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ISSN 2177-1014

revista da fau ufrj


ano 2010 número 2

SUBÚRBIOS
CARIOCAS
foto: Pedro Engel
UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Aloísio Teixeira
Reitor

Léo Affonso de Moraes Soares


Decano Centro de Artes e Letras

FACULDADE DE ARQUITETURA E URBANISMO


Gustavo Rocha-Peixoto
Diretor

José Barki
Vice-diretor

Cláudia Nóbrega
Diretor Adjunto de Graduação

Cristovão Duarte
Diretor Adjunto de Extensão

Guilherme Lassance
Coordenador Pedagógico de Graduação

Rubem Luiz Mascarenhas


Coordenador Executivo de Graduação

Jacques Sillos
Coordenador de Intercâmbio

Ana Palhares
Chefe do Setor de Atividades Gerenciais

Ceça de Guimaraens
Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Arquitetura

Lilian Fessler Vaz


Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Urbanismo

Antônio Maurício Pereira da Silva


Chefe do Departamento de Análise e Representação da Forma

Vera Regina Polillo


Chefe do Departamento de Estruturas

Maria Clara Amado Martins


Chefe do Departamento de História e Teoria

Maria Júlia de Oliveira Santos


Chefe do Departamento de Projeto de Arquitetura

Luiz Manoel Cavalcanti Gazzaneo


Chefe do Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente
Apoio:

Adriano Paiter Fonseca


Chefe do Departamento de Tecnologia da Construção
REVISTA DA FAU UFRJ
Número 2 - Ano 2009
Subúrbios Cariocas

Cristovão Duarte
Guilherme Lassance
Laís Bronstein
Editores

Cláudia Nóbrega
Cristovão Duarte
Guilherme Lassance
Gustavo Rocha-Peixoto
Jacques Sillos
José Barki
José Ripper Kós
Laís Bronstein
Conselho Editorial

Pedro Engel
Capa, diagramação e projeto gráfico

Pedro Engel
Fotografias

Agradecimentos:
José Mauro Albino
Ana Palhares
Vanda Moreira

ISSN: 2177-0893
foto: Pedro Engel

Subúrbios Cariocas 1
2 Revista da FAU UFRJ_número 2
Sumário
04 Abertura da Semana da Fau – Subúrbios Cariocas
Cristovão Duarte

depoimentos 08 O conceito carioca de subúrbio: um rapto ideológico


Nelson da Nobrega Fernandes

16 Subúrbios e periferia: a ferrovia na construção da Região Metropolitana do Rio de Janeiro


Antônio José Pedral Sampaio Lins

26 Algumas considerações sobre o subúrbio


José Barki

36 Um novo olhar sobre os entornos da cidade


Rafael Mattoso

42 O hip hop, o rap e o funk: as vozes desassombradas da periferia


Regina Meirelles

48 Entrevista
Djamel Klouche

painel 52 Antigos subúrbios, novas periferias: a questão territorial do projeto


Guilherme Lassance e Fabiana Izaga

58 Pesquisa Acadêmica – A FAU e o subúrbio de Madureira: parceiros para um próximo samba?


Cláudia Nóbrega e Júlio Rodrigues

64 Idéias para a Avenida Brasil


Lina Mota Corrêa

68 Manguinhos como pôde ser, ou: pequena história esquecida do subúrbio carioca
Alexandre Pessoa

74 Autointervenções nas residências econômicas: um estudo no bairro de Higienópolis, Rio de Janeiro


Marcelo Silveira

ações 82 Planejando a cidade em pedaços: projeto Rio Cidade Méier, projeto de humanização
da Avenida Suburbana e projeto Rio Cidade Irajá
Luiz Carlos Toledo e Vera Regina Tângari

90 De Bangu a Aubervilliers: política cultural e gestão urbana contemporâneas


Márcia Ferrán
Abertura Semana da FAU 2007 - Subúrbios Cariocas* 
Cristovão Duarte

Boa tarde a todos! professores, alunos e funcionários;


aqui não existem as disciplinas
Estamos mais uma vez reunidos para nem a separação entre conteúdos
celebrar e fazer acontecer a nossa programáticos; aqui, por um momento,
Semana da FAU, este ano dedicada ao não existem departamentos, nem
tema dos Subúrbios Cariocas. as importantes especialidades pós-
A Semana da FAU é, sem sombra de graduantes que fazem parte da FAU.

)) imagem s
dúvida, o evento mais importante do Aqui, pelo menos enquanto durar a
magia do encantamento (e espero que
calendário anual da nossa Escola. Por
ela se instaure de modo cada vez mais
isso, durante esta semana, as aulas são
radical e permanente), somos todos
suspensas, a entrega de trabalhos é
FAU e atendemos pelo único nome de
adiada e todos os membros da nossa
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da
comunidade acadêmica são convidados
Universidade Federal do Rio de Janeiro.
a participar ativamente das atividades
programadas. Por isso a Semana da FAU é um encontro
marcado entre alunos, professores
Parar uma escola como a FAU, com
e funcionários, no qual a FAU vem
cerca de 1.600 pessoas, entre alunos de
conhecer a FAU e celebrar o fato de
graduação e pós-graduação, professores
estarmos todos juntos construindo
e funcionários, não é uma tarefa
uma Universidade pública e gratuita,
propriamente simples. E mais, representa
comprometida, no campo da atuação
uma decisão grave, sobre a qual eu
profissional do arquiteto e urbanista,
gostaria de fazer algumas rápidas, mas
com a transformação da realidade
necessárias considerações.
com vistas à construção de um mundo
Em primeiro lugar, a Semana da FAU melhor. Isso se traduz, no caso da FAU,
não significa (nem pode significar!) pelo enfrentamento e discussão de temas
a paralisação das nossas atividades relativos aos problemas sócio-espaciais
acadêmicas. Ao contrário, ela é um vividos pela sociedade brasileira em
momento privilegiado de afirmação do nossas cidades.
nosso papel como Universidade Pública, O novo formato da Semana da FAU,
comprometida com a qualidade do proposto pela Direção da Escola e por
Ensino, da Pesquisa e da Extensão. nós assumido desde o ano passado,
É isso que estamos celebrando aqui. quando tivemos o Seminário Habitar a
Cidade, dedicado ao tema das favelas,
Por isso a Semana da FAU é também (e
resulta, em boa medida, desta reflexão
sobretudo!) uma festa. Um encontro da
a cerca das nossas práticas acadêmicas e
FAU consigo mesma, sem dispensar, é
do nosso compromisso com a qualidade
claro, alguns convidados especiais que
do ensino de arquitetura e urbanismo.
se dispuseram a prestigiar e abrilhantar
nossa festa. A idéia consiste, basicamente, na
proposição de tema central de
A quebra de rotina é um requisito da
reconhecido interesse para o nosso
festa. A aparente interrupção de nossas
campo de atuação, que funcione como
atividades cotidianas desencadeia uma
eixo condutor da programação da
metamorfose, uma transformação
Semana. Em torno do tema escolhido,
no espaço-tempo, uma espécie de
transformado em objeto de estudo, se
encantamento. É aqui que a FAU fica
constrói uma discussão transdisciplinar
mais inteira e parecida com ela mesma!
envolvendo professores, pesquisadores,
Aqui não há diferenciação entre alunos
alunos e profissionais que possam
que cursam períodos distintos; aqui
contribuir para ampliar a nossa
se atenuam (tendendo a desaparecer
compreensão sobre aquele assunto.
na própria festa) as classificações
hierárquicas e institucionais entre Uma das apostas, implícitas na linha
* Transcrição da palestra de abertura

4 Revista da FAU UFRJ_número 2


semana da fau ((

Subúrbios Cariocas 5
6 Revista da FAU UFRJ_número 2
de trabalho assumida pela Diretoria preconceituosas e depreciativas Na terceira faixa teremos três mesas-
Adjunta de Extensão, é fazer com que que acabam por revelar, ainda que redondas: na terça-feira, a mesa será
esta grande mobilização da comunidade involuntariamente, o caráter excludente formada por professores da FAU
acadêmica em torno da discussão de e segregacionista do processo de apresentando uma pesquisa acadêmica
temas fundamentais repercuta dentro urbanização que parte e reparte a nossa desenvolvida com alunos do Trabalho
das nossas salas de aula, contagiando cidade em tantos pedaços distintos e Integrado 1 nos bairros de Madureira
os conteúdos das disciplinas, arejando incomunicáveis. e Oswaldo Cruz , seguida de uma
e renovando o debate das idéias e discussão conceitual sobre o tema dos
aproximando o processo de ensino- Mas a verdade é que quando nos Subúrbios; na quarta-feira, teremos
aprendizagem das reais necessidades do colocávamos a fatídica pergunta “afinal, uma mesa-redonda sobre O Patrimônio
país. o que é o subúrbio?” surgiam, entre Cultural dos Subúrbios e na quinta-feira,
nós, opiniões divergentes e, mesmo, receberemos a Prof. Regina Meirelles da
A preparação da Semana começa com desencontradas. Se tentávamos Escola de Música da UFRJ, com a palestra
quase um ano de antecedência, a partir delimitá-lo geograficamente a confusão “O hip-hop, o rap e o funk: as vozes
da criação de uma comissão formada aumentava. Surgiam novas perguntas desassombradas da periferia” e um Bate-
por professores, alunos e profissionais sem respostas fáceis, como por exemplo: papo sobre Cultura Popular e Subúrbio
que tenham familiaridade com o tema onde fica o subúrbio? O Leblon é um com o escritor, jornalista e crítico de
ou, mesmo, interesse em participar subúrbio? A Barra é subúrbio? Quando música popular Sergio Cabral.
das discussões e da organização do um bairro deixa de ser subúrbio?
evento. Essa é a parte, podem acreditar, Na quarta faixa de horário, teremos a
mais interessante dos trabalhos de Aos poucos fomos nos dando conta Maratona do CAFAU que já foi iniciada
preparação da Semana. A comissão que a nossa dificuldade em responder com um passeio de trem até Marechal
organizadora funciona como um grupo essas perguntas básicas revelava a Hermes, com direito a uma feijoada
de estudos, discutindo idéias, trocando imensa riqueza do tema escolhido na Quadra da Portela, em Madureira,
textos e sugerindo várias possibilidades para a Semana da FAU. A Comissão seguida de muito samba. O passeio foi
de abordagem do tema. A partir das Organizadora, a partir das pesquisas acompanhado pelos professores William
discussões travadas pela comissão, vai desenvolvidas e dos autores estudados, Bittar e Ricardo Esteves da FAU e por
se desenhando a própria arquitetura do decidiu então que o Seminário Subúrbios um convidado especial, o cineasta Luís
Seminário. Cariocas (dito assim no plural, com todos Claudio, que coordenará uma oficina
os “esses”) deveria não apenas explicitar de áudio-visual da qual resultará um
E aqui cabe um reconhecimento a todos as nossas dúvidas, como ser por elas documentário, ou como o CAFAU prefere
aqueles que integraram a Comissão estruturado. Assim, o Seminário deixou- chamar, uma “coisa assim meio visual”
Organizadora da Semana da FAU, se conduzir por quatro perguntas-chave: que só saberemos o que é quando estiver
bem como ao imprescindível apoio o que é o Subúrbio? Onde fica? Como pronta. E, pelo o que eles demonstraram
institucional recebido através da Equipe surgiu? E para onde vai? na Semana da FAU do ano passado,
da Ana Palhares da SAG, Coordenação podemos apostar que “a coisa” será
de Extensão do CLA e da Pró-Reitoria A programação foi dividida, tal como interessantíssima.
de Extensão da UFRJ e, ainda, o apoio no ano passado, em quatro faixas de
horário. A primeira transcorre de 9h30 a Assim como não há festa sem música,
financeiro recebido através do Edital
11h30 com três palestrantes convidados: não se pode falar de Subúrbio Carioca
para a realização de eventos culturais do
na terça-feira teremos o Prof. Nelson da sem samba. Por isso, após esta
Banco do Brasil.
Nóbrega Fernandes, do Programa de solenidade, e ainda como parte da
Para esta segunda edição consecutiva da Pós-Graduação em Geografia da UFF abertura oficial da Semana da FAU 2007,
Semana da FAU, em novo formato, foi que apresentará a palestra “Onde as assistiremos a uma Aula Musical, com o
realizada uma consulta através do web- cidades perdem seu nome”; na quarta- professor, arquiteto e pandeirista Adilson
site da FAU para a definição do tema feira teremos o Prof. Antonio Pedral, da Roque. Ele convidou uma “turma da
do Seminário. O resultado da consulta, FAU-UFRJ, falando sobre “Subúrbios e pesada” para apresentar um repertório
também divulgado através do web-site, periferia: a ferrovia na construção da musical inteiramente dedicado aos
indicou os subúrbios cariocas como Região Metropolitana do Rio de Janeiro”; Subúrbios Cariocas.
opção mais votada pela comunidade na quinta-feira, a convidada será a
Com isso eu finalizo desejando uma boa
acadêmica. Prof. Márcia Ferran, gerente de Espaços
FESTA a todos vocês e a todos os demais
Culturais da Secretaria de Cultura de
Embora não estivesse em discussão a convidados da Semana da FAU 2007.
Vitória, com a palestra “De Bangu a
pertinência e a importância do tema, Aubervilliers: política cultural e gestão Muito Obrigado.
por si só auto-evidentes, o tema dos urbana contemporâneas”.
Subúrbios Cariocas se apresentou,
inicialmente, como um grande desafio Na segunda faixa de horário que vai
para todos nós. Isso porque estávamos de 11h30 a 13h30, serão discutidas Rio de Janeiro, 15 de outubro de 2007 •
lidando com um tema muito pouco as experiências concretas de atuação
estudado e, de um modo geral, profissional do arquiteto e urbanista nos
pouco valorizado em função das subúrbios cariocas, com a apresentação
representações simbólicas construídas dos Rio-Cidade Suburbanos do Méier,
Cristovão Fernandes Duarte é Diretor Adjunto
pelo senso comum. Tratam-se, como Irajá, Av. Suburbana, Pavuna, Madureira
de Extensão da FAU-UFRJ
todos sabemos, de representações e Vila Isabel.

Subúrbios Cariocas 7
depoimento

O CONCEITO CARIOCA DE SUBÚRBIO: UM RAPTO IDEOLÓGICO


Nelson da Nobrega Fernandes

Na primavera de 1998, em um dos de espaços que há 150 anos estão em primeira metade do século XX, em
memoráveis trabalhos de campo processo de urbanização, de espaços terras rurais alcançadas pelas linhas de
organizados pelo Professor Horacio que estão justamente entre os pioneiros bonde e pelas ferrovias e convertidas
Capel, em Barcelona, ele nos convidou da moderna urbanização brasileira para o uso residencial e outras funções
a parar em um belvedere do Montjuic, promovida pelo trem e pelo bonde urbanas como a indústria, o comércio
de onde descreveu a paisagem da Zona e instalações militares. Durante esse
Franca que avistávamos. Fixando-se Entretanto, é importante ressaltar período, considerando o avanço da
em um ponto, observou que ali se também que parte desses bairros do mancha urbana mais ou menos contínua
desenvolveu uma das vilas mais pobres Rio chamados subúrbios, especialmente ao longo das linhas de transportes, os
de cidade, ocupada especialmente por os mais antigos e mais próximos da limites externos do subúrbio no pós-
imigrantes do campo espanhol. Seguindo área central da cidade, nunca foram guerra estavam, ao norte, na Penha e em
a explicação sempre penetrante e miseráveis como no caso citado em Irajá; a noroeste, em Realengo e Bangu;
entusiasmada de Capel, fiquei perplexo Barcelona, já que eram habitados por no sudoeste, em Jacarepaguá, junto
em certo momento, quando ele anunciou setores da classe média carioca. O aos Largos da Taquara e da Freguesia.
que a vida de seus moradores inspirou Méier, por exemplo, que alcançou o Além desses limites, por volta da 2ª
uma novela muito conhecida, e citou título de “capital de subúrbios”, nunca Guerra, restavam zonas rurais ligadas
“Donde la ciudad cambia su nombre”, possuiu favela. Suas colinas e vales foram ao abastecimento da cidade, uma
publicada em 1957, de Fracesc Candel, totalmente loteados e convertidos em importante cultura de laranja para o
escritor catalão que ali viveu sua infância. casas com quintais, vilas e pequenos mercado externo que foi colapsada pela
prédios ocupados por funcionários guerra, pântanos, brejos e manguezais
O título de Candel tem uma clareza públicos, profissionais liberais e outros do entorno da baia Guanabara que
plena, resume um dos princípios da setores médios do Rio. Este bairro, acabavam de ser drenados e rasgados
urbanização capitalista, ou seja: sempre como Copacabana, se desenvolveu a pelo recém-criado Departamento
produzir zonas e bairros excluídos em partir da década de 1890, e da mesma Nacional de Obras e Saneamento
termos simbólicos e/ou materiais do que forma ali se formou um dos principais (DNOS), sobre os quais estavam sendo
se compreende como a cidade, processo subcentros comerciais e de serviços construídas as primeiras modernas
que se concretiza através de signos que da cidade do século XX. Portanto, rodovias do país, como a Avenida Brasil,
identificam e promovem idéias que um aspecto paradoxal desse processo a Dutra e a Washington Luís. São mais
projetam na consciência social e dos é que quanto mais a urbanização se ou menos os mesmos limites assinalados
indivíduos a visão, a paisagem, de que intensificou nos setores norte e oeste para o que Soares (1960) chamou de
tais espaços não fazem parte da cidade da cidade, tornando-os, evidentemente, “subúrbios tradicionais ou bairros-
ou formam uma “outra” cidade. Nestes mais urbanos, mais se cristalizou o uso subúrbio”.
lugares, nas mais diferentes latitudes, equivocado da toponímia subúrbio para
a cidade cambia ou perde seu nome, é esses bairros. Um segundo passo nesta discussão
ocultada debaixo de outros nomes. é levantar os limites geográficos e
Este trabalho se dedica a descrever históricos da própria palavra, ou seja,
Diante da descrição de parte miserável e analisar o processo que envolve a como foi e ainda é utilizada, qual
de um bairro de Barcelona no auge do transformação do significado e do uso da o seu significado e como funciona
franquismo, minha atenção se volta palavra subúrbio. Por meio dela, a cidade enquanto representação sócio-espacial.
imediatamente para vastas partes do ali perde seu nome e sua referência Este problema foi apresentado à
espaço urbano ao norte e oeste do Rio explicitamente urbana, se constrói um geografia urbana carioca por uma de
de Janeiro, sobre o qual uma pesquisa dos eixos do imaginário e da ideologia da suas fundadoras, a professora Maria
anterior me conduziu à mesma conclusão segregação sócio-espacial na geografia Therezinha Segadas Soares, (op. cit.), que
de Candel, por que aqui também, de um do Rio de Janeiro. Tento assim entender concluiu pela existência de um “conceito
modo particular, uma parte da cidade como um espaço urbano foi produzido carioca de subúrbio”.
também perde o seu nome (FERNANDES, e representado nesta cidade. Neste
1995). Refiro-me ao que é reconhecido sentido, um primeiro passo é definir seus Por que necessitaram os cariocas inventar
como “subúrbio” carioca, o espaço limites históricos e geográficos. e reproduzir um conceito particular
urbano no qual se situa grande parte dos de subúrbio? Este tipo de pergunta
bairros que formam a metrópole carioca. O espaço que está em estudo se situa não foi feito por Soares; ela é nossa e
Nestes lugares a cidade cambia seu nos setores a oeste e norte da cidade, vamos aprofundá-la ao longo do texto.
nome, torna-se subúrbio e se mantém por bairros que se formaram entre a Mas a grande contribuição de Soares
subúrbio, apesar de estarmos falando segunda metade do século XIX e a (op. cit., p. 195) para esta discussão foi

8 Revista da FAU UFRJ_número 2


ter identificado a historicidade desse que a palavra contém”. Assim, a e quando usaram o termo, diante
conceito, assinalando o momento de geógrafa concluiu que a palavra subúrbio da incoerência de sua aplicação,
sua origem, observando que antes só assumiu a condição de conceito preocuparam-se em ressaltar que não
do século XX representava uma outra carioca de subúrbio quando deixou ou estavam se referindo à periferia da
realidade sócio-espacial, conforme perdeu este significado geral e passou cidade, mas a bairros ferroviários e
o significado tradicional da palavra: a ser definido por três noções: “o trem populares da área urbana do território
“arrabaldes ou vizinhanças da cidade como meio de transporte, predomínio da municipal. Mas esta constituição urbana
ou de qualquer povoação”. Situa ainda população menos favorecida e relações do espaço e da paisagem do subúrbio
que no século XIX o Catumbi, Botafogo, intimas e freqüentes com centro da carioca foi muito antes descrita por Lima
Catete e outras cercanias eram assim cidade” (Soares, op. cit., p. 197). Barreto, que tem um impressionante
denominados, porque “apresentavam registro crítico e especialmente
aquele aspecto de descontinuidade de Posteriormente, Morris (1973), Santos geográfico da urbanização carioca
construções e de largueza, de menos (1977) e Leeds & Leeds (1978) acusaram do início do século. Em uma de suas
gente ocupando mais terra, noção esta a a mesma particularidade do emprego últimas crônicas, publicada na Revista
meu ver, mais importante e generalizada da palavra subúrbio no Rio de Janeiro, Suburbana (3/9/1922, p. 6), ele criticou

Subúrbios Cariocas 9
Paracambi
Lajes
Dr. Eiras

Japeri

Eng. Pedreira
a intensificação da urbanização dessa mesma tradição nos estudos sobre a
parte da cidade, o que nas suas palavras cidade, que reservaram pouca atenção

Queimados
conferia “o insólito aspecto urbano que para o subúrbio, interpretando-o com

Austin
actualmente têm os nossos subúrbios um certo desdém e desconhecendo a
– cousa que não se espera topar em sua longa história; não mais por nele
paragens de tal nome”. situar o camponês ignorante e a nobreza
decadente, mas por imaginar apenas
Se na década de 20 já era pouco “um subúrbio rural, invadido pela cultura
compreensível o uso da palavra metropolitana, um subúrbio industrial
subúrbio para designar tais paragens, invasor e portador das concepções
o que dizer quando nos damos conta métricas da fábrica e sua lógica linear
que tal situação se afirmou durante pobre, opressora e disciplinadora”.
todo o século XX e permanece no
século XXI? Pelo menos uma parte da Esta tradição reconhecida por autores
resposta a esta questão depende da tão diferentes como Mumford e
identificação das origens e do sentido Martins mal deixou perceber o papel do
do conceito carioca de subúrbio. E isto subúrbio em abastecer as necessidades
se relaciona também com a questão das cidades em víveres e outros
anteriormente mencionada, isto é: por suprimentos, e, sobretudo, ignorou que
que, subitamente, a sociedade carioca este, permanentemente, foi um lugar
resolveu criar o seu próprio conceito de prestigiado por abrigar usos e funções
subúrbio? para o consumo da cidade e de suas
classes superiores. Em Roma foi usado
Convém observar em Mumford que para a vilegiatura pelo patriciado; teatros,
nos longos milênios da história da academias e santuários estavam em
cidade, o sentido original, essencial e sítios dos arredores das cidades antigas.
geral da palavra subúrbio residiu na E Henri Pirrenne nos mostra com todas
representação de um espaço geográfico letras que foi no subúrbio da cidade
situado à margem, nas bordas, periferia medieval do século XII que nasceu a
além dos muros da cidade. Um espaço burguesia e o (seu) direito urbano, isto é,
produzido junto à cidade e tão antigo

Santíssimo
que na origem a burguesia é suburbana.
quanto ela, mas que com ela não pode Enfim, não é o subúrbio o espaço ideal
ser confundido, por sua localização, pela

Augusto Vasconcelos
forma, tipo e intensidade do uso do solo,
Campo Grande

por diferenças espaciais que culminam na


Benjamin do Monte
Inhoaíba
Cosmos

paisagem.
Santa Cruz

Paciência
Tancredo Neves

A palavra também representa uma


relação de subordinação política,
econômica e cultural do subúrbio
para com a cidade. Subordinação que,
entretanto, nem sempre foi sinônimo
de marginalização ou desprestígio,
como se tornou hegemônico no
pensamento sobre a cidade desde o
século XVIII. Segundo Mumford (1982,
p. 521), “a maioria dos interpretes da
cidade, ainda ontem, estranhamente
deixou de perceber” as implicações do
subúrbio para a vida e a ordem espacial
urbana, inclusive tratando-o como
um fenômeno relativamente recente.
Martins (1992, p.10) reconheceu essa
Senador Câmare Comendador Soares

Bangu

Guilherme da Silveira

Padre Miguel Nova Iguaçu

Pres. Juscelino
Realengo Mesquita
Edson Passos
Magarlhães Bastos Nilópolis
Olinda
Vila Militar R. Albiquerque
Anchieta Belford Roxo

Deodoro Coelho da Rocha


Agostinho Porto
Costa Barros
Marechal Hermes Vila Rosali
Pavuna
Bento Ribeiro Barros Filho
Honório Gurgel
Oswaldo Cruz
Rocha Miranda
Madureira
Mercadão de Madureira
Cascadura
Quintino Bocaiúva
Cavalcanti
Duque de Caxias
Piedade
Vigário Geral
Tomás Coelho
Parada de Lucas Gramacho
Engenho de Dentro Cordovil
Pilares / Cintra Vidal
Brás de Pina
Penha Circular Campos Elíseos
Méier Penha
Engenho Novo Del Castilho
Sampaio Olaria Jardim Primavera
Jacarezinho Ramos
Riachuelo
Bonsuceso
Manguinhos Saracuruna
São Francisco Xavier
Triagem
Mangueira
Maracanã
São Cristóvão

Praça da Bandeira

Central do Brasil

Subúrbios Cariocas 11
das classes médias norte-americanas Quando tratou desse assunto nos anos era denominado por Engels, em 1872, de
motorizadas e a suburbanização um 60, Bernardes (1968, p. 99) não viu “método de Haussmann”.
fenômeno emblemático da sociedade “caracterizado na faixa suburbana o tipo
dos Estados Unidos e seu “way of life”? de subúrbio residencial ou dormitório Lefebvre considera que a conquista
de classe abastada, gerada em torno da cidade pela burguesia foi realizada
Sem dúvida o conceito carioca de da cidade americana. (...) Somente em dois atos. O primeiro implicou na
subúrbio é descendente dessa tradição em Gávea Pequena, Barra da Tijuca e destruição dos bairros populares da
essencialista e desvalorizadora; só assim trechos de Jacarepaguá, tal fenômeno é cidade antiga, na limpeza da área central
a palavra pode perder suas referencias registrado, mas não chega a caracterizar daqueles ninhos de classes perigosas,
históricas e geográficas, sua rica nitidamente, esse tipo de subúrbio”. para que ali fosse implantado o seu
polissemia, não mais representar as espaço, com largas avenidas, prédios
diferentes formas de uso e ocupação De fato, no final dos anos 60, estes públicos e privados, zonas comerciais,
que podem existir naquele espaço, ser lugares eram apenas indícios das praças e jardins públicos. O segundo
despossuída de seu sentido geográfico possibilidades de um subúrbio de alto ato implica na expulsão do proletariado
original e geral. A posição periférica e status “à americana”. Mas 20 anos para fora do centro urbano. Mas onde
extra-muros – o elemento mais invariante depois, quando o espaço suburbano colocar e controlar o proletariado
de sua história, aquilo que garante a se concretizou em uma grande na cidade moderna? A resposta foi
homologia entre a palavra e a realidade periferia de alto status na Barra da encontrada na “ideologia do habitat”,
–, desaparece, sendo confundida, Tijuca, impulsionada por autopistas e que pode ser resumida como a idéia da
substituída, pela representação da pelo automóvel particular, se para ela promoção da casa proletária própria no
distância política, social e cultural. Por olhássemos com os mesmos critérios subúrbio.
isto Morris (1973, p. 22) concluiu: “de usados por Bernardes ali encontraríamos
fato, na linguagem do Rio, o termo o subúrbio “à americana”. Contudo, O aparecimento do conceito carioca
suburbano é pejorativo e indica falta de ninguém considerou tal critério. Abreu de subúrbio coincide com a Reforma
cultura e sofisticação”. (1987, p. 18) preferiu chamá-la de Passos e a ideologia do habitat do Rio
“bairro periférico” ao invés do subúrbio. de Janeiro. Assim como em Paris, entre
Outra característica que constitui o Parece que no espaço urbano do Rio, nós ela se instala após grandes motins
conceito carioca de subúrbio é a sua por mais distante que morem, as classes urbanos, cujo caldo de cultura era em
referência quase exclusiva e obrigatória superiores jamais residem na periferia parte formado pela reação do povo
para os bairros ferroviários e populares. ou no subúrbio. Lugares com esses contra a destruição dos bairros centrais
Onde não houve transporte ferroviário nomes só podem ser ocupados pelos antigos pela reforma urbana. Após a
não é subúrbio, mesmo que tal lugar menos afortunados. E de fato, no século Revolta da Vacina (1904), difundiu-
possua outras características de subúrbio. XX, muito poucos puderam imaginar se a idéia política e ideológica de
Por isto, não dispondo de ferrovia e subúrbios de alto satus em nossa promover o subúrbio enquanto o lugar
também porque foram espaços de geografia urbana. do proletariado na cidade moderna. Foi
vilegiatura durante a primeira metade para atender a essa necessidade política
do século XX, a Ilha do Governador e A hipótese central desse trabalho é e ideológica que foi produzido o conceito
Jacarepaguá nunca se enquadraram que na origem do conceito carioca de carioca de subúrbio, operado por um
muito bem no conceito carioca de subúrbio está um “rapto ideológico”. rapto ideológico.
subúrbio. Lefebvre (1978, p. 22) utilizou essa
expressão para descrever as mudanças Contudo, isto não significa uma
Por outro lado, observa-se que a palavra bruscas e drásticas do significado transposição direta e acrítica do caso da
subúrbio também não foi utilizada das categorias, quando o conteúdo ideologia do habitat em Paris, tal como
para os setores periféricos identificados tradicional de uma palavra é subitamente visto por Lefebvre, e o caso carioca. A
com as classes médias e altas. Assim, expurgado, passando a representar começar pelo fato de Lefebvre não se
desde o princípio do século XX, se outra realidade, estranha à sua extração referir a qualquer rapto ideológico da
estabeleceu uma espécie de veto, original. Tais mudanças surgem ou categoria subúrbio na modernização
raramente contrariado, com relação ao correspondem a certas necessidades de Paris, nem que esta palavra ali tenha
uso da palavra subúrbio para a periferia políticas e ideológicas em momentos de mudado o seu sentido. Na realidade,
oceânica da cidade. Copacabana, ruptura histórica e social. Na atmosfera a palavra equivalente a subúrbio em
Ipanema e Leblon, na primeira metade política e ideológica do Rio de Janeiro francês, banlieu, manteve sua polissemia.
do século XX, e a Barra da Tijuca, no do inicio do século XX predominava Às vezes indicando um sentido
final do século, reproduziram durante o obstinado desejo e angustiante depreciativo, quando associada a lugares
certo tempo de sua evolução um típico necessidade de reformar a cidade antiga, periféricos e de classes inferiores, mas,
subúrbio residencial impulsionado pela de, ao seu lado, ou sobre ela, implantar como antes, não de forma exclusiva,
vilegiatura marítima, pelos generosos as novas escalas espaciais da indústria, já que também uma parte das classes
investimentos públicos em restingas uma ordem estética, política e cultural superiores foi ocupar banlieus bucólicos,
ainda desertas, pela especulação e burguesa, europeizante, discriminatória igualmente tornados acessíveis pela
pelos transportes. Durante esse período, e excludente. A reordenação material e ferrovia. Além do mais, enquanto
no linguajar comum, na imprensa e simbólica do espaço urbano foi levada Lefebvre testemunha que a ideologia
mesmo nos estudos sobre a cidade, essa adiante com a Reforma Passos, seguindo do habitat em Paris teve o sentido
paisagem e esse espaço muito raramente aquela receita executada em Paris, com de “moralizar” a classe trabalhadora,
mereceram a denominação subúrbio. a destruição de partes da cidade antiga, garantido não só uma habitação dentro
prática que por ser tão reproduzida já de um padrão aceitável, mas sobretudo

12 Revista da FAU UFRJ_número 2


Subúrbios Cariocas 13
cumprido aquele objetivo político e acelerado da população. Desdenhava dos
populares. Nos países centrais como a
ideológico de colocar “os produtores França, após várias décadas de esforços remédios liberais para a crise habitacional
assalariados naquela hierarquia (...) mais ou menos continuados e tentativas – incentivos fiscais aos capitalistas que
das propriedades e dos proprietários, frustadas, a ideologia do habitat se construíssem habitações populares –, e
das casas e dos bairros”. Já no Rio de tornou bem sucedida, testemunha mostrava o perigo que a negligência com
Janeiro, a intenção e o desenvolvimento Lefebvre. que era tratado problema prometia. “Eu
da política urbana caminharam em lembro este alvitre a menos que queira
sentido oposto, o que resultou numa Como mostra Abreu (1986, p. 48), o Governo se ver obrigado a jugular
imagem desmoralizante do subúrbio, um até a Reforma Passos não se falava no uma rebelião francamente popular,
lugar sem atrativos, sem cultura e sem subúrbio com alternativa para a crise causada pela carência e carestia de casas.
história, na expressão de Lima Barreto da moradia popular. A discussão se O menos prestigioso dos agitadores
em “Clara dos Anjos” (1904), “o refugio resumia à forma da habitação operária políticos levantará, no dia em que quiser,
dos infelizes”. Refúgio exatamente pela (cortiço, vila operaria) e não se extendia toda a população dos bairros miseráveis
ausência de uma política de habitação para o lugar da habitação, ou habitat (o da cidade, homens, mulheres e crianças,
na República Velha. No nosso caso o loteamento, o subúrbio, a periferia ou se defraldar esta bandeira”.
subúrbio não significou, e ainda não mesmo a favela). De fato, a alternativa
significa, uma iniciativa de inclusão das da moradia suburbana para os pobres Os governos da República Velha não
massas numa sociedade moderna e do Rio só aparece com nitidez em 1905, promoveram a habitação popular no
burguesa, mas, antes de tudo, tornou- nos debates de comissão do Ministério subúrbio e continuaram a dissimular
se expressão do sentimento e da da Justiça e do Interior para a solução a solução do problema com medidas
“ao urgente problema das habitações liberais; a legislação urbanística
ação excludente que preside a nossa
na capital da república” (Benchimol, decretada pelo prefeito Pereira Passos
urbanização. O conceito carioca de
1992: 286). Um aspecto dos debates criou uma série de normas construtivas
subúrbio expressa, anuncia e reafirma,
acontecidos na comissão foram as críticas que dificultava a edificação em todos
literalmente, apenas aquela intenção de
de Everardo Backeuser, engenheiro civil os lugares, o que logo contribuiu para a
utilizar tal espaço para retirar da cena
e inspetor de obras públicas, que via no difusão de favelas na cidade e no próprio
urbana as classes populares da cidade,
problema um verdadeiro barril de pólvora subúrbio. Ao contrário do que propagava
a intenção de lhes negar até mesmo
prestes a explodir. Sua posição era crítica a ideologia do habitat, o plano das
a possibilidade de estar, no nível das
quanto à alternativa suburbana para
representações, dentro da cidade. autoridades, se aplicado, resultaria num
o proletário, pois esta só teria sentido
verdadeiro “fechamento” do subúrbio.
A ideologia do habitat esteve na agenda se houvesse políticas habitacionais
política das grandes cidades desde o final comandadas e subsidiadas pelo Estado, Mas esta regra tem exceção, o governo
do século XIX em resposta às mesmas além de uma séria melhoria dos serviços do Presidente Marechal Hermes projetou
necessidades das reformas urbanas de transportes, que eram caros e já e construiu parcialmente o bairro da
capitalistas, crises da habitação e revoltas insuficientes diante do crescimento Vila Proletária Marechal Hermes no

14 Revista da FAU UFRJ_número 2


Referências bibliográficas

ABREU, Maurício. Da habitação ao


habitat: a questão da habitação popular
no Rio de Janeiro e sua evolução. In:
Revista Rio de Janeiro, v. 1, 2. Niterói:
EDUFF, 1986

_____.: “A evolução urbana do Rio de


Janeiro.” Rio de Janeiro: Zahar, 1987

Legenda: Conceito Carioca de Subúrbio:


BENCHIMOL, Jaime L.: Pereira passos:
o rapto ideológico. Conceito Carioca de um Haussmann tropical, Rio de Janeiro,
Subúrbio: Secretaria Municipal de Cultura, 1992

BERNARDES, Lysia M. C.: A faixa


suburbana do Rio de Janeiro, In: Curso
eixo da Estrada de Ferro Central do as duas grandes partes do Rio que de Geografia da Guanabara, Rio de
Brasil. Inaugurado em 1º de maio de para muitos parece natural que esta Janeiro, IBGE, 1968
1914, foi concebida para abrigar cinco divisão tenha sempre existido. Assim,
FERNANDES, Nelson Nobrega. “O ‘rapto
mil pessoas e possuir infra-estrutura desenvolveu-se mesmo a idéia para a ideológico’ da categoria subúrbio: Rio
completa: escolas, creches, hospital, qual tal divisão já existia mesmo antes de Janeiro (1858-1845)”. Rio de Janeiro:,
biblioteca, teatro, etc. Foi uma exceção do século XX, uma naturalização que UFRJ – Dissertação de Mestrado, PPGG -
e uma antecipação das diretrizes que justifica a sua permanência e destrói a IGEO - UFRJ, 1995.
viriam com a intervenção do Estado na idéia fundamental de que todo espaço é
LEEDS, Anthony; LEEDS, Elizabeth.
questão da habitação implementada construído, material e simbolicamente. ”Sociologia do Brasil Urbano”. Rio de
a partir de 1930. Mas durante a Janeiro: Zahar, 1977.
O conceito carioca de subúrbio expressa
República Velha os sucessores de
uma busca exacerbada de distinção e LEFEBVRE, Henri. “De lo rural a lo
Hermes abandonaram a continuidade do
exclusão social que caracterizaram a urbano”. Barcelona: Ediciones Península,
projeto. Um artigo publicado em 1927, 1978.
Republica e que infelizmente pouco
no Jornal do Comércio, por Antonio
mudou. Por nenhum critério, político, __________. “O Direito à Cidade”. São
Jannuzi, julgava que tal iniciativa foi
administrativo ou geográfico, esta parte Paulo: Editora Morais, 1991.
“(...) perigosa, inadequada e mesmo
da cidade deveria ser denominada
substancialmente danosas à linha de MARTINS, José de Souza. “Subúrbio.
subúrbio. Assim, não se detecta em
conduta que quisesse conferir aos Vida Cotidiana no Subúrbio de São
seu uso outra função, sentido ou
municípios a construção de casas para Paulo: São Caetano, do Fim do Império
fundamento que não seja reafirmar e ao Fim da República Velha”. São Paulo:
as classes necessitadas” (OLIVEIRA,
colocar certos lugares e grupos sociais Hucitec, 1992,
2004). Se durante a República Velha o
para fora da cidade. Este princípio
subúrbio acabou sendo aberto para o MORRIS, Frederic. A geografia social do
continua a ser enunciado, pois passado
proletariado, isto se deu pelo imperativo Rio de Janeiro. In: “Revista Brasileira de
mais de um século em que a cidade
do crescimento explosivo da cidade e Geografia, 35 (1)”. Rio de Janeiro: IBGE,
alcançou um crescimento prodigioso,
graças à especulação imobiliária, que 1973.
deslocando o espaço realmente
promoveu loteamentos vastos e baratos, MUMFORD, Lewis. “A Cidade na
suburbano para muitos quilômetros
em grande parte carente de infra- História”. São Paulo: Martins Fontes,
além, a cidade ali continua cambiando
estrutura e serviços. 1982.
ou perdendo seu nome. É uma realidade
Coincide também com esse momento que as palavras de Sevcenko (1983, p. OLIVEIRA, Alfredo César T. “Vila
a inauguração de uma política de 19, 20) deixam transparentes.“Falar, Proletária Marechal Hermes: Urbanismo
distribuição de investimento no território nomear, conhecer, transmitir, esse Operário como Vitrine”. Rio de Janeiro:
conjunto de atos se formaliza e se mimeo, 2004.
municipal que sistematicamente
privilegiará a área central da cidade e reproduz incessantemente por meio da SANTOS, Carlos Nelson Ferreira.
os bairros de alto status na zona sul e fixação da regularidade subjacente a Transportes de massa. Condicionadores
zona norte, em detrimento dos bairros toda ordem social: o discurso. A palavra ou condicionados? In: “Revista de
chamados subúrbios. Este é um ponto organizada em discurso incorpora em si, Administração Municipal, Nº 24 (144)”.
desse modo, toda a sorte de hierarquias Rio de Janeiro: IBAM, 1977.
que pode ser conclusivo para a nossa
discussão, pois, como em qualquer e enquadramentos de valor intrínsecos às SEVCENKO, Nicolau. “Literatura como
cidade capitalista, a distribuição injusta estruturas sociais de que emanam” • missão”. São Paulo: Brasiliense, 1983.
e desigual dos recursos públicos é a SOARES, Maria Therezinha de Segadas.
principal responsável pela produção “Divisões principais e limites externos
dos lugares onde cidade cambia ou Nelson da Nobrega Fernandes é professor do Grande Rio de Janeiro”. Anais da
perde seu nome. Tal política obviamente adjunto do departamento de geografia da Associação dos Geógrafos Brasileiros, v.
criou tamanha diferenciação entre Universidade Federal Fluminense XII (1958-1959). São Paulo, 1960.

