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volta reflexiva complacente, e meio decadente, da ciência


sobre ela mesma?, etc" Evidentemente, não concordo. Penso
que esse trabalho tem virtudes científicas; e que, para as ciên-
cias sociais, a análise sociológica da produção do produtor é
imperativa. Com o risco de simultaneamente surpreender e A dissolução do religioso*
decepcionar muitos de vocês, que atribuem à sociologia uma
função profética, escatológica, acrescentaria que esse gênero
de análise poderia ter também uma função clínica e até tera-
pêutica: a sociologia é um instrumento de auto-análise extre-
mamente poderoso que permite a cada um compreender
melhor o que é, dando-lhe uma compreensão de suas próprias
condições sociais de produção e da posição que ocupa no
mundo social. Isso com certeza é absolutamente decepcio-
nante, e não é de modo algum a visão que se costuma ter da
sociologia. A sociologia também pode ter outras funções, Talvez o meu papel seja menos o de concluir, de encerrar,
políticas ou de outro tipo, mas desta tenho mais certeza. Disso de colocar um ponto final, do que o de indicar um novo ponto
II!.I;
decorre que esse livro exige uma determinada forma de leitura. de partida. Vou colocar uma série de questões semi-impro-
III Não se trata de lê-Io como um panfleto nem de usá-lo de um visadas que podem causar confusão, mas que me parecem
modo autopunitivo. A sociologia costuma ser usada seja para indispensáveis para voltarmos à verdadeira origem de nossas
açoitar os outros, seja para se autoflagelar. Na verdade, trata-se discussões. Parece-me de fato necessário questionar as de-
de dizer: "Eu sou o que sou. Não é o caso nem de elogiar nem finições com as quais abordamos o problema. De fato, o tema
de reprovar. Simplesmente, isso implica todo tipo de predis- proposto não seria parcialmente inadequado? Seria preciso falar
posição e, quando se trata de falar do mundo social, erros de "novos clérigos"? Meu primeiro movimento teria sido dizer
prováveis". Tudo isso, que me faz beirar a pregação - e Deus que esse vocabulário é perigoso. E, no entanto, a própria con-
sabe que não é o gênero que me agrada -, precisava ser dito fusão do conceito, que permite ir de uma definição muito
porque, se meu livro fosse lido como um panfleto, ele se estreita, na qual a palavra "clérigo" é tomada no sentido cor-
tornaria detestável para mim, e eu preferiria que o quei- rente de "padre", às definições muito amplas e vagas, revelou-
massem. se funcional porque permitiu que o grupo produzisse, por seu
próprio funcionamento, uma construção do objeto bastante
adequada ao que se observa na realidade social, isto é, um
espaço - o que eu chamaria de campo - no interior do qual
há uma luta pela imposição de uma definição do jogo e dos
trunfos necessários para dominar nesse jogo. Colocar logo de
saída o que está em jogo nesse jogo seria suprimir as questões
que os participantes levantaram aqui porque elas realmente se
colocam na realidade, no espaço dos médicos, dos psicanalis-

• Conferência pronunciada em Estrasburgo em outubro de 1982. publicadaem


Les Nouveaux Clercs, Genebra, Labor et Fides, 1985, posfácio.
