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O ESPETÁCULO DO FEIO
práticas discursivas e redes de poder
no eugenismo de Renato Kehl. 1917-1937.
Mestrado – História
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2003
Pietra Stefania Diwan
O ESPETÁCULO DO FEIO
práticas discursivas e redes de poder
no eugenismo de Renato Kehl. 1917-1937.
O que nos interessa é não unicamente descrever essa rede de poder tal
como ela se apresenta, mas, sobretudo, perceber como ela se constitui
historicamente, quais são seus sentidos, as justificativas científicas e morais
que as sustentam e os interesses políticos em jogo. Renato Kehl será
considerado aqui como um ponto de partida para conhecer as articulações
históricas que o transformaram no maior representante do eugenismo
brasileiro. Ou seja, partiremos do pressuposto que essa condição de Renato
Kehl não é um a priori e sim o resultado de inúmeras relações sociais que
trataremos de avaliar tendo como centro de debate a eugenia.
A BSTRACT
What concerns us is not only to describe this net as its shows itself, but,
above all, to perceive how it was historically constituted, what its meanings are,
the moral and scientific reasons supporting it and the interests involved. Renato
Kehl will be considered here as the starting point to know the historical
articulations which made him the top representative of Brazilian eugenics. That
means we will start from the presupposition that this condition of Renato Kehl is
not an a priori, but rather the result of several social relations, which we will try
to evaluate having eugenics and the center of the debates.
A GRADECIMENTOS
7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11
− Coleção Particular - CP
9
I NTRODUÇÃO
Pensar nos avanços médicos ocorridos nos últimos anos é ver algo mais,
além de uma tentativa de criar novas tecnologias para melhorar a vida e a saúde
humana. Desde 1994, através de um pool de laboratórios, vem se desenvolvendo
uma corrida pela leitura do DNA humano. Primeiramente, pequenos insetos e
animais foram estudados, e finalmente, após oito anos, o Projeto Genoma Humano2
mostrava ao mundo que somos, fundamentalmente, uma cadeia espiral de 3 bilhões
de genes encadeados. De acordo com os cientistas que participam do Projeto, a
descoberta desse código da vida ajudará a evitar doenças congênitas, além de
possibilitar a modificação das cadeias de DNA a fim de corrigir possíveis falhas
genéticas.3
1
Essa seita é conhecida como raelianos. Liderados pelo ex-jornalista esportivo Claude Vorillon
(autodenominado Rael), os raelianos, acreditam que o homem é uma criação extraterrestre, e
desenvolveram pequenos aparelhos de “fusão gênica” que são vendidos pelo site do grupo na
internet por cerca de 10 mil dólares. Para saber mais, ver o site The Raelian Revolution:
http://www.rael.org.int. Acesso em 23/03/2003.
2
Para saber mais sobre as implicações sociais e os interesses em torno dos problemas éticos
envolvidos na decodificação do DNA humano, ver WILKIE, Tom. Projeto Genoma Humano: um
conhecimento perigoso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994; e ver site sobre o debate e as
implicações éticas deste projeto em: http://www.nhgri.nih.gov. Acesso em 25/03/2003.
3
“DNA, o guardião do segredo da vida, começa a falar”. Jornal O Estado de São Paulo, 27 de
fevereiro de 2003. http://www.estadao.com.br/magazine/materias/2003/fev/27/316.htm. Acesso em
25/03/2003.
11
adquiriu um valor de mercado na sociedade capitalista; na qual tudo se passa como
se quanto mais se adquire saúde, mais sucesso se tem!
4
Maria Rita Alonso. Botox, choquinhos, laser e muito mais. In: Revista Veja São Paulo, ano 35, nº
42, 23 de outubro de 2002, pp.12-16.
5
Luis Pellegrini. A Ditadura das Aparências. In: Revista Planeta, ano 31, nº 3, março de 2003, pp.
24-29.
6
Essas afirmações são baseadas num estudo feito por Jean François Amadieu, sociólogo que
lançou na França o livro O Peso das Aparências. In: A Ditadura das Aparências, Op. cit.
7
Para saber mais sobre os significados do embelezamento feminino durante o século XX no Brasil,
ver o completo e minucioso trabalho de: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté. Une
contribution à l’histoire des pratiques et des representations de l’embellissement féminin au Brésil – 1900 à
1980. Tese de Doutorado. História e Civilizações. Universidade de Paris VII. Paris: 1994.
12
mais a estética se especializa, e profissionais os mais diversos são requeridos
dentro de clínicas. Não se trata unicamente de ir ao salão de beleza, mas à clínica
dentro do qual as referências médicas imperam e a atmosfera hospitalar é
recorrente, como se todos vestissem branco para cuidar da aparência. No mundo
moderno – ou pós-moderno? – devemos8 ser belos, magros, ter cabelos lisos, ter
pouco pêlo, enfim, devemos parecer ‘naturais’ diante do espelho, de nós mesmos e
dos outros.
8
O termo devemos é usado com a conotação de dever, como se fosse um dever cívico individual
que deve ser prestado por todos. Dessa forma, ser feio representa atentar contra a civilidade, contra
o coletivo, já que os tratamentos estéticos estão tão popularizados.
9
Sacrificada Dolly, o primeiro clone. (AFP) Jornal O Estado de São Paulo, 15 de fevereiro de 2003.
http://www.estado.estadao.com.br/editoriais/2003/02/15/ger014.htm. Acesso em 25/03/2003.
10
Matéria divulgada pela agência alemã de notícias Reuters em 24 de janeiro de 2002 e publicada na
internet, na página do jornal Popular – um jornal on-line de notícias bizarras – no site:
http://www.terra.com.br/noticias/popular/2002/01/24/005.htm. Acesso em 24/01/2002.
13
Ocasionalmente folheando uma revista médica11, na Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo, encontrei o anúncio de uma empresa de fibras
óticas produtora de equipamentos para microscópios que possibilitam a criação de
animais transgênicos. Trata-se das agulhas que perfuram óvulos estéreis, para a
inserção de DNA alheio, que freqüentemente vemos na televisão quando se mostra
qualquer experiência de clonagem ou transgenia. Em página branca estão
dispostos dois camundongos idênticos, um acima da página e outro abaixo. Sob os
dois, a seguinte legenda, em inglês: Produto da natureza e Produto da PiezoDrill.
11
Anúncio da empresa norte-americana Burleigh que pode ser conhecida no site:
http://www.burleigh.com/piezodrill. Anúncio publicado na Revista Cell, Vol. 100, nº 4, 2000.
14
contrário à plantação, comercialização e importação do milho transgênico12 no
13
Brasil? Bruno Latour chamou esse processo de proliferação dos híbridos, seres
ou coisas que são um mix de natureza e cultura que acabam por se sobrepor àquilo
que durante muito tempo o mundo ocidental – do norte! – procurou fazer: segmentar
a vida, separar tudo em compartimentos. Fatos, poder e discurso.14 Já não é mais
possível ao ocidental ler o mundo segmentado. O mundo agora está disposto em
forma de rede, articulando ao mesmo tempo diversas dimensões da vida numa
universalidade multicultural sopreposta. Atravessa o campo da representação, da
linguagem e dos textos.
12
Atualmente apresenta-se uma polêmica no governo brasileiro sobre a importação do milho
transgênico norte-americano, que foi impedido de entrar no Brasil pelo Ministério da Agricultura e
pelo Departamento de Defesa e Inspeção Vegetal. As autoridades constataram que tal milho era
oriundo de terras que não estavam livres de uma erva daninha (Striga spp) e que não possuía o
certificado necessário. O governo brasileiro ordenou a queimada de todo o milho que adentrou
ilegalmente pelo porto de Itajaí, SC, por crer que ofereceria risco ao meio-ambiente. Se, por um lado,
a importação é proibida, por outro a empresa Monsanto implantou no Brasil (em Sorriso, MT) uma
estação de pesquisa de melhoramento da soja, ou seja, da soja transgênica. Para saber mais ver:
http://www.ibps.com.br. Acesso em 25/03/2003.
13
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 1994, p.7-8.
14
Idem, p. 12.
15
* * *
Somos uma semente, que brota, nasce, cresce e morre. Deixamos novas
sementes que serão nossos descendentes, e o ciclo se repete. Herança,
descendência, continuidade. Fazendo a transposição da vida para a árvore é
possível encontrar essa noção de circularidade. Vens do pó e ao pó tornarás, como
afirmam a Bíblia, a doutrina da reencarnação e o espiritismo. Esse paradigma16 está
tão enraizado na formação individual no Ocidente que é quase improvável
vislumbrar outra possibilidade de entendimento da vida.
