjetividades,


política e corpos em movimento no contexto da música eletrônica bagaceira 288
WEISS, Margot. Techniques of Pleasure. BDSM and the circuits of
sexuality. Durham; London, Duke University Press, 2011.

289 Chiara Albino


v. 05 | n. 01 | 2019
ISSN: 2446-8290

Seção Ensaios Fotográficos

Anaiza Vergolino e Silva

Anaíza Vergolino e Silva é uma daquelas pessoas que nos faz sentir orgulho em conhecer,
em ser amigo. Sua importância e sapiência só não são maiores que sua polidez e caráter.
Historiadora e antropóloga. Ela é responsável pela formação do alicerce e pela
consolidação da antropologia na Universidade Federal do Pará, ao lado de Arthur Napoleão
Figueiredo. Sua importância para a antropologia na Amazônia vai muito além de citações em
obras e quadros pendurados em paredes. Nestes quase 50 anos de vida acadêmica, ela não apenas
levou o Terreiro e o Povo de Santo para a academia, mas a academia para dentro dos Terreiros,
numa relação sensível e profunda de respeito e admiração mútuos que dura até hoje.
Ela é graduada em História (UFPA). Foi bolsista de Arthur Napoleão Figueiredo, seu
grande amigo e incentivador para o campo antropológico e com quem desenvolveu vários projetos
e pesquisas, inclusive a formação da Reserva Técnica do Laboratório de Antropologia Arthur
Napoleão Figueiredo: um imenso acervo com centenas de artefatos da cultura material das
religiões de matriz africana na cidade, além da cultura indígena de várias etnias e da vida
interiorana.
Ela é a pioneira nos estudos sobre a população afro-amazônica na região, especialmente
sobre sua religião, tão fascinante e particular, inaugurando esta linha de pesquisa na UFPA,
ainda nos anos de 1960.
É mestre em antropologia, sob orientação de Peter Fry, pela UNICAMP. Professora
aposentada, mas nunca parada, pela UFPA. Está sempre cercada de alunos e amigos, nunca
nega orientação e uma boa conversa recheada de palavras doces e sábias. Possui uma vasta obra e
coleciona títulos e honrarias. Atualmente é a presidente do Instituto Histórico e Geográfico do
Estado do Pará.

Texto: Alessandro Ricardo Campos

290
Forró em Toulouse:Uma etnografia
multissituada sobre o forró como espaço
performático de sociabilidade e resistência

Forró in Toulouse: a multi-sited


ethnography on the forró as a performatic
space of sociability and resistance

Forró en Toulouse: Una etnografía


multisituada sobre el forró como espacio
performático de sociabilidad y resistencia

Sara Nuño de la Rosa García


Universidade Federal do Rio Grande do Norte
saracng@gmail.com

291
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 291-298
ISSN: 2446-8290

O presente ensaio fotográfico foi realizado na cidade de Toulouse,


França, durante os seis meses de pesquisa (outubro de 2018 - janeiro de
2019) que desenvolvi no Centre d'anthropologie sociale, da Université de
Toulouse 2, Jean Jaurès LISST, graças ao auxílio financeiro outorgado pelo
Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte.
Esse registro etnográfico forma parte do material audiovisual
reunido durante o trabalho de campo realizado na cidade de Toulouse,
França com motivo da minha atual pesquisa doutoral intitulada ‘‘O forró
em trânsito: uma etnografia multissituada sobre o forró como espaço
performático de sociabilidade, cidadania e diversidade’’.
A finalidade do indicado trabalho, é entender os processos de
transnacionalização do forró, como gênero musical e performático a partir
d e u m a e t n o g r a f í a m u l t i s s i t u a d a c a p a z d e c o mp re e n d e r
comparativamente as dinámicas culturais, econômicas e de sociabilidade
que constituem a autodenominada Comunidade Forrozeira na Europa.
A partir da etnografía visual, o estudo desvela a diversidade de
lógicas, subjetividades, pessoas, afetos e estilos de vida inseridos no atual
processo de internacionalização do forró, um fenômeno caraterizado por
um incremento progressivo de festas, apresentações, workshops e festivais
onde o gênero musical e a sua materialização na dança tem adquirido um
espaço singular.
A partir de imagens retratadas nos distintos lugares que conformam
a atual cena de forró na cidade de Toulouse, trata-se de evidenciar a
importância das performances no contexto global como espaços de
sociabilidade, diversidade e convívio no qual além do interesse pela
música e a dança, as pessoas reivindicam a diversidade étnica e exercem
seus direitos e liberdades.

* Toda as imagens são de autoría da autora

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o


forró como espaço performático de sociabilidade e resistência 292
Apresentação da banda “La Pifada” (Carlos Valverde) na praça
pública de Albi (cidade do interior de Toulouse). La Pifada é composta por
músicos e aprendizes da organização GEDAM (Groupe d'etudes de dance
et de musique du Brésil. Chants, danses et percussions brésiliennes) que
divulga a partir de shows, cursos e festivais a cultura popular brasileira em
Tolouse, tendo o forró como gênero privilegiado.

293 Sara Nuño de la Rosa García


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 291-298
ISSN: 2446-8290

Em Toulouse (França) a 26 de outubro de 2018, dois dias antes de


que fosse celebrada a segunda volta das eleições presidenciais no Brasil,
pessoas da comunidade brasileira, da comunidade francesa e
simpatizantes de diferentes partes do mundo organizaram uma
mobilização de protesto na frente do Theatre Sorano contra os valores do
Partido Social Liberal, ao qual denominaram “Forró de resistencia” sob o
lema ELE NÃO, “PAS LUI”.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o


forró como espaço performático de sociabilidade e resistência 294
Baile de forró que ocorre toda quinta-feira na Associação cultural
“La Candela”, Toulouse. O baile é precedido por uma aula de forró que
Carlos Valverde (GDAM) ministra na mesma associação e animado por
alguma das bandas de forró da cidade. A banda da fotografia é “Forró de
Fora” .

295 Sara Nuño de la Rosa García


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 291-298
ISSN: 2446-8290

Encontro mensal de Coco e Forró que organiza a artista Rita


Macedo na Associação Le Hangar de la Cépière, Toulouse. Esses
encontros têm como objetivo promover a gastronomia, a cultura e a
música brasileira sendo um evento multidisciplinar que inclui oficinas de
dança, capoeira, música, venda de comidas típicas e celebração de shows e
bailes. Na fotografia, a banda de Rita Macedo usa coletes amarelos como
mostra de apoio à mobilização nacional dos "coletes amarelos", que surgiu

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o


forró como espaço performático de sociabilidade e resistência 296
na França em outubro de 2018 em protesta contra o aumento no preço dos
combustíveis, a injustiça fiscal e a perda de poder aquisitivo promovido
pelo governo de Emmanuel Macron.

Aula de forró ministrada pela professora Isa Fife, todas as sextas-


feiras no ginásio de Sallèles-d'Aude, Occitania, 1 Rue de l'Obélisque,
Toulouse.

297 Sara Nuño de la Rosa García


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 291-298
ISSN: 2446-8290

Baile celebrado todas às quartas-feiras no bar “El Circo”, 61 rue


Pargaminières, Toulouse. O baile é acompanhado por uma banda de forró
pé de serra e deejay que mistura o forró com outros ritmos latinos. Na
fotografia, a banda que se apresenta é formada pela musicista e
compositora baiana, Jerusa Leão, durante a turnê da artista na França,
acompanhada da banda toulousiana “Café com Leite”.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Forró em Toulouse: uma etnografia multissituada sobre o


forró como espaço performático de sociabilidade e resistência 298
Lugar de bamba, territorio de samba: ensayos
para el desfile del carnaval de la Piedade

Place of bamba, territory of samba; rehearses


for the carnival parade of Piedade

Lugar de bamba, território de samba: ensaios


para o desfile de carnaval da Piedade

Jane Seviriano Siqueira


Universidade Federal de Santa Catarina
janeseviriano.siqueira@gmail.com

Anibal Cotrina Atencio


Universidade Federal do Espirito Santo
acotrin@gmail.com

299
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 299-306
ISSN: 2446-8290

Ensayo fotográfico realizado en el marco del trabajo de


investigación denominado “Gremio Recreativo Escola de Samba Unidos
da Piedade: Memoria, Identidad y Cultura entre los jóvenes”(2013). Su
objetivo es poner en relieve las formas en que ocurrieron los procesos de
entrenamiento en torno de los conocimientos sobre la Samba en la
Escuela de Samba Unidos da Piedade. La escuela fue fundada en 1955 en
el Barrio Fonte Grande ubicado en el centro de la Isla de Vitória capital
del estado Espírito Santo en el Brasil, y constituye la agremiación de
carnaval más tradicional del estado.
Se presentan doce (11) fotografías que muestran diversas etapas que
atravesó la escuela en su preparación para el desfile de carnaval de 2012, en
las cuales es posible ver a los integrantes de la batería en ensayos que se
llevaron a cabo en la Escuela y también en el ensayo general llevado a cabo
en la víspera del día del desfile en el Sambódromo de la ciudad.

