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Eixo I – Formação histórico-cultural

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura

Paulo Ormindo de Azevedo

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AZEVEDO, PO. Recôncavo: território, urbanização e arquitetura. In: CAROSO, C., TAVARES, F.,
and PEREIRA, C., orgs. Baía de todos os santos: aspectos humanos [online]. Salvador: EDUFBA,
2011, pp. 205-253. ISBN 978-85-232-1162-2. Available from SciELO Books
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Re côncavo:
território,
urba nização e
a rquitetura
Paulo Ormindo de Azevedo

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Até o n d e va i o Re cônca vo?

A pergunta acima coloca uma questão conceitual importante, onde começa e


onde acaba o Recôncavo. Acreditamos que não se pode falar de um só Recôncavo.
Como observou Milton Santos, o Recôncavo foi sempre mais um conceito histórico,
que uma unidade fisiográfica. (SANTOS, 1998, p. 62) Ele variou no tempo, crescendo
e diminuindo em função dos ciclos econômicos, mas deixando uma herança cultural,
material e imaterial, que sobreviveu a estes mesmos ciclos.
Dentro desta perspectiva tentaremos seguir a evolução do Recôncavo en-
quanto uma cultura regional formada nas relações de trabalho escravocrata da
agroindústria açucareira, que durou três séculos e meio, em meio a crises periódicas,
mas também experimentou na segunda metade do século XX o ciclo do petróleo
e da industrialização. Territorialmente esta economia não se restringiu à área do
massapé. Envolvia, também, os tabuleiros do tabaco, a agricultura de subsistência
e a produção de materiais de construção, no Baixo Sul, e a pesca em todo o litoral
da Baía de Todos os Santos.
Mas este sistema se dissolve na primeira metade do novecentos, com a crise da
agroindústria açucareira e a reestruturação das redes de comunicação e transportes.
Durante a segunda metade do século XX, o Recôncavo inicia outro ciclo econômico,
o da lavra do petróleo e da industrialização, que contempla apenas a região nordeste
da Baía de Todos os Santos. Por entre esses surtos e polos econômicos, sempre
existiu uma atividade de subsistência representada pela pesca, pelo extrativismo,
pelo criatório e agricultura familiar, e pelo artesanato que deu continuidade e caráter
a esta cultura regional. O Recôncavo apresenta, assim, uma grande diversidade
local dentro de uma unidade regional. Unidade que tem como principais fatores a
Cidade do Salvador e a Baía de Todos os Santos, como observou Costa Pinto (1998;
BRANDÃO, 1998a, p. 108).

O Recôn cavo f í si co
Com o nome de Recôncavo é conhecida desde o século XVII a faixa de terra
formada por mangues, baixios e tabuleiros que contornam a Baía de Todos os Santos.
Um “anfiteatro” com três degraus tendo como palco a Cidade do Salvador e como
“orquestra” a Baía de Todos os Santos. O Recôncavo é uma região de topografia baixa,
com exceção da zona de Cruz das Almas, onde a altitude média é de 200m.
Geologicamente a região é formada por uma fossa tectônica preenchida
por sedimentos cretáceos que segue em direção NE, terminando no baixo São
Francisco. Esta faixa sedimentar argilosa ou argilo-arenosa representa 60% da
área do Recôncavo e é limitada a leste pela Falha de Salvador e a oeste pela Falha

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de Maragogipe. Os restantes 40% são constituídos por dois maciços cristalinos.
(MATTOSO, 1978, p. 34) Na área de sedimentação cretácea ocorrem solos argilosos
profundos, poucos sujeitos à erosão, conhecidos localmente como massapés e
classificados como vertsolos.
Eles derivam da decomposição do calcário sob clima tropical úmido.1 São solos
de cor escura, muito ricos em materiais orgânicos, pouco permeáveis, mas que con-
servam a umidade durante muito tempo. Estes solos quando úmidos sofrem expan-
são e tornam-se muito pesados e plásticos. Quando secos, endurecem e contraem-se,
rachando. Por esta razão são muito difíceis de serem lavrados mecanicamente.2
A Baía de Todos os Santos, um antigo vale afogado, apresenta rias, como o
Iguape, e nela deságuam alguns rios navegáveis, como o Paraguaçu, o Jaguaripe
e o Subaé. Foi neste porto natural, situado no meio da costa brasileira, que os por-
tugueses fundaram, em 1549, a sede do governo colonial, depois do fracasso de
outras tentativas de colonização do país. A capital administrativa e praça-forte foi
construída no lado interno do maciço cristalino que separa a baía do Atlântico, na
crista da falha de Salvador, tendo a escarpa como muralha defensiva.

O Recôncavo histór ico


No início, eram os tapuias em volta da baía, depois surgiu a povoação do Pereira
(1536) e a partir de 1549 a cidade do Salvador. A partir de 1559, os portugueses am-
pliam seu domínio territorial através de duas guerras contra os índios e os expulsam
de parte dos vales de Jaguaripe e Paraguaçu para ali introduzirem a cana-de-açúcar.
Menos de quatro décadas depois da fundação de Salvador, Gabriel Soares de
Souza contava no Recôncavo 16 freguesias, 62 igrejas, 3 mosteiros de religiosos, 8
casas de cozer meles, 36 engenhos moentes e correntes, dos quais 15 eram movidos
por bois. Outros quatro engenhos estavam sendo construídos e a produção de açúcar
ultrapassava as 120.000 arroubas. (SOUZA, 1971, p. 162) No final do século XVI, o
rio Paraguaçu, desde o lagamar do Iguape até o seu trecho encachoeirado, estava
povoado em ambas as margens.
Paralelamente às funções primitivas – administrativa e militar – crescia a função
portuária de Salvador com a exportação do açúcar e a importação de escravos afri-
canos para produzi-lo e produtos manufaturados do Reino. Nos terrenos impróprios
à cana-de-açúcar, surgiu uma lavoura ancilar, o tabaco, que era trocado por escravos
na costa da África. Esta lavoura se desenvolveu nos tabuleiros, entre Cruz das Almas,

1 Situado a 13º de latitude sul, o Recôncavo apresenta um clima caracterizadamente tropical. Nas ilhas e na área
situada a SW da baía a precipitação pluviométrica anual é superior a 2.000mm. Nas zonas altas e secas a precipita-
ção não é inferior a 800mm.
2 O massapé ocorre em muitos municípios do Recôncavo, como Cachoeira (Iguape), Candeias, Itaparica, Mata de
São João, Pojuca, Santo Amaro, São Francisco do Conde, São Sebastião do Passé, Simões Filho, Teodoro Sampaio e
Terra Nova.

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passando por São Gonçalo dos Campos até Alagoinhas. Ao lado destas lavouras do
tipo plantation system desenvolveram-se outras de subsistência, especialmente a
da mandioca na bacia do Jaguaripe. O Recôncavo canavieiro, aquém Paraguaçu,
dependia enormemente do Recôncavo da subsistência, além Paraguaçu, para sua
sustentação alimentar, produção de barcos e suprimento de materiais de construção.
A destruição da Mata Atlântica para a expansão dos canaviais e queima de sua
madeira nas fornalhas de açúcar foi completa. Uma legislação de 1688, reforçada
em 1701, proibia a criação de gado em uma faixa de 10 léguas (60 km) da beira-mar
e rios para que os pastos não competissem com os canaviais e lavouras de fumo.
No final do século XVIII existiam na Bahia 276 engenhos.
A comunicação de Salvador com seu hinterland se fazia em um primeiro mo-
mento exclusivamente pela baía e seus prolongamentos naturais, a ria do Iguape e os
rios que nela deságuam até o limite de sua navegabilidade. Gabriel Soares, em 1587,
afirma que 1400 embarcações podiam ser facilmente requisitadas no Recôncavo se
o serviço real necessitasse. Todos os que ali viviam tinham seu barco ou canoa. Os
escravos e os pobres comiam quase exclusivamente farinha de mandioca, peixes e
mariscos. (AZEVEDO, 1982, p. 11-16)
Os rios tiveram uma importância relativa como canais de fluxo nesse imenso
território, já que eram navegáveis apenas em pequenas extensões de seu curso
baixo. Mas aos poucos eles vão sendo continuados por picadas de tropas e boiadas
em direção ao sertão e ao rio São Francisco, onde existiam grandes currais. Seus
vales foram vias importantes de penetração, local de produção agrícola e criatório
e eles próprios força motriz viabilizadora da expansão dos engenhos e fixação de
povoações, muitas das quais sugiram como pousos de boiadas.
No final do século XVII, são elevados a vila os principais portos da região:
Jaguaripe em dezembro de 1697, Cachoeira em janeiro de 1698 e S. Francisco do
Conde em fevereiro do mesmo ano. Curiosamente os termos dessas vilas são as
bacias dos rios que banham essas vilas. O maior desses termos, o de Cachoeira, ia
dos atuais municípios de Santo Amaro, a leste, Santa Barbara e Ipirá, ao norte, Rui
Barbosa e Lajedinho, a oeste, e Brejões e Amargosa, ao sul.
A cadeia de produção da agroindústria açucareira não se restringia à cana, à
lenha, ao tabaco, à mandioca, ao peixe e à cachaça. Incluía também o gado, uma
das mais presentes forças motrizes e de tração nos engenhos e importante fonte
de proteína. Este fato e a proibição de criar gado a menos de dez léguas da baía
explicam a extensão do termo de Cachoeira, que chegava até ao sopé do planalto,
depois conhecido como Chapada Diamantina. Entendido desta forma, o Recôncavo,
no século XVIII, chegava até a encosta da Chapada Diamantina.
No início do século XIX, o Recôncavo se expande novamente. Os terrenos dos
engenhos de “borda d’água” estavam cansados e faltava lenha para aquecer suas
fornalhas. Engenhos grandes com mil tarefas tinham apenas 30 a 60 cultivadas

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Questões de sucessão e herança complicavam também a produção. Surgem assim
engenhos bem menores localizados mais para o interior, chamados de engenhos
“mata adentro” fundados por novos e descendentes de senhores de engenho. Eram
engenhos que não ultrapassavam uma dezena de tarefas, mas possuíam terra virgem
e lenha em abundância. Além do mais, não estavam voltados exclusivamente para
a produção de açúcar para exportação, que sofria grande flutuação de preço, senão
para abastecer o mercado local, e complementados pelo criatório de gado e culturas
de subsistência.
Entre 1828 e 1834, foram fundados 141 novos engenhos, mas cerca de um
terço devia estar em Sergipe. Esta expansão se faz em duas direções: norte, seguindo
a faixa de massapé que passava por Terra Nova e chegava até Teodoro Sampaio,
distante 40 km da baía. Em direção oposta, tornejando a baía, chegava até o vale
de Jaguaripe, tradicional região de produção de farinha de mandioca e materiais
de construção. (AZEVEDO, E., 2009, p. 32-38) Durante a realização do Inventário
de Proteção do Acervo Cultural da Bahia encontramos engenhos na fronteira de
Sergipe, nos municípios de Entre Rios, Cardeal da Silva e Conde e na direção sul, nos
Tabuleiros de Valença, em Nilo Peçanha e Taperoá.3
No final do século XIX, a agroindústria do açúcar, que sempre viveu em altos
e baixos, devido ao protecionismo e à concorrência internacional, recebe seu tiro
de misericórdia devido a uma praga e ao agravamento da concorrência do açúcar
do Caribe. Nem a criação do Imperial Instituto Baiano de Agricultura (1877), em São
Francisco do Conde, e dos engenhos centrais estimulados pelo Governo Imperial,
como o Bom Jardim (1880), em Santo Amaro; Pojuca (1882), em Catu; e Iguape e
Rio Fundo (1886), em Santo Amaro, com tecnologia industrial, contornariam a crise
da agroindústria de exportação. (ARAÚJO, 2002, p. 108-123)
Sobreviveram umas poucas usinas com equipamentos adquiridos dos en-
genhos-centrais falidos, produzindo apenas para o Estado, em que se destacam a
Aliança (1892), em Santo Amaro; Cinco Rios (1900-1987), no distrito de Maracangalha,
em São Sebastião do Passé, e mais duas menores, do mesmo grupo, além de alguns
banguês na bacia do Jaguaripe produzindo para o mercado local. Por outro lado,
tentativas de industrialização do algodão da encosta da Chapada Diamantina com
a instalação de fábricas de tecidos grossos em Salvador e em Valença e de charutos
em Cachoeira, São Félix e Maragogipe fracassam, na primeira metade do século
passado, deixando um exército de mulheres sem trabalho nessas cidades.
Outro fator determinante da decadência do Recôncavo foi a substituição da
hidrovia pelas novas estradas de rodagem. As cidades portuárias do Recôncavo,
além de serem atingidas pela crise do açúcar e do fumo, experimentam um processo

3 Assinale-se em Entre Rios, o Engenho Buri; em Cardeal da Silva, os engenhos Cambuís e da Barra; em Conde, o
Engenho Rio Branco; em Nilo Peçanha, o antigo Engenho Mutumpiranga; e em Taperoá, o antigo Engenho Bom
Retiro.

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de marginalização frente às novas redes de transportes. A aprovação do Plano
Rodoviário Estadual, em 1917, e a unificação pelo Governo Federal, vinte anos mais
tarde, das ferroviárias criadas por aquelas mesmas cidades, tiraram destes centros
urbanos a condição de capitais sub-regionais, drenando toda a produção de suas
antigas áreas de influência diretamente para o porto de Salvador. (AZEVEDO, P.,
1982, p. 11-16)
Com a implantação da indústria automobilística nacional, no final dos anos
50, este processo se acelera e os produtos do sertão e da Chapada Diamantina já
não passavam pelos portos da região, iam direto a Salvador, ao tempo que Feira de
Santana e Alagoinhas, enlaces de vias ferroviárias e rodoviárias, ganhavam impor-
tância e formavam novas redes urbanas.

O Recôn cavo con tem porâne o


É neste quadro de decadência que ocorre a descoberta e início de exploração
do petróleo na falha geológica de Salvador, em Candeias, a partir de 1941. A indústria
do petróleo no Recôncavo se expande com o início da construção da Refinaria
Landulfo Alves (RLAM), em 1949, a criação da Petrobras, em 1953, e do Terminal
Marítimo de Madre de Deus (TEMADRE), no final dos anos 50. Thales de Azevedo,
em 1959, após caracterizar o Recôncavo como uma área ocupada há quatro séculos
pelo plantation system açucareiro, ressalta, citando G. G. Baroso, que:

Do ponto de vista do petróleo, entretanto, chama-se de Recôncavo uma área


muito maior, de natureza geológica característica, estendendo-se em forma
de faixa orientada aproximadamente no sentido Norte-Sul, da Baía de Todos
os Santos, inclusive suas ilhas, até uma linha que passa perto de Coração de
Maria, sul de Inhambupe e serra de Arapuá. Nessa área além da cultura da cana,
incluem-se fazendas de pecuária, lavouras de cereais e outras atividades rurais.
(AZEVEDO, 1998, p. 185-216)

A atividade petrolífera provoca profundas mudanças na economia, urbanização


e relações sociais da região. A lavra do petróleo era inconciliável com as atividades
tradicionais, como o canavial e a agricultura de subsistência, ou de novas, que
começavam a prosperar na região, como o cultivo do cacau, do dendê, de hortaliças
e a avicultura. O volume de recursos derramados na região sob a forma de salários,
contratos de serviços, compras efetuadas no mercado local era enorme e provo-
cava uma inflação local, especialmente na habitação e nos salários, que as demais
atividades não podiam acompanhar. Os poços de petróleo se esgotariam em um
quarto de século e a Petrobras concentra suas atividades na RLAM e no TEMADRE.