Subúrbios Cariocas 15
depoimento

SUBÚRBIOS E PERIFERIA: A FERROVIA NA CONSTRUÇÃO DA REGIÃO


METROPOLITANA DO RIO DE JANEIRO
Antônio José Pedral Sampaio Lins

“Vendeu a modesta herança e tratou de adquirir aquela casita nos subúrbios em que
ainda morava e era dele, estava em plena posse do seu ‘buraco’ como ele chamava a sua
humilde casucha.” Lima Barreto

Preliminares
(1988), por sua vez definem faubourg
Antes de abordar o papel da ferrovia na como “excrescência pontual de uma
construção e configuração da Região cidade (fora dos limites do muro)”,
Metropolitana do Rio de Janeiro, desejo cuja implantação se dá fora dos seus
tecer comentários sobre a segregação limites. Tais definições têm conotação
espacial urbana nas grandes cidades. depreciativa e conteúdo de segregação
A segregação espacial urbana pode espacial (1). Alguns outros autores
ocorrer, entre outras, em duas situações: também assinalaram o lado negativo
a) intra-urbana, quando acontece da palavra subúrbio. Tuan afirma que
entre regiões e bairros de uma mesma “cidade significa civilidade” e que
“ser suburbano significava não ser tão
cidade ou metrópole, e; b) numa área
urbano, ser menos urbano, não tão cívil,
interna da cidade, restrita a certos
não plenamente civilizado” (1974, P.
bairros, provocada por barreiras físicas
262). O que, de certa maneira, negaria
intransponíveis. No primeiro caso, por
a seu morador a cidadania. Para Stilgoe,
exemplo, entre as zonas sul e norte e
subúrbio representa um local destinado
os subúrbios ferroviários da cidade do
a ser ocupado imediatamente abaixo e
Rio de Janeiro. No segundo caso entre
fora dos muros da cidade. Abrigando
dois lados de um mesmo bairro, quando
construções consideradas inferiores,
seccionado por uma via expressa. Em
como as casas e oficinas dos artesãos, ou
ambos os casos a segregação espacial
destinadas àquelas funções indesejadas,
revela uma segmentação ou partição de
como matadouros, cemitérios e
territórios. Como mostrarei a frente, a
curtumes. Sempre os subúrbios
construção da ferrovia em meados do
tiveram, têm e terão uma conotação de
século XIX, contribuiu para que ambas
inferioridade e depreciação, “à sombra
as situações de segregação espacial se da municipalidade que está sobre ele”
estabelecessem na Região Metropolitana (Stilgoe, 1988, p. 1). Assim foi ao longo
do Rio de Janeiro. dos anos e ainda é na cidade do Rio de
Considerando, também, que as palavras Janeiro.
possuem significados que traduzem Grandes redes de infra-estrutura são
sentidos que ocultam, muitas vezes, segmentos lineares de segregação
conceitos que podem estigmatizar espacial. A ferrovia, por suas
um lugar, gostaria de assinalar que características tecnológicas, possui a
as palavras subúrbio, suburbano e ambigüidade de ter as qualidades de
periferia são, como tem há muitos anos, melhorar a mobilidade e, ao mesmo
expressões carregadas de conceitos tempo, acentuar a segregação espacial. Fig.1
pré-estabelecidos como depreciativos. Além de permitir a expansão territorial
Dessa maneira, realço que subúrbio em direção à periferia, oferecendo maior
e periferia, temas de nosso interesse, e melhor circulação de mercadorias,
possuem um significado depreciativo e mais mobilidade para as pessoas,
quanto à qualidade do lugar, de uma facilitando o transporte casa/trabalho,
localização ou do território de uma foi, também, um dos causadores da
cidade. A palavra subúrbio é definida segregação espacial na cidade, tanto
pelo Nouveau Larousse Illustré (Augé, nos aspectos intra-urbano como nas
s/d), em sua edição do início do século configurações locais, nos novos bairros
20, como um sub-burgo, ou burgo criados na periferia a partir de meados Fig.2
de baixo da muralha. Merlin e Choay do século XIX.

16 Revista da FAU UFRJ_número 2


Fig.3

Fig.1. No Atlas de Vingboons A Cidade Cresceu na Direção da próprios meios de transportes, cavalo,
datado de cerca de 1660 a
Periferia mula, carroça, liteira, carro de boi ou
cidade do Rio de Janeiro é
somente uma rua na margem da canoa. Ou seja, somente os senhores
O movimento em direção aos subúrbios proprietários de escravos e de animais. A
Baía de Guanabara. Note que a
localidade de São Cristóvão já e periferia ocorreu, de forma mais cidade durante cerca de trezentos anos
encontra-se gravada, na forma significativa, em cidades da Europa e pouco se expandiu e, quando o fez, foi
de um pequeno aldeamento da América, no período compreendido um processo lento. Naquele período
de poucas construções. Fonte: entre meados dos séculos XIX e XX.
Instituto Arqueológico, Histórico o Mangal de São Diogo era o grande
e Geográfico, Pernambucano.
A introdução, na época, de novas obstáculo a ser vencido. Para acessar
(Reis, 2000, p. 160). infra-estruturas de transportes, como São Cristóvão, por exemplo, só existiam
a ferrovia, o barco a vapor e veículos duas opções: por terra, pelos caminhos
Fig.2. Em 1771 a cidade tinha
automotores, foi importante para de Mata Cavalos e Mata Porcos, ou
crescido somente algumas ruas
na direção oeste, num período aumentar e melhorar a mobilidade das navegando pelo interior da Baía de
de cerca de 111 anos. A pequena pessoas. No Brasil, e em especial na Guanabara.
aldeia de São Cristóvão já cidade do Rio de Janeiro, este também
apresentava estrutura urbana. A expansão do perímetro urbano da
foi o período em que iniciou a expansão
Plan de la Baye, Ville, Frotresse
et Attaques de Rio de Janeiro, para fora dos perímetros tradicionais cidade do Rio de Janeiro foi possível
1771. Manuscrito Original. Fonte: que perduravam desde a fundação do após a implantação de infra-estruturas
Bibliothèque Nationale, Paris. núcleo do primeiro período colonial de transportes, que ofereceram uma
(Reis, 2000, 164). português. A cidade do Rio de Janeiro maior mobilidade a cidade. Os serviços
Fig.3. Mesmo após a chegada da teve a sua ocupação “limitada pelos de ônibus com tração animal, ferrovias
Família Imperial à cidade e cerca Morros do Castelo, de São Bento, e bondes, após a década de 1850,
de 150 anos após o primeiro de Santo Antonio e da Conceição” ofereceram transporte mais acessível
mapa, a cidade só alcançava o a um número maior de pessoas. Só
(Abreu, 1987, p. 35) no período entre
Campo de Santana, cerca de
10 quadras. Planta da Cidade a sua fundação (1565) e meados do então foi possível abrir novos locais de
de São Sebastião do Rio de século 19 (1854) devido, então, à falta moradia – imóveis acessíveis à nova
Janeiro, 1813-17. Autor: Phelipe de mobilidade. O deslocamento das classe assalariada que surgia então – e
de Braças. Original: Biblioteca o centro da cidade pode se expandir
pessoas para fora desse perímetro só era
Nacional, Rio de Janeiro. Fonte:
possível para aqueles que possuíam seus em direção periferia, os subúrbios
Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro (Reis, 2000, 176).

Subúrbios Cariocas 17
ferroviários de hoje. Os transportes
públicos ligaram o local de moradia
ao trabalho (Kostof, 1992 e Abreu,
1987). Podemos constatar isto
quando confrontamos os mapas do
Rio de Janeiro elaborados em diversas
períodos (1813, 1880, 1913 e 1930).
Notamos que o crescimento da malha
urbana acompanhou, a partir de
meados do século XIX, o traçado das
novas vias, tanto as ferrovias como
as estradas carroçáveis. Aquelas
periferias de então se tornaram
acessíveis a um número maior de
moradores da cidade. Considerando
as áreas externas ao núcleo central
da cidade, Abreu afirma que “a
periferia de ontem é o conjunto de
subúrbios que se formaram ao longo
das linhas ferroviárias estabelecidas
Fig.4
no século passado, e que hoje são
os bairros consolidados na cidade”
(1987a, p. 12). Eles são os bairros de
subúrbio que apontaram as direções
pelas quais a cidade se expandiu
buscando alcançar os municípios
vizinhos, no que veio a constituir
a Região Metropolitana do Rio de
Janeiro. O processo de crescimento
dos subúrbios em direção à periferia
e municípios vizinhos foi diretamente
influenciado pela mobilidade
oferecida pela ferrovia, introduzida
em meados do século XIX. Como
em uma conurbação (2), a cidade
do Rio de Janeiro foi absorvendo
as municipalidades vizinhas no
período entre meados do século XIX
e a década de 1990. Muitas dessas
localidades desenvolveram intenso
vínculo sócio econômico com a

Fig.5
Fig. 4. Em 1880 já se nota a malha urbana da
cidade começando a crescer acompanhando
o traçado da antiga EFDPII – Estrada de Ferro
D. Pedro II, posteriormente EFCB – Estrada de
Ferro Central do Brasil. Mappa do Município
Neutro, 1880. Autor: Laemmert e Cia. Ltda.Fonte:
Arquivo Nacional, Rio de Janeiro (CZAJKOYVSKI,
2000)

Fig. 5. Em 1895 a cidade continuava a crescer


ao longo das linhas férreas, EFCB e EFL – Estrada
de Ferro Leopoldina, e dos eixos servidos pelos
bondes. Rio de Janeiro und Ungebung, 1895.
Autor: Brockhaus – Konversationslexikons,
Leipzig. Fonte: Biblioteca Nacional, Rio de Janeiro.

18 Revista da FAU UFRJ_número 2


capital. A absorção é um processo lento subúrbios aqueles bairros que se cidade, com suas montanhas, o mar e as
de crescente transformação de uma área estruturaram ao longo da linha férrea. Ou lagoas, favoreceu o estabelecimento de
urbana com características de cidade seja, contrariando a definição clássica de uma segregação espacial. Para Soares,
em bairros ou conjunto de bairros da que subúrbio é qualquer bairro afastado o “Rio de Janeiro é uma cidade em que
metrópole. Ela pode se manifestar de do centro da cidade (Holanda, 1975, p. grande número de bairros tem no fator
três maneiras: a) crescente tendência 1333). No Rio de Janeiro subúrbios são sítio uma das razões principais de sua
à homogeneização sócio-econômica aqueles bairros situados nas zonas norte unidade e de sua individualidade” (op.
em oposição à heterogeneidade de e oeste, que são servidos pelo trem. cit., p. 333). A autora salientou que
uma cidade; b) crescente polarização Desta maneira, a Tijuca, por exemplo, o maciço da Tijuca é um dos grandes
pelo centro metropolitano; c) inserção seria um bairro da zona norte da cidade obstáculos geográficos que dividem a
no esquema geral de segregação e não um subúrbio. Já os bairros de São cidade. Ao norte, na sua planície estão
metropolitano. Este processo se deveu Francisco Xavier e São Cristóvão, vizinhos situados os bairros suburbanos cujas
aos inúmeros loteamentos, resultantes ao primeiro, são identificados como locações estão irremediavelmente ligadas
do desmembramento de propriedades subúrbios. Diferentemente da Barra da ao traçado das ferrovias. Afirma que a
pequenas e médias. Tijuca, situada na zona oeste da cidade, beleza física e as amenidades de clima
que é um subúrbio por sua situação das zonas à beira mar atraíram uma
Os subúrbios cresceram em torno da geográfica no espaço urbano e que, classe dominante para a ocupação da
via férrea e na direção da Baixada por não ser servida por linha ferroviária, denominada zona sul (op. cit., p. 339).
Fluminense. No processo de expansão é identificada pela população como Em seu trabalho, porém, reconhece que
foi absorvendo os municípios vizinhos, zona oeste. O que distingue este bairro a lógica de ocupação dos bairros no Rio
transformando a região numa mancha daqueles servidos por trem? A classe de Janeiro é a coexistência na vizinhança
urbana quase contínua. Na construção social que mora lá? Ser um subúrbio de várias classes habitando uma mesma
desses novos bairros estabeleceu o que rodoviário e não ferroviário? Podemos área da cidade:
pude identificar em pesquisa anterior distinguir que no Rio de Janeiro existem
(1998) as duas formas de segregação os subúrbios ferroviários e os rodoviários. “Na zona sul da cidade, edifícios de luxo
espacial: intra-urbana, descrita por Os primeiros situados nas zonas norte se alternam com prédios de classe média
Villaça (1998), que ocorre entre regiões e e oeste, e os demais nas zonas sul e e proletária. Na zona norte, bangalôs
bairros da cidade; e a local, descrita por oeste. Esta é a segregação espacial de classe média, pequenas casas de
Lynch (1960) e provocado por barreiras urbana que Villaça (1998) denominou de vila ou de frente de rua, de classe mais
físicas significativas. Em ambos os casos, segregação intra-urbana. Soares (1966), modesta, e confortáveis residências de
a segregação espacial reproduz uma anteriormente, analisando a segregação classes abastadas coexistem na maioria
segregação social, servindo para delimitar na cidade, sustenta que o morador do dos bairros. Só nos subúrbios é que
espaços da cidade ou de um bairro. No Rio de Janeiro estabeleceu um conceito vemos desaparecer um tipo de residência
primeiro caso segregam áreas da cidade carioca de subúrbio. Já Fernandes (1995) ou de apartamentos de luxo, pois esta
que são apropriadas por classes sociais afirma que esta forma de segregação área, ao contrário dos subúrbios de
diversas. Como é o caso da distinção é um rapto ideológico da categoria várias metrópoles de outros países, se
entre as zonas sul e norte, conforme subúrbio (3), diferenciando do conceito caracteriza pela predominância das
descrito por Villaça. Anteriormente carioca de subúrbio. Soares cunhou a construções de classe pobre.” (Soares,
alguns autores já tinham desenvolvido 1960, p. 343).
expressão para explicar a divisão que
explicações que seriam pertinentes aos
se expressa na cidade pela geografia.
subúrbios ferroviários. Vale realçar que A autora distinguiu fisicamente as
Estudando a evolução urbana do Rio de
no Rio de Janeiro só são considerados zonas da cidade pela ”densidade e a
Janeiro, ela reconhece que a geografia da
continuidade das construções”, seu

Subúrbios Cariocas 19
“aspecto de limpeza”, a “presença das palavras subúrbio e suburbano, e do século XIX o subúrbio podia ser
de melhoramentos e serviços” e a não somente uma definição espacial caracterizado como local de residência de
“pavimentação de suas ruas”(ibid, das áreas da cidade. Alega que Soares uma pequena classe média composta de
p. 344). Some-se a este quadro o “não se centrava em ter reconhecido funcionários públicos, comerciantes e de
fato dos subúrbios da cidade serem e identificado que subúrbio no Rio de alguns operários, que tinham em comum
servidos por transporte ferroviário. Para Janeiro é designação conferida apenas o fato de possuírem uma remuneração
Soares “a palavra subúrbio contém na aos bairros ocupados pelas classes relativamente estável”. E revela, ainda,
linguagem carioca um certo sentido médias e baixos extratos sociais dispostos que “a escolha do subúrbio como local
depreciativo, que inclui não somente ao longo das ferrovias” (1995, p. 1). de residência era motivado por razões
um certo gênero de vida peculiar. O econômicas (fuga dos altos aluguéis da
suburbano tem, aos olhos do citadino, Abreu (1987a, p. 14), estudando a
zona central) e higiênicas (subúrbio era
uma aparência diferente, hábitos de imprensa suburbana, formada por
local “salubérrimo” segundo a imprensa
vida característicos, atividades como diversos periódicos que surgiram e
da época)” (ibid, p. 23).
uma certa reminiscência rural, exercidas morreram na cidade do Rio de Janeiro,
por pessoas que trabalham na cidade” revela uma forma diferenciada no Devemos levar em consideração que
e desta forma podemos dizer que o tratamento dispensado às diversas por esse conjunto de fatores os demais
“conceito carioca de subúrbio contém áreas da cidade: “os melhoramentos moradores de outras zonas da cidade
uma paisagem, um modo de vida e uma urbanos beneficiaram o centro e as associaram, ao longo dos anos, os bairros
noção administrativa” (1960, p. 143). zonas residenciais mais nobres da cidade suburbanos à presença da ferrovia.
É importante notar que as afirmações (Botafogo, Catete, Laranjeiras, Tijuca)”, Abreu (1987, p. 50) afirma que “os
da autora datam de 1960. Hoje esses embora a imprensa chamasse atenção trens foram responsáveis pela rápida
subúrbios cresceram, tornaram-se que os impostos pagos eram iguais, transformação de freguesias que, até
bairros com uma complexidade social e não fazendo distinção entre as diversas então, se mantinham exclusivamente
construída diferente das suas descrições. zonas. Os motivos das reclamações rurais” (4). A simples existência da via
Sem me contrapor à autora, lembro da foram de toda ordem: falta de luz, água, férrea em um lugar pressupunha, para
carga de pré-conceitos que assinalei no esgoto canalizado, pavimentação. O muitos, que o bairro era um ‘subúrbio’, e,
inicio do texto. autror comenta, ainda, que era tudo num raciocínio simplista, a não existência
para “os arrabaldes chics, e os subúrbios da ferrovia foi associada a bairros “não
Fernandes (1995) se contrapõe a Soares vivem no mais completo abandono” suburbanos”.
e afirma que o que ocorreu na cidade (Ibid, p. 20). Classificando os moradores
do Rio de Janeiro foi o rapto ideológico dos subúrbios, afirma que “até o final Corrêa (1995), vendo pelo olhar cultural,

20 Revista da FAU UFRJ_número 2


afirmou que a paisagem “articula a ferrovia, os bairros nasceram pontuando
natureza com o saber sobre o homem” suas margens como se fossem “gotas em
(p. 3) e que a paisagem reconhecida um fio de barbante”. Ao compararmos
é a da cultura dominante, uma das as datas de implantação das principais
maneiras que o grupo dominante tem estações verificamos que o período de
para expressar seu poder. O autor afirma meados do século XIX ao início do século
que a “mudança na avaliação ambiental XX foi muito dinâmico para a formação
(que) induziu a progressiva transferência dos subúrbios ferroviários da cidade:
das elites e classes médias abastadas São Cristóvão (1859); Riachuelo (1869);
para o setor litorâneo a partir do século Méier (1889); Piedade (1873); Engenho
XIX, como no caso do Rio de Janeiro, Novo (1858); Cascadura (1858); Deodoro
(e) originou um padrão espacial de (1859); Nova Iguaçu (1858); Queimados
segregação residencial caracterizado por (1858); Japeri (1858); Realengo (1878);
apresentar setores seletivos” na cidade. Campo Grande (1878); Santa Cruz
Fig.6. Rua da República vista
(1878); Pavuna (1883); São João Meriti
(p. 9) do coreto da Praça Quintino
(1910); Belfort Roxo (1883); Magé Bocaiúva – 1928. Foto: Malta
O bonde serviu também aos subúrbios (1896). Podemos, assim, traçar o mapa Fonte: Arquivo Geral da
e, como o trem, ajudou a abrir os novos sequencial de ocupação dos subúrbios Cidade
loteamentos de então. Sob o ponto e da formação da embrionária, então,
de vista técnico, o trem foi construído região metropolitana. Os novos bairros
para servir estações distantes, em foram sendo criados em torno das
média, de 1,5 km entre elas, enquanto estações e não configuravam, à época,
os bondes, por permitirem curvas com um contínuo urbano, mas sim localidades
raios menores, podiam costurar pelo isoladas que, muitas vezes, possuíam
interior dos bairros, fazendo as curvas características rurais no seu interstício.
a 90°. No final do século XIX, o bonde
servia bairros como Bonsucesso, Olaria,
Piedade, Cascadura e Madureira, bairros Segregação espacial e mobilidade
também atendidos pela ferrovia.
Quando inicialmente tratamos da
Nos anos iniciais de implantação da segregação espacial, seja ela intra-

Subúrbios Cariocas 21
urbana ou somente de caráter local, de nível, fechada posteriormente. A moradores de um lado em relação
da divisão de um ou alguns bairros malha urbana possui, ainda hoje, a aos do lado oposto. Nas entrevistas
por uma via férrea, nos interessava aparência de uma colcha de retalhos pude verificar que diversas pessoas
realçar a forma como a segregação formada pelos diferentes loteamentos desconhecem a realidade do lado
se apresenta nos bairros de subúrbio abertos ao longo dos anos, que eram oposto em que moram. Caracterizam
atuais e como foi sendo construída a implantados separadamente sem levar muitas vezes de maneira pejorativa
segregação social associada a ela no em consideração a continuidade urbana o outro lado da via férrea tanto sob
imaginário da população. Verificamos entre ambos os lados. Muitas vezes não o ponto de vista do local quanto das
anteriormente (Lins, 1998), também, estabeleceram nem uma continuidade pessoas. Os moradores têm o hábito
como as vias férreas influíram e foram lateral entre eles. de se deslocarem pelo mesmo lado em
importantes para a definição do desenho que moram. Assim como demonstram
Não há diferença significativa de um solidariedade e reconhecimento pelos
do espaço urbano. Lembro, aqui, que
e outro lado da via férrea sob o ponto vizinhos de seu lado da linha, tratam de
a via ferroviária segrega espacialmente
de vista tipológico, bem como na forma depreciativa os moradores do lado
o espaço do seu entorno, separando os
aparência das construções. Mesmo oposto. Traduzimos esquematicamente o
bairros em dois lados. Os trilhos, mesmo
levando-se em consideração as que constatei através do gráfico ao lado.
quando não são cercados por muros,
semelhanças, nas entrevistas que fiz
dificultam a sua transposição no sentido
constatei que os moradores do lado
perpendicular à linha.
esquerdo da linha férrea, do lado da
Praça Quintino Bocaiúva, consideram-se Conclusão
Ainda na primeira fase de implantação
da ferrovia na periferia da cidade do moradores de Quintino. Este lado do No inicio deste trabalho comentei sobre a
Rio de Janeiro, entre meados e fim bairro, para muitos entrevistados, seria segregação espacial urbana nas grandes
do século XIX, quando não havia, verdadeiramente identificado como cidades. Quando olhamos para o bairro
ainda, a necessidade de segregar Quintino Bocaiúva, embora o bairro de Quintino Bocaiúva nos deparamos
a via permanente, trem e pessoas tenha um perímetro muito mais amplo. com as duas formas de segregação
conviviam compartilhando o mesmo Alguns moradores do lado direito da via espacial.
território. Posteriormente, com o trem consideraram-se moradores do bairro,
se modernizando e adquirindo maior mas conforme seu local de moradia A intra-urbana, segundo Villaça (1998),
velocidade, a via férrea foi tendo a aproximava-se da Avenida Suburbana, ou reproduz-se na aparência do espaço
necessidade de ser cercada e murada. Tal mesmo quando ultrapassavam esta, já se público urbano do bairro, em geral.
fechamento só veio realçar a existência viam como moradores de Cascadura ou Ruas, praças e largos possuem uma
de dois lados: um e o outro lado da Cavalcanti. Esta maneira de compreender aparência deteriorada e de abandono
cidade, temática que se transformou o bairro é compartilhada por diversos quando comparamos com os bairros
numa questão importante do urbanismo. entrevistados não moradores do local. mais valorizados, situados em outras
Ao adotar o bairro de Quintino Bocaiúva Para eles o bairro se restringe somente ao zonas da cidade. Esses aspectos
como estudo de caso, entre os anos de segmento que fica situado à esquerda da reforçam os pontos de vista de Soares
1997 e 1998, tinha a intenção de melhor ferrovia, o da Praça Quintino Bocaiúva. A (1966) e Fernandes (1995). Constata-
entender como, quando e porque a praça, por ter um coreto que se destaca se que, apesar do tempo decorrido, o
divisão acontecia. E, em acontecendo na paisagem, é um marco urbano com conceito carioca de subúrbio, sugerido
fisicamente, como ela se rebatia na vida forte carga simbólica para moradores e por Soares é, ainda, um ponto de vista
cotidiana das pessoas. não moradores. Ela, por este motivo, é compartilhado por muitos moradores
identificada por muitos como sendo o do Rio de Janeiro. Ainda hoje somente
As marcas físicas mais evidentes entre início do bairro. os bairros servidos pelas linhas férreas
um lado e outro da via férrea, no caso são considerados como sendo subúrbio,
de Quintino Bocaiúva, se restringem a A barreira física criada pela via férrea embora existam outros subúrbios
alguns aspectos da malha urbana que reforçou a segregação espacial entre situados nas zonas sul e oeste da
não possuem continuidade entre as ruas ambos os lados do bairro. Como cidade. Fernandes, quando observa
perpendiculares a via férrea, situadas de conseqüência, observei que certos sobre o rapto ideológico da palavra
um e outro lado. Outras diferenças são hábitos dos moradores se reproduzem subúrbio, situa com clareza esta forma de
as provocadas por acidentes geográficos, em ambos os lados. Moradores de um segregação espacial que os moradores
como morros e pequenas elevações, que determinado lado tendem a se relacionar das zonas mais valorizadas da cidade
são distintas em ambos os lados da via e deslocar preferencialmente do mesmo desenvolveram para se referir aos
férrea (5). As exceções de continuidade lado em que vivem. A existência de subúrbios, que denomino de ferroviários,
ocorrem quando uma rua tem poucos pontos de transposição, sejam e não aos demais subúrbios das zonas
continuidade do outro lado da linha. Este viadutos e/ou passarelas, sobre a via sul e oeste da cidade. Sob o ponto de
é o caso das ruas Bernardo Guimarães, férrea reforça a segregação espacial. A vista do mercado imobiliário, embora não
pelo lado direito da via, e Cupertino, falta de visibilidade criada pela barreira tenha me estendido neste aspecto, os
pelo lado esquerdo. Essas exceções física dos muros altos se reflete numa bairros de subúrbio ferroviário são menos
ocorriam onde existia uma passagem sensação de desconhecimento dos valorizados que outros eqüidistantes do

22 Revista da FAU UFRJ_número 2


foto: Antônio José Pedral
Fig. 11
Fig. 7

Fig. 8 Fig. 12

Fig. 13
Fig. 9
linha férrea

Fig. 10 Fig. 14

Fig.7. Rua Cupertino.

Fig.8. Rua Nerval de Gouveia,


vista da Rua Goiás.

Fig.9. Rua Lucinda Barbosa.

Fig.10. Largo Capitão Couto

Fig.11. Fim da Rua


Guaramiranga, ou Largo do direção das relações direção das relações
Escorrega.

Fig.12. Rua Oliveira Dias.

Fig.13. Rua Goiás e a


segregação espacial
provocada pela via férrea.
via férrea

Fig.14. Casa de Quintino


Bocaiúva, na Rua Goiás de
frente para via férrea.

Fonte: Antonio José Pedral


Subúrbios Cariocas 23
Fig.15. Foto aérea de Quintino Bociúva. Nota-se a Viaduto Compositor Wilson Batista,
descontinuidade do alinhamento das vias urbanas, de transposição da via férrea, na
mostrando o limite dos loteamentos construídos divisa entre Piedade e Quintino.
em períodos diferentes de tempo.

centro de negócios da cidade e que não dois lados da linha, as entrevistas com os Referências bibliográficas:
são servidos por ferrovias,principalmente moradores revelaram que a segregação
comparando-os com aqueles próximos ABREU, Maurício de Almeida.
física reflete-se com certo significado no
“Evolução Urbana do Rio de Janeiro”.
da orla marítima. As vias férreas foram, comportamento e na maneira de usar Rio de Janeiro: Instituto Pereira Pas-
no período entre meados dos séculos XIX o espaço público. Apesar da situação sos, 1987.
e XX, o principal eixo de expansão da criada pelo crescimento da cidade no
cidade, pois o trem foi o principal meio entorno da via férrea se reproduzir em ________. A Periferia de Ontem: O
de transportes que ligava a periferia ao diversos bairros suburbanos ferroviários, Processo de Construção do Espaço
centro de negócios metropolitano. Suburbano no Rio de Janeiro (1870 –
não podemos estender as observações
1930). In: “Espaço & Debates, nº 21,
realizadas em Quintino Bocaiúva aos
No aspecto da segregação espacial de ano VII – Vol. 1.” São Paulo: NERU –
demais bairros servidos por ferrovias. Núcleo de Estudos Regionais e Urba-
cunho local, gerado pela ferrovia e sua
Considero que cada bairro da cidade nos, 1987 a.
inserção na malha urbana, a pesquisa
possui suas próprias características
em Quintino Bocaiúva revelou que a AUGÉ, Claude (Dir). “Nouveau La-
espaciais e sociais. As características de
via férrea separa o bairro fisicamente, rousse Illustré”. Paris: Librairie La-
cada um podem, ou não, se reproduzir
uma vez que existem poucos pontos de rousse, S/D.
nos demais bairros vizinhos. Assim
travessia entre os lados. Como a barreira
podemos afirmar, por fim, que cada BARRETO, Lima. “Clara dos Anjos”.
física é muito significativa, com muros
um dos bairros da cidade é único e São Paulo: Editora Brasiliense, 1976
altos que escondem a visão, as pessoas
que, embora possam ter aparentes (1921/22).
desenvolveram, ao longo dos anos, um
semelhanças de cunho físico, econômico
desconhecimento sobre o lado oposto da CORRÊA, Roberto Lobato. A dimen-
ou social, eles são mais diversos do que
cidade em que moram. Considerando-se são cultural do espaço: alguns temas.
semelhantes. Esta característica é que faz In: “Espaço e Cultura, Ano I, nº1”. Rio
os aspectos físicos da arquitetura e do
com que cada cidade seja única em seu de Janeiro: NEPEC - UERJ, 1995.
espaço urbano, e embora existam mais
conjunto e diversa em relação aos bairros
semelhanças que diferenças entre os CZAJKOYVSKI, Jorge; CASTRO, Celso;
que a compõem •
TAVEIRA, Alberto. “Do Cosmógrafo
ao Satélite”. Rio de Janeiro: Secretar-
ia Municipal de Urbanismo da Cidade
Antônio José Pedral Sampaio Lins é arquiteto
do Rio de Janeiro, 2000.
e urbanista, mestre e doutorando pelo ProURB,
FAU UFRJ

24 Revista da FAU UFRJ_número 2


Notas:

1. Em português, a definição para urbano é


“aquilo que é relativo à cidade” e subúrbio a
“cercania de cidade ou de outra povoação”.
Já suburbano é o “pertencente ou relativo a
subúrbio, ou o que mora em subúrbio”. Ou,
ainda, de forma depreciativa, “é o que tem
ou revela mau gosto, indivíduo suburbano”
(Holanda, 1975: 1333).

2. Processo de conurbação acontece quan-


do a cidade central começa a absorver nú-
cleos urbanos a sua volta, pertençam ou
não a mesma municipalidade. Uma cidade
absorve outra quando passa a desenvolver
intenso vínculo sócio econômico com a ci-
dade absorvida.

3. Fernandes usa o conceito de rapto


ideológico de Engels, e trabalha os con-
ceitos da Ideologia do Habitat em Lefebvre.

4. O autor citando Carlos Nelson Ferreira


dos Santos afirma que “trem, subúrbio e
população de baixa renda passavam a ser
sinônimos aos quais se contrapunha a as-
sociação bond/zona sul/estilo de vida ‘mod-
erno’” (Idem, 57). Ferreira dos Santos afir-
mou que “o bonde fez a zona sul, porque
as razões de ocupação seletiva da área eram
‘realidade’. já o trem veio responder a uma
necessidade de localização de pessoas de
baixa renda e de atividades menos nobres
FERNANDES, Nelson Nobrega. “O REIS, Nestor Goulart. “Imagens de (indústrias)” (1977,25).
‘rapto ideológico’ da categoria Vilas e Cidades do Brasil Colonial”.
subúrbio: Rio de Janeiro (1858- 5. A ferrovia por ter precedido muitas vez-
São Paulo: Edusp, 2000.
1845)”. Rio de Janeiro:, UFRJ es a formação dos bairros, teve a oportu-
– Dissertação de Mestrado, PPGG - nidade de ocupar os terrenos de planície,
IGEO - UFRJ, 1995. SANTOS, Carlos Nelson contornando os morros e elevações.
Ferreira. Transportes de massa.
HOLANDA, Aurélio Buarque (coord.). Condicionadores ou condicionados?
Novo Dicionário da Língua Portugue-
In: “Revista de Administração
sa. Rio de Janeiro. Editora Nova Fron-
Municipal, Nº 24 (144)”. Rio de
teira, 1975.
Janeiro: IBAM, 1977.
JACOBS, Jane. “The Death and Life
of Great American Cities: The failure SOARES, Maria Therezinha de Sega-
of town planning”. Penguin Books,
das. “Fisionomia e estrutura do Rio
Middlesex. 1984 (1961).
de Janeiro”. In: Separata da Revista
KOSTOF, Spiro. The City Assembled: Brasileira de Geografia, Ano XXVII,
the elements of urban form through nº3 (330-370). Rio de Janeiro: IBGE,
history. Boston. Little, Brown and Conselho Nacional de Geografia,
Company, 1992.
1965 [1966].
LINS, Antônio José Pedral Sampaio.
“Paisagem Segregada: A Ferrovia no STILGOE, John R. Borderland. “Ori-
subúrbio de Quintino Bocaiúva, Rio gins of the American Suburbs, 1820-
de Janeiro”. Dissertação de Mestrado 1939.” New Haven: Yale University
defendida no ProURB - FAU UFRJ. Rio Press, 1988.
de Janeiro Cópia impressa, 1998.
TUAN, Yi-Fu. “Topofilia: Um Estudo
LYNCH, Kevin. “The Image of the da Percepção, Atitudes e Valores do
City”. Cambridge: The MIT Press,
Meio Ambiente”. São Paulo: Difel,
1960.
1974 (1980).
MERLIN, Pierre; CHOAY, Françoise.
“Dictionaire de L’Urbanisme et de VILLAÇA, Flávio. “Espaço Intra-
L’Architecture”. Paris: Presses Univer- Urbano no Brasil”. São Paulo: Nobel/
sitaire de France, 1988. Fapesp, 1998.