A árvore possui raízes, troncos, galhos e folhas. Cada uma das suas partes
carrega significado e sentido. As raízes sempre são utilizadas para construir a
imagem de tradição, memória e história. O tronco da árvore tem a função de
encaminhar os sais minerais extraídos da terra pelas raízes, a fim de lançá-los aos
galhos e destes criarem as folhas, que serão ‘alimentadas’ também pela luz solar e
pelo oxigênio, dois componentes fundamentais para a sobrevivência da árvore ou
de qualquer ser vivo. Lembramos que a luz do sol e o oxigênio são elementos
externos, e podemos até ousar um pouco, dizendo que fazem parte do meio, do que
é externo à árvore. As folhas, por fim, são ‘o rosto da árvore’, pois sabemos sobre
sua saúde ao constatar sua aparência verde e firme. São as folhas que interagem
principalmente com o meio exterior.
15
Entende-se por rede de poder as conexões entre governo, empresas e mídia perpassados por
interesses pessoais, econômicos, culturais, etc., com a finalidade de dominação de um grupo sobre
outro.
16
Incorpora-se aqui o termo paradigma utilizado por Thomas Kuhn. “Um paradigma é aquilo que os
membros de uma comunidade partilha e, inversamente, uma comunidade científica consiste de
homens que partilham um paradigma”. Diversas vezes utilizaremos essa terminologia, ora para
designar o partilhamento de idéias no interior da comunidade científica ou da sociedade civil, In:
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p.
219.
16
disciplinas dispostas nas raízes dessa árvore eugênica. Aí estão as ciências que
necessitam, de uma maneira ou de outra, da planificação dos dados, do
esquadrinhamento, da categorização e da experiência empírica, para comprovar
seus dados, as conhecidas ciências objetivas.
17
KEHL, Renato Ferraz. Sexo e Civilização. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1933, pág. 265.
FMD
18
“Da mesma forma que a árvore, a eugenia extrai seus materiais de muitas fontes e organiza-as
numa entidade harmoniosa”.
19
“Eugenia é o próprio sentido da evolução humana”.
20
O Eugenics Archive possui um acervo eletrônico de documentos sobre o eugenismo nos Estados
Unidos. Toda a documentação está acessível e em alta resolução. Ver:
http://www.eugenicsarchive.org. Acesso em 13/12/2001.
21
Como a imagem é chamada pelo Eugenics Archive e pelo livro de Renato Kehl.
22
Ciência cujo objeto é o estudo da origem, da formação e das sucessivas transformações do globo
terrestre, e da evolução do seu mundo orgânico, de acordo com Novo Aurélio Século XXI: dicionário
da língua portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 2001.
17
Tendo em mente que essa árvore reflete uma sociedade ideal, a História
desempenha então papel secundário, já que outras disciplinas ocupam lugar de
maior destaque na árvore.
* * *
23
Processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes, de acordo com
Novo Aurélio Século XXI, op. cit..
24
Genealógico no sentido atribuído pelo dicionário Novo Aurélio Século XXI, op. cit..
Genealógico/genealogia: 1. Lista, enumeração ou diagrama com os nomes dos antepassados de um
indivíduo e a indicação dos casamentos e das sucessivas gerações que o ligam a um ou mais
ancestrais; 2. O conjunto ou série desses antepassados; 3. Estirpe, linhagem.
18
Essa rede embora pretenda ser a-histórica e Una, é histórica e diversificada.
Com a proposta de identificar as alianças, as formas de visibilidade e de
publicidade, poderá ser visto que em seu interior há relações entre poderes público
e privado, relações entre o Brasil e o exterior, entre médicos e muitos outros
profissionais. Ela expressa aquilo que é preciso destacar sobre o tema aqui
pesquisado: a consolidação de um eugenismo sui generis no Brasil, em relação ao
resto da América Latina, principalmente devido à resistência por parte da Igreja
Católica em adotar seus preceitos. Na verdade, o eugenismo no Brasil tinha a
especificidade de se auto-intitular anti-racista.25 Entre suas principais preocupações
estavam o nacionalismo e o problema da imigração. Nesse interior, havia uma
intensa disputa pelos cuidados com o corpo, incluindo Medicina, Estado e Igreja.
25
STEPAN, Nancy Leys. The Hour of Eugenics: race, gender and nations in Latin America. Ithaca e
Londres: Cornell University Press, 1991, p.152.
19
rizomática. Ela é parte da própria constituição arborescente proposta pelos
eugenistas, em que as relações de poder são estabelecidas entre aqueles
interlocutores interessados por essa proposta.
Esses dois conceitos, portanto, não são conflitantes, na medida em que rede,
aqui, não corresponde a rizoma também descrito por Deleuze e Guattari.29 Assim,
26
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1933: Micropolítica e segmetaridade. In: Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999 (2ª Edição), p.83-115.
27
Idem, p.89.
28
Idem, p.92. Também no livro Revolução Molecular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985; Félix
Guattari faz menção à esta espécie de rede de poder referente ao nazismo.
29
DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995, p.11-38.
20
um faz parte do outro (árvore – rede) e ambas possibilitam a emergência do
eugenismo por meio de organizações, contatos e interesses diversos – baseados
nas teorias biologizantes – que, somados, caem num ponto de acumulação. No
entanto, quando remetemos para o plano molar da eugenia utilizamos também o
conceito de braço para identificar as segmentaridades desse eugenismo: alienismo,
higiene, educação, educação física, educação sexual, legislação, genética,
imigração, cruzamentos, etc. Tais braços trabalham em prol de uma mesma idéia: o
melhoramento do povo brasileiro.
Desse modo, esta pesquisa não é uma biografia de Renato Kehl, médico
comumente mais conhecido por ser o grande representante do eugenismo no
Brasil. Não se trata também de uma investigação a respeito das relações entre
eugenia e educação, eugenia e nação ou eugenia e higiene, grandes vertentes de
análise do discurso eugenista.30 Trata-se, principalmente, de perceber a rede de
relações que compunha a empreitada pela implantação da eugenia no Brasil – seus
adeptos, incentivadores e financiadores – assim como de identificar, nos textos de
Renato Kehl, sua minuciosa tentativa de desumanizar o corpo imperfeito, ou
dysgenico,31 relacionando–o à fealdade, anormalidade, monstruosidade e doença.
30
Entre algumas delas estão: MARQUES, Vera Regina Beltrão. Eugenia e Disciplina: o discurso
médico pedagógico nos anos 20. Mestrado em Educação, Campinas/Unicamp, 1992 ; ROMERO,
Marisa. Do Bom Cidadão: as normas médicas em São Paulo: 1889-1930. Dissertação de mestrado.
FFLCH/USP, 1995. Orientação Profª Drª Laura de Mello e Souza ; LUCA, T.R.de. A Revista do
Brasil: Um diálogo para a (N)ação. São Paulo: Editora Unesp, 1999 ; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia. das Letras, 1993 e NALLI, M.A.G. O gene educado : a antropologia eugênica de Renato
Kehl e a educação. Dissertação de mestrado. UEM, Maringá, 2000. Orientação Prfª Drª Maria Lúcia
Boarini.; SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Editores
Associados, 2001.
31
Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl para designar aqueles que não se enquadram
nos padrões físicos, morais e intelectuais previstos pela eugenia. Disgenia: condição do caráter que
resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. Encontrado em: Novo Aurélio
Século XXI: op. cit.
21
transformaram no maior representante do eugenismo brasileiro. Partiremos do
pressuposto de que esta condição de Renato Kehl não é um a priori, e sim o
resultado de inúmeras relações sociais que trataremos de avaliar, tendo como
centro de debate a eugenia. Nesse sentido, este trabalho objetiva perceber como foi
possível Renato Kehl ter se transformado num dos principais, senão no principal,
representante e autor das idéias eugênicas no Brasil. Assim, além de conhecer
Kehl, torna-se uma proposta tão atraente quanto desafiadora saber quem
compunha a rede de poder do eugenismo.
32
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 35-36.
33
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: Editora da Unesp, 2000, p.81.
