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LOGOS

Dessubjetivação e
contemporaneidade
Nízia Villaça*

RESUMO
O texto discute a leitura do inconsciente num
espectro mais amplo, que não se reduz ao modelo
freudiano ou lacaniano, mas que surge como um
A
“ h, meu amigo, a espécie hu-
mana peleja para impor ao
latejante mundo um pouco
de rotina e lógica, mas algo ou alguém
de tudo faz frincha para rir-se da gente...
da verdade.
Readquire-se o valor etimológico do
termo subjectus, particípio passado de
subjicere, onde o sentido caminha em
direção às idéias de submissão, subor-
fundo caleidoscópico a ser cartografado e modelado
por subjetividades individuais por meio de marcas E então?” dinação, sujeição. Sujeito determinado
cognitivas, míticas, ritualísticas e sintomatológicas. Guimarães Rosa por uma ação que lhe é exterior e à qual
Este estudo se baseará nas teorias da complexidade deve se submeter. Como acentua Wladi-
de Morin, da experiência da passibilidade de Lyo- Pensar a subjetividade hoje é se deixar mir Krysinski (1989), para que o sujeito
tard, da vivência da coisificação contemporânea
atravessar e afetar pelos agen­ciamentos da submissão e da sujeição se tornasse
positivada por Perniola e do apelo ao paradigma
estético de Guattari. representados pelos avanços da tecno- uma categoria antro­po­mórfica, filosófica,
Palavras-chave: dessubjetivação; complexidade; ciência, das tecnologias da comunicação jurídica, sociológica, foi necessário fazê-lo
inconsciente. e da informação, pelas descobertas da sofrer operações discursivas e ideológi-
bio­genética, psicologia e da nova física. cas: do papel de paciente, passou à cate-
SUMMARY A questão não é mais saber se o in­cons­ goria de agente. As diversas filosofias que
This text discusses the reading of the un­
conscious in a broader spectrum, which does
ciente freudiano ou o inconsciente laca- se ocuparam da constituição do sujeito,
not follow neither the Lacanian nor the Freudian niano fornecem uma resposta científica desde o cogito cartesiano à identidade
patterns, but the one that emerges as a kaleidos- aos problemas da psique. Na produção dos indiscerníveis de Leibniz, passando
copic background to be mapped and modeled da subjetividade estes e outros modelos pela consciência de si de Hegel, pelo im-
by individual subjectivity by means of cognitive, serão considerados em relação aos dis- perativo categórico de Kant, pelo Dasein
mythical, ritualistic and symptoma­tological
positivos técnicos e institucionais que os de Heidegger ou pela morte do homem
marks. This study will be based on the complex
theories by Morin, on the experience of the pas- promovem. O in­consciente surge como de Foucault, oferecem reservatórios de
sible actions by Lyotard, on the existence of the um fundo caleidoscópico a ser carto- tematizações.
contemporary tur­ning out objects into things grafado e modelado por subjetividades Não pretendo fazer uma arqueologia
made positive by Perniola and on the appeal of the individuais através de marcas cognitivas, dos deslocamentos efetuados, mas de-
aesthetic paradigm by Guattari. míticas, rituais e sintomatológicas. marcá-los como produções discursivas
Keywords: dessubjetivação; complexity; uncons-
cious.