Subúrbios Cariocas 25
depoimento

ALGUMAS CONSIDERAÇÕES SOBRE O SUBÚRBIO


José Barki

O vocábulo “subúrbio” tem no Aurélio “Subúrbios”: Há os da Central, da portuguesa desde o século XVIII, a
(1) uma definição curta e direta: Leopoldina e os da linha auxiliar, ferrovias palavra subúrbio teve, até recentemente,
que especificamente os servem com circulação e uso extremamente restritos
Subúrbio atrasos e desastres, alguns monumentais. no Brasil. Do ponto de vista histórico
é possível, inclusive, delinear com
[Do lat. suburbiu.] São muitos e brotam como cogumelos. precisão tanto as etapas no processo
Substantivo masculino. de introdução, afirmação e expansão
Denomina-se subúrbio uma localidade
1.Cercanias de cidade ou de outra sem água, sem esgoto, sem calçamento, da utilização deste novo vocábulo
povoação. [Cf. suburgo.] sem escolas, sem hospitais, sem em apenas certas cidades brasileiras
suburgo mercados, sem meios de transporte, quanto a sua quase obsolescência [...]
sem parques e sem jardins, com Hoje, entretanto, também é claramente
[De sub - + burgo, ou cruz. de subúrbio
precária iluminação, porém com uma perceptível uma reversão nesse quadro.
com burgo.]
população densíssima, não muito Tendências recentes [...] começaram a
Substantivo masculino. delinear um movimento de revalorização
compreendida pela população da zona
1.Bras. Pop. Aldeola sem movimento, sul, cujos conhecimentos geográficos do interesse pelos subúrbios [...]
sem vida. [Cf. subúrbio.] são os mais duvidosos ou omissos, mas atualizando os sentidos e multiplicando
ultarcompreendida pelos candidatos a as formas de circulação do vocábulo.
cargos eletivos, que nela encontram uma A introdução da palavra subúrbio em
É também curioso notar no mesmo
farta seara de votos. língua portuguesa parece ter-se dado por
Aurélio a definição dada aos habitantes
desse lugar: O que tinha nome mais bonito, mudou volta das primeiras décadas do século
de nome. Chamava-se Moça Bonita. XVIII. Com a escrita latina suburbium
Agora chama-se Padre Miguel.” já figura, em 1712, no Vocabulário
Suburbano
Portuguez e Latino como sinônimo de
[Do lat. suburbanu.] Talvez se possa considerar que ‘arrabalde’ ou ‘arrebalde’, termo utilizado
Adjetivo. “Subúrbio” é um termo utilizado para para designar a área ocupada pela ‘gente
1. Pertencente ou relativo a subúrbio. designar as áreas circunscritas às áreas multiplicada que não cabe na Cidade e
centrais de um dado aglomerado urbano, faz sua habitação fora dela’.”
2. Que mora em subúrbio.
seja ele um município, distrito ou outra
3. Bras. Deprec. Que tem ou revela qualquer instância política; porém, este De fato, no caso particular da cidade
mau gosto. termo é mais usual quando refere-se do Rio de Janeiro as mudanças sócio-
Substantivo masculino. ao município, e também para descrever econômicas do município influenciaram
cidades circunscritas a um núcleo a formação do subúrbio carioca. A
4. Aquele que mora em subúrbio.
metropolitano central. Eventualmente evolução espacial da cidade é provocada
5. Bras. Deprec. Indivíduo suburbano
pode ser considerado sinônimo de por diferentes situações históricas e a
(3). [Sin., bras., RJ, nesta acepç.: expansão urbana ocorre em áreas então
saquarema.] periferia urbana, embora tal definição
encontre alguma polêmica nos estudos ocupadas por fazendas e engenhos.
de urbanismo e planejamento urbano. No final do século XIX, a consolidação
do Rio de Janeiro como um centro
Ainda assim, apesar dessa aparente A professora Margareth A. C. da exportador provoca mudanças que
simplicidade parece ser um termo Silva Pereira há muito trabalha numa transformaram o perfil das regiões até
que apresenta alguma dificuldade investigação que discute os usos e os então rurais e dão início a uma forma
de entendimento e, por isso mesmo, sentidos das palavras que empregadas de ocupação urbana que caracterizaria
uma riqueza inexplorada de sentidos. para tratar da cidade e suas questões. O a formação do subúrbio carioca. A
Na década de 1960, por exemplo, o projeto de pesquisa chama-se “Les Mots transformação de engenhos em centros
escritor Marques Rebelo (2) preparou um de la Ville” e em um relatório parcial, de abastecimento através do cultivo de
divertidíssimo “Guia Antiturístico do Rio”, ainda inédito, explica: gêneros de subsistência, o advento do
com 55 verbetes, e o definiu da seguinte transporte coletivo, o fim da escravidão
“Embora dicionarizada em língua
maneira: e a falta de habitação para os recém-

26 Revista da FAU UFRJ_número 2


Vista aérea de suburbio residencial próximo a
Markham, Ontario, no Canadá. Foto de IDuike,
Novembro de 2005. Fonte: Wikipedia Commons.

Subúrbios Cariocas 27
deixando a freguesia sem missa e sem
libertos e os imigrantes poderiam ser de Janeiro” investigou as raízes da
socorros espirituais.” (Inglês de Sousa,
considerados como alguns dos principais estratificação espacial núcleo-periferia
O Missionário, p. 47.)
fatores para o crescimento desordenado da cidade com o intuito de entender os
da região rural. 3. Concorrência de compradores a problemas e a dinâmica urbana atuais.
determinado estabelecimento ou Abreu aponta que a primeira expansão
O bonde efetivaria a ocupação de áreas vendedor; clientela.
na zona sul e norte e o trem possibilitaria acelerada da malha urbana ocorreu
a ocupação de áreas que hoje são 4. Hábito ou costume de comprar de entre 1870 e 1902. Ao abordar esse
chamadas suburbanas. O processo de determinado vendedor. crescimento, o autor também trata do
urbanização, que se iniciou por volta papel dos bondes e dos trens, e afirma
5.Lus. Nas cidades e províncias que apesar desses meios de transporte
de 1870, em Inhaúma, Irajá, entre
portuguesas, a menor das divisões de massa terem estimulado a expansão
outras freguesias, estava diretamente
administrativas. urbana, a dicotomia núcleo-periferia, que
relacionado à valorização dessas terras
devido à instalação da Estrada de Ferro de alguma forma já se esboçava antes
Dom Pedro II em 1858 e de suas estações Freguês de 1870, foi apenas consolidada pela sua
no final do século XIX. Em 1870, as [Do lat. hisp. filiu ecclesiae, ‘filho da instalação.
freguesias nas quais iriam surgir os igreja’, ‘paroquiano’.]
No que diz respeito às conseqüências
subúrbios ainda eram caracterizadas Substantivo masculino. das reformas urbanas operadas pelo
como freguesias rurais. 1. Habitante duma freguesia; estado, Abreu argumenta que a favela foi
Com instalação da ferrovia alguns paroquiano. a “...única alternativa que restou a uma
proprietários dessas regiões iniciaram, 2.Aquele que compra ou vende população pobre, que precisava residir
por conta própria, o loteamento de habitualmente a determinada pessoa. próximo ao local de trabalho...”. No
parte de suas terras e abriram diversas 3.P. ext. Comprador, cliente. entanto, o autor propõe que nem todos
ruas. Durante a administração de Pereira os expulsos dos cortiços ou aqueles
4.Bras. Pop. Pessoa qualquer;
Passos, já no início do século XX, o migraram para a cidade instalaram-se
indivíduo:
próprio governo estabeleceria que em favelas: “... a grande maioria, ao
Que freguês cacete! [Flex.: freguesa que parece, instalou-se nos subúrbios,
determinadas freguesias abrigariam
(ê), fregueses (ê), freguesas (ê).] contribuindo assim para a sua ocupação
áreas residenciais para as “camadas
trabalhadoras”, situação que se efetiva...”. Sustenta tal afirmação com
consolidaria por volta da década de base nos dados dos recenseamentos de
1920. De fato, a ausência de indústrias Existem regiões, entretanto, que atraem 1890 e 1906, através dos quais é possível
fez com que freguesias — mais tarde os interesses de camadas mais afluentes notar o crescimento populacional de
Bairros — se tornassem áreas residenciais da população e se encontram em freguesias suburbanas como Engenho
proletárias, como aconteceu com Irajá e áreas também periféricas, em processo Novo e Inhaúma. Esta última no início do
com Inhaúma. semelhante ao dos subúrbios norte- século XX apresentou também o maior
americanos, mas com peculiaridades crescimento predial do município.
Neste caso vale a pena recorrer mais uma locais. Tais regiões normalmente são
vez ao Aurélio: Nas grandes cidades da América Latina,
caracterizadas principalmente pela forte
a palavra “suburbio” é comumente
presença de condomínios fechados.
utilizada para se referir a áreas que não
Freguesia Um Exemplo típico deste tipo de área
possuem todos os recursos das regiões
[De freguês + -ia1.] periférica dita como “rica” no Rio de
centrais – principalmente infra-estrutura
Janeiro é a Barra da Tijuca. Alguns
Substantivo feminino. urbana (como energia elétrica, água
condomínios existentes em cidades das
encanada, esgoto, coleta de lixo, etc.) e
1. Povoação, sob o aspecto regiões metropolitanas, como acontece
equipamentos sociais (como instituições
eclesiástico: com Alphaville, Granja Viana e os
culturais e de saúde, assim como órgãos
“Em uma freguesia rural faleceu há condomínios da Serra da Cantareira,
públicos) – ou até possuem, mas em
pouco tempo um indivíduo a cujo todos na Grande São Paulo, podem
escala inferior. A palavra também é
cadáver o respectivo pároco denegou ser considerados subúrbios também
associada às regiões periféricas de perfil
sepultura” (Ramalho Ortigão, As classificados como “ricos”. Alguns destes
de renda baixa. Estas são mais aparentes
Farpas, V, p. 258). processos de expansão urbana foram
nas grandes cidades, onde vários fatores
descritos pelo autor Flávio Villaça em seu
2. O conjunto dos paroquianos: como especulação imobiliária, exploração
livro “Espaço Intra-Urbano no Brasil”.
e alienação da força de trabalho, entre
“O tempo não lhe chegava para
Outro autor que trata do tema é outros, levam a ocupação de áreas mais
dançar e tocar violão à beira dos lagos,
Mauricio de Abreu. No seu importante distantes pela população mais pobre, em
onde passava a maior parte do ano,
livro “A Evolução Urbana do Rio um processo paralelo ao da segregação

28 Revista da FAU UFRJ_número 2


, , desideroso che , desideroso che , desideroso che desideroso di qualche goccia d’acqua,
desideroso di qualche goccia d’acqua, desideroso che goccia d’acqua, desideroso di qualche
goccia d’acqua, desideroso di qualche goccia d’acqua, desideroso di qualche goccia d’acqua,V
desideroso che , desideroso che , desideroso che desideroso di qualche goccia d’acqua,
desideroso di qualche goccia d’acqua, desideroso che goccia d’acqua, desideroso di qualche
goccia d’acqua, desideroso di qualche goccia d’acqua, desideroso di qualche goccia d’acqua,V

voluntária das elites, que se apropriam cidades tiveram limites ou fronteiras — ou baleuca - a distância
das melhores regiões da cidade e com seus inevitáveis toques de recolher de uma légua para
impedem seu uso pelas classes mais e portões fechados durante a noite, fora dos limites de uma
pobres. o que significava que os retardatários cidade ou mosteiro na
O professor Joseph Rykwert dedica todo tinham que procurar acomodação fora qual suas leis, o seu
um capitulo do seu livro “A sedução das muralhas —, existiram subúrbios. ban, ainda prevaleciam).
do Lugar” (3) ao tema do subúrbio Na Europa, da Idade Média em diante, A medida que as
combinando este assunto com o tema as estalagens que acolhiam viajantes cidades medievais e
das novas capitais. Na passagem desgarrados e a imposição de taxas de posteriores cresciam,
selecionada abaixo procura elucidar importação pelas cidades induziram o novas e mais extensas
a questão sob um ponto de vista funcionamento de um mercado livre.
Tudo isso atraía óbvias atividades ilícitas, muralhas envolviam áreas anteriormente
abrangente: suburbanas que haviam se tornado
o jogo e a prostituição. Por sua vez, o
“[...] O crescimento dos subúrbios mercado e a estalagem geraram suas desconfortavelmente grandes e
– aparentemente incontrolável e próprias povoações. importantes. Desse modo, o Faubourg
em geral não-planejado, se não Saint-Germain se tornou, no século XVIII,
mesmo não-premeditado — foi um A palavra inglesa “suburb” não descreve o bairro das grandes mansões da nobreza
problema pragmático que levou vários a situação de modo tão preciso quanto e, conseqüentemente, o termo faubourg ,
reformadores a propor a fundação de as francesas faubourg (fora da cidade) e até então não qualificado, passou a
novos assentamentos. Enquanto as banlieue (corruptela do latim banlauca sugerir a elegância da aristocracia com

Subúrbios Cariocas 29
relação aos novos ricos; enquanto isso, a
noun Banlieue
palavra suburb conservou o seu sentido
pejorativo, como na descrição feita por An outlying district of a city, esp. a 1. Étendue de pays qui entoure
Lorde Byron de uma dama deselegante residential one. une ville et qui en est souvent une
como ‘vulgar, sem graça e suburbana’. ORIGIN Middle English: from Old dépendance.
French suburbe or Latin suburbium. La banlieue est la zone périphérique
[...] Mesmo quando adquire uma urbanisée autour d’une grande ville.
Commonly defined as residential areas
administração própria, nunca é
on the outskirts of a city or large Ce mot a évolué. Il est aussi utilisé par
um centro financeiro ou de poder.
town.[1] Most modern suburbs are la presse française pour désigner les
Raramente os subúrbios eram produtivos
commuter towns with many single- Français d’origine étrangère en échec.
em termos agrícolas ou industriais.
family homes. Many suburbs have Quand, dans la presse, on parle du
No século XVIII, começaram a assumir
some degree of political autonomy “problème des banlieues” on parle du
um aspecto novo e burguês, à medida
and most have lower population problème d’intégration d’une catégorie
que os cidadãos começaram a achar
density than inner city neighborhoods. de personnes d’origine étrangère dans
que sua cidade estava ficando cada
Mechanical transport, including la société française (qui peut vivre aussi
vez mais populosa e poluída, isso em
automobiles, enabled the 20th dans de grandes villes comme dans le
uma época em que as estradas e o
century growth of suburbs, which nord de Paris).
transporte em geral estavam passando
tend to proliferate near cities with an
por um processo de melhoria. Cidadãos Ainda assim, talvez seja importante
abundance of adjacent flat land. [2]
que possuíam meios mudavam-se para lembrar que provavelmente o mais
os limites da cidade ou mesmo para o The first recorded usage, according to
antigo subúrbio conhecido como tal
campo, em busca de ar puro e de algo the Oxford English Dictionary, comes
seja Ostia, situada 30 km a oeste de
que se assemelhasse à vida rural, embora from Wycliffe in 1380, where the form
Roma, na foz do rio Tibre. De acordo
permanecendo relativamente próximos “subarbis” is used.
com a tradição, a localidade foi [re-]
de seus locais de trabalho[...] ” (p. 224) Em francês poderiam ser duas palavras: fundada, num povoado que existia desde
1400 a.C., pelo quarto rei de Roma,
O capitulo, tratando do assunto a partir
Ancus Marcius, em 620 a.C., como uma
da Idade Média européia, é longo e Faubourg
coloniae dependente de Roma. Era o
muito interessante pelas conexões 1. La partie d’une ville qui est au-delà principal porto (militar e comercial) e
temáticas e históricas que faz. De de ses portes et de son enceinte. abrigou no seu auge (c. 160 d.C.) uma
qualquer forma vale a pena ressaltar
2. Quartiers d’une ville qui n’étaient população de cerca de 50.000 pessoas,
alguns de seus principais termos no seus
anciennement que des faubourgs. incluindo cerca de 20.000 escravos.
idiomas originais. A palavra em inglês é
Les faubourgs étaient les quartiers Entrou em decadência a partir de 90 d.C.
suburb:
“fors le bourg”, donc en dehors des As mais antigas ruínas datam do período
murs ou au-delà des portes d’une ville. 380-340 a.C. e são conhecidas como
Sub-urb Ostia Antica. Atualmente a região, com

30 Revista da FAU UFRJ_número 2


, desideroso che , desideroso
che , desideroso che
desideroso di qualche goccia , desideroso che , desideroso
d’acqua, desideroso di qualche qualche goc i qualche goc ia che , desideroso che
goccia d’acqua, desideroso d’acqua, desideroso di qualche desideroso di qualche goccia
che goccia d’acqua, desideroso goccia d’acqua, desideroso d’acqua, desideroso di qualche
di qualche goccia d’acqua, di qualche goccia d’acqua, oso di qualche goccia d’acqua,
desideroso di qualche goccia desideroso di qualche goccia desideroso di qualche goccia
d’acqua, desideroso di qualche d’acqua, desideroso di qualche d’acqua, desideroso di qualche
goccia d’acqua,V goccia d’acqua,V goccia d’acqua,V

desideroso di qualche goccia d’acqua, località distinta. Esso può trovarsi sia
uma nova configuração geográfica, é
i piazzali abbandonati, sporchi all’interno dei confini amministrativi
conhecida como Lido di Ostia ou Lido di
e polverosi, il verde tristemente della città, che al di fuori.
Roma. Uma curiosa reclamação colhida
ao acaso em um sítio na internet define abbandonato, le palme ormai Tanto a palavra banlieue em francês
sua situação atual: abbattute. como a palavra suburb em inglês,
Sembra si sia scatenata una tempesta referem-se a áreas habitacionais na
“Ostia. Un sobborgo di Roma. nucleare. periferia de uma cidade; no entanto, no
Settembre 11, 2007 Questo sarebbe la località di mare che uso cotidiano seus significados podem
dovrebbe ospitare turisti in visita da ser bastante diferentes. Nos Estados
E’ veramente triste constatare che
tutto il mondo? Unidos ou na Inglaterra, a palavra define,
Ostia continua a mantenere la
Per ora rimane un sobborgo di Roma em geral, áreas de baixa densidade, com
vocazione di quartiere popolare,
in triste abbandono.” habitações unifamiliares destacada ou
periferico e degradato nonostante
semi-destacadas, habitadas pelas classes
i soldi spesi dall’amministrazione
Aqui também vale a pena entender a média e média-alta.
comunale e nonostante molti cittadini,
palavra no seu idioma original:
illusi in un radicale cambiamento. Rykvert também revela que na Inglaterra
Sobborgo
Basta farsi un giro sul nuovo a ferrovia desempenhou um papel muito
lungomare che dopo anni di lavori m importante. De algum modo a extensão
si presenta in pietoso stato con aiole sostantivo das linhas ferroviárias acabou por
ridotte a campi di patate con erbacce 1. Zona abitata collocata nelle estimular a preferência dos ingleses por
secche ed incolte, sporcizie, incuria, vicinanze di una città, ma che non è casas isoladas e alguns empreendedores
per non parlare del lungomare di ancora stato completamente inglobato passaram a atender essa demanda
ponente con il suo spartitraffico da essa ed è ancora riconoscibile come construindo loteamentos afastados e,

Subúrbios Cariocas 31
logo a seguir, os londrinos começaram
a colonizar uma série de localidades
em torno do centro urbano. O subúrbio
de Hampstead, que comemorou
recentemente seu centésimo aniversário,
é um exemplo notável de uma área bem
cuidada e ocupada por uma população
afluente.

Na França o termo descreve mais


freqüentemente áreas de edifícios de
apartamentos, com alta densidade,
para habitantes de baixa-renda. Ainda
assim, um banlieue pode ser ‘rico’ ou
‘pobre’. Como explicado por Rykwert, a
extensão da linha férrea na direção oeste
de Paris, pouco antes de 1850, levou
Alphonse Pallu a planejar uma espécie
de “subúrbio rural” em Le Vésinet. Este
banlieue é até hoje habitado por uma
população afluente; por outro lado,
Clichy-sous-Bois, mais recente, é um
banlieu ‘pobre’. Subúrbios como Clichy-
sous-Bois existem em outros paises da
Europa: um exemplo é Tensta, súburbio
(stadsdelsområ de no idioma local)
de Estocolmo, Suécia, com cerca de
18000 habitantes. Deste total 60% são
imigrantes.

O autor considera que um subúrbio


deve ser sempre parasitário de uma
cidade. Mesmo quando adquire uma
seguidores. E neste sentido vale a pena Ebenezer Howard, que talvez tenha sido
administração própria ou concentra
entender no idioma original o significado o mais influente dessa nova geração de
algum tipo de produção agrícola ou
palavra: reformadores: a Cidade-Jardim. Howard,
industrial, nunca será um centro de
que não era arquiteto, publicou em 1902
poder. um livro ilustrado com diagramas que
arrabal
De qualquer forma, subúrbio-refúgio até hoje são citados. Suas idéias foram
Sustantivo masculino
original, ocupado por uma população muito bem recebidas e entusiasmaram
1. Barrio fuera del recinto de una alguns empreendedores inspirando um
afluente, teve tanto na Europa como nos población o en su periferia, en especial
Estados Unidos um reverso da moeda movimento pró Cidades-Jardim. Mesmo
aquél cuya población tiene un bajo assim, o progresso para a implantação
não tão agradável, constituído por vastas nivel económico.
áreas de casas para operários, com efetiva de projetos foi lento.
* Sinónimos: suburbio, barrio,
alta densidade populacional. Sempre No caso do Rio de Janeiro, em 1913,
barriada.
dependendo da fábrica onde seus por iniciativa do então presidente da
habitantes trabalhavam e sempre em “Un suburbio es un barrio, sector
república, Marechal Hermes da Fonseca,
suas proximidades. A fábrica era o seu o comuna alejado del centro de la
foi iniciada a implantação da Vila
centro, do mesmo modo que a cidade ciudad, específicamente, ubicado
Proletária de Marechal Hermes, área
era o centro do subúrbio de classe média. en la periferia de ésta. Un suburbio,
que hoje é considerada como subúrbio.
No caso do Rio a evolução histórica da para que sea tal, debe contar con la
Aproveitando-se a expansão da rede
Gávea, que já foi considerado como um suficiente disponibilidad de industrias y
ferroviária, a Vila — aqui também
servicios (hospitales, clínicas, escuelas,
subúrbio, é um interessante exemplo vale notar o emprego do termo “vila”
colegios, universidades, centros
onde ainda se pode encontrar algumas para designar uma expansão urbana
comerciales, transporte interno, etc.)
dessas vilas operárias. satélite — foi de certo modo planejada
que hagan que el habitante suburbano
como uma espécie de cidade-jardim
De todo modo, alguns urbanistas no tenga que viajar hasta el centro
para uso exclusivamente residencial e
do século XIX viram nesse tipo de de la ciudad para obtener las mismas
previa uma infra-estrutura de serviços
crescimento urbano um desafio. Um prestaciones.”
públicos adequada. Com o término do
exemplo é a proposta de Soria y Mata,
Outra solução, diferente, foi sugerida por seu governo, o projeto foi abandonado
a Ciudad Lineal, que veio a ter inúmeros

32 Revista da FAU UFRJ_número 2


com poucas unidades efetivamente Na época em que a cidade-jardim
construídas. As obras só foram estava surgindo na Inglaterra, uma outra
retomadas em 1930, também em ritmo idéia foi lançada nos Estados Unidos:
lento, no governo de Getúlio Vargas. a Unidade de Vizinhança, formulado
Só em 50 o arquiteto Affonso Eduardo pelo sociólogo Clarence Perry. Em 1924,
Reidy elaboraria o projeto para o Teatro Clarence Stein e Henry Wright, aplicando
Popular de Marechal Hermes (mais tarde essa idéia, propuseram a Radburn
Armando Gonzaga). , desideroso che , desideroso che ,
Village, em Nova Jersey, que acabou
desideroso che desideroso di qualche
por emprestar seu nome ao sistema de goccia d’acqua, desideroso di qualche
Na Inglaterra, somente após a primeira
ordenamento de circulação que evita goccia d’acqua, desideroso che goccia
guerra, teve início em 1919-20 a d’acqua, . di qualche goccia d’acqua,
cruzamentos e permite a separação entre
construção efetiva de uma Cidade-Jardim desideroso che goccia. di qualche goccia
pedestres e veículos motorizados sem d’acqua, desideroso che goccia. di qualche
e a primeira a ser também chamada de
impedir o acesso aos edifícios. Método goccia d’acqua, desideroso che goccia
Cidade-Satélite : Welwyn. Os primeiros
que foi aplicado em algumas cidades
edifícios só foram erguidos em 1925. Por
americanas e européias.
volta de 1939 várias indústrias haviam se
estabelecido na cidade e sua população No período imediatamente posterior
atingira 18.500 habitantes. Ainda assim, ao fim da II grande guerra, ocorreu
O movimento inspirou empreendimentos uma crise habitacional na Europa e
nos mais diferentes lugares. Um desses nos Estados Unidos. Na Inglaterra sete
exemplos é a Ciudad-Jardín, Lomas del Subúrbios/ Cidades-Satélites foram
Palomar. Localizado em Palomar, na implantadas ao redor de Londres.
Grande Buenos Aires, foi idealizada Welwyn serviu de modelo e refez a
em 1929 por um imigrante alemão e ligação com o movimento da Cidade-
atualmente abriga 6.500 famílias com Jardim.
diferentes níveis de renda. Continua,
até hoje, sendo muito citado como um Na França, ss coisas se passaram de
exemplo de subúrbio bem sucedido. maneira distinta. As leis não incentivavam

Subúrbios Cariocas 33
o investimento privado em habitações e ocupar o território de modo desregulado
a primeira resposta oficial à crise do pós- ou descontrolado.
guerra foi os Grands Ensembles, imensos
conjuntos de prédios de apartamentos, De qualquer forma, vale lembrar que
implantados fora da cidade, que curiosamente ainda existem os restos
abrigariam uma população em torno de de um pequeno subúrbio americano
20 mil habitantes. O primeiro deles, em “perdido” em plena floresta amazônica:
Sarcelles (16 quilômetros ao norte do Fordlândia. Este foi o nome dado à
centro de Paris) teve início em 1954. “company town” implantada em uma
gleba de terra adquirida pelo empresário
Nos Estados Unidos a organização norte-americano Henry Ford, através de
urbana não era o principal foco. Os sua empresa Companhia Ford Industrial
soldados que retornavam recebiam do Brasil, por concessão do Estado do
ofertas de hipotecas com juros baixos, Pará, em 1927, numa região conhecida
eram incentivados a adquirir casas como Belterra. A área de cerca de 15.000
e convencidos a fazer empréstimos km2 fica próximo a cidade de Santarém,
para comprar carros. O objetivo era às margens do Rio Tapajós. A empresa
reorganizar a economia, afetada pela tinha a intenção de usar área para plantar
guerra. seringueiras e abastecer sua empresa
do látex necessário para a confecção
Grandes conjuntos habitacionais de casas de pneus para seus automóveis. Com o
unifamiliares, que retoman a as idéias de falecimento de Henry Ford, a empresa
Radburn numa escala muito maior, foram decidiu encerrar o projeto no Brasil. Em
construídos na periferia das cidades, dos 1945 o governo brasileiro assumiu as
quais as Levittowns — que receberam instalações e plantações remanescentes.
o nome de seu planejador, Abraham Durante anos, a área foi esquecida e o
Levitt — tornaram-se um padrão, sendo “subúrbio americano” foi transformado
a primeira realizada em Long Island, New em Estabelecimento Rural do Tapajós
York. (ERT), ficando sob jurisdição do
Assim, nos Estados Unidos, a partir Ministério da Agricultura. Em 1997, os
da década de 1950, um número moradores de Belterra conseguiram a
considerável de habitantes de classes emancipação do município.
média e média-alta dos grandes Com toda certeza será esclarecedor
núcleos metropolitanos passaram a concluir estas considerações sobre o
migrar para os subúrbios em busca subúrbio com mais algumas passagens
de espaço, conforto e segurança. elucidativas do relatório parcial “Les Mots
Como conseqüência, a diversidade de la Ville” da professora Margareth A.
da população de diversas áreas C. da Silva Pereira:
metropolitanas importantes modificou-se
nos censos, petições, listas eleitorais e
de maneira considerável. Algumas dessas “[A] organização jurídica e administrativa
na linguagem popular até, pelo menos,
áreas centrais passaram, inclusive, a ter o do Brasil, agora como um novo Império,
a proclamação da República em 1889.
predomínio de uma população de renda iria estimular a criação de um vocabulário
[...] Distrito começaria a ser empregado
mais baixa. O uso coloquial da palavra urbano que visava se distinguir tanto
em alguns textos administrativos e
“suburb” acabou por abreviá-la para a da estrutura colonial quanto da própria
técnicos, [...] embora passe a ser mais
expressão “burb” que surge nos anos 70 fala monárquica. Assim, o país passa
utilizado na linguagem de prestação
em Chicago. a ser divido em províncias, que por
de serviços públicos [...] bairro, por sua
sua vez são divididas em comarcas,
Considerando a grande expansão que vez, após estar em voga como vimos no
compostas por municípios, com sua
essas áreas vêm apresentando nos vocabulário da Corte portuguesa, perde
cidades e vilas. Ora, mesmo com estas
últimos anos, a questão do subúrbios importância durante algumas décadas
mudanças no plano lingüístico associadas
na América do Norte tem recebido para se firmar também já na segunda
à nova ordem jurídica e administrativa,
uma atenção especial por conta do metade do século XIX.
a expressão subúrbio continua
chamado Urban Sprawl, expressão que praticamente ignorada no discurso [...] numerosas pequenas localidades
em português recebeu a tradução de urbano. em tomo das estações ferroviárias
“alastramento suburbano”. A expressão
nos arredores de Recife, Fortaleza,
geralmente tem conotações negativas [...] a unidade de repartição das
Natal, João Pessoa, continuariam a ser
devido às questões ambientais e de zonas rurais e urbanas dentro de
chamadas de subúrbios até hoje. Mas é
saúde que o seus inúmero críticos alegam cada município continuaria a ser
no Rio de Janeiro que a palavra é ainda
que essa forma de alastramento cria ao oficialmente freguesia, empregada
hoje mais utilizada no país, sempre
Notas Referências Bibliográficas:

para designar paisagens sociais e nunca 1. O Novo Dicionário Aurélio ABREU, Maurício de Almeida. “Evolução
um perímetro em relação ao centro da (Editora Positivo, Curitiba 2005) é Urbana do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro:
cidade. um dos principais dicionários de Instituto Pereira Passos, 1987.
Língua Portuguesa adotados no
Brasil. A SEDUÇÃO DO LUGAR: A História e o
[...] depois de ter seu uso consolidado,
Futuro da Cidade. Capítulo 6 (pp. 223-261)
circunscrito ao linguajar de pouquíssimas
2. O escritor e jornalista brasileiro
cidades brasileiras entre 1900-1950, Marques Rebelo — pseudônimo VILLAÇA, Flávio. “Espaço Intra-Urbano no
o vocábulo amplia sua circulação no literário de Eddy Dias da Cruz Brasil”. 2a ed. São Paulo: Studio Nobel/
Brasil contemporâneo. [...] Ela ganhou (Rio de Janeiro, 1907 — Rio de Fapesp, 2001
um sentido cultural quase metafórico Janeiro, 1973) — foi o segundo
e passou a ser utilizada para evocar a ocupante da cadeira 9 da
‘universalidade da pobreza industrializada Academia Brasileira de Letras.
sob o império do kitsch’ e ‘o universo Eleito em 1964, tomou posse em
pop no sentido popular e industrial que 1965, sendo recebido por Aurélio
Buarque de Holanda.
tanto podem ser detectados na Índia,
no Paquistão ou na periferia de São 3. A SEDUÇÃO DO LUGAR: A
Paulo’...” História e o Futuro da Cidade.
Capítulo 6 (pp. 223-261).
OS SUBÚRBIOS E AS NOVAS
CAPITAIS. Martins Fontes, São
Paulo 2004.
José Barki é Professor Adjunto da FAU-UFRJ.

Subúrbios Cariocas 35
depoimento

UM NOVO OLHAR SOBRE OS ENTORNOS DA CIDADE


Rafael Mattoso

Porque será que aceitamos tão facilmente subúrbio é quase sempre feio e sem as políticas de modernização da zona
uma lógica, senso comum, que teima atrativos, ausente de participação política central, em curso na cidade do Rio de
em nos apresentar os subúrbios como e cultural. No máximo, concede-se Janeiro ainda durante o período imperial,
espaços sem beleza, quase sempre ao subúrbio o lugar de reprodução.” permitem entender melhor a necessidade
sem importância cultural ou histórica? (FERNANDEZ, 1996, p.192) da “invenção do subúrbio”, visando
É intrigante perceber como, em pouco desassociar este de uma nova região
mais de um século, os moradores do Rio Quando utilizamos jocosamente a central que se pretendia edificar.
de Janeiro acostumaram-se a denominar palavra subúrbio estamos cometendo
erro de ignorar a complexidade de seu Como nos apontam Noronha Santos
e, posteriormente, menosprezar, parte
significado histórico, sem compreender (1965) e Joaquim J. Moura dos Santos
considerável desta cidade.
que a idéia de subúrbio nasce junto ao (1987), a criação da freguesia de Nossa
Os subúrbios cariocas, antes próprio processo de inteligibilidade da Senhora da Apresentação de Irajá,
compreendidos somente como áreas cidade, ao mesmo tempo da própria pelo padre Antônio Martins Loureiro,
afastadas ou zona rural da cidade, concepção da urbe. em 1664, forma a base econômica e
tiveram sua ocupação intensificada geográfica para a posterior elevação de
a partir de meados do século XIX, Autores, como Ruben Oliven, apontam a Inhaúma à categoria de freguesia rural
acompanhando o processo de utilização do termo suburbiu, originário do Rio de Janeiro em 1743. As alterações
construção da ferrovia Dom Pedro II, do latim, antes mesmo da Roma de em suas funções estruturais e em sua
datada de 1855. Augusto (27 a.C.), identificando a relação com o centro da cidade se dão
utilização do próprio termo ou similares à medida que o declínio da produção
Ao presenciar de perto o crescimento nas sociedades do Egito, Babilônia de cana de açúcar e o surgimento de
da região central, os subúrbios e Grécia, sendo empregada para uma conjuntura favorável à mineração
testemunharam as transformações denominar cercanias da cidade ou e, posteriormente, à cultura cafeeira se
sofridas em suas antigas funções rurais. arrabaldes provinciais. (1) processam na cidade. É através desta
Realizadas desordenadamente, estas nova estrutura agroexportadora do Rio
transformações ocorreram através de No entanto tal nomenclatura não que tais freguesias passaram a fornecer
uma ocupação que se estendia para além carregava em si noções depreciativas. o resultado de sua produção – por meio
da Cidade Nova, em direção à antiga Ao contrário, o subúrbio era vinculado de grandes lavouras – que seguiriam pelo
sesmaria jesuítica de São Francisco Xavier ao prazer e às necessidades nobres, principal porto de exportação do país,
do Engenho Velho. permeadas por uma visão edênica e situado no centro da cidade, para os
bucólica, vinculado também à agricultura crescentes mercados internos e externos.
Freguesias rurais como Irajá e e pecuária praticada por trabalhadores
Inhaúma, fundadas, respectivamente, que habitavam a cidade. Muitas vezes, Na primeira metade do século XIX,
em 1664 e em 1743, tornavam-se, o ginásio, o teatro e a academia mesmo já tendo sido iniciado o processo
por volta de metade do século XX, localizavam-se nos “subúrbios”, assim de retalhamento das grandes freguesias
quase irreconhecíveis frente à nova como novos grupos e instituições que rurais, continuava a existir um número
organização urbana. Favorecidas pelo demandavam espaço que a cidade significativo de grandes propriedades. A
crescimento comercial e pela evolução congestionada não podia oferecer. partir de 1850 esta grande quantidade
dos meios de transporte, aos poucos seu de terra passaria, gradativamente, a ser
aspecto periférico cedeu lugar a uma Para melhor compreendermos os motivos vendidas ou arrendadas, contribuindo
nova e moderna rede de subcentros, da depreciação da palavra subúrbio, no para a formação do que Robert Moses
que se integravam à vida da grande caso carioca, faz-se necessário retroceder Pechman (1985) chamaria de mercado
metrópole. Entretanto, nem mesmo essas às freguesias de Inhaúma e Irajá, durante de terras rurais, onde os terrenos seriam
transformações apagaram do imaginário o primeiro quartel do século XVIII, usados também para fins especulativos.
popular a representação, muitas vezes pois, como já havíamos mencionado,
depreciativa, herdada da transição do nesta região localizavam-se as primeiras “Entre os anos de 1820 e 1872, (...) as
Império para a República. freguesias rurais, que posteriormente grandes lavouras da freguesia entram
emergiram como os embrionários em declínio, o qual é acompanhado pela
“Predomina entre nós, em nossa subúrbios cariocas. decadência do escravismo local, (...) fim
linguagem, a idéia de um espaço da conjuntura favorável às exportações
subordinado e sem história, sem criação, A consolidação deste processo histórico, de açúcar para o mercado externo e do
sem cultura, carente de valores estéticos nas freguesias analisadas, deve-se a deslocamento (...) para fins residenciais
em seus homens e sua natureza – sua proximidade com o centro, já que e na substituição gradativa das antigas

36 Revista da FAU UFRJ_número 2


funções rurais que desempenhava por figuras de Barata Ribeiro e Pereira Passos. espécie de “campanha difamatória”,
funções caracteristicamente urbanas.” Este processo é intensificado entre os utilizando em grande parte os meios
(SANTOS, 1987 p.280.) anos de 1890 e 1906, período em que disponibilizados pelo aparato do novo
o subúrbio de Inhaúma torna-se a área estado republicano, as elites dominantes
Com as primeiras investidas sanitárias residencial proletária mais importante do aspiravam construir um novo modelo de
iniciadas no final do século XIX, ainda Distrito Federal, à medida em que supria cidade.
sob a rege monárquica, tem início uma cada vez mais o centro da cidade de mão
espécie de “cruzada burguesa”(2), que de obra. “A palavra ‘subúrbio’ contém,
busca expulsar as camadas pobres da indubitavelmente, na linguagem carioca,
Será justamente neste contexto que um certo sentido depreciativo, que inclui
zona central da cidade, apresentando-
os subúrbios cariocas sofreram uma não só uma idéia de recursos financeiros
lhes poucas opções além da rota
profunda transformação, passando a mais limitados, mas também um certo
em direção às áreas suburbanas e às
ser gradativamente segregados política gênero de vida particular.” (BERNARDES
primeiras favelas. Essa intransigente
e socialmente pelas autoridades que apud SOARES, 1995, p.141)
intervenção por parte do poder público, desejavam estigmatizar determinada
que no âmbito republicano combate esfera da população. Não só instrumentos legais vão ser
diretamente aqueles que acreditam postos em prática pela nova elite e
ser apenas “bestializados”(3) rumo ao Servindo-se da junção oportunista entre seus representantes com o intuito de
afastamento político, personaliza-se nas política e moral para promover uma “higienizar” o espaço da tão sonhada

Subúrbios Cariocas 37
Paris tropical que se pretendia edificar,
como também se cria uma forma tanto
preconceituosa quanto “oficial” de se
associar cada vez mais as classes pobres
a tipos viciosos, amorais, endêmicos e,
principalmente, tomá-los como nocivos
representantes das “classes perigosas”,
que deveriam ser afastadas do convívio
com os supostos bons cidadãos. Desta
forma nos aproximamos de Chalhoub
(2004, p.34), que apresenta em Cidade
Febril uma análise dos discursos oficiais,
como o proferido pelo vereador e
higienista Pereira Rego reproduzido
abaixo:

“O aperfeiçoamento e o progresso
da higiene pública em qualquer país
simbolizam o aperfeiçoamento moral
e material do povo, que o habita; é o
espelho, onde se refletem as conquistas,
que tem ele alcançado no caminho da
civilização.” para os focos da infecção? Quem pagaria se que desta forma se teria um maior
os salários reclamados, uma vez que controle e a sucessiva diminuição das
Neste trecho encontramos uma prévia teriam saído contra a sua vontade de represálias e greves dos trabalhadores,
do que iremos analisar mais a fundo: seus domicílios? Onde há habitações assim como a melhoria das condições
uma recorrente confusão de idéias, para acomodar toda essa gente...?” estéticas e higiênicas do centro da
que consideramos ser proposital, onde (CHALHOUB, 2004, p.34) cidade.
constantemente a involução, a falta de
higiene, a criminalidade e o atraso estão A maioria dos pareceres da Inspetoria No entanto, torna-se crucial
associados ao caráter ambíguo e amoral Geral de Higiene reproduzia a idéia de compreender que o grande número
das camadas mais pobres. que a degeneração da saúde física e de indivíduos que passará a ocupar os
moral estava diretamente relacionada às subúrbios após a década de 1870 não
Nesta outra fala do Sr. Pereira Rego péssimas condições de vida da população foi simplesmente expulso para esta
encontraremos, já na década de 1870, pauperizada. região através da força ou da autoridade
um traço claro do futuro projeto de da administração política, mas sim por
afastamento das classes pobres para os No discurso de um dos membros da ter optado por esta região, em muitos
subúrbios que seria efetivamente posto Comissão Sanitária, Dr. José Maria casos, pela acessibilidade aos terrenos e
em prática durante os primeiros anos do Teixeira (Ibid, p. 38), estava proposto aluguéis mais baratos.
mando republicano e que no momento que fosse facilitado o acesso às áreas
ainda era inexeqüível no formato mais suburbanas da cidade para que Estes indícios históricos contribuem
sonhado: os proletários pudessem ocupar tal no intuito de provar que o atual
região. Sugeria ainda como medida desconhecimento da história, e por sua
“(...) seria por certo uma preocupação incentivadora a esta política a diminuição vez, das particularidades suburbanas
de sua utilidade, mais para onde no preço das passagens de bondes e foram construídos através de um
mandaríamos mais de vinte mil pessoas? trens para os subúrbios, assim como processo lento e gradual, acompanhado
(...) Quem as sustentaria, quem as a ampliação e aumento na oferta do de uma transição sócio-econômica em
guardaria para não fugirem e voltarem número de horários e linhas. Acreditava- um ambiente reformista que produziu,

38 Revista da FAU UFRJ_número 2


Preço médio do terreno - Rio de Janeiro, 1927

Bairro Preço (m²)


Cais do Porto 300$
Andaraí 35$
Muda da Tijuca 80$
Conde de Bonfim 150$ - 200$
Hadock Lobo 150$ - 200$
Botafogo 300$
Copacabana 120$
Avenida Central 3000$
Avenida Beira-Mar 600$ a 800$
Subúrbios até Engenho de Dentro 20$

Fonte: RICHARD, 1927.

além de reformas urbanas e estéticas, um nova burguesia (...); quatro princípios as páginas dos numerosos periódicos
modelo desnaturalizado do que viria a fundamentais regeram o transcurso locais constantemente denunciam
ser o “refúgio infeliz do proletariado” (4). dessa metamorfose: a condenação dos – exibiam em suas ruas a falta de
hábitos e costumes ligados pela memória calçamento, assim como de esgoto,
Esta noção depreciativa dos espaços à sociedade tradicional; a negação de água e da devida iluminação. Além das
suburbanos foi incorporada de todo e qualquer elemento da cultura inúmeras exigências burocráticas, as
forma eficaz à sociedade, sendo popular que pudesse macular a imagem normas técnicas de construção das novas
concretizada pela falta de políticas civilizada da sociedade dominante; uma habitações populares, segundo o decreto
públicas encampadas nesta região. política rigorosa de expulsão dos grupos de n° 391 de (10/02/1903), tornavam a
Este processo é facilmente evidenciado populares da área central da cidade, que vida nos subúrbios ainda mais onerosa,
pelos moradores das chamadas regiões será praticamente isolada para o desfrute acrescendo-se ao preço das passagens
“periféricas”, que constatam de forma exclusivo das camadas aburguesadas; cotidianas para os locais de trabalho.
prática a pouca evolução e a falta de e um cosmopolitismo agressivo,
melhorias em infra-estrutura e transporte profundamente identificado com a vida Aquela região que, na prática,
durante mais de um século, resgatando parisiense.” (SEVCENKO, 1983, p. 25) extrapolava a contradição física entre o
a dura realidade histórica de pouca moderno e o arcaico, ainda mais latente
ou nenhuma assistência concedida É evidente que a população pobre do devido à proximidade das circunscrições
para estas regiões economicamente Rio de Janeiro foi a mais afetada pela suburbanas com a região central,
desfavorecidas. política de saneamento, modernização também era carente de infra-estrutura
e embelezamento da Capital, que de serviços e de áreas devidamente
“(...) muito cedo ficou evidente para auferiu em diminutas proporções as projetadas para a prática do lazer
os novos personagens o anacronismo benesses da nova cidade modernizada daquela população. “Face a esse quadro
da velha estrutura urbana do Rio de para aqueles trabalhadores tidos como não se pode aceitar a premissa oficial de
Janeiro diante das demandas dos novos “tipos indesejáveis”. Enquanto a região que o ‘bota-abaixo’ era primordialmente
tempos (...); a imagem do progresso central se remodelava com luxo e uma medida de saúde publica” tal como
se transforma na obsessão coletiva da imponência, os subúrbios – tais como nos alerta Eulália Lobo (1978, p. 64)

Subúrbios Cariocas 39
Utilizando as ferramentas do
conhecimento histórico buscamos
melhor entender como esse “projeto”
segregador foi interpretado pelos
moradores destas periferias, assim como
fora historicamente incorporado ao
imaginário coletivo da cidade a ponto de,
ainda hoje, encontrarmos na sociedade
carioca um forte resquício deste
pensamento.