34
Por comunidade médico-científica entende-se os membros que pertencem diretamente a institutos
de pesquisa e de medicina, tão comuns nas primeiras décadas do século XX, tais como, Faculdades
de Medicina, Institutos de Higiene e Eugenia e Ligas de Saneamento e Psiquiatria, entre outras,
levando-se em conta que esses membros estavam na maior parte das vezes envolvidos em outras
atividades não institucionais: escreviam para jornais, possuíam fazendas, comércio, etc.
35
Entende-se por classe dominante o grupo econômico e político que se formou após a
Proclamação da República em 1889, e que comandou os mais diversos setores da vida nacional.
Constituída por jornalistas, advogados, médicos, intelectuais, fazendeiros e donos de indústrias
constituídas a partir da consolidação da agricultura exportadora do café e proprietários de comércios
na região urbana. Muitas dessas pessoas pertenciam também à categoria anterior, de forma que não
podemos generalizar e “algemar” esses grupos.
22
seus membros a participarem da empreitada pela eugenia – possibilitando o
desenvolvimento de um novo campo de saber36?
36
A expressão campo de saber é aqui incorporada baseada na leitura de Michel Foucault, em que
teoria e prática não são dois campos distintos, mas a teoria é prática. In, FOUCAULT, Michel,
Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 71.
37
Para conhecer mais sobre o neoeugenismo ver na internet diversos sites sobre o assunto. Dentre
eles: http://home.att.net/~dysgenics/eug.htm e http://www.wcotc.com/euvolution/euvolution, este
último prega o nascimento de uma nova raça. Acesso em 25/03/2003.
23
atuações em diversas áreas. Várias referências que situam esses pensadores serão
mencionadas em notas, as quais servirão, em certa medida, como um hipertexto de
informações sobre a eugenia.
38
LATOUR, Bruno. Op. cit., p. 70.
39
Amnésia foi o termo usado por Pichot para designar o ‘esquecimento voluntário’ sobre a
importância da eugenia no desenvolvimento da biologia e medicina moderna por sua vinculação com
as ações genocidas praticadadas na 2ª Guerra Mundial. PICHOT, A. O Eugenismo: genetistas
apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, p. 71-96.
40
O Professor Salvador de Toledo Piza Junior pertenceu à Escola Superior de Agricultura “Luiz de
Queiroz” (ESALQ) na Universidade de São Paulo. Carta de 19/11/1937. Cartas Avulsas. FOC
41
Monteiro Lobato, escritor e amigo pessoal de Renato Kehl. Carta escrita em Nova Iorque em
9/10/1929. Livro de Autógrafos I (1912-1929). FOC
24
Esta pesquisa foi realizada a partir de extenso levantamento de fontes em
diversos acervos e bibliotecas42, das quais destaca-se o Centro de Documentação
da Fiocruz, no Rio de Janeiro, e a Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, em São Paulo, por ali constar parte mais significativa da documentação.
42
Entre as bibliotecas e acervos visitados pode-se destacar: Biblioteca da Faculdade de
Medicina/USP, Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco/USP, Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, Arquivo do Estado de São Paulo, Centro de Documentação/Fiocruz/RJ.
25
Paulo e Rio de Janeiro serão os locais privilegiados para mapear a rede de Renato
Kehl.
43
KEHL, Renato. Por que sou eugenista? 20 Anos de Campanha Eugênica. 1917-1937. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1937. BMA
26
correspondências que necessitaram ser tratadas separadamente. Trata-se de “O
Choque das Raças”: o segundo item desse capítulo. Renato Kehl e Monteiro Lobato
revelaram-se, além de grandes escritores, cúmplices. Relacionando-se
intensamente entre 1923 e 1930, Lobato publica o livro O Presidente Negro, um
manifesto eugênico pouco destacado em sua obra, e troca correspondências
bastante polêmicas com Kehl.
44
Termo usado por Renato Kehl para elogiar a atuação de Oliveira Vianna como sociólogo em carta
de 04/09/1931, Rio de Janeiro. FOC
27
Dos encantados da Amazônia aos orixás da
1. A Institucionalização da Rede
1
Citação feita por Renato Kehl no livro Lições de Eugenia, Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1929 (1ª Edição) e 1935 (2ª Edição), p. 241.
2
O sentido de “público” aqui é usado para entender uma coisa ou idéia que não fica restrita a
um pequeno grupo, mas a quem a ela quiser ter acesso. Para o entendimento da instituição –
ou institucionalização – é necessário ter em mente que ela é resultado de uma ação social para
a formação de alguma organização ou associação, seja ela de caráter religioso, educacional,
filantrópico, médica ou eugênica.
3
Diversos trabalhos tratam da temática do eugenismo e contribuíram de forma fundamental,
juntamente com as fontes trabalhadas, para a construção deste capítulo. Entre eles citamos os
principais: MARQUES, Vera Regina Beltrão. A eugenia da disciplina: o discurso médico-
pedagógico nos anos 20. Tese de mestrado. Departamento de Educação, Unicamp, 1992;
NALLI, Marcos. O gene educado: a antropologia eugênica de Renato Kehl e a educação.
Dissertação de Mestrado. UEM, Maringá, 2000.; LENHARO, Alcir. A sacralização da política.
Campinas: Papirus, 1986 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia.
das Letras, 1993.
29
será posteriormente – como se vê no capítulo Bastidores Eugênicos –
complementada nas relações pessoais entre Renato Kehl e os adeptos do
eugenismo não somente no Brasil, como também no resto do mundo.
4
Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin e um de seus primeiros seguidores.
Criador da biometria, disciplina que aplica os métodos estatísticos à biologia, e especialmente
ao estudo da hereditariedade, é considerado o pai da eugenia. Publica seu primeiro livro
Hereditary Genius em 1869, e usa pela primeira vez o termo eugenia em 1883 (em inglês
eugenics, do grego eugenes, que significa “bem nascido”). PICHOT, André. O eugenismo:
genetistas apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 18-19. Para saber mais
sobre Francis Galton, consultar também os trabalhos: PELÁEZ, Raquel Alvarez. Sir Francis
Galton, padre de la eugenesia. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/
Cuadernos Galileu, 1985 e GALTON, Francis. Herencia y eugenesia. Madri: Alianza Editorial,
1988 (tradução de Raquel Alvarez Peláez).
5
Charles Robert Darwin (1809-1882), cientista britânico, que criou as bases da moderna teoria
da evolução ao apresentar o conceito de que todas as formas de vida se desenvolveram em
um lento processo de seleção natural. Seu trabalho teve uma influência decisiva sobre as
diferentes disciplinas científicas e sobre o pensamento moderno em geral. Publicou em 1859
seu livro mais conhecido A Origem das espécies por meio da seleção natural. O eugenismo
está historicamente ligado à teoria darwiniana. Enciclopédia Encarta e PICHOT, Op. cit., p.15.
6
Sobre as práticas eugênicas, os Estados Unidos foram o primeiro país a regulamentar a
esterilização a partir de 1907, no Estado da Indiana; em 1909, em Washington, Connecticut e
Califórnia. Em 1928, foi implantada na Suíça e no Canadá; em 1929, na Dinamarca; em 1934,
na Noruega e Alemanha; em 1935, na Finlândia e Suécia. Nos países latino-americanos não
houve uma aceitação das práticas de esterilização, principalmente pela sua maioria católica.
PICHOT, Op. cit., p. 47.
7
Chamo estratégias de linguagem o modo como práticas discursivas são construídas com a
finalidade de seduzir um determinado grupo de pessoas ou um setor social. A estratégia de
linguagem se aproxima do poder de persuasão.
30
premunindo, enfim, a família e a sociedade contra o
abastardamento. (...) desde as prédicas morais de
Abraão e de Moisés; desde quando Licurgo ditou e
impoz as leis que fizeram a glória de Esparta, e
outros ainda se escoaram sob normas religiosas
para o melhoramento moral da humanidade. (...)
Pastores de alma, apóstolos e filósofos, mestres,
educadores e cientistas, todos se esforçaram por
tornar o homem mais homem, portanto menos
animal, mais sadio e de melhores sentimentos, sem
que se evidenciassem os resultados na altura dos
esforços dispendidos.
8
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. op. cit., p. 12. FMD
9
Ibdem.
10
Parasitismo é o modo como Renato Kehl se refere àqueles que vivem sob a tutela ou ajuda
do Estado, por não poderem desenvolver atividades produtivas (ou não conseguirem inserir-
31
brasileiros. Impedir o parasitismo é contribuir para o progresso da sociedade, já
que, com a eliminação do fardo social que sobrecarrega o Estado, o progresso
da civilização estará garantido.