Ficha Técnica de las fotos:


Fotos sin borde
Tamaño 12 x18 cm
300 dpi
09 fotos a colores
02 fotos en blanco y negro

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Lugar de bamba, territorio de samba:


ensayos para el desfile del carnaval de la Piedade 300
Foto 01: Maestro de la Batería dialogando con sus asistentes durante
ensayo. Autora: Jane Seviriano Siqueira
(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Foto 02: Primera pareja de Mestre Sala y Portabandera de la Escuela


delante del carro que lleva músicos y percusionistas. Autor: Anibal
Cotrina Atencio
(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

301 Jane Seviriano Siqueira e Anibal Cotrina Atencio


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 299-306
ISSN: 2446-8290

Foto 03: Segunda pareja de Mestre Sala y Portabandera de la Escuela


delante de algunos espectadores. Autor: Anibal Cotrina Atencio
(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Foto 04: Bateria de la Escuela de Samba Unidos da Piedade: Madrinha,


Mestre de Bateria y Ritmistas. Autor: Anibal Cotrina Atencio
(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Lugar de bamba, territorio de samba:


ensayos para el desfile del carnaval de la Piedade 302
Foto 05: Batería: Macalachetas. Autor: Anibal Cotrina Atencio
(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Foto 06: Batería: tamborins y surdos Autor: Anibal Cotrina Atencio


(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

303 Jane Seviriano Siqueira e Anibal Cotrina Atencio


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 299-306
ISSN: 2446-8290

Foto 07: Batería - chocalhos y tamborins. Autor: Anibal Cotrina Atencio


(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Foto 08: Ala de Passistas de la Escuela. Autor: Anibal Cotrina Atencio


(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Lugar de bamba, territorio de samba:


ensayos para el desfile del carnaval de la Piedade 304
Foto 09: Niña bailando detrás de la Bateria junto a un Pasista de la
Escuela. Autor: Anibal Cotrina Atencio
(Sambódromo de Vitória/Brasil - 31/01/2012)

Foto 10: Passistas de la Escuela en el último ensayo en presencia de la


comunidad del Barrio de Piedade. Autora: Jane Seviriano Siqueira
(Morro do Chapeu do Lado, Vitória/Brasil - 08/02/2012)

305 Jane Seviriano Siqueira e Anibal Cotrina Atencio


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 299-306
ISSN: 2446-8290

Foto 11: Presentación de la Batería de la Escuela em un club de la ciudad.


Autor: Anibal Cotrina Atencio
(Barrio de Jucutuquara, Vitória/Brasil – 05/02/2012)

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Lugar de bamba, territorio de samba:


ensayos para el desfile del carnaval de la Piedade 306
Dasipê: recortes da festa de nomeação
masculina e feminina dos Akwẽ Xerente

Dasipê: fragments of an
Akwẽ Xerente naming rite

Dasipê: fragmentos de un rito de


nombramiento de los Akwẽ Xerente

Ariel David Ferreira


Universidade Federal de Santa Catarina
davidf.ariel@gmail.com

307
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 307-316
ISSN: 2446-8290

Em 2015 eu cursava o mestrado em antropologia social na


Universidade Federal de Goiás (UFG). O projeto de pesquisa estava em
desenvolvimento, o recorte da época é diferente da versão final defendida
em banca. Naquele ano, meu interesse de pesquisa estava em investigar
como parte dos homens da etnia Xerente, localizada no centro do
Tocantins e autodenominada Akwẽ, cuidavam de sua saúde. A versão
final, por sua vez, incorporou as atividades indispensáveis das mulheres na
atenção que a população da aldeia Salto dava aos mal estares,
padecimentos e adoecimentos no grupo.
Havia uma preocupação e uma necessidade de aproximação, tanto
física, mas principalmente afetiva das pessoas, e em especial dos homens,
que habitavam a aldeia Salto, uma das maiores em número populacional
do grupo em 2015. O convite de meus interlocutores para participar da
festa de nomeação masculina e feminina, em língua Akwe Dasipê, apareceu
como uma ótima oportunidade de conhecer novos agentes, tanto
indígenas, quanto representantes do Estado, mas também de conviver
junto, num momento especial, pois mais afastado das preocupações e
ânimos rotineiros do dia-a-dia com meus interlocutores.
A festa naquele ano foi agendada do dia 18 até o dia 28 de Julho.
Cheguei dia 24 quando havia já começado a nomeação feminina. Era um
final de tarde e diferentemente do habitual, no lugar das partidas de
futebol, havia no centro da aldeia Salto Kripre uma casa dos homens ou
Warã. Em outro tempo permanente (NIMUENDAJÚ, 1942), dessa vez a
casa foi erguida unicamente para a festa de nomeação, evento
fundamental para a construção da categoria de “pessoa” Xerente.
No pátio central da aldeia todos estavam com suas pinturas clânicas
respectivas. Sob o Warã, além dos homens e vários anciãos de aldeias
próximas, havia crianças, meninos e meninas. Na maior parte dos finais de
tarde houve disputas entre segmentos que envolviam e divertiam toda a
aldeia. Elas começavam com as corridas de tora entre homens solteiros e
casados, mulheres solteiras e casadas, entre meninos e meninas crianças. Já
os jogos de cabo de guerra1 apresentaram configurações como homens
anciãos versus homens jovens, meninos contra meninas, homens casados
contra homens solteiros, mulheres casadas contra mulheres solteiras.
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Dasipê: recortes da festa de nomeação


masculina e feminina dos Akwẽ Xerente 308
Foto 1: Disputa de cabo de guerra. Ariel Ferreira (2015)

Essas disputas eram comentadas por anciãos ou homens adultos,


por vezes de forma semelhante aos feitos uma partida de futebol casual, na
qual não há muita rivalidade. A cada jogo eram feitas provocações leves,
comentários públicos divertidos, substancialmente diferentes da corrida
de tora que encerra a festa, caracterizada por uma disputa séria e acirrada,
na qual os homens, clãs e metades se opõem, construindo um cenário
semelhante às descrições de Nimuendajú (1942) e Maybury-Lewis (1979)
sobre o dualismo das sociedades classificadas como Jê.
Na animosidade dos finais de tarde, em que havia maior liberdade
de deslocamento por espaços, que em outros momentos da festa são
restritos a homens, mulheres, crianças, adultos ou anciãos, resolvi
experimentar a captura de movimentos das pessoas com uma câmera
DSLR, comprada com recursos da bolsa de pesquisa do mestrado. Utilizei
uma lente básica nikkor VR II, 18-55 mm, F/3.5-5.6, inclusa no kit da
câmera, para exercitar o uso das configurações manuais de captura.
Contudo, mais do que a relação amadora com os botões, travas e conflitos
com o foco automático, o registro dos jogos e disputas que fazem parte da

309 Ariel David Ferreira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 307-316
ISSN: 2446-8290

festa de nomeação aproximou outros interessados no enquadramento de


cenas. Em especial, Armando Sõpré, um amigo Xerente, professor da
escola local, experiente no registro e captação de sons e imagens em festas
tradicionais e eventos do calendário escolar e da igreja evangélica da
aldeia.

Foto 2: Ancião Comemora Vitória dos casados. Armando Sõpre (2015).

Partindo de situações em que a câmera me incomodava menos, e ao


que parece também aos meus interlocutores, aos poucos fui me sentindo
mais livre para participar e capturar imagens de partes mais formais,
chamadas de tradicionais, da festa de nomeação masculina e feminina.
Surgiam novos enquadramentos, de pessoas e relações, sobre uma
importante característica da festa, a reunião de Xerente de várias aldeias da
terra indígena. Mas também a negociação de relações entre o grupo e
agentes não indígenas como as autoridades políticas locais, os
profissionais vinculados à saúde indígena, os donos de comércio das
cidades fronteiriças ao território, as lideranças religiosas católica e
evangélica, os pesquisadores e a mídia da capital do estado, Palmas.
Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Dasipê: recortes da festa de nomeação


masculina e feminina dos Akwẽ Xerente 310
Foto 3: Preparação para nomeação masculina. Ariel Ferreira (2015)

É importante destacar que tanto os eventos formais, quanto os mais


informais como os jogos de final de tarde, constroem a grande
complexidade da festa2 de nomeação. Na semana de sua realização ela
ocorre durante o dia e a noite. Em síntese, formalmente ela começa com a
nomeação feminina e termina com a corrida dos homens com o
revezamento de enormes troncos de buriti, realizada após a nomeação
masculina. Em cada momento há uma configuração de espaço e limites
para homens, mulheres, crianças nomeadas e não nomeadas, jovens,
adultos, anciãos e anciãs. Não obstante, há também uma negociação e
planejamento das performances executadas.