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tas, dos assistentes sociais, etc. E levar a sério essas questões, Descreveram-nos a redefinição das competências no inte-
em vez de considerá-Ias resolvidas, significa recusar as rior do campo religioso que resulta do fato de que os próprios
definições anteriores do jogo e do que está em jogo; significa, limites entre o campo religioso e os outros campos, e em par-
por exemplo, operar uma mudança absolutamente radical em ticular com a medicina, foram transformados. Hoje em dia já
relação a Max Weber, afirmando que o campo religioso é um não se percebe muito bem onde termina o espaço em que
espaço no qual agentes que é preciso definir (padre, profeta, reinam os clérigos (no sentido restrito de clero). Ao mesmo
feiticeiro, etc.) lutam pela imposição da definição legítima não tempo, toda a lógica das lutas se acha transformada. Por exem-
só do religioso, mas também das diferentes maneiras. de plo, no confronto com os leigos, os clérigos são vítimas da ló-
desempenhar o papel religioso. gica do cavalo de Tróia. Para se defenderem contra a concor-
A definição que estava presente, de modo implícito, e por- rência de tipo novo que certos leigos Ihes fazem indiretamente
tanto vago, no tema proposto funcionou como princípio de _ os psicanalistas, por exemplo -' eles são obrigados a
produção coletiva de uma problemática que agora eu queria emprestar armas do adversário, expondo-se a serem levados a
tentar resgatar. Definição histórica inconscientemente universa- aplicá-Ias a si mesmos; ora, se os padres psicanalisados co-
lizada, que só é adequada para um estágio histórico do campo, meçam a encontrar na psicanálise a verdade do sacerdócio,
a definição de tipo weberiano, que sustentou de modo mais ou não vemos de que maneira eles dirão a verdade pastoral da
menos obscuro a maior parte das interrogações, caracteriza o psicanálise.
clérigo, cuja encarnação ideal-típica é o padre católico, como O verdadeiro objeto da pesquisa coletiva que se instaurou
mandatário de um corpo sacerdotal que, enquanto tal, é deten- aqui a propósito de um objeto obscuro e mal definido seria
tor do monopólio da manipulação legítima dos bens de sal- então, a meu ver, o confronto de dois estágios do campo reli-
vação e que delega a seus membros, tenham eles carisma ou gioso em suas relações com os outros campos, e, ao mesmo
não, o direito de gerir o sagrado. Partindo dessa definição tempo, de dois estágios dos limites do campo religiosa: limites
implícita do clérigo, nós nos perguntamos se existem "novos muito nítidos, claros, visíveis (a batina) num caso, ou, ao con-
clérigos" e, ao mesmo tempo, novas formas de luta pelo trário, fluidos, invisíveis, no outro caso. Desse modo, hoje se
monopólio do exercício da competência legítima. Se me parece passa, por gradações insensíveis, dos clérigos à antiga (e no
indispensável evitar o erro positivista da definição preliminar interior com todo um continuum) aos membros das seitas, aos
- o que fizemos aceitando a noção vaga de "novos clérigos" psicanalistas, aos psicólogos, aos médicos (medicina psicos-
-, é porque, precisamente, todo campo religioso é o lugar de somática, medicina lenta), aos sexólogos, aos professores de
uma luta pela definição, isto é, a delimitação das competências, expressão corporal, de esportes de lutas marciais, aos conse-
competência no sentido jurídico do termo, vale dizer, como lheiros de vida, aos assistentes sociais. Todos fazem parte de
delimitação de uma alçada. Assim, a questão que foi colocada, um novo campo de lutas pela manipulação simbólica da con-
através da comparação entre os antigos clérigos, definidos pela dução da vida privada e a orientação da visão de mundo, e
universalização de um caso histórico, e os novos clérigos, intui- todos colocam em prática na sua ação definições concorrentes,
tivamente percebidos, talvez fosse na verdade a questão da antagônicas, da saúde, do tratamento, da cura dos corpos e das
diferença entre dois estágios do campo religioso e da luta que almas. Os agentes que estão em concorrência no campo de
se desenrola nele pela definição das competências ou, mais manipulação simbólica têm em comum o fato de exercerem
exatamente, entre dois estágios do campo religioso em suas uma ação simbólica. São pessoas que se esforçam para mani-
relações com os outros campos voltados para a cura dos cor- pular as visões de mundo (e, desse modo, para transformar as
pos e das almas, em suma, entre dois estágios dos limites do práticas) manipulando a estrutura da percepção do mundo
campo religioso. (natural e sociaD, manipulando as palavras, e, através delas, os
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princípios da construção da realidade social (a chamada teoria psicoterapeuta é uma coisa bem diferente de falar de prazer
de Sapir-Worf, ou de Humboldt-Cassirer, segundo a qual a rea- como se fala a um padre. Quando a cura das almas é confiada
lidade é construída através das estruturas verbais, é totalmente aos psicólogos ou aos psicanalistas, de normativa ela se torna
verdadeira quando se trata do mundo social). Todas essas pes- positiva, da busca de normas desliza-se para uma pesquisa de
soas que lutam para dizer como se deve ver o mundo são técnicas, de uma ética para uma terapêutica. O fenômeno novo
profissionais de uma forma de ação mágica, que, mediante é o surgimento de 'profissibnais da cura psicossomática que
palavras capazes de falar ao corpo, de "tocar", fazem com que fazem moral acreditando que estão fazendo ciência, que mora-
se veja e se acredite, obtendo desse modo efeitos totalmente lizam a pretexto de análise. "Conselheiros de vida", analisados
reais, ações.