Autores como Vattimo, Touraine, pontuais, onde oscilam posturas cuja
Morin, Perniola, Lyotard, Guattari nos tônica é a codificação, e outras que, sobre-
RESUMEN oferecem pistas nesta direção. Todos tudo, caminham para a descodificação na
El texto discute la lectura del inconsciente en un eles, de forma mais ou menos explícita, trilha de Nietzsche, Freud, Lacan, Derrida
espectro más amplio, que no se reduce al modelo acham-se inseridos no que poderíamos ou Deleuze. Num lugar intermediário,
freudiano o lacaniano, sino que surge como un
hondo calidoscópico a ser mapeado y modelado
denominar uma transição para um novo Castoriades (1992) assinala as diversas
por subjetividades individuales por medio de marcas paradigma imerso na complexidade que instâncias constitutivas do sujeito, mas
cognitivas, míticas, ritualísticas y sintomatológicas. fusiona sujeito e objeto, onde a técnica é não abre mão da procura de uma unida-
Este estudio se basará en las teorías de la compleji- provocação para pensar, onde a estética de, até pela necessidade de imputação
dad de Morin, de la experiencia de la pasibilidad de proporciona um testemunho determi- de responsabilidade ética a partir de
Lyotard, de la vivencia de la reificación contempo-
ránea positivada por Perniola y del llamamiento al
nante da contemporaneidade. uma dinâmica que implique reflexão e
paradigma estético de Guattari. O sujeito nesta configuração se vontade.
Palabras-llave: desubjetivación; complejidad; despe das dicotomias (sujeito/objeto, Face à perda progressiva dos grandes
inconsciente. consciente/inconsciente, corpo/espí­ referenciais antigos, a moder­nidade, in-
rito), oposições constitutivas do ideal cluindo aí o momento contemporâneo,
humanista da determinação do homem vai criando novas versões/interpretações,
como consciência, lugar da liberdade e vai explodindo em subjetividades que se
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configuram de forma pontual. neo. Discute-se sobre o sujeito fraco, as mutação nas condições de existência,
A questão do sujeito moderno, maxi- teorias do simulacro, o sujeito-objeto, o uma verdadeira transformação do sujeito.
mamente expressa no contemporâneo quase-sujeito, as éticas plurais no lugar A técnica aparece não como o que vem do
“pós-moderno”, como assinala Luiz da moral universalista, as transestéticas exterior ameaçar os velhos e bons valores
Cláudio Figueiredo (1992), encontra sua dessublimadas. humanistas, mas como provocação para
dinâmica de sub­jetivação e dessubjetiva- As visões totalizantes do sujeito são pensar a constituição metafísica do sujei-
ção a partir do século XVI. A diversidade preteridas em favor de conjuntos mais to em toda sua virulência e controle.
produzida pela intensificação do comér- sutis que o definam. Segundo Krysinski A evidência (idéia clara e distinta), im-
cio, por ocasião da conquista de outros (1989), é preciso sublinhar o paralelismo e plícita na noção do testemunho enquanto
continentes e dos contatos com outras a complementaridade das tomadas de po- verdade, é, se pensarmos com Nietzsche,
línguas e objetos, tornados intercambiá- sição de Nietzsche, Freud, Bakhtin, Lacan, um fenômeno cultural, constitutivo de uma
veis enquanto mercadorias, complexifica Ricoeur e Derrida, para os quais o sujeito civilização em que o homem é pensado em
o mundo, que começa a perder a orde- seria uma espécie de “inde­terminação termos de hegemonia da consciência sobre
nação das antigas “civilizações fechadas” determinada”, se se pode assim exprimir as outras instâncias da personalidade. No
ou a organização da comunitas medieval. por este oxímoro as diferentes formas de entanto, a subjetividade, pelo contrário,
Cresce a necessidade de pôr limites à pôr em relevo a instabilida­de e a dinâmica seria antes o produto de paixões que lutam
ameaça de contaminação, de poluição. complexa, bio-ideo­lógica pela qual o su- entre si, dando lugar a equilíbrios cons-
Intensifica-se o medo das zonas intermé- jeito é marcado: múltiplo, estigmatizado tantemente provisórios. Quando Vattimo
dias, das margens, das fronteiras nesta pela falta, descentrado, uma verdadeira afirma, então, o ocaso do sujeito, está se
época de conversões, heresias e movi- estrutura dissipativa onde ordem e des- referindo ao fato de que hoje se começa
mentos reformistas. Concomitantemente perdício se conjugam. No texto literário a reconhecer que a consciência não é a
a este medo do contágio e a esta necessi- este drama fica ainda mais claro. Nesta instância suprema. Para Vattimo, se Niet-
dade de codificar, entretanto, investe-se linha é importante o trabalho de Bakhtin, zsche representa a crise do sujeito do
positivamente nas misturas, na diluição acentuando o caráter dialógico da obra ponto de vista do caráter estratiforme da
dos limites, pelo exercício sistemático literária, em que o sujeito se torna um psique individual, Heidegger representa
da alquimia, como fez Paracelso. Figuras signo no espaço onde outros signos a crise da noção de sujeito pela forma
emblemáticas do período seriam Tereza aparecem e se fazem respeitar. como sublinha sua radical e constitutiva
de Ávila, pela radicalização do exercício Gianni Vattimo (1987), na esteira de pertença ao mundo histórico-social: o
da subjetividade, e o Quixote de Cervan- Nietzsche e Heidegger, desca­racteriza sujeito, mergulhado desde sempre na
tes, simbolizando a busca da identidade o pensamento forte da modernidade, inautenticidade do Dasein.