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Em 1958, L. A. Costa Pinto define Recôncavo como uma linha que, partindo
de Santo Amaro de Ipitanga, dirige-se a Mata de São João, São Sebastião do Passé,
Santo Amaro, Humildes, em Feira de Santana, envolvendo, a seguir, S. Gonçalo dos
Campos, Cachoeira, Conceição da Feira, Cruz das Almas, Conceição do Almeida,
Santo Antônio de Jesus, Nazaré, Aratuípe e Jaguaripe. Subdivide-o em cinco zonas:
da pesca e do saveiro, do açúcar, do fumo, do petróleo e zona urbana de Salvador.
(PINTO, 1998, p. 105)
Milton Santos, um ano mais tarde, com base em estudo pioneiro sobre a rede
urbana do Recôncavo, define a região com 25 municípios, incluindo aqueles que em
função dos novos meios de transporte passam a exercer centralidades muito fortes
na região, como Feira de Santana e Alagoinhas. Os municípios que integrariam a
região seriam:

Alagoinhas, Aratuípe, Cachoeira, Camaçari, Castro Alves, Catu, Conceição de Feira,


Conceição do Almeida, Coração de Maria, Cruz das Almas, Feira de Santana, Irará,
Itaparica, Jaguaripe, Maragogipe, Mata de S. João, Muritiba, Nazaré, Pojuca, S,
Antonio de Jesus, S. Amaro, S. Estevão, S. Feliz, S. Felipe, S. Francisco do Conde,
S. Gonçalo dos Campos, S. Sebastião do Passé, além de Salvador. (SANTOS,
1998, p. 61-62)

A adoção pelo Governo Federal de políticas visando o desenvolvimento do


Nordeste, idealizadas por Celso Furtado em 1959, possibilitou à Bahia deflagrar
um processo de industrialização numa das áreas mais tradicionais de engenhos
do Recôncavo. O Centro Industrial de Aratu (CIA), implantado em 1967, capta os
maiores créditos e incentivos fiscais do Banco do Nordeste e da Superintendência
do Desenvolvimento do Nordeste (SUDENE), no Nordeste. Mas a dispersão de in-
fraestrutura e recursos em um distrito industrial de 436 km2 sobre o massapê e a
pouca atratividade dos incentivos fiscais da SUDENE não levam ao sucesso esperado,
exigindo a reformulação do projeto, no início dos anos 80. Mais consistente foi o
projeto de criação do Complexo Petroquímico de Camaçari de autoria do econo-
mista Rômulo Almeida. O centro reúne, hoje, 90 empresas do setor petroquímico,
automotivo, de fertilizante e celulose.
O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), com base em estudos
realizados em 1967, reconhece pela primeira vez uma Região Metropolitana de
Salvador diferenciada do Recôncavo propriamente dito. Assim o antigo Recôncavo
seria dividido em duas microrregiões: 150 – Salvador, que além da capital compreen-
dia Camaçari, Candeias, Catu, Lauro de Freitas, Mata de São João, Pojuca, S. Francisco
do Conde e Simões Filho e 151 – Recôncavo baiano, compreendendo 35 municípios
que vão de Teodoro Sampaio a Jaguaripe, na direção N-S, e de Santo Amaro a Cruz
das Almas e Santo Antônio de Jesus, na direção E-W. As duas microrregiões totalizam

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área de 10.400 km2. Este tem sido o recorte utilizado pelos que têm estudado esta
região mais recentemente.4 Em 1973, o Governo Federal criou, entre outras, a Região
Metropolitana de Salvador (RMS), ligeiramente menor que a microrregião 150 do
IBGE. Com a inclusão de três novos municípios, entre 2008 e 2009, a RMS pratica-
mente coincide com a microrregião 150.5
A última definição de Recôncavo foi dada em 2007 com o Plano Plurianual
2008-2011 do governo do Estado da Bahia, que identificou 26 territórios de identi-
dade. O Recôncavo é o de número 21 e é formado por vinte municípios, inclusive
alguns muito distantes da Baía de Todos os Santos, como Governador Mangabeira,
Cabaceiras do Paraguaçu e Castro Alves.6 O território de identidade no 26, Região
Metropolitana de Salvador, que não coincide com a delimitação oficial da mesma
região, compreende Salvador, Lauro de Freitas, Camaçari, Dias d’Ávila, Simões Filho,
Candeias, Salinas da Margarida, Vera Cruz, Itaparica e Madre de Deus. É incom-
preensível a inclusão de Salinas da Margarida neste rol. O critério desta distinção,
aparentemente, é a estagnação e o dinamismo econômico e não os valores da
identidade e pertencimento.
Como se vê, o recorte do Recôncavo tem mudado segundo os ciclos eco-
nômicos. O Recôncavo açucareiro dos séculos XVII, XVIII e XIX não tem o mesmo
recorte, nem o do petróleo, de meados do século XX, ou o atual que excluiu a área
não industrializada. Resta saber o que se sedimentou como cultura identitária, não
só nas manifestações materiais, como a arquitetura, a arte e o artesanato, como
nas imateriais ainda vivas, incluindo modos de ser e de fazer, celebrações e crenças.

U ma r e d e d e p o r to s, p ou sos e rótu l as

O ri gem das vi l as e c i d ade s


Para compreendermos o processo de urbanização ocorrido no Recôncavo
é preciso analisar a origem dos primeiros povoados e vilas e sua estruturação em
redes. Isto é importante, inclusive, para compreendermos a forma urbana dessas
vilas e cidades e sua arquitetura.

4 Segundo o IBGE, a Microrregião do Recôncavo (151) compreende os municípios de Amélia Rodrigues, Aratuípe,
Cachoeira, Conceição de Feira, Conceição do Almeida, Conceição do Jacuípe, Cruz das Almas, Dom Macedo Costa,
Governador Mangabeira, Itaparica, Jaguaripe, Maragogipe, Moniz Ferreira, Muritiba, Nazaré, Salinas da Margarida,
S. Amaro, S. Antônio de Jesus, S. Félix, S. Felipe, S. Gonçalo do Campo, S. Sebastião do Passé, Sapeaçu, Teodoro
Sampaio, Terra Nova e Vera Cruz.
5 Originalmente, a RMS compreendia: Salvador, Camaçari, Lauro de Freitas, Simões Filho, Candeias, Vera Cruz, S.
Francisco do Conde e Itaparica. Houve dois desmembramentos de municípios e a inclusão, pelo Estado da Bahia,
em 2008, de Mata de São João e S. Sebastião de Passé e, em 2009, de Pojuca.
6 Dados disponíveis em: <www.sei.ba.gov.br/site/geoambientais/cartogramas/território_identidade/pdf//reconca-
vo.pdf>. Acesso em: 03 abr. 2010. O T. de Identidade no. 21, RMS, compreende: S. Sebastião do Passé. S. Francisco
do Conde, S. Amaro, Saubara, Cachoeira, S. Félix, Governador Mangabeira, Muritiba, Cabaceiras do Paraguaçu,
Cruz das Almas, Maragogipe, Sapeaçu, Castro Alves, Conceição do Almeida, S. Felipe, D. Macedo Costa, Nazaré e S.
Antônio de Jesus.

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Povo a çõe s S e nt i ne l as
O processo de urbanização do Recôncavo obedeceu em um primeiro momento
a critérios defensivos e administrativos. De alguma forma ele reproduz a própria fun-
dação de Salvador, em 1549, como cidade-porto e cidadela. Cairu, localizada em uma
ilha, e Morro de São Paulo, com sua enorme fortaleza, são exemplos emblemáticos.
Não é sem razão que Jaquaripe, situada na entrada da “barra falsa” da Baía de Todos
os Santos e foz de um rio navegável, foi a primeira povoação, depois de Salvador, a
ser transformada em vila, em 1697, seguida por Cachoeira, no limite de navegação
do Paraguaçu, e São Francisco do Conde, no ano seguinte.
Estas são vilas mononucleares edificadas sobre pequenas colinas ou na parte
mais elevada da ribeira, dominando o mar e o interior, de onde poderiam vir ataques
indígenas. Devido à topografia mais amena da região, não se repetiu o modelo
bipolar luso introduzido em Porto Seguro e repetido em Salvador, ou seja, cidades
construídas em acrópole tendo a seus pés o porto. Nesse caso, o casario do núcleo
administrativo e religioso escorre suavemente até a margem da baía, mas sem
separação entre a vila e o porto. O mesmo modelo foi seguido em Maragogipe, no
delta do Guaí.
Nesta categoria de povoações sentinelas podemos incluir também Itaparica,
antiga Ponta da Baleia, uma armação de pesca do cetáceo que servia ainda a vigiar
e assegurar a passagem dos víveres provenientes do vale do Jaguaripe e Baixo Sul
para o Recôncavo e Salvador pelo Canal de Itaparica. Esta função militar foi posta
à prova com sucesso durante as lutas de independência, em 1823.
O castelo de Garcia D’Ávila sobre uma colina e a povoação de Tatuapara junto
ao porto, atual Praia do Forte, era um ponto avançado de vigilância na entrada da
Baía de Todos os Santos. Este castelo teve uma importante função de transmissão
de alertas da aproximação de barcos inimigos. Mensagens cifradas de fumo e tochas
eram transmitidas de sua torre para a cadeia de aldeias jesuíticas e outras povoações
até chegar a Salvador. (AZEVEDO, 1982)

A ldeia s Je su í t i cas
Algumas cidades da hoje Região Metropolitana de Salvador (RMS) nasceram
de missões jesuíticas transformadas em vilas, quando da expulsão da ordem pelo
marquês de Pombal, em 1759. Elas formavam uma rede ao longo do Litoral Norte,
que ligava Salvador a Olinda e servia de pouso a boiadas e tropas de mulas. O melhor
exemplo conservado desse urbanismo é a Vila de Abrantes, antiga aldeia do Divino
Espírito Santo, fundada em 1558, em Camaçari, embora seu terreiro tenha sido
reduzido em um terço no início da década de 1960. A rede incluía ainda as aldeias
de São João, atual Mata de São João, e Santo Antônio do Arguim, ou Massarandupió,
no mesmo município.

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Eram aldeias constituídas por um amplo terreiro retangular com uma igreja
em uma das cabeceiras. De cada um de seus cantos saíam caminhos que condu-
ziam a outras aldeias, à praia e à mata. Este esquema foi adotado trinta anos mais
tarde nos arraiais de Trancoso e Vale Verde, em Porto Seguro, e em Olivença, em
Ilhéus. Segundo documento do Arquivo Histórico Ultramarino de Lisboa (n° 1041),
integrante do Fundo Eduardo Castro de Almeida, tinha a mesma planta a aldeia
de N. S. dos Prazeres de Jequiriçá, dizimada por pestes, que ficava no caminho que
ligava a aldeia de Santo Antônio dos Índios, atual Aratuípe, à Chapada Diamantina
e ao rio São Francisco.
Segue também este modelo a antiga vila de Santo Amaro de Ipitanga, em Lauro
de Freitas. Pela sua forma urbana e localização, a meio caminho entre Itapuã e a Vila
de Abrantes, é provável que tenha sido uma pequena redução jesuítica, embora
não exista comprovação documental. Para além da RMS, existiam as aldeias de
Itapicuru de Baixo, atual Conde, e Abadia, famosa feira de gado, quase na fronteira
com Sergipe.7 Por entre essas aldeias haviam algumas povoações, como Itapuã,
onde primeiro se estabeleceu Garcia D’Ávila e Tatuapara, onde ele estabeleceu seu
quartel general definitivo para a conquista do sertão com seus currais. Ao longo
desse caminho, que cortava a bacia dos rios que deságuam diretamente no Atlântico,
se estabeleceram, no início do século XIX, alguns engenhos.

Povo a çõ es de E ngenho s
Nas vilas criadas no final do século XVII, as funções de sentinela e administração
foram logo sobrepujadas pela portuária, como ocorreu em Salvador. Cachoeira
foi precedida, ainda no final do século XVII, pela aldeia jesuítica de Santiago do
Iguape, mais próxima da foz do Paraguaçu. A preponderância das funções portuária
e comercial sobre as demais fez com que povoações mais interioranas situadas no
limite de navegação desses rios tivessem maior crescimento, como é o caso de
Nazaré das Farinhas, Cachoeira e Santo Amaro. Além do mais, elas se especializaram,
a primeira como porto de subsistência e materiais de construção, a segunda como
porto fumageiro e a terceira como açucareiro, o que evitou a concorrência entre
elas. (SANTOS, 1998, p. 70-71)
Nos três casos, engenhos deram origem a povoações que antecederam a cria-
ção das sedes administrativas. Jaguaripe, na foz do mesmo rio, controlava a entrada
a uma rica bacia de produção de mandioca, materiais de construção – madeira,
pedra, cal, telha, tijolo – e utensílios de cerâmica. Ainda no final do século XVI, ali
teve engenho Gabriel Soares de Souza. Nazaré das Farinhas, situada no limite de
navegação do mesmo rio Jaguaripe, nasceu também de um engenho pertencente
a Fernão Cabral de Athaíde (1584).

7 Azevedo (1984, v. 1, p. 5; 1982a, v. 2, p. 25, 267; 1999, v. 6, p. 117).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 215

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Em Cachoeira, um primeiro engenho foi instalado no local por Rodrigo Martins,
seguido por outro de Álvaro Rodrigues Adorno, ainda no final do século XVI, mas
foram hostilizados pelos índios e recuaram. Finalmente, em 1654, João Rodrigo
Adorno estabeleceu definitivamente seu engenho e capela no local. A povoação
foi elevada a vila em 1698. São Francisco do Conde, na foz do Subaé, nasceu onde
existia o Engenho Real de Sergipe do Conde (1563), pertencente a Francisco de Sá,
filho de Mem de Sá. Mas o chamado ponto de rotura de carga era a povoação de
Santo Amaro da Purificação, onde existia uma capela de Santo Amaro, edificada
pelos beneditinos.8
Nestes portos, terra adentro, a produção local de açúcar, cachaça, fumo e
farinha era embarcada em saveiros para Salvador para serem exportadas. Outros
produtos, como azeite de dendê, piaçava, peixe seco, cerâmicos, bem como os vindos
do sertão – bois, carne seca, couro e salitre – eram enviados à capital e a outras vilas
e povoações da Baía de Todos os Santos, para consumo local. No retorno de Salvador
os saveiros, tangidos pela viração da tarde, traziam escravos africanos e produtos
importados da metrópole, como tecidos, ferramentas, pólvora, bacalhau, azeite e
vinho, que nessas vilas parte trocava o saveiro pelo lombo do burro para chegar ao
sertão e às barrancas do São Francisco.
A riqueza dessas vilas fluviais se deve, não só à produção regional de exportação,
como ao intenso comércio com Salvador e o sertão. Estas são cidades de fundo de
vale desenvolvidas nas duas margens de um rio. Em consequência desta condição
geográfica elas se desenvolveram seguindo duas diretrizes lineares paralelas ao rio,
depois ligadas por pontes. Este é o modelo seguido, também, por Valença, cortada
pelo rio Una.

Feira s e p ou sos d e gad o


Os bois, ao lado das quedas d’águas, eram uma das principais forças motrizes e
de tração nos engenhos, mesmo depois da introdução do vapor, no início do século
XIX, além dos primeiros serem também uma das principais fontes de proteínas dos
brancos. Pode-se, portanto, imaginar a importância de seu comércio na região. Mas
eles tinham que vir de longe, pois, como já vimos, legislações de 1688 e de 1701
proibiam sua criação em uma faixa de 10 léguas (60 km) da ribeira da baía e de rios
do Recôncavo. Ao longo de estradas e caminhos por onde descia o gado do São
Francisco, nos locais de pouso e aguada surgiram vilas e cidades.
Dias d’Ávila é uma delas. Ali existia a famosa feira de Capuame, local de co-
mercialização de bois de tração, mulas e cavalos para carga e montaria. Eram as
boiadas que desciam pelo litoral vindas de outra feira famosa a de Abadia. A partir

8 Azevedo (1982a, v. 2, p. 93-100, 159-166; 1982b, v. 3, 27-38, 159-166, 239-246, 329-334).

216 | Baía de Todos os Santos

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de 1614, Capuame passou a ser conhecida como Feira Velha, quando se firma Olhos
d’Água, atual Aramari, melhor localizada para distribuição do gado no Recôncavo
em consequência de novos caminhos para o sertão.
Depois da expulsão dos holandeses, se abriram novas estradas de boiadas, mais
interioranas e curtas, ligando Cachoeira ao médio São Francisco. Uma dela saía de
Cachoeira, passava por Capoeiruçu, chegava a Santana de Olhos d’Água, onde se
consolidou uma grande feira de gado, a Feira de Santana. Neste ponto a estrada se
bifurcava, um ramo indo para Jacobina e o Piauí outro para Juazeiro e Pernambuco.
À margem desta última estava Alagoinhas, que abrigou uma feira de gado de relativa
importância reforçada pela chegada da ferrovia.9 (AZEVEDO, 1982, p. 20-23)
Dias D’Ávila, Aramari, Feira de Santana e Alagoinhas são todas cidades nascidas
de feiras de gado e integravam o Recôncavo canavieiro, pois a cadeia produtiva do
açúcar incluía necessariamente o gado. Essas cidades, todas elas situadas ao longo
de estradas de boiadas, que foram depois superpostas por ferrovias e rodovias, se
transformam em nós de uma nova rede tendo como cabeça Salvador, mas diversa
daquela vigente até o final do século XIX com base nas vilas fundadas na transição
do século XVII para o XVIII. Milton Santos constata, em 1959, a centralidade exercida
por Feira de Santana e Alagoinhas na região, roubada das vilas-portos e em especial
de Cachoeira.