Contribuindo para tal alienação histórica


temos a falta de pesquisas e ainda o
pouco material historiográfico disponível
sobre o tema, colaborando em muito
para a não formação de uma memória
coletiva, tornando impossível uma
identificação por parte dos moradores
que nela habitam com a mesma
inviabilizando, do mesmo modo, a
quebra da manutenção e do afastamento
político desta população.

Estudar a rica história urbana carioca


e, principalmente, o processo de
construção dos subúrbios nos fornece
um confortável aparato epistemológico
e uma chave interpretativa para
analisarmos uma série de políticas atuais.
Percebemos a contemporaneidade do
problema sócio-espacial, interpretando
com outros olhos a origem do constante
medo por parte da elite com a
“violência” que, segundo eles, provém
destas áreas marginalizadas.

Analisando a lacuna histórica do


processo de construção dos subúrbios
cariocas, a embrionária formação de
uma cultura suburbana e suas relações
sociais em uma nova trama cotidiana
dessa área incorporada à cidade
modernizada, podemos entender melhor
como se processaram, na prática,
algumas mudanças políticas do país,
principalmente por se tratar do Distrito
Federal, lócus que pretendia ser a vitrine
e o espelho (5) social, econômico e
político da unidade brasileira tanto para
se legitimar no cenário internacional
como para integrar suas elites nacionais •

Rafael Mattoso é mestrando História


Comparada pelo PPGHC/UFRJ

40 Revista da FAU UFRJ_número 2


Notas
Botequim: O cotidiano dos trabalhadores PECHMAN, Robert Moses. “A gênese do
1. Segundo a pesquisa etimológica do autor no Rio de Janeiro da Belle Époque”. 2. ed. mercado urbano de terras: a produção de
Ruben Oliven (1982). São Paulo: Ed. UNICAMP, 2001. moradias e a formação dos subúrbios no
Rio de Janeiro”. Dissertação de Mestrado
2. Nomenclatura metafórica utilizada por ________. Cidade Febril:cortiços e em Planejamento Urbano e Regional - UFRJ
Gizlene Neder (1997), para denominar uma epidemias na Corte Imperial. 3. ed. Rio de - IPPUR. Rio de Janeiro: 1985.
perseguição sócio-econômica. Janeiro: Companhia das Letras, 2004.
________. “Cidades Estreitamente
3. Termo utilizado por José Murilo de Car- FAUSTO, Boris. “Crime e Cotidiano: a Vigiadas: o detetive e o urbanista”. Rio de
valho (1987, p. 140-160) para denominar, Criminalidade em São Paulo (1880-1924)”. Janeiro: Ed. Casa da Palavra, 2002.
de forma metafórica, a não participação das
2. ed. São Paulo: Edusp, 2001.
camadas populares no processo político da RIBEIRO, Carlos Antonio Costa. “Cor e
República Velha. FERNANDEZ, Annelise Caetano Fraga. Criminalidade: estudo e análise da justiça
“Assim é o Meu Subúrbio: o Projeto de no Rio de Janeiro (1900-1930)”. Rio de
4. Nomenclatura depreciativa recorrente
Dignificarão do Subúrbio Entre as Camadas Janeiro: Ed. UFRJ, 1995.
encontrada nos textos de Lima Barreto para
Médias Suburbanas de 1948 a 1957”.
fazer menção aos subúrbios. RICHARD, Eugênio. “O Problema da
Dissertação de Mestrado em Sociologia -
IFCS - UFRJ. Rio de Janeiro: 1995. Habitação e a Crise das Casas.” Entrevista
5. Temática central da dissertação de
mestrado em História do Brasil, UFRJ/IFCS, Cultura e Trabalho. Agosto 1927.
FERNANDES, Nelson Nobrega. “O ‘rapto
de Carlos Kessel (1996). ROCHA, Oswaldo Porto. “A era das
ideológico’ da categoria subúrbio: Rio de
Janeiro (1858-1845)”. Rio de Janeiro:, UFRJ demolições: cidade do Rio de Janeiro
– Dissertação de Mestrado, PPGG - IGEO - 1870 - 1920. v.1”. Rio de Janeiro: Biblioteca
UFRJ, 1995. carioca, Secretaria Municipal de Cultura -
HENUD, Rosemeire; LEMOS, Maria Teresa Departamento Geral de Documentação e
Referências bibliográficas Informação Cultural, 1986.
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Espaço Suburbano no Rio de Janeiro (1870
KESSEL, Carlos. “A vitrine e o espelho: civilização a cidade símbolo. In: “A visão do
– 1930). In: “Espaço & Debates, nº 21, ano
o Rio de Janeiro de Carlos Sampaio”. outro: seminário Brasil-Argentina”. Brasília:
VII – Vol. 1.” São Paulo: NERU – Núcleo de
Dissertação de Mestrado em História - IFCS FUNAG, 2000.
Estudos Regionais e Urbanos, 1987. - UFRJ. Rio de Janeiro: 1996.
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BENCHIMOL, Jaime Larry. O Rio se renova. E “Contribuição ao estudo da história do
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Inhaúma de 1743 a 1920”. Dissertação de
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Janeiro, 1987.
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MOREIRA, Alinnie Silvestre. “Crime no
cidade do Rio de Janeiro no início do século ________. “História do lugar: um método
subúrbio: análise do cotidiano da 1°
XX”. Dissertação de Mestrado em Ciências Circunscrição Suburbana Inhaúma na de ensino e pesquisa para as escolas de
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História, IFCS/UFRJ, 1999. de Janeiro: 2002, p. 105-124.
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Terezinha de Segadas. “Rio de Janeiro: ________. Declaro que de hontem para SANTOS, Noronha. “Meios de Transporte
Cidade e Região.” 3. ed. Rio de Janeiro: hoje ocorreu o seguinte: O cotidiano no Rio de Janeiro”. 2. ed. Rio de Janeiro:
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BRETAS, Marcos Luiz. “A Guerra das Ruas: ________. “As Freguesias do Rio Antigo”.
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Exclusão Social. Pesquisa Controle Social
missão: tensões sociais e criação cultural
CARVALHO, José Murilo de. “Os e Cidadania. In: “Dossiê-Revista do
departamento de História da UFF/Vol. 2, na Primeira República. SP:
Bestializados ou Bilontras.” São Paulo:
N° 3”. Rio de Janeiro: Ed. Relume-Dumará, Brasiliense, 1983.
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1997. SEVCENKO, Nicolau. “Literatura como
CARVALHO, Lia Aquino de. “Contribuição missão. : tensões sociais e criação cultural
ao estudo das habitações populares: Rio de ________. A instituição policial e as
estratégias de controle social no Rio de na Primeira República”. São Paulo:
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Biblioteca carioca, Secretaria Municipal História. n. 1”. Rio de Janeiro: Revista do
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1986.
da Cidade”. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, habitações coletivas no Rio.” Rio de
CHALHOUB, Sidney. “Trabalho Lar & 1982. Janeiro: UFRJ, 1985.

Subúrbios Cariocas 41
depoimento

O HIP HOP, O RAP E O FUNK: AS VOZES


DESASSOMBRADAS DA PERIFERIA
Regina Meirelles

A música popular da pós-modernidade muito bem colocou Heloisa Buarque de vida de suas comunidades.
não tem gozado de muita popularidade Hollanda em sua palestra proferida na
junto aos teóricos da cultura em nosso Semana da Arquitetura na FAU-UFRJ em O lugar mais ativo dessa significativa
país, com algumas exceções. Quando 2006: e sintomática síntese entre estética e
não é completamente ignorada, é ética desses jovens é o hip hop, gênero
rebaixada a lixo cultural por sua falta “A cultura da periferia distingue-se artístico que, segundo Herschmann
de gosto e de reflexão. A difamação das demais formas culturais (sejam (1995), engloba cinco formas de
da música popular ou da “cultura elas de massa, popular ou de elite) expressão: os MCs (os mestres de
de massa”, com todas as discussões por agregarem novas metas para a cerimônia e animadores das festas de
apropriadas e conotações possíveis criação e evidenciarem formas próprias funk), o Rap, o Break Dance (os bboys),
em relação ao próprio termo, nos de organização do trabalho artístico, o Graffiti e o Conhecimento. Esse último
parece inevitável e significativa dada a subvertendo assim os objetivos – interessantíssimo, produzindo formas de
maneira como esta música é endossada digamos “contemplativos” – da arte e da conhecimento local bastante originais,
por intelectuais de visões e atividades literatura modernas. Entre as inúmeras a partir de estudos sobre a história e as
político-sociais radicalmente diferente. especificidades do que poderia ser raízes culturais do negro, valorizando
Para muitos a cultura popular é boa chamado de uma estética da periferia, seus intelectuais nativos que passam
apenas para aqueles que não podem uma me chama particularmente a a procurar uma educação formal. O
fazer melhor; ela é sempre identificada atenção: a possibilidade de abertura conhecimento orgânico – seja acadêmico
com as produções mais medíocres e de canais diretos de comunicação e de ou não – passa a ser valorizado e
padronizadas; não é algo em que as conexão entre segmentos sociais que experimentado como parte da cultura hip
diferentes classes sociais possam se unir nunca haviam conseguido trabalhar hop, legitimado pelas vozes da periferia.
pelo prazer estético. Uma defesa mais suas representações políticas e culturais
com este grau de abertura expositiva. A Como se articulam nesses ambientes
eficaz dessa arte exige sua justificação de periferia os gêneros musicais
estética, termo este que se origina dinâmica de transitividade dessa nova
produção implica, entre outras variáveis, mencionados: o funk, o rap e o hip hop?
dentro do discurso intelectual adequado
exclusivamente às artes denominadas uma evidência interessante: o descarte Historicamente o funk já nasce marcado
“maiores”. O que pretendo contestar radical de intermediários entre criadores pelo estigma racista. O funk é música
são os argumentos segundo os quais a e receptores de suas demandas e produzida na periferia dos grandes
música popular seja inferior e inadequada expressões artísticas.” centros urbanos e consumida também
em função de sua constituição peculiar. Lidar com estas novas manifestações por jovens que habitam estes centros.
culturais vindas da periferia não apenas O termo funk pertence à linguagem
No atual panorama nacional a noção de chula dos EUA para designar algo como
cultura e, por conseguinte, a produção requer novos instrumentos teóricos,
mas novas posturas e atribuições “cheiro de negro”. Musicalmente foi
musical é forçada a repensar seus uma remodelagem do rhythm’n blues
parâmetros e até mesmo sua função políticas diferenciadas. De modo geral,
ainda não elaboramos uma massa executado por James Brown, no início
social. É nesse contexto sócio-econômico dos anos 60, com o seu hit “Make it
de grandes mudanças sociais e crises crítica consolidada sobre a produção
cultural da periferia. Alguns estudos Funky” (1). Essa história inicia-se nas
identitárias que o século XXI desenha seu décadas de 30/40 nos Estados Unidos
espaço para a produção cultural e para analisam essa produção ou como fator
de inclusão social ou pelo impacto quando grande parte da população
as novas formas de resistência política negra migrava das fazendas do Sul para
e cultural. Nesse espaço as expressões de sua presença na mídia. Entretanto
o que poderia ser mais interessante os grandes centros urbanos. Depois
artísticas vindas da periferia das grandes da 2a guerra mundial a música negra
cidades vêm surpreendendo com é o que Heloisa Buarque chama de
“democratização de expectativas”, a ressurge com o nome de rhythm`n blues
formas mais agressivas de comunicação, e passa a ser explorada comercialmente
demonstrando o desejo de responder possibilidade de consolidar algumas
conexões efetivas entre a cultura pelas gravadoras.
ao acirramento da intolerância racial, à
exclusão social e às taxas crescentes de dominante e as manifestações culturais Em 1950 os gêneros especificadamente
desemprego causadas por mecanismos periféricas acentuadamente na música e explorados pelos mercados musicais
econômicos e culturais globalizados, com na literatura, com forte compromisso de são: o rhythm’n blues negro e a música
formas muito mais contundentes. Como transformação social e intervenção na dos brancos de meio rural – a country

42 Revista da FAU UFRJ_número 2


Subúrbios Cariocas 43
44 Revista da FAU UFRJ_número 2
western. É a conjunção dessas duas às suas músicas como raps. Segundo os Ao contrário do jazz, suas apropriações
correntes que dá origem ao rock’n roll, rappers há um clima de hostilidade em e transfigurações não requerem
gênero que irá subverter a partir dessa relação ao funk, considerado como um habilidade criativa para compor ou tocar
data, todos os esquemas das gravadoras, gênero musical no qual são produzidas instrumentos musicais, mas somente
os hábitos de consumo musical e, num músicas melodicamente pobres e para manipular equipamentos de
sentido mais profundo, a própria cultura de conteúdo leve, isto é, o funk não gravação. Foram os DJs das discotecas
americana. A partir desse momento, os contribui para a conscientização desses que desenvolveram a técnica de cortar
músicos se voltaram para a descoberta indivíduos quanto a sua condição social e mixar um disco no outro, igualando os
de novas sonoridades e experiências ou mesmo racial. No nosso país o hip tempos para fazer uma transição suave,
musicais que propiciaram o aparecimento hop é uma manifestação tão expressiva sem interrupção violenta da fluência
de novos estilos. Surge o soul nos anos quanto o funk. Seus signos e emblemas da dança. Conclui-se que o hip hop
60 e, logo em seguida, a fusão do estão constantemente presentes na começou explicitamente como uma
reggae, do rock e do soul no final dessa indústria cultural (música, vestuário, música para dançar, para ser apreciada
década, produziu o ska/reggae que deu etc.). Segundo Herschmann (2000), pelo movimento e não pela simples
origem ao funk, ao incorporar o heavy pode-se afirmar que São Paulo é o audição.
metal. principal centro irradiador do hip hop
no Brasil, onde grupos como Racionais “Penso que o rap é uma arte popular
O soul agradava aos ouvidos da MCs, Sistema Negro, DCM, Câmbio pós-moderna que desafia algumas das
“maioria” branca, mas o funk Negro, MTN, Pavilhão 9 são expressivos convenções estéticas mais incutidas. Que
radicalizava, empregando ritmos mais na indústria fonográfica. Existem várias pertencem não somente ao modernismo
marcados e “pesados” com arranjos produtoras e selos independentes como estilo artístico e como ideologia,
musicais mais agressivos. Já nessa dedicados basicamente a esse gênero mas à doutrina filosófica da modernidade
época esses gêneros eram conhecidos musical. e à diferenciação aguda entre as esferas
como black music e, apesar de serem culturais”. (SHUSTERMAN, 1998, p.144)
produzidos por e para uma minoria O rap é um dos gêneros de música
étnica, acabaram conquistando o popular que mais se desenvolve O autor, baseando-se na dimensão
sucesso de massa, comercializando-se atualmente, mas também um dos estética do pós-modernismo abordado
e tornando-se produto para consumo mais perseguidos e condenados. por Frederic Jameson (1984) em seu
imediato. Em meados dos anos 70 surgia Suas raízes culturais e seus primeiros estudo ”Postmodernism, or the cultural
o hip hop no Bronx, o gueto negro/ adeptos pertencem à classe baixa da logic of late capitalism”, cita as principais
caribenho ao norte de Nova York, depois sociedade negra norte-americana; seu características do rap, em particular “a
no Harlem e no Brooklin: orgulho negro militante e sua temática tendência mais para uma apropriação
da experiência do gueto representam reciclada do que para uma criação
“No final dos anos 60, um disk- uma ameaça para o status quo da original única, a mistura eclética de
jockey chamado Kool-Herc trouxe da sociedade. Além das razões políticas é estilos, a adesão entusiástica à nova
Jamaica para o Bronx a técnica dos comum encontrar razões estéticas para tecnologia e à cultura de massa, o
famosos ‘sound systems’ de Kingston, desacreditar o rap enquanto forma desafio das noções modernistas de
organizando festas nas praças do bairro. legítima de arte. Suas canções não são autonomia estética e pureza artística,
Herc não se limitava a tocar os discos, cantadas, mas falada ou recitadas. Elas e a ênfase colocada sobre a localização
mas usava o aparelho de mixagem para não empregam músicos nem música espacial e temporal mais do que sobre o
construir novas músicas”. (VIANNA, original; a trilha sonora é, em vez disso, universal ou o eterno”. (SHUSTERMAN,
1998, p. 9) composta de vários cortes e colagens 1998, p.145)

Grandmaster Flash, um dos discípulos de discos geralmente conhecidos – os O sampling ou a apropriação artística
do DJ jamaicano, criou o scratch, ou samples. Por fim, as letras parecem que constitui o cerne do hip hop revela
seja, a utilização da agulha do toca- grosseiras e primárias, o ritmo duro e o traço característico de sua técnica e
disco, arranhando o vinil em sentido repetitivo, a dicção cortada e os temas mensagem. A música é composta pela
anti-horário, como instrumento musical. em sua maioria libidinosos. seleção e combinação de partes de faixas
Flash entregava um microfone para que Richard Shusterman (1998, p.147), em já gravadas, produzindo uma “nova”
os dançarinos pudessem improvisar sua obra Vivendo a Arte, defende a música. Realizada pelo DJ em uma mesa
discursos acompanhando o ritmo legitimidade estética do rap que, se de múltiplos canais, ela constitui o fundo
da música, uma espécie de repente apropriando dos sons e das técnicas do musical para as letras. Estas, por sua vez,
eletrônico que ficou conhecido como estilo disco, os transformou como havia geralmente enfatizam a habilidade do
rap. feito o jazz com as melodias e as canções DJ para selecionar e sintetizar a música
populares. Mas diferentemente do jazz, propícia, e o talento lírico e rítmico
O termo hip hop tem se notabilizado do rapper (chamado MC). O orgulho
no Brasil entre os bboys na tentativa de o hip hop não retoma as melodias nem
as frases musicais, ou seja, os padrões manifesto do rapper normalmente
demarcar uma fronteira mais clara com o coloca em evidência sua performance
funk, apesar de os jovens que participam musicais exemplificados em diferentes
performances. O rap toma elementos sexual, seu sucesso comercial, talentos
de ambos os universos utilizarem vistos como secundários, considerados
vocabulário similar. Todos eles chamam acústicos concretos, performances
pré-gravadas desses padrões musicais. derivados do seu poder verbal. Pode
os cantores de rappers, MCs e referem-se parecer estranho que essa habilidade

Subúrbios Cariocas 45
verbal seja tão apreciada nas periferias provocaram inúmeras discussões. O Planet Hemp é considerado um dos
de maioria negra, mas vários estudos “maiores atentados contra a hipocrisia”
etnomusicológicos e antropológicos A seleção e a montagem de trechos de no Brasil. Fundada em 1993, no Rio
(2) demonstram que não só a música músicas pré-gravadas que configuram de Janeiro, pelos vocalistas Marcelo
de origem africana deriva da palavra o sampling como um estilo do rap D2 e Skunk, em apenas três concertos
como se pode afirmar que uma posição também desafiam o ideal tradicional a banda chamou a atenção da mídia,
social superior pelo poder verbal é uma da unidade e integridade da obra de dos produtores e de editoras musicais
tradição negra profundamente enraizada, arte. Esse contraste com a estética dos anos 1990 ao elevar o grito pela
que remonta aos griots do Senegal e da unidade orgânica refletem “a liberação da maconha e por maior
de outros países africanos, tendo sido fragmentação esquizofrênica” e o liberdade de expressão em todo o país.
sustentada no Novo Mundo através de “efeito de colagem” características da Em 94 assinariam pela Sony Music para
jogos verbais convencionais como o estética pós-moderna, as quais Jameson gravar o incendiário disco de estréia,
“partido-alto” e os “pontos amarrados” (1984, p. 75) se refere. Opondo-se à “Usuário”. Skunk não viria a participar
do jongo no Brasil e o “signifying” estética do culto à obra fixa, intocável, deste registro, pois falecera logo
(significação) ou “the dozens” (as dúzias) o hip hop oferece o panorama da arte após a contratação. O álbum ganhou
nos Estados Unidos. (3) desconstrutiva – a vibrante beleza de notoriedade pelo discurso cortante
desmembrar obras antigas para criar de Marcelo D2 e B. Negão numa
Uma leitura atenta e não preconceituosa outras novas, transformando o pré- fusão bombástica entre rap, hip hop,
revela em muitas letras de rap expressões fabricado em algo diferente. Da mesma rock, reggae e ragga, completamente
espirituosas, de aguda perspicácia, bem forma, como estabelece Shusterman antenados com as novas tendências
como formas de sutileza lingüística (1998, p.151), o sampling do rap implica americanas do rap, onde buscavam
e níveis diversos de significação cuja que a integridade de uma obra de arte influências da cultura negra como meio
complexidade polissêmica, ambigüidade enquanto objeto jamais deve ter mais de renovação. Em 1996 lançaram seu
e intertextualidade podem rivalizar importância que as possibilidades de segundo disco que levaria o profético
com obras pós-modernas de artes prosseguir a criação pela reutilização título “Os cães ladram, mas a caravana
consideradas maiores. Esses artifícios desse objeto. não pára”. Profético porque, com
de montagem, mixagem e scratching o sucesso da banda, grupos mais
dão ao rap uma variedade de formas Mesmo quando ganha uma dimensão
internacional, o rap é sempre conservadores de algumas regiões
de apropriação que parecem tão começaram a movimentar-se para
imaginativas quanto às de Duchamp ou orgulhosamente local. Sua forte
presença na periferia denunciando os impedir concertos, fixar cartazes ou
de reduplicações de imagens comerciais aparições do grupo em suas cidades.
de Andy Wahrol. O rap não apenas conflitos e preconceitos o associam
com o crime e a violência que cercam Esses fatos culminaram com a prisão dos
utiliza trechos de canções populares, membros do grupo durante um concerto
como também absorve ecleticamente essas comunidades. Apesar de visar um
público mais amplo, seu protesto quanto em Brasília por suposta apologia às
elementos da música clássica, das drogas.
apresentações de Tv, de jingles de à pobreza, a perseguição e o preconceito
publicidade e de música eletrônica de racial pode ser incorporado por outros Com a prisão, vários setores a favor
videogames. Apropria-se de conteúdos grupos ou indivíduos que experimentam do movimento pró-despenalização ou
não musicais, como reportagens essas situações fora das favelas ou dos descriminalização dos consumidores
de jornais na TV, de palavrões, de guetos negros. Ainda estamos longe de drogas leves – como políticos,
insinuações provocativas. de presenciar o que David Toop (1984) ONG’s e artistas protestaram contra a
observou em guetos negros americanos, arbitrariedade. O Planet Hemp, além
O padrão estético e criativo do onde “o hip hop ajudou a transformar de fãs, músicas nas rádios, e discos
rap desafia o ideal tradicional de violentas rivalidades entre gangues esgotados nas lojas, ganharia espaço nos
originalidade e autenticidade que locais através das competições verbais e telejornais. Após longo processo vencido,
durante muito tempo escravizou nossa musicais entre grupos de rappers.” (4) a “caravana” seguiu, tornando-se uma
concepção de arte. O romantismo e seu das bandas mais famosas e solicitadas
culto ao gênio comparava o artista a Apesar de serem numerosos, as
associações e os grupos de rappers do mercado. Com a notoriedade,
um criador divino e defendia que suas Marcelo D2 resolveu se lançar na carreira
obras deveriam ser novas e exprimir sua cariocas não possuem a mesma estrutura
encontrada em São Paulo. Talvez a única solo e em 1998 viajou para os Estados
personalidade singular. A arte pós- Unidos para gravar o aclamado “Eu
moderna, como o rap, acaba com essa exceção, de grande sucesso, tenha sido
Gabriel o Pensador, que, no entanto, Tiro é Onda”, um trabalho ousado de
dicotomia e demonstra que empréstimo fusão entre o samba carioca e o hip
e criação não são incompatíveis. sofre grande preconceito por ser branco
e de classe média. Sem dúvida as maiores hop dos guetos americanos, obtendo
Sugere também que a obra de arte o reconhecimento artístico de um
aparentemente original é, em si, expressões cariocas do gênero são Planet
Hemp e Tatiana Santos Lourenço – a Tati compositor visionário que interpreta as
sempre um produto de empréstimos influências da música estrangeira sob
desconhecidos, assim como o texto novo Quebra Barraco – que, com ousadia,
determinação e estilos irreverentes, a ótica de uma rapaz dos subúrbios
e único sempre foi uma construção de cariocas criando um “samba-rock-rap”
ecos e fragmentos de textos anteriores. abriram espaço no meio nacional e
internacional do hip hop, do rap e do com muito “swing” e a agilidade que só
Na história do samba esses empréstimos o hip hop é capaz de conter.
funk.

46 Revista da FAU UFRJ_número 2


Penso que estamos vivendo um Referências bibliográficas: Notas
momento muito importante na ABRAHAMS, Roger. “Deep down in the 1. 1996 Grove Multimedia
história de nossa cultura: um acesso Jungle”. Chicago: Aldine Publishing Co. Encyclopedia
real e inédito aos sentimentos, ethos 1970.
e demandas das classes de alto nível 2. Jonh Miller Chernoff em sua
AGAWU, Kofi. “African rhythm: a. obra African Rhythm and African
de pobreza, da mesma forma como
Northern ewe. Perspective”. Cambridge: Sensibility (1979) destaca que
sentimos precário nosso poder de
Cambridge University Press, 1995. “a música africana deriva da
tradução cultural das falas entre classes linguagem” e Kofi Agawu em African
e etnias das comunidades. Conscientes CHERNOFF, John Miller. “African Rhythm
Rhythm (1995) ressalta que “ uma
dessa realidade, estamos partindo para and African Sensibility: Aesthetics and
visão produtiva na análise da canção
buscar novas soluções, nos engajarmos Social Action in African Musical Idioms“.
incluirá uma ênfase primária nos
Chicago: University of Chicago Press, 1979.
e abrir espaço para a efetivação de uma ritmos da linguagem”. (p.2).
rede de trocas de competências culturais FERRÉZ. “Capão pecado”. São Paulo,
3. Ver Roger Abrahams, Deep down
e visões de mundo, abandonando a Objetiva, 2005.
in the Jungle (1970), cujo estudo
retórica do protesto e da intermediação FRY, Peter. “Para inglês ver”. Rio de sobre um gueto da Filadélfia revela
para, juntos, formularmos políticas Janeiro, Zahar, 1988. que a habilidade para falar”confere
culturais convincentes • um status elevado”, e que mesmo
GATES, Henry Louis. “The signifying entre os jovens a “habilidade
monkey : a theory of Afro-American com as palavras é tão considerada
literary criticism”. New York : Oxford quanto a força física” (p.39-59).
University Press, 1988. Thomas Kochman (org.) em Rappin’
HERSCHMANN, Micael. “Abalando os and stylin’out (1972) menciona a
anos 90 – Funk e Hip-hop”. Rio de Janeiro: prática tradicional estilizada do
Rocco, 1997. insulto verbal, a “significação” dos
negros que tem um sentido mais
________. “O Funk e o Hip-hop invadem a genérico de comunicação codificada
cena”. Rio de Janeiro, editora UFRJ, 2000. que se apóia fortemente no fundo
cultural e no contexto particular
HOLLANDA, Heloísa Buarque de. Fronteiras
dos comunicantes. Ver também
Móveis da Cultura. Palestra proferida no
Henry Louis Gates Jr., The Signifying
Seminário Internacional de Museografia
monkey: a theory of afro-american
e Arquitetura de Museus. FAU - UFRJ.
literary criticism, (1988), p.89.
Novembro de 2006.
4. Toop, David (1984, p. 14-15).
JAMESON, Frederic. “Postmodernism, or
Pode-se afirmar que o hip hop
the cultural logic of late capitalism”. New
proporciona um campo estético onde
Left Review I, 146.
a violência física e a agressão são
KOCHMAN, Thomas (org.). “Rapin’ and traduzidos em formas simbólicas.
stylin’ out: communication in urban Black Certamente, a rivalidade brutal e a
America”. Urbana: University of Illinois competição agressiva são essenciais
Press, 1972. para a estética do rap. Talvez o tema
mais comum de suas letras seja
SHUSTERMAN, Richard. “Vivendo a arte”.
o da superioridade do rapper em
São Paulo: Editora 34, 1998.
encontrar rimas e sua capacidade
TOOP, David. “The rap attack: African jive de agitar o público; como ele aceita
to New York hip hop”. Boston: South End os desafios de outros rappers que o
Press, 1984. criticam; como os ridiculariza, caso
pretendam enfrentá-lo no rap. Este
VIANNA, Hermano. “O Mundo funk duelo é freqüentemente descrito com
carioca”. Rio de Janeiro: J.Zahar ed, 1988. termos extremamente violentos, nos
mesmos moldes das competições
tradicionais de insultos verbais.
No entanto, ao lado da pretensão
polêmica de ser o melhor, o rapper
também exprime em suas letras
solidariedade com outros artistas
do rap que partilham do mesmo
programa artístico e político.

Subúrbios Cariocas 47
depoimento

ENTREVISTA
Djamel Klouche

Entrevista com Djamel Klouche, arquiteto norte de Paris, apresenta-se hoje como
e professor da Escola Nacional Superior uma porta de entrada da metrópole
de Arquitetura de Versalhes, França, parisiense, ele representa um dos
cedida por email ao professor Guilherme maiores bolsões de emprego da região
Lassance, do Departamento de Projeto franciliana: fala-se de airport-city como
de Arquitetura (DPA) da FAU UFRJ. de uma entidade espacial e programática
que se desenvolveu em torno da
dinâmica de fluxos produzida pelo
Pode-se ainda falar de “subúrbio” hub aeroportuário. Hoje, essa situação
hoje? Como você definiria a noção potencial vai ser ainda mais valorizada,
de “subúrbio” no contexto da principalmente no âmbito do projeto
metrópole contemporânea? sobre a Grande Paris, para dotá-la de
equipamentos ainda mais estruturantes
Falar de subúrbio hoje seria anacrônico, e ligá-la ainda mais facilmente a outros
todas as grandes metrópoles mundiais pólos de desenvolvimento, como o
são multipolares ou policêntricas. A de La Défense por exemplo. De fato,
oposição centro-periferia é obsoleta, ela o contexto não é o mesmo, a entrada
não é mais operante. Isso não impede norte do Rio é pontuada de inúmeras
de forma alguma de se pensar o projeto favelas que bloqueiam e dificultam um
dos territórios à margem das dinâmicas projeto de desenvolvimento urbano, mas
de desenvolvimento, esses territórios isso não impede que essa especificidade
devem encontrar um futuro associado ao do espaço torne o planejamento
fenômeno metropolitano. estratégico para este território ainda mais
estimulante, porque permite coordenar
num mesmo projeto várias dimensões
Como você vivenciou e percebeu a e tipos de intervenção: o social, o
experiência de trabalho no Rio de espacial, o econômico, a paisagem, a
Janeiro em relação à sua prática infraestrutura, etc, e essa complexidade é
parisiense? própria a todo projeto metropolitano.

Nós trabalhamos conjuntamente


entre equipes brasileiras e francesas
Como você pensa o subúrbio
(estudantes e professores) sobre um
parisiense? O projeto de intervenção
vasto território na entrada norte da
no subúrbio deve responder a
aglomeração carioca. Esse território
questões específicas?
inserido entre duas grande polaridades
que são o aeroporto internacional de Não necessariamente, nós propusemos,
um lado e o porto industrial do outro, no âmbito do contrato internacional de
alicerçado por grandes infraestruturas estudos para a Grande Paris, que todas
existentes – e talvez ainda por vir as situações da metrópole parisiense
– associa-se a incrível geografia da deveriam ser estimuladas, intensificadas
Baía de Guanabara e deveria estar com o intuito de criar um “clima
obrigatoriamente vinculado a uma metropolitano parisiense”, compartilhado
forte dinâmica de desenvolvimento. por todos. Entretanto, fora da Paris
Nós ficamos surpresos com o fato de intramuros, fora das formas urbanas
que nenhum projeto estratégico de características herdadas pela Metrópole
grande envergadura, conduzido pelo parisiense, sobra um amplo espectro de
governo federal, pelo estado ou pelo substâncias urbanas que não remetem
município, exista realmente, mesmo se a nenhuma macro-história urbana.
alguns estudos e reflexões, muitas vezes Essas substâncias urbanas, apesar de
fragmentários, tenham sido feitos. O pólo tudo, veiculam em sua informalidade,
aeroportuário de Roissy, por exemplo, ao em sua banalidade, por vezes em sua

48 Revista da FAU UFRJ_número 2


mediocridade, uma parte da realidade
da metrópole tal como ela é. Essas
substâncias representam uma matéria
metropolitana, uma superfície, um
desafio não desprezível na escala da
aglomeração parisiense. Elas merecem
todas de serem estimuladas e, talvez,
de serem liberadas para sair do status
quo. Essa liberação, essa estimulação
pode ser pensada, projetada a partir do
que já existe, das qualidades presentes,
do potencial de transformação das
situações reais tais como elas são aqui
e ali na Metrópole. São também, me
parece, os lugares onde nós temos o
direito de revindicar um urbanismo da
aglomeração em oposição ao urbanismo
do espaçamento e do afastamento que
está tão fortemente instaurado nesse
tipo de território. Essa mudança de
paradigma deve abrir para um potencial
de desenvolvimento não consumidor
mas “energizante”. Ele reabre a questão
societal: que metrópole queremos? A do
afastamento, da distância permanente?
Ou a que, por ter integrado as mutações
culturais e tecnológicas da sociedade,
reconstrói um mundo metropolitano
capaz de conjugar no espaço e no tempo
novas proximidades e externalidades
positivas?