perdida na retomada “maneirista” dos privilegiando a constituição de um As noções de indivíduo e sujeito
ideais de cavalaria. pensamento fraco na contemporanei- tendem a perder seus contornos, rece-
No século XVII a cisão e o expurgo se dade. Perde impacto o narrador clássico bendo múltiplas leituras. A propósito da
constituem, segundo Figueiredo, em pro- descrito por Benjamin, aquele que fala distinção que se costumava fazer sobre
cessos de ascese para a criação dos sujeitos a partir da experiência. Nesta linha de o sujeito ser um conceito filosófico e o
purificados do conhecimento e da paixão, raciocínio, é sintomática a discussão sobre indivíduo um conceito que se relacionava
analisados respectivamente através de o memorialismo e seu estatuto literário, que com a prática social, Foucault mostra que
referências às epistemologias de Bacon e perpassa um campo que vai do sujeito em- o sujeito é uma prática social tanto quan-
Descartes e ao sujeito ético-passional nas pírico ao sujeito ficcional. Tradicionalmente to o indivíduo um conceito filosófico. Ele
obras de Racine e Molière. apresentado com valor de verdade, tradução não afirma o valor absoluto do indivíduo
Os avessos da representação, ou seja, de individualidade, ponte entre um “fora” e na sua singularidade ou a valorização da
do que pode ser representado, se esbo- um “dentro”, o memorialismo vem sendo vida privada, mas uma mudança política,
çam no século XVIII com o Iluminismo, rediscutido e, de alguma forma, revaloriza- cuja chave está na forma do sujeito se
que vai consolidar a privacidade com do enquanto forma discursiva, que sabe proporcionar novos processos de subjeti-
ousadias filosóficas, científicas, literárias que dizer “eu sou” é um substituto para vação. A forma do sujeito, entendida não
e políticas. Esta privacidade, na França, a compreensão, talvez devastadora, da como a do cogito ou do sujeito transcen­
torna-se mesmo engajada, em oposição errância, da ex-centricidade que o poeta dental, autônomo, mas de um sujeito
ao Estado absolutista. nomeara “je est un autre”. as­cético que se constitui nas práticas de
Finalmente, a questão nos séculos XIX A valorização da noção de testemu- si. (Foucault, 1985)
e XX complexifica-se com a articulação nho, para Gianni Vattimo, “estaria ligada a No que se refere ao indivíduo, ele sofre
de quatro ingredientes: o individualismo resquícios do pensamento existencialista dois tipos de processo. Inicialmente, deixa
de tipo ilustrado, o de tipo romântico, com todos os seus corolários: a irrepetí- de ser concebido predominantemente
o liberalismo e o uso das “disciplinas”. vel existência do indivíduo, sua peculiar como um trabalhador, um consumidor
Redesenham-se agora espaços e possibi- relação com a verdade” (1987, p.247-248). ou mesmo um cidadão, para tornar-se
lidades nos campos das discussões sobre O clima filosófico contemporâneo seria sempre mais um ser do desejo, habitado
a constituição do sujeito, sua inserção avesso a esta linha e seus conteúdos por forças impessoais, e também um ser
no mundo, ancorado ou não em valores clássicos (indivíduo, escolha, responsa- individual, privado, como lembra Tourai-
como a verdade, o bem e o belo. bilidade, morte, angústia). A vaga de im- ne (1992). Desconstrói-se, de certa forma,
Esta complexidade atinge seu ápice a pessoalidade contemporânea é vista por a articulação sujeito contratual/Estado,
partir dos anos 60 e etiquetas se sucedem ele não negativamente, mas como marca que havia permitido a saída do universo
adjetivando o imaginário contemporâ- de um desvio real do pensamento, uma holista para o universo individualista.