311 Ariel David Ferreira


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ISSN: 2446-8290

Foto 4: Dança do padi (tamanduá). Ariel Ferreira (2015)

Naquele ano, particularmente, eventos especiais há décadas não


realizados na aldeia foram negociados entre Xerente de diferente
localidades quanto à sua performance, execução, expressão. O primeiro
deles foi a corrida da carne, na língua Akwe Kbazéiprairê, na qual meninos,
crianças até o limite da juventude para os Xerente, disputam uma corrida
segurando pedaços de carne até próximo a casa dos homens, onde as
carnes são depositadas sobre uma esteira e agrupadas por uma anciã.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Dasipê: recortes da festa de nomeação


masculina e feminina dos Akwẽ Xerente 312
Foto 5: Garotos em fila, separados por clã, preparados para a corrida da carne. Ariel
Ferreira (2015)

O segundo foi um evento singular da nomeação feminina. Segundo


Sinã (2011), nomes como Wakedi, Tpêdi, Krkodi, Wakrtidi demandam um
tratamento especial e uma performance que faz referencia ao seu
significado. Enquanto em boa parte das nomeações femininas,
contemporaneamente, os homens e anciãos da aldeia fazem um círculo em
uma casa pré-definida onde as únicas mulheres que participam são a
garota nominada, e em certos casos sua mãe, uma tia ou mulher do mesmo
clã, o nome Brupahi, traduzido em português como andorinha, exige uma
série diferente de preparações.
Em julho de 2015 a garota nomeada Brupahi não era mais criança e
já tinha mais de 18 anos. Esse não era seu único nome, sua nomeação de
Brupahi ocorreu ainda nos meses finais de sua gestação. Nessa ocasião sua
irmã a representou na nomeação para Brupahi. No entanto, em uma das
versões essa representação foi questionada pelos anciãos e por fim não
considerada válida, exigindo nova nomeação.
Em outras nomeações, as mais regulares que ocorreram no centro
da aldeia, o irmão da mãe (MB) conduz a sobrinha a integrar o círculo com
os homens e anciãos. Neste caso, no entanto, quem tomou o lugar de MB

313 Ariel David Ferreira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 307-316
ISSN: 2446-8290

foi o sobrinho de seu pai (FBS). Brupahi foi pintada e adornada com
algodão por duas mulheres da metade oposta a sua, que para isso
receberam um pagamento em arroz, carne e farinha.
A preparação, não obstante, só foi finalizada no mesmo local onde
no dia anterior ocorreu a corrida da carne. Parte importante dessa
preparação ocorreu quando FBS de Brupahi “amarrou” nos tornozelos da
garota uma corda feita com as fibras de buriti. Nas outras nomeações de
mulheres uma “amarração” semelhante deveria ser feita pelo tio (MB), no
entanto, não encontrei registro semelhante nas nomeações desse ano.
Depois que Brupahi foi preparada os homens foram organizados em
uma fileira. Brupahi, FBS e as mulheres que a pintaram e decoraram
ficaram mais ao fundo. Foram então distribuídos pequenos caules de
plantas. Cada pessoa segurava dois, um em casa mão. Na frente, liderados
por anciãos e por auxiliares, o grupo de homens, Brupahi e as mulheres que
a prepararam, desceram o caminho de terra em direção a aldeia Salto
imitando os pássaros Brupahi. Ao chegar ao centro da aldeia se dirigiram a
porta de algumas casas onde cantaram o nome Brupahi. Após o canto, os
homens voltaram para o Warã e a recém-nomeada para sua casa.

Figura 6: Imitando Brupahi (andorinha). Ariel Ferreira (2015)


Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Dasipê: recortes da festa de nomeação


masculina e feminina dos Akwẽ Xerente 314
Apesar de breve, busquei nesse ensaio mais do que descrever
brevemente cada foto, apontar as diferentes negociações e performances
dos múltiplos agentes envolvidos na execução da tradição da festa de
nomeação Dasipê. Afinal, nessa ocasião, eu também fui nomeado,
chamado Sizapi, junto a outros não indígenas que também disputavam
interesses com a população indígena Xerente. Finalmente, em um
momento em que há uma ofensiva aos direitos indígenas mais
fundamentais em detrimento de uma exploração econômica cada vez mais
voraz na região Norte do Brasil, chamo atenção ao comprometimento e
dever social dos que outrora comeram, dançaram e encantaram-se na mais
convidativa festa dos Xerente.

Figura 7: Fileiras trocam de lado na nomeação masculina. Ariel Ferreira (2015)

Notas

1. Cabo de guerra ou jogos da corda é uma atividade esportiva em que competem


duas equipes ou grupos. É feita uma marcação no centro de uma corda e nos
lados que se opõe a marcação são dispostos os dois times. Ganha a disputa o
time que, em um teste de bastante força, puxar a marcação do centro em

315 Ariel David Ferreira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 307-316
ISSN: 2446-8290

direção ao referencial marcado no chão mais próximo do seu time.


2. Os trabalhos finais sobre a nomeação masculina e feminina produzidos pelos
egressos da Licenciatura Intercultural Indígena da UFG dão maiores detalhes
sobre a complexidade de cada “etapa” da festa. São alguns deles: SINÃ, Valci
Xerente. Akwẽ Xerente Nıs̃ izem Re Hã Hêsuka: nomes próprios do povo
Akwẽ Xerente. 2011; TIKWA, Afonso Xerente. A corrida de toras entre os
Akwẽ Xerente. 2014.

Referências

MAYBURY-LEWIS, D. Dialectical societies: the Gê and Bororo of


Central Brazil, Cambridge, Harvard University Press, 1979.

NIMUENDAJU, Curt. The Serente. Los Angeles: Southwest Museum,


1942

SINÃ, Valci Xerente. Akwẽ Xerente Nĩsizem Re Hã Hêsuka: nomes


próprios do povo Akwẽ Xerente. 37 folhas. Trabalho de conclusão de
curso (projeto extraescolar) – Universidade Federal de Goiás, Faculdade
de Letras, Núcleo Takinahaky de Educação Intercultural, Goiânia, 2011.

TIKWA, Afonso Xerente. A corrida de toras entre os Akwẽ Xerente. 36


folhas. Trabalho de conclusão de curso (projeto extraescolar) –
Universidade Federal de Goiás, Faculdade de Letras, Núcleo Takinahaky
de Educação Intercultural, Goiânia, 2014.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Dasipê: recortes da festa de nomeação


masculina e feminina dos Akwẽ Xerente 316
Seção Vídeos

Eneida Assis

Eneida Assis, uma excelente etnóloga. Uma das principais pesquisadoras dos povos
indígenas da Amazônia. E, acima de tudo, ela era uma pessoa amiga e sonhadora. Formada em
História (UFPA) e Antropologia (UNB) teve a oportunidade, ainda como estudante, de conhecer
e interagir com pesquisadores renomados do Museu Goeldi e da Universidade Federal do Pará,
isso lhe possibilitou tornar-se uma antropóloga idealista e que mantinha, ao mesmo tempo, o
senso crítico refinado e a lucidez para agir com cautela e ousadia.
Foi líder do GEPI - Grupo de Pesquisa sobre Populações Indígenas e coordenou o OEEI -
Observatório de Educação Escolar Indígena do Territórios Etnoeducacionais Amazônicos.
Eneida era também uma política não apenas na teoria, mas principalmente na prática. Seu
doutoramento em Ciência Política (IUPERJ) permitiu-lhe o aprimoramento teórico do que já
fazia e conhecia empiricamente. Eticamente tornou-se uma das grandes pesquisadoras e
apoiadoras das causas indígenas. Uma grande guerreira. Por conta desse comprometimento as
lideranças destes povos reconhecem o quão importante ela foi nas suas conquistas. Foi batizada
de Kiavnu por estes povos, que a respeitavam e a admiravam.
Era uma excelente contadora de histórias e suas narrativas recheadas de misuras e caretas,
imitando as pessoas ao relatar uma conversa ou episódio. Sua voz e seu corpo se transformavam
nesse instante. Gostava de usar expressões populares ao mesmo tempo em que citava autores e
autoras clássicos e contemporâneos das ciências humanas. Citava ainda exemplos de áreas de
conhecimento aparentemente díspares.
Eneida Assis dava conselhos, usando exemplo de vivências de outras pessoas ou aquilo que fora
vivenciado em seu trabalho de campo. Sua mente era ágil e estava sempre disposta a aprender e a
ensinar. Quando não sabia e não conhecia algo, colocava “os cachorros no mato” para não “ser
lesa” em suas estratégias e ações. E observava, ouvia, aprendia com todos e com tudo. Nunca
desistia de lutar e conseguia suportar as adversidades e adversários.
Eneida deixa saudade. Mas também ensinamentos, lições, iniciados e iniciadas que a manterão
viva pra sempre em nossas pesquisas e em nossos corações.

Texto: Denise Cardoso

317
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 318-319
ISSN: 2446-8290

Pascual Toro, flautero

María Eugenia Domínguez


Universidade Federal de Santa Catarina
eugison@yahoo.com

318
“Pascual Toro, flautero” é um documentário etnográfico gravado no
Chaco boreal paraguaio entre 2016 e 2018. Músico indígena, Pascual Toro
herdou o conhecimento da tradição musical associada ao Arete Guasu do
seu pai, quem, como muitos outros guarani e isosenhos, migrou da Bolívia
ao Paraguai após a Guerra do Chaco (1932-1935). Neste vídeo, através da
voz do músico indígena, conhecemos parte da história do seu povo, da
importância do Arete Guasu na sua comunidade e dos conhecimentos
associados à habilidade para ser um bom flauteiro. O vídeo apresenta
também a sequência de temas musicais que compõem a estrutura ritual do
Arete Guasu tal como acontece nos dias de hoje na comunidade guarani
de Santa Teresita (Mariscal Estigarribia, Boquerón, Chaco paraguaio).

Ficha técnica

Pesquisa e Filmagem: María Eugenia Domínguez


Edição: Luma Viegas
Tradução e Legendas: Vítor Vieira Machado
MUSA- Núcleo de estudos Arte, Cultura e Sociedade na América
Latina e Caribe-Universidade Federal de Santa Catarina
Ano de realização: 2019
Tempo de duração:21'09''
Link de acesso: https://youtu.be/Ov4DCrmQ-Z4

319 María Eugenia Domínguez


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 320-321
ISSN: 2446-8290

Musicalidade do Boi Faceiro: inspiração,


composição e internalização.