S a ntuá r io s de peregr ina çõe s


Não são muitas as vilas e cidades que tiveram esta origem no Recôncavo. Um
caso típico de povoação nascida de local de peregrinação é Candeias. Naquele local,
em terras de um engenho pertencente aos jesuítas, fiéis construíram em 1641 uma
capelinha no topo de uma colina em cuja fralda existia uma fonte milagrosa. O local
se transformou em um centro de peregrinações, especialmente no dia da padroeira,
Nossa Senhora da Purificação, 2 de fevereiro. Surge assim uma povoação que daria
lugar à vila que a partir de 1958 é a sede de município emancipado de Salvador.10
Maragogipe é outra vila desta origem. Deve ser do início do século XVII a
peregrinação a este local na última 2ª feira de agosto. A criação da paróquia, se-
gundo alguns autores, é de 1640 e a igreja atual, com galerias laterais abertas para
abrigar peregrinos, data de 1680, para outros autores. Não há uma tipologia especial
dessas povoações, mas neste caso, como no de Candeias, a capela que deu origem
à povoação estava no cume de uma elevação.
A vila de Santo Amaro nasceu em volta da capela da mesma invocação edificada
pelos beneditinos em terreno de 400 braças em quadra, que ganharam em 1607 de
Gonçalo Alves, que o havia adquirido cinco anos antes de Dona Felipa de Sá, filha

9 Ver: Azevedo ( 1999, v. 6, 20-23).


10 Ver também Azevedo (1982a, v. 2, p. 37-38, 93-100, 135-136; 1982b, v. 3, p. 185-194).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 217

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de Mem de Sá. O local não era propriamente um santuário de peregrinação, mas a
povoação nasceu de uma motivação religiosa e se desenvolveu pelo fato de estar
no limite de navegação do Subaé.

Form ação da re de ur bana


Independente da origem, as vilas e cidades do Recôncavo formavam redes.
A cidade do Salvador exerceu uma centralidade muito forte em todo o Recôncavo
durante quatro séculos, mas tinha uma característica particular, a sua excentricidade
espacial e descontinuidade territorial com o hinterland, o que fugia de teorias como
a dos lugares centrais de Christaller. Esta característica particular da Baía de Todos os
Santos e seu recôncavo determinou o aparecimento na região de uma macrorrede
com algumas redes subsidiárias.
Quem primeiro estudou a rede urbana do Recôncavo foi Milton Santos, num
momento em que a região passava por grandes transformações com a lavra do
petróleo. Ele não faz referência a este fato em seu artigo, ou porque já havia sido
esgotado por Costa Pinto e Thales de Azevedo, ou porque ele identifica um processo
de mudança no Recôncavo, anterior e mais profundo que a presença da Petrobras,
aquele deflagrado pela revolução dos transportes. Com um olhar de geógrafo,
ele identifica três gerações de cidades na região, que de alguma formaram redes
sucessivas:

Jaguaripe, Cairu, S. Francisco do Conde, à imagem e semelhança de Salvador,


implantadas sobre o cocuruto dos morros, numa posição a um tempo de defesa
e de posto avançado, na foz de um estuário (Jaguaripe) ou de um rio(S. Francisco
do Conde), numa ilha (Cairu) sempre perto do mar.
Cachoeira, Nazaré, S. Amaro correspondem a uma segunda geração, núcleos
criados a beira-rio, no limite de navegação fluvial. São cidades de vale, compri-
midas entre morros, estendendo-se de forma linear [...]
À derradeira geração – a terceira – pertencem Feira de Santana e Alagoinhas,
cidades da era do transporte mecânico, surgidas em áreas planas, com ruas
largas e abertas ao sol segundo um plano que, apesar das tentativas mais
recentes de racionalização, não esconde a sensível influencia das estradas.
(SANTOS, 1998, p. 80)

Este esquema apresenta algumas lacunas, como a omissão da rede de aldeias


jesuíticas, já vista, formada a partir de 1558, que embora contemporânea à primeira
geração de povoações não tinha função defensiva, senão primordialmente de co-
municação num trecho da costa brasileira muito sujeita a calmarias. Era uma rede
linear e balizadora da estrada de ligação de Salvador com Olinda, por onde descia

218 | Baía de Todos os Santos

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parte das boiadas do São Francisco parando na feira de Abadia, na fronteira com
Sergipe, e terminando na feira de Capuame, atual Dias D’Ávila.
Além do tráfego de boiadas, animais de cargas e pessoas, esta rede teve uma
importante função de advertir Salvador, mediante fumo e tochas, da aproximação
de barcos inimigos. Estas mensagens eram transmitidas da almenara ou torre de
Garcia D’Ávila para a aldeia de São João (Mata de São João) e retransmitidas pela
do Espírito Santo (Abrantes) para as povoações de Itapuã e Rio Vermelho e dali para
Salvador. (AZEVEDO, 1982)

A rede de vila s-po r to s


Em tese recente, Adriano Bittencourt Andrade, com farta documentação
cartográfica e documental, analisa a formação da rede de vilas setecentistas no
Recôncavo. São cinco as vilas elevadas a esta condição num espaço de apenas trinta
anos: Jaguaripe (1697), Cachoeira (1698), São Francisco do Conde (1698), Maragogipe
(1724) e Santo Amaro (1727). Elas revelam uma política da Coroa de exercer o domínio
sobre redes urbanas preexistentes, que davam acesso ao sertão, no momento em
que se descobria ouro em Minas Gerais e no sertão da Bahia. A transformação desses
portos em vilas tinha como objetivo controlar o contrabando, a evasão de impostos
e os conflitos sociais nessas áreas, através de portais administrativos e fiscais de
ingresso ao interior. Nenhuma outra vila é criada no século XVIII no Recôncavo.
Com razão o autor considera como Recôncavo o limite político dos termos
dessas cinco vilas. Este era de fato o Recôncavo do século XVIII, que incluía além da
região da produção da cana, do tabaco e da mandioca, também o vale do Paraguaçu,
onde estavam grandes currais de reprodução da força motriz, os bois, de grande
parte dos engenhos de açúcar. (ANDRADE, 2010)
De cada uma dessas vilas-portos, marítimas ou fluviais, saíam caminhos ao lon-
go dos quais se fixaram populações. A hidrografia comandou a formação dos termos
dessas cinco vilas, refletindo suas áreas de influência. São todas bacias hidrográficas.
A maior delas, a do rio Paraguaçu, correspondendo ao termo da vila de Cachoeira
ia até o sopé da Chapada Diamantina. Seguia-se a bacia dos rios que deságuam
diretamente no Atlântico, formadora do termo de Salvador; do rio Jaguaripe, que
definiu o termo e deu nome à vila; do Subaé, correspondente ao termo da vila de
São Francisco do Conde, de onde se desmembrou em 1727 Santo Amaro, e do Guaí,
delimitadora do termo de Maragogipe.
No Litoral Norte, na bacia dos rios que deságuam diretamente no Atlântico,
surgiu, como já vimos, a rede das antigas aldeias jesuíticas ao longo do caminho
litorâneo que ligava Salvador a Olinda e que deu origem a algumas povoações e vilas
como Itapuã, Lauro de Freitas, Vila de Abrantes, Mata de São João e Massarandupió.
Na bacia do Subaé, as povoações surgem em volta dos engenhos e mais tarde das

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usinas, que reuniam uma grande quantidade de mão de obra. Na bacia do Paraguaçu,
que corresponde ao termo da Vila de Cachoeira, onde prevalecia o minifúndio do
tabaco, nos pontos de comercialização do produto e pouso das tropas que do sertão
e Chapada demandavam os portos de São Félix e Maragogipe.
No Recôncavo Sul, da subsistência, relativamente isolado de Salvador pela
maior distância e pelo mar aberto, forma-se uma rede em torno do porto de Nazaré,
que incluía as vilas de Cairu, Valença, Jaguaripe, Aratuípe e Santo Antônio de Jesus,
esta situada na transição dos tabuleiros para a encosta da Chapada Diamantina.
Nessa época, como sugere Maria Brandão, o Recôncavo incluía em sua economia
o Baixo Sul, grande produtor de alimentos, até pelo menos a Baía de Camamu.
(BRANDÃO, 1998b, p. 30)
Todas essas pequenas redes se ligavam a Salvador e entre si, prioritariamente,
através de saveiros e, mais tarde, navios de pequeno calado. A Baía de Todos os
Santos foi importantíssimo meio de comunicação e trocas. Sua navegação não se
restringia à ligação entre cada uma dessas vilas e Salvador. Nem todo o comércio
era de exportação e importação. Havia um enorme tráfego transversal neste me-
diterrâneo baiano.
O Recôncavo canavieiro, aquém Paraguaçu, dependia enormemente do
Recôncavo além Paraguaçu, do tabaco, da renovação dos bois de tração, da subsis-
tência e da produção de barcos e provisão de materiais de construção. Infelizmente
não ficaram registros das esteiras desses saveiros para conhecermos a origem e o
destino de seus deslocamentos pendulares na baía, ao ritmo do terral matutino e
da viração vespertina. Havia também caminhos ligando essas redes. Cachoeira, pela
localização interior profunda, e extensão de seu termo, tinha um maior protagonismo,
que as demais vilas. Mas nenhuma, inclusive Cachoeira e Santo Amaro, chegava
a ser uma capital regional, pois todas dependiam do porto de Salvador para as
suas exportações e importações. Seriam relais. Milton Santos preferia chamá-las de
capitais sub-regionais. (SANTOS, 1998, p. 88-89)
Podemos, portanto, considerar que existia uma macrorrede urbana regional,
que ligava sua cabeça, Salvador, a cidades-portos à margem da Baía de Todos os
Santos, que formavam, por sua vez, redes sub-regionais. A das aldeias jesuíticas
do Litoral Norte tinha uma conformação linear, as de Cachoeira, Santo Amaro e
Maragogipe podem ser consideradas de conformação arbórea e a de Nazaré de tipo
lugar central, embora depois se estendesse linearmente em direção ao sudoeste,
até Jequié.
Se a formação dessas redes está intimamente ligada às bacias hidrográficas
que deságuam na Baía de Todos os Santos, recorremos à geografia, e mais espe-
cificamente aos estudos de drenagem, para classificar a macrorrede urbana do
Recôncavo, que tinha como cabeça Salvador, como de padrão anelar. A baía com seu
colar de vilas periféricas é o grande estuário, a grande bacia de integração das redes

220 | Baía de Todos os Santos

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urbanas sub-regionais. Existiam, como dissemos, estradas transversais, de menor
importância, pois nessas ligações o saveiro levava vantagem sobre a montaria e a
tropa de burros. Mas são elas que no ciclo do transporte mecânico vão viabilizar a
criação de uma rede anelar de estradas de rodagem envolvendo a Baía de Todos os
Santos, desbancando a rede de vilas-portos.
O mesmo autor identifica três conjuntos de fluxos no Recôncavo do setecen-
tos e que perduram até o final do Império. O interno, incluindo o abastecimento
alimentar, o suprimento de materiais de construção e a movimentação de roceiros e
mascates. O associado a outras regiões, em especial ao sertão, com a movimentação
de boiadas e tropas, e às minas, envolvendo deslocamento de escravos, o contra-
bando de ouro e diamantes e a movimentação de caixeiros viajantes; e finalmente
o ligado ao comércio marítimo, que incluía o açúcar e a cachaça, o tabaco e os
escravos e a farinha de mandioca, ou de guerra, que foi muito exportada para a
África. (ANDRADE, 2010)

A nova rede do tra nspo r te m otor i z ad o


Na segunda metade do século XIX, com o advento do vapor, essas vilas am-
pliaram sua área de influência, criando ferrovias que drenavam os produtos de suas
bacias hidrográficas para seus portos. Entre 1860 e 1863 constrói-se uma ferrovia
que ligava Salvador a Alagoinhas. O imperador D. Pedro II autoriza, em 1865, a
construção da Estrada de Ferro Central da Bahia para trazer a produção mineral da
Chapada Diamantina ao porto de São Félix. Depois de uma paralisação de nove anos,
a ferrovia, cruzando o Paraguaçu, atingiria Feira de Santana, em 1885, e na outra
direção, Machado Portela, em 1887.
Nazaré, sem apoio oficial, inicia em 1871 a construção de uma ferrovia que,
quatro anos depois, chegaria a Onha e, em 1880, atingiria Santo Antônio de Jesus.
Dois anos depois chegava a Amargosa. Mais tarde, seria estendida até Jequié. Em
1906, com dificuldades econômicas, é encampada pelo Governo Federal e estendida
ao porto de São Roque, em 1940.11 Santo Amaro inaugura em 1883 uma linha férrea
de 36 km, que chegava até Jacu e atendia a engenhos e, depois, usinas de açúcar.
Por outro lado, a Lei Provincial no 590, de 1856, promove a criação de uma estrada
carroçável entre o porto de Maragogipe e São Felipe, concluída em 1858. (TEIXEIRA,
1998, p. 52)
Os avanços viários promovidos por estas cidades acabam se voltando contra
elas próprias, com a integração das ferrovias e o advento do caminhão. Pouco a
pouco, as atividades portuárias das vilas originárias do século XVIII vão diminuindo,
à medida que Feira de Santana, terminal da Estrada de Ferro Central da Bahia e início

11 Vide Azevedo (1982b, v. 3, p. 109-110, 271-272).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 221

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da Linha Norte da Viação Férrea Federal Leste Brasileiro (VFFLB), que se dirigia para
Sergipe, se transformava no grande centro de distribuição dos produtos do sertão.
A centralidade de Feira de Santana aumenta com a articulação da rede ferrovi-
ária com a rodoviária que começava a crescer. Um Serviço de Estradas de Rodagem
é criado na Bahia em 1917, pela Lei 1227, e neste mesmo ano aberto um crédito
extraordinário para a construção da estrada Salvador-Feira de Santana. (TEIXEIRA,
1998, p. 62-63) Processo semelhante ocorre em Alagoinhas, cruzamento da Linha
Norte com a Linha Tronco da VFFLB, que se dirigia a Juazeiro. É o que Milton Santos
chamou de terceira geração de cidades do Recôncavo e que formam uma nova rede.
A decadência da lavoura de cana e subsequentemente do tabaco e a rees-
truturação do sistema de transportes marginalizam os portos da Baía de Todos os
Santos e destroem a antiga rede urbana do Recôncavo, cujas cidades, vivendo de
uma economia de subsistência, passam a se relacionar, a partir da década de 30, mais
com Feira de Santana que com Salvador. A produção industrial de óleo de dendê,
celulose de bambu e chumbo, a extração de areia do Paraguaçu para a construção
e a introdução de cítricos e aviários não conseguem mudar o quadro de marasmo
e pobreza, não só material como de quadros, descrito por Fernando Pedrão (1998).
De uma região inserida na economia internacional, um dos maiores produ-
tores de açúcar do mundo, como foi até meados do século XIX, o Recôncavo não
encontrou no século XX outras atividades econômicas que pudessem lhe servir de
suporte econômico e viabilizar a preservação do seu rico legado cultural. Apenas
seu setor nordeste consegue se reestruturar em função da atividade petrolífera e
petroquímica formando a Região Metropolitana de Salvador (RMS). Por falta de
lideranças e quadros, o Recôncavo não soube aproveitar oportunidades, como o
programa do Pro-Álcool (1975) e o recente de biodiesel, embora possua uma larga
tradição de produção de cana e dendê.

Form a e cultura ur bana


Não obstante a diversidade da origem e função das vilas e cidades do
Recôncavo – defesa, porto, entreposto, produção agropecuária – todas apresentam
traços comuns. O primeiro deles é certa organicidade no ajustamento à topografia.
Nenhum modelo geométrico a priori. No embate entre a reta e o arco prevalece
sempre a curva, mas a curva de nível, o que lhe dá certa racionalidade, sem a rigidez
e esquematismo do xadrez. São os fluxos dos rios, dos caminhantes, da tropa e em
sua ampliação do carro e caminhão que comandam o seu traçado.
Por isso as ruas das cidades do Recôncavo são hierarquizadas. Temos ruas
direitas, mais largas, mas nunca diretas ou retas, por onde passam esses fluxos, e
travessas, mais estreitas, de articulação e retorno. São ruas corredor, delimitadas por

222 | Baía de Todos os Santos

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casas ou sobrados contínuos. Por essas ruas passavam e passam procissões e paradas,
e ao longo delas pequenas capelas ou nichos dos passos da paixão.
Muitas dessas ruas se bifurcam formando espaços triangulares ou trapezoidais,
a exemplo dos largos da Matriz, em Maragogipe; Aclamação, em Cachoeira e da
Bandeira, em Jaguaripe. Seguindo o exemplo de Salvador, o poder civil quase nunca
comparte o espaço com o religioso.
Dinâmica diversa têm as aldeias jesuíticas. Partem de terreiros ou praças pro-
jetadas e se expandem livremente, como a Vila de Abrantes e Santo Amaro de
Ipitanga, com uma grande igreja em uma das suas cabeceiras. Nisso se parecem
com Santo Amaro, nascida também em função de uma igreja, com a matriz em uma
das extremidades e a Casa de Câmara e Cadeia na outra da Praça da Purificação.
É a exceção que confirma a regra.
São nesses largos e praças, quando à beira-mar ou rio que se realizam as feiras
semanais. Na praça Cel. José Bitencourt, junto a velho porto, em Nazaré, se realizam
as tradicionais feiras dos caxixis, e até há poucas décadas, da banana e da farinha,
sob o portal do Sobrado dos Arcos, como em Salvador no período colonial. Em
Jaguaripe, é sob as arcadas do subsolo da Casa de Câmara e Cadeia, junto ao porto,
que se realizava a feira, com produtos trazidos de barco. Em Cachoeira é também
no cais, em cuja proximidade existiam sobrados com arcarias, que se realiza ainda
hoje a feira de São João.
São em largos e praças que se realizam ternos anunciadores, reisados, conga-
das e o levantamento da Bandeira do Divino, em Jaguaripe e Cairu. A Irmandade
da Boa Morte e terreiros de candomblé preservam a cultura dos antigos escravos
em Cachoeira com procissão e lavagem de igrejas. A participação nas lutas pela
Independência da Bahia é relembrada anualmente no 25 de Junho e 2 de Julho com
o encontro dos carros do caboclo e da cabocla nas ruas de Cachoeira e São Félix.
Filarmônicas de longa tradição estão se renovando no Recôncavo. E Maragogipe
preserva um dos carnavais de rua mais típicos da região, com fantasiados e masca-
rados. Tradições que estão se perdendo por falta de apoio governamental.