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Neste universo o sujeito era o lugar que trário, afirmará que aí onde está o eu há como um valor seguro, com a faculdade
permitia uma ligação entre os indivíduos que liquidá-lo, deve vir o isto. Se houve inclusive de suspender e interditar a sus-
em torno de ideais universais. Com a alguns retornos do sujeito eles se deram peição. Lyotard vai se perguntar se não
desestruturação a que assistimos, o in- com Foucault e Barthes, coincidindo com é próprio do homem ser habitado pelo
divíduo e o sujeito tornam-se lugares de um retorno do Eros e da literatura. inumano. Aponta dois tipos de inuma-
acirradas discussões, que lançam pistas A pista que Morin oferece é pensar nidade e a necessidade de mantê-los
para se perceberem as configurações que o sujeito através da própria lógica do dissociados: a do sistema em curso de
informam o contemporâneo nas discus- ser vivo: bio-lógica. Reflete a partir das consolidação, sob o nome de desen-
sões sobre a nova cidadania. estruturas e formas de vida mais simples volvimento (entre outros) e aquela,
como a das bactérias para, a partir daí, infinitamente secreta de que a alma é
Sujeito, complexidade e incerteza retomar conceitos como o de autono- refém. (1990)
mia, rever a relação espécie/indivíduo, a Lyotard opta pela manutenção da inde-
“Vejo um animal menos forte que noção do “computo” como princípio de terminação entre o humano e o inumano. Se
uns e menos ágil que outros, mas aberto indi­viduação e egocentrismo, a identi- o título de humano, segundo o autor, pode
a tudo, organizado de forma mais van- dade animal e as categorias de inclusão, e deve caminhar entre a indeterminação
tajosa”. exclusão e intercomunicação. Numa nativa (infantil) e a razão instituída ou a ins-
Rousseau longa deriva, Morin reconceitua tais tituir-se, também o pode e deve o inu­mano.
noções descrevendo o modo bioló­gico E pergunta como resistir ao inumano do
Refletindo sobre a questão da sub- paradoxal e complexo de ser, comum ao desenvolvimento. Que mais resta para opor
jetividade relacionada ao paradigma homem e às bactérias, para afirmar que resistência, que a dívida que toda a alma
científico, Edgar Morin aponta para o fato nossa tragédia está ligada ao princípio da contraiu com a indeterminação miserável
de que em muitas filosofias e metafísicas incerteza que na verdade se desdobra em de sua origem, da qual não cessa de nascer?
o sujeito confunde-se com a alma, com dois. O primeiro consiste no fato de que Ou seja, com o outro inumano?
o que é superior e espiritual, banindo o o eu não é nem primeiro, nem puro. O A tarefa da escrita do pensamento da
universo dos sentidos como irracional. “computo” não existe fora de todas as literatura das artes é, para o autor, aventu-
Por outro lado, a ciência, também es- operações físico-químico-biológicas rar-se a prestar um testemunho, diverso do
trategicamente, dissolveu o sujeito em que constituem a auto-eco-organização positivismo lógico, do racio­nalismo.