Em sua palestra proferida na FAU


UFRJ em Abril de 2009, você falou
de um “urbanismo sem plantas”.
Poderia retomar aqui essa idéia e
explicar seu modo de trabalho?

A metrópole parisiense tem tantas


dificuldades de existir publicamente
que o tempo de sua “publicidade” deve
corresponder a um esforço multiplicado
de multilocalizado. É a condição de sua
percepção pelo público. A metrópole
parisiense não é apenas uma ferramenta
de atratividade econômica. Ela deve ser
também um dispositivo de estimulação
das condições localizadas e um meio
de solidariedade. Ela não é apenas uma
forma espacial herdada e estável. Ela é
uma matéria viva, capaz de evolução e
de movimento. Mas ela não é somente
a estimulação das substâncias urbanas
dormentes. Ela deve também ser capaz
de grandes projetos, de grandes visões
e de novas inveções... Ela não é somente
o receptáculo de encontros da multidão.
Ela é também o lugar do anonimato e
de formas de intimidade escolhidas ou
sofridas. Ela não se expressa somente
nos lugares mais enclavados (isolados,
mas conectados). Ela é também a

Subúrbios Cariocas 49
geografia, tanto natural como artificial, ela existe, como pano de fundo. não por representarem reservas
essas geografias que podem transformar- Nenhuma cartografia clássica poderia fundiárias que se poderia investir
se em espaços comuns do encontro pôr junto, num mesmo mapa, todas as imediatamente. São quase sempre
e da reunião popular. Ela não se qualidades que nos oferece a Cidade ou fragmentos de territórios que têm,
expressa somente através dos lugares a Metrópole. É preciso inventar um modo por sua história particular, muitas
do movimento que a constroem, mas de representação capaz de responder vezes econômica, mas também
é também a reflexão sobre eles e seu às mudanças da sociedade que operam social (como no caso da Lille FCB:
receptáculo. A Metrópole só é se ela é, todos os dias. No que nos diz respeito, grande usina que empregou muita
simultaneamente, tudo isso. Para que substituímos o encadeamento clássico de
gente e que deu vida a um novo
o indivíduo compreenda que ela – a concepção “análise estatística / macro-
bairro operário ao seu redor),
escala / plano diretor / regulamento de
metrópole – lhe oferece todas essas criando uma condição espacial
urbanismo / projeto urbano / operação
possibilidades e, que ele, – o indivíduo – muito específica na metrópole. É
de planejamento” pela sequência “linha
possa ainda decidir de recusá-las todas. A essa condição específica, singular,
do tempo / matriz / temas / situações”
Metrópole é esta sensação de liberdade, que se deve mobilizar para projetar,
mais capaz de nos fazer pensar
de abertura, de potencialidade... Ela não para apagar a indústria e
concomitantemente a micro-escala local,
torna-se a metrópole quando todos re-escrever ideologicamente a
os detalhes sensíveis do quotidiano e a
os indivíduos que a praticam tomam cidade, mas reinventar condições de
metrópole como sistema, como condição
consciência da qualidade comum generalizada. moradia extraordinárias. No que diz
da metrópole, quando eles tomam respeito a esse projeto, tínhamos
consciência da maneira plural pela qual em mente uma só referência,
ela se deixa praticar, quando eles tomam uma grande referência brasileira,
Sobre seu projeto para Lille, como
consciência que ela está relacionada o projeto do SESC Pompéia de
requalificar os territórios oriundos
com a escala estendida (a coisa comum), Lina Bo Bardi em São Paulo, onde
da desinsdustrialização da cidade
mas que ela toma forma nas múltiplas ela transformou delicadamente
contemporânea?
situações que vão da sala do conselho e radicalmente um fragmento
administrativo ao detalhe arquitetônico. Esses territórios são oportunidades industrial em um dispositivo
Então a metrópole torna-se pública, para a cidade e para a metrópole, sociocultural inédito na cidade •

Tradução: Guilherme Lassance.


50 Revista da FAU UFRJ_número 2
Subúrbios Cariocas 51
painel

ANTIGOS SUBÚRBIOS, NOVAS PERIFERIAS:


A QUESTÃO TERRITORIAL DO PROJETO
Guilherme Lassance e Fabiana Izaga

Os intercâmbios acadêmicos ampliação das grandes infraestruturas norte, a vizinha Duque de Caxias,
internacionais, organizados desde 2004 metropolitanas de transporte, que um dos dezessete municípios que
no âmbito das disciplinas “Arquitetura da “sobrevoam” e entrecortam áreas pós- hoje integram a área metropolitana
Cidade I e II” e “Projeto de Arquitetura industriais e de habitação social. do Rio de Janeiro. Esta área, hoje
da Cidade Contemporânea” do Curso de atravessada por importantes vias de
Em 2009, organizamos dois intercâmbios transporte da metrópole fluminense,
Graduação em Arquitetura e Urbanismo
para o desenvolvimento de projetos possui um histórico de intensas
da FAU-UFRJ, têm nos colocado frente
localizados em sítios paradigmáticos da transformações. O antigo arrabalde
a uma série de questões que parecem
problemática dessas áreas periféricas aos agrícola, cuja produção escoava
transcender as particularidades dos
núcleos de urbanização consolidada das pelos portos implantados ao longo
contextos de intervenção oferecidos
grandes cidades. Em ambos exercícios de sua faixa litorânea, foi sendo
à reflexão projetual. De fato, o que
a perspectiva adotada foi a do projeto progressivamente segmentado
acreditávamos ser a oportunidade do
como questão territorial em sua relação pelas infraestruturas de transporte
aporte de um olhar estrangeiro na
com a infraestrutura urbana. ferroviário e rodoviário, criadas ali
abordagem de situações consideradas
regionais ou no máximo nacionais, com o intuito de interligar a capital
O primeiro deles associou os cariocas
mostrou-se muito mais como a (em desenvolvimento) ao resto
da FAU-UFRJ (1) e da PUC-Rio (2) à
ocasião de trocarmos experiências do país, conformando ao longo
Escola Nacional Superior de Arquitetura
a respeito de problemas e dilemas do tempo, o subúrbio carioca. A
de Versalhes (ENSAV) (3), da França,
surpreendentemente semelhantes. Esta essa infraestrutura associaram-se
numa proposta de trabalho no que
semelhança nos faz crer na existência diversas edificações destinadas a
convencionamos chamar de “orla
de uma “família” de territórios outrora atividades industriais, beneficiadas
norte carioca”. Trata-se de um vasto
designados como subúrbios e que pela proximidade dos meios de
território cercado por infraestruturas
se transformaram hoje em “novas transporte. Com a relocalização
viárias e pela Baía de Guanabara,
periferias”. Nos casos que temos da atividade industrial pressionada
que se estende do Cajú até os limites
estudado, esta transformação aparece pelo crescimento urbano e pelas
administrativos do município do Rio de
fortemente relacionada com a criação e transformações do setor produtivo,
Janeiro, alcançando, em sua fronteira

52 Revista da FAU UFRJ_número 2


Matthieu Hackenheimer
(ENSAV) - projeto para o
“rio orla norte”: A Guide to
Baia de Guanabara

Laís Costelha e Newton Costa


(FAU.UFRJ) - projeto para os
bairros de Liberdade e da Serafina
em Lisboa

Subúrbios Cariocas 53
a região ressente-se hoje dos efeitos específicas do que poderíamos chamar Nela vem se difundindo uma ocupação
provocados por um longo período de de periferia recente: um território feito de informal de natureza intersticial e a
declínio econômico e de progressiva sobras, à margem das grandes dinâmicas sobreposição de usos que atendem
transformação do uso do solo urbano. urbanas e das novas relações que a diferentes sistemas ou setores de
Emergem, então, nos interstícios dos definem as centralidades. Esta periferia atividades (produção, distribuição,
antigos equipamentos industriais, e até gera situações relativamente inéditas de moradia, estocagem de dejetos, etc.).
mesmo dentro deles, invasões ilegais e trabalho para o arquiteto e urbanista, Nesses territórios, nota-se a presença
ocupações informais. Nesta condição, acostumado a lidar com a articulação de fortes rupturas de escala, provocadas
inclui-se também vizinhança com em continuidade dos elementos do pelo contato direto e sem transição de
enclaves militares, implantados ali por tecido urbano da cidade tradicional, antigas implantações vinculadas à escala
razões estratégicas e que parecem inertes quando não com seu oposto, qual seja o local de bairro recortadas para acolher
a toda esta evolução. agenciamento esgarçado do urbanismo grandes equipamentos de apoio logístico
moderno. de natureza comercial, recreativa ou
A segunda experiência de intercâmbio ainda militar. Um tecido composto,
levou o mesmo grupo de estudantes Esta periferia recente, que parece de fato portanto, por grandes fragmentos
da FAU-UFRJ a Portugal para trabalhar escapar dos dois grandes referenciais isolados, “sobrevoados” por grandes
em parceria com a Faculdade de históricos da cidade, caracteriza-se infraestruturas de transporte, fruto dos
Arquitectura da Universidade Técnica também pela subversão geral à lógica fluxos metropolitanos.
de Lisboa (FAUTL) em um território planificadora e ao zoneamento funcional.
periurbano que é hoje foco das atenções
da Câmara Municipal. Trata-se dos
bairros da Liberdade e da Serafina,
antigas-novas periferias localizadas na
encosta oriental do maciço de Monsanto
e associadas à construção do Aqueduto
das Águas Livres, que alimenta o centro
da capital portuguesa, do qual foram
sendo progressivamente separados pelos
sucessivos traçados de ferrovias e agora
pelo imponente eixo rodoviário norte-sul.
Um território que, guardadas as devidas
proporções, apresenta problemáticas
surpreendentemente bem semelhantes
às da orla norte carioca: presença de
grandes infraestruturas de transporte
rodo-ferroviário, isolamento territorial
e ocupação informal, constituindo
um conjunto de fatores geradores de
descontinuidades urbanas.

Ambas experiências nos colocam frente à


realidade da metrópole contemporânea,
lá onde ela estabelece condições

Alexei Sieczko e Brunna Wopereis


(FAU.UFRJ) - projeto para os
bairros de Liberdade e da Serafina
em Lisboa

54 Revista da FAU UFRJ_número 2


Timothee Boitouzet e Shinj
Kimura (ENSAV) - - projeto para
o “rio orla norte”
student
housing fishing area

aquarium
area

water treatment

commercial access
area

sanitary service
favela

housing
water treatment

PROCESSUS D’HYBRIDATION
parc linéaire + noueds hybrides

A experiência neste tipo de contexto


sinaliza a necessidade de se adotarem
algumas estratégias para lidar com o
projeto territorial:

• sobreposição em larga escala de


megaestruturas capazes de redinamizar
e rearticular o território existente a novas
lógicas e sistemas urbanos; Vinculadas a esses tipos de estratégia, Projetar nessas periferias com as lógicas
as propostas de intervenção elaboradas e as referências tradicionais do arquiteto
• ações de manejo e de recuperação
pelos estudantes das instituições tem se revelado um grande equívoco. Um
ambiental de áreas quase sempre
participantes apontam para soluções de conjunto de apartamentos recentemente
degradadas com significativo impacto
caráter exploratório como as do “edifício- inaugurado na área de estudo de Lisboa
para a cidade como um todo, dada a
paisagem”, da “estação-cidade”, do (figura) é uma das provas mais flagrantes
escala e proporção desses territórios
“equipamento-franja” ou ainda da e aflitivas de uma arquitetura que,
que hoje se apresentam, em todos os
“plataforma de acontecimentos”. apesar de suas qualidades intrínsecas
níveis, como verdadeiros resíduos da
Esses trabalhos interrogam o sentido e sua alusão à aclamada produção
urbanização das nossas metrópoles
pedagógico daqueles com freqüência contemporânea portuguesa, está
contemporâneas;
desenvolvidos nas disciplinas de projeto completamente despreparada para existir
• intervenção nos espaços livres dos cursos de arquitetura e urbanismo nesse tipo de contexto.
entendidos como verdadeiras no Brasil. Nestes últimos é ainda
Ainda mal compreendidos e desafiantes,
oportunidades de criação de grandes muito presente um ensino entendido,
esses territórios, apesar de altamente
equipamentos capazes de reintegrar autisticamente, como treinamento
estratégicos para o desenvolvimento
esses territórios ao resto da cidade, em técnico reduzido à reprodução pálida
da metrópole contemporânea, são,
alerta às transições entre diferentes tipos e acrítica do receituário profissional do
no entanto, negligenciados pelos
de ocupação do território; projeto como resultante da equação lote
profissionais que, muitas vezes, os vêem
+ legislação + programa.
como uma mazela a combater. Trabalhar
• inserção de novos equipamentos
Nas novas periferias, advindas da com esses antigos subúrbios, literalmente
estruturadores, na maioria das
evolução dos antigos subúrbios, a lógica atropelados pelas novas dinâmicas
vezes vinculados aos nós de fluxos e
do plano não é mais operante porque urbanas, significa, sobretudo, oferecer
transportes, com potencial de gerar
simplesmente não há mais como pensá- aos futuros arquitetos e urbanistas que
centralidades compostas de conjunções
las como oriundas de um parcelamento pretendemos formar uma oportunidade
programáticas originais e inusitadas;
ou zoneamento do solo. De uma lógica de aprimorar o entendimento de
• isseminação de intervenções pontuais urbana comandada pela justaposição seus atuais desafios relativos às suas
coordenadas capazes de reestruturar horizontal, passamos a uma nova competências e responsabilidades •
essa periferia recente através de um condição feita de sobreposição, invasão,
efeito multiplicador local, contrariando congestão. As “formas” ali construídas Fabiana Izaga Professora Adjunta da FAU-UFRJ.

assim a aparente resistência dessas novas subvertem a legislação e abarcam Guilherme Lassance Professor Adjunto da
ocupações à ação do planejamento. ocupações excepcionais do espaço. FAU-UFRJ.

56 Revista da FAU UFRJ_número 2


Lydia Blasco e
Antoine Meinnel
(ENSAV) - projeto
para o “rio orla
norte”

Notas

1. Além dos autores desse artigo,


a FAU contou, em 2009, com a
participação da professora Sônia
Hilf Schulz do Departamento de
Projeto de Arquitetura (DPA) a
quem agradecemos imensamente
pela dedicação, envolvimento e
preciosos aportes na orientação
dos alunos e na avaliação crítica
dos trabalhos.

2, A turma da PUC-Rio foi


coordenada pelo professor Gabriel
Duarte, graduado na FAU e
atualmente doutorando no Prourb,
que contou com a participação
dos professores Cláudia Escarlate,
Cláudia Miranda, Flaviana Reynaud
e Luciano Alvares

3. A equipe francesa foi chefiada


pelo professor Djamel Klouche,
arquiteto e urbanista do Grand
Paris que aparece em entrevista
nesta mesma edição, assistido
pelos professores Jean Castex e
Julien Monfort.

4. O risco aqui é a reprodução


literal de esquemas e receitas
aplicados a outros contextos, mais
valorizados, da cidade.

Subúrbios Cariocas 57
painel

PESQUISA ACADÊMICA – A FAU E O SUBÚRBIO DE MADUREIRA:


PARCEIROS PARA UM PRÓXIMO SAMBA?
Claudia Nóbrega e Júlio Rodrigues

Já Madureira é o tal negócio ... tudo que tinha na cidade, tinha em Madureira. A
Casa Barki, a Casa José Silva, que eram lojas bonitas, grandes. O teatro da Zaquia,
tinha coretos, aquelas corridas de cavalos, o Banco do Brasil. Madureira era um bairro
popular, as pessoas iam até Madureira para fazer compras, e sempre foi um bairro
muito movimentado.

Monarco

O propósito deste trabalho é relatar 1º período: Da fundação da cidade a


uma experiência vivenciada por chegada da Corte (1808);
nós, professores das disciplinas
compartilhadas História da Arquitetura 2º período: A Capital Imperial;
e da Arte I, sob a responsabilidade 3º período: O Centro Republicano: da
do Departamento de História e Teoria Belle Époque à Era do Rádio;
(DHT) da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal do 4º período: A Cidade Moderna e a
Rio de Janeiro, e História da Cidade e Cidade Contemporânea. foto 1
do Urbanismo I, sob a responsabilidade
do Departamento de Urbanismo e Meio Para cada período abordado realizamos
Ambiente (DPUR) também da FAU/UFRJ, uma visita na cidade, ensejando
no decorrer do 2º semestre de 2007. aos alunos tomarem contato com
Além de parte do conteúdo pedagógico logradouros e edifícios significativos de
das duas disciplinas e descrição cada época. Desta forma, na primeira
sucinta de uma das visitas realizadas visita, por exemplo, realizamos um
no âmbito das mesmas, utilizamos percurso que engloba o Mosteiro de
material proveniente de respostas de São Bento e o Morro da Conceição,
questionários submetidos aos alunos que onde ainda permanecem algumas
as cursaram no semestre citado. características do espaço urbano colonial.
Entretanto, trabalhamos em todos os
passeios com todos os períodos, pois
de um modo geral, no centro e em
As disciplinas: História da
vários bairros da cidade, constata-se
Arquitetura e da Arte I e História da
com freqüência uma superposição de
Cidade e do Urbanismo I foto 2
diferentes momentos históricos. É o
As disciplinas mencionadas tiveram caso citado da primeira visita, quando
suas ementas modificadas na ocasião observamos e tecemos comentários
da reforma curricular, instaurada na sobre a Praça Mauá, o edifício A Noite
FAU, no 1º semestre de 2006 (1). As e o prédio RB1, marcos importantes no
disciplinas são ministradas em conjunto, percurso entre o Mosteiro e o Morro da
o que também foi uma novidade criada Conceição.
pela citada reforma. Tal prática visa
uma integração entres os campos das
duas disciplinas, cujas ementas versam Madureira
sobre um panorama geral das histórias
da arquitetura, da arte, da cidade e do O tema subúrbio é tratado
urbanismo, elegendo a cidade do Rio de principalmente em duas fases da
Janeiro como estudo de caso. O plano disciplina: na 2ª, quando os subúrbios
de aula é estruturado em conjunto e cariocas começam a surgir e na 3ª fase,
organizado em 4 fases ou períodos quando se desenvolvem. Na 3ª visita,
históricos: levamos os 60 alunos ao subúrbio de foto 3

58 Revista da FAU UFRJ_número 2


foto 4

Madureira, escolhido por sugestão origem na Estação Central do Brasil e do bairro de Madureira e seu entorno,
da professora da disciplina Sônia Le no trem em movimento, os professores postando-se alunos e professores, na
Cocq (DPUR - FAU UFRJ) já que o munidos de megafone e de um mapa passarela de acesso à estação, o que
mesmo é “[...] extremamente pujante do sistema ferroviário metropolitano, permite uma melhor visão de conjunto
e congestionado, onde a intervenção destacam a importância histórica dos (foto 2). A origem rural da região, local
do poder público se mostra insuficiente trens para a compreensão da formação do primeiro processo legal por posse
no que se refere à melhoria de sua dos subúrbios cariocas. Durante o trajeto, de terras no Rio de Janeiro (tendo por
qualidade ambiental, espaços públicos, de cerca de meia hora de duração, vão protagonista o boiadeiro Lourenço
circulação viária, etc.“ sendo enfatizados a presença, próximos Madureira, que deu nome à região),
à linha de trem, tanto de grandes as antigas trilhas de burros que por aí
Como a visita com os alunos limita-se a equipamentos esportivos (Maracanã, passavam carregando produtos agrícolas
parte do bairro de Madureira, optamos Estádio João Havelange) e educacionais da zona oeste para o centro urbano,
neste artigo por excluir o bairro vizinho (Universidade do Estado do Rio de a origem do primeiro mercado local,
de Oswaldo Cruz que, no entanto, é Janeiro), quanto de favelas (Mangueira as duas linhas férreas com respectivas
apresentado em sala de aula, como o e seu projeto Favela Bairro, além de estações locais, dividindo o tecido
foi também na nossa intervenção na antigos galpões industriais abandonados urbano em 3 partes, são alguns dos
Semana da FAU de 2007. Por algumas e favelizados). Também no campo temas explanados.
de suas características atuais remeterem habitacional os alunos são estimulados
à origem dos subúrbios cariocas, fato a observar as antigas vilas, os sobrados O percurso a pé da visita inclui a
menos evidente no bairro de Madureira ecléticos, os prédios de diferentes estilos observação do viaduto Negrão de Lima
que sofreu diversas transformações, faz- e épocas, os tipos de ocupação dos (foto 3) com ocupação adaptada em seus
se necessária a observação. terrenos pelas construções, as mudanças pilares para atividades esportivas e de
na paisagem à medida que nos lazer, na insuficiência de equipamentos
afastamos do centro urbano (foto 1) públicos na área.
A visita a Madureira
À chegada à estação de destino, Da estação partimos na direção da
A visita com destino à Estação Madureira inaugurada em fins do século XIX, segue- Av. Ministro Edgar Romero (foto 4),
– de cerca de 4 horas de duração – tem se uma explanação sobre a evolução importante eixo local. No caminho da

Subúrbios Cariocas 59
estação para esta rua, observamos do Brasil, nos dirigimos à quadra da à imagem do bairro entre os alunos.
algumas inserções no espaço urbano, Escola de samba Portela, na rua Clara É a ocasião de se atravessar, antes de
implementadas pelo Projeto Urbano Nunes (foto 8). Se em frente à mesma, chegar ao mesmo, o camelódromo. A
Municipal Rio Cidade realizado no tem-se um exemplo típico de conjunto importância comercial de Madureira,
início dos anos 1990. São observados habitacional do período do Banco além do próprio vigor econômico,
revestimentos/extensão das calçadas, Nacional de Habitação, dos anos 70, é impressa através dos prédios do
mobiliário urbano, acessibilidade, entre onde é descrito aos alunos o modelo entorno do Mercadão que do antigo uso
outros elementos que caracterizaram arquitetônico-urbanístico adotado, residencial tem na função comercial atual
este tipo de intervenção. Na descrição a sede de um dos berços do samba, quase que uma exclusividade.
de uma de nossas alunas “No Projeto Rio da mesma época, constitui momento
Cidade percebe-se que colocaram postes de parada a mais longa da visita. No Em grupos ou individualmente, os alunos
vermelhos, calçadas projetadas com enorme espaço caracterizado como dispõem de cerca de 20 minutos para
“rampinhas” para os deficientes físicos, de arquitetura kitsch, são descritos os explorarem o Mercadão, retornando
jardineiras nas calçadas, camelôs com elementos do seu galpão central, onde a seguir junto com os professores aos
comércio organizado, etc... É possível se apresentam certas analogias com respectivos meios de transportes.
perceber os restos das mudanças feitas espaços religiosos, enfatizando que a
por tal projeto: calçada com desenho arquitetura também reflete a cultura
em pedra portuguesa vermelha, um popular, como no exemplo do samba. Alguns comentários de alunos
‘larguinho’ em frente a Escola Ministro
Edgar Romero (na rua homônima), Segue-se pela Estrada do Portela, em Algumas das opiniões dos alunos
com pretexto de criar um espaço de cujo trecho também o projeto Rio Cidade presentes nos questionários revelam
convivência nesta área tão tumultuada.” está presente, passando em frente ao interessantes impressões a respeito da
(foto 5) Madureira Shopping em direção à quadra visita a Madureira.
da segunda mais importante Escola de
No que se refere às edificações, é samba de Madureira, a Império Serrano Sem explorá-las em profundidade, é
possível observar atrás das estruturas de (Foto 9). Os elementos arquitetônicos, possível reagrupá-las segundo uma visão
alumínio e madeira de uso comercial, a assim como na escola anterior, são geral mais positiva: “Surpreendi-me
convivência de vários períodos da história descritos, mas além da sua maior muito com a visita ao subúrbio do Rio,
da arquitetura: sobrados ecléticos, casas simplicidade nas instalações, chama-se pois tinha uma imagem completamente
neocoloniais, pequenos edifícios Art a atenção para a sua implantação, uma oposta e negativa”; “A visita foi bastante
Déco, entre outros. (foto 6). Em que pese das empenas da sua construção estando produtiva. Podemos ver lados positivos
as modificações, é possível encontrar colada à 2ª linha de trem – auxiliar – que de um local que só parece mostrar
exemplares remanescentes do começo do atravessa o bairro. (foto 10). aspectos desfavoráveis”
século 20, como as casas geminadas na
A travessia desta última através de uma Ou mais negativa: “Já fui a Madureira
rua Carolina Machado (foto 7).
passarela nos leva ao Mercadão de várias vezes e acho aquilo um inferno. É
Continuando nesta última, que fica Madureira (foto 11), provavelmente o um local totalmente barulhento, sujo e
junto à linha da Estrada de Ferro Central elemento construído local mais associado com poluição visual”

foto 8
foto 10

foto 5 foto 6 foto 7

foto 9

Subúrbios Cariocas 61
calçada em frente ao mercadão de madureira

Ao lado da carência urbanística sonora e do ar, mas que guarda um certo dedicada ao subúrbio, e através deste
apontada: “Faltam espaços de ambiente de familiaridade, representado trabalho, deixemos à Dona Ivone Lara
contemplação paisagística, espaços de talvez pela histórica presença do samba e a Caetano Veloso as últimas palavras:
lazer e uma área para eventos culturais através das duas tradicionais escolas por “Força da imaginação / Vai lá / Além dos
como roda e jogo de jongo” nós visitadas: Portela e Império Serrano. pés e do chão / Chega lá / O que a mão
ainda não toca / Coração um dia alcança
A função comercial de Madureira – / Força da imaginação / Vai lá / Quando
inclusive o seu caráter mais informal um poeta compõe mais um samba / Ele
Observações finais
- parece ter marcado com certa funda outra cidade / Lamentando a sua
intensidade os alunos:“Diversidade no Nossa proposta inicial foi relatar dor / Ele faz felicidade” •
comércio, misturando estilos e épocas, uma experiência vivenciada por nós
despreocupação com limites de moradia no segundo semestre de 2007 em
de cada um”; “É um centro comercial disciplina dupla introdutória que é
extremamente desorganizado, porém História da Arquitetura e da Arte I e
parece funcionar, já que os comerciantes História da Cidade e do Urbanismo I.
continuam sendo atraídos para o bairro”; Pelo rico material coletado através dos
“Vende-se de tudo: uma loja de roupas questionários e ainda parcialmente
íntimas também vende sorvetes” inexplorado, pelas demais visitas à
Madureira com as turmas subseqüentes e
Por sua vez, a expressão de uma aluna:
também por nossa procura em transmitir
“... uma muvuca aconchegante”, refere-
um ensino baseado na integração entre a
se à falta de ordenamento urbanístico
Arquitetura e o Urbanismo, acreditamos
(através da observação das construções,
existir um sem número de trilhos a Cláudia Nóbrega é professora adjunta do
suas fachadas, da excessiva ocupação das
percorrer, um sem-número de sambas a Departamento de História e Teoria da FAU UFRJ
calçadas por pedestres e por comércio),
compor, inclusive outros compositores
do congestionamento freqüente de serão bem vindos... Júlio Rodrigues é professor adjunto do
ônibus em algumas de suas principais Departamento de Urbanismo e Meio Ambiente
artérias e da conseqüente poluição Na oportunidade desta semana da FAU da FAU UFRJ

62 Revista da FAU UFRJ_número 2


Referências:

Depoimento de Monarco IN: FRAIHA,


Silvia; LOBO, Tiza. Madureira & Oswaldo
Cruz – bairros do Rio. Rio de Janeiro:
FRAIHA, 1998.
Entrevista: Sr. Luis Carmo, Vice-
presidente da Velha Guarda da Portela,
Concedida em 22/09/07 na Portelinha,
Oswaldo Cruz.
LOPES, Nei. “Guimbaustrilho e outros
mistérios suburbanos”, 2001, apud
COSME, Elias. “O samba de Irajá e outros
subúrbios. Um estudo da obra de Nei
Lopes”. Rio de Janeiro: Pallas, 2005
Questionários e relatórios das turmas de
HAAI e HCUI em 2007/ 02

foto 11
painel

IDÉIAS PARA A AVENIDA BRASIL - DA MARÉ A BONSUCESSO*


Lina Motta Corrêa * Trabalho Final de Graduação vencedor do prêmio Ópera Prima 2009,
o orientado pelo professor Paulo Jardim de Moraes e co-orientado pelo
professor Luiz Fernando Janot.

A Avenida Brasil, entre o Complexo da


Maré e Bonsucesso, é hoje uma região
esquecida pelo poder público e pela
iniciativa privada. O esvaziamento da
atividade industrial, a favelização e a
violência fazem dali um lugar difícil para
viver, trabalhar ou simplesmente passar.

O projeto proposto busca, através


do desenho de espaços urbanos
e de edifícios, atrair novos usos e
desenvolver os existentes, promovendo a
plurifuncionalidade.

A infraestrutura da área, degradada


e mal gerida, poderá ser melhorada
através da racionalização das linhas
de ônibus que passam pela Avenida
Brasil, da realização dos projetos de
drenagem arquivados e de projetos do
metrô; permitindo estabelecer ali as
condições para o surgimento de uma
nova centralidade e para a atração de
investimentos para o desenvolvimento da
A proposta projetual localiza-se na interseção entre a XXX Região Adm. e a X Região Adm.
região.

O objetivo de um projeto para uma


região tão degradada e carente de
políticas urbanas é trazer benefícios para
a área de intervenção direta e também
para seu entorno. Este plano, em
conjunto com uma rede de outros planos
semelhantes, poderia contribuir para a
melhoria das condições socioambientais
de muitas outras áreas da cidade.

A articulação de projetos pontuais é um


modelo de planejamento cujo objetivo
é localizar as intervenções de forma que
seus efeitos transcendam sua área de
implantação.

A coerência entre diversos projetos,


subordinados a um plano mais
abrangente, e a capacidade desses
projetos na geração de benefícios
socioeconômicos e físico-espaciais para
seus entornos imediatos garantem o
potencial estratégico das intervenções
e justificam o investimento público em
pontos específicos da cidade •
Área de intervenção do Projeto.

Lina Motta Corrêa é arquiteta e urbanista


formada pela FAU UFRJ em 2009.

64 Revista da FAU UFRJ_número 2


Croqui de estiudo - A Avenida Brasil tem cerca de 60m
de largura, carros, ônibus e caminhões passando em alta
velocidade. O desenho de edifícios mais altos para os
limites com a Avenida tem como objetivo fazer frente à sua
escala monumental, reforçar sua perpectiva tornando o
espaço mais legível.

Subúrbios Cariocas 65
Área Total de intervenção: 41,6 ha

Habitação

Área Total: 164.000,00 m2

Áreas comuns: 40.000,00 m2

Área de apartamentos: 124.000 m2

Número de unidades (60,00 m2): 2066 un

Número de pessoas atendidas: 8300 hab

Escritórios e Serviços

Área Total: 201.650,00 m2

Comércio

Área Total: 112.550,00 m2

Cultura

Área Total: 23.500 m2 plano de massas

Educação

16.650,00 m2

Senac - Hotel e Restaurante

Área Total: 19.000,00 m2

Área Total Construída:

537.300,00 m2

As 3 áreas delimitadas na planta acima são locais de maior


investimento público. Este projeto se torna viável através da
parceria entre o poder público e o setor privado, este último
subordinado ao primeiro. Esta parceria está prevista nas
operações urbanas, instrumento do Estatuto da Cidade. Para
alavancar o processo, o poder público deverá, além de investir em
infraetrutura, financiar a construção de edifícios de uso público e
cujo uso beneficie principalmente a comunidade local.

Habitação (Comércio no térreo) Escritórios Comércio


Apart-hotel Escola pública

(comércio nos 3 primeiros andares) Creche pública


Senac Equipamento Socio-cultural Biblioteca
Estação do metrô.

Passarelas Água Áreas verdes.


Corredor de ônibus Linha 6 do metrô (Sugestão de traçado)

Passarelas atravessam a Avenida chegando ao terceiro


O projeto busca fazer da rodovia uma avenida, um boulevard,
andar dos edifícios. O acesso à rua se faz através
espaço arborizado por onde se pode caminhar e estar,
dos 3 primeiros andares, públicos e reservados a
trazendo melhores condições de vida para seus usuários.
estabelecimentos comerciais.
Estacionamento
ao longo da via.

Pátios internos
de uso público.

Acesso de veículos ao interior


da quadra. Entradas para
estacionamento subterrâneo.

Pistas laterais - ônibus das linhas


alimentadoras e outros veículos.

Pistas de tráfego rápido.

Corredor de ônibus

Pistas de tráfego rápido.

Pistas laterais - ônibus das linhas


alimentadoras e outros veículos.

Espaço para comércio


de maior porte.

Jardins privados para


as habitações do
segundo pavimento.

Subúrbios Cariocas 67
painel

MANGUINHOS COMO PÔDE SER, OU: PEQUENA HISTÓRIA


ESQUECIDA DO SUBÚRBIO CARIOCA*
Alexandre Pessoa * Texto apresentando parte da pesquisa que
originou a dissertação de mestrado autor,
“Manguinhos como pôde ser: A inacaba
dinamica urbana de um bairro carioca”,
defendida em 2006 no PROURB FAU-UFRJ.

A cidade do Rio de Janeiro, desde sua chamada de subúrbio ou Zona Fig 1


fundação, pouco se afastou de seu Suburbana – teve um desenvolvimento
núcleo urbano inicial. Inicialmente relativamente homogêneo por meio
compreendida entre o quadrilátero do desmembramento e loteamento,
formado pelos morros do Castelo, São a partir da metade do século XIX, das
Bento, Conceição e Santo Antônio, se antigas fazendas da periferia do Rio
espalhou lentamente pelos vales vizinhos, de Janeiro, basicamente voltadas para
chegando ao Campo de Santana e à seu abastecimento e posicionadas
Glória no começo do século XIX. Com a estrategicamente nas proximidades
chegada da Corte portuguesa em 1808, das linhas férreas e rios navegáveis que
milhares de novos habitantes foram desemborcavam na Baía de Guanabara
incorporados à cidade, provocando um (Abreu, 1987) . Assim a cidade se
súbito crescimento que impulsionou a expandiu lentamente pela Baixada
mancha urbana em direção ao norte, Fluminense.
margeando a Baía de Guanabara, e ao
O conceito original de Baixada
sul, acompanhando o litoral.
Fluminense compreendia toda a área
A vertente norte de crescimento – baixa e inundável periférica à orla
na área que seria posteriormente ocidental da Baía de Guanabara,

Fig 5

Cidade
Universitária

Manguinhos

Linha Amarela

Linha
Vermelha

Av. Brasil
Fig 1. Planta Cadastral do Fig 5. Planta Cadastral do Fig 3. Montagem com Fig 4. “Áreas livres e verdes”.
Rio de Janeiro, 1890. A Rio de Janeiro, 1908. A imagem constante no A ponta do Caju e o Morro do
enseada de Manguinhos enseada de Manguinhos, Guia Briguiet de 1929. Timbau, bem como a Ilha do
com seu contorno original. entre a Ponta do Caju e o Em vermelho a área de Pinheiro e as ilhas que mais
Ainda consta como referência Morro do Timbau, com a abrangência do plano de tarde comporiam o aterro da
geográfica a “Fazenda fazenda de Manguinhos, 1927 contemplando o Ilha do Fundão, são aterradas e
dos Manguinhos”. A já ocupada pelo Instituto “Projecto Bairro Industrial incorporadas ao continente com as
comparação com a figura 5 Oswaldo Cruz, e as áreas de Manguinhos” e em estacadas do prolongamento do
dá a dimensão da escala dos de mangue vizinhas na verde a área reservada ao Porto. Em vermelho a área a qual
aterros realizados na Baía de foz dos rios Faria e Timbó. Instituto Oswaldo Cruz . ficaria retrito o Instituto Oswaldo
Guanabara em cerca de um Fonte: Arquivo Geral da Fonte: Briguiet, 1929. Cruz e em amarelo o perfil original
século. Fonte: Arquivo Geral Cidade do Rio de Janeiro. do litoral de Manguinhos. Fonte:
da Cidade do Rio de Janeiro. Agache, 1930.

