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MATACÃO, UMA Karen Tei Yamashita é uma nissei americana que veio ao Brasil

pesquisar a imigração japonesa. Após casar-se com um brasileiro,


LENDA TROPICAL* viveu em nosso país por aproximadamente dez anos. Ao retornar
aoseu país, iniciou sua carreira de romancista, já tendo escrito dois
Karen Tei Yamashita livros de ficção que tratam da integração dos japoneses na cultura
Editora Zipango, São Paulo, brasileira: Brazil maru (1992) e Through the arc of the rainforest
2003 (254 páginas) (1990). Ambos tiveram excelente receptividade e receberam prêmios nos
Estados Unidos, principalm ente este último', que traduzi para o
por Cristina Stevens* português com o título Matacão, uma lenda tropical, e traz inovações
Universidade de Brasília tanto na sua parte formal quanto na seleção do conteúdo.
. Escrito na linha do realismo fantástico, tradição que começa a
ser identificada com a produção ficcional latino-americana, o texto
transita não só entre gêneros aparentemente irreconciliáveis como
sátira, comédia, nostalgia e romance documental e engajado; ele
consegue incorporar também, e com bastante mestria, elementos
aparentemente irreconciliáveis das culturas japonesa, americana,
eu rop éia e b rasileira. O resultado deste ousado e criativo
empreendimento é surpreendente, e cativa a atenção do leitor do início
ao fim - e, poderíamos dizer, até depois do seu final.
Com uma certa carga de humor negro, Matacão retrata um
elenco bizarro de personagens, incluindo um ingênuo japonês com
uma bola que flutua a alguns centímetros de sua cabeça e que funciona
como uma espécie de 'cérebro eletrônico'; um CEO estadunidense que
possui uma estranha anatomia: três braços, adequados à anatomia de
sua namorada, uma ornitóloga- francesa com três seios; um matuto
brasileiro que descobre a arte da cura através do uso de penas de aves
da Amazônia. Ao final de um enredo fantástico, os personagens são
içados à riqueza e à fama, mas depois vêm os desastres - pessoais e
ecológicos - que acabam por destruir a floresta tropical e todos os
pássaros do Brasil.
Classificado pela crítica estadunidense como "bizarro e barroco,
engraçado e triste, o realismo fantástico de Karen Tei Yamashita pode
dizer mais sobre como salvar florestas tropicais que a sua contraparte
não ficcional" (Utne Reader). Matacão também antecipa algumas
problemáticas de uma nova corrente teórica: o eco-criticism, o qual
* Recebido em agosto de 2005. articula produções ficcionais que têm trabalhado questões ligadas ao
* Email: cstevens@unb.br
meio-ambiente.
Cristina Stevens

O livro tem provocado elogios na exploram basicamente as ricas experiências da


comunidade acadêmica. Tive a oportunidade de im igração japonesa para estes dois países, as
apresentá-lo em quatro eventos: o Congresso da enormes dificuldades enfrentadas, a corajosa e
Associação Brasileira de Estudos Am ericanos determinada superação dessas dificuldades, o
(Porto Alegre, junho/96), a Am erican Studies complexo processo de adaptação à cultura ocidental.
A ssociation Annual Conference (W ashington, O livro de Yamashita dá um ousado passo
ou tu bro/97), o XXX Sem inário N acional de adiante e explora um mundo essencialm ente
Professores U niversitários de Literaturas em ficcional, construído com extrema criatividade por
Língua Inglesa (São Paulo, 1998) e o Simpósio uma escritora que dem onstra conhecim ento
Internacional Brasil 500 Anos de Descobertas extraordinário dos mitos, valores e comportamentos
Literárias (Brasília, 2000). O trabalho de Yamashita das culturas brasileira, norte-americana e japonesa.
tam bém é analisado no livro que organizei: Yamashita desconstrói as nossas expectativas de
Quando o Tio Sam pegar no tamborim: uma encontrar a n arrativa étn ica trad icio n al; ela
visão transcultural do Brasil (Brasília: Editora transcende estes conhecim entos, mas leva-os
Plano, 2000), que analisa representações do Brasil consigo na criação de uma dimensão imaginária
na ficção estadunidense. Também incluí este livro surpreendente, onde essas três culturas estão
no meu curso de pós-graduação em Literatura imbricadas de forma caleidoscópica.
norte-americana e a reação dos estudantes foi E o mundo que ela imagina continua em
extremamente positiva; concluí a orientação de nossa mente, mesmo após encerrarmos a leitura do
uma dissertação de mestrado, "A interculturalidade seu romance.
no ensino de língua inglesa", onde este livro da
Yamashita constitui um dos capítulos principais.
Outra dissertação sobre o trabalho da Yamashita
foi defendida na Universidade de São Paulo, em
2001, para a qual fui convidada a compor a banca.
Tudo isto me estim ulou a propor a
tradução deste material para a língua portuguesa,
e o livro foi publicado pela Editora Zipango (São
Paulo), especializada em livros que tratam de
temas ligados ao Japão.
Em função da significativa literatura sobre
o assunto, consigo identificar o livro de Yamashita
como representando um turning point na produção
literária dos japoneses no Brasil e nos Estados
Unidos. Esta produção tinha se caracterizado, até
então, como relatos autobiográficos, com conotações
históricas, antropológicas e sociológicas, que

Cerrados: Revista do Programa de Pós-Graduação em Literatura, n. 20, ano 14,2005, p. 179-180

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