Rondinell Aquino Palha


Universidade Federal do Pará
rondipalha@gmail.com

320
A musicalidade do Boi das Máscaras Faceiro é concebida com
inspiração, poesia e troca recíproca de sentimentos empíricos. Este filme
mostra o processo de concepção de uma "marcha do boi", um ritmo
singular e próprio da manifestação dos bois mascarados. Nildo Zeferino é
um dos principais compositores das músicas que alegram a cultura
popular de São Caetano de Odivelas. Sua inspiração vem de antigos
mestres e compositores das canções de boi. Suas composições são
inspiradas em aspectos próprios do Boi Faceiro como um grupo
representativo do coletivo popular. Em seguida, a música composta é
passada para a Orquestra do grupo. Com a realização dos ensaios e a
execução na integra da música, completa-se o ciclo de mais uma
composição que animará as apresentações do Boi Faceiro. As imagens
estão no formato Mp4 e foram capturadas por uma Camera Cannon T6.

Ficha técnica

Produção: Rondinell Aquino Palha


Formato: Mp4
Imagens/Edição: Rondinell Aquino Palha
Roteiro/Texto: Rondinell Aquino Palha/ Daniel S. Fernandes
Local: São Caetano de Odivelas - Pará
Ano:2019
Duração: 8'16”
Link de acesso: https://www.youtube.com/watch?v=hppJ33BD8Ek

321 Rondinell Aquino Palha


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 322-324
ISSN: 2446-8290

Artífices do som: Josias Ramos


e a rabeca de Bragança (PA)

Bernardo Wagner M. Baptista


Universidade Estadual do Rio de Janeiro
bernardomarques@id.uff.br

322
Josias Ramos é natural de Belém do Pará, nascido em 1986, e
mudou-se com sua família para Bragança (PA) no ano de 2002. Através de
seu tio soube que ia ser realizado o curso de construção de rabecas
(instrumento musical de cordas friccionadas), realizado pelo Instituto de
Artes do Pará e a Irmandade da Marujada de São Benedito de Bragança,
em 2003. Se inscreveu prontamente pois sempre teve vontade de “se
envolver” com música. Josias foi o único de sua turma que conseguiu
montar uma rabeca, e se manteve exercendo o saber-fazer da construção do
instrumento.
Hoje Josias é um dos remanescentes na construção de rabecas,
instrumento musical de grande importância na musica da Marujada.
Manifestação popular em homenagem à um santo católico, São Benedito,
a Marujada foi iniciada em 1798 por uma irmandade negra. Josias não
possui vínculo com a manifestação e não é católico, mas por amor à música
replica os saberes e fazeres da rabeca para que esta tradição não se perca.

323 Bernardo Wagner M. Baptista


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 322-324
ISSN: 2446-8290

Ficha técnica

Diretor: Bernardo Wagner Marques Baptista


Ano: 2017
Formato: Vídeo Digital
Duração: 07”
Link: https://vimeo.com/323253376

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Artífices do som:
Josias Ramos e a rabeca de Bragança (PA) 324
Turma do Vinil: mil e uma formas de ouvir

Lucca Perrone Totti


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
lucas_totti@hotmail.com

Oliver Guimarães Armando Bastos


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
oliverbastos@yahoo.com.br

Pedro Luiz Fadel Ferreira


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
bioff@hotmail.com

Rodrigo Bastos Torrero Diaz


Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
rodrigotorrerod@gmail.com

325
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 325-329
ISSN: 2446-8290

Introdução

“Turma do Vinil” – um filme realizado no âmbito da disciplina


“Experiência do Filme na Etnomusicologia”, na UNIRIO – partiu de uma
questão simples: como as pessoas ouvem música. O uso do filme como
mídia e metodologia de pesquisa revelou, ao longo do processo, diversas
potências de articulação do tema específicas dessa prática.
O objeto de pesquisa, partindo de Rodrigo Torrero e adotado pelo
grupo, surge do interesse e de certa desconfiança sobre uma narrativa
recorrente: a de que, num passado distante – geralmente “coincidindo”
com uma fase nostálgica da vida do narrador – a música era ouvida de
maneira “ideal”, prestando total atenção, “ouvindo de verdade”.
Sem o objetivo de buscar ou produzir uma historiografia em torno
do tema, o grupo iniciou a reflexão sobre a questão dos hábitos de escuta
em seu próprio cotidiano, marcado por profundas transformações
tecnológicas. Celulares, serviços de streaming, bluetooth, e outros trouxeram
a música para novos espaços e permitiram acesso a um vasto catálogo; ao
mesmo tempo, essa miríade de estímulos e possibilidades teria conferido à
experiência de ouvir um caráter excessivamente fugaz e acelerado. A
investigação, assim, estruturou-se no sentido de acessar criticamente esses
discursos.

Estratégias de representação

O filme etnográfico, até então desconhecido pelos alunos, revelou-


se potente instrumento de pesquisa, ao possibilitar abordagens únicas a
essa metodologia - como os recursos escolhidos para a aproximação com
relação aos personagens e para o acesso às suas experiências. Foram
selecionados quatro personagens – dentre eles, dois membros do próprio
grupo – para que esses se filmassem escutando música em um
determinado período de tempo.
Tendo em mente as problemáticas que permeiam as relações
tradicionais pesquisador-objeto – incluindo aquelas envolvendo a câmera

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Turma do vinil: mil e uma formas de ouvir 326


–, optou-se por uma estratégia de autorrepresentação mediada pelo uso da
selfie: os participantes foram convidados a produzir por conta própria as
imagens referentes às escutas, utilizando a câmera frontal de seus celulares.
Não houve qualquer interferência dos realizadores nesse processo para
além da proposição de se filmarem ouvindo música.
Essa escolha permitiu capturar momentos de intimidade e
protagonismo não acessíveis por outros meios, com sujeitos se
autodirigindo e autorrepresentando. Conforme Shipley (2015, p. 404),
[…] the selfie, rather than a singular form of technologically driven
self-portraiture, is a multimedia genre of autobiography or memoir
that makes the image maker into the protagonist of stories of his or her
1
own composition.

O restante do material consiste em uma entrevista com cada


personagem. Entretanto, em vez de elaborarmos um tradicional roteiro de
perguntas, o que fizemos – inspirados por Eu, um negro, de Jean Rouch – foi
mostrar a cada um suas respectivas auto-filmagens, e deixar a câmera rolar
enquanto assistiam – e falavam. Assim, o papel de interpretar as imagens e
as práticas nelas retratadas foi compartilhado, com pesquisadores e
personagens criando narrativas a partir do que fora gravado.

Pós-Produção: confluências narrativas

Munido desse material, o grupo se viu na etapa de costurá-lo em


uma narrativa fílmica, o que implicaria uma série de escolhas sobre as
cenas. Nesse sentido, a pós produção pode ser vista como antítese da
horizontalidade narrativa acima exposta – visto que, no fim das contas,
emerge como etapa em que os realizadores voltam a ter total controle sobre
os discursos. Partindo dessa problemática, foi preciso, então, tomar um
posicionamento com relação ao lugar dos pesquisadores nessa mediação.
Ou seja, avaliar em que nível as ações dos realizadores nessa fase iriam
manchar a proposta de autorrepresentação.
Por outro lado, Turma do Vinil surge de perguntas dos realizadores,
de modo que esses também teriam voz na obra. A edição, portanto,

327 Lucca Perrone Totti et al


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 325-329
ISSN: 2446-8290

estruturou-se visando mostrar os discursos dos personagens e,


eventualmente, manipulando essas falas com o intuito de tecer o discurso
fílmico do grupo. Esse jogo com o material se deu em ferramentas como a
contradição entre cenas consecutivas, o uso do humor para reforçar
pontos, agenciamento de expectativas – recursos argumentativos
potencializados pelo uso do filme.

Conclusão

Ao fim do processo, Turma do Vinil mostrou-se capaz de abordar


muito mais do que a pergunta inicial. Mostrou também como hábitos de
escuta estão diretamente relacionados com outras esferas do cotidiano de
cada um dos envolvidos. A constatação dessa ligação faz com que não seja
possível pensar em um modo de escuta “geral” dos dias de hoje, existindo
na realidade uma multiplicidade de hábitos, rituais e experiências.
Percebeu-se que, em sua maioria, esses nascem de uma mediação entre o
desejo de ouvir música e a situação e rotina de cada um.
Longe de uma tentativa de totalizar a experiência de ouvir música,
Turma do Vinil tem seu poder em revelar os momentos pessoais dos
participantes, que se filmando e falando de si abordam intimamente as
questões propostas. Se a pesquisa pode ousar generalizar um diagnóstico
sobre os modos de escuta atuais, seria exatamente essa metacondição de
fragmentação e individualização desses hábitos.
Finalmente, realizar o curta lançou luz sobre as potências do fazer
fílmico enquanto método de investigação sui generis. Considerando a
condição do grupo enquanto estudantes universitários, esse fato torna-se
especialmente importante ao abrir novos caminhos no fazer acadêmico,
tradicionalmente apoiado no texto enquanto única forma de difusão de
conhecimento.