por Karl Wílhelm Dahm, "trabalhadores sociais", estudados por
Assim, onde se tinha um campo religioso distinto tem-se a Rémy, e outros médicos de todas as espécies, professores de
partir de então um campo religioso de onde se sai sem saber, ginástica ou de expressão corporal, mestres de esportes orien-
ainda que apenas biograficamente, já que muitos clérigos se tais, psicólogos e sobretudo psicanalistas, outros tantos agentes
tornaram psicanalistas, psicólogos, assistentes sociais, etc., e que vêm concorrer com o clérigo à antiga no seu próprio ter-
exercem novas formas de cura das almas com um estatuto de reno, redefinindo a saúde e a cura, as fronteiras entre a ciência
leigos e sob uma forma laicizada; assiste-se então a uma e a religião (ou a magia), a cura técnica -e a cura mágica (com
redefinição dos limites do campo religioso, à dissolução do o reconhecimento atribuído a técnicas de cura, tais como a su-
religioso em um campo mais amplo, que se acompanha de gestão, a transferência e outras formas, mais ou menos transfi-
uma perda do monopólio da cura das almas no sentido antigo, guradas e racionalizadas, de "possessão" mágica).
pelo menos ao nível da clientela burguesa. No campo assim definido, isto é, no campo mais amplo da
Nesse campo de cura das almas ampliado, e de fronteiras manipulação simbólica, a ciência social é parte interessada. Daí
indefinidas, assiste-se a uma luta de concorrência nova entre a dificuldade dos sociólogos em pensar esse campo. Primeiro
agentes de um tipo novo, uma luta pela redefinição dos limites porque, para pensá-Ia enquanto tal, é preciso pensar a posição
da competência. Uma das propriedades da definição corrente que se ocupa nele. E descobrir que o jogo que se joga nele
do clero à antiga está contida na noção de cura das almas. O tem qualquer coisa de ambíguo e mesmo qualquer coisa de
implícito em nossa representação do clérigo é que ele se ocupa suspeito: em parte, pelo fato de o campo religioso ter-se dis-
das almas por oposição aos corpos (que são deixados não só solvido em um campo de manipulação simbólica mais amplo,
ao feiticeiro, ao curandeiro, mas também ao médico). L ..] A todo esse campo está colorido de moralismo e os próprios
desagregação da fronteira do campo religioso a que me referi não-religiosos cedem com freqüência à tentação de transformar
parece ligada a uma redefinição da divisão da alma e do corpo saberes positivos em discursos normativos capazes de exercer
e da divisão correlativa do trabalho de cura das almas e dos uma forma de terrorismo legitimado pela ciência. De fato,
corpos, oposições que não têm nada de natural e que são his- defendemo-nos melhor contra uma moral do que contra uma
toricamente constituídas. Ela poderia ser correlativa do fato de (falsa) ciência dos costumes, contra uma moral disfarçada em
que uma parcela da clientela burguesa dos vendedores de ciência.