Para Renato Kehl, não é utópica a idéia de criar uma civilização bela
física e moralmente, mas essa via só é possível se houver o desligamento da
relação do homem com a natureza, vista como selvagem e sinônimo de paixão,
ou seja, sem racionalidade. Essa idéia é muito parecida com aquela
desenvolvida pelos iluministas do século XVIII, que viam na racionalidade o
único viés possível para o progresso social, colocando no extremo oposto
se), contradizendo a doutrina darwiniana da seleção natural, uma vez que os menos aptos
acabam sobrevivendo, representando um peso para a sociedade considerada produtiva.
11
Para pensar o espelho, usamos a metáfora desenvolvida por Michel Foucault em Lugares
Outros, 1984. A utopia é o reflexo do espelho, ou seja, algo que é projetado como imagem que
existe, mas não está lá de fato. In: Ditos e Escritos, vol. 4.. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001.
12
Renato Kehl foi mais enfático na afirmação do ideal da beleza grega no livro A Cura da
Fealdade. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1923, p. 11-15. BMA
13
Idem p. 14
32
características como a paixão, o espírito e a ficção (entre outras),
representadas como desvios da verdade (e também como reflexos da vida
selvagem e animal) e do bom cumprimento das normas sociais.
14
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p.23.
15
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1923, p.
51. FDR
16
Desde o século XIX já existia essa relação entre médicos e legisladores, mas é a partir das
primeiras décadas do século XX que esta atuação se acentua.
17
Para saber mais sobre a medicalização da sociedade ver: MACHADO, Roberto (org.)
Danação da Norma. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978. Merecem destaque também os
trabalhos sobre saúde pública em São Paulo e Rio de Janeiro, tal como: RIBEIRO, M.A.
História sem fim:inventário da saúde pública. São Paulo: Unesp, 1993; YIDA, M. Cem anos de
saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Unesp, 1994 e TELAROLLI JR., R. Poder e
Saúde: as epidemias e a formação dos serviços de saúde pública em São Paulo. São Paulo:
Unesp, 1996.
33
todo o tempo. Muitos debates serão travados entre eles, principalmente para
definir quais seriam os limites da autoridade médica diante da sociedade,18
onde e como ela deveria interceder e intervir.
18
Para saber mais ver: ANTUNES, J.L.F. Medicina, leis e moral. São Paulo: Unesp, 1999.
19
Os primeiros trabalhos sobre a eugenia no Brasil, até a primeira conferência de Renato Kehl
em 1917, foram: A. J. Souza Lima, “Exame pré-nupcial”. Discurso na Academia Nacional de
Medicina, 1897; J.B. Lacerda, “O Congresso Universal das Raças”, de Londres. Rio de Janeiro:
Ed. Papel Macedo, 1912; J.B. Lacerda, “Sobre os mestiços (publicado em francês). Paris:
Imprimiere Devouge, 1912; A. Ferreira de Magalhães, “Pró-Eugenismo – Conferência de
proteção à infância”; Anônimo, “O problema sexual”, prefácio de Ruy Barbosa e Coelho Neto,
1913; Alberto Torres, “O Problema Nacional Brasileiro”, Rio de Janeiro: Ed. Imprensa Nacional,
1914; Alexandre Tepedino, “Eugenia”. Tese. Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 1914; Rodriguez Doria, “O Erro Essencial da pessoa na
lei brasileira do casamento civil”, Bahia: Imprensa Official, 1916. In KEHL, Renato, Sexo e
Civilização, Op. cit., p. 269.
20
Entenda-se “cenário eugênico” como categoria de análise a ser construída ao longo do
trabalho para pensar a rede de Renato Kehl e o campo de debate que se formou em torno
desse tema.
21
Renato Kehl nasceu em 1895 em Limeira, interior de São Paulo. Formado em 1909, pela
Escola de Farmácia de São Paulo e em 1915 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Empenhou-se durante a vida na vulgarização da eugenia. Escreveu diversos livros sobre o
assunto e colaborou com diversos jornais e periódicos especializados, nacionais e
internacionais. Mello, Luis Correia. Dicionário de autores paulistas. Comissão IV Centenário da
Cidade de São Paulo, p. 287-288.
22
Conferência realizada em 13 de abril de 1917 na Associação Cristã de Moços de São Paulo,
publicada no Jornal do Commercio, Edição paulista, 19 de abril de 1917. In: Annaes de
Eugenia, São Paulo, 1919, p. 65. CP
34
A definição é curta, os seus fins é que são
immensos; é a sciencia do aperfeiçoamento moral e
physico da espécie humana.23
23
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p. 13.
24
Idem, p.15.
25
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op. cit.
26
A guerra a que Kehl se refere é a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Primeiro conflito na Europa
do século XX em que a tecnologia bélica surpreendeu o mundo, por trazer, entre outras coisas,
as armas químicas e os aviões, apesar do combate ter sido travado principalmente nas
trincheiras.
27
Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl. Disgenia: Condição do caráter que
resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. De acordo com o Novo
Dicionário Aurélio Século XXI, op. cit.
28
Ceifador: arrebatar, tirar (a vida), de acordo com Novo Dicionário Aurélio Século XXI, op. cit.
29
Conferência de 13 de abril de 1917, publicada no Jornal do Commercio, edição paulista em
19 de abril de 1917, In: Annaes de Eugenia, op. cit.
35
se pela discussão registrada na imprensa sobre a composição da
nacionalidade brasileira. Os objetivos estavam em cuidar da higiene da raça
para a grandeza da nacionalidade30. No entanto, na Europa e nos Estados
Unidos, o eugenismo visa à regeneração das massas e à criação de exércitos
capacitados, pois a guerra gerou tal derramamento de sangue anemiando-se
os povos em luta, com o sacrifício de seus elementos essenciais.31
30
Idem.
31
Idem.
32
Sobre este assunto a bibliografia é vasta. Ver principalmente: RAGO, L. M. Do cabaré ao lar:
a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985;
MARQUES, Vera Regina Beltrão. A eugenia da disciplina..., op. cit.; CUNHA, Maria Clementina
Pereira. O Espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra, 1986.
33
Coloca-se a discussão de que tipo de povo brasileiro queriam os republicanos. Já naquele
período soava contraditório pensar numa homogeneidade no Brasil, tendo em vista os grandes
fluxos migratórios ocorridos no país desde a chegada dos primeiros europeus.
36
dezenove o foi da luz. Da liberdade e da saúde
serão os annos vindouros.34
34
Conferência de 13 de abril de 1917, In: Annaes de Eugenia, Op. cit.
35
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: vontade de saber. Vol. 1, São Paulo: Editora
Graal, 1988, p. 130.
36
Idem, p. 132.
37
MARQUES, V.R.M. Eugenia da disciplina... Op. cit., pág. 31.
38
Sociedade Eugenica Argentina (Buenos Aires, 1919), fundada por Victor Delfino; Sociedade
Eugenica Del Peru (Lima, 1919), por iniciativa do médico e escritor Paz Soldan. In, Jornal do
Commercio, 04/04/1919. FOC
39
Arnaldo Vieira de Carvalho. Médico de família ilustre formado pela Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1889, fundou o Instituto Vacinogênico de São Paulo (que em 1925 foi
incorporado ao Instituto Butantã) sendo seu diretor em 1892, trabalhou no corpo clínico da
Santa Casa de Misericórdia a partir de 1897. Fundou a Faculdade de Medicina de São Paulo
em 1913 e foi seu diretor até seu falecimento em 1920. Tinha como genro Júlio Mesquita,
fundador do jornal “O Estado de São Paulo”, que em 1917 fez uma campanha para arrecadar
fundos para a construção da primeira sala de operações da América do Sul no hospital da
Santa Casa de Misericórdia. In: jornal O Estado de São Paulo, 15 de agosto de 2001.
40
Olegário de Moura, segundo consta, presenciou em 1922 uma experiência sobrenatural na
Academia de Estudos Psíquicos Césare Lombroso, em São Paulo, em que ele e o Dr. Carlos
Pereira de Castro acompanharam a materialização e levitação de um homem que se
37
presidente); Renato Kehl (secretário geral); T. H. de Alvarenga e Xavier da
Silveira (segundos secretários); Argemiro Siqueira (tesoureiro arquivista);
Arthur Neiva41, Franco da Rocha42 e Rubião Meira (conselho consultivo).
apresentou como Harun al-Rashid e que falava árabe. Em outro caso, houve a materialização
de Giuseppe Parini, poeta italiano do século XVIII, que foi relatado numa tese de autoria do Dr.