Fig 2 Fig 3 Fig 4

partindo da Ponta do Caju e indo até lhe deu origem era situada entre São problema para a cidade.
os contrafortes da Serra da Estrela, na Cristóvão, Caju, Inhaúma e Bonsucesso,
subida de Petrópolis, e das margens e estava abandonada desde os anos A reserva, apesar de ser gerada na
da Baía de Guanabara alcançando a 1880, tendo sido então desapropriada desapropriação de 1884, ganhou forma
Serra da Tijuca, sendo maior, portanto, pelo Governo Federal para a instalação definitiva a partir de 1910, quando a
do que a área que hoje associamos de fornos crematórios de lixo urbano empreiteira alemã Gebruederer Goedhart
à Baixada. No início do século XX tal da cidade do Rio de Janeiro. Em 1900 Aktiengesellschaft – GGAG – obteve,
área era ainda relativamente pouco foi instalado na mesma fazenda o em 1910, uma concessão do Governo
ocupada, apresentando baixa densidade laboratório de produção de vacinas Federal para o saneamento de toda a
demográfica e era o vetor natural de do Governo, o Instituto Soroterápico Baixada Fluminense. Mas os trabalhos
expansão, com terras fartas e baratas, Federal, que logo deu origem ao iniciados em 1911 foram interrompidos
numa superfície muito maior que Instituto Oswaldo Cruz – IOC – e onde pela Primeira Guerra Mundial e máquinas
a disponível na Zona Sul, além de em 1906 se iniciou a construção do e equipamentos foram confiscados, assim
relativamente bem servida de transportes célebre Pavilhão Mourisco. Os fornos como a concessão, tendo sido devolvidos
e localizada no eixo de circulação entre pouco funcionaram e acabaram sendo somente após a guerra. Em 1919 o
as cidades do Rio de Janeiro e Petrópolis desativados. O terreno, com quase empresário Jeronymo Teixeira de Alencar
e a caminho de São Paulo e Minas 900.000m2, ficava sob a influência do Lima comprou aos alemães a concessão
Gerais. Seu principal impedimento eram Instituto Oswaldo Cruz e sob jurisdição e elaborou um ambicioso projeto de
as baixas condições de saneabilidade, da União, permanecendo à margem do urbanização e saneamento para a
devido principalmente ao alagamento processo de loteamento das fazendas área, fundando para isso a Empresa de
constante da região, às marés e à vizinhas. A mancha urbana então Melhoramentos da Baixada Fluminense
vegetação de mangue, típica das áreas contornou Manguinhos, provocando um – EMBF.
de baixada e favorável à proliferação de hiato de cidade entre os bairros de São
A concessão de 1910 tinha em seu
insetos. Cristóvão e Ramos. (Oliveira, Costa e
escopo um mecanismo jurídico que,
Pessoa, 2003)
Nesse cenário só a região de invocando a salubridade e utilidade
Manguinhos, embora mais próxima ao Acidentalmente foi criada uma reserva pública, dava direito ao Governo
perímetro urbano, ficou relativamente urbana que seria alvo de diversos Federal de desapropriar terrenos de seu
à margem do processo de rápido projetos e planos urbanísticos ao longo interesse para o saneamento da capital.
adensamento urbano. A fazenda que do século XX e oscilaria entre solução e Então no decreto 8.313 de 20/10/1910

Subúrbios Cariocas 69
Fig 6. Montagem contendo mapa com a Fig 8. Montagem contendo projeto
área aterrada pela EMBF e projeção de da Avenida Guanabara. Via paralela a
aterro de regularização do perfil do litoral Avenida Brasil, aproveitando os terrenos
de Manguinhos. A Avenida Brasil aparece ganhos por aterro em Manguinhos,
projetada na linha preta paralela à Baía de consolidado a utilização da orla da Baía
Guanabara. Manguinhos é a grande mancha e Guanabara como área institucional.
livre. O Aeroclube está na parte hachurada Fig 7. Montagem contendo projeto A grande área a esquerda na orla é
no litoral, em frente a Ilha do Pinheiro c. inicial da Cidade Universitária, destinada ao Ministério da Marinha, e
1940. Fonte: Arquivo Geral da Cidade do Rio incluindo a Ilha do Pinheiro. 1953. vizinha a área destinada a Cruzada São
de Janeiro. Fonte: ?????? Sebastião. Fonte: REIS, 1977.

foram declaradas desapropriadas as explorada pela empresa. (Brazil-Ferro- traçado, havia sido prevista no plano da
propriedades compreendidas entre a Carril, 1922 e Brito, 1944) EMBF e encampada pelo Plano Agache
orla da Baía e a cota de 30m de altitude, (3), que, aliás, também utilizava seus
No entanto as obras foram interrompidas conceitos de bairro-operário e de canais
que, seguindo o litoral, abrangia todas as
em 1928, após a canalização do Rio
bacias hidrográficas da região chegando navegáveis (4). Outra conseqüência
Faria-Timbó e do aterro de parte da
até a Serra da Tijuca. direta dos aterros foi a instalação de
enseada de Manguinhos. A crise
um aeródromo em frente ao terreno do
Por encomenda de Alencar Lima, econômica mundial de 1929 eliminou
Instituto Oswaldo Cruz, transformado
o engenheiro Jorge Macedo Vieira qualquer possibilidade de continuação
em 1934 no Aeroclube de Manguinhos
elaborou em 1922 a versão definitiva dos trabalhos, a concessão da EMBF
e que funcionaria até 1961, quando foi
do projeto para o saneamento de toda foi finalmente cassada e a empresa
desativado (5).
a Baixada (1), iniciando justamente dissolvida em 1933, com os seus bens e
pela antiga fazenda de Manguinhos, serviços gerados absorvidos pela União. Com a construção da Avenida Brasil,
a reserva ainda livre, na qual criaria o o Departamento de Urbanismo da
A desapropriação das terras marginais
pioneiro Bairro Industrial Operário, onde Prefeitura do Distrito Federal projetou,
à Baía de Guanabara e a criação de
se instalariam indústrias e residências em 1950, a Avenida Guanabara e o
terrenos por aterros gerou para a União
em lotes e vias com dimensões Parque Uruçumirim para a “urbanização
uma reserva de espaços vazios próximos
apropriadas. O projeto ainda previa da faixa litorânea compreendida entre
que, somados à reserva anterior da
a criação de instalações portuárias a Praia de Inhaúma e a Ponte da Ilha
antiga fazenda de Manguinhos, seriam
marítimas e fluviais para escoamento do Fundão, área fronteira à Cidade
o palco para diversos planos urbanísticos
da produção local e a canalização de Universitária e reserva uma área
e viários subseqüentes, além de espaço
rios, visando torná-los navegáveis, assim destinada ao Parque” (Reis, 1977, p.
livre bruto, pronto para invasões e
como a construção de uma estrada de 308). O traçado da Avenida Guanabara
ocupações espontâneas.
rodagem de 40km de extensão que teria 18m de largura e mais a faixa
ligaria a Capital a Petrópolis. Além disso, Talvez o primeiro fruto, a primeira non aedificandi de 20m destinada à
visava construir pontes e um sistema apropriação da reserva, tenha sido a arborização. Em 1959 o projeto da
de irrigação e drenagem, resultando construção da Variante da Rio-Petrópolis Avenida Guanabara foi retomado
na entrega ao governo mais de (2), a Avenida Brasil, entre 1938 e 1945. com o objetivo principal (e oficial) de
1.000.000m2 totalmente urbanizados. Seu traçado “evitava” as regiões então desafogar a Avenida Brasil, que, apesar
Como contrapartida a EMBF geraria consolidadas, cortava Manguinhos de duplicada em 1954, já apresentava
em benefício próprio 4.000.000m2 e margeava a Baía de Guanabara sinais de saturação. O novo projeto ia da
urbanizados e saneados, uma “área justamente na área de aterros da EMBF, foz do Rio Meriti até a foz do Rio Jacaré,
maior que a de todo o centro, desde já então de posse da União. Uma seguindo paralelamente à Avenida Brasil
a Glória ao Cais do Porto” que seria avenida semelhante, porém com outro pelo litoral e em via elevada no trecho

70 Revista da FAU UFRJ_número 2


Fig 9. Montagem contendo estudo de
1975 para a implantação das linhas
Vermelha, Amarela e Marrom. Neste
estudo o traçado da Linha Vermelha Fig 11. Montagem contendo versão
passa pela Cidade Universitária, definitiva do Projeto Rio 1980 com os
tentando diminuir a necessidade de Fig 10. Montagem contendo a setores e as propostas específicas para
aterros, sendo repudiado pela UFRJ. O primeira versão do Plano Rio, de cada área. Aparece ensaiada a versão
traçado executado em 1992 aproveitou 1979, com a proposta de criação da Linha Vermelha passando pela Ilha
os aterros de 1980 do Projeto Rio e de aterros em Manguinhos e do Fundão. Aqui a Ilha do Pinheiro é
seguiu a linha litorânea do continente. Ramos ligando a Ilha do Fundão ao definitavamente unida ao continente.
Fonte: ????? continente. Fonte: ????? Fonte: ?????

entre a Cidade Universitária e o Trevo das remoção das favelas, com o ”objetivo morassem em uma área próxima ao
Missões, ampliando o projeto original de de apresentar um aspecto melhor da Pavilhão Mourisco, dando início à
1950 de 7,5km para 13,5km de extensão cidade, por ocasião dos festejos de seu ocupação do Morro do Amorim em
e incorporando uma praça de pedágio. IV Centenário” (Reis, 1977, p. 308). Era 1901. A ocupação dos terrenos ociosos
(Reis, 1977, p. 308) prevista ainda a instalação da “Refinaria da União na reserva justamente pelo
do Distrito Federal” (que viria a ser a afluxo de operários e suas famílias
O Parque Uruçumirim foi concebido atual Refinaria de Manguinhos) e de acabaria dando origem ao complexo de
como área de lazer e espaço para as diversos órgãos públicos, civis e militares favelas da Maré, inicialmente uma colônia
grandes exposições da cidade e estaria às margens da Baía (Reis, 1959). O de pescadores nos arredores do Morro
inicialmente destinado às comemorações projeto não foi concretizado, mas o do Timbau. Os terrenos disponíveis
do seu IV Centenário em março de 1965. conceito de uma park-way ou express- na margem norte da Leopoldina
O Parque seria também um local para way, avenida de alta velocidade com possibilitariam ainda a implementação
“recreação da população suburbana”, parques e equipamentos ao longo da das ações sociais da Cruzada São
cujo único ponto de contato com a Baía via, seria implementada no Aterro do Sebastião e da Fundação Leão XIII
de Guanabara era a Praia de Ramos, pois Flamengo poucos anos depois. nos anos 1950, com a construção dos
todo o resto havia sido ou estava sendo Centros Habitacionais Provisórios,
“ocupado pela indústria e atividades Ainda entre 1950 e 1954 aconteceu
a construção da Cidade Universitária que dariam origem ao Complexo da
portuárias” (Reis, 1977, p. 308). O Manguinhos. (Fernandes e Costa, 2007)
Parque teria projeto de paisagismo no aterro de oito ilhas (6) vizinhas à
específico, com a preferência de Manguinhos, modificando drasticamente O próximo grande projeto a se utilizar da
“espécies frondosas”, fazendo um espaço o sistema de circulação das correntes reserva foi o “Plano de Desenvolvimento
marinhas, cujas conseqüências
verde na “aridez (...) observada na Zona Urbano do Estado da Guanabara”, o
ambientais foram desastrosas para a
Suburbana” e seria também um “local de Plano Doxiadis, cujo objetivo era preparar
Baía de Guanabara (7). A construção
atração constante” tanto da “população a cidade-estado do Rio de Janeiro para
da Cidade Universitária motivou ainda
permanente da cidade” como de o (então longínquo) ano 2000. No
a criação de um novo sistema viário,
turistas. Outro objetivo da via seria fazer entanto, com o golpe militar de 1964, a
intensificando o fluxo de veículos na
a ligação com o Aeroporto do Galeão, reorganização na estrutura de governo
Avenida Brasil.
“diminuindo a distância” e evitando o e de planejamento no Rio de Janeiro,
tráfego pesado da Avenida Brasil. Para a A construção da Avenida Brasil e da culminado com a fusão entre os Estados
instalação do parque seria necessária a Cidade Universitária teve, no entanto, da Guanabara e do Rio de Janeiro em
remoção de “4.000 casebres” na favela um efeito colateral: a potencialização 1975, gerou a descontinuidade do
da Baixa do Sapateiro, o que parece da favelização da região, iniciada plano. Somente alguns pontos de sua
ser o objetivo secundário do projeto. involuntariamente com a permissão proposta viária seriam seguidos nos
Caberia à Cruzada São Sebastião a do IOC para que seus funcionários anos posteriores, como o das linhas

Subúrbios Cariocas 71
policrômicas, rede de vias expressas às Vilas do João e do Pinheiro entre incompletos) contribuíram para a falta
que conectariam a cidade. A linha outros. de escala urbana de “cidade” em
Lilás foi a primeira a ser executada, Manguinhos. A área parece ser formada
ligando Laranjeiras ao Porto, ainda nos Previa ainda o Projeto Rio a despoluição apenas por macro e micro-ocupações,
anos 1960. Somente nos anos 1990 de um trecho específico da Baía da estes últimos na forma de favelas, mas
seriam construídas as linhas Vermelha e Guanabara, que se estendia do Caju que pela formação de complexos de
Amarela, ficando ainda outras somente até a Praia de Ramos, considerado o de favelas acabam resultando também em
no projeto. piores condições ambientais. A solução uma escala macro. Nos lugares onde
apresentada era a de simplesmente o processo de loteamento das antigas
Tendo novamente Manguinhos como aterrar 2.300ha (1,5% do espelho da fazendas ficou na mão de particulares
palco, foram elaborados nos anos Baía de Guanabara!), onde seriam se desenvolveram bairros com escala
1970 planos para construção da Linha construídos novos conjuntos de casas humana, com lugares de encontro e
Vermelha, chegando a um traçado e equipamentos comunitários. Este espaços cívicos, praças e mercados,
que passava pelo Campus da Cidade aterro abrigaria também uma via lugares de troca e comércio local, a
Universitária, evitando maiores aterros, expressa, paralela à Avenida Brasil, a escala intermediária de ocupação, que dá
mas sendo rejeitado pela UFRJ. O Linha Vermelha, já prevista no plano noção de escala de cidade. As propostas
projeto retomava o espírito da Avenida de Doxiadis e construída somente em em Manguinhos raramente privilegiaram
Guanabara de desafogar a Avenida 1992, tendo em vista a conferência da essa escala, o que acaba se refletindo no
Brasil entre o Centro e o Aeroporto e de ONU RIO92 e tendo como motivação confuso espaço urbano contemporâneo.
(tentar) resolver, conjugado ao Projeto promover o desafogo no trânsito da
Rio, a questão das favelas na orla da (eternamente) saturada Avenida Brasil. Manguinhos, ao longo do século XX,
baía. O projeto implementado passava Este aterro final muda drasticamente o viveu praticamente todas as principais
pelos aterros que seriam executados recorte do litoral em comparação ao do correntes do urbanismo deste século,
pelo Projeto Rio nos anos 1980, que início do século e integra definitivamente inclusive a vigente no Rio de Janeiro
buscava erradicar as palafitas do a Ilha do Pinheiro ao continente, gerando deste início de século XXI, a do
Complexo da Maré que se expandiram mais terrenos livres que acabariam, abandono de propostas, econômicas,
significativamente entre os anos 1970 apesar de todos os esforços, sendo urbanas, políticas, que vem deixando
e 80. A construção da Linha Vermelha ocupados de maneira irregular nos anos o Rio de Janeiro em uma espécie de
ajudou a remoção e realocação de 1990. letargia, pelo menos até a chegada
moradores da Maré, além de melhorar dos PACs do governo federal, e parece
as condições de acesso ao Fundão, No período compreendido entre a agora começar a despertar de seu sono
ao Aeroporto do Galeão e à Baixada construção da Avenida Brasil e da Linha encantado com a perspectiva da chegada
Fluminense, Petrópolis e São Paulo/Minas Vermelha (passando pela projetada de seu príncipe olímpico. Que o Barão de
Gerais. (Reis, 1977 e Abreu, 1987) Avenida Guanabara) os terrenos da Coubertain e Jules Rimet inspirem nossos
“reserva”, entre a poluída Baía de governantes •
O Projeto Rio foi anunciado em junho Guanabara e as autopistas da sempre
de 1979 e teve por finalidade “sanear” congestionada Avenida Brasil, ficaram
a orla da Baía de Guanabara. O projeto “vazios”. A terra de ninguém, na verdade
Alexandre Pessoa é Professor Assistente da
previa uma intervenção desde a Ponta da União, deu origem ao enorme
FAU-UFRJ, Doutorando pelo PROURB FAU-UFRJ.
do Caju até os rios Sarapuí e Meriti, complexo de favelas da Maré, habitado
em Duque de Caxias, num trecho de no começo do século XXI por cerca de
27km, e apresentava como novidade 150.000 pessoas. O trecho vazio mais ao
a criação de espaços para abrigar norte, próxima ao leito da Leopoldina,
populações de baixa renda e a criação de abriga o complexo de Manguinhos, onde
condições para ambientação ecológica vivem ainda outros 50.000 habitantes
e paisagística do trecho mais poluído (8). Os dois complexos têm um processo
da Baía de Guanabara. A fase inicial de formação distinta, mas com uma
previa a remoção total dos moradores origem comum: são ocupações diretas
das favelas da orla para conjuntos de terrenos restantes da descontinuidade
habitacionais, o que gerou grande reação de planos, projetos, obras e indústrias
dos moradores e da imprensa, não tendo realizadas ao longo do último século.
sido por isso implementada, limitando-se
à erradicação das áreas de palafitas, que A impressão que ficou é que a
eram cerca de um terço da população “reserva” não conseguiu cumprir seu
da Maré e se situavam principalmente papel potencial, pelo menos não de
nas comunidades da Baixa do Sapateiro modo formal, o de área de expansão,
e do Parque da Maré. Foi elaborado de estratégica, para a metrópole. A exceção Fig 8. Montagem contendo projeto
seria o uso institucional, como as da Avenida Guanabara. Via paralela a
forma complementar um programa de Avenida Brasil, aproveitando os terrenos
habitação em conjuntos habitacionais e edificações militares ao longo da Avenida
ganhos por aterro em Manguinhos,
a regularização dos lotes e do traçado Brasil e a Fiocruz. A escala e o gigantismo consolidado a utilização da orla da Baía
viário, que deram origem, por exemplo, de algumas das propostas aqui listadas, e Guanabara como área institucional.
e os empreendimentos realizados (ou A grande área a esquerda na orla é
destinada ao Ministério da Marinha, e
vizinha a área destinada a Cruzada São
Sebastião. Fonte: REIS, 1977.
72 Revista da FAU UFRJ_número 2
Notas Referências Bibliográficas

1. Saturnino de Brito elaboraria um organizar os vôos de chegada e de saída do ABREU, Mauricio. Evolução urbana do Rio
Aeródromo sem entrar em rota de colisão de Janeiro. 1987. 4ª ed. IPP. Rio de Janeiro,
parecer elogioso ao projeto em 1928.
com os aviões comerciais que demandavam 2006.
BRITO, 1944
ou saíam do Aeroporto do Galeão”. Suas
2. Estrada paralela ao leito da Leopoldina, instalações passariam a funcionar em AGACHE, Alfred Donat. Cidade do Rio
aberta no governo Washington Luís, hoje Jacarepaguá, onde estão até hoje. Há de Janeiro: remodelação, extensão e
batizada de Leopoldo Bulhões uma polêmica sobre o novo aeroporto da embelezamento. Plano Agache. Rio de
cidade, cogitou-se a construção do que Janeiro: Foyer Brésilien, 1930.
3. Em 1927, o prefeito Antônio Prado viria a ser o Santos Dumont no aeródromo
Júnior, convida o urbanista francês Alfred BRAZIL-FERRO-CARRIL. Rio de Janeiro, ano
de Manguinhos, região “pouco povoada, XIII, n. 271, 1922
Agache para efetuar o primeiro grande por isso mesmo sem os inconvenientes
estudo global da cidade. Para ele três à sua instalação no Centro, porém com BRITO, Saturnino de. Obras Completas,
pontos eram determinantes: Circulação, fácil acesso à malha ferroviária e ao Porto, v.16. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
Higiene e Estética, e foi neste sentido que além de estar numa região mais central da 1944.
concebeu suas propostas para a cidade, cidade”, conforme o artigo de Fernando
elaboradas entre 1928 e 1930. O plano, CASTRO, J. B. M. O Campo de Aviação de
Miranda de Carvalho (engenheiro do
Manguinhos. Encontros no Incaer. Rio de
entretanto, não é totalmente efetuado Ministério de Viação e Obras Públicas),
Janeiro. Instituto Cultural da Aeronáutica,
e o sucessor de Prado Júnior, Henrique na Revista Brasileira de Engenharia de
1989. (Mimeo.)
Dodsworth, após a revolução de 1930 Novembro de 1934. CASTRO, 1989.
não quis ratificar a iniciativa da Republica FERNANDES, Tânia ;COSTA, Renato
6. Catalão, Cabras, Baiacu, Fundão,
Velha, e “arquivou” o plano. da Gama-Rosa. Comunidades de
Ferreira, França, Bom Jesus e Sapucaia.
4. Agache, ao montar sua equipe no Rio de Manguinhos: Imagens da História de
7. Entre os anos de 1953 e 1958, Léjeune Favelas. In: Anais do IX Congreso de la
Janeiro utiliza-se de seu amigo Armando
Pacheco de Oliveira, cientista do Instituto
Augusto de Godoy como intermediário Sociedad Latinoamericana de Estudios
Oswaldo Cruz escreveu alguns artigos para
entre seu escritório e a prefeitura. Godoy sobre America Latina e Caribe (SOLAR),
as Memórias do Instituto Oswaldo Cruz,
pede então a colaboração dos profissionais descrevendo, com detalhes, o processo de 2004, Rio de Janeiro. Programas e
do Rio, no que foi prontamente atendido, aterramento e poluição daquele trecho da resumos: IX Congreso de la Solar. A
e tem acesso aos planos e projetos para a Baía de Guanabara, e não poupa críticas integração da diversidade racial e cultural
cidade. Agache aproveita então trechos de a construção da Cidade Universitária, e a do Novo Mundo. UERJ, v. 1. p. 10-10. Rio
alguns projetos”. (SILVA, 2003, p 74 apud desordenada expansão urbana da Cidade de Janeiro, 2004.
ALBUQUERQUE FILHO, 1959). do Rio de Janeiro. OLIVEIRA, 1958.
GUIA BRIGUIET. Rio de Janeiro, seus
5. O Aeroclube de Manguinhos funcionou 8. www.armazemdedados.rio.rj.gov.br arrabaldes, seus passeios. 1ª ed. Rio de
até 1961, “(...) quando foi fechado (...) Janeiro: Briguiet, 1929. v. 1, 209 p. 40 il.
sob a justificativa de que era impossível maps.

OLIVEIRA, Benedito T (Coord.); COSTA,


Renato G. R.; PESSOA, Alexandre. Um
Lugar para a Ciência: a formação do
campus de Manguinhos. Rio de Janeiro:
Editora FIOCRUZ, 2003.

OLIVEIRA, Lejeune. “Poluição das águas


marítimas, estragos na flora e fauna do
Rio de Janeiro.” In: Memórias do Instituto
Oswaldo Cruz, pp. 55:56. Rio de Janeiro:
1958.

REIS, José de Olivieira. Avenida Guanabara.


In: Revista Municipal de Engenharia. Jan-
Jun 1959, pp.16-23. Rio de Janeiro. Pdf.
1959.

REIS, José de Olivieira. O Rio de Janeiro


e seus Prefeitos. Evolução urbanística da
cidade. Rio de Janeiro: PCRJ, 1977.

REIS, José de Olivieira. Guanabara e seus


Governadores. Rio de Janeiro: PCRJ, 1977.

SILVA, Lúcia Helena Pereira da. História


do Urbanismo no Rio de Janeiro-
Administração Municipal, Engenharia e
Arquitetura dos anos 1920 à Ditadura
Vargas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2003.

Subúrbios Cariocas 73
painel

AUTOINTERVENÇÕES NAS RESIDÊNCIAS ECONÔMICAS: UM ESTUDO


NO BAIRRO DE HIGIENÓPOLIS, RIO DE JANEIRO*
Marcelo da Rocha Silveira

* Texto apresentando parte da pesquisa que originou a tese de doutorado “O processo


projetual das auto-intervenções nas residências econômicas :um estudo no bairro de
Higienópolis (Rio de Janeiro)”, orientada por Guilherme Lassance, defendida em 2008 no
PROARQ FAU-UFRJ

A formação do bairro de Higienópolis, pelos moradores no momento que fazendo com que tudo e, ao mesmo
no subúrbio do Rio de Janeiro, aconteceu eles reformaram as suas respectivas tempo, nada possa ser considerado arte,
a partir da apropriação do modelo residências (auto-intervenção) e ou, em outras palavras, desvalorizando o
de cidade-jardim. Em tal apropriação como eles entenderam as questões produto estético.
havia uma preocupação por parte de relacionadas às hierarquias e articulações
investidores no mercado imobiliário espaciais, aos elementos simbólicos, O uso de janelas de alumínio
em fornecer uma melhor qualidade culturais, afetivos, entre outros. conjuntamente com telhas capa-canal,
urbana para uma classe de trabalhadores ou a utilização de guarda-corpo de
que conquistavam uma elevação de ferro fundido com telhas de amianto,
renda a partir da intensificação da por exemplo, não somente não se
Do projeto à cópia harmonizavam com as propostas
industrialização brasileira. Desse modo,
esse tipo de concepção de bairro se Em diversos exemplos dos estudos estilísticas do projeto original (2), mas
insere dentro do tecido urbano do de caso, pôde ser observada uma também estas auto-intervenções podem
subúrbio carioca, e, nesse contexto, as heterogeneidade no emprego de ser denotativas de uma incapacidade
residências econômicas, construídas elementos de composição das fachadas, de entendimento ou mesmo uma
no início da urbanização deste bairro assim como da parte interna das despreocupação com um projeto,
(décadas de 1930 e 1940) vieram residências (1). Contudo, as casas entendido como um todo unitário.
também propiciar uma melhor condição possuíam, em seus projetos originais, Haveria então, nas auto-intervenções
de vida e, conseqüentemente, valorizar certa proposta estilística determinada estudadas, a utilização dos elementos
novos empreendimentos imobiliários pelos projetos das Residências componentes da reforma valorizando
dessa primeira metade do século XX. Econômicas. mais as qualidades particulares de cada
Contudo, estas constituem certo tipo de um do que a inter-relação de cada
As reformas alteraram as fachadas elemento com o todo.
“modelo”, já que são pensadas dentro
retirando os materiais originais e
de determinados padrões formais e Pignatari (1973) esclarece que essa
substituindo-os por outros mais atuais,
funcionais para tais moradores, não incapacidade de entendimento advém de
e, ao mesmo tempo, mantiveram outros
existindo, portanto, a preocupação uma tentativa de aumento de repertório
presentes do projeto inicial (janelas,
com as demandas particulares de que simbolize um novo status social.
portas, revestimentos, telhas). Caberia
determinado cliente. Todavia, essa elevação se constata como
então questionar se houve por parte dos
Com o decorrer do século, as alterações proprietários a intenção de promover artificial, haja vista que não existe um
na estrutura urbana, aliada a mudanças uma coadunação entre esses diversos entendimento do repertório utilizado,
do modo de construir e de habitar, elementos, ou se isso não foi algo eles “[...] carecem de significado prático,
ensejaram alterações nessas moradias irrelevante no momento da reforma. isto é, são ininteligíveis” (PIGNATARI,
por parte de seus moradores. Entretanto, Porque dispor conjuntamente elementos 1973, p. 98). Umberto Eco (1988)
não se pode tributar somente a tais que remetem a certa rusticidade, complementa ainda que o problema
fatores as transformações realizadas nas característica da época colonial de inteligibilidade de uma mensagem
ditas residências econômicas, pois estas (pré-industrial), com outros que são consiste na capacidade de percepção
são também determinadas por modos associados à típica sociedade industrial? da quantidade de informações
de percepção do espaço, influenciando E se isso é feito de modo consciente ou transmitidas, ou seja, nesse caso, há
relações ideológicas, afetivas, funcionais reflete a falta de um conceito de unidade uma vasta informação onde o receptor
do morador com seu habitat. ou de um projeto? (moradores) não teriam a capacidade de
filtrá-las e, com isso, produzir um todo
O presente trabalho visou, a partir do Talvez, uma das respostas para isso esteja coeso, advindo, daí, uma desordem.
estudo de nove casas localizadas no na exacerbação do individualismo e no Com isso, poder-se-ia afirmar que a
Bairro carioca de Higienópolis, entender desaparecimento de critérios estéticos “modernização”, como referida pelos
quais seriam os parâmetros utilizados normativos e pontos de referência, entrevistados, tratar-se-ia, na verdade,

74 Revista da FAU UFRJ_número 2


via férrea - ramal Belford Roxo

via férrea - ramal Gramacho


linha 2 do metrô

Linha Amarela

Avenida Brasil
Higienópolis

Delimitação do Bairro Higienópiolis segundo Instituto Pereira Passos. -


Secretaria Municipal de Urbanismo do Rio de Janeiro.
Subúrbios Cariocas 75
Garagem

76 Revista da FAU UFRJ_número 2


Platibanda com telhas canalete 45 ocultando
telhado original de telhas francesasal

janelas de alum´nio em verga reta


de uma tentativa de apropriação locais destinados aos jardins, ou seja, O espaço funcional
daquilo que poderia ser denominado em áreas onde havia a presença da terra
de arquitetura oficial (ou de uma elite), in natura, houve em todos os casos a Percebeu-se nas casas estudadas uma
mas reelaborada a partir de soluções aplicação de um piso de cobertura de preocupação premente na facilidade
plástico-construtivas que remeteriam, concreto aparente ou a aplicação de de manutenção do imóvel. Todos os
na percepção dos moradores, a uma algum tipo de revestimento a fim de entrevistados apontaram objetivamente
originalidade e uma individuação. reduzir esta área a apenas uns poucos para a praticidade da casa como um dos
canteiros ou mesmo nenhum. fatores que incentivaram a realização da
reforma. Isso se verifica não somente
Poder-se-ia então relacionar a construção na presença de eletrodomésticos de
O espaço interior (ampliação) como um vínculo de todos os tipos dentro da cozinha, por
Conquanto a questão da beleza tenha apropriação do espaço? Tomando-se exemplo, mas, do mesmo modo, através
sido considerada como um fator novamente por base as entrevistas, de revestimentos “mais práticos” para
importante durante as auto-intervenções houve alguns casos em que a ampliação a limpeza, eliminação de ornamentos
por parte de todos os entrevistados, a ou edificação de novos ambientes arquitetônicos, supressão de áreas
relação com os arredores, principalmente comprovou-se quase que como obsoleta. verdes.
no que concerne a uma relação plástica Os terraços existentes nas residências
pesquisadas não apresentam, segundo Houve uma preocupação constante
harmônica, foi inteiramente desprezada com as áreas úmidas que levou os
por todos os moradores, sem exceção, as palavras dos próprios moradores,
“praticamente nenhuma utilidade”. proprietários a procurar revesti-las com
sobretudo nas fachadas reformadas e azulejos. Essa atitude teve tanto um
ocultadas da rua por altos muros. As As áreas cimentadas em todas as caráter plástico quanto funcional, pois
casas foram pensadas como elementos residências visavam similarmente os moradores se preocuparam com
isolados da paisagem urbana. Desse a aumentar a área útil do terreno, questões ligadas a higiene, ao mesmo
modo, os elementos que comporiam a possibilitando a utilização pelas pessoas tempo em que consideravam o azulejo
beleza de cada residência são concebidos de modo supostamente mais confortável, uma espécie de material nobre, ou seja,
isoladamente do contexto urbano. além de facilitar, supostamente, a revestir cozinha e banheiro até o teto
Essa falta de unidade e continuidade, limpeza e conservação. Desse modo, demonstra, segundo eles, que houve
que produz uma enorme diversidade terraços e jardins se configurariam cuidado e esmero no acabamento.
da aparência externa das residências, como extensões da própria casa, não se
apresentado como uma contrapartida Por um lado, os azulejos possibilitariam
pode gerar no morador um sentimento uma limpeza mais fácil e melhor, pois
de perda de identidade com o lugar. do espaço construído, ou seja, eles
possuiriam um caráter também funcional. haveria condições, segundo as palavras
Propicia-se a existência de uma dicotomia de todos os entrevistados, de “se jogar
entre o espaço interior da casa e o Aquilo que inicialmente era entendido água em toda a parede”. Contudo, esse
espaço exterior a ela. Contudo, esse pelo proprietário como uma possibilidade tipo de atitude não era comumente
espaço exterior deve ser entendido, de ampliação da área útil torna-se, realizada, visto que havia partes da
como adverte Netto (2002, p. 33), sendo provavelmente, a constituição de um parede onde os azulejos estavam
“[...] aquilo que está afastado dela, i.e., espaço ocioso. A falta de moradias e enterrados, ou seja, escondidos atrás
a rua, o espaço coletivo”, nesse caso, a a especulação imobiliária forçaram a de armários, geladeiras, freezers. Além
fachada deve ser tomada também como um aproveitamento cada vez maior do disso, houve em alguns casos, uma
um elemento interno à casa. Como tal, terreno, daí acarretando que o aumento copa conjugada à cozinha que também
a fachada se torna um objeto que está da área construída signifique uma recebeu o mesmo tipo de revestimento,
no domínio do morador e, portanto, elevação do status da família. Esses dois que se revelou desnecessário no aspecto
dentro de seu “espaço” de manipulação, fatores associados poderiam, então, funcional, acabando por desempenhar
independente de qualquer tipo de ser considerados uma contrapartida apenas uma função ornamental.
interferência ou compromisso externo. a um tipo de utilização do terreno,
resultando daí uma forma de entender o Houve também uma resistência à
O exterior se configuraria para os tentativa de incorporação da sala à
moradores o lugar da desordem, como espaço como valor na medida em que é
edificado. Ao mesmo tempo, poder-se-ia cozinha, o que tornaria o espaço mais
gera, do mesmo modo, o sentido do integrado e evitaria certo aprisionamento
espaço ilimitado; as noções de bairro e afirmar que seria um momento em que
o uso habitual da relação da casa com o da dona-de-casa cozinheira em um local
de lugar tendem por quase desaparecer. fechado. Ainda persiste a idéia de que
Assim, pode-se perceber uma ruptura lote se manifesta através da apropriação
do afastamento frontal como área útil e esta parte da casa é um local que deve
no sentido de territorialidade, a casa ser isolado das áreas sociais, mesmo que,
é pensada como uma arquitetura de não um espaço destinado a um jardim
natural, pois este não é visto como uma cada vez mais, a cozinha seja o local em
interior, estando nela a sua essência. que a família e os amigos, geralmente,
área usável, no sentido de poder ser
O espaço artificial ocupada e ser destinada a alguma coisa se reúnam para preparar os alimentos.
que não o mero embelezamento da Em todas as residências pesquisadas não
Segundo as entrevistas, houve em todos havia em qualquer uma delas a presença
residência.
os casos um aumento da área edificada da empregada doméstica, mas ainda
nas reformas e construções. Mesmo nos assim em nenhuma das residências havia,

Subúrbios Cariocas 77
do mesmo modo, a integração da sala concepção funcionalista. Se assim for não sobre o plano. Isso significa afirmar
com o local de cocção. verdade, haveria uma relação imediata que toda a construção acontece em uma
entre elementos contemporâneos e a tridimensionalidade. O cenário constitui,
funcionalidade, enquanto os elementos por outro lado, um pensar bidimensional
O espaço simbólico de cobertura, que remeteriam a do objeto arquitetônico, pois o que
aspectos já sedimentados pela cultura importa é como o prédio se apresenta
Talvez seja no telhado que o morador arquitetônica brasileira, seriam adotados para a rua, ou seja, sua fachada passa a
expresse mais claramente sua real de acordo com o gosto do proprietário, possuir uma importância superior a sua
intenção ou desejo. Desse modo, ele ou seja, sem uma preocupação formal volumetria, compondo assim um cenário.
estaria mais próximo de uma idéia de mais presente. As casas pesquisadas se configuram, em
“modernidade”, pois este elemento suas auto-intervenções, com elementos
arquitetônico, tal como as preocupações Ao mesmo tempo, a articulação entre concebidos isoladamente, e, com isso,
do modernismo, remeteria a uma estes dois materiais se estabeleceria edificados com concepções planificadas.
clareza e a uma funcionalidade mais de um modo absolutamente precário. Isso está presente principalmente em
imediata. Enquanto em um prédio de Através dos estudos de caso, pôde- diversas fachadas, onde materiais
apartamentos o telhado não é visto, se observar que os anexos das casas de revestimento são utilizados para
na casa ele se torna um elemento mais estudadas foram implantados em áreas acabamento das paredes. Todavia, esses
evidente. menos privilegiadas do terreno, ou seja, materiais permanecem restritos somente
nos fundos ou na lateral da casa. Isso a fachada frontal, não tendo qualquer
As coberturas existentes nas nove casas poderia demonstrar então que essa continuidade com as fachadas laterais.
pesquisadas possuem basicamente dois simples funcionalidade seria algo para
tipos diferentes de variações. No primeiro não ser visualizado, e, portanto, não O pensar bidimensional se configuraria
tipo, estariam presentes as telhas de se configurando como uma expressão como uma não preparação para
cerâmica sendo utilizado ou tipo capa- ou símbolo da modernidade ou da a abstração e consecutivamente a
canal ou então a telha plana. Haveria contemporaneidade. O já decantado carência de um pensar projetivo. Isso
um segundo caso, onde a cobertura foi mote do Movimento Moderno “a significaria afirmar que não houve
realizada por meio de telha de baixo forma segue a função” valeria apenas propriamente aquilo que se poderia
caimento, podendo ser esta de amianto para essas áreas tidas como anexas, entender como o domínio do espaço,
ou alumínio. Pôde-se então observar que onde forma e função se coadunariam. como no meio acadêmico ou profissional
existiu, em vários casos, uma utilização Daí, talvez pudesse se concluir que a da arquitetura se concebe, durante as
de vários tipos de telhados na mesma assimilação do pressuposto modernista reformas das residências. O morador
residência. se daria como uma proposta apenas ao realizar as auto-intervenções não
“fachadadista”, desvinculado-a de lançou mão de um olhar perspético, e,
Alguns proprietários tiveram a intenção
sua essência (forma acompanhando a conseqüentemente, compôs as fachadas
de compor uma fachada que remetesse
função). como elementos isolados, ou melhor,
ao dito estilo colonial. A casa neocolonial
como planos que não se interagiam
original foi transformada em uma casa Na proposta do Movimento Moderno, formando um todo tridimensional, ainda
vulgarmente conhecida de “coloniosa”, os elementos compositivos deveriam que a construção acontecesse dentro de
ou seja, essa intervenção consistiu na possuir uma necessidade funcional uma dimensão espacial.
verdade em uma releitura do período fazendo com que a linguagem plástica
Colonial. Do mesmo modo que o tivesse um sentido denotativo, ou seja,
neocolonial era tido, no início do século esses elementos teriam um vínculo direto
XX, como uma proposta “modernizante” de significação sem sentidos derivativos O espaço articulado
dentro de uma estética culturalista, a ou figurados. A presença de elementos Nas reformas estudadas, houve de
arquitetura vernácula assume novamente que possuem atributos implícitos em modo geral uma alteração dos espaços
um carácter atualizador dentro do seu significado, para além do vínculo internos. Em alguns casos, foi alterada
mesmo tipo de proposta. direto e imediato que mantém com os substancialmente a planta original, em
objetos da realidade, revelaria a utilização outros houve apenas uma mudança
Em praticamente todas as residências
da propriedade conotativa. Deste sutil, com a abertura ou fechamento de
analisadas, há uma mistura de três
modo, o sentido decorativo presente portas. Em todas as casas, as plantas
a quatro tipos de telhas diferentes,
nos telhados — e em outros diversos existentes obedeciam a um esquema de
existindo uma diversidade de propostas
elementos da fachada — remeteriam nítida separação entre as áreas social,
estilísticas. Em alguns casos, enquanto o
conclusivamente a uma conotação. A íntima e de serviço.
corpo principal das casas utiliza telhas de
partir daí, haveria nessa esteticidade uma
cerâmica (tanto capa-canal como plana), Nessas casas, ainda que houvesse
dupla possibilidade: um discurso emotivo
o terraço e garagem utilizam telhas de uma diferença no esquema básico
ou então um discurso referencial.
amianto e de metal respectivamente. da planta da residência colonial, elas
Pôde-se então concluir que enquanto no acompanharam o esquema da distinção
corpo principal da casa há conjuntamente O espaço planificado clara de separação dos espaços. A
uma intenção plástica e funcional; cozinha, que ocupou novamente lugar
os anexos possuiriam apenas uma O próprio ato de construir remeteria, de destaque na análise, se manteve em
inicialmente, o pensar sobre o espaço e todas as residências estudadas separada