D a ca sa - gra n d e à ma tri z

O Recôncavo foi um importante laboratório de arquitetura no período colonial.


Ali nasceu a capela com planta em cruz de Santo Antônio, a Escola Franciscana de
Arquitetura do Nordeste e a matriz assobradada, que se difundiria por todo o país.
Devido à limitação de espaço, nos concentraremos na arquitetura do Recôncavo
e ilhas, com referências passageiras a Salvador. As observações feitas aqui estão
todas referendadas ao nosso Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia,
onde o leitor pode encontrar mais informações, plantas, fotos e bibliografia sobre

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 223

BTS_2.indb 223 01/12/2011 12:01:48


os edifícios aqui descritos.12 Lamentavelmente muitos dos edifícios citados estão em
ruína ou já desapareceram. Este é em parte um resgate arqueológico da arquitetura
do Recôncavo.

A rqui tetura re ligiosa

O s a to re s
A formação de uma arquitetura religiosa típica do Recôncavo não tem uma
única origem. Ela resulta da contribuição de diferentes ordens religiosas, do clero
secular e de laicos reunidos em comunidades rurais e urbanas. Destacam-se entre as
ordens religiosas os franciscanos e entre os laicos as ordens terceiras ou irmandades.
Pequena foi a presença de conventos de freiras no Recôncavo. Assinale-se apenas
o de N. S. dos Humildes (1793-1870), em Santo Amaro, construído e reformado ao
longo de quase um século por diversos capelães.13

j esuíta s
A atuação dos padres da Cia. de Jesus no Recôncavo se concentrou em Salvador,
e no Litoral. Em Salvador eles tinham o Colégio de Jesus, fundado em 1549 e am-
pliado três vezes, a última em 1657-72; o Noviciado da Anunciada da Jequitaia, ou
Colégio dos Órfãos de São Joaquim (1706-28); o Seminário de Nossa Senhora da
Conceição (1756-57), no Solar do Ferrão, além da Quinta do Tanque, (final do século
XVI) e a Casa de Oração (1757).14 Fora de Salvador, à margem da Baía de Todos
os Santos, tinham a Capela de Escada, na atual Av. Suburbana, doada por Lázaro
Arévolo, em 1572.
No Recôncavo possuíam as aldeias de Santo Antônio do Iguape (1561), em
Cachoeira, e Santo Antônio dos Índios, em Aratuípe, a Fazenda de Nossa Senhora
da Penha, em Vera Cruz, doada em 1689 pelo Pe. José de Andrade e Sá na condição
de construírem uma capela.15 Eram proprietários, também, do engenho Real de
Sergipe, em São Francisco do Conde, doado ao Colégio de Santo Antão de Lisboa
por D. Felipa de Sá, filha de Mem de Sá, casada com Dom Fernando de Noronha,
Conde de Linhares. O engenho fora construído por seu irmão, Francisco, em 1563.
Em seu território os jesuítas edificaram a igreja de N. S. da Purificação, que ruiu em
1678, e eles não a reconstruíram mais.

12 Ver: Inventário de Proteção do Acervo Cultural da Bahia - IPAC-Ba, Coordenado por Paulo Ormindo de Azevedo (1984,
v. 1; 1982a, v. 2; 1982b, v. 3; 1980, v. 4; 1988, v. 5; 1999, v. 6).
13 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 109).
14 Ver: Azevedo (1984, v. 1, p. 23,75,153, 219, 229).
15 Ver: Azevedo (1984, v. 1, p. 95; 1982a, v. 2, p. 25, 267; 1982b, v. 3, p. 19, 125; 1980, v. 4, p. 117, 159).

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No Litoral Norte, como já vimos, criaram uma série de aldeias, que demandavam
Olinda, começando com a do Divino Espírito Santo (1558), atual Vila de Abrantes, em
Camaçari, seguida por São João e Santo Antônio do Arguim, ou Massarandupió, em
Mata de São João, e terminando na fronteira com Sergipe, em Abadia e Conde. No
Litoral Sul tinham colégio, aldeias e engenho em Porto Seguro e Ilhéus.
Seu maior empreendimento no Recôncavo foi o Seminário de Belém de
Cachoeira (1687-1707), edificado em terras doadas pela família Aragão de Menezes.
Deste complexo edificado em adobe, com um só pátio e igreja central, restou apenas
o templo, cujo frontão barroco influenciaria outras igrejas da região.16 Esta igreja
apresenta um partido curiosíssimo, com galerias de tribunas e um consistório sobre
a sacristia avarandados abertos para o exterior.
Os elementos artísticos mais importantes desse templo são o forro da sacristia,
com temas florais pintados sobre fundo negro de inspiração oriental, e um frontal
de altar, com incrustações, transferido, há algumas décadas, para a Matriz do Rosário
de Cachoeira. Fora do Recôncavo os jesuítas tiveram aldeias no Sertão, a partir de
1666, após a expulsão dos holandeses, mas foram muito hostilizados pelos Ávila.17

fra nc isca no s
A ordem religiosa que teve maior influência no Recôncavo e no Nordeste foi
a franciscana. Além do Convento de São Francisco de Salvador, eles fundaram três
grandes estabelecimentos no Recôncavo, os conventos de São Francisco do Conde
(1649), Santo Antônio de Cairu (1654) e Santo Antônio do Paraguaçu (1658).18 Nesses
dois últimos é lançado um novo partido arquitetônico que seria reproduzido em
Pernambuco e na Paraíba criando-se a chamada Escola Franciscana de Arquitetura
do Nordeste. Esta é, talvez, a nossa maior contribuição à arquitetura religiosa luso-
-brasileira. Os franciscanos tiveram missões no sertão, em Jacobina, e nas barrancas
do São Francisco.

beneditino s
Em 1655, os Beneditinos recebem de D. Catarina Álvares, casada com Balthazar
Barbosa de Araujo, a Fazenda Laje, em São Francisco do Conde. Ali instalam o Engenho
São Bento de Sergipe do Conde onde, no final do século XIX, foi construído o Imperial
Instituto Baiano de Agricultura. Em 1666, eles compram mais terras de Balthazar

16 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 95-96, 161-162; 1982b, v. 3, p. 111-112).


17 Em Porto Seguro, edificaram o Colégio do Salvador (1553) e as aldeias de N. S. de Ajuda (1549), São João Batista
(1586), em Trancoso, e Espírito Santo dos Índios, antiga Patativa, atual Vale Verde. Em Ilhéus eram proprietários
do Engenho Sant’Ana, doado por Mem de Sá, e fundadores da aldeia de Nossa Senhora de Escada, em Olivença.
Tiveram aldeias também no Sertão, nos caminhos que levavam ao Baixo Médio São Francisco, mas foram muito
perseguidos pelos Ávila. Dessas antigas aldeias, restaram capelas rústicas em Ribeira do Pombal, Euclides da Cunha,
Nova Soure e Banzaê. (Vide AZEVEDO, 1988, v. 5, p. 247, 249, 361, 397-408; 1999, v. 6, p. 18-20, 97, 137, 181, 197).
18 Ver: Azevedo (1982a, v. 2, p. 167-168; 1982b, v. 3, p. 113-114; 1988, v. 5, p. 39-41).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 225

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Barbosa de Araujo e constroem o Convento de Nossa Senhora das Brotas, hoje em
ruínas. A vila de Santo Amaro se desenvolveu em função de uma capela beneditina,
de igual invocação, que ainda se conserva. Sua influência chegou, aparentemente,
até o Acupe, no mesmo município, onde existem as ruínas da excelente capela de
São Braz, cujo risco é atribuído ao arquiteto beneditino Frei Macário de São João.19

ca r melitas
A contribuição desta ordem é importante, mas se resume a um único convento
em Cachoeira. Em 1688, o Cap. João Rodrigues Adorno e sua esposa doaram aos car-
melitas o terreno onde hoje se ergue o Convento do Carmo de Cachoeira, construído,
provavelmente, entre 1715 e 1722. Em 1700, o mesmo casal doou terreno para a
Ordem Terceira do Carmo que ali constituiu entre 1691 e 1724 sua belíssima capela e
cemitério. O Convento do Carmo teve um papel importantíssimo na consolidação e
estruturação da vila de Cachoeira. A capela da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira
e o Convento de Santo Antônio de Cairu conservam as mais belas talhas douradas
e coleções de imagens sacras de todo o Recôncavo.20

clero sec u l ar e l ai cos


Este clero, composto por clérigos não ligados a nenhuma ordem religiosa,
conjuntamente com laicos são os responsáveis pelas pequenas capelas rurais e pelas
igrejas matrizes e de irmandades das cidades do Recôncavo. Essas confrarias teriam
um papel importante na modelagem das matrizes e suas igrejas sedes. Se não tinham
entre seus membros arquitetos, como as ordens religiosas, se valeram de alarifes
militares ou eventualmente de mestres de obras, sem formação acadêmica, mas, por
isso mesmo, mais abertos às inovações. Como veremos, são eles os responsáveis
pela criação das capelas rurais com planta em Cruz de Santo Antônio e das igrejas
assobradadas de irmandades e matrizes.

A s i n f l uê ncias
No Recôncavo conviveram praticamente desde meado do século XVI ao final
do XVIII dois estilos na arquitetura erudita. Um de natureza clássica, universal e codi-
ficada, cujas soluções devem ter sido encontradas nos tratadistas do Renascimento, e
outra barroca, não codificada, de raiz italiana e ibérica, em grande parte reelaborada

19 Ver: Azevedo (1982a, v. 2, p. 95-96, 127-128, 161-162, 197-200).


20 Confira Azevedo (1982b, v. 3, p. 39-42; 1988, v. 5, p. 39).

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regionalmente. A estas duas tendências se somaram influências orientais, que ana-
lisaremos adiante.

O c lá ssico, do er udito a o p op u l ar
Clássicas são as igrejas com frontão triangular apoiado sobre cunhais toscanos
que imitam templos greco-romanos, sem sineira, ou mais frequentemente com torre
piramidal, que têm como protótipo na Bahia a Igreja de Santo Antônio da Barra, de
cerca de 1600. São exemplos desta tipologia igrejas do século XVII, como Divino
Espírito Santo, da Vila de Abrantes (1641), em Camaçari; as capelas de São Braz, em
Santo Amaro; Conceição Velha (1645), em Conceição de Feira; Nossa Senhora de
Nazaré (1649), em Nazaré das Farinhas; e as matrizes de São Bartolomeu (Ca. 1680),
de Maragogipe, e N. S. do Rosário de Cachoeira, do final do século XVII, estas duas
últimas já com belas portadas barrocas.
Mas este estilo continuou em uso durante todo o século XVIII, como atestam
a Igreja da Ordem Terceira do Carmo (1724) e a capela de N. S. da Pena, do Engenho
Velho do Paraguaçu, ambas em Cachoeira; São Miguel (1732) e São Lázaro (1734)
em Salvador; a capela de N. S. da Conceição, em Nazaré (1742) e a Matriz de São
Gonçalo dos Campos (1770).21
Como esses modelos teriam chegado até nós? Provavelmente por meio dos
tratados de arquitetura, em especial o de Sebastiano Serlio, e indiretamente através
de arquitetos de formação acadêmica. Dom Clemente Maria Silva-Nigra defende que
este estilo foi difundido entre nós pelos beneditinos, em particular pelo Frei Macário
de São João, espanhol, autor do projeto do Mosteiro de São Bento de Salvador (1679-
94). Arquiteto de formação acadêmica sólida, ele adota na igreja daquele mosteiro
a planta jesuítica de Il Gesú (1584) de Roma, de autoria de Giacomo Vignola, a mais
festejada na época e desenha uma portada clássica para a igreja de seu mosteiro,
seguindo todos os cânones do Renascimento. (SILVA-NIGRA, 1950a, 1950b)
Pelo fato do convento de Santa Tereza (1668-1686), de carmelitas descalças,
apresentar a mesma planta, pórtico em galilé e frontão clássico, elementos frequen-
tes em igrejas beneditinas, o mesmo autor atribui seu projeto a Frei Macário de
São João. Não só é plausível esta hipótese, como ousamos dizer que Santa Teresa
é uma cópia, ao pé da letra, do convento dos Trinitários Descalços (1667), depois
paróquia de San Pablo, de Salamanca, região de onde aparentemente provinha o
frei espanhol. Ali estão a mesma fachada, com três arcos no térreo, janela e nicho
central, flanqueada de cartelas, a mesma espadaña lateral e zimbório de planta
quadrada. Esta semelhança pode ser uma chave para esclarecer a origem e formação
do arquiteto beneditino.22

21 Ver Azevedo (1984, v. 1, p. 29, 63, 107; 1982a, v. 2, p. 127; 1982b, v. 3, p. 41, 47, 121, 193, 249-252, 367).
22 Descobrimos este monumento em viagem a Salamanca, Espanha, em 2001.

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Com igual faro e sensibilidade, Silva-Nigra atribui ao beneditino outros projetos,
como o da Santa Casa de Misericórdia da Bahia, a Capela de São Brás, em Santo
Amaro, e a portada da igreja fundacional da mesma cidade, onde nos deparamos
com frontões clássicos para provar que foram os beneditinos que introduziram
o classicismo na Bahia. (SILVA-NIGRA, 1971, p. 89-153)23 Mas os jesuítas também
utilizaram este estilo em suas primeiras construções na Bahia, em monumentos
como a igreja do Colégio do Divino Espírito Santo (1641), em Vila de Abrantes, e
na Igreja da Penha, em Vera Cruz, do final do mesmo século, na ilha de Itaparica. O
protótipo deste estilo seria a igreja de São Roque, de Lisboa, do final do século XVI.
Mas não há dúvida de que os jesuítas, embora começassem com uma linha clássica,
logo aderiram ao barroco, do qual eles foram os criadores na Europa.
O fato é que o gosto por este estilo perdurou na Bahia até o século XVIII, pois
encontramos belas portadas clássicas em templos com tratamento barroco, como
a capela de São Roque, do engenho homônimo, em Maragogipe; na Matriz de N.
S. da Purificação, de Santo Amaro, e capelas de N. S. da Conceição, em Salinas da
Margarida.24 São portadas de lioz, encomendadas em Portugal, mas que demonstram
a persistência deste gosto ainda na segunda metade do século XVIII.
É curioso que este estilo, altamente erudito, tenha caído no gosto popular,
como comprovam capelas e igrejas muito simples, especialmente na banda ocidental
do Recôncavo, como as capelas de N. S. da Conceição, em Cachoeira, Senhor dos
Aflitos e Santana de Taquari, em São Gonçalo dos Campos, e Nossa Senhora Madre
de Deus, em Jaguaripe.25
A torre piramidal é outro elemento persistente em templos barrocos, seja pela
tradição construtivista, como nas matrizes de Santo Amaro de Ipitanga, São Francisco
do Conde e Candeias, onde esta terminação é um telhado de quatro águas, seja por
preferência estética, como cúpula piramidal, em Santo Antônio da Barra (Ca. 1600),
em Salvador; nos conventos franciscanos de São Francisco do Conde (1630-36); Santo
Antônio de Cairu (1654); Seminário de Belém de Cachoeira (1693); igrejas de Santo
Amaro, na cidade homônima, e de São Lourenço (1610), em Itaparica.26

A influên ci a or i e nt al
Em Cachoeira são abundantes os vestígios de arte oriental. Na igreja do
Seminário de Belém de Cachoeira (1687-95) existem dois desses indícios: a pintura
do teto de sua sacristia com flores chinesas sobre fundo negro e pratos da mesma
origem na sua torre revestida de azulejos e embrechados de louça. Esta influência

23 Confira também Azevedo (1982a, v. 2, p. 127-129).


24 Ver: Azevedo (1982a, v. 2, p. 101; 1982b, v. 3, p. 217, 299).
25 Confira Azevedo (1982b, v. 3, p. 127, 177, 373, 375).
26 A estes exemplos acrescentemos a Capela de N. S. de Nazaré do Engenho Passagem dos Teixeiras, em Candeias,
Matriz de Santana, em Catu, e Ig. do Senhor do Bonfim, em Muritiba, todos do final do século XVIII. Vide Azevedo
(1982a, v. 2, p. 37, 53, 63, 85, 135, 167; 1982b, v. 3, p. 153, 235).