determinismos físicos, sociológicos ou O que estas formas diversas têm em co-
da bactéria. Mas num determinado mo-
culturais, excluindo o incomensurável, mum é a liberdade e a não-preparação com
mento a organização físico-química ad-
o inominável. Descartes apontou em que a linguagem mostra ser capaz de rece-
quire caracteres propria­mente viventes ber o que pode acontecer no meio falante e
direção a dois mundos: o mundo dos
e obtém a possibilidade de computação de ser acessível ao acontecimento (receber
objetos, relevante para o conhecimento
em primeira pessoa. Entretanto, em cada o que o pensamento não está preparado
científico objetivo, e o mundo reflexivo e
intuitivo dos sujeitos. “Por um lado, a alma, eu há algo de “nós” e do “se”. O eu não é para pensar). A verdadeira complexidade
o espírito, a sensibilidade, a filosofia, a lite- puro, não está só, nem é único. A visão consistirá nessa passibilidade, em vez de se
ratura; por outro, as ciências, as técnicas, a complexa do sujeito deve enlaçar o “eu”, situar na atividade de reduzir ou construir a
matemática.” (Morin, 1996, p.45) o “nós”, o “se” e o “isto”. O princípio da linguagem.
Ora, Morin, em suas numerosas obras, incerteza nos leva à dúvida sobre quem O princípio da razão se precipita para
vai acentuar a impossibilidade das demar- fala a cada momento. Daí a importância o fim, para a resposta. As traduções de
cações objetais precisas, a inclusão do de retomar Freud e fazer emergir o eu pensamento não ocidentais oferecem uma
sujeito no ato de conhecer, o cruzamento onde está o ele, sem que este último atitude muito diferente. O que interessa
multidis­ciplinar, e a incerteza existencial desapareça. O princípio da incerteza não é a resposta, mas o ques­tionamento,
como sendo a marca do propriamente também se refere à oscilação visceral do a manutenção da inquietação. A proble-
humano. Em entrevista, ele afirma a sedu- indivíduo entre ser o centro da existência mática derridiana do descentramento
ção que sobre ele exerce o incerto e cita e ser um nada. Divididos entre egoísmo e e da diferença, o princípio deleuziano
Böhr: “o contrário de uma verdade profun- altruísmo somos capazes de optar por algo de nomadização dependem, apesar de
da é uma outra verdade profunda” (apud que nos transcenda, e, paradoxalmente, diferentes, desta aproximação do tempo
Ewald, 1993). Na trilha de Nietzsche pensa de procurar a própria morte pela huma- como escuta. A velocidade, como bem
que é preciso fundar o pensamento na nidade, Deus, a fé ou a verdade. A lição de lembra Kundera, é a forma de êxtase com
ausência de fundamento. A negociação Morin é pois a de sublinhar os paradoxos que a revolução técnica presenteou o
com o incerto surge como ingrediente que fazem da subjetividade uma produção homem. Contrariamente ao motociclista
da complexidade num mundo onde o complexa, livre e independente, imanente o corredor está presente no seu corpo,
que há são sobretudo apostas. e transcendente, humana, enfim. sente sua respiração, seu peso, idade.