78 Revista da FAU UFRJ_número 2


mesmo modo que o neocolonial era tido

mesmo modo que o neocolonial era tido

mesmo modo que o neocolonial era tido

Subúrbios Cariocas 79
fisicamente da sala, localizando-se não dispunham da intervenção de O que pode ser considerado sem
invariavelmente nos fundos ou em uma um profissional. Ao mesmo tempo, unidade, incongruente, estilisticamente
extremidade da residência. O modelo seria arriscado afirmar que estas não equivocado para a arquitetura
comumente utilizado em muitos países continham uma determinada lógica, acadêmica, pode ser tido pelos
da Europa e principalmente nos EUA, pois, nestes casos, haveria uma “lógica moradores como justamente o oposto.
onde a cozinha se integra diretamente particular” do morador. Tal afirmação Isso quer dizer, que eles acabam por
com a sala propiciando um espaço pode parecer contraditória, já que lógica ter sua própria forma de organização e
único, foi totalmente rejeitado, ou seria aquilo que remete a uma coerência, entendimento espacial. Como do mesmo
melhor, nem sequer foi cogitado pelos escapando, portanto de particularismos e modo, seus conceitos de beleza, ou
proprietários, durante a reforma. Eles idiossincrasias. de unidade estilística, são particulares,
mantiveram, ainda que houvesse um já que a noção de estilo arquitetônico
reposicionamento da cozinha, o esquema Não obstante, haveria no pensar de cada não é de forma alguma algo natural ou
inicial da casa. Nos casos estudados, proprietário certo tipo de coerência. espontâneo.
os corredores estiveram presentes em Entretanto, esta remeteria a toda uma
todos eles, contudo eles forneciam uma complexidade relacionada a questões De modo semelhante, pode-se entender
individualidade da parte íntima. de ordem afetiva, cultural, simbólica, que quando a auto-intervenção procura
funcional, hierárquica, histórica. Ou propiciar uma melhor comodidade e
Esse tipo de esquema demonstra que seja, a lógica das auto-intervenções nem conforto para residência, tais conceitos
enquanto a hierarquização dos espaços sempre teriam o mesmo funcionamento também se encontram dentro de um
permaneceu, devido, talvez, a uma da lógica de um profissional arquiteto, caráter subjetivo, haja vista que aí estão
manutenção de certas hierarquias sociais, já que este, em muitos casos, poderia presentes questões de ordem tanto
principalmente no que tange a uma relevar ou desconhecer diversos física, quanto espiritual ou emocional.
necessidade de separação entre os que elementos pertinentes à realidade Assim, para fazer com que haja conforto
trabalham e os que moram na casa. exclusiva do morador. e comodidade, o projeto não pode
Contudo, os entrevistados declararam, pensar somente em dados funcionais
de modo geral, que mantiveram o Desse modo, pensar em um projeto não (temperatura, ventilação, iluminação
esquema de separação da cozinha, significa necessariamente conceber algo etc.). Enquanto em questões de ordem
devido, principalmente, ao fato de que pronto e acabado assim que emerge da física há parâmetros tangíveis de serem
esta se constituía em um local onde seria prancheta, ou seja, a “conclusão” do quantificados, nas outras pode advir
necessário um resguardo da fumaça projeto poderia acontecer durante ao apenas uma qualificação de acordo com
advinda do cozimento dos alimentos, processo construtivo. Assim, o projeto as prerrogativas do próprio usuário.
além do que se tratava de um local não pode ser considerado apenas como
íntimo, necessitando, desse modo, um antecessor da produção de espaço As tentativas de adaptação das
possuir certa privacidade. Todavia, este e definido por uma simples lógica casas econômicas da Cidade Jardim
cômodo era em geral também o lugar de causalidade, mas, ao contrário, o Higyenópolis (assim como muitos
da casa mais utilizado, onde a família e pensamento projetivo é resultado da outros semelhantes no Brasil) integra
os amigos normalmente se reuniam. Em experiência dos espaços vivenciados ou uma expressão da arquitetura brasileira
praticamente todas as reformas, houve mesmo imaginados. Sendo assim, o ato que é fruto de uma série de ideologias,
uma ampliação da cozinha, o espaço projetual teria condições de prescindir da de políticas urbanas, de necessidades
destinado a esta anterior a reforma foi formalidade de um “projeto no papel”. O materiais, de questões culturais e
considerado insuficiente. que está na mente no proprietário auto- sociais. Todos esses fatores, que acabam
interventor acaba também por ser uma também por definir o traçado urbano,
Se a presença empregada doméstica atitude projetiva (que passa, às vezes, da são determinantes, do mesmo modo,
não existiu nesses casos estudados, sua concepção mental diretamente para da configuração das residências que
permaneceu de qualquer modo uma as orientações dadas aos operários da compõe o lugar. Portanto, talvez a
reminiscência do afastamento da obra) que se realiza e se modifica durante partir de uma melhor inter-relação do
cozinha da área social. Isso denota, todo o processo da intervenção. morador com sua residência, possa,
principalmente, que o lugar da mulher, ao mesmo tempo, refletir em uma
escrava, empregada, ou senhora, como Muitas das intervenções feitas nas casas alteração do espaço urbano. Isso poderia
menciona Rapoport (1972), não foi estudadas poderiam ser consideradas, em acontecer justamente na medida em que
substancialmente alterado. Ela possui princípio, possuidoras de incongruências sendo os edifícios representativos das
um lugar próprio, mas, ao mesmo estilísticas; havendo assim residências malformações e contradições da cidade,
tempo, isolado dos outros cômodos da híbridas e sem unidade ou até mesmo a cidade seja também representativa
residência. com erros de projeto (3). Não houve por das contradições das suas habitações,
parte dos moradores uma reflexão sobre principalmente quando se atenta que a
a composição das casas como um projeto formação do tecido urbano brasileiro se
unificado. Tais moradias acabaram desenvolveu do particular para o geral •
Considerações finais sendo quase que objetos artesanais,
As concepções espaciais presentes reconstituídos, de certo modo, como
nas auto-intervenções não se uma tentativa de recuperação de um
apresentaram, em princípio, seguindo passado ou de padrões perdidos na
uma racionalidade, isto é, elas não memória dos moradores, referências que Marcelo da Rocha Silveira é Professor Adjunto
estariam embasadas em qualquer eles aventuraram-se aplicar na auto- da Universidade Federal de Ouro Preto. Doutor
aparato teórico e disciplinado, já que intervenção. pelo PROARQ FAU-UFRJ.

80 Revista da FAU UFRJ_número 2


telha plana original

telha de alumínio
telha canalete 45
telha capa-canal

3º quarto
terraço

Notas Referências Bilbiográficas


1. Tal heterogeneidade se apresenta, ECO, Umberto. “A estrutura ausente”. 3.
porta de madeira com arco abatido
revestimento imitando tijolo aparente

janelas de alum´nio em verga reta

por exemplo: no tijolo aparente ed. São Paulo: Editora Perspectiva, 1976
(elemento rústico) com a esquadria
de alumínio (elemento industrial), na NETTO, J. Teixeira Coelho. “A construção
telha capa-canal (referência colonial) do sentido na arquitetura”. 5. ed. São
e telha de amianto (referência Paulo: Editora Perspectiva, 2002.
“moderna”). PIGNATARI, Décio. “Informação Linguagem
2. As casas no bairro de Higienópolis Comunicação”. 6. ed. São Paulo: Editora
seguiam algo que era chamado à Perspectiva, 1977.
época de suas construções (décadas
de 1930 e 1940) de estilo colonial.

3. Tais “erros” ou “incongruências”


podem estar presentes, por
exemplo, nos usos de materiais de
diferentes propostas (elementos
rústicos com elementos
industrializados), má circulação
dentro dos imóveis, super- ou sub-
dimensionamento dos cômodos etc.

Subúrbios Cariocas 81
ação

PLANEJANDO A CIDADE EM PEDAÇOS: PROJETO RIO CIDADE MÉIER,


PROJETO DE HUMANIZAÇÃO DA AVENIDA SUBURBANA E PROJETO
RIO CIDADE IRAJÁ
Luiz Carlos Toledo e Vera Regina Tângari

Considerações Iniciais sendo de interesse para um maior do urbanista diante da complexidade


conhecimento dos Programas Rio Cidade da cidade e não podemos nos esquecer
A tradição, de longa data, de se pensar e Favela Bairro. que ao optarmos por uma solução nos
e atuar no desenvolvimento urbano da vemos, vez por outra, a caminhar sobre
cidade do Rio de Janeiro de uma forma Aqui trataremos apenas da experiência o fio da navalha, não pela escolha feita
mais ampla, através de planos como o adquirida pelos autores ao participar e sim pelas infinitas alternativas que são
Agache (1927), o Doxiadis (1964) o PUB na elaboração de três projetos do perfil por ela descartadas.
Rio (1976) e o Plano Diretor Decenal Rio Cidade: Méier (1993-1998), Avenida
da Cidade (1992), entre outros, foi Suburbana (1995-1996) e Irajá (1998). O No caso dos três trabalhos a saída deu-se
interrompida no primeiro governo do primeiro e o último foram contratados através da história, buscando na evolução
prefeito Cesar Maia, no período 1993 a através de concursos nacionais urbana a chave tanto para compreender
1996. Boa parte dessa mudança de rumo promovidos pela Prefeitura Municipal e o estado atual dos centros de bairros
pode ser atribuída ao pensamento e à pelo IAB-RJ, e o da Av. Suburbana, atual pesquisados como, principalmente,
atuação do Arquiteto Luiz Paulo Conde Av. Dom Helder Câmara, por licitação para visualizar com maior consistência
como Secretario Municipal de Urbanismo pública. cenários futuros.
e, anos mais tarde, como Prefeito da
Cidade. Esse recorte, feito num tema tão
complexo e ainda pouco estudado, à
Influenciado pelo sucesso da reforma primeira vista poderia ser considerado O Projeto Rio Cidade
urbana da cidade de Barcelona e excessivamente particularizado, Influenciado pelo sucesso da reforma
descrente da eficácia dos Planos Diretores limitando-se a apresentar a forma urbana da Cidade de Barcelona e
como instrumento de desenvolvimento adotada pelos autores para enfrentar descrente da eficácia dos Planos Diretores
urbano, Conde apostou em outra os três desafios. Essa crítica sem dúvida como instrumento de desenvolvimento
ferramenta: o Plano Estratégico, faria sentido se, ao elaborarmos os três urbano, Luiz Paulo Conde, então
elaborado pela Prefeitura nos moldes projetos, não tivéssemos aprimorado Secretário Municipal de Urbanismo na
do realizado na cidade espanhola. Além uma forma de olhar a cidade que primeira gestão do prefeito César Maia,
do Plano Estratégico a Prefeitura lançou não se limitou a fazer a leitura da apostou em outra ferramenta: o Plano
os programas Rio Cidade e Favela Bairro imagem urbana que na época se Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro,
que se tornariam conhecidos e copiados apresentava, mas buscou no processo elaborado pelo Consórcio do Plano
por inúmeras prefeituras brasileiras e, que lhe deu origem, a chave para Estratégico da Cidade do Rio de Janeiro e
até mesmo, pelos governos de outros melhor compreendê-la. Essa opção “publicado em diferentes informes entre
países da América Latina. É curioso metodológica não deve ser atribuída 1995 e 2004” (ANDREATTA, 2006),
que, concentrando suas intervenções apenas à perspicácia dos seus autores, nos moldes do realizado na cidade
urbanísticas nos centros de bairro e nas pois na verdade resultou da perplexidade espanhola.
favelas, de certa forma a Prefeitura, dos mesmos diante de imagens urbanas
possivelmente sem se dar conta, reforçou aparentemente sem nexo que a mídia e, Os programas Rio Cidade e Favela
a idéia da “cidade partida”, idealizada até mesmo um ou outro representante Bairro, anteriores ao Plano Estratégico
pelo jornalista Zuenir Ventura. da academia, teimam em apelidar de (1992 e 1994, respectivamente), foram
caos urbano. incorporados ao Plano e se tornariam
É do primeiro programa que iremos conhecidos e copiados por inúmeras
tratar, não em termos de seu sucesso Como agir diante de situações em prefeituras brasileiras e, até mesmo,
ou fracasso como instrumento de que os níveis da desordem urbana, pelas de outros países da América
intervenção urbana ou de marketing dos problemas de trânsito e da infra- Latina. Bastaria o fato de estender a
político, nem no que se refere à sua estrutura, da desvalorização imobiliária, atuação do Rio Cidade aos bairros da
avaliação pela população impactada e do declínio das atividades econômicas, zona norte e subúrbios, esquecidos
ao estado atual das áreas contempladas do convívio social e do aumento da em outras administrações (1) e a
pelo programa, linhas de pesquisa violência tornavam-se insuportáveis? opção do Programa Favela Bairro pela
já percorridas, mas que continuam Essa sempre será a grande dificuldade

82 Revista da FAU UFRJ_número 2


Legenda: Méier, Mérier Méier, Mérier Méier,
Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier Méier,
Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier Méier,
Mérier Méier, Mérier

Subúrbios Cariocas 83
Legenda:Méier, Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier
Méier, Mérier Méier, Mérier Méier, Mérier

urbanização das favelas, afastando de a pensar e atuar no desenvolvimento da Pelo menos quanto ao programa Rio
vez o fantasma das remoções, para cidade. Cidade, palavras do então secretário
considerar os dois programas como de Urbanismo Luiz Paulo Conde na
talvez a mais importante contribuição Mesmo com todos esses pontos apresentação do livro Rio Cidade o
das administrações Cesar Maia e Luiz positivos, a esses programas faltou um Urbanismo de Volta às Ruas corroboram
Paulo Conde. mínimo de articulação com um projeto para a suspeita de que o programa
de cidade, em que pese os esforços privilegiava intervenções localizadas sem
Podemos dizer ainda que os programas do Plano Estratégico nesse sentido. preocupação maior em articulá-las ao
foram até mesmo revolucionários Foram respostas pragmáticas, dadas desenvolvimento urbano do restante da
em alguns pontos pois, pela primeira anteriormente ao Plano Estratégico, cidade (PCRJ/IPLANRIO, 1996, p. 13).
vez, a Prefeitura adotou a prática de a duas questões que adquiriam na
selecionar escritórios de arquitetura época grande visibilidade: a decadência O planejamento urbano interdisciplinar
privados para elaborar os projetos, o que dos centros de bairro e o crescimento dava lugar ao desenho urbano de
foi feito através de concursos públicos explosivo das favelas, transformadas em aplicação pontual, território exclusivo dos
que estimularam toda uma geração de território livre para o tráfico de drogas. arquitetos, dos paisagistas e de alguns
técnicos, fora dos quadros do município,

84 Revista da FAU UFRJ_número 2


designers. De uma maneira ou de outra Nos três projetos aqui apresentados, a lado” pelos moradores da Dias da Cruz,
se pretendia redesenhar o Rio de Janeiro matriz histórica foi sempre considerada indicava existir algum preconceito em
a partir de intervenções urbanísticas no planejamento da requalificação relação a área mais antiga do bairro
localizadas que, a seu tempo, deveriam espacial, infraestrutural e funcional onde se localizavam a maioria dos
se irradiar para o restante da Cidade. O das áreas contempladas. A idéia de edifícios públicos. Qual a origem desse
fato é que eleito como um dos temas utilizar a história como ferramenta preconceito? Era uma das perguntas
mais saborosos e controversos pela metodológica surgiu da dificuldade que nos fazíamos na época. Logo
mídia o Rio Cidade tinha também críticos de compreendermos alguns cenários percebemos que dissecar a imagem
ferozes que ora acusavam injustamente o com que nos deparávamos, já que atual do bairro não era suficiente
programa de ser puramente cenográfico, recusávamos a solução simplista de para compreender a dinâmica que
ignorando os pesados investimentos em classificá-los como “caos urbano”. Carlos transformara a “capital do subúrbio”
infra-estrutura que foram realizados, Nelson Ferreira dos Santos (1943-1989), num bairro em processo acelerado
ou caracterizando-o como um projeto em artigo publicado originalmente em de decadência revelada no êxodo das
segregador e promotor de desigualdades 1982, ensinava que “a desordem é só atividades comerciais e culturais, ilustrada
entre os bairros da cidade (OLIVEIRA, uma ordem que exige uma leitura mais pelo fechamento do Cine Imperator, na
2008). atenta” (SANTOS, 2010) e ressaltava a época um das maiores casas de show da
importância do processo histórico para cidade.
Defendendo-se dessas críticas a compreender a lógica que estava por
Prefeitura afirmava que os benefícios traz de uma estrutura urbana de difícil A partir desse impasse foi que tivemos
da requalificação dos centros de bairro, compreensão. a idéia de consultar o historiador Robert
com suas ruas bem sinalizadas, calçadas Pechman, do IPPUR-UFRJ, cuja tese
de dimensões generosas e de acesso de mestrado tratava da formação dos
universal, iluminadas, arborizadas subúrbios da Cidade do Rio de Janeiro.
e dotadas de mobiliário urbano Rio Cidade Méier O trabalho de pesquisa feito, a nosso
especialmente projetado para cada um A primeira incursão dos autores ao pedido, pelo professor Pechman sobre
dos projetos (2), além de devolver à Méier, acompanhados pelo arquiteto a formação do Méier constituiu a
sociedade o prazer de utilizar o espaço Vicente del Rio, integrante da equipe, melhor ferramenta para entendermos
urbano, com o tempo, se irradiariam para foi feita dias antes dos feriados de Natal o que acontecera com o bairro, do
o restante da cidade. de 1993. Mal conseguíamos andar pelas seu surgimento à situação atual, como
calçadas da Rua Dias da Cruz, totalmente também uma fonte de idéias para as
Na verdade isso não ocorreu e nem intervenções propostas pela equipe.
mesmo a maioria das áreas contempladas ocupadas por milhares de pessoas que
pelo programa conseguiu preservar as faziam suas compras de Natal espremidas Os resultados da pesquisa foram
melhorias recebidas, tanto pela falta de entre as lojas construídas no alinhamento importantes para reforçar a intenção da
cuidado da população e pelo vandalismo e centenas de camelôs que não só equipe de contribuir para a integração
como, principalmente, pela falta de ocupavam parte substancial do espaço dos “dois lados do Méier”, melhorando o
manutenção. reservado aos pedestres, como também acesso, alargando e cobrindo a passarela
um pedaço da faixa de rolamento, de ligação e, principalmente, propondo
Neste artigo procuramos mostrar ainda mais reduzida por centenas de para as duas áreas o mesmo tratamento
a importância das forças que carros estacionados. A via de mão urbanístico, sob pena de o projeto vir
historicamente atuaram na formação das dupla não tinha canteiro central, fato a aprofundar a divisão do bairro e a
áreas contempladas pelo Rio Cidade para que permitia aos motoristas inúmeras estagnação do entorno da Rua Arquias
que as intervenções do programa, apesar viradas e ultrapassagens pela esquerda Cordeiro.
de pontuais, pudessem se articular com que, além de provocar acidentes diários,
os bairros e com o restante da cidade. comprometiam a fluidez do tráfego. Talvez a maior intervenção do Rio
Para requalificar um centro de bairro Cidade no centro de bairro tenha sido
e mantê-lo funcionalmente como tal, O comércio formal mostrava-se bastante a implantação de um canteiro central
não basta provê-lo de infra-estrutura, decadente numa área que havia sido na Av. Dias da Cruz, medida combatida
recuperar suas calçadas e praças, dotá- considerada na década de 1950 como por muitos sob a alegação de que a
los de mobiliário urbano, arborização a Copacabana do subúrbio, ocupando construção do canteiro, diminuindo
e iluminação pública, entre outras o espaço de principal centro comercial a faixa carroçável, poderia prejudicar
tantas melhorias. Tudo isso é de grande depois do bairro praiano. No sentido ainda mais o fluxo de veículos. Em
valia, mas, sem compreender a lógica inverso, o comércio informal proliferava, contrapartida sabíamos que o canteiro
subjacente à sua formação e ao processo ocupando calçadas, praças e até mesmo atuaria como um disciplinador do
histórico que lhes deu origem, corre-se a passarela que, atravessando a linha tráfego, impedindo as ultrapassagens
o risco da requalificação pretendida, do trem, unia o lado da Dias da Cruz ao e viradas à esquerda. A decisão de
pela falta de articulação com o restante “outro lado” do Méier. implantá-lo apoiava-se em contagens de
da cidade, não passar de intervenções O entorno da Praça Jardim do Méier, veículos feitas pela equipe e na aplicação
meramente locais. principal área verde do Bairro, ao ser
chamado em tom de desprezo de “outro

Subúrbios Cariocas 85
de um modelo matemático que, por
questões de segurança, foi rodado na
UFRJ e na PUC-Rio. Com a inauguração
do Rio Cidade e a reabertura da
avenida, fechada durante as obras,
foi comprovado o acerto da medida
pela maior velocidade alcançada pelos
veículos no trecho em que o canteiro foi
implantado.

Outra importante melhoria foi obtida nas


condições de circulação e acessibilidade
dos pedestres em toda a área de
intervenção com a retirada de barreiras
físicas das calçadas, com revestimentos
apropriados dos pisos e com sinalização
especial para deficientes visuais e
construção de rampas para portadores
de necessidades visuais. A reforma da
Praça Agripino Grieco, com a criação
de um anfiteatro, brinquedos, bancos
e mesas, seguiu o mesmo princípio,
podendo ser acessada por rampas. O
projeto do mobiliário teve como principal
conceito a simplicidade, procurando,
quando possível, utilizar modelos já
utilizados pela Prefeitura.

Rio Cidade Av. Suburbana

O Projeto de Humanização da Avenida


Suburbana, atual Avenida Dom Hélder
Câmara, do Largo de Benfica ao
Largo de Pilares, teve como principal
objetivo tornar essa via, além de acontecendo com a Avenida, mas maciça, criação de pequenas praças,
segura, atraente para pedestres e mesmo assim tivemos de vasculhar sinalização e iluminação pública, a
ciclistas. Buscava estimular sua presença na história recente da cidade para equipe propôs que fosse feita a revisão
em um logradouro que sofria uma encontrar a resposta. Quando os índices da legislação de zoneamento de forma a
grande transformação funcional com o de poluição da região atingiram níveis atrair novos usos, como o comercial e de
fechamento da maioria das indústrias muito elevados, a FEEMA, além de não serviços e, principalmente, o habitacional.
localizadas ao longo do eixo e com o mais licenciar a instalação de novas
surgimento de novos usos comerciais, indústrias, passou a exigir das existentes Sem essa proposta, penso que os
de prestação de serviços e habitacionais, a modernização de suas plantas de investimentos em infra-estrutura,
entre outros. forma a diminuir suas emissões, o que equipamentos urbanos e paisagismo não
se mostrou, na época, economicamente teriam sido capazes de fazer com que o
O traçado e as dimensões da Avenida inviável, provocando seu fechamento. projeto atingisse seu principal objetivo:
Suburbana faziam dela um perfeito a humanização da Avenida. Como o
representante do estilo rodoviarista A falta de entrosamento entre os projeto nunca foi implantado, nunca
que, nas décadas de 1950 e 1960, Governos Municipal e Estadual, tão pudemos comprovar essa hipótese, no
implantaria na cidade centenas de conhecida dos cariocas, fez com que o entanto a modificação do regulamento
viadutos e avenidas com as características regulamento de zoneamento da área, de Zoneamento acabou sendo
de verdadeiras rodovias. Por sua vez os considerada preponderantemente implementada e foi responsável em
grandes terrenos murados das antigas industrial, fosse mantido, afastando grande parte pela recente transformação
indústrias, que ali permaneciam apesar durante muitos anos outros usos que funcional da Avenida, proporcionada pela
de fechadas há muitos anos, afastavam poderiam vir a dar vida nova à Avenida. implantação de edifícios corporativos e
os pedestres que preferiam circular Compreendida essa questão, além das pelo crescimento do uso comercial.
pelas quadras próximas, temerosos de propostas urbanísticas de requalificação
serem assaltados, numa cidade que já se da área que incluíram o tratamento dos
tornava violenta. passeios, a instalação de uma ciclovia no Rio Cidade Irajá
canteiro central da avenida, implantação
Não precisamos mergulhar tão fundo de mobiliário urbano e de arborização Também no caso do Rio Cidade Irajá
no passado para descobrir o que estava

86 Revista da FAU UFRJ_número 2


ocorridas no bairro, constatada em
pesquisas de campo e em dezenas de
reuniões com os moradores, fez com que
nossa equipe propusesse como objetivo
principal do Rio Cidade Irajá resgatar a
função residencial do bairro.

Cabe aqui registrar que, no caso


específico do Rio Cidade Irajá, a equipe,
baseando-se na experiência adquirida
no Méier e na Avenida Suburbana,
considerou tão importante como a
pesquisa histórica, o amplo contacto com
a população, que se manifestou durante
todo o tempo da realização do projeto. A
aplicação de cerca de 400 questionários
entre a população residente na área de
projeto, além de 100 questionários que
cobriram grande parte dos comerciantes
locais, nos deram grande segurança
para interagir com a população em
mais de cinqüenta reuniões da equipe
com associações de moradores,
representantes de condomínios, grupos
religiosos e moradores de comunidades,
entre outros.

A participação da população nesses


encontros nos ajudou a definir o
projeto da Praça Nossa Senhora da
Apresentação, a principal área verde do
bairro, dotando-a de campo de futebol,
playground, aparelhos de ginástica,
pistas de skate, mesas de jogos,
chafarizes, um monumento escultórico
foi através do estudo da origem e da expulsa no início do século passado
e espaços especiais como o dedicado ao
evolução urbana do bairro que os devido à desapropriação de extensas
culto da imagem de Nossa Senhora e de
autores encontraram explicações para a áreas necessárias para a implantação da
um jardim especialmente projetado para
desestruturação que ocorria no entorno Avenida Central, encontrou em Irajá a
atender ao grande número de deficientes
da Praça Nossa Senhora da Apresentação solução para seu problema habitacional,
visuais que moravam nas proximidades
e na Avenida Monsenhor Felix, principal graças à oferta de terrenos vendidos a
da praça. De outra feita, reivindicações
eixo viário do bairro (3). preços populares.
expressas numa reunião nos fez refazer
Essa desestruturação foi decorrente do A decadência da função habitacional o projeto de ocupação da Praça Mato
êxodo do comércio de bairro, expulso por do bairro, que pode ser atribuída Grosso, substituindo-o por outro que
dezenas de revendas de carros usados pelo menos em parte ao fechamento melhor refletia o interesse da direção
atraídas pela possibilidade de expor, da Estrada de Ferro Rio D`Ouro, foi da escola ali localizada e o desejo dos
irregularmente, seus produtos nas largas preponderante durante pelo menos moradores que residiam em torno da
calçadas da Avenida. Ocupadas dessa a metade do século passado e, na praça.
forma, as calçadas pouco a pouco se época do projeto, tornava-se visível na
O tratamento previsto para as calçadas
tornavam intransitáveis para os pedestres obsolescência e na má conservação
do bairro era bastante inovador.
e empobreciam a paisagem construída de muitas edificações do bairro, assim
Tínhamos previsto duas “faixas
do bairro, marcada anteriormente pela como na falta de novos lançamentos
técnicas” para a passagem das redes
diversidade do comércio local e pelos imobiliários.
de infra-estrutura, cobertas com placas
passeios generosos.
A Estação Irajá do Metrô, atualmente removíveis pré-moldadas em concreto.
Mergulhando na história do bairro, em funcionamento, já estava para ser Na faixa localizada junto às edificações,
descobrimos que a Freguesia de Irajá, inaugurada na época do projeto. A com 1,80m de largura, passariam as
essencialmente agrícola até o século nova estação fazia parte da Linha 2 redes da Light, da TELERJ, da CEG e
dezenove, passou a ter um forte apelo que, coincidentemente, estava sendo da NET. A faixa localizada junto ao
habitacional pela existência da Ferrovia implantada no antigo leito da Estrada meio fio, com 60 cm de largura, era
Rio D´Ouro, que ligava o bairro ao de Ferro Rio D`Ouro. A insatisfação reservada às tubulações da RIOLUZ e
centro da cidade. Parte da população da população com as transformações CET-RIO. A implantação destas faixas

Subúrbios Cariocas 87
técnicas permitiria que a manutenção e que seria totalmente adaptada e
das redes de infra-estrutura fosse feita restaurada para abrigar as novas
retirando-se as placas, evitando desta atividades. O Shopping deveria abrigar Conclusão
forma a destruição do calçamento a cada principalmente atividades ligadas a A experiência adquirida nos dois
concerto. cultura, recreação e lazer em geral, tais primeiros projetos Rio Cidade foi
como cinemas, boliche, restaurantes, importante para a equipe pudesse
É certo que assim como essa, muitas lanchonetes, livrarias, lojas de discos,
outras propostas não chegaram a ser incorporar as modificações de escopo
videotecas, academias de ginástica, apresentadas nos “Manuais de Projeto”
implantadas, entre elas o monumento e cursos de línguas e de informática, etc.
o mobiliário criado por Alan Slawinsk e o elaborados pelo Instituto Pereira
Essas atividades, então inexistentes Passos para o Rio Cidade II e aplicá-
jardim para deficientes visuais, projetado no bairro, teriam um impacto positivo
pela arquiteta paisagista Vera Tângari, las ao Projeto Rio Cidade Irajá. Entre
na qualidade de vida da população elas destacavam-se a identificação e
mas mesmo assim, a implantação parcial revertendo a situação identificada na
do projeto Rio Cidade Irajá contribuiu delimitação de uma área de influência
pesquisa de opinião em que 66,8% da do projeto, a ser estudada quanto à
para melhorar a qualidade de vida no população buscava atividades de lazer
bairro. função urbana atual e potencial. Estudos
fora de Irajá. A ocupação do terreno da atratividade da área, da população
Acreditamos que esse resultado onde seria implantado o shopping usuária e residente, da dinâmica das
positivo se deveu à prática de reuniões viabilizaria, além da abertura de um atividades econômicas, da comparação
semanais em que compareciam técnicos segundo acesso ao Cemitério de Irajá, a com outros subcentros próximos,
da equipe de projeto e de todos os criação de um grande estacionamento entre outros tópicos, foram incluídos
órgãos das administrações municipal e no trecho contíguo à necrópole, medidas no novo escopo. Outra ampliação de
estadual intervenientes na implantação fundamentais para minimizar o impacto escopo de grande importância foi o
do Rio Cidade e ainda à permanente provocado pela quantidade de veículos estudo da ocupação efetiva do solo, da
participação da população, evitando que demandam o bairro durante o volumetria e estado de conservação das
propostas inadequadas e conferindo ao feriado de Finados. edificações e da legislação urbanística em
projeto sustentação política. O segundo pólo, localizado no outro vigor na área de intervenção e em seu
extremo da Av. Monsenhor Félix, em seu entorno imediato com vistas à eventual
Infelizmente as sugestões feitas pela adequação da legislação atual às
equipe em relação ao uso do solo na entroncamento com a Av. Automóvel
Clube, abrangeria as áreas próximas à intervenções decorrentes da implantação
área de projeto, fundamentais para sua do Rio Cidade.
revitalização, não foram adotadas pela Estação do METRÔ, à quadra ocupada
Prefeitura. Com elas pretendíamos criar pela Região Administrativa e demais Experiências como o Rio Cidade, mais
dois pólos funcionais com características órgãos governamentais e às quadras do que apontar caminhos, nos tem
específicas. O primeiro pólo abrangeria delimitadas pelas ruas Pereira de Araújo, levado a formular questões para as
as áreas de entorno da Praça Nossa Cisplatina e Marquês de Aracatí. quais, infelizmente, não há respostas
Senhora da Apresentação e do futuro Prevíamos que as funções terciárias e imediatas e sim reflexões que devem
mini-terminal, também proposto pela institucionais, já dominantes nessa área, direcionar decisões de ação diante dos
equipe. Atualmente esta área é marcada deveriam se intensificar com a entrada problemas urbanos verificados: conflitos
funcionalmente pela presença do Posto em funcionamento do METRÔ e para de trânsito e carência da infra-estrutura,
de Assistência Médica de Irajá, do atender a esse crescimento deveria ser desvalorização imobiliária, declínio das
mercado da Cobal e pela proximidade do estimulada, através do aumento dos atividades econômicas, empobrecimento
Cemitério de Irajá. índices de aproveitamento dos terrenos, do convívio social, aumento da violência,
a construção de prédios comerciais, ausência do poder público.
Esse pólo concentraria atividades
culturais, de lazer e de prestação de evitando-se, em contrapartida, que Estamos vivenciando um momento de
serviços públicos à população e seria ao longo da Av. Monsenhor Félix encruzilhada entre preparar a cidade para
gerado através da ampliação do Posto viessem a se localizar novos postos de os grandes eventos, que se anunciam
de Assistência Médica, da criação de abastecimento de combustível, revendas para o Rio de Janeiro nos próximos dez
um Centro Cultural dotado de cine- de automóveis e comércio de autopeças, anos, ou resgatar a lógica que direcionou
teatro que ocuparia o vazio deixado pelo responsáveis pela diminuição do seu desenvolvimento e o da Região
fechamento do único cinema do bairro, comércio de bairro. Metropolitana. Se nossa escolha recair no
o Cine Irajá, da reurbanização da Praça Para estimular o retorno e a diversificação segundo caso, devemos primeiramente
Nossa Senhora da Apresentação e da do comércio de bairro ao longo da entender essa Região, para depois poder
construção de um “Shopping Cultural” Avenida e estimular o uso das calçadas reinventá-la, fazendo com que a cidade
em um grande terreno contíguo ao pela população propomos restrições às assuma sua dimensão metropolitana,
cemitério. revendas de carros usados, proibindo a através de um processo contínuo de
exposição de veículos nas calçadas, que planejamento, envolvendo os três níveis
O Centro Cultural seria implantado de governo e a sociedade e aprendendo
no prédio ocupado pelo mercado da passaria a ser feita apenas no interior das
lojas ou em algumas áreas sob o viaduto a lidar com inclusão, sustentabilidade e
COBAL, antiga edificação em péssimas participação. •
condições de conservação, cada vez da Linha Amarela.
menos procurada pela população

88 Revista da FAU UFRJ_número 2


Notas Referências Bibliográficas
1. A primeira etapa do projeto - Rio ABREU, Maurício de Almeida. “A Evolução
Cidade I - abrangeu 15 bairros: Ilha do urbana do Rio de Janeiro”. Rio de Janeiro:
Governador, Copacabana, Catete, Vila IPLANRIO/ZAHAR, 1988.
Isabel, Penha, Campo Grande, Ipanema,
Botagogo (Voluntários), Tijuca, Centro, ANDREATA, Verena. “Cidades Quadradas
Méier, Leblon, Bonsucesso, Madureira Paraísos Circulares, Os Planos Urbanísticos
e Pavuna (e áreas remanescentes), já do Rio de Janeiro no Século XIX”. Rio de
as intervenções feitas no Rio Cidade II Janeiro: MAUAD Editora Ltda, 2006.
abrangeram 15 novas áreas, a saber: MAYERHOFER & TOLEDO, “Projeto Rio
Santa Cruz, Bangu, Realengo, Marechal Cidade Irajá – Diagnóstico”. Rio de Janeiro,
Hermes, Rocha Miranda, Grajaú, Largo do 1997.
Bicão, Madureira, Irajá, Praça Seca, Ramos,
Campo Grande, Haddock Lobo e Santa MAYERHOFER & TOLEDO. “Projeto Rio
Teresa. Cidade Irajá – Plano Estratégico”. Rio de
Janeiro, 1997.
2. Essa medida foi descartada no Rio
Cidade II devido a dificuldades de OLIVEIRA, Márcio Piñon. Projeto
manutenção e, principalmente, de Rio Cidade: intervenção urbanística,
reposição de elementos das diversas planejamento urbano e restrição à
famílias de mobiliário urbano. cidadania na Cidade do Rio de Janeiro. In
“Diez Años de Cambios en el Mmundo,
3. Foram fundamentais para entender en la Geografía y en las Ciencias Sociales.
a evolução urbana de Irajá a Tese de X Colóquio Internacional de Geocrítica”.
doutorado em História Social “De Barcelona: Universidade de Barcelona,
Freguesias Rurais a Subúrbio: Inhaúma 2008.
e Irajá no Município do Rio de Janeiro”
de Justino Moura Santos, apresentada PCRJ-IPLANRIO. “Rio Cidade: o urbanismo
na USP em 1997, assim como a coleção de volta às ruas”. Rio de Janeiro: Mauad,
de publicações do historiador Agostinho 1996.
Rodrigues, tradicional morador do bairro. RESENDE, Vera. “Planejamento Urbano
e Ideologia”. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 1982

SANTOS, Justino Moura. “De Freguesias


Rurais a Subúrbio: Inhaúma e Irajá no
Município do Rio de Janeiro”. Tese de
doutorado em História Social. São Paulo:
USP, 1997.

SANTOS, Carlos Nelson Ferreira dos. A


desordem é só uma ordem que exige
uma leitura mais atenta. In: “Municípios -
Revista de Administração Municipal”. Rio
de Janeiro: IBAM, 2010.

SILVA, Maria Laís Pereira da. Carlos Nelson


foi dos primeiros a reconhecer que os
favelados têm suas prioridades simbólicas.
In: FREIRE, Américo e OLIVEIRA, Lucia
Lippi. “Capítulos da Memória do
Urbanismo Carioca”. Rio de Janeiro: Folha
Seca, 2002.