Brasílio Marcondes Machado, intitulada Contribuição ao Estudo da Psiquiatria (Espiritismo e
Metapsiquismo), apresentada em 26 de dezembro de 1922 na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, e foi recusada.
41
Arthur Neiva (1880-1943) - Viajou em 1912 para os estados de Goiás, Bahia, Pernambuco e
Piauí com Belisário Penna (sogro de Renato Kehl), publicando em 1916 os resultados desta
viagem exploratória que mostravam as condições de vida nos sertões brasileiros. Neiva, A. e
Penna, B. “Saneamento do Brasil”, Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunaes, 1918.
42
Franco da Rocha (1864-1933). Idealizador e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, foi
o primeiro professor de Clínica Neuropsiquiátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo, para
a qual foi nomeado em 1918. Sua aula inaugural, em 1919, versou sobre a Doutrina de Freud e
ganhou espaço no jornal O Estado de São Paulo, sendo publicada como artigo.
43
Jornal O Estado de São Paulo, Edição Noite, 27/06/1919.
38
campo de trabalho e discussão sobre os problemas nacionais acerca da
composição da população brasileira.
44
Annaes de Eugenia, São Paulo, 1919, p. 6-7.
39
• Saneamento no Brasil – Eugenização no Brasil (Medicina Política) –
Olegário de Moura;
45
Exemplar de difícil acesso, atualmente raro, dado seu desaparecimento do Instituto Oscar
Freire, após o empréstimo feito a uma grande exposição em São Paulo e sua não devolução
após o término da mesma. Utilizou-se nesta pesquisa uma fotocópia particular.
40
Infelizmente, a Sociedade Eugênica de São Paulo,
que tive a honra de fundar sob os auspícios do Prof.
A. Vieira de Carvalho, e que foi a primeira da
América do Sul, mantem-se, actualmente, em
estado de latência, devido a inconstância no
enthusiasmo que despertam as iniciativas no nosso
paiz. Nascida sob os melhores influxos, após
memoráveis sessões, em muitas das quaes dói
debatida, ardorosamente, a questão dos
casamentos consangüineos, e depois de ter
publicado um grosso volume intitulado “Annaes de
Eugenia” deixou-se ficar paralyzada. De nada
valeram os meus esforços, ao deixar São Paulo,
para que a Sociedade Eugênica tivesse um
modesto agasalho e o valioso bafejo46 da Sociedade
de Medicina e Cirgurgia daquella capital. Enfim,
apesar da desídia que ameaça aquella nobre
instituição paulista, tenho a alentadora esperança
de ver a Eugenia contando cada vez maior numero
de proselytos, entre os meus patricios e, talvez,
mesmo, de vir a ser fundado, no Rio de Janeiro, um
Centro Brasileiro de Eugenia.47
46
Aura de sorte; favor, proteção, fortuna, bafo, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio Digital
Século XXI. Op. cit.
47
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p. XI-XII.
41
iniciativa de vanguarda? Ou então, teria tido alguma influência nesse fato a
mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro nesse mesmo ano, por conta
de seu casamento com Eunice Penna, filha do sanitarista Belisário Penna? Ou
ainda, porque a elite paulista não tinha um real interesse nesse tema, sendo a
Sociedade somente o pretexto para reuniões periódicas para a discussão dos
mais diferentes temas?
Com sua mudança para o Rio de Janeiro, Renato Kehl aliou-se à Liga
Brasileira de Higiene Mental, fundada em 192348 por iniciativa do psiquiatra
Gustavo Reidel, após ter recebido o Grande Prêmio da Exposição Internacional
de Higiene de Estrasburgo, na França. Participavam da Liga a elite da
psiquiatria nacional, médicos, educadores, juristas, intelectuais em geral,
empresários e alguns políticos brasileiros.49 Apesar de estar vinculado à Liga
de Higiene Mental, percebe-se que houve um certo hiato na atuação de Kehl
em prol da eugenia. Mesmo sabendo que importantes livros foram escritos por
ele durante o período de 1920/1929, não vemos um Renato Kehl atuante, no
que diz respeito à institucionalização da eugenia. Isso talvez porque no Rio de
Janeiro ainda não tivesse sido criada uma Instituição específica para o debate
do eugenismo em toda a sua extensão. Deveria haver um esforço para a
formação dessa instituição, e Kehl levou nove anos para concretizar esse
desejo. A nova oficialização de uma entidade preocupada em discutir assuntos
relacionados ao eugenismo, em suas mais diversas dimensões, como a
48
A Liga de Higiene Mental funcionou entre os anos de 1923-1947. Para saber mais ver dois
relevantes trabalhos sobre o tema: BOARINI, Maria Lucia e YAMAMOTO, O.H. Higienismo e
Eugenia: discursos não envelhecem. In: Psicologia Revista. PUC/SP: 2002 e CUNHA, Maria
Clementina Pereira. O Espelho do mundo... op. cit..
42
psiquiatria, a imigração, a prostituição e o trabalho, entre outros, reacendeu o
debate iniciado em São Paulo em 1918, além de rearticular um novo grupo de
interessados em discutir a eugenia.
É certo que a própria Liga agia com os preceitos eugênicos, como afirma
Luzia Castañeda,51 pois para seus membros era preciso prevenir a sífilis, a
tuberculose e o alcoolismo, todos eles fatores considerados degenerativos da
raça, contribuindo com o empobrecimento, a miséria e a loucura. Desta forma,
são colocados no mesmo nível fenômenos de origens diferentes, como a
miséria, que tem origem social, e a loucura, que tem origem psicológica.
49
CASTAÑEDA, Luzia A. Apontamentos historiográficos sobre a fundamentação biológica da
eugenia, In: Revista Episteme, Porto Alegre, Vol. 3, nº 5, 1998, p.23-48.
50
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p. 20.
51
Idem, p.38.
52
Para maiores informações sobre as campanhas de prevenção feitas pelos departamentos
estaduais de saúde pública ver: MORAES, Mirtes. Imagens e Ações: Representações e
práticas médicas na luta contra a tuberculose. São Paulo. 1899-1930. Dissertação de
43
evitando a sociedade dos doentes. Percebe-se aí a dimensão a-histórica do
eugenismo, levando-se em conta que não se admitia a origem social da
doença. Acreditava-se que a tuberculose, por exemplo, era uma doença
degenerativa, passada dos pais para os filhos. A biologização da vida social se
tornava o fundamento de toda a propaganda eugênica. Mas não apenas o
eugenismo estava impregnado das idéias biologizantes. Essa tendência era
particular do período, enfatizada e fundamentada pelos trabalhos da sociologia
do início do século, que viam o corpo como uma máquina e a sociedade como
um corpo.
Mestrado. História PUC/SP, 2000 e GONÇALVES, Adílson José. SPES: Saúde Pública,
educação e comunicação. Tese de Doutorado. História PUC/SP, 2001.
53
Declaração de Gustavo Riedel na Primeira Sessão do Congresso Brasileiro de Eugenia, In:
Actas e Trabalhos, Congresso Brasileiro de Eugenia, Vol. 1. Rio de Janeiro, 1931. FDR
54
Termo criado na Inglaterra, no século XIX, no período do estabelecimento da Lei dos Pobres,
que criou espaços assistencialistas para os moradores dos cortiços de Londres, que, por causa
do desemprego e da insalubridade, inevitavelmente adoeciam e caíam na marginalidade e no
crime, significando ameaça à burguesia. Ver mais em: BRESCIANI, Maria Stela. E também no
trabalho clássico do pensador que criou a definição, CHEVALLIER, Louis. Classes laborieuses
et classes dangereuses. Paris: Hachette, 1984.
55
Ressaltamos a importância de um estudo detalhado sobre a produção do Boletim de
Eugenia, em que consta material riquíssimo para quem se interessa pelo tema da eugenia, tal
como o trabalho de MAI, Lílian Denise, Boletim de Eugenia (1929-1931): um estudo sobre
forças educativas no Brasil, Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. Universidade
Estadual de Maringá, PR, 1999. (Sob orientação de Maria Lúcia Boarini)
44
desde ano, sob a direção de Kehl – ele de volta, atuando em favor da cruzada
eugênica56. É de se notar o amadurecimento do autor após mais de uma
década do início de sua ‘jornada’, pois se, antes, sua atuação restringia-se ao
espetro da Sociedade Paulista, agora o Boletim trava correspondências com
estudiosos da eugenia em todo o mundo, além de outras partes do Brasil,
como poderá ser visto no desenrolar deste trabalho.57
56
Termo usado por Renato Kehl em 1937 em seu livro Por que sou eugenista? 20 anos de
campanha eugênica. 1917-1937. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937. FMA
57
Esta afirmação refere-se às reflexões que serão desenvolvidas no próximo item deste
capítulo: Tupy or for Tupy? e ao segundo capítulo: Bastidores Eugênicos.