No século XX assistimos à invasão da Pergunta o autor: por que o prazer da
lentidão desapareceu? (1995)
cientificidade clássica nas ciên­cias hu- A experiência da passibilidade A aposta de Lyotard é que no acon-
manas e sociais. Lévi-Strauss, Althusser e
“Os artistas são antes de mais homens tecimento possa dar-se a presença de
Lacan, cada um a sua maneira, liquidaram
que pretendem tornar-se inumanos”. algo que é diferente do espírito e que
a noção de homem e a noção de sujeito,
acontece de vez em quando. No esforço
adotando o inverso da famosa máxima Apollinaire em falar desta presença o autor refere-se
de Freud: “aí onde está o isto deve devir a um tipo de música onde a necessidade
o eu”. A versão estruturalista, pelo con- O humanismo afirmava o homem
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de ressonância e consonância não dá na possibilidade do novo; a mudança subjetivista) à cultura punk e pós-punk (“no
origem a desdobramento ou síntese mas é possível apenas sob a condição de a future, no feelings”). A união entre o vídeo
é sentida como impotência e dor. “O ini- coisa permanecer a mesma e, vice-versa, e a cultura juvenil na video-music marca
gualável ou o irrepetível, não reside nos a coisa permanece a mesma só na mudan- a des­vitalização da figura humana pela
encadeamentos. Talvez se esconda e se ça. Mesmi­dade como trânsito e trânsito separação da voz e do corpo num efeito
ofereça em cada átomo sonoro.” como mesmidade. O tempo do enigma é o diferente do cinema mudo, quando a
Como a propósito do perten­cimento presente. Ele nasce justamente do colapso falta de palavra não fazia senão exaltar a
fusional do sujeito e do mundo em suas tanto do passado quanto do futuro num expressividade da figura humana. No vi-
diversas escalas, descrito por Morin, o sujeito presente ambíguo e problemático. Este deo-clip, as figuras humanas, geralmente
não é o do controle mas o do trânsito, do tipo de experiência não nasce do retorno privadas de voz, dão impressão da objec­
trâmite, da mediação. do recalcado nem do choque do futuro. tualidade, coisificam-se.
O que se desconstrói aqui, é tanto o sujei- Nem a hermenêutica, nem a utopia. As- Também na passagem da moda à
to forte cartesiano como o sujeito fraco des- sistimos a uma inversão entre o homem e antimoda e ao look ele acentua a mesma
crito por Vattimo. Na passi­bilidade há uma as coisas: os homens tornam-se parecidos dessubjetivação. O look é a autonomiza-
noção de estoicismo que nos leva direto com as coisas e o mundo inorgânico, ção das aparências: a imagem torna-se
ao pensamento de Mário Perniola. graças à tecnologia eletrônica, parece coisa. O look anula a nudez como a veste,
substituir-se ao homem na percepção instaura uma paisagem.
Coisa entre coisas: dos fenômenos. A dimensão neopagã por sua vez
a subjetivação como enigma A isto Perniola chama efeito egípcio. estaria articulada com a hibridização
Na cultura egípcia, as coisas tinham facul- de culturas na atualidade e o desejo
“Fosse eu apenas não sei onde ou dades humanas: às estátuas dos deuses, de vivências de outras tonalidades
como, uma coisa existente sem viver.” resguardadas do olhar dos homens, emocionais: possessão, delírio, transe.
Fernando Pessoa atribuía-se o poder de ver os visitantes Já na mo­dernidade, dos românticos a
dos templos; os Colossos de Memnon res- Nietzsche, de Baudelaire aos sur­realistas,
Para Mário Perniola (1994), a pergunta soavam ao despontar do sol; às múmias havia um grande interesse pelo êxtase,
sobre a relação entre o pensamento e a era garantido o exercício de todas as fun- interpretado ainda dentro do âmbito da
experiência de nossos dias solicita uma ções vitais. “Ao contrário, os homens, de cultura do sujeito. Também nos anos 70
resposta ligada a uma filosofia do presente, todo inconscientes de si próprios, eram o uso das drogas não saiu do mesmo tipo
uma filosofia enigmática. Ele é aquele que movidos por um formidável instinto de de cultura, tendo um teor trans­gressivo
objetivação, pela tendência a exteriorizar e patológico.
se torna nada para escutar o presente e seu
enigma. O filósofo manda calar seus desejos, algo cuja substância lhes permanecia É o lado positivo dos fenômenos ex-
seus afetos desordenados e suas opiniões ignota e incognoscível” (idem, p.78). Um táticos que o autor quer hoje acentuar.