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não se limitou ao Seminário de Belém de Cachoeira. Na igreja da Ordem Terceira
do Carmo do mesmo município existem armários com pinturas chinesas, no salão
nobre e na sacristia, além de imagens com traços evidentemente orientais.27
Essa cidade possui também bem elaborados estuques flamejantes no frontão
da igreja do Carmo e no ossuário de sua Ordem Terceira, bem como no frontão da
Ig. de Deus Menino, na vizinha São Félix. Menos pelo desenho, que pela sua técnica,
poderíamos evocar a tradição indiana de estuques presente nas igrejas de Santana
de Talaulin e Espírito Santo de Margão, em Goa. A mesma influência se nota nos
pedestais de cruzeiros dos conventos de Santo Antônio de Cairu e Santo Antônio
do Paraguaçu, este último com carrancas mongóis.28 Na arquitetura doméstica essa
influência se fez presente na bela porta do atual Museu de Arte da Bahia, nas esteiras
protegendo janelas e sacadas, bem como louça, colchas estampadas e imagens de
marfim nos oratórios. (AZEVEDO, 2004, p. 583-601)
Por que essa influência se concentrou em Cachoeira? Possivelmente por ser
aquele o principal centro de produção e comercialização de tabaco e aguardente,
produtos muito apreciados pelos orientais. Goa foi a maior importadora do fumo
baiano, de onde era reexportado para todo o Oriente, superando as importações
da metrópole.
Um panorama do relacionamento direto entre a Bahia e a Índia pode ser obtido
no clássico “A Bahia e a Carreira das Índias”, de José Roberto do Amaral Lapa (1968).
Nos três primeiros séculos de colonização, foi registrada a passagem por Salvador,
de 253 barcos da Carreira das Índias, por diferentes razões e pretextos. Nosso porto,
por sua localização privilegiada num dos vértices da rota triangular Portugal, Brasil
e Índia e pela variedade de produtos que oferecia para a troca, era o local de 90%
das arribações dessas naus no Brasil. (LAPA, 1968, p. 2, 277-278) A Bahia chegou a
ser, em 1697, o porto de maior volume de exportação e importação do além-mar
português. Note-se que dessas paradas, dois terços eram de torna-viagem, isto é,
provenientes da Índia. (AZEVEDO, 2004, p. 583-601)

Aliás, no tocante ao comércio clandestino de tabaco para o Oriente, praticado


na Bahia, os registros são inúmeros. Até mesmo os soldados e marinheiros
que compunham as tripulações dos navios da Carreira não lhe permaneciam
indiferentes. Chegavam a ir a Vila de Cachoeira,

onde se produzia fumo de superior qualidade, para trocá-lo por mercadorias de


procedência asiática, afirma José Roberto Lapa (2004, p. 297).
A par das trocas de mercadorias, davam-se também trocas culturais. Ainda no
século XVI, ourives, pintores e bordadeiras indianas foram mandados para Lisboa para

27 Vide reprodução dessas pinturas em Telles (1975, p. 88, 106, 107) e Flexor (2007).
28 Vide Azevedo (1982b, v. 3, p. 113; 1988, v. 5, p. 39).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 229

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ensinarem sua arte e aprenderem o sentimento da arte cristã. (DIAS, 1995) Quantos
destes artistas e artesãos terão passado ou permanecido na Bahia? Cachoeira foi
também o primeiro porto de escoamento do ouro vindo de Minas Gerais e de-
pois de Rio de Contas e Jacobina. A produção de joias e alfaias de ouro chegou a
ocupar onze ourives em Cachoeira, no período 1764-65. (OTT, 1988, p. 176-177) É
compreensível que existisse nessa cidade homens de negócio, contrabandistas
e artesãos orientais ou portugueses que viveram no Oriente. (AZEVEDO, 2004, p.
583-601) O fato é que identificamos na arquitetura religiosa da região influências
orientais muito mais profundas que puramente ornamentais como querem alguns
chegadas até nós via moda rococó portuguesa, como veremos adiante. A milhares
de quilômetros de Portugal, a circulação de mercadorias, pessoas e ideias estava
longe de ser controlada pela coroa.

Ba r ro co re gi onal
As igrejas barrocas baianas adotam uma volumetria muito sóbria, na linha da
chamada arquitetura chã portuguesa. Não possuímos igrejas de plantas ondulantes,
borrominescas, como as que floresceram em Minas Gerais e no Rio de Janeiro. Seu
barroquismo se limitou a uma fachada com frontão de volutas ou recorte rococó,
torres piriformes ou bulbosas e interiores com azulejos e talha dourada, a exemplo
da capela da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira (1715-22); das matrizes de Nossa
Senhora da Purificação (1706-27) e Oliveira dos Campinhos, em Santo Amaro; Nossa
Senhora da Ajuda, de Jaguaripe (início do XVIII); da capela do Engenho Freguesia (ca.
1760), em Candeias, e de numerosas outras igrejas do Recôncavo, muitas das quais
são originárias do século XVII, mas tiveram suas fachadas refeitas no século XVIII.29
Como no caso anterior, devemos perguntar de onde vieram esses modelos?
Como o barroco nunca foi codificado, o desenho desses frontões se difundiu a
partir das primeiras igrejas barrocas da região, como a Sé de Salvador (1625-36),
reconstruída depois da ocupação holandesa e demolida em 1933, e de igrejas de
conventos franciscanos, a exemplo de São Francisco do Conde (1649), Santo Antônio
de Cairu (1654), Santo Antônio do Paraguaçu (1658 ) e Salvador (1686), esses sempre
com um nicho para a exibição da imagem do orago, e de igrejas jesuíticas, como a
do Colégio de Salvador (1691) e do Seminário de Belém de Cachoeira (1693).
Esses frontões diversos vão sendo copiados, modificados e mesclados, surgindo
um padrão barroco baiano, que é diverso do pernambucano e de outros estados. Os
frontões com grandes volutas, servindo de contraforte para um corpo central mais
elevado, vão se transformando em um arranjo de volutas puramente decorativo
para terminar com frontões recortados miudinho de gosto rococó.

29 Vide Azevedo (1982a, v. 2, p. 31, 101, 125; 1982b, v. 3, p. 39, 169).

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A s ti pol ogi as rel i gi osa s
A arquitetura religiosa do Recôncavo é de uma grande diversidade, mas con-
solidou tipologias bem caracterizadas. Compreende desde pequenas capelas rurais,
passando por igrejas assobradadas urbanas até monumentais conventos.

Ca pela s R ura is
A quase totalidade das capelas rurais fazia parte do complexo dos engenhos
de açúcar algumas, inclusive, anexas à casa-grande. Isto explica algumas de suas
características, como os copiares frontais e alpendres laterais, para separar os fiéis
brancos e pardos, geralmente familiares ou assalariados, dos escravos negros.

ca pela s de pla nta centrad a


O mais antigo monumento religioso da Bahia e do Brasil é uma capela de planta
centrada, hexagonal, recoberta por cúpula esférica, partido claramente renascentista.
É a capela de N. S. da Conceição, da Casa da Torre de Garcia D’Ávila, em Tatuapara,
atual Praia do Forte. A capela e casa anexa já existiam em 1584 conforme descrição
de Gabriel Soares. A residência deve ter sido ampliada em pelo menos duas oportu-
nidades, mas a parte anexa à capela com duas salas térreas recobertas por abóbadas
de aresta é da mesma fábrica da capela. Existem duas capelas de igual partido em
Portugal: São Gregório de Tomar, coeva, e Madre de Deus, em Aveiro, do século XVII.
Uma segunda capela com o mesmo partido, construída na segunda metade
do século XVII, encontra-se no Engenho D’Água, em São Francisco do Conde. É a
capela do Senhor Bom Jesus de Bouças. Sua nave, de planta octogonal, é envolvida
em partes iguais por um alpendre frontal, sacristia e ossuário que ladeiam a capela-
-mor. Embora tardia, ela se assemelha em particular à capela de São Gregório de
Tomar, pela presença do alpendre e pelo fato de seu copo central se elevar acima
dos demais elementos do programa.30 (AZEVEDO, 1996)

ca pela s em c r uz de sa nto antôni o


A planta mais comum nas capelas rurais durante os séculos XVII e XVIII foi a
chamada planta em cruz de Santo Antônio, o tau do alfabeto grego, com seu eixo
principal formado pela nave e capela-mor, e o travessão pela sacristia e pela “casa
da fábrica”. Muitas vezes a “casa da fábrica” se ligava à capela-mor por uma janelinha
protegida por treliça, que permitia ver, sem ser visto. O exemplo mais antigo desta

30 Vide Azevedo (1982a, v. 3, p. 89, 185).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 231

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tipologia que se conserva no Recôncavo é a capela de N. S. de Escada, de 1556, em
Salvador, ainda que com uma só sacristia.
Esta planta teria sido adotada em 1630 na Igreja da Palma em Salvador, segundo
planta existente no Arquivo Ultramarino de Lisboa. Ela foi adotada em muitas capelas
rurais do mesmo século, no Recôncavo. O mais notável exemplar dessa tipologia, por
seu requinte e erudição, é a Capela de N. S. da Pena do Engenho Velho do Paraguaçu,
em Cachoeira, de 1660. É uma fusão do partido centrado renascentista com a nova
planta em Cruz de Santo Antônio. A capela possui nave quadrada integralmente
revestida de azulejos recoberta por cúpula também azulejada sobre pendentifs.
Esta planta foi muito adotada em capelas do século XVIII, a exemplo das capelas
de Bom Jesus dos Pobres, em Santo Amaro, e N. S. da Conceição, em Salinas da
Margarida e dos engenhos Pindobas, em Candeias; Santo Antônio do Rio Fundo, em
São Felipe; São Bernardo, em Jaguaripe; e Capanema, em Maragogipe. São frequentes
também capelas com este partido, mas incompleto, com uma só sacristia.31
Muitas dessas capelas são complementadas por um alpendre de três águas,
que antecede a nave, conhecido como copiar, termo tupi que designa o alpendre
situado na entrada da taba indígena. Capelas rurais com alpendres frontais, mas
sem planta em T, são frequentes em Portugal e aparentemente resultam da abertura
progressiva de um pronau fechado, cujo primeiro exemplar conhecido é a matriz
de Lourosa, do século X, em Coimbra. (AZEVEDO, 1983)
Esta espécie de saguão que antecede a nave foi transposta para o Recôncavo,
como dão testemunho iconografias antigas das capelas de N. S. da Ajuda, em
Cachoeira; Santo Antônio de Velasquez, em Vera Cruz, e N. S. de Nazaré, do Engenho
Passagem dos Teixeiras, em Candeias. De tipo inteiramente avarandado são os
copiares das capelas de Escada, N. S. de Nazaré (1649) e de N. S. da Conceição (1742),
ambas em Nazaré das Farinhas.32 Este partido tinha, porém, um inconveniente, as
escadas de acesso ao púlpito, ao coro e à sineira ficavam no exterior, ao relento.

ca pela s com al p e nd re s l ate rai s


Outro tipo de capela rural comum no Recôncavo é o de alpendres laterais.
Estes avarandados laterais, além de atenderem a um maior número de fiéis durante
as festas, serviam como transição ambiental e social entre o interior e o exterior e
protegiam as escadas mencionadas anteriormente. O exemplo mais erudito dessa
tipologia é a capela de São Brás, em Santo Amaro, de meados do século XVII, atribuída
ao risco de Frei Macário de São João. (SILVA-NIGRA, 1971) Temos outros exemplos

31 Confira Azevedo (1984, v. 1, p. 95; 1982a, v. 2, p. 45, 131, 249; 1982b, v. 3, p. 121, 179,219, 299)
32 Ver Azevedo (1982a, v. 2, p. 41, 255; 1982b, v. 3, p. 49, 249, 251). O alpendre fechado da capela de Vera Cruz está
registrado em aquarela de Diógenes Rebouças de 1939 de propriedade deste autor. Foi o Instituto do Patrimônio
Histórico e Artístico Nacional (IPHAN) que os abriu na suposição que eram adições posteriores, sem valor histórico
e estético.

232 | Baía de Todos os Santos

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deste século, mas com planta assimétrica, como a Capela de N. S. da Encarnação, de
São Sebastião do Passé e Santo Amaro de Catu, em Vera Cruz.
Existem exemplos dessa tipologia com plantas simétricas e com alpendres
suportados por arcaria nas capelas dos engenhos Campina, em Cachoeira, e N. S. do
Vencimento, do Engenho Paramirim, em São Francisco do Conde, ambas do século
XVIII, e no Água Boa, em Terra Nova, do século XIX. Alguns exemplares são igrejas
com naves muito altas e alpendres de pés direitos duplos, como as igrejas de Santo
Antônio dos Índios, em Aratuípe; Santo Amaro do Catu, em Vera Cruz, e Santana
de Taquari, em São Gonçalo dos Campos. A igreja de Oliveira dos Campinhos, em
Santo Amaro, é uma das poucas que manteve os alpendres laterais baixos. Um caso
interessante é o da Capela do Engenho Lagoa, em São Sebastião do Passé, em que
um alpendre em arcos envolvia toda a nave. Hoje restam apenas os alpendres laterais.
Exemplo semelhante só em Queimadas, na Capela de Santo Antônio.33

igrej a s a sso bra da da s


O aparecimento das igrejas com tribunas está, aparentemente, ligado à mul-
tiplicação e ao fortalecimento das associações religiosas laicas, as ordens terceiras
ou irmandades. Essas associações, que representavam comerciantes, profissionais,
escravos forros e pardos, foram as primeiras organizações da sociedade civil consen-
tidas pela coroa, sob o manto da caridade cristã, oferecendo serviços de seguridade
social a seus membros, como internação em enfermarias ou ajuda em caso de
doença, asilos para idosos e crianças abandonadas e enterro para seus afiliados em
suas igrejas-sedes.
Tinham inevitavelmente caráter ideológico e político, fazendo lobby para ob-
tenção de vantagens para seu grupo junto às autoridades. Daí surgir uma grande
emulação entre elas, durante as procissões e construção de suas sedes suntuosas.
As primeiras irmandades devem ter funcionado nas “casas da fábrica” ou mesmo
sacristias das matrizes. Mas à medida que cresciam e se fortaleciam buscavam
espaços privativos para instalação de seus consistórios e secretarias. Como muitos
de seus membros cantavam, eles praticamente monopolizavam o coro das igrejas-
-sedes durante as cerimônias.
Por outro lado, as igrejas haviam crescido em altura e com ela os alpendres
laterais. Como é natural, estendeu-se o coro pelas laterais da nave aproveitando
o pé direito elevado dos alpendres e ocupou-se o espaço sobre as sacristias com
escritórios e consistório. Em outras palavras, cria-se todo um andar em forma de
anel em volta da nave e capela-mor privativo das irmandades. Os alpendres haviam

33 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 35, 125, 127, 195, 215, 241, 261; 1982b, v. 3, p. 19, 129, 375). Sobre capelas de
engenho. (Vide AZEVEDO, E., 1990)

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perdido sua função na cidade e pouco a pouco se substituem seus pilares e arcarias
por muros portantes para sustentar o sobrado.
As tribunas de uma igreja, como as sacadas dos sobrados e os camarotes de
um teatro, não eram apenas um local confortável para assistir a um evento público,
senão um local estratégico para observar e ser visto pelo público.