58
Actas de Trabalho. 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Op. cit.
45
Talvez pelo número de participantes e pelo teor dos trabalhos apresentados?
Talvez também porque as discussões sobre legislação eram mais valiosas,
naquele momento histórico, que as questões de genética, ou então de
antropologia? Ou ainda, devido à disputa pela formulação das leis – já indicada
anteriormente – entre médicos e advogados?
59
Renato Kehl foi funcionário da empresa A Química Bayer entre os anos de 1923 e 1944,
ocupando os cargos de farmacêutico responsável e diretor médico, que elaborava as
propagandas de medicamentos daquela companhia.
60
Edgar Roquette-Pinto (1884-1954). Formado médico pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Participou da Missão Rondon pelo noroeste do Mato Grosso. É pioneiro da radiofonia
no país. Foi diretor do Museu Nacional e do Instituto Nacional do Cinema Educativo que fez o
filme “O Descobrimento do Brasil”. Almanaque Abril: Quem é Quem na História do Brasil. São
Paulo: Editora Abril, 2000, p. 419.
46
Durante muito tempo, disse, supoz-se que o meio
dominava os organismos, portanto a medicina e a
hygiene resolveriam o problema da saúde; mas a
sciencia demonstrou haver alguma cousa que
independe da hygiene: é a semente, a herança, que
depende da eugenia. É preciso, accrescenta, tratar-
se da semente e assim a Academia de Medicina
deu um grande passo, mostrando que, ao lado da
medicina e da hygiene, há uma sciencia com muitos
pontos de contacto com as primeiras e que nesse
momento congregar as pessoas de boa vontade.61
61
Actas de Trabalho. 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Op. Cit.
62
KEHL, Renato. A definição oficial da palavra ‘Eugenia’, In: Educação Eugênica, Exemplar 1,
Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1932, p. 14.
63
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Op. cit., p. 96.
64
Esta citação é extraída da 2ª Reunião do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia... op. cit., p.
132.
65
Idem, p. 138.
47
A crítica ao estado emocional dos mestiços no Brasil é racial e tem um
apelo de ordem moral e não eugênico. Tal afirmação anuncia uma vertente
muito difundida pelo eugenismo de Renato Kehl, que era não enfatizar
demasiadamente o problema racial. Ele era visto como importante, mas o que
interessava mesmo aos eugenistas era extirpar do corpo social os indesejáveis.
Apresenta-se uma dupla vertente, que deve ser levada em conta, já que se
tornou muito difícil colocar numa mesma categoria, em sua vertente teórica,
Renato Kehl e seus companheiros, pela ambigüidade de suas afirmações.
Levando a fundo o problema racial e o problema da higiene, amplamente
discutidos pelos eugenistas, inevitavelmente serão encontrados muitos pontos
de concordância e de divergência. Muitas vezes eles serão encarados como
sinônimos e outras como coisas distintas. Nas palavras de Renato Kehl: a
eugenia é a higiene da raça.66
66
KEHL, Renato. Sexo e Civilização , Op. cit., pág. 51.
67
LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação.São Paulo:
Editora da Unesp, 1999, p. 205
48
remoto, não somente pelos médicos e homens de
sciencia, mas pelos homens de Estado.69
68
MARQUES, V.R.B. A eugenia da disciplina..., Op. cit., p 04.
69
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social, Op. cit., p. 33.
70
SCHWARTZMAN, Simon. Formação da Comunidade Científica no Brasil. Rio de Janeiro:
Finep, 1979, p. 155.
71
Alfonso Bovero participou do 1º Congresso de Eugenia em 1929. In: Actas de Trabalho, op.
cit.
49
Higiene72, através de um convênio com a Fundação Rockfeller, a fim de obter
autonomia da Faculdade de Medicina, onde seu espaço institucional era
limitado. O interessante é que todo o treinamento do Instituto terá influência
direta norte-americana, diferentemente da orientação européia dos serviços
legislativos, burocráticos e médicos de até então.73
72
Sobre o Instituto de Higiene e toda a composição do arsenal propagandístico do período
através das campanhas de prevenção de doenças sociais (sífilis, tuberculose, alcoolismo, etc.)
ver o completo trabalho de GONÇALVES, Adilson José. SPES: Saúde Pública, educação e
comunicação, op. cit.
73
YIDA, Massako. 100 Anos de Saúde Pública: a cidadania roubada. São Paulo: Editora da
Unesp, ANO, p. 52
74
A despistagem é um conceito usado por André Pichot, para definir na contemporaneidade as
práticas da terapia genética, na qual manipulações genéticas são feitas para evitar o
nascimento de crianças com doenças consideradas congênitas, tais como, a mucoviscidose e a
miopatia de Duchenne. Essa prática não carrega consigo o termo eugenismo, mas os
geneticistas o revestem com uma outra expressão, eutanásia preventiva. In: PICHOT, André.
Op. cit., p. 99-132. Para entender melhor a relação entre a despistagem e a eugenia no mundo
contemporâneo ver: ROUSSEL, François. L’ eugenisme: analyse terminée, analyse
interminable. In: Esprit. Paris: Junho, 1996, nº 222, p.26-54.
50
Central Brasileira de Eugenia, centro de estudo e de
irradiação para a propaganda da eugenia, que aliás
vinha sendo feita entre nós com perseverança,
porém desconnexamente. Acompanhando o
movimento mundial em torno dos problemas da
regeneração eugênica do homem, mantendo,
mesmo, intensa correspondencia com as principaes
associações existentes na Europa e na América do
Norte, convenci-me de que não mais era possível
protellar o projecto.
51
humanitários de caracter eugênico, dispensando as
reuniões periódicas.
Como pode ser visto, a proposta da formação da CCBE não previa uma
localização fixa. As atividades da comissão seriam realizadas por meio de
correspondências entre seus componentes, desde que se tivesse em comum a
temática a ser discutida. A extinção das sessões e reuniões – criticada por Kehl
– fornece uma pista do porquê desse novo formato. No 1º Congresso Brasileiro
de Eugenia, as sessões de Educação e Legislação – já citadas – estavam
repletas de polêmicas, e ao final das reuniões poucas eram as opiniões de
consenso. Tal dinâmica de trabalho da Comissão favorece também o debate
entre Renato Kehl e pessoas de diversas partes do Brasil e do mundo. Estados
como Pernambuco, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, entre outros, estavam
representados nas correspondências recebidas por Renato, o que poderá ser
visto no próximo capítulo.
75
KEHL, Renato. A Campanha da Eugenia no Brasil. In: Archivos Brasileiros de Hygiene
Mental, nº 2, Mar-Abr/1931. FOC
52
A maneira como Renato Kehl se coloca no texto reproduzido acima
propicia uma outra compreensão de seu papel na rede de relações eugênicas.
Ele se coloca no centro quando diz que as theses e outros assumptos levados
á commissão serão remettidos aos seus membros para que opinem, por
escripto, remetendo suas respostas ao presidente que, por sua vez, apurará a
opinião da maioria. Portanto, Kehl coloca-se como responsável pelo bom
andamento da comissão e pela intermediação entre seus participantes. Neste
caso, Kehl é representado como a autoridade, o poder, o centralizador das
decisões acerca dos rumos da CCBE. No entanto, ele não está sozinho no
centro de sua iniciativa. Kehl conta com o apoio de setores da elite brasileira
assim como, ele depende do conhecimento da mesma em relação às suas
idéias.
53
apresentados ao Ministério do Trabalho. Além disso, encontra-se aqui talvez,
uma das únicas leis diretamente eugenista, para estimular a educação
eugênica no país.
76
KEHL, Renato. A Eugenia no Brasil: Registro de uma data comemorativa. Publicado no A
Gazeta, março, 1951. Papéis Avulsos. FOC
77
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit. p. 125.
78
SCHWARCZ, Lillia. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo
no final do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.