Notas

1. A selfie, mais do que uma forma de autorretrato tecnologicamente orientada, é


um gênero multimídia de autobiografia ou memoir que faz do autor da

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Turma do vinil: mil e uma formas de ouvir 328


imagem o protagonista de histórias de sua própria composição. (Tradução
própria).

Ficha Técnica

Produção: Lucca Totti, Oliver Bastos, Pedro Fadel e Rodrigo Torrero


Participação: José Landim, Oliver Bastos, Rodrigo Torrero e Sofia
Magalhães
Orientação: Erica Giesbrecht
Duração: 9'44''
Link para o filme: h ps://www.youtube.com/watch?v=nVbn3RxHHn4

Referências

DA-RIN, Silvio. “A estética do documentário clássico” e “Novas técnicas,


novos métodos”. In: Espelho Partido. Tradição e transformação do
documentário. RJ: Editora Azouge, p. 71-94; 95-108, 2004.

DENORA, Tia. Formulating Questions: The Music and Society nexus.


In: Music in Everyday Life. Cambridge: Cambridge University Press,
2000.

HENLEY, Paul. Narrativas: a verdade velada do documentário


etnográfico?

HIKIJI, Rose Satiko Gitirana. Rouch compartilhado: premonições e


provocações para uma antropologia contemporânea. Iluminuras, Porto
Alegre, v.14, n.32, p.113-122, 2013.

MINH-HA, Trinh Thj. Olho mecânico, ouvido eletrônico, e a atração da


autenticidade. (Tradução de NAZARIAN, Elisa). In: CAIUBY NOVAES,
Sylvia & all. A experiência da Imagem na Etnografia. São Paulo. Terceiro
Nome, p. 2016.

SHIPLEY, Jesse Weaver. Selfie Love: public lives in an era of celebrity


pleasure, violence, and social media. American Anthropologist, v. 117, n.
2, p. 403-13, jun. 2015.

329 Lucca Perrone Totti et al


v. 05 | n. 01 | 2019
ISSN: 2446-8290

Seção Entrevistas

Samuel Sá

Samuel Maria de Amorim e Sá. Antes de ser antropólogo, um ser humano, como um dia
o ouvi afirmando. Também é metodólogo, porque diz ele que nestes tempos ter mais de um
emprego pode ser interessante. Traz em sua bagagem acadêmica e cultural quase cinquenta anos
de Antropologia na Amazônia, onde iniciou sua carreira na graduação em Ciências Sociais na
UFPA. Neste período, foi bolsista orientado pelo Dr. Eduardo Galvão no Museu Paraense Emílio
Goeldi e aluno do Prof. Dr. Orlando Sampaio e Silva. Depois, seguiu para o Rio de Janeiro, onde
especializou-se em História Oral e trabalhou na Fundação Oswaldo Cruz. Estudou na Bélgica e
na década de 70 foi convidado pelo Dr. Charles Wagley para cursar o mestrado e doutorado em
Antropologia na Universidade do Sul da Flórida, campus de Gainsville (EUA), tornando-se,
então, o primeiro antropólogo amazônida a realizar uma formação de pós-graduação strictu sensu
completa fora do Brasil e posteriormente retornar a região para trabalhar. Sua tese de
doutoramento versou sobre o processo de adaptação cultural e as barreiras vivenciadas pelos pós-
graduandos brasileiros nos Estados Unidos. Este não foi o seu primeiro estudo no campo da
Antropologia da Educação, mas, sem dúvida, o mais denso. Estavam, então, abertas as portas
para que ele fundasse o Projeto Extracurricular Temático (PET) em Ciências Sociais, grupo em
que desenvolve um trabalho de “educação universitária”, principalmente entre os alunos de
graduação da UFPA. Atualmente, continua colaborando com a formação de gerações de
cientistas sociais. Aqui, nossa gratidão ao querido Professor Samuel.

Texto: Breno Sales

330
Entrevista com
María Eugenia Domínguez

Chiara Albino
Universidade Federal de Santa Catarina
tarsila.chiara@gmail.com

Jainara Oliveira
Universidade Federal de Santa Catarina
gomes.jainara@gmail.com

331
v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 331-338
ISSN: 2446-8290

Apresentação

Esta entrevista foi realizada em Florianópolis, Santa Catarina, em


2019. María Eugenia Domínguez, antropóloga argentina, é Professora
Associada no Departamento de Antropologia e no Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social (PPGAS) da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC). Domínguez é doutora e mestre em Antropologia
Social pelo PPGAS/UFSC e bacharel em Ciências Antropológicas pela
Universidad de Buenos Aires (UBA). É pesquisadora do Núcleo de
Estudos Arte, Cultura e Sociedade na América Latina e no Caribe
(MUSA/UFSC) e do INCT Brasil Plural (INCT/CNPq) e coordenadora
do Curso de Graduação em Antropologia da UFSC. Em 2009, recebeu o
Prêmio Elisabete Anderle de Estímulo à Cultura da Fundação
Catarinense de Cultura (FCC). Entre outras publicações, organizou, com
Deise Lucy Oliveira Montardo, a coletânea “Arte e sociabilidades em
perspectiva antropológica”, publicada em 2014 pela Editora da UFSC, e,
com Viviane Vedana, o dossiê “Sons e Etnografias”, publicado em 2018
pela Ilha – Revista de Antropologia do PPGAS/UFSC.

Conte-nos sobre sua formação na Argentina e sobre seus primeiros


interesses de pesquisa.
Comecei a minha formação em Antropologia na Universidade de Buenos
Aires (UBA), na Argentina. Entrei na universidade em 1993 e me formei
em 2001. Era um curso longo que habilitava você para cursar diretamente
o doutorado na UBA, sem necessidade de fazer mestrado. Nos anos finais
da graduação eu participava de dois núcleos de pesquisa: um de estudos
sobre migrações e outro de estudos de performance e patrimônio. Essas
duas linhas, que marcaram a minha formação inicial em antropologia,
confluíram depois nas minhas pesquisas. Na época da faculdade também
comecei a praticar capoeira angola com Mestre Pedrinho de Duque de
Caxias, Rio de Janeiro, e dança afro e contemporânea, com Isa Soares e
Valdir Silva, ambos baianos. Isto me aproximou de uma rede de artistas
afro-brasileiros cujos trabalhos se tornaram objetos de reflexão na minha

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Entrevista com María Eugenia Domínguez 332


pesquisa de conclusão na graduação. Foi um trabalho bastante
interessante porque localmente existia um imaginário sobre a brasilidade,
em alguma medida, exotizante, que afetava o que esses artistas podiam ou
não podiam fazer. As ideias do Tzvetzvan Todorov, que entende o exótico
como um estereótipo baseado no desconhecimento e que tende a
idealização do outro, me resultaram especialmente inspiradoras. Entre as e
os artistas brasileiros com quem trabalhei, por sua vez, era evidente a
distinção entre aqueles que trabalhavam em propostas que alimentavam
um imaginário onde a brasilidade é uma, igualitária e mestiça, e outros
trabalhos que traziam para o primeiro plano a questão da desigualdade
racial, da negritude das suas artes e do valor da diferença.

Como se deu a escolha de fazer mestrado e doutorado aqui no Brasil?


Como foi esse contato inicial? Por que você escolheu o Brasil e a
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)? Sabemos que na
graduação você pesquisou sobre imigrantes brasileiros em Buenos Aires
e a sua relação com o trabalho, arte e cultura. A escolha foi decorrente
dessa pesquisa da graduação?
Sim, há uma relação evidente entre essas coisas. Nessa pesquisa conheci
muitos artistas brasileiros que tinham ido morar na Argentina e que
tinham levado consigo, nas suas artes, saberes profundamente marcados
por experiências em contextos de relações raciais que, para mim, eram
desconhecidos até então. Com eles, conheci também a literatura que me
remeteu ao grande universo dos estudos sobre relações raciais no Brasil e à
história da luta antirracista no país. O contexto argentino era muito
diferente nesses aspectos, e esse jogo de espelhos, essa possibilidade de
comparação, me interessou especialmente. Na época, o Prof. Alejandro
Frigerio, um dos principais estudiosos das religiões e artes afro-brasileiras
na Argentina, com quem eu tinha feito alguns trabalhos, indicou o núcleo
coordenado pela Profa. Ilka Boaventura Leite na UFSC. O mestrado em
Antropologia na UFSC foi, sem dúvida, muito mais do que eu esperava no
sentido de me permitir estudar a fundo esses temas.

333 Chiara Albino e Jainara Oliveira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 331-338
ISSN: 2446-8290

Como você começou a trabalhar com questões relacionadas à música?


Você mudou de tema para o doutorado, quais foram os motivos?
Na verdade, poderia se dizer que, ao longo do meu percurso pela
Antropologia, eu fui mudando de objetos empíricos de pesquisa para, em
termos teóricos, sempre me dedicar ao mesmo tipo de questões. Sempre
me interessei pela arte, ou por como, porquê, para quê, com quem e com
que forças as pessoas fazem arte. Como meus trabalhos se voltam para as
artes performáticas, a música e o som sempre estiveram presentes. O meu
trabalho de mestrado foi um estudo sobre um movimento formado por
artistas negras/os em Buenos Aires nos últimos anos do século XX. O
movimento incluía a pessoas de diferentes procedências, de países da
América do Sul e Central e da África. Ali o candombe afro-uruguaio, nas
várias manifestações em que aparece em Buenos Aires, era um dos
principais motores do movimento. Os músicos de candombe, por sua vez,
faziam parte de uma rede de músicos que se dedicavam aos gêneros do Rio
da Prata - candombe, murga, tango e milonga - que mais tarde eu passaria a
estudar. Por isso eu não vejo esta transição como uma mudança de tema e
sim como a continuidade da indagação em torno de uma mesma pergunta
e de outras que dela derivam: o que é que se faz quando se faz arte?