Subúrbios Cariocas 89
ação

DE BANGU A AUBERVILLIERS: POLÍTICA CULTURAL


E GESTÃO URBANA CONTEMPORÂNEAS
Márcia Ferrán

Em contraste com a intensa circulação


contemporânea de modelos que testemunham etapas diferentes em e tem início com a criação do projeto
internacionais de grandes eventos e cada contexto nacional. institucional “Lonas Culturais” visando a
de políticas culturais espetaculares, formação de uma rede. É nesse instante
Os exemplos foram escolhidos
um aspecto ainda pouco analisado diz que as lonas, até então só conhecidas
inicialmente pela junção de dois fatores
respeito à importância de iniciativas e pelos moradores dos subúrbios cariocas,
em comum:
de processos culturais locais incidindo despertam a atenção política e começam
sobre subúrbios empobrecidos, ou áreas 1) de ordem socioespacial: ambos a integrar oficialmente a rede municipal
periurbanas muitas vezes consideradas se localizam em subúrbios carentes de teatros. Além disso, passam a ser
“espaços-problema”, associando estigmatizados, reapropriam espaços chamadas de “lonas culturais”. Novas
argumentos socioculturais a objetivos de e constituem tipos alternativos de unidades, inspiradas no modelo circense
revitalização urbana. Gozando de pouca equipamentos culturais polivalentes. proveniente da Eco-92, começam a ser
visibilidade, esses tipos de experiência planejadas a fim de dar continuidade
vêm se multiplicando desde os anos 2) de ordem do conteúdo propositivo, ao circuito já existente e, ao mesmo
1980 na França, país tradicionalmente tem relação direta com o primeiro fator: tempo, oferecer nova tecnologia de
exportador de modelos e formatos em ambos os casos os agentes sociais construção e de infra-estrutura de apoio,
nessa área, e desde os anos 1990 no invocam a inserção socioespacial como com camarins, salas de administração,
Brasil, conhecido pela “importação” elemento norteador de suas ações banheiros e bar. Esse período testemunha
de modelos vindos do outro lado do culturais e artísticas, sublinhando um o início de projetos de reforma das
Atlântico. canal permanente de diálogo com primeiras lonas e de reurbanização das
moradores e vizinhança. praças em que se localizam, como em
Sem discorrer aqui sobre uma análise
histórica pormenorizada, partimos do Assim, meu interesse em investigar na Bangu (articulada nesse caso também
princípio de que o subúrbio empobrecido França foi focado especialmente em com a construção de um viaduto) e em
é o espaço modelo de diversas diásporas exemplos de iniciativa da sociedade Realengo. Foram inauguradas as lonas de
modernas e contemporâneas, a civil que, em um processo espontâneo, Vista Alegre e de Anchieta.
junção da diversidade e dos desafios emergem independentemente da política O ano 2000 marcou o início da terceira
da alteridade, o lugar que simboliza a cultural institucional, mas podem, e mais recente fase com uma grande
busca humana eterna e desesperada por com o tempo, ser incorporados como divulgação na imprensa e multiplicação
melhores condições de vida. Ele é, por linha de ação. Outro foco da minha de público, o que contribuiu para que as
tudo isso, um fermento de inovações que abordagem tem a ver com o fato de organizações conseguissem também o
resulta da diversidade cultural presente; essas ações provocarem necessariamente aumento da verba repassada. Por meio
um espaço-chave tanto para o urbanista investimentos e melhorias urbanísticas de da Câmara de Vereadores, que criou
quanto para o antropólogo. desenvolvimento sociourbano. uma emenda orçamentária, triplicou-
Neste panorama, enfocarei brevemente se o valor anual: de 60 mil reais por
a experiência das Lonas Culturais nos lona – o que representava 5 mil reais
Co-gestão nas Lonas Culturais: entre mensais – em 1999, passou a 180 mil
subúrbios do Rio de Janeiro para,
movimento cultural e instrumento reais desde janeiro de 2000. O aumento
em seguida, apresentar os casos
político crescente do número de espetáculos e
da friche culturelle Villa Mais d’Ici
e dos laboratoires d’Aubervilliers, de espectadores foi determinante para a
“Lonas Culturais: a Cultura como
em Aubervilliers, subúrbio de Paris, ampliação do orçamento público anual
Instrumento de Transformação Social”
ilustrando modos particulares por destinado a cada lona e se expressa nas
é o nome de um projeto da Secretaria
meio dos quais agentes sociais vêm estimativas oficiais (2), que indicam um
Municipal de Cultura do Rio de Janeiro
contribuindo para certa inclusão dos público de 125 mil pessoas nas cinco
por meio do qual são construídos
subúrbios no mapa de processos lonas, entre janeiro e julho de 2000,
equipamentos culturais com capacidade
artístico-culturais, inaugurando novos representando 50% do total de público
para um público de 400 pessoas, em
modos de gestão ao mesmo tempo em de toda a rede municipal de teatros.
estrutura metálica, com lonas resinadas,

90 Revista da FAU UFRJ_número 2


tensionadas e infra-estrutura de apoio • implementar uma rede regionalizada da coisa pública (equipamento urbano de
cuja coordenação de atividades se faz de espaços culturais de baixo custo e cultura).
em parceria com ONGs culturais dos de fácil execução em diversos bairros
bairros em que se localizam. A prioridade da cidade, reutilizando as lonas
é garantida aos subúrbios cariocas, além remanescentes da Rio-92 (1);
da Zona Oeste, havendo previsões de Podemos distinguir três grandes períodos
• atender a demanda por no processo de construção das lonas
extensão a outros bairros carentes de
equipamentos urbanos de cultura nos culturais.
qualquer equipamento cultural. As lonas
bairros mais distantes da Zona Sul e da
existentes, por ordem de criação, são as O primeiro período, de 1993 a 1995,
área central da cidade, horizontalizando
de Campo Grande, Bangu, Realengo, inclui a fase inicial – que teve início em
e democratizando o acesso ao produto
Vista Alegre, Anchieta, Guadalupe, Campo Grande – quando houve apenas
cultural. O morador da Zona Oeste, por
Maré, Santa Cruz e Ilha do Governador. a liberação e a implementação das lonas
exemplo, gastava aproximadamente
Embora pareçam circos, as lonas são vindas da Eco-92 para Campo Grande,
uma hora se deslocando para o Centro
permanentes. Bangu e Realengo, e o começo do
ou Zona Sul para consumir o produto
O projeto foi anunciado inicialmente em cultural da cidade; hoje, as lonas culturais repasse de verba mensal pela Secretaria
1994 como experiência inovadora de de Bangu e de Campo Grande suprem Municipal de Cultura a partir de meados
democratização da cultura e de práticas essa demanda; de 1994. Nesse período, também
participativas para decisões sobre o houve aumento no pedido de lonas,
• incentivar a produção dos artistas
espaço periférico da cidade do Rio de concomitantemente ao funcionamento
locais. A partir das lonas culturais, vários
Janeiro, porém, desde 2001, manobras e à apropriação dos espaços pelas
artistas têm despontado para o mercado
políticas e rumos impostos à dinâmica comunidades, à reivindicação de mais
cultural formal da cidade;
desses equipamentos indicam que essas infra-estrutura de apoio e de serviços de
• viabilizar a formação de platéia urbanização. Esse momento é marcado
qualidades precisam ser compreendidas
por meio da rede pública municipal de pela pressão mais organizada e pela
antes de tudo como potenciais de
ensino; “sensibilização” do RioArte, pleiteando
resistência mais do que garantidos a
priori. • oferecer uma política cultural um apoio financeiro permanente e um
permanente a outras regiões da cidade, projeto oficial, que só seriam alcançados
Vejamos, então, seus objetivos nas buscando que o desdobramento dessas à medida que o público do conjunto
palavras do documento elaborado pelo ações resultem em ganho social; das lonas alcançasse 65 mil pessoas,
Instituto Municipal de Arte e Cultura • resgatar a participação efetiva das ultrapassando o público da rede
– RioArte – em 1999 a respeito do comunidades atribuindo-lhe o necessário municipal de teatros localizados em áreas
projeto “Lonas Culturais: a cultura como grau de responsabilidade por meio da valorizadas da cidade.
instrumento de transformação social”: co-gestão na produção e na apropriação O segundo período vai de 1996 a 1999

Subúrbios Cariocas 91
Nesse período, foram inauguradas as No fim de 1996, com o processo político tendência acarreta a construção de
lonas de Guadalupe (2000), de Santa de mudança de gestão na prefeitura, um uma imagem generalizada do projeto,
Cruz (2004), da Maré (2005) e da Ilha do clima de insegurança teria se instalado reduzindo as lonas à concepção de “casa
Governador (2007). no movimento quanto a continuidade de shows”. Tal valorização da cultura
do projeto Lonas Culturais. No entanto, como espetáculo dificulta a legitimação
Uma inovação dessa fase é a busca com a permanência de Ricardo Macieira do potencial do projeto enquanto
de parcerias com a iniciativa privada no RioArte, o projeto ganhou maior instrumento de transformação social.
por parte dos dois agentes principais: vulto e o MIC também foi mantido na
as ONGs e a Secretaria Municipal de coordenação da lona de Vista Alegre. Tive a oportunidade de presenciar uma
Cultura. Um momento decisivo na palestra do atual secretário municipal
“visibilidade” do projeto se deu em A história desses três grupos evidencia de Cultura, ex-presidente do RioArte,
abril de 1999, quando uma matéria na que as lonas eram um novo tipo de em que manifestamente se opera o que
primeira página do Caderno B do Jornal equipamento cultural, que surgiu poderíamos chamar de “desapropriação
do Brasil anunciava, “Sucesso sai da lona: como se fosse “sob encomenda” para da memória” da participação social na
sempre lotadas, as Lonas Culturais se necessidades específicas de grupos história das lonas. O que é agora exposto
firmam como palco alternativo de lazer e locais organizados. Apesar de terem com “roupagem oficial” e com caráter
de cursos nas zonas Norte e Oeste”(3). aspecto circense, não são efêmeras de “modelo” a ser reproduzido por
Além disso, a lona da Maré foi financiada nem itinerantes, como já dito. Após produtores culturais é:
pelo BNDES. a implementação das lonas, o que as
legitimou e identificou em um cenário “Em 1993, a Prefeitura do Rio/Secretaria
marcado, entre outras carências, pela das Culturas iniciou um projeto audacioso
quase ausência de equipamentos para democratizar o acesso à cultura e à
Semeando um processo: mobilização arte: começou a instalar equipamentos
e união anteriores ao sucesso culturais, foi sua proposta de congregar
atividades diversas a partir das urbanos de cultura nas zonas Norte e
O sucesso não foi repentino. Traz necessidades locais da presença de Oeste, até então carentes de iniciativas
consigo uma história de reivindicação, artistas consagrados e de abertura para no setor, e os entregou à autogestão dos
um trajeto no qual a participação da bandas iniciantes.(4) moradores locais. Hoje, 13 anos mais
comunidade, unida aos agentes culturais tarde, com um público total de 490.839
locais organizados (posteriormente pessoas em 2004, as oito lonas culturais
transformados em ONGs), foi decisiva ingressaram definitivamente no circuito
A expropriação do projeto: cultural da cidade e comprovaram seu
para a conquista desse espaço. Tão instrumentalização incontornável?
importante quanto o projeto “Lonas papel no processo de transformação e
Culturais”, expressão de uma decisão Curiosamente, perversamente, o inclusão social. Em reconhecimento ao
política do governo municipal, foi o sucesso tem sido responsável, por meio êxito da atuação transformadora sobre
“projeto social” que legitimou sua da visibilidade que proporciona, pela a população, o projeto foi premiado
existência, qual seja, o de grupos substituição de critérios democráticos pela União Européia, recebeu a chancela
de artistas que desde 1989 vinham por critérios clientelistas no momento da Unesco e conquistou o Prêmio
organizando ações em prol da de escolha de novas localidades a Mercocidades.” (5)
construção de equipamentos culturais receberem as lonas. Revela-se uma
em áreas periféricas da cidade, bem tendência que apaga as raízes do
como mobilizando comunidades locais e projeto, tornando-o cada vez mais um
a mídia. instrumento de promoção política e
não de transformação social, como
Cabe ressaltar o papel fundamental se pretendia. Nesse processo, estão
de três grupos atuantes em diferentes presentes fragilidades e condutas de
momentos da conquista das lonas: todos os atores envolvidos. Não vou
União de Grupos e Artistas de Teatro entrar aqui nesta seara...
da Zona Oeste (Ugatzo); Movimento de
Integração Cultural (MIC) e Tô na Lona No que tange às programações artísticas
de Anchieta. A primeira lona foi instalada propostas de forma independente em
em janeiro de 1993, em Campo Grande, cada lona, alguns grupos apresentam
em virtude da preexistência do grupo uma tendência a privilegiar a realização
Ugatzo, que já organizava espetáculos de shows de artistas consagrados (um
em um teatro de arena sobre a qual ingrediente estratégico para inserir
foi montada a lona da “nave-mãe” da subúrbios carentes, desconectados do
Eco-92, no contexto do início da gestão eixo valorizado no roteiro de cultura
de César Maia como prefeito. Não e lazer da cidade) em detrimento
havia naquele momento nenhum apoio das programações cotidianas, como
permanente financeiro da Secretaria cursos, palestras e debates. Embora
Municipal de Cultura. não presente em todos os grupos, essa

92 Revista da FAU UFRJ_número 2


Contexto francês: o movimento dos (planejamento urbano), elas atuam sob de habitation à loyer modéré (HLM,
“espaços intermediários” a autoridade dos prefeitos das regiões conjuntos habitacionais) com graves
(conjunto de cidades com representação tensões sociais.
O Ministério da Cultura na França é civil) e são o canal legal para subvenções
fundado em 1959 com o objetivo de do Estado nas diversas áreas culturais. Esse período marca, portanto, a entrada
atribuir essencialmente um caráter Seu trabalho organiza-se em torno de da dimensão espacial por meio da
democrático às ações culturais públicas. quatro eixos principais: valorização das noção de “território” nos programas do
Anteriormente, a França já era conhecida componentes do patrimônio nacional, Ministério da Cultura (7), assim como
por sua política das artes tentando difusão da criação, abertura dos da dimensão cultural nos programas
manter um protagonismo que fizesse estabelecimentos culturais a um público do Ministério dos Equipamentos, da
de Paris a capital cultural mundial. amplo e apoio aos artistas. Na prática, Moradia, dos Transportes e do Turismo,
Destacaremos aqui alguns períodos- representam o principal interlocutor dos responsável por arquitetura e urbanismo.
chave para introduzir nosso tema mais artistas para solicitação de subvenções
específico. Em 1988, há o surgimento de uma
de projetos e indutores da malha de nova instância de gestão urbana com
Na década de 1960, tem início a equipamentos culturais. a criação da Delegação Interministerial
chamada descentralização cultural, A década de 1980 é marcada pela busca para a Cidade, ainda priorizando
com a criação das casas de cultura, de do desenvolvimento social, cultural e áreas de enclave e assumindo a
André Malraux, principal equipamento urbano integrados, início da gestão pluridisciplinaridade necessária para
que deveria consolidar a idéia de de Jack Lang no Ministério da Cultura, as proposições. A partir de então, os
democratizar o acesso à cultura com ênfase à articulação da economia da programas e projetos urbanos serão
a construção dessas casas em cidades cultura, turismo cultural, educação cada vez mais articulados e financiados
médias e pequenas, visando a um artística e taxação sobre produtos por vários ministérios simultaneamente.
público de várias idades. Além disso, há culturais importados, “ministério O mesmo processo é válido para os
a construção de teatros subvencionados dos artistas”. Em 1981, são criadas assuntos culturais. O período é marcado
pelo Ministério em cidades de subúrbio, as lois de décentralisation (leis de pela multiplicação de iniciativas no nível
“invenção da política cultural” (6) por descentralização), consubstanciando uma municipal, que, aliando prerrogativas
Malraux, que almejava uma ação do preocupação anterior que via na extrema socioculturais a argumentos de
Ministério da Cultura definida por concentração administrativa francesa redinamização urbana, optarão entre
oposição às belas artes e à educação um problema para a gestão pública duas principais ênfases: 1) construção
nacional e popular. dos crescentes conflitos socioculturais. de grandes equipamentos culturais
É lançada também, no nível federal, a que necessariamente privilegiem uma
A década de 1970 caracteriza-se pela potencial atração do turismo cultural; 2)
expansão da malha institucional, pois, Politique de la Ville (Política da Cidade),
política pública que engloba diferentes uma intensificação das programações
em 1977, dá-se a criação das 28 Direções visando a maior diversidade possível,
Regionais de Assuntos Culturais (DRAC). instrumentos, a partir dos anos 1980,
voltados ao desenclave de bairros tendo como principal alvo o conjunto de
Com um papel até hoje estratégico moradores (leia-se: eleitores).
no aménagement du territoire mais pobres, inicialmente em torno

Subúrbios Cariocas 93
Nas cidades médias são feitos os Cultura e da Comunicação da França consolida-se como argumento uma
seguintes investimentos: construção lançou uma pesquisa que tinha como impossibilidade de inventar novas
ou renovação de bibliotecas, centros tarefa mapear e estudar espaços culturais aventuras nos lugares e práticas
culturais, centros multimídia, escolas alternativos que “escapavam”, em uma instituídas. Enquanto conteúdo, a
de música. Nas cidades-subúrbios, primeira instância, ao planejamento característica marcante é a valorização
ou consideradas “problemas”, são do próprio Ministério; eles ficariam da noção de “processos” em projetos
financiados por meio dos “contratos conhecidos posteriormente como que reivindicam natureza artística e
de cidade”, dentro do quadro das espaços intermediários. Uma parte profissional singulares e que entram em
políticas das cidades, a construção considerável desses espaços é abrigada contato com a realidade social local.
de equipamentos de proximidade, a em friches industrielles, que mereceram
organização de programas socioculturais, em seguida um programa especial Sob a chave mais abrangente de espaços
a contratação de agentes de animação do Ministério em um panorama de intermediários, duas dimensões principais
de vizinhança, entre os quais artistas reconversão de antigas áreas industriais se articulam em torno do fenômeno
servindo também de mediadores sociais obsoletas para usos culturais, onde friches industrielles: uma relativa ao
frente a grupos culturais diversos, se empregará também a noção projeto cultural e outra, ao projeto
migrantes e estrangeiros, e finalmente a de patrimônio industrial. Resultou urbano. (8)
articulação de projetos transversais com num relatório intitulado Friches,
Veremos em seguida como essas duas
vários ministérios. laboratoires, fabriques, squats, projets
dimensões se articulam e se anunciam
pluridisciplinaires: une nouvelle époque
Se a delegação de dotações por meio de 2 exemplos situados na
de l’action culturelle, que repertoriava
orçamentárias, no contexto de periferia de Paris, na cidade-subúrbio de
31 experiências em toda a França, assim
descentralização, possibilitou uma Aubervilliers, com 63.132 habitantes, 5,7
como apontava direções para um apoio
nítida multiplicação de equipamentos quilômetros quadrados, percentagem de
mais sistemático por parte da política
e de programações culturais lançadas população estrangeira de 30% e taxa de
pública de cultura. Conhecido como
por personalidades políticas locais, desemprego de 35%.
rapport Lextrait, o estudo incentivou a
cristalizou-se uma dicotomia entre
criação de uma célula especial no âmbito
equipamentos culturais com vocação
da Delegação para o Desenvolvimento
urbana no centro e equipamentos Aubervilliers, a mítica cidade
Territorial e a Ação Regional de
socioculturais nos bairros (aqui vermelha
acompanhamento desses espaços.
compreendidos bairros-problema).
Como motivação do meio artístico, Herdeira de idéias comunistas e
Em outubro de 2000, o Ministério da abrigando uma população com diversas

94 Revista da FAU UFRJ_número 2


Depois da guerra de 1914-1918, Dentre as iniciativas do poder
espanhóis que haviam imigrado sozinhos municipal, destacamos dois
voltaram com suas mulheres e filhos e exemplos.
portugueses chegaram também. Apesar
dessa chegada massiva, havia ainda uma O primeiro é o lançamento do famoso
falta de mão-de-obra que, por volta de Etats Géneraux de la Culture, em 1987,
1925-1930, iria atrair uma nova onda de a partir de uma associação criada pelo
imigração masculina, dessa vez da África prefeito-senador Jack Ralite a fim de
do Norte. manter um fórum constante de discussão
entre artistas, intelectuais e agentes do
Os anos 1960 marcam o início mundo cultural, organizando grandes
da desindustrialização, com encontros anuais em diferentes cidades
conseqüências sobre o conjunto da da França, com direção sediada em
atividade econômica. Os operários de Aubervilliers. Essa iniciativa contribuiu,
Aubervilliers participaram ativamente assim como o havia feito o Théâtre de
das manifestações e greves de 1968. É la Commune, para um novo interesse
dessa década que data também o início público sobre a cidade.
da política do “reagrupamento familiar”,
que viria encorajar a vinda das famílias O segundo exemplo de escala local foi a
desses operários, sobretudo argelinos previsão e atribuição de apartamentos/
que, como os espanhóis, haviam ateliês destinados a artistas em um dos
chegado sozinhos para trabalhar. novos conjuntos habitacionais da cidade.

Como em muitas outras periferias


industriais, a presença da indústria se fez
As ações culturais produzidas pelo
acompanhar de moradias precárias. No
meio associativo – associações
pós-segunda guerra mundial iniciou-se a
culturais, étnicas e artísticas
construção massiva de moradias sociais,
torres e prédios horizontais de tipologias Na França uma margem-de-manobra
arquitetônicas diversas. não desprezível emanando do cidadão
se configura através do meio associativo,
É com esse “pano de fundo” e contra
origens culturais, a cidade conta com bastante desenvolvido e pautado por
essa imagem estigmatizada, que se
projetos culturais e artísticos que ocupam uma Lei específica criada em 1901.
estabelecerá a ação de um político –
espaços inusitados e instauram relações Esta Lei, no entanto, durante o período
Jack Ralite – que iria marcar a história
peculiares com o público, exemplificando pós-guerra havia proibido o direito de
administrativa de Aubervilliers na
as desafiantes convergências culturais associação aos estrangeiros, sanção
segunda metade do século XX.
ocorrendo na periferia das capitais que só foi derrubada em 1981. A partir
mundiais contemporâneas. Nós podemos melhor visualizar a de então, nos subúrbios empobrecidos
evolução das iniciativas culturais em é o meio associativo que iria catalizar
Aubervilliers é uma típica cidade Aubervilliers, escolhendo três momentos- iniciativas que contemplam a diversidade
de subúrbio francesa, que deve seu chave: cultural, agindo como um complemento
desenvolvimento ao crescimento da política cultural municipal e
industrial do século passado, e como 1965: a abertura do Teatro da Comuna; recorrendo a diferentes possibilidades
tantas outras na França, não conseguiu de financiamentos interministeriais e
superar os efeitos da desindustrialização 1981: o projeto da Cidade das Artes;
em várias escalas de governo abertas
sofrida durante a primeira metade do 2003: a abertura da friche “Laboratoires pela Politique de la Ville, não isenta
século XX. d’Aubervilliers” e a abertura da “friche de intenções de integração à cultura
cultural de proximidade Villa Mais d’Ici”. francesa.
A migração e imigração, que terão
um peso importante na definição do Algumas propostas culturais com No caso de Aubervilliers, quase 50%
contexto social de Aubervilliers hoje, objetivos de redinamização de das iniciativas culturais partem de
começaram no final do século XVIII. bairros ganharam impulso e às vezes associações ligadas às comunidades
se beneficiaram de algum tipo de culturais estrangeiras presentes na cidade
Com 50 usinas em 1901,
financiamento no âmbito dos “contratos e são elas, além das associações com
concomitantemente ao começo de
de cidade” ou diretamente pela caráter mais artístico, que introduzem
industrialização surgiram, em meio
prefeitura. Essa fase contou, sobretudo, a problemática da hospitalidade a
operário, importantes movimentos
com iniciativas do poder municipal, mas alteridade.
sindicais reivindicativos, que fariam
dessa cidade um lugar reconhecido na em paralelo começam a ganhar terreno
Em seguida, passarei a dois exemplos
trajetória do militantismo comunista. propostas de associações culturais
de associações que vão ocupar
Entre os operários já se encontravam presentes em Aubervilliers.
edifícios vazios remanescentes da fase
italianos, espanhóis, judeus da Europa produtiva da cidade, tais como galpões,
central, poloneses e argelinos. hangares, estações ferroviarias, fábricas,

Subúrbios Cariocas 95
reservatórios, chamados “friches”’
industriais que, por esta “destinação
de uso” viram ”friches culturais” e que
espelham um fenômeno similar em toda
a França desde 1985.

O primeiro exemplo, Villa Mais D’ici –


friche cultural de proximidade

Em 1999, por uma indicação da


prefeitura de Aubervilliers, subúrbio
próximo de Paris, a companhia de
marionetes gigantes Les Grandes
Personnes ocupa os locais disponíveis
de antigos galpões da Compagnie des
entrepôts et magasins généraux nos
limites entre Aubervilliers e Paris. Sua
ocupação dura três anos; após esse
período, busca-se um novo local e
novamente a municipalidade indica outra
friche. Esta, porém, pouco adequada às
necessidades técnicas do grupo. Assim,
esse segundo espaço, vizinho a um
conjunto habitacional já freqüentado por
artistas, é aproveitado por outro coletivo
de artistas.

Finalmente, em 2003, a companhia Les


Grandes Personnes se articula a outros
agentes culturais e juntos concebem um
projeto para ocupação de um antigo internacionais, função artística em um uma abertura constante aos moradores
depósito de madeira e carvão do fim subúrbio de memória e de perspectivas vizinhos, com programação centrada
do século XIX, desocupado desde onde comunidades vindas do mundo em teatro, dança, cursos para escolas e
1999 e pertencente a um proprietário inteiro buscam trocar e se integrar, cujos refeições coletivas regadas a literaturas
privado. Para gerir o projeto, funda-se artistas buscam se exprimir, inventar uma estrangeiras.
uma nova associação sem fins lucrativos nova arte de cidade.” (9)
Contando apenas com financiamentos
chamada Villa Mais d’Ici, que deverá ser
Atraindo grupos de áreas artísticas pontuais do ministério e da prefeitura, a
o organismo “âncora” e administrador
diversas, a gestão da friche se caracteriza equipe não conseguiu levantar recursos
do contrato de aluguel do imóvel, além
por articular a função “exposição” à para a reforma do local, que sofria
de captar outros parceiros investidores
função de moradia. Assim, a presença por falta de calefação e precisava de
e de selecionar os diversos ocupantes
constante de artistas, produtores adequação às normas de segurança.
temporários e permanentes do espaço,
culturais/inquilinos do espaço embasa
que dispõe de mais de 2 mil metros Assim, em 2001, uma nova equipe
quase sempre o argumento de inserção
quadrados, contando com um pátio assume os laboratórios, agora com uma
no bairro. A programação é diversificada.
central descoberto de 500 metros proposta essencialmente voltada para a
quadrados. Vejamos a seguir uma friche mais voltada arte contemporânea de alta qualidade,
para a excelência da criação artística visando alargar o território de visitação
Com uma gestão associativa, o projeto
contemporânea. e atrair o público de Paris. Essa equipe
prevê a adesão de múltiplas parcerias
submete, então, um dossiê à União
para se desenvolver e oferece também
Européia para levantar fundos para a
alguns espaços de moradia. O dossiê
Museu Precário do artista Thomas reforma do espaço, que durou quinze
de apresentação assume que a friche
Hirschhorn com Laboratórios de meses.
cultural de proximidade Villa Mais d’Ici,
renovação urbana em Aubervilliers, deve Aubervilliers Contando em sua diretoria com
ter : professores e críticos de arte, a equipe
As instalações de uma antiga fábrica
de rolamentos foram ocupadas a partir promove residências artísticas e estágios
“uma forte ancoragem local, um
de 1992 por uma equipe artística abertos com artistas internacionais,
engajamento importante na vida cidadã e
coordenada por um coreógrafo com o sempre defendendo a excelência artística
cultural de Aubervilliers; uma disposição
apoio do prefeito, e o espaço passou a como superior à função social da arte.
de intervir no espaço público e no espaço
social; uma abertura para a cultura e as se chamar Laboratoires d’ Aubervilliers. Sua linha principal é articular arte e
práticas sociais dos países do sul; uma Até o ano 2000, o trabalho dessa equipe espaço público convidando artistas
inserção nos meios culturais nacionais e manteve como eixo principal propor que já tenham essa prioridade em suas

96 Revista da FAU UFRJ_número 2


carreiras. Desse modo, estabelece-se O maior problema para a realização Contextos diferentes e processos
uma distinção em relação à equipe do projeto foi o seguro das obras que semelhantes?
anterior e sofre-se mais desconfiança da saíram do Centro Georges Pompidou,
prefeitura, ainda comunista. o Beaubourg, que tiveram seu seguro Tanto nos subúrbios do Rio de Janeiro
negado por várias companhias de quanto no subúrbio de Paris temos como
seguro de obras de arte, que temiam a pano de fundo o contexto antropológico
Museu Precário Albinet “precariedade” da sala de exposição, delineado pelo fato de que, ainda com
que, na verdade, era constituída por os limites de uma rede informal de
Produzido pelos laboratórios, o projeto contêineres. De fato, o artista suíço é cooperação (10), os espaços citados
artístico Museu Precário, do artista suíço conhecido por sua estética de materiais têm sido vividos enquanto fóruns de
Thomas Hirschhorn, é um exemplo simples em espaços públicos de várias encontro artistas-população. Em paralelo
surpreendente e paradigmático da cidades, inclusive na Documenta a essa rede social, uma rede espacial
união que se pode fazer entre artista de Kassel, na Alemanha. O projeto se estabelece atuando na dinâmica da
contemporâneo renomado, função social custou 340 mil euros e, para “sair do programação e na divulgação das lonas
e crítica urbana. papel”, apesar de todas as reticências como condição indispensável ou como
e resistências encontradas para as horizonte desejável na Villa Mais d’Ici.
O projeto levou obras originais de sete
autorizações necessárias, o prestígio do Essas redes são tecidas por pessoas que
artistas consagrados da história da arte
artista foi fundamental. É interessante apresentam um grande potencial de
do século XX a um espaço construído
notar que Hirschhorn veio ao Brasil, em mediação cultural.
pelos próprios moradores, de acordo
2006, a convite da Bienal de São Paulo,
com o projeto do artista suíço. Esse é o caso de artistas e de produtores
cujo tema “Como viver junto” não
culturais envolvidos nos dois projetos
Como preâmbulo, foram articulados deixou de remeter ao desafio colocado
aqui citados, que circulam por vários
estágios em museus, visitas a bienais e a à hospitalidade em meio às alteridades
bairros do subúrbio e do centro e ao
outras cidades, capacitando jovens para culturais tão presentes em Aubervilliers.
mesmo tempo se relacionam com
a prática da conservação museológica.
O Museu Precário foi desmontado e o pessoas do poder público que possuem
Uma vez iniciadas as semanas dedicadas
terreno voltou a ser vago. A publicidade acesso a decisões sobre investimentos
sucessivamente a diferentes artistas,
que a cidade ganhou foi inédita, tudo tais como os equipamentos culturais
foram criados ateliês de redação, houve
isso um ano antes das explosões de públicos. Seus projetos invocam palavras-
contratação de historiadores e de
revoltas em vários subúrbios da França. chave bastante semelhantes: no caso
críticos de arte durante os dois meses da
das lonas, “artistas locais”, “ganho
exposição.
social”, “cultura como instrumento de

Subúrbios Cariocas 97
transformação social”; no caso da villa, mais meritória que, para Lévinas, se o cultural municipal e face aos riscos de
“proximidade”, “ancoragem local”, outro já falasse a mesma língua não se cooptação pelo Poder público, processo
“invenção pluridisciplinar”, “trocas trataria de uma alteridade; o que leva ao enfraquecedor de esforços coletivos
interculturais”, “sinergias”. Ao se “transcendente” é a aceitação da própria já empreendidos, que se revelam uma
singularizarem como “instrumento de diferença. constante à medida que o projeto ganha
transformação social” ou como friche visibilidade.
culturelle de proximité, deflagram uma A hospitalidade que emerge destes
multiplicidade de associações simbólicas atores sociais por meio dos projetos Alguns projetos foram efetivamente
e de papéis acionados em graus culturais compensa de certo modo a incorporados como linha das políticas
diferentes pelo poder público, pelo meio hospitalidade que falta tanto nos serviços culturais oficiais: as experiências das
artístico e pelos potenciais financiadores. públicos. friches mereceram a criação de uma
secretaria interministerial, devido às
Neste sentido as reutilizações de implicações transversais (Min. Trabalho,
edifícios singulares, depositários de urbanismo, ação social, etc.) ainda que
Considerações finais memória local, engendram também ela tenha perdido a prioridade com
uma postura de hospitalidade, negada a mudança do primeiro ministro em
Atrás das imagens de violência nos equipamentos culturais tradicionais
dos subúrbios existe uma postura 2002. De toda maneira atualmente
franceses. cada prefeitura de cidade periférica ou
hospitalidade emergindo dos atores
sociais que lidam com projetos Neste quadro o papel dos “sujeitos- de subúrbio está ciente do potencial
culturais inseridos em bairros com coletivos” na gestão de processos que estes espaços e grupos oferecem.
grande diversidade cultural, explicitada culturais se faz tão ou mais importante. A Parcerias internacionais são traçadas
na diversidade lingüística. Estou partir das associações civis se estabelece, pelas equipes das friches, que recorrem
aludindo aqui a compreensão ética em paralelo ou em complementação muito às Redes de Cooperação
do filósofo Emmanuel Lévinas acerca a uma suposta política cultural Internacionais, inclusive na América
da hospitalidade. No seu livro mais institucional, o que poderíamos chamar Latina.
conhecido, Ética e Infinito. (11) de ação cultural “de baixo-para-cima” Cabe ressaltar que se estes projetos
Embora, como note Derrida, a palavra (em relação aos agentes decisores nascem espontaneamente isto não
hospitalidade não seja muito sublinhada, tradicionais) ou ainda “da periferia para significa que eles sejam ingênuos.
ela é o ápice, de outras instâncias dentro” (em relação aos conteúdos Eles estão cada vez mais atentos e
da relação humana que ele aborda: tradicionalmente abrangidos) marcada conectados com as prioridades das
a acolhida do outro radicalmente por uma pluralidade cultural intrínseca ao políticas públicas que podem vir a
diferente, o encontro e o face-a-face tecido social urbano. Ela simboliza uma ser fontes de financiamento assim
com esta alteridade. A hospitalidade “salvaguarda” face aos personalismos como agencias internacionais. O que
mais fundamental, mais pura, então é políticos possíveis numa política fica explícito na fala dos agentes da
aquela que se dá frente ao estrangeiro,
frente àquele que fala outra língua e
onde a possibilidade de comunicação é
complexa. Esta hospitalidade não tem
nada a ver com a hospitalidade turística
contemporânea, regrada, programável e
negociável.

O aspecto mais visível da problemática


da hospitalidade daquilo que faz parte
da política oficial de Aubervilliers talvez
resida na política de livro e leitura.

A área da leitura constitui, aliás, o


segundo eixo mais importante do
Convênio Territorial, inserido na Política
da Cidade (“Eixo II – Um projeto
educativo, sanitário, social e cultural
para todos; Subtópico: Língua – Leitura
– Escrita: três temas fundamentais
para a inserção social e profissional dos
moradores de Aubervilliers”).

É exatamente através dos eixos dessa


“política de leitura” que vemos os traços
mais próximos de uma hospitalidade,
de uma acolhida ao outro que não fala
a mesma língua, e essa acolhida é tanto

98 Revista da FAU UFRJ_número 2


associação Villa Mais d’Ici, que, ao 1. Evento internacional que 7. Conforme La politique
sublinharem a relação com a população reuniu entidades e organizações culturelle française: les axes,
local de diversas nacionalidades do não-governamentais nacionais les acteurs, les pratiques. Actes
bairro Quatre-Chemins, acabam por e internacionais em torno do du colloque organisé dans le
tema do meio ambiente e do cadre du programme Courants,
responder a um forte critério para
desenvolvimento sustentável, 3 nov. 2000. Paris: Maison des
os financiamentos de projetos sócio-
realizado no Rio de Janeiro em Cultures du Monde, 2000.
culturais no contexto da Politique de la 1992, mais conhecido como
Ville, política nacional de discriminação 8. Relação esta embasadora no
Eco-92.
positiva de territórios empobrecidos, caso da friche La Belle de Mai,
2. Levantamentos anteriores conforme visto em NOUVEL,
via-de regra subúrbios com altas taxas de
do RioArte indicavam um Jean. Friche la Belle de Mai:
imigrantes.
crescimento de 23.371 pessoas un projet culturel pour un
Resumindo, os subúrbio estão sendo em 1995 para 67.581 em 1997. projet urbain. Marseille, 1996.
Relatório do Système Friche
palco de arranjos e estratégias sociais 3. Jornal do Brasil, Rio de
Théâtre.
que lidam de modo inédito com a Janeiro: 23 abr. 1999. Caderno
diversidade cultural, seja de migrantes ou B. 9. Conforme o projeto de
de imigrantes. trabalho da friche: Villa Mais
4. Cabe destacar que, de todas
d’Ici: friche culturelle de
Enfim, para fechar as reflexões das três as manifestações, a música é
proximité. Aubervilliers: Villa
a que congrega e atrai maior
manhãs desta semana, em espacial a Mais d’Ici, 2002.
quantidade de público.
do primeiro dia de Nelson da Nóbrega, 10. Entendida em nossa
diria que nestes subúrbios observados 5. PREFEITURA DO RIO DE
análise por aquilo que os
a função cultural tem conseguido JANEIRO. Rio Estudos, Rio
antropólogos denominam
restabelecer o “nome” perdido dos de Janeiro: Secretaria de
“rede de interações sociais”
Comunicação Social, n. 167, jul.
bairros ou cidades que se recusam a ou “rede de cooperação”,
2005.
serem somente dormitórios! • conforme: BECKER, Howard S.
6. Ver URFALINO, Philippe. Art worlds. Berkeley: University
L’invention de la politique of California Press, 1982.
Márcia Ferrán é Arquiteta, Mestre em culturelle. Paris: Documentation
11. LEVINAS, Emmanuel. Ética
Française, 1996.
Urbanismo pela UFRJ, Doutora em Filosofia e Infinito. Lisboa: Edições 70,
e Urbanismo (co-tutela Université de Paris 1- 2007.
SORBONNE e UFBA). Em 2006 foi Coordenadora
das Oficinas do Sistema Nacional de Cultura/
MINC e atualmente é Gerente de Espaços
Culturais da Secretaria de Cultura do Município
de Vitória/ES.

Subúrbios Cariocas 99
100 Revista da FAU UFRJ_número 2
Subúrbios Cariocas 101
102 Revista da FAU UFRJ_número 2
Subúrbios Cariocas 103
Abertura da Semana da Fau – Seminário Subúrbios Cariocas
Cristovão Fernandes Duarte

depoimentos Conceito carioca de subúrbio: um rapto ideológico


Nelson da Nobrega Fernandes

Subúrbios e periferia: a ferrovia na construção da Região Metropolitana do Rio de Janeiro


Antônio José Pedral Sampaio Lins

Um novo olhar sobre os entornos da cidade


Rafael Mattoso

Algumas considerações sobre o subúrbio


José Barki

O hip-hop, o rap e o funk: as vozes desassombradas da periferia


Regina Meirelles

Entrevista
Djamel Klouche

painel
Antigos subúrbios, novas periferias: a questão territorial do projeto
Guilherme Lassance e Fabiana Izaga

Pesquisa Acadêmica – A FAU e o subúrbio de Madureira: parceiros para um próximo samba?


Cláudia Nóbrega e Júlio Rodrigues

Idéias para a Avenida Brasil


Lina Mota Corrêa

Autointervenções nas residências econômicas: um estudo no bairro de Higienópolis, Rio de Janeiro


Marcelo Silveira

Manguinhos como pôde ser, ou: pequena história esquecida do subúrbio carioca
Alexandre Pessoa

ação Planejando a cidade em pedaços: projeto Rio Cidade Méier, projeto de humanização
da Avenida Suburbana e projeto Rio Cidade Irajá
Luiz Carlos Toledo e Vera Regina Tângari

De Bangu a Aubervilliers: política cultural e gestão urbana contemporâneas


Márcia Ferrán
ISSN: 2177-0893

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