íntimas para não interpor obstáculos e culto de alcance prático a tudo se atreve, Ao contrário do pensamento tribal de
barreiras prejudiciais à compreensão de não se deixando obstaculizar. Maffesoli (1987), que sublinha a impor-
mais uma história. Pensamento de trâmite, Na linha deleuziana, diante do enigma tância do “sentir junto”, aqui o desapossar-
despido de arrogância, mas não fraco. contemporâneo, a atitude não é buscar a se, o tornar-se coisa, visa a oferecer um
Vivemos numa sociedade de imagem, transparência, a verdade de um segredo, receptáculo corporal ao que vem de fora.
mas devíamos nos referir a uma sociedade mas desenvolver as pregas, seguir os A experiência assemelha-se à do escritor,
das coisas, ou seja, a da ruptura com o labirintos (“volvo”), percorrer as diversas pensador ou artista que “se nadificam
subjetivismo. Não se trata de um niilismo camadas, entre­tecendo junto coisas para deixarem espaço ao enigma da
que se substituiria à arro­gância do sujeito diferentes, estabelecendo o continuum escrita, do pensamento e da arte”. (Per-
da razão, mas uma atitude enigmática que através de transições insensíveis (“flecto”) niola, 1994, p.90)
permite uma liga­ção direta com a sociedade. numa transversalidade entre os planos O que se quer ressaltar nos novos
O enigma não é uma dificuldade, um obs- (“clino”). O pensamento da prega não processos de subjetivação/des-subje­
táculo, um limite à busca da verdade. Com é niilista, mas estóico. A razão filosófica tivação não é a fragilidade do homem,
Heráclito, a experiên­cia do enigma adquire funde-se com a razão poética e com a mas suas capacidades de suportar o
uma dimensão filosófica plena. Ultrapassa a razão social, num presente carregado de mundo e de dar testemunho, idéias
oposição entre segredo e revelação e abre passado e grávido de futuro. que nos chegam através de Lyotard
para uma linguagem que “não diz nem ocul- Aludindo a este momento de coin­ e Mário Perniola e que de certa forma
ta”, acena apenas. A importância de Heráclito cidência entre o antigo e o futurível, a apontam, como foi referido, para uma
reside no fato de ele ter afirmado o caráter este momento barroco, ele caracteriza a espécie de estoicismo.
unitariamente enigmático da realidade: sociedade contemporânea como neo- Escrituras fractais da
não uma visão dualista do mundo, mas um apática e neopagã. Neo-apática, pelo culto
combate de opostos coexistentes. No início
subjetividade: a função poética
da indiferença; neopagã, pela possessão.
da filosofia ocidental, encontramos uma pro- Ambas as experiências representam uma “Terminei por achar sagrada a desor-
funda negação da identidade e uma rigorosa ruptura com o subje­tivismo, um perder- dem de meu espírito.”
formulação da natu­reza do trânsito como se de si, um sentir-se via de passagem de Rimbaud
“repousante transmutar e transmutante algo exterior.
repousar”. (Perniola, 1994, p.35) Na vertente neo-apática descreve, por Guattari (1992) pensa que considerar
O enigma não consiste na mudança, exemplo, a passagem da cultura pop (ainda a subjetividade sob o ângulo da produção
é sair dos sistemas tradicionais de deter-
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minação do tipo infra-estrutura material,


superestrutura ideológica, uma vez que
os diferentes registros semio­lógicos que
engendram a subjetividade não obedecem
à relação hierárquica.
Entre as questões que incitam a ampliar
a noção da subjetividade e rever os modelos
de Inconsciente ele enumera: a irrupção de
fatores subjetivos no primeiro plano da atua-
lidade histórica (movimento de massas tanto
emancipadoras como conservadoras), o
desenvolvimento maciço de produções ma-
quínicas de subjetividade e enfim o recente
destaque de aspectos etológicos e ecológi-
cos relativos à subjetividade humana.