Como você avalia a expansão dos estudos sobre música, bem como o
protagonismo das mulheres pesquisadoras nesse campo?
Vejo um protagonismo crescente das mulheres na vida acadêmica e
artística de forma geral, e isto reflete-se também nos estudos realizados
sobre música desde diferentes perspectivas disciplinares. Penso que essa
expansão dos estudos sobre música se relaciona com uma abertura em
relação ao que entendemos quando falamos de música, incluindo não
apenas a obra em si e sim todos os saberes, práticas e performances que
fazem parte do “musicar”, para usar a expressão de Christopher Small,
com todos os condicionantes que os afetam e com todas as transformações
que eles podem operar na vida social. Essa ampliação do objeto que os
estudos sobre música atravessaram durante as últimas décadas também
possibilitou a proliferação de abordagens para o seu estudo, muitas delas
interdisciplinares.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Entrevista com María Eugenia Domínguez 334


Ainda falando das relações de gênero, queríamos saber se você, como
mulher, teve dificuldades ao pesquisar os flauteiros? Foi difícil se inserir
em campo?
Na minha pesquisa no Chaco tenho me concentrado, fundamentalmente,
na arte dos músicos que tocam flautas e dos artistas que fazem máscaras.
Nos dois casos trata-se de homens, mas isto não tem sido necessariamente
um problema. Em toda pesquisa a etnógrafa ou etnógrafo estabelece
relações com as pessoas com quem trabalha. Essas relações se verão afetada
por quem você é, não temos como fugir desse fato, que certamente afetará
o conhecimento que será produzido a partir dessas relações. Mas
pessoalmente não tenho vivido o fato de ser mulher como uma limitação
nas minhas pesquisas, e sempre senti que as relações com meus
interlocutores se assentavam num profundo respeito mútuo.

Qual é a principal marca do seu trabalho? Que correntes, disciplinas,


autores/as e professores/as influenciaram sua formação e seus trabalhos?
Por algum motivo, os deslocamentos de um lugar a outro, as migrações,
sempre fizeram parte das pesquisas em que trabalhei. Mas eu diria que se
há algum tema que atravessa o meu trabalho é a arte, ou as artes. Na

335 Chiara Albino e Jainara Oliveira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 331-338
ISSN: 2446-8290

graduação em Antropologia em Buenos Aires trabalhei com a Professora


Alicia Martín, que ministrava a disciplina Folclore. Ela trabalha com
artistas do carnaval e também sobre tango. Com ela e seu grupo de
pesquisa me aprofundei nos principais teóricos da antropologia da
performance que estavam sendo estudados nos anos de 1990,
especialmente da linha de Richard Bauman e Charles Briggs. Já no Brasil
me aproximei muito mais da etnomusicologia e da antropologia da arte.
Nestas áreas certamente a orientação do Professor Rafael de Menezes
Bastos, na UFSC, foi determinante. Aqui seria muito difícil referir a uma
ou outra vertente teórica, a uma ou outra autora, ou autor, são muitos os
que me inspiram. No Brasil tanto a etnomusicologia quanto a
antropologia da arte recebem contribuições teóricas fundamentais de
pesquisas realizadas no âmbito da etnologia indígena, e eu certamente as
incorporei e dialogo com essas contribuições nas minhas pesquisas atuais.
Mas durante os últimos quinze anos também tenho acompanhado o que
vem sendo produzido no âmbito dos estudos sobre música popular, que é
uma área marcadamente interdisciplinar. Mais recentemente tenho me
interessado bastante, também, pelo que alguns chamam de antropologia
sensorial ou da percepção, uma linha de trabalho também interdisciplinar
onde confluem pesquisas que se interessam pelo conhecimento sensível.
Para quem trabalha com arte e faz pesquisa etnográfica estas discussões
podem ser bastante enriquecedoras.

No dossiê “Música e modos de subjetivação em perspectiva


antropológica” contamos com o seu vídeo “Pascual Toro, flautero”.
Como você avalia o uso do audiovisual nas pesquisas sobre música,
dança, arte, rito e performance?
O vídeo “Pascual Toro, flautero” é um trabalho audiovisual inspirado na
perspectiva que o cineasta e antropólogo argentino Jorge Prelorán chamou
de etnobiografia, entendendo que nesse tipo de iniciativa o conhecimento
é produzido a partir da relação entre pesquisador e pesquisado. Para
Prelorán, o principal valor de um filme etnobiográfico é a possibilidade de
compreender a vida e a filosofia de pessoas reais, dotadas de nome,

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Entrevista com María Eugenia Domínguez 336


sobrenome, opiniões e problemas pessoais com os quais nos identificamos
e que ao narrar as suas experiências nos permitem conhecer os seus
mundos. É uma via interessante para evitar generalizações às vezes
implícitas nas referências às comunidades ou sociedades. A ideia é dar
destaque às formas particulares em que os sujeitos vivem as suas culturas.
Além disso, o fato da etnobiografia estar assentada nos trabalhos
audiovisuais, como o próprio Prelorán fazia, incide no seu potencial.
Trata-se de um tipo de trabalho que busca dar conta de um desafio comum
entre as que trabalhamos com arte, que é o de encontrar formas de fazer
etnografia abraçando a dimensão sensorial da experiência, mas também o
de comunicar de forma sensível o conhecimento antropológico. Trata-se
de uma problemática que tem sido trabalhada de forma bastante
interessante na antropologia visual brasileira, como também na linha que
alguns chamam de etnomusicologia audiovisual. Nas minhas experiências
de pesquisa o uso de meios audiovisuais tem se tornado indispensável e se
revelado como um caminho potente para explorar as conexões entre arte,
conhecimento e percepção sensorial.

337 Chiara Albino e Jainara Oliveira


v. 05 | n. 01 | 2019 | pp. 331-338
ISSN: 2446-8290

Como você avalia o uso do audiovisual em sala de aula?


Nós, professoras sabemos que, em boa medida, a eficácia das nossas aulas
depende das formas em que comunicamos ou oportunizamos o
conhecimento. Na docência, como na arte, forma e conteúdo são
indissociáveis. Neste sentido os meios audiovisuais são chaves na hora de
pensarmos estratégias para fazer com que o conhecimento produzido em
sala de aula não se limite às possibilidades da linguagem verbal, seja ela oral
ou escrita.

Agradecimentos
As entrevistadoras agradecem à entrevistada a autorização para publicar
esta entrevista. Agradecem ainda à comissão editorial da Revista Visagem
e às organizadoras do dossiê “música e modos de subjetivação em
perspectiva antropológica” o aceite desta entrevista.

Links sugeridos
“Entre flauteiros” h ps://youtu.be/YvkktZ3MrCw
“Opaite ime iya. Todo tiene dueño” h ps://youtu.be/gYk1lquC9x4

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Entrevista com María Eugenia Domínguez 338


Sobre as/os autoras/es

Agenor Cavalcanti de Vasconcelos Neto - Possui graduação em Filosofia pela


Universidade Federal do Amazonas - UFAM (2009). Tem experiência na área de
Filosofia e Antropologia Social atuando principalmente na área da Antropologia da
Música aplicada à etnografia dos povos região do Noroeste Amazônico. Na graduação
estudou Filosofia Antiga e Estética. Obteve título de mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia (PPGSCA) e participa das atividades
do Centro de Estudos e Pesquisas em Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal do Amazonas. Atualmente pesquisa o seguinte tema e autores: Etnografia da
Amazônia, Koch-Grünberg e Antropologia da Música Popular. Tem desenvolvido e
coordenado projetos de pesquisa, além de ter publicado livros, cd, websites e artigos
científicos sobre os resultados obtidos. Doutorando em Antropologia Social pela
Universidade Federal do Amazonas (Brasil) na condição de bolsista CAPES e orientado
por Dra. Deise Lucy Montardo.

Anibal Cotrina Atencio - Professor Adjunto ao Departamento de Computação e


Eletrônica da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES). Possui doutorado em
Engenharia Elétrica (UFES) e é formado em Engenharia Eletrônica pela Universidade
Nacional Maior de San Marcos (UNMSM).

Ariel David Ferreira – Doutorando em Antropologia Social pela Universidade Federal


de Santa Catarina (UFSC). Mestre em Antropologia Social pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal de Goiás. Graduado em
Ciências Sociais pela Faculdade de Ciências Sociais da mesma Universidade. Possui
experiência na área de Antropologia com ênfase em antropologia da saúde, cultura
material e etnologia indígena.