Essas tribunas são os locais aonde os Irmãos privilegiados poderiam assistir


aos atos que se passavam na nave e capela-mor, locais por todos disputados.
As tribunas da capela–mor eram, geralmente, ocupadas pelo Juiz, Ministros ou
Prior. Estes costumes podem ser comprovados pela resolução da (Ordem Terceira
da) S.S. Trindade de 1861, abaixo transcrita: “Foi tão bem deliberado que nas
ocasiões de Festividades em nossa Ordem, cumpria que o Irmão Vigário fazer
feixar todas as tribunas mandasse, ou entregasse a cada um dos Mezarios a
chave da que lhe pertencer, conforme seos dísticos, e qdo as mesmas tribunas não
tenhão chaves ficava authorizado a manda-las por”, comenta Socorro Targino
Martinez. (MARTINEZ, 1979, p. 181)

Os chamados corredores laterais não tinham função específica. Muitos deles


eram usados como depósitos de andores ou ossuários. Neles se enterravam escravos
e mendigos, já que a nave e capela-mor eram reservadas aos irmãos. Na maioria
dos casos, eles nem eram corredores, pois sua continuidade era interrompida pela
presença de capelas laterais e falsos transeptos. Eles eram meros saguões de acesso
ao púlpito, coro, tribunas e torres.
Em muitos casos, as arcarias laterais era apenas uma solução estrutural para
a sustentação da galeria de tribunas, como se pode observar nas primeiras igrejas
desse tipo, como São Bartolomeu de Maragogipe e Santo Amaro de Ipitanga, ambas
do final do século XVII. A terceira igreja com tribunas deste período, Nossa Senhora
do Monte Recôncavo, em São Francisco do Conde, é um caso diverso. Ali a arcaria
lateral servia como portal da igreja, aberto para a praça da vila. Sua fachada principal
está na borda de um espigão que despenca abruptamente sobre a baía dificultando
sua interlocução com a vila.
Reforça a hipótese dessas arcarias terem função prioritariamente estrutural,
o fato da matriz de Santo Amaro ter possuído tais arcarias, segundo documento
do vigário Pe. José Borges de Barros, de 1727. Posteriormente, esses arcos foram
entaipados para formar os atuais corredores laterais. Corrobora esta hipótese a
existência de arcos de descarga, também entaipados, na Ig. de N. S. do Amparo, na
mesma cidade.34
As igrejas com tribunas se difundiram, no início do século XVIII, no Sul do país,
aparentemente através de Minas Gerais, e no Nordeste através de Pernambuco, am-
bas províncias muito ligadas à Bahia, naquela época. A razão dessa planta ser comum

34 Confira (1982a, v. 2, p. 101, 111).

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a matrizes e igrejas de irmandades e usada até o final do século XIX decorre do fato
de grande número de matrizes serem também sedes de irmandades, daquelas mais
pobres, que não tinham condições de construírem suas sedes próprias.
A capela da Ordem Terceira de S. Francisco de Cairu nunca chegou a ser con-
cluída. As Misericórdias de Cachoeira, Santo Amaro e Maragogipe e a Ig. de N. S. do
Amparo, da Irmandade dos Homens Pretos, de Santo Amaro, são modestíssimas
na comparação com suas congêneres de Salvador. A Irmandade da Boa Morte, de
mulheres de cor, tem peregrinado em diversas igrejas, estando agora na modesta
capelinha de Ajuda de Cachoeira.
Ao contrário do que acontecia em Salvador, em que as capelas de ordens
terceiras e irmandades eram mais ricas que as igrejas de conventos e matrizes, no
Recôncavo são os conventos e matrizes os monumentos mais requintados, com
painéis de azulejos, obras de talha e tetos com pintura ilusionistas, a exemplo dos
conventos de Santo Antônio de Cairu e São Francisco do Conde, o Seminário de
Belém da Cachoeira e as matrizes de N. S. do Rosário, de Cachoeira; N. S. da Purificação
e Oliveira dos Campinhos, de Santo Amaro; e São Pedro, de Muritiba. A exceção é
a Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, com sua belíssima capela e cemitério.
O ápice dessa evolução é uma igreja com falso transepto inscrito dentro de um
retângulo perfeito, que segue a tradição das igrejas jesuíticas luso-brasileiras, como
a antiga Igreja da Sé de Salvador, mas que ao invés de múltipals capelas laterais,
apresenta tramos de corredores que servem às mais diversas funções. São exemplos
plenamente desenvolvidos dessa tipologia as matrizes de N. S. da Purificação, de
Santo Amaro; N. S. do Rosário, de Cachoeira; N. S. da Ajuda, de Jaguaripe; N. S. de
Nazaré e São Gonçalo dos Campos respectivamente nas cidades homônimas.35
Recapitulando, a tipologia das matrizes e igrejas de irmandades do Recôncavo
é o resultado da evolução da capela de partido em Cruz de Santo Antônio, que
ganhou alpendres laterais superpostos, depois, por galerias de tribunas e um par
de torres frontais. Tudo organizado segundo um eixo longitudinal de simetria e
contido em um retângulo perfeito. A construção de cada igreja desse tipo, ao longo
de décadas e até séculos, refaz esta caminhada ao justapor cada um dos elementos
constitutivos de seu programa, mas sem perder o projeto original de construir uma
igreja geometricamente perfeita em planta e muito rica volumetricamente.
Muitas dessas igrejas não chegaram a ser concluídas e pararam numa dessas
etapas. Exemplos disto são a Ig. de N. S. do Rosário, em Jaguaripe, que com planta

35 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 101; 1982b, v. 3, p. 47, 169, 247, 367). Além das matrizes citadas, muitas outras igre-
jas apresentam plantas inscritas em retângulos perfeitos, sendo a primeira delas a de N. S. do Monte, s. 18 F, em
São Francisco do Conde. A relação inclui, ainda, as igrejas de N. S. das Candeias, s.18 F; São Domingos de Gusmão,
s. 18 M, em Santo Amaro; S. Antônio de Mataripe, s. 18 M, em S. F. do Conde; Cap. do Eng. Quicengo, s.19 I, em S. F.
do Conde; Cap. do Eng. Lagoa, 18 I, em S. S do Passé; Cap do Eng. Água Boa, s.19 I, em Terra Nova; Ig. de São Pedro
do Rio Fundo, s.18 M, em Terra Nova; Matriz de Santiago do Iguape, s.19 I; e Santana do Rio da Dona, s.19 I, em
Conceição do Almeida. Vide Azevedo (1982a, v. 2, p.37, 145, 169, 181, 187, 209, 215, 241, 243; 1982b, v. 3, p.125,
152).

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em T, já apresenta uma nave com vãos para receber futuras tribunas e a Matriz de
São Pedro, em Muritiba, que embora ainda não tenha corredores e tribunas já possui
arranque de duas torres no alinhamento dos corredores e sacristia, ou ainda a Matriz
de Deus Menino, em São Félix, esperando o corredor, tribunas e torre do lado direito
para completar sua planta e imagem de matriz.36
Alguns engenhos adotaram este partido em suas capelas, que são verdadei-
ras igrejas, como os engenhos Mataripe e Quicengo, em São Francisco do Conde,
Freguesia, em Candeias, e Pouco Ponto, em São Sebastião do Passé. Quando a capela
era anexa à casa do engenho, como na Freguesia e no Pouco Ponto, as tribunas
eram ligadas diretamente à área íntima da casa, caracterizando estes espaços como
privativos da família.37
Pode-se dizer, então, que as igrejas matrizes e de irmandade do século XVIII
são o desenvolvimento das capelas rurais de alpendres laterais, que serviam para
atrair e controlar os lavradores, mas que nas vilas e cidades viram pelo avesso esses
alpendres e os duplicam, transformando-os em camarotes para seus dirigentes
melhor se exibirem e controlarem a comunidade de fiéis reunida na nave. O resultado
é uma igreja barroca de ópera, com palco, platéia e camarotes.

co nventos f ranci scanos


Em meados do século XVII, surge no Recôncavo um modelo de igreja original.
É o convento de Santo Antônio de Cairu, iniciado em 1654 e terminado em 1661,
cujo projeto é repetido, pouco depois, em Santo Antônio do Paraguaçu (1658),
em Cachoeira. A autoria desses conventos é do Fr. Daniel de São Francisco.38 Este
modelo logo se difundiria em Pernambuco e Paraíba, formando a Escola Franciscana
de Arquitetura do Nordeste. Três elementos de origem indo-portuguesa parecem
ter contribuído para a criação do primeiro partido arquitetônico genuinamente
brasileiro:
a) presença de um grande cruzeiro sobre peanha escultural em meio ao adro
que precede a igreja;
b) fachada inscrita em um triângulo e dividida por pilastras, frisos e cornijas
em cinco tramos horizontais e três pisos escalonados;
c) galerias laterais avarandadas com um ou dois pisos, debruçando-se em
tribunas sobre a nave e abertas para o exterior.

A presença de um cruzeiro sobre um pedestal de pedra ou alvenaria em meio a


uma praça fronteiriça à igreja é comum em Goa. Segundo Orlando Ribeiro sua origem

36 Azevedo (1982a, v. 2, p. 173, 233, 335).


37 Azevedo (1982a, v. 2, p. 31, 185, 209, 217).
38 Azevedo (1982b, v. 3, p. 113; 1988, v. 5, p. 39). Vide também Fonseca (1988) e Argolo (2009).

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está na tulôsse, planta sagrada hindu posta sobre um pedestal, a que se presta culto
e se dedicam oferendas. Em muitos casos a tulôsse cedeu lugar a um obelisco sobre
o mesmo pedestal. O sincretismo religioso fez com que os chamados cristãos de
São Tomé, anteriores à chegada dos missionários portugueses, em lugar da tulôsse
ou obelisco colocassem um cruzeiro, induzindo a sua veneração. (Cf. CARITA, 2001;
RIBEIRO, 1956)
Os franciscanos foram os primeiros religiosos portugueses a chegarem à Índia.
Acompanharam Vasco da Gama como capelães de suas naves, em 1498, e voltaram
para estabelecerem-se definitivamente com a expedição de Cabral, quando este
descobriu oficialmente o Brasil. (CHACON, 1995, p. 60) Em 1516, eles começaram a
construir conventos em Cochim e, em 1519, em Goa. A inspiração oriental dos adros
franciscanos nordestinos fica patenteada pela presença de carrancas com traços
mongóis no convento do Paraguaçu e de leões de guarda nos adros de conventos
do Recife e João Pessoa. (BAZIN, 1983, v. 1, p. 152)
A segunda característica comum de nossos templos franciscanos e igrejas
da Índia é o fato de suas fachadas se inscreverem em um triângulo. Os templos
piramidais, sugerindo uma montanha sagrada, são comuns na religião hindu. A
arquitetura das igrejas cristãs dos seguidores de Santo Tomé e indo-portuguesas, que
as sucederam, casa a concepção do templo hindu com a concepção cristã de eclésia
ou assembleia de fiéis. O modelo que mais diretamente influenciou as igrejas de
Cairu e do Iguape, em Cachoeira, é a igreja com fachada de cinco tramos horizontais
e três ou mais pisos, reticulada por pilastras e cornijas, tudo inscrito em um triângulo.
Ela pode ser encontrada com certa frequência em Cochim e no estado de Kerala.
Um terceiro elemento parece ligar as igrejas franciscanas do Recôncavo à arqui-
tetura indo-portuguesa. Em sua evolução natural, as varandas laterais das igrejas de
Kerala se transformaram em galerias duplas ensejando a volta à fachada tradicional
da igreja portuguesa com duas torres, como ocorre em São Tomás, de Thumpoly.
Esta galeria aberta para o exterior teria função de proteger a nave contra o sol e a
chuva durante as monções, num período em que não se dispunha de vidro plano.
Este tipo de planta é, curiosamente, muito semelhante ao da igreja do Seminário
de Belém de Cachoeira (1687/93), onde existe, como vimos, uma notável pintura
oriental de forro de e pratos de Macau na torre e se repete em Cairu e no Iguape.
Tal como São Tomás, Belém de Cachoeira tem sua nave e capela-mor totalmen-
te contornadas por uma varanda elevada aberta para o exterior.39 Não seria uma
surpresa esta planta em um seminário jesuíta, já que a São Tomás, em Thumpoly,
é da mesma ordem. Identificamos vestígios de um consistório avarandado desse
tipo na capela do Colégio de Anchieta, no Espírito Santo. O assoalho do consistório

39 Confira Azevedo (1982b, v. 3, p. 111-112).

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se estragou com as chuvas e o avarandado foi entaipado, ficando a sacristia com
pé direito duplo.
As igrejas de Cairu e do Iguape, embora apresentem semelhanças, não são
cópias de igrejas indo-portuguesas. Primeiro, suas fachadas se elevam sobre gali-
lés, o que não ocorre na Índia. Segundo, seu tratamento é francamente barroco e
erudito, enquanto que as indianas são maneiristas e populares. Além do mais, uma
ala do convento ou muro da roça, avançando para definir o adro, parece ter origem
nos primeiros conventos franciscanos do Nordeste. Embora os frontispícios das
igrejas baianas conservem uma estrutura compositiva remotamente maneirista, são
fachadas visivelmente barrocas, inspiradas em Roma, onde havia estado Fr. Daniel
de São Francisco.
Da Bahia esse novo modelo passaria a Pernambuco, provavelmente levado
por Frei Daniel de São Francisco, que do Recôncavo retorna ao Recife, onde morre
em 1692. Entre 1700 e 1718 reconstrói-se o convento franciscano de João Pessoa,
na Paraíba.

Santo Antônio de João Pessoa nada mais é do que Cairu, interpretado em estilo
rocaille; é uma das mais magníficas composições da América Latina e possui
um dos mais belos décors produzidos pela arte rococó,

afirma enfaticamente Germain Bazin (1983, v. 1, p. 149).

igrej a s d e t rê s nave s
Com a nova liturgia da contrarreforma, as igrejas de três naves são abolidas.
Mas na transição do século XIX para o XX algumas igrejas de corredores laterais, da
banda oriental do Recôncavo, são transformadas em três naves, aparentemente com
o intuito de aumentar sua capacidade. Esta transformação é feita com a abertura de
arcos nas paredes laterais da nave, como nas igrejas de Santo Amaro e São Domingos
de Gusmão, esta reformada em 1923 mantendo as tribunas superiores, ambas em
Santo Amaro. Na Igreja de Santana de Catu, reformada em 1871, e Bom Jesus de
Bouças, em Terra Nova, são criadas arcarias sobrepostas que procuram conciliar três
naves com tribunas.40
Em outros casos, os muros da nave são substituídos por pilares que vão suportar
o telhado, como na Matriz de Candeias e Ig. de São Pedro do Rio Fundo, em Terra
Nova. Encontramos apenas uma igreja de três naves na parte ocidental do Recôncavo,
a Igreja de São Benedito, em São Felipe, ampliada em 1947 com a abertura de arcos
e a criação de sacristias e naves laterais.

40 Azevedo (1982a, v. 2, ; 1982b, v. 3, p. 37, 53, 135, 145, 243, 245; 1982b, v. 3, p. 361).

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A arqui tetura c i vi l

U m co mplexo engenho so
A agroindústria açucareira implantada no Recôncavo e em Pernambuco, ainda
na segunda metade do século XVI, é talvez a primeira empresa multinacional. Ali
se juntaram capitais flamengos, tecnologia italiana, logística portuguesa, mão de
obra africana, produção brasileira e comercialização holandesa na Europa. Não
menos complexas eram as instalações para a produção do açúcar para o mercado
internacional.
Este complexo compreendia, por ordem de importância econômica, a fábrica,
a senzala, a casa-grande e a capela. Mas na sua implantação topográfica, esta escala
era invertida. A casa-grande e a capela ocupavam o ponto mais alto da topografia
para controlar e serem lembradas. A fábrica e a senzala ocupavam a posição mais
baixa do terreno, junto a um pequeno porto de saveiros, nos engenhos de beira-mar.
Havia alguma lógica nisto, para além de preconceitos sociais. Como se tratavam
de engenhos reais, que dependiam de quedas d’água, era natural que as fábricas
ficassem nos pontos mais baixos e próximas ao porto. Mas, mesmo quando os
engenhos se expandiram para o interior, no século XIX, e a roda d’água cede lugar
à almanjarra, esta hierarquia foi mantida.

a ca sa - gra nde
Muito já se escreveu sobre a casa-grande, tema inaugurado e romanceado por
Gilberto Freire. Os mais recentes e objetivos estudos sobre este tema no Recôncavo
se devem a Esterzilda Berenstein de Azevedo, que identificou quatro tipos dessas
residências patriarcais de engenho. (AZEVEDO, 1999) As casas de engenho dos sécu-
los XVII e XVIII, independente de tipologia, eram na quase totalidade assobradadas.
Esta disposição pode ser explicada, não só por razões de segurança, como devido à
estratificação social da sociedade da época e em particular dos engenhos. No térreo
ficavam quartos de hóspedes, estribarias e pequenos quartos que em muitos casos
serviam como senzalas, provavelmente para escravos domésticos. Mas em muitos
deles, especialmente na banda ocidental do Recôncavo, temos térreos ou porões
inteiramente vazados ou servindo indistintamente de depósitos.41
Nos andares superiores vivia a família e no sótão, criados de confiança. Todas
as vezes que a topografia permitia se entrava diretamente ao andar nobre, como
nos engenhos Cajaíba, Tarefas e São José, todos em S. Francisco do Conde, e Novo,
em Santo Amaro. Nesta categoria pode-se incluir também o Solar do Unhão, em
Salvador. Apenas casas-grandes construídas na zona de expansão dos engenhos,

41 Vide engenhos São Miguel e Almas, em S. F. do Conde; Terefas, em T. Sampaio; Itatingui, em S. S. do Passé; Embiara,
em Cachoeira; Fazendas Paty, em C. de Feira; e engenhos S. José, em Nazaré; Medrado; Caraípe; Chaves e Nova
Bury, em S. Felipe. Ver: Azevedo (1982a, v. 2, p. 179, 221, 235; 1982b, v. 3, p.115, 143, 295, 353-359).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 239

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no século XIX, ao norte da Baía de Todos os Santos, não eram assobradadas, senão
térreas e avarandadas.

ca sa s com p át i o
As casas-grandes com pátio são as maiores, mais robustas e nobres. Duas
delas exibem o brasão da família, as dos engenhos Freguesia e Cinco Rios. Outras
duas apresentam também pinturas no teto de suas capelas, o Freguesia e o Matuim.
A vigência dessa tipologia vai de 1683, com a casa-grande de João Rodrigues Argolo,
em Cachoeira, e termina em meados do século XVIII com as casas-grandes dos en-
genhos Matoim, Caboto, Freguesia, Cinco Rios e Paramirim, todos nas proximidades
da Baía de Aratu e construídos ou reconstruídos pela família Rocha Pita.
São casas assobradadas com dois, três e até quatro pavimentos. É possível
que a adoção dessa tipologia estivesse relacionada com razões de segurança. Vale
lembrar que mesmo em solares urbanos, como o Estrela e o do Museu do IPHAN, em
Cachoeira, há seteiras na sobreloja. De outra parte, o pátio interno servia a conciliar
privacidade com iluminação e aeração, em casas-grandes muito grandes, que tinham
capelas anexas ou internas, para evitar a saída das mulheres.
Apenas o Matuim possuía um verdadeiro pátio, com corredor articulando
os cômodos, na tradição mediterrânea. Nos demais casos eram meros poços de
iluminação e ventilação. Isto é compreensível em casas que chegavam a ter seis salas,
22 quartos totalizando 1.860 m2, como no Engenho Freguesia. Sempre implantadas
em encostas, em pelo menos dois casos, engenhos Freguesia e Caboto, se ingressava
diretamente no pavimento nobre.42
No século XIX surgem, na bacia do Subaé, casas de engenho de grande rigor
formal e construtivo, neoclássicas, com pátios posteriores, escadarias externas de
acesso e terraços sobre abóbadas, como nos engenhos Cajaíba, Madruga e do Monte,
em São Francisco do Conde; Subaé, em Santo Amaro; Europa, em Teodoro Sampaio,
e Embiara, em Cachoeira.43

so bra dos d e e nge nho


Muitos engenhos do século XVIII apresentam casas-grandes que não diferem
muito de sobrados urbanos, inclusive com apêndices de serviço, como no caso dos
engenhos S. Miguel e Almas e Passagem dos Teixeiras, ambos em ruína. No interior,
a mesma estratificação funcional: serviços e quartos de hóspedes no térreo e salões
sociais e quartos ou alcovas nos pavimentos superiores. O saguão ficava no lado
maior do retângulo e a articulação com o andar superior era feita internamente.