serviços simbólicos começou a pensar como pertencente à Para terminar, também seria preciso interrogar-se sobre os
ordem do corpo coisas que até então costumavam ser fatores simultaneamente internos ao campo religioso, ao cam-
imputadas à ordem da alma. Talvez se tenha descoberto que po do poder simbólico e, mais amplamente, ao campo social,
falar do corpo seria uma maneira de falar da alma - o que que podem explicar essas mudanças. Uma das importantes
alguns sabiam há muito tempo -, mas de falar dele de um mediações é a generalização do ensino secundário e o acesso
modo totalmente diferente: falar de prazer como se fala a um mais amplo, especialmente para as mulheres, ao ensino supe-
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rior. A elevação generalizada do nível de instrução está na religião designaram como "popular", essa religião ritualista
origem de uma transformação da oferta de bens e serviços de sobre a qual todo mundo está de acordo para dizer que ela
salvação das almas e dos corpos (com a intensificação da con- está em vias de desaparecimento. O clérigo tradicional só con-
corrência, que é correlativa da multiplicação de produtores) e serva o monopólio sobre o ritual social: ele tende a não ser
de uma transformação da procura (com o surgimento de uma mais do que o organizador das cerimônias sociais - enterros,
demanda maciça de "religiosidade de virtuoses"). As novas casamentos, etc. -, sobretudo no campo. Também esse ritual
seitas religiosas de grande importe intelectual que floresceram está se intelectualizando: ele se torna cada vez mais verbal, isto
em particular nos Estados Unidos, e sobre as quais ]acques é, reduzido às palavras, e palavras que funcionam cada vez
qutwirth falou aqui (há um lado PSU em certas seitas, um ·lado menos na lógica da coerção mágica, como se a eficácia da lin-
"sectário" no PSU ou nos grupelhos trotskistas), têm a ver com guagem ritual devesse se reduzir à ação do sentido, isto é, à
o fato de que um certo número de pessoas, graças à elevação compreensão.
do nível de instrução, tiveram condição. de ter acesso pessoal- Concluindo, parece-me que é preciso levar a sério o fato
mente à produção cultural, à auto gestão espiritual. A recusa da de que o clérigo tradicional está inserido num campo pelo qual
delegação baseada no sentimento de ser o melhor porta-voz de é coagido, bem como o fato de que a estrutura desse campo
si mesmo leva a todos os tipos de agrupamentos que são ajun- mudou e, simultaneamente, o posto. Na luta pela imposição da
tamentos de pequenos profetas carismáticos. Outro traço do boa maneira de viver e ver a vida e o mundo, o clérigo reli-
funcionamento dessas seitas que está muito ligado ao nível de gioso, de dominante tende a se tornar dominado, em proveito
instrução: todas as técnicas de manifestação. O movimento de clérigos que se autorizam junto à ciência para impor ver-
estudantil renovou o arsenal das técnicas de protesto, que não dades e valores que evidentemente não são nem mais nem
havia se alterado desde o século XIX. Tudo isso supõe um sóli- menos científicos do que as verdades e valores das autoridades
do capital cultural incorporado, e, em termos mais gerais, uma religiosas do passado.
boa parte do que descrevemos não pode ser compreendida
sem fazer com que o efeito da elevação do nível de instrução
intervenha ao mesmo tempo sobre os produtores (por exem-
plo, os clérigos católicos) e também sobre os consumidores. A
mesma causa age simultaneamente sobre a oferta e a procura;
disso resulta um ajustamento da oferta e da procura, que não é
buscada enquanto tal nas e pelas estratégias de transação (o
que constitui uma outra ruptura fundamental com Weber).
Com certeza, pode ser visto um outro fator de explicação,
evocado por Thomas Gannon, na derrocada dos controles
coletivos, ligada a fenômenos como a urbanização e a priva ti-
zação da vida. Isso diria respeito em particular à pequena bur-
guesia: o retiramento para o privado, que é acompanhado de
uma psicologização da experiência e do nascimento de uma
demanda de serviços de salvação de um tipo novo, está estrei-
tamente ligado à derrocada dos quadros coletivos que con-
trolavam os clérigos, mas também sustentavam os leigos corres-
pondentes e tornavam possível a religião que os sociólogos da

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