Bernardo Wagner Marques Baptista - Mestre pelo Programa de Pós-graduação em


Artes da UERJ - concentração em Arte e Cultura Contemporânea, especialista em Arte-
educação, pela UnB, e bacharel em produção Cultural, pela UFF. Integra a equipe de
pesquisadores do Núcleo de Cultura Popular da UERJ e desenvolve pesquisas sobre a
vida social e os percursos dos objetos, com investigação voltada à produção artesanal e a
confecção de instrumentos musicais populares brasileiros. Atua como produtor e
curador de exposições de arte popular e utiliza o audiovisual como recurso de registro
etnográfico dos saberes e fazeres vinculados à arte.

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ISSN: 2446-8290

Chiara Albino - Doutoranda em Antropologia Social do Programa de Pós-Graduação


em Antropologia Social da Universidade Federal de Santa Catarina e bolsista de
doutorado da CAPES. Mestra em Antropologia Social pelo Programa de Pós-
Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do Rio Grande do Norte
[PPGAS/UFRN]. Pesquisadora vinculada ao TRANSES - Núcleo de Antropologia do
Contemporâneo da UFSC, ao NAVIS - Núcleo de Antropologia Visual da UFRN e ao
VISAGEM - Núcleo de Antropologia Visual e da Imagem da UFPA. Coeditora da
Visagem - Revista de Antropologia Visual e da Imagem do PPGSA/UFPA
[h ps://grupovisagem.org/revista-eletronica/] e revisora de periódicos. Coorganizadora
do dossiê gênero, sexualidade, emoção e moralidade [Revista Equatorial, 2015] e
organizadora do dossiê Paisagens Sonoras [Revista Equatorial, 2016]. Possui
publicações em português e espanhol em periódicos nacionais e internacionais.
Associada pós-graduanda da Associação Brasileira de Antropologia (ABA) e da Rede de
Estudos de Geografia, Género e Sexualidades Ibero Latino - America. Tem interesses
em pesquisas no campo da Antropologia do Contemporâneo, particularmente sobre
homossexualidades masculinas, emoções, moralidades, neoliberalismo, músicas,
festas, danças e modos de subjetivação.

Daniela Moura Bezerra Silva - Possui graduação em Ciências Sociais Licenciatura


(2008) e Ciências Sociais Bacharelado (2009) pela Universidade Federal de Sergipe,
Mestrado e Doutorado em Sociologia pelo Programa de Pós-Graduação em Sociologia
da UFS. Foi professora substituta do Instituto Federal de Sergipe (IFS) e tutora na
educação da distância pela UAB/UFS. Atualmente é Professora da Universidade
Tiradentes, UNIT- SE. Atua principalmente nos seguintes temas: processos
identitários, expressões urbanas, consumo e estilos de vida.

Danielle Colares Lins - Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do


Amazonas, com a dissertação intitulada: O revestimento- Linhas, nós e malha do
conhecimento musical da violina e de Seu Rosário- Uma etnografia do violino em
Parintins (2018), foi orientada pela Profª. Drª. Deise Lucy Oliveira Montardo e bolsista
CAPES. Graduada em licenciatura em Música na Universidade Federal do Amazonas
(2017), realizou projetos nas áreas de etnomusicologia (contemplada com menção
honrosa em Antropologia na modalidade Iniciação Científica - 2015) e educação
musical. Atua em vários segmentos artísticos, como violinista integrou várias orquestras
em Manaus, Quarteto Violinata, Grupo Puxirum, Coro Universitário e Orquestra
Popular Vozes da UFAM. No teatro, trabalhou na Companhia Gato Carcará
(contemplada com melhor trilha sonora na modalidade infanto-juvenil no Festival
Amazonas de Teatro - 2012) e elencou a Companhia Pombal. Como poeta e escritora,
aborda temáticas do cotidiano e questões do universo feminino como protestos à
violência e visibilização da mulher. Atualmente é membro do coletivo Escritores
Indigestos com participação em diversos eventos: Sarau das Manas, Escangalho
Cultural, Estilhaços Literários e Gramophone em Poesia. Possui experiência como
professora de inglês e atuou como coordenadora pedagógica. Graduada em Zootecnia
pela Universidade Federal do Amazonas (2010) atuou em projetos de pesquisa nas área
de apicultura e ovinocultura. Atua também na organização de eventos culturais e

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sobre as/os Autoras/es 340


científicos como o I Seminário de Pesquisa e Música na Amazônia, Semana de Música
(UFAM), Simpósio de Produção de Ruminantes, Reunião Anual da Associação
Brasileira de Educação Agrícola Superior (ABEAS) e Semana de Zootecnia (UFAM).

Gibran Teixeira Braga - Bacharel em Ciências Sociais pelo Instituto de Filosofia e


Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro - IFCS/UFRJ. Mestre pelo
Programa de Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do
Rio de Janeiro - PPGSA/UFRJ, tendo sido bolsista pelo CNPQ. Doutor em
Antropologia Social, pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social da
Universidade de São Paulo - PPGAS/USP, com financiamento da FAPESP. Realizou
estágio de pesquisa em Freie Universitat (Berlim, Alemanha), financiado pela bolsa
BEPE, da FAPESP. Pós-doutorando pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia
Social da Universidade de São Paulo - PPGAS/USP, com financiamento da FAPESP.
Pesquisador do NUMAS (Núcleo de Estudos sobre Marcadores Sociais da Diferença)
do PPGAS/USP e do PAM (Pesquisas em Antropologia Musical), atua principalmente
nos seguintes temas: sociabilidade; sexualidade; masculinidade; estilo e música.

Jainara Oliveira - Doutoranda em Antropologia Social pelo PPGAS/UFSC, com bolsa


CNPq. Mestre em Antropologia Social pelo PPGA/UFPB. Bacharel em Ciências
Sociais pelo ICS/UFAL. Pesquisadora vinculada ao TRANSES – Núcleo de
Antropologia do Contemporâneo da UFSC e ao VISAGEM – Núcleo de Antropologia
Visual e da Imagem da UFPA. Autora do livro “Prazer e risco nas práticas homoeróticas
entre mulheres” (Appris, 2016). Coorganizadora do dossiê gênero, sexualidade,
emoção e moralidade [Revista Equatorial, 2015]. Tem interesses em pesquisas no
campo da Antropologia do Contemporâneo, particularmente sobre emoções, morais,
éticas, valores, virtudes e modos de subjetivação.

Jane Seviriano Siqueira – Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em


Antropologia Social, da Universidade Federal de Santa Catarina (PPGAS/UFSC).
Mestre em Ciências Sociais pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da
Universidade Federal do Espírito Santo (PPGCS/UFES). Graduada em Ciências
Sociais pela UFES. Participa no Grupo de Estudos em Oralidade e Performance
(GESTO) na UFSC. No mestrado realizou pesquisa de campo com grupos de jongos
sobre relatos e lugares de memórias. Na graduação pesquisou articulações entre samba,
memórias e carnaval. Foi bolsista em 2012 e 2013 no Programa de Extensão Jongos e
Caxambus: culturas afro-brasileiras no Espírito Santo e como tal acompanhou as
atividades para patrimônio cultural junto aos grupos de jongos e caxambus no Espírito
Santo.

José da Silva Ribeiro - Licenciado (graduado) em Filosofia pela Universidade do Porto


(1976), graduação em Cine Vídeo pela Escola Superior Artística do Porto (1989),
mestre em Comunicação Educacional Multimedia pela Universidade Aberta de
Portugal (1993) e doutorado em Ciências Sociais - Antropologia pela Universidade
Aberta de Portugal (1998). Foi professor da Universidade Aberta de Portugal. Tem
experiência na área de Antropologia, com ênfase em Antropologia Visual, atuando

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principalmente nos seguintes temas: antropologia visual, antropologia digital, cinema,


métodos de investigação em antropologia, interculturalidade e cultura afro-atlântica.
Tem realizado trabalho de campo em Portugal, Cabo Verde, Brasil, Argentina e Cuba.
Coordena a Rede Internacional de Cooperação Científica Imagens da Cultura /
Cultura das Imagens. Professor visitante da Universidade Mackenzie (Educação, Arte e
História da Cultura), da UECE, da UCDJB, da Universidade de Múrcia - Espanha
(ERASMUS) e da Universidade de Savoie - França, Universidade de S. Paulo. Coordena
o Grupo de Investigação antropologia visual /media e mediações culturais - CEMRI:
Universidade Aberta. Atualmente professor visitante da UFG - Faculdade de Artes
Visuais

Leonardo Lemos Zaiatz - Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Comunicação


da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) na linha de Estética e Culturas da
Imagem e do Som. Graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Cariri
(UFCA), foi proponente do projeto Praça Musical no âmbito da Pró-Reitoria de
Cultura (PROCULT), e atuou como integrante do projeto Cinema na Brasa.