54
Desta forma, a ansiedade por uma identidade genuinamente brasileira
fez emergir – por parte de teóricos de diversas correntes – leituras de caminhos
possíveis a serem percorridos pela nação para a consolidação de seu povo. Do
branqueamento pelo cruzamento, do cruzamento entre raças somente
(miscigenação) ou pelo segregacionismo das raças. A eugenia insere-se numa
dessas leituras originadas no final do século XIX, mas implantada somente nas
primeiras décadas do século XX, tendo em seu interior as três tendências de
melhoria da nacionalidade citadas acima. Renato Kehl pertence à última
corrente de pensamento, a segregacionista, como veremos adiante.
Fica a impressão, também, que Renato Kehl foi deixado sozinho, como
se somente ele tivesse participação ativa no eugenismo. Houve muito
investimento e dedicação por parte da intelectualidade brasileira para a
formação do campo da eugenia. Articulados em todo o país,81 esses
intelectuais tinham como foco norteador a figura de Renato Kehl. Interessante é
79
Não me refiro aqui às obras produzidas no interior das universidades, mas de uma pesquisa
paralela efetuada na internet e em livros e biografias, justamente para testar os efeitos
prolongados dessa participação em meios de comunicação de circulação pública. O resultado
dessa pesquisa apontou, na maioria dos casos, a omissão dos dados sobre a participação
dessas pessoas no metiér eugênico.
80
Como fonte de pesquisa foram utilizadas: Almanaque Abril: Quem é Quem na História do
Brasil; sites de busca na internet, principalmente http://www.google.com.br; Enciclopédia
Encarta Digital 2000; entre outros.
81
Não estou aqui querendo inferir sentido de conspiração nacional em prol da eugenia nesse
desenredamento. Restringimo-nos à idéia de rede que se evidencia no grande número de
correspondências enviadas e recebidas por nosso vetor indicativo, Renato Kehl.
55
pensar de que maneira, após mais de 70 anos da plena divulgação da eugenia,
não encontramos tal participação na biografia desses adeptos e investidores –
o que nos abre um caminho de análise bastante interessante, já que questiona
o próprio papel dos historiadores e seu comprometimento com a ética nas
análises e abordagens de determinados temas. Daí a importância, neste
trabalho, de apurar a rede de poderes que compunha a empreitada pela
eugenia. Para isso, foi necessário traçar neste item o caminho das relações
públicas entre Renato Kehl e os adeptos do eugenismo no Brasil. O próximo
item abordará as relações públicas entre Kehl e os pensadores do eugenismo
fora do Brasil. Chamando a si mesmo de simples propagandista da eugenia82,
objetiva-se perceber qual era o tipo de relacionamento estabelecido por Kehl
com a comunidade científica internacional.
82
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit, p.12.
56
2. Tupy or for Tupy?
83
Fazemos aqui uma pequena homenagem a Mario de Andrade, um entre muitos brasileiros
que estimularam o “come-te-a-ti-mesmo” dos modernistas da Semana de 22.
84
Boletim de Eugenia/Instituto Brasileiro de Eugenia. Rio de Janeiro, RJ: O Instituto, 1929-
1931. Suplemento da Medicamenta: Rio de Janeiro. (36 fascículos). Para conhecer mais ver a
dissertação de mestrado sobre a abordagem educacional dos Boletins em: MAI, Lílian Denise,
Boletim de Eugenia (1929-1931): um estudo sobre forças educativas no Brasil, Op. cit.
85
Pequeno porque tinha 4 páginas nas suas primeiras edições, passando a 8 até dezembro de
1931, período da coleção do Boletim a ser estudada.
57
Os Boletins foram observados sob a seguinte perspectiva: as notas e
artigos que compunham cada edição, selecionando aqueles que falavam sobre
os casos internacionais, e as notas escritas por autores estrangeiros.
Surpreendente foi perceber que discorriam sobre um mesmo problema, o que
André Pichot identificou como a genética das populações.
86
PICHOT, André. Op. cit., p. 78.
87
A genética fisiológica estuda a natureza dos genes, o modo como são fabricados,
transmitidos à descendência e se manifestam nessa descendência através deste ou daquele
caractere anatômico, fisiológico ou bioquímico. A genética fisiológica trabalha no nível
individual, ou, pelo menos, numa única linhagem, da qual estuda sucessivas gerações. Claude
Bernard é considerado o pai da fisiologia. Pichot, Op. cit. p.83.
58
agravam ainda mais a decadência, o abastardamento do
gênero humano.88
88
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p.44.
89
FOUCAULT, Michel. Capítulo V – o direito de morte e o poder sobre a vida, In História da
Sexualidade 1: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988 (14ª edição), p.131.
90
Idem.
59
corpo pode ser representada, por exemplo, pela disputa entre a Igreja – que
propõe a cura da alma, com base assistencialista – e a ciência – que busca a
conscientização do indivíduo para o cuidado de si. A ciência cria estratégias
para que as pessoas se sintam responsáveis por si e, deste modo, parte da
coletividade. Nas fontes, em particular nos Annaes de Eugenia, percebe-se que
o eugenismo de Renato Kehl critica abertamente a atuação da Igreja frente aos
problemas da sociedade. No entanto, ressalta Lenharo,91 a Igreja não
descuidou de se apropriar da racionalidade e dos avanços científicos. Na
imagem de Cristo – por exemplo – foram depositados os significados do Cristo
que vigia, admoesta, policia e, através desta imagem, a Igreja não somente
explicita o que pensa das relações de trabalho; ela faz da imagem o seu
recurso de intervenção nas mesmas relações.92
91
LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. Op. cit., p. 169.
92
Idem, p. 171.
93
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº5, Maio, 1929, p. 3. FDR
60
‘escravo do relógio’ pela disciplina da fábrica. O foco dos problemas apontados
direciona para os causadores das mortes no trânsito, os bêbados e os
nervosos. A crítica aos alcoólatras é resultado de uma situação agravada pela
Lei Seca em vigor desde 1918 nos Estados Unidos.95 Destaca-se, também, a
importância da genética das populações, revelada nos dados numéricos dos
acidentes: ‘a cada 42 segundos uma pessôa morre por accidente’. O
reducionismo matemático mostra o quanto esses acidentes atingem números
assustadores. Perde-se, a noção de totalidade, pois os números somente
assustam, por excluir o rosto da vítima, transformando-a numa estatística.
Assustam ainda mais, porque os autores dos acidentes são indivíduos
alcoolizados e nervosos. Os primeiros costumavam relacionar o crime, os
segundos à loucura. Esse texto repete-se no boletim de setembro de 1929,
com uma ressalva. É introduzido mais um primeiro parágrafo, que potencializa
o efeito dos dados da nota.
Ora, por que esse parágrafo foi acrescentado à nota? Seria porque a
partir do número 6/7 o Boletim passa a circular como suplemento da Revista
Medicamenta97? A ênfase no aspecto da degeneração crescente – lembrando
o linear ascendente da linha evolutiva em seu sentido negativo – alcançará o
caos, a calamidade. Mas, afinal, para Kehl e outros eugenistas, os Estados
Unidos não são o exemplo de civilidade? Por que então enfatizaria esse
discurso? Por que, sendo nessa época os Estados Unidos sinônimo de
modernidade e civilidade, os eugenistas o vêem negativamente?
94
Em negrito no original.
95
CATTON, Willian B. História Moderna dos Estados Unidos, Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1965, p. 508. Apesar de estar em vigor, o comércio ilegal de bebidas, a partir da Lei
Seca, gerou um novo hábito de beber em bares clandestinos e nas residências. Mas pode-se
afirmar que muito antes da Lei Seca ser instituída nos Estados Unidos o alcoolismo já
representava um problema social.
96
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro, 1929, p. 4.
97
A Revista Medicamenta era uma publicação mensal da Nacional Academia de Medicina.
61
Em A criminalidade na América do Norte98, artigo de Medeiros de
Albuquerque, afirma-se que os casos de criminalidade nos Estados Unidos não
são praticados pelos estrangeiros, como sugere Gabriel de Andrade e os
daquele país. Argumenta com a tese de que os Estados Unidos foram
originalmente constituídos de 500 mil criminosos degradados pela Inglaterra.
Nesse sentido, para os eugenistas, os Estados Unidos, utilizando o princípio da
Eficiência, implantaram a eugenia para livrar-se dos ‘mau gerados’ e limitar
firmemente a imigração para aquele país, que desde 1917 restringiu a entrada
de europeus do leste, negros, judeus e católicos, latinos e asiáticos,
beneficiando principalmente as imigrações vindas da Grã-Bretanha, Irlanda e
Alemanha.99
98
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 2.