42 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 29, 31, 49; 1982b, v. 3, p. 75).


43 Ver: Azevedo (1982a, v. 2, p. 137, 189, 193, 201, 237; 1982b, v. 3, p.115).

240 | Baía de Todos os Santos

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O exemplar mais nobre dessa tipologia é o Engenho Lagoa, do final do século
XVIII, em S. Sebastião do Passé. Fica elevado sobre arcaria joanina e tem no pavi-
mento superior salões com pintura ilusionista e escudo da família Carvalho, uma
das proprietárias do engenho. À sua esquerda fica a capela.
Nesta categoria estão também os engenhos Santo Antônio de Mataripe; São
José, Madruga e Guaíba, em S. Francisco do Conde; Subaé e Novo, em S. Amaro;
Campina, em Cachoeira; S. José, em Nazaré, e Medrado, em São Felipe. Metade
desses possuía acesso direto ao pavimento nobre.44

ca sa s a va ra nda da s
Surgem no final do século XVIII, e se difundem no XIX, casas-grandes térreas
com varandas. Esta tipologia parece associada aos novos senhores de engenho de
menor cabedal, com hábitos de passar mais tempo na cidade e responsáveis pela ex-
pansão de engenhos em novas áreas. Elas demonstram um relaxamento das tensões
entre senhores de engenho, escravos e empregados. Não mais a reclusão em pátios
ou a estratificação vertical. A varanda era uma faixa de transição espacial, climática
e social entre o interior e o exterior da casa-grande. Um espaço de interlocução
com os serviçais, de circulação livre da mulher e de portas e janelas abertas durante
todo o dia, chova ou faça sol. Nessa nova arrumação, a varanda absorveu muitas
funções do térreo das casas-grandes assobradadas, como depósitos, banheiros e
quartos de hóspedes.
Esta tipologia não é uma exclusividade baiana. Há muitas casas deste tipo no
Rio de Janeiro, datadas de meados do século XVIII. (CARDOSO, 1943) Mas há uma
diferença com relação às baianas. As generosas varandas cariocas estavam em um
segundo pavimento ou sobre um pódio elevado, o que mantinha a distância social
entre a família patriarcal e os escravos e empregados. Neste sentido a nossa casa-
-grande avarandada, ao rés do chão, era mais democrática.
O exemplar mais antigo dessas casas conhecido na Bahia é o Engenho São
Roque do Paraguaçu, com varanda com bancos envolvendo três lados da casa
e dando acesso a quarto de hóspedes e depósito. Não sabemos a data de sua
construção, mas sua capela, embora “modernizada” no século XVIII, guarda portada
com frontão reto e decoração em trança, típicos do século XVII. É difícil saber se a
atual casa é da mesma época, mas suas colunas oitavadas com capitéis toscanos,
semelhantes aos da Ordem Terceira do Carmo de Cachoeira, devem ser, no mínimo,
da mesma época, 1724.
Dois outros exemplares devem datar da segunda metade do século XVIII,
os engenhos da Mata, em Mata de São João, e S. João, em Candeias. Não temos

44 Ver: Azevedo (1982a, v. 2, p. 39, 45, 137, 157, 179, 181,193, 213, 237; 1982b, v. 3, p. 131, 295, 353).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 241

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maiores informações do primeiro, mas era vizinho da aldeia jesuítica de São João.
Possui capela sobre uma pequena elevação vizinha. A casa está elevada do terreno
e totalmente contornada por varandas. Toda a ala esquerda de quartos se abre
para a varanda, além de um pequeno depósito de arreios. O segundo pertenceu a
um morgado, no século XVIII, e está ligeiramente elevado do terreno, com varanda
apenas na frente. Quatro pequenos quartos se abrem para a varanda.45
Esta tipologia seria retomada nas novas áreas de expansão da agroindústria, no
início do século XIX, especificamente na bacia dos rios que deságuam no Atlântico.
Eram propriedades relativamente pequenas, com engenhos do tipo almanjarra
movidos por tração animal, separados da casa, mas que já não se conservam. Suas
sedes estão localizadas nos topos de colinas ou em encostas. Algumas delas são
ligeiramente elevadas do solo e precedidas de degraus.
Fazem parte desta geração os engenhos o Triunfo, em Amélia Rodrigues; Api e
Mocambo, em Catu; Roçado, Itatingui e Pimentel, em S. Sebastião do Passé; Outeiro
e Tarefas em Teodoro Sampaio; S. Antônio do Rio Fundo e Caeté, em Terra Nova. Suas
sedes são casas bem compostas, mais largas que profundas, com duas, três e até
quatro varandas suportadas por colunatas geralmente toscanas. Em geral entra-se
na casa por um salão de visitas que se liga a um corredor transversal de distribuição
funcional. Apenas os engenhos Triunfo, Mucambo e Santo Antônio do Rio Fundo
têm desenvolvimento longitudinal com corredor central.
Dois deles têm pátios no fundo, o Roçado e o Pimentel. Merece destaque o
Engenho Outeiro, que possui varandas laterais envidraçadas. A área dessas casas
se reduz para cerca de 500 m2 e seu programa é bem menor que o das casas asso-
bradadas. Já não possuem capelas separadas, apenas “quarto dos santos” no seu
interior, como registrado nos engenhos Triunfo, Api, Itatingui e Pimentel. Assinale-se,
ainda, a adoção desta tipologia em duas residências urbanas, a Casa do Pedreira, em
Itaparica, e a casa no 13 da Pç. da Bandeira, em São Gonçalo dos Campos.46
No lado ocidental do Recôncavo, nesta mesma época, este partido foi ado-
tado em engenhos de açúcar e farinha e em casas de fazenda, com varandas sus-
tentadas por esteios de madeira, como nas fazendas Várzea Grande, Paty e Tábua,
em Conceição de Feira; fazendas Funil e Dendê, respectivamente em Jaguaripe e
Muritiba e o Eng. Cabonha, em Cachoeira. Uma variante desta tipologia é a casa de
dois pavimentos com varanda periférica, como a sede da Chacára Alegria, em Nazaré,
e o Eng. Palmeira, em Santo Antônio de Jesus.47

45 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 47, 91; 1982b, v. 3, p. 215).


46 A respeito, ver Azevedo (1982a, v. 2, p. 21, 55, 57, 73, 219, 221, 223, 233, 235, 247, 251; 1982b, v. 3; 1980, v. 4; 1988,
v. 5; 1999, v. 6).
47 Ver: Azevedo (1982b, v. 3, p. 133, 143, 145, 183, 237, 293, 319, 321, 323).

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ca sa s- engenho
Em meados do século XVIII, quando a agroindústria açucareira enfrentava
problemas de comercialização externa, dá-se a fusão da casa-grande com a fábrica
num só edifício. Os primeiros exemplos são os engenhos Mataripe, Dom João e
São José, todos desaparecidos, localizados na bacia do Subaé, em São Francisco do
Conde. (AZEVEDO, E., 1999, p. 150) A este podemos acrescentar o Engenho Vitória,
em Cachoeira, do início do século seguinte. São engenhos grandes, dois deles com
capelas incorporadas, o São José e o Vitória.
Este partido se difundiria no século XIX no Recôncavo da subsistência, onde
a produção de açúcar e cachaça se destinava ao mercado local e era compartida
com outras atividades agropecuárias. Foi isso que os salvou da crise da agroindústria
açucareira no final do século XIX. Alguns deles ainda funcionavam, movidos por
roda d’água, há uma década. Geralmente o engenho era um galpão recoberto, em
parte, pela residência do proprietário, que o supervisionava de um balcão interno.
Em baixo da casa ficavam apenas depósitos, provavelmente para não incomodar
os proprietários, durante os períodos de atividade diuturna.
São exemplos desta tipologia os engenhos de Baixo e Buraco, em Aratuípe;
Sapucaia, em S. Antônio de Jesus, S. Pedro, em Nazaré e Caraípe, em São Felipe.
Este mesmo partido foi adotado em fazendas produtoras de farinha, na mesma
região, como a Paty, em Conceição de Feira; Chaves e Nova Bury, em S. Felipe. Havia
também casas-grandes acopladas a engenhos de cana ou mandioca situados no
mesmo plano, como nas fazendas Tábua, em Conceição de Feira, e Vargem Grande,
em S. Antônio de Jesus.48

Casas e sobrados urba nos


O padrão dominante de habitação urbana na região é a casa ou sobrado de
parede-meia, de origem medieval portuguesa. Este padrão decorre de um parcela-
mento da terra em lotes estreitos e longos, bem diverso do vigente no Mediterrâneo,
que deu origem a casas de pátio interno, comuns nas cidades hispano-americanas.
Geralmente a casa ou o sobrado do Recôncavo tem cerca de sete metros de largura,
uma porta e duas janelas no térreo.
Internamente, a casa está estruturada em função de um corredor longitudinal
lateral, que liga a porta da rua à sala de jantar avarandada no fundo, aberta para
um pequeno pátio ou quintal. Para este corredor, que funciona como uma tiragem
forçada de ar, se abrem a sala de visitas e as alcovas.
A casa do Recôncavo está dividida em quatro faixas funcionais. A primeira,
ligada à rua, é onde se encontra o corredor de entrada, geralmente limitado por

48 Confira Azevedo (1982b, v. 3, p. 21, 23, 117-119,143-45, 291, 317, 319, 355-359).

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 243

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uma segunda porta gradeada, e a sala de visitas. A segunda faixa, de caráter íntimo,
é constituída por alcovas. A sala de jantar e a varanda posterior formam a faixa de
convivência da família. A quarta e última faixa é de serviço, constituída pelo quintal.
A cozinha e o quarto de banho formam um apêndice da casa avançando no quintal.
É ali onde se cultivam ervas aromáticas e medicinais, se lava a roupa e criam-se
animais domésticos e de corte.
Este esquema funcional retrata bem uma sociedade patriarcal, com uma rígida
separação do mundo da rua, mais masculino e formal, da vida familiar, mais feminina
e informal. Os dormitórios são alcovas, sem janelas para o exterior. A sala de visitas
só é aberta para reuniões sociais. O jantar é o núcleo integrador da família, onde só
os mais íntimos são convidados a entrar. O quintal é a parte mais reclusa da casa,
onde se banha, defeca, lava a roupa suja e está o galinheiro, o chiqueiro e o canil.
Nas casas maiores, a largura pode chegar a doze metros e a porta de entrada e
o corredor passam a ser centrais. Mas as relações funcionais não se alteram. Algumas
casas térreas edificadas em terrenos mais largos ao invés de corredor longitudinal
possuem um salão central para onde se abrem alcovas e outros cômodos, como
pode ser observado na Casa Natal de Teixeira de Freitas, em São Francisco do Conde,
a Chácara Santa Rita, em Nazaré, e casas nas praças Bráulio Seixas e da Bandeira, em
São Gonçalo dos Campos.49 No início do século XIX o piso das casas térreas se eleva
formando um porão baixo, que aumenta a distância da casa para a rua, dá mais
privacidade e diminui a umidade.
Em se tratando de casa de dois andares, este esquema é reproduzido no pavi-
mento superior, enquanto o térreo é ocupado por lojas ou dependências de serviço.
Mas quando o sobrado é mais alto há um zoneamento vertical. O térreo passa a ser
comercial e/ou de serviço, o primeiro andar social, com sacadas ou balcões sobre a
rua, e o segundo andar, íntimo. Os empregados domésticos dormiam geralmente
no térreo ou no sótão.
Em alguns casos, uma escada externa conduzia diretamente ao pavimento
nobre, especialmente na região do Subaé, como no sobrado situado na rua Cons.
Saraiva, 39 e no Solar Paraíso, ambos em Santo Amaro, disposição que é encontrada
também em casas de engenho da região, como já vimos.50
Uma gravura de 1860 registra um tipo de sobrado que teria existido junto ao
porto de Cachoeira, na atual rua 25 de Junho.51 Eram sobrados elevados sobre um
portal de arcos onde provavelmente se fazia a feira, com produtos trazidos de barco.
Tais sobrados desapareceram, mas em Nazaré ainda se preserva um edifício desse
tipo, o Sobrado dos Arcos, também próximo ao cais e em cuja galeria se realizava
até 15 anos atrás a feira da farinha.52

49 Azevedo (1982a, v. 2, p. 177; 1982b, v. 3, p. 157, 267, 369, 371).


50 Azevedo (1982a, v. 2, p. 119, 143, 157, 189, 193).
51 Reproduzida em Introdução ao estudo da evolução urbana. (Cf. BRASIL, 1976, fotos 16 e 17).
52 Azevedo (1982b, v. 3, p. 255-256).

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Nas margens do Paraguaçu e do Jaguaripe o sobrado termina, muitas vezes,
com um mirante-dormitório, muito cômodo para observar a movimentação dos
barcos no rio. É relativamente frequente este tipo de sobrado em Maragogipe, São
Félix, Cachoeira e Nazaré. Mas temos também um exemplar em Santo Amaro, na
esquina da Pç. da Purificação.53
Um tipo especial de sobrado surgiu em Cachoeira, devido à frequência de
enchentes do rio Paraguaçu. É o sobrado com entressolho destinado a recolher os
móveis e trastes do térreo durante as cheias. Seu pé direito é geralmente baixo, as
aberturas pequenas e ele não tem utilização a não ser nesse período, como depósito.
Seus exemplares mais antigos datam do início do século XVIII, como no atual Museu
do Iphan e o Solar Estrela, em Cachoeira. Mas há exemplos mais novos na mesma
praça e nas ruas Ana Nery, 13 de Maio e Rui Barbosa.54 No Museu do Iphan, esta
sobreloja servia também de tocaia para possíveis ataques. Embora aberta para o
fundo, ela está fechada na frente com apenas seteiras apontando para a praça. Na
parte ocidental do Recôncavo há sobrados geminados com corredores laterais que
dão a impressão de ser um grande solar.55

S o bra do s no bres
Não se podem diferenciar casas nobres urbanas das rurais. Os senhores de
engenho se alternavam no campo e na cidade, só optando preferencialmente pela
cidade no século XIX. As três únicas casas com brasões de família pintados nos tetos
são as casas-grandes dos engenhos Freguesia, Cinco Rios e Lagoa. Estas casas, nas
cidades, fogem um pouco da residência urbana padrão. Apresentam uma maior
volumetria e tratamento decorativo externo e interno mais requintado. Estão con-
centradas especialmente em Cachoeira, Magagogipe, Santo Amaro e Nazaré.
Seu programa não diverge muito da casa urbana corrente, mas geralmente não
possuem lojas no térreo. É possível que algumas delas tivessem pequenas capelas
ou nichos no interior, mas não há vestígios. O elemento distintivo dessas casas são
salões com forros em gamela ou caixotões, às vezes com pintura, e saguões com
belas escadarias, algumas com arranque em pedra, e galerias com balaustres no
pavimento superior para recepção e controle dos visitantes.
Em Cachoeira estão os solares mais requintados da região. O mais antigo desses
solares data de 1683. É a casa de João Rodrigues Adorno, fundador da povoação,

53 Em Maragogipe, podemos citar os sobrados da Filarmônica Terpsícore, da Suerdieck e um situado na rua Fernando
Suerdieck. Em São Félix, os sobrados à Pç. Joaquim Tosta, rua Juarez Távora e o Chalé Guinle. Em Cachoeira, um
sobrado à rua Maestro Irineu Sacramento e a Casa Natal de Ernesto Simões Fo. Em Nazaré, temos exemplos nas
ruas D. Pedro II, Barão Homem de Melo e Walson Lopes e as chácaras Santa Rita e Alegria. Vide Azevedo (1982a, v.
2, p. 105; 1982b, v. 3, p. 85,105, 199, 201, 265, 281, 283, 293, 339,343, 347, 267, 371).
54 Azevedo (1982b, v. 3, p. 53, 61, 63, 59, 83, 93, 103).
55 São exemplos os sobrados da rua Ana Nery 47/49 e Pç. Maciel 13, em Cachoeira; o existente na Av. Salvador Pinto,
em São Félix; na Av. D. Pedro II, em Nazaré; e a Vila Caraipe, em São Felipe. (Cf. AZEVEDO, 1982b, v. 3, p. 87, 265, 341,
363).