Lisabete Coradini - Possui graduação em Ciências Sociais pela Universidade do Vale do


Rio dos Sinos (1987), Mestrado em Antropologia Social pela Universidade Federal de
Santa Catarina (1992) e Doutorado em Antropologia pela Universidad Nacional
Autónoma de México (2000). Atualmente é Professora Titular do Departamento de
Antropologia e da Pós-Graduação em Antropologia Social da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte. Coordenadora do NAVIS Núcleo de Antropologia Visual,
Diretório de Pesquisa/CNPq-UFRN. Realizou os seguintes filmes: No mato das
mangabeiras, Seu Pernambuco, cinema moçambicano em movimento, Sila, Mulher
Cangaceira, Mestre Zorro, entre outros. Membro da Comissão de Elaboração e de
Avaliação do Roteiro de Classificação da Produção Audiovisual/CAPES. Membro da
Comissão da Imagem e Som da ANPOCS nas gestões 2001-2002 e do GT Antropologia
Visual da ABA (2009-2010) e (2011-2012). Participa da REDE AMLAT (Rede Temática
de Cooperação Científica Comunicação, Cidadania, Educação e Integração na
América Latina - PROSUL. MCT/CNPq Nº 11/2008). Publicou: Praça XV espaço e
sociabilidade; Antropologia e Imagem; As cidades e suas Imagens. Organizou Dossiê
sobre Cinema (Revista BAGOAS). Atualmente é editora da Vivência Revista de
Antropologia (DAN/PPGAS). Tem experiência na área de Antropologia, com ênfase
em Antropologia Urbana e Audiovisual, atuando principalmente nos seguintes temas:
cidades, espaços, memórias, narrativas, cinema, cinema africano e o uso da imagem.

Lucca Perrone Totti - Lucca Totti (Rio de Janeiro, 1997) é Licenciando em Música pela
Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). É monitor do projeto de
extensão "Fábrica de Sons Eletrônicos", coordenado pelos professores Alexandre
Fenerich e Paulo Dantas. Atua como guitarrista no projeto Soundpainting Rio, usando
o método de improvisação dirigida para performances sonorizando filmes mudos,
acompanhando grupos de dança e performance, e promovendo festas dançantes. Com
o projeto, participou da II e III JISMA (Jornada Interdisciplinar de Som e Música no
Audiovisual), em apresentações na Cinemateca do MAM; do Seminário Arte e

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sobre as/os Autoras/es 342


Revolução Russa 100 Anos Depois, da PUC-Rio, no Cinema Odeon; do Festival do Rio
2017, também na Cinemateca do MAM; além de uma série de apresentações no
CineArte UFF e no Espaço MOVA. Como artista e performer, desenvolve trabalhos no
campo da Música Experimental e Arte Sonora, já tendo se apresentado no II Festival
ECRÃ, no MAM, e participado com uma instalação sonora na exposição "Turbulência
e Arte", montada pela UFRJ. Participou também do álbum "Percursos Sonoros",
lançado pelo Sonatório, projeto de extensão da Universidade Federal do Recôncavo da
Bahia- UFRB. Além disso, faz parte da banda de apoio do cantor e compositor Rodrigo
Torrero. Com o grupo, venceu o prêmio de "Melhor Canção pelo Júri Popular" do II
Festival de Música do Zimba, no Teatro Municipal Ziembinski.

Maria Eugenia Domínguez - Professora Associada do Departamento de Antropologia


e Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social- UFSC. Vice-coordenadora do
Núcleo de Pesquisa Musa-Núcleo de Estudos Arte, Cultura e Sociedade na América
Latina e Caribe (Cnpq-PPGAS/UFSC). Pesquisadora associada ao Instituto Nacional
de Ciência e Tecnologia Brasil Plural (INCT-IBP). Coordenadora do Curso de
Graduação em Antropologia, CFH-UFSC. Atua principalmente nos seguintes temas:
antropologia, arte, etnomusicologia, ritual, povos indígenas do Chaco.

Nélio Ribeiro Moreira - Doutorando em Antropologia Social (PPGSA/UFPA). Possui


Mestrado em Antropologia Social (PPGSA/UFPA/2014), Graduação em Bacharelado
e Licenciatura Plena em História (UFPA/2004) e Especialização em História Social da
Amazônia (UFPA/2007). Trabalhou como pesquisador no Museu do Estado do Pará,
como professor de História na Universidade Vale do Acarau/IDESP e na Faculdade
Instituto de Ensino Superior e Serviço Social - IESSB. É professor efetivo da Rede
Pública de Ensino do Estado do Pará desde 2009. Atua como professor de Ciência
Política no curso de Bacharelado em Direito da Faculdade Uninassau. Atuou como
Professor Orientador no Curso de Especialização em Educação (EPDS/ICED/UFPA),
no PARFOR UFOPA e PARFOR UFRA. Foi Professor Substituto de História na
Escola de Aplicação da UFPA (EA/UFPA) e de História e Cultura na Faculdade de
Artes Visuais da UFPA (FAV/ICA/UFPA). Tem experiência na área de Metodologia do
Ensino de História, História Cultural, História e Música, Antropologia, História e
Meios de Comunicação, Teoria Antropológica e Antropologia Urbana. É integrante do
Grupo de Pesquisa História, Cultura e Meios de Comunicação na Amazônia no século
XX UFPA/CNPQ.

Oliver Guimarães Armando Bastos - Mestre em Sistemas de Gestão pela UFF (2014),
atualmente cursa Licenciatura em Música na UNIRIO. Possui Graduação em
Comunicação Social - Publicidade e Propaganda - Faculdades Integradas Hélio Alonso
(2005). Atua como técnico administrativo do Centro Federal de Educação Tecnológica
Celso Suckow da Fonseca.

Pedro Luiz Fadel Ferreira - Pedro Fadel é Licenciando em Música pela Universidade
Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO). Atua como bolsista PROATEC no
projeto "Juventude, prática musical e expressão: vivendo e criando música com jovens",

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ISSN: 2446-8290

sob a orientação da professora Ilana Assbú Linhales Rangel


(http://lattes.cnpq.br/4403144875598536) e há 10 anos participa como
instrumentista do conjunto musical "AH! Banda", vinculado ao projeto citado
anteriormente também coordenado pela professora Ilana Linhales. com AH! Banda
participou de inúmeros shows, gravou dois DVDs, "Brasileríssimo" (2013) e "Elas- canto
porque o instante existe" (2018). É autor do caderno de estudos contendo a pesquisa
historiográfica e partituras também referentes ao repertório de "Elas- canto porque o
instante existe. foi aluno do guitarrista Isidoro Kutno durante cinco anos e, atualmente,
estuda violão de sete cordas com Rafael Mallmith e violão erudito com Maria Haro
(http://lattes.cnpq.br/8560431642124435). Como instrumentista acompanhou
artista como o trombonista Vittor Santos e atualmente faz parte da banda de apoio que
acompanha o cantor e compositor Rodrigo Torrero.

Ribamar José de Oliveira Júnior - Mestrando da linha de Dinâmicas e Práticas Sociais


do Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio
Grande do Norte (UFRN) e especializando em Gênero e Sexualidade na Educação pela
Universidade Federal da Bahia (UFBA), Ribamar José de Oliveira Junior é especialista
em Língua Portuguesa e Literatura pela Faculdade de Juazeiro do Norte (FJN) e
graduado em Jornalismo pela Universidade Federal do Cariri (UFCA). Foi proponente
do projeto “Sertão Transviado: Outros Cariris” apoiado pelas Pró-Reitoras de Cultura
(PROCULT) e de Extensão (PROEX) e pesquisador do Núcleo de Estudos
Comparados em Corporeidade, Alteridade, Ancestralidade, Gênero e Gerações
(NEGACE) da UFCA. Atua como monitor do projeto de extensão Lide Jornal -
Jornalismo de Profundidade Multimídia e Transmídia da UFRN. Tem experiência
como editor-adjunto da Revista Charm, jornalista do Jornal Classificados da Hora e
repórter na Cariri Revista. Autor do livro O Amor é uma Cãibra, publicado pela
Editora Multifoco.

Rodrigo Bastos Torrero Diaz - Bacharel em Ciências Sociais pela Fundação Getúlio
Vargas (FGV), com experiência profissional nas áreas de memória, história, audiovisual
e organização de acervo documental. Atualmente é graduando do curso de Licenciatura
em Música da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

Rondinell Aquino Palha - Graduado em História pela Universidade Norte do Paraná


(2018). Possui experiência na área de História, com ênfase em História Local.
Graduando em licenciatura em Letras-Língua Portuguesa na Universidade Federal do
Pará - UFPA.É pesquisador na áreas de cultura popular e ambientes, especialmente na
região do Nordeste Paraense, na Amazônia Brasileira.

Sara Nuño de la Rosa García - Doutoranda em Antropologia Social -PPGAS/UFRN.


Mestra em Antropologia Social -PPGAS/UFRN. Pesquisadora do NAVIS - Núcleo de
Antropologia Visual da UFRN. Realizou doutorado sanduíche (outubro de 2018 -
janeiro de 2019 no Centre d'anthropologie sociale, da Université de Toulouse 2, Jean
Jaurès LISST. Desenvolve pesquisas sobre samba, forró, migração, antropologia urbana
e visual. É compositora, cantora e dançarina.

Dossiê: Música e modos de subjetivação em perspectiva antropológica

Sobre as/os Autoras/es 344


Tatyana de Alencar Jacques - possui Graduação e Pós-doutorado em Música pela
Universidade do Estado de Santa Catarina (UDESC). É Mestre e Doutora em
Antropologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). É
pesquisadora do Núcleo de Estudos de Arte, Cultura e Sociedade da América Latina e
Caribe (MUSA/UFSC), e do Grupo de Pesquisa em Música Cultura e Sociedade
(MusiCS/UDESC). Desenvolve pesquisas sobre fonografia e técnicas de inscrição do
som, música rock no Brasil, som, imagem e imaginário, som no cinema, história da
música e do cinema no Brasil e música e gênero. É compositora, pianista e violoncelista.

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