Primeiramente o autor afirma que os Bibliografia
CASTORIADES, Cornelius. As encruzilhadas do labi-
fatores subjetivos desempenham hoje papel
rinto III: o mundo fragmentado. Rio de Janeiro:
preponderante, a partir do momento em Paz e Terra, 1987-1992.
que foram assumidos pelos mass media EWALD, François. “Edgar Morin, philosophie
de alcance mundial. Os grandes movi- de l’incertain”. In: Magazine litteraire, n. 312.
mentos de subjetivação não tendem, Juillet-aout, 1993.
porém, necessariamente para a emanci- FIGUEIREDO, Luiz Cláudio. A invenção do psico-
pação. Assim, a revolução subjetiva que lógico: quatro séculos de sub­jetivação – 1500-
atravessa o povo iraniano se focalizou 1900. São Paulo: Escuta/Educ, 1992.
sobre arcaísmos religiosos e atitudes FOUCAULT, Michel. História da sexualidade 3: o
conservadoras. cuidado de si. Rio de Janeiro: Graal, 1985.
Para ele, as ciências sociológicas, as GUATTARI, Félix. Caosmose: um novo para­digma
estético. Trad. Ana Lúcia de Oliveira e Lúcia
ciências econômicas, políticas e jurídicas,
Cláudia Leão. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
parecem, no momento, incapazes de dar KRYSINSKI, Wladimir et al. “Subjectum compara-
conta do coquetel subjetivo contempo- tiones: les incidences du sujet dans le discours”.
râneo. Também a psicanálise tradicional In: Théorie Littéraire. Paris: PUF, 1989.
não aparece mais bem posicionada por KUNDERA, Milan. La Lenteur. Paris: Galli­mard,
reduzir fatos sociais a mecanismos psico- 1995.
lógicos. Daí a necessidade de forjar uma LYOTARD, Jean François. O inumano. Lisboa:
concepção mais transversalista e dinâmi- Estampa, 1990.
ca da subjetividade, revendo a leitura, por MAFFESOLI, Michel. O tempo das tribos: o de-
exemplo, das máquinas tecnológicas de clínio do individualismo nas sociedades de
informação e comunicação que operam massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
1987.
no núcleo da subjetividade humana. A
MORIN, Edgar. “A noção de sujeito”. In: SCHNIT-
evolução maquínica deverá ser julgada MAN, Dora Fried (Org.). Novos paradigmas,
de acordo com suas articulações, com cultura e subjetividade. Porto Alegre: Artes
os agenciamentos coletivos de enun­ Médicas, 1996.
ciação. Poderemos chegar a um estágio PERNIOLA, Mário. Enigmas: o momento egípcio
de re-singularização da mídia, saindo da na sociedade e na arte. Lisboa: Bertrand,
opressão atual. 1994.
Por último, Guattari examina os aspec- TOURAINE, Alain. Critique de la modernité. Paris:
tos etológicos e ecológicos que seriam Fayard, 1992.
da ordem de um paradigma estético. As VATTIMO, Gianni. La crise de l’humanisme. In:
formações pré-verbais infantis não seriam La fin de la modernité: nihilisme et herme­
neutique dans la culture post-moderne. Paris:
fases no sentido freudiano, mas subjetivi- Seuil, 1987.
dades nascentes que não cessaremos de
encontrar no sonho, no delírio, na exalta-
ção criadora, no sentimento amoroso.
Pode-se perceber um movimento que
se conjuga a uma outra concepção de * Nízia Villaça é Professora da ECO/
subjetividade no contemporâneo. A partir UFRJ, Pesquisadora do CNPq, Coor­
das noções de complexidade, passibilidade, denadora do Grupo Ethos e autora
de Cemitério de mitos: uma leitura
coisificação e função poética procuramos de Dalton Trevisan, Paradoxos do
apontar nesta direção. pós-moderno: sujeito & ficção e Em
nome do corpo.

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