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que embora fosse uma casa de engenho, foi envolvida pela vila e se transformou
em uma casa urbana. Esta é uma das poucas casas urbanas com pátio interno em
toda a região.56 Não é a mais refinada, devido aos muitos usos e reformas por que
passou, mas preserva um saguão interessante.
A mais requintada é a sede do Museu do IPHAN, datada de 1723. É a única em
todo o Recôncavo com uma portada barroca de lioz e portas almofadadas. Possui
ainda escadaria com arranque em pedra e dois salões sobre a praça com forro em
caixotões com pintura de vida cortesã. Assinale-se ainda o Solar Estrela, do século
XVIII, na mesma praça da Aclamação, com bela pintura floral no forro dos salões de
visitas; a Casa Natal de Ana Nery e o sobrado de número 25 da mesma rua, ambos
com saguão e salões com forros em caixotões.57
Em Santo Amaro podemos assinalar os solares Araujo Pinho e Visconde da
Aramaré, já do período neoclássico. Além de saguões requintados, apresentam
pórticos de entrada e terraços sobre abóbadas, elementos também encontrados
em dois engenhos da região,o Cajaíba e o Madruga. Assinale-se, ainda, os sobrados
às ruas da Matriz, 9, General Câmara, 63, Cons. Saraiva, 29.58
Nazaré apresenta uma das casas mais interessantes do Recôncavo, a situada
na Pç. Arthur Sampaio, junto à ponte. É um imenso sobrado com 21 janelas e uma
porta abrindo-se diretamente para o rio Jaguaripe. É talvez o único sobrado fluvial
brasileiro e lembra os palácios venezianos. Seus proprietários chegavam a ele de
canoa, antes da construção das pontes. Maragogipe apresenta também dois edifícios
com saguões interessantes, a sede da Filarmônica Terpsícore e um sobrado na Praça
da Matriz.59
Finalmente não podemos deixar de mencionar o Chalé Guinle, em São Félix.
Embora construído na primeira década do século XX com componentes industriais
europeus, este chalé tenta reproduzir, com outra linguagem, os elementos básicos
da arquitetura regional: a casa com pátio envolvida por varandas e com mirante
para o rio. Pena que se encontre em ruína.

Edifício s p ú b l i cos
As mais importantes construções públicas das cidades do Recôncavo são as
Casas de Câmara e Cadeia. Existem dois tipos desses edifícios. Um inspirado na Casa
de Câmara e Cadeia de Salvador, com portal, pátio e torre sineira central e outro mais
simples, sem portal nem torre, inspirado na Casa de Câmara e Cadeia de Jaguaripe,
primeira vila fundada no Recôncavo, em 1697. Usualmente a cadeia ficava embaixo e

56 Fora a Casa das Sete Mortes, em Salvador, há uma casa térrea em Conceição do Almeida com um grande pátio, a
Vivenda Sinísia, construída por um imigrante italiano. Os armazéns de fumo também possuíam grandes pátios
internos para secagem das folhas. (Cf. AZEVEDO, 1982b, v. 3, p. 149, 157).
57 Azevedo (1982b, v. 3, p. 51, 59, 73, 79).
58 Azevedo (1982a, v. 2, p. 139, 141, 105, 115, 121).
59 Azevedo (1982b, v. 3, p. 197, 207, 259, 347).

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no seu pórtico se publicavam os editais. No pavimento superior ficavam o legislativo,
o executivo e o judiciário municipais.
O modelo de Salvador é evidentemente espanhol, embora inspirado remo-
tamente no Capitólio de Roma (1536), de Miguel Ângelo. Espanhol pela presença
do portal com açougue, onde se realizava o mercado, como nas plazas mayores
hispânicas. (AZEVEDO, P., 2001, p. 407-420) Essa tipologia teve origem na Espanha, no
período de florescimento da instituição municipal, mas a construção dos primeiros
edifícios específicos de cabildos são do século XV, embora sua difusão se desse nos
quinhentos. (GUTIERREZ et al., 1990) Vivendo-se a última fase do período filipino,
não seria de estranhar que a diretriz para o seu projeto pudesse emanar da própria
Metrópole.
A relação do conselho municipal com a comunidade definiria muitos elementos
de seu programa, como o portal, onde se fixavam os editais e se realizava a feira, o
balcão do conselho, onde as autoridades falavam durante as festas cívicas e religiosas
e a torre cujo sino marcava o ritmo da vida cidadã. O tipo mais frequente de fachada
de cabildos e ayuntamientos espanhóis era o de arcarias sobrepostas. Mas no norte
da Espanha eram frequentes os cabildos com térreo em arcaria e pavimento superior
vazado por janelas rasgadas, exatamente como no Paço de Salvador.
Dom Clemente Maria Silva-Nigra levanta a hipótese daquele projeto ser de
autoria do arquiteto espanhol Frei Macário de São João, com base no traço de sua
portada, que denota conhecimento do tratado de Sebastiano Sérlio e é utilizado por
ele em outros projetos. (SILVA-NIGRA, 1971, p. 89, 107-108) O único profissional com
conhecimento dessa tipologia no Brasil, naquela época, era o frei beneditino. O Paço
Municipal de Salvador, inaugurado em 1660, mas só concluído trinta anos depois,
foi o pioneiro dessa tipologia na América. Sedes municipais com torres centrais só
se difundiram na América espanhola cerca de cem anos depois. Um exemplar muito
semelhante ao nosso foi o de Santiago do Chile (1785-1790), já demolido. Possuía
portal no térreo, janelas de púlpito no pavimento superior e torre central em meia
laranja.60
Cachoeira, segunda vila fundada no Recôncavo, em 1698, reproduz esta ti-
pologia, em 1712, mas de forma bastante rústica, com portal, mas sem pátio nem
torre. O mesmo modelo de Salvador, porém mais simplificado, sem pátio e com
uma espadaña, foi adotado em 1735 em Maragogipe. Uma réplica perfeita, mas em
menor escala da de Salvador foi construída em Santo Amaro, elevada a vila em 1727.
A atual sede municipal, concluída em 1769, deve ter sido precedida por outra cuja
imagem não conhecemos. Muito simplificado, em um só pavimento, este modelo

60 Dentre os exemplos desta tipologia na América Latina estão os cabildos de Buenos Aires (1734-1764), Santa Fé
(1787), Tucuman, Salta (1783), Lujan (1770-1792), San Luis (1804) na Argentina, bem como o de Antigua, Guatema-
la, todos com dupla arcaria. (Vide GUTIERREZ et al., 1990).

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seria reproduzido tardiamente em São Felipe, elevada a vila em 1880. A atual sede
municipal data de 1914.61
O segundo modelo tem como protótipo a Casa de Câmara e Cadeia de
Jaguaripe. Trata-se de um casarão recoberto por telhado de quatro águas, que
volumetricamente pouco difere de uma casa nobre civil. Mas possui duas particula-
ridades. As enxovias ficavam em um subsolo aberto para o mar, que eram inundadas
nas maiores marés e ao seu lado ficava um portal, onde se realizava o mercado com
produtos trazidos de barco. Este modelo foi adotado em São Francisco do Conde,
elevada a vila em 1697, em Nazaré (1878) e em algumas casas de câmara e cadeias
do interior, como as de Porto Seguro, Rio de Contas, Caitité e Condeubas.62
Outro equipamento frequente nas vilas e cidades da região são hospitais admi-
nistrados por Santas Casas de Misericórdia, únicas instituições a fazer o que hoje se
chama seguridade social, até o advento da Era Vargas. Cachoeira, Maragogipe, Nazaré
e Santo Amaro tiveram esses equipamentos. Seus programas incluíam enfermarias e
uma capela, mas não existe uma tipologia única. A Santa Casa de Cachoeira é talvez
a mais importante e antiga. Desde 1686, funcionou uma enfermaria no Convento de
Santo Antônio do Paraguaçu, no Iguape, transformada, mais tarde, em Hospital de
Nossa Senhora de Belém. Em 1734, o hospital passa a funcionar em Cachoeira, em
terreno doado pelo Cap. João Rodrigues Argolo e mantido com rendas de fazendas
do Iguape.
O chamado Hospital de Caridade é elevado, em 1823, à condição de Santa
Casa de Misericórdia por Resolução Imperial. O edifício, do início do século XIX, com
tratamento neoclássico, tem um partido semelhante ao de um convento, com capela
à mão direita e pátio à esquerda, em volta do qual estão as enfermarias individuais
e coletivas. A instituição devia ter recursos, pois edificou um belo conjunto de seis
sobrados e onze casas iguais para renda, na rua Durval Chagas, vizinho à sua sede.63
A Santa Casa de Maragogipe é outro conjunto importante. A capela de N. S. da
Lapa do Monte é supostamente do final do século XVII, mas a Santa Casa só seria
fundada em 1847. O hospital ligeiramente afastado da capela, mas alinhado a ela,
foi inaugurado em 1850. Como a de Cachoeira, mandou construir em sua vizinhança
um conjunto de casas para renda, além daquelas do cemitério.
O Hospital Nossa Senhora da Vitória de Santo Amaro foi construído entre 1856
e 1866 com recursos da comunidade. Dois anos depois é instituída a Santa Casa
de Misericórdia para manter o hospital. Fundada em 1830, a Santa Casa de Nazaré
é a única que precede o hospital, que começa a funcionar um ano depois. O atual
hospital, com partido em H e tratamento eclético classicizante, foi iniciado em 1888. 64

61 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 103-104; 1982b, v. 3, p. 43-44, 195-196, 351-352).


62 Confira Azevedo (1982a, v. 2, p. 171-172; 1982b, v. 3, p. 167-168).
63 Ver: Azevedo (1982b, v. 3, p. 69-70, 95-98).
64 Azevedo (1982a, v. 2, p. 151-152; 1982b, v. 3, p. 209-210, 285-286).

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O Recôncavo possuiu casas de câmara e cadeia, conventos, inúmeras igrejas,
alguns hospitais, mercados em Nazaré e em São Félix, matadouros em Santo Antônio
de Jesus e Alagoinhas e teatro em Nazaré. Só não teve escolas, durante todo o
período colonial, imperial e da Primeira República, o que demonstra o apreço que
tinham nossos governantes pela educação.

E m r esu m o

O Recôncavo, um conceito mais histórico que unidade fisiográfica, como disse


Milton Santos, variou territorialmente ao longo dos séculos. No final do século XVII,
com a criação das vilas de Jaguaripe, Cachoeira e S. Francisco do Conde compreendia
toda a bacia dos rios Subaé, Paraguaçu e Jaguaripe. No começo do século XIX se
expande para o norte, com novos engenhos que iam até os atuais municípios de
Terra Nova e Teodoro Sampaio.
Na segunda metade do século XIX se expande para o norte, oeste e sul, com
a criação de ferrovias que do porto de Salvador chegavam a Alagoinhas e depois
a Aracaju e Juazeiro; do porto de S. Félix se dirigia a Machado Portela, no sopé da
Chapada Diamantina e até Feira de Santana; e de Nazaré se estendia até Jequié.
No início do novecentos, com a crise da agroindústria açucareira, a abertura das
primeiras estradas de rodagem e a unificação do sistema ferroviário, o Recôncavo
tradicional se encolhe, e surgem novas centralidades como Feira de Santana e
Alagoinhas. Na segunda metade do século XX, a lavra do petróleo e o processo de
industrialização fazem surgir a Região Metropolitana de Salvador e há o abandono
do restante do Recôncavo tradicional.
As vilas da região se formam a partir de aldeias jesuíticas, de engenhos de
açúcar, pousos e feiras de gado. Essas vilas formavam redes urbanas especializadas
– açucareira, fumageira e de subsistência – respectivamente nos vales dos rios Subaé,
Paraguaçu e Jaguaripe, tendo como enlace com Salvador seus portos e a Baía de
Todos os Santos. Essas microrredes se mantêm até o início do século XX, quando os
novos meios de transporte roubam a importância dos portos tradicionais e criam
novas centralidades e relações urbanas.
As vilas do Recôncavo, embora atendendo a requisitos de suas funções – porto,
entreposto, centro de produção e comercialização de produtos agropecuários – têm
em comum formas geradas por fluxos, como a navegação, a circulação de pessoas
e animais nas linhas de menor declive do terreno.
A arquitetura dessas vilas tem seu ponto mais alto nas construções religiosas,
especialmente nos conventos franciscanos de Cairu e do Paraguaçu, pedras funda-
mentais da Escola Franciscana de Arquitetura do Nordeste de inspiração oriental. Não
menos importante é a invenção das matrizes e igrejas de irmandade assobradadas

Recôncavo: território, urbanização e arquitetura | 249

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organizadas como um teatro de ópera resultante da ação das comunidades laicas
reunidas em ordens terceiras ou irmandades.

A região, com seu grande patrimônio cultural, natural e paisagístico, tem grande
potencial turístico, infelizmente inexplorado. Para que se possa resgatar este patri-
mônio é preciso ligar as antigas cidades-portos com uma estrada envolvente da Baía
de Todos os Santos que terminaria na sua maior ilha, Itaparica. (AZEVEDO, P., 2010)
Esta medida deverá ser complementada com a criação de infraestrutura receptiva,
restauração dos monumentos e valorização das suas tradições.

O desenvolvimento do turismo e a retomada, em novas bases, de antigas


lavouras, como a cana e o dendê, agora na perspectiva da bioenergia, da manga, da
laranja e outras frutas e melhoria da avicultura, ao lado da qualificação de pessoal
pela Universidade Federal do Recôncavo poderão tirar a região do marasmo em que
mergulhou há um século e reintegrá-la à vida econômica do Estado e do país. Isto
só depende de uma decisão política.

Ref er ênc i as

ANDRADE, Adriano Bittencourt. A rede urbana do Recôncavo Baiano Setecentista.


2010. Tese (Doutorado em Arquitetura e Urbanismo) – Faculdade de Arquitetura
e Urbanismo, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2010. Orientação do Prof.
Marco Aurélio A Filgueiras Gomes. Mimeo.
ARGOLO, José Dirson. O Convento Franciscano de Cairu. Brasília, D.F.: IPHAN/
Monumenta, 2009.
AZEVEDO, Esterzilda Berenstein de. Arquitetura do açúcar. São Paulo: Nobel, 1990.
______. Engenhos do Recôncavo Baiano. Brasília: IPHAN/ Monumenta, 2009.
AZEVEDO, Paulo Ormindo. Alpendres na Arquitetura Religiosa: revendo as
teorias. Revista Barroco, Belo Horizonte, n.12. p. 71- 85, 1983.
______. Envolvente da baia versus ponte. A Tarde, 9 mar. 2010.
______. Introdução ao Recôncavo. In: ______. (Coord.). Inventário de Proteção
do Acervo cultural da Bahia. 2. ed. Salvador: SIC, 1984a. v. 1 - Monumentos do
Município de Salvador, 1975. Versão em CD-ROM.
______. Coord.). Inventário de Proteção do Acervo cultural da Bahia. 2. ed. Salvador:
SIC, 1984b. v. 1 - Monumentos do Município de Salvador, 1975. Versão em
CD-ROM.
______. ______. 2. ed. Salvador: SIC, 1982a. v. 2 – Monumentos e Sítios do
Recôncavo, 1ª parte, 1978. Versão em CD-ROM.

250 | Baía de Todos os Santos

BTS_2.indb 250 01/12/2011 12:01:49


______. ______. Salvador: SIC, 1982b. v. 3 - Monumentos e Sítios do Recôncavo, 2ª
parte. Versão em CD-ROM.
______. ______. Salvador: SIC, 1980. v. 4 - Monumentos e Sítios da Serra Geral e
Diamantina. Versão em CD-ROM.
______. ______. Salvador: SIC, 1988. v. 5 - Monumentos e Sítios do Litoral Sul,
1988. Versão em CD-ROM.
______. ______. Salvador: SIC, 1999. v. 6 – Monumentos e Sítios das MR Nordeste,
Vale Sanfranciscano e Extremo Oeste Baianos. Versão em CD-ROM.
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