99
CATTON, Willian B. Op. cit., p. 549.
100
KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p.206.
101
Para saber mais ver: SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: Raça e nacionalidade no
pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
102
Idem, p. 12.
62
se que, sendo o gene branco mais forte, por meio de cruzamentos entre
brancos e negros se acabaria por clarear o povo brasileiro.103
103
Idem, p. 81.
104
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p.241.
105
Na verdade as notas internacionais não estão setorizadas, mas as defini assim, por se tratar
de um mesmo viés de seleção.
63
hereditariedade, desvio social e moral e desvio mental estariam na base da
prostituição. A dúvida fica para a última frase da citação do Boletim. Pertencem
à classe alta da sociedade 50% das entrevistadas, ou seja, em qualquer das
duas classes elas podem estar nos bordéis de luxo ou populares. Desta forma,
através dos números e de um saber médico apoiado em estatísticas e no
pressuposto de que os desvios contagiam gerações futuras, se extraiu o
determinante da prostituição.
106
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 5, Maio, 1929, p. 4.
107
RAGO, Luiza Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos de sexualidade
feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo, Paz e Terra, 1991.
108
Thomas Malthus (1766-1834), economista e demógrafo britânico, sua principal contribuição
foi a teoria da população. Enciclopédia Microsoft Encarta 2000.
64
nesse período o excesso effectivo de nascimentos
sobre mortes foi respectivamente de 213.017 e
239.518 na Itália, 194.370 e 213.287 na Allemanha,
61.397 e 80.277 na Inglaterra e Paiz de Galles e
148 e 39.734 na França. Calculando sobre 1000
habitantes o excesso dos nascimentos é pois na
Itália de 11.5 e 11.8, na Allemanha de 6.2 e 6.8, na
Inglaterra, 3.1 e 4.5 e na França 0.0 e 1.5.
109
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 6/7, Jun-Jul/1929, p. 4-5.
110
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 3.
65
(...)Os recursos territoriais serão dentro em pouco
insuficientes relativamente à progressão da
população.
111
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 3.
66
como as condições de vida seriam mais insalubres, gerando um maior número
de epidemias e miséria. Se partirmos do princípio – eugênico – de que nesses
países o nível cultural é ‘inferior’, pela própria composição genética de seus
compatriotas, as medidas eugênicas de seleção racial seriam um ‘prato cheio’.
Portanto, o controle de natalidade está presente nos dois casos citados, no
primeiro para estimular bons casamentos e no segundo para inibir a
disseminação dos considerados ‘menos aptos’.
E justifica o caso italiano, que apesar de ter ‘muita gente’, tem ‘gente
boa’:
112
Artigo extraído do jornal O Estado de São Paulo, 31/03/28. Publicado em Boletim de
Eugenia, Vol. 1, nº 8, Agosto/1929, p. 8.
67
justificar a necessidade de emigração dos trabalhadores italianos. O texto do
Boletim conclui afirmando a potência de exportação da força de trabalho
italiana, que por sinal chegou em grande quantidade no Brasil desde o final do
século XIX e que ainda adentrava pelos portos brasileiros na década de 20.113
113
Para conhecer melhor o processo imigracional no Brasil e o debate em torno da política
desenvolvida para regular esta prática no século XX, ver: LENHARO, Alcir. A Sacralização da
política. Op. cit.
114
GALVÃO, Iraci. Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada. São Paulo: Hucitec, 1986.
115
Idem, p. 137.
68
está aberto para todo o mundo, as theses, porém,
devem ser escriptas em inglez, allemão ou francêz,
assignadas por um pseudonymo e acompanhadas
de um cartão com o nome e endereço do autor. Os
trabalhos podem ser enviados até junho de 1930
para a – “Eugenics Research Association – Cold
Spring Harbor, NY – USA.
116
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p. 214.
117
Idem, p. 213.
118
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº4, pág. 3. FDR
69
A Comissão de estudos do cruzamento de raças da
International Federation of Eugenic Organizations,
com sede em New York, dirigida pelo Prof.
Davenport acaba de convidar o Dr. Renato Kehl
para collaborar nessa commissão apresentando um
estudo sobre o problema dos cruzamentos segundo
o ponto de vista brasileiro.
119
O Instituto Kaiser Wilhelm-Guilhermo de Berlim monopolizou toda a investigação sobre
gases tóxicos durante a Grande Guerra, para sua aplicação em armas químicas. No entanto,
essa não foi uma arma decisiva no conflito, já que a tradição militar era contrária e havia muitas
restrições quanto à sua aplicabilidade. SANCHEZ RON, José Manuel. El poder de la ciencia:
historia socio economica de la física (siglo XX). Madrid: Editora Sevilla, 1992, p.232.
70
recebimento de seus trabalhos e apresentar os
meus agradecimentos. Muito grato, saudações
respeitosas de Dr. Hermann Muckermann.120
Para além dos elogios tecidos pelo diretor do instituto berlinense, duas
vezes a afirmação localizada no centro do texto – ‘justamente num paiz como o
Brasil elle [o estudo da eugenia] é extremamente útil’ – demonstra o ideal de
purificação da raça, bastante explícito, porque somos miscigenados. Tanto o
autor [Dr. Hermann Muckermann], como o Prof. Fischer tornaram-se
120
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 1, Janeiro/1929, p. 3.
121
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 2.
71
colaboradores freqüentes dos boletins nas edições subseqüentes,
demonstrando certa afinidade entre essas instituições.
122
Charles Richet (1850-1935). Prêmio Nobel de Medicina em 1913 militava pelo
aperfeiçoamento da espécie humana através da seleção. “(...) deixemos a seleção natural e
tenhamos a coragem de fazer a seleção social”. Apud. PICHOT, André. Op. cit., p.27.
72
tinham publicações próprias. Constatou-se a existência de 27 associações em
1931, oito delas somente nos Estados Unidos.124
123
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 1, Janeiro/1929, p. 3.
124
Boletim de Eugenia, Vol. 3, nº 32, Agosto/1931.
125
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 2, Fevereiro/1929, p. 4.
126
Nesse período já é possível identificar um outro tipo de discurso que intervirá diretamente no
corpo feminino – o discurso do embelezamento, desde princípios do século XX inferiu diversos
significados ao ato de se embelezar e no período em questão, embelezar-se significava ser
saudável, ativa e conseqüentemente feliz. Para saber mais ver o trabalho de SANT’ANNA,
Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté... op. cit.
73
Numa carta endereçada ao ‘Times’, em nome da
‘Eugenics Society’ da qual é presidente, Leonardo
Darwin, filho do grande Charles, pede a introdução
da biologia nos programas escolares, porque o
conhecimento do quanto os maiores interesses
nacionaes estão alliados á constituição biológica
das gerações futuras, diffundindo entre as classes
cultas, constitue a única salvaguarda verdadeira
contra os perigos sociaes. Está hoje universalmente
reconhecido que as leis da herança têm vital
importância, não só para o incremente e
melhoramento dos productos da terra, como
também para o desenvolvimento da vida humana.
Darwin affirma em seguida que não unicamente os
aspirantes a uma cathedra de apicultura devem
possuir a adequada preparação sceintífica, mas é
de summa importância que todos quanto aspirem
um posto iminente na política nacional, na pratica
ou nas colônias, possuam sólidas noções das leis
que governam a existência humana e a sua
evolução.127
127
Artigo extraído da Folia Médica, publicado em 30 de abril de 1929. Boletim de Eugenia, Vol.
1, nº 6/7, Jun-Jul/1929, p. 1-3.
74
que precisa ancorar-se nas ‘leis da existência humana’ para subjugar e gerir a
vida dos ‘pobres coitados’ das colônias.
128
Carta de Monteiro Lobato a Renato Kehl, São Paulo, Fev/1920. (Livro I)
129
Quando digo respeitável, refiro-me ao obscurecimento de seu nome e de sua atuação ao
longo de sua vida dedicada aos problemas da eugenia no Brasil e que, ao contrário de outros
pensadores, caiu no esquecimento. Talvez este esquecimento seja devido à grande repulsa da
comunidade médica e da grande sociedade às práticas eugênicas após a 2ª Guerra Mundial,
em que Adolf Hitler empregou a eliminação de diversos tipos, considerados por sua ideologia,
indesejáveis. Entre eles estavam: negros, judeus, homossexuais, ciganos, deficientes físicos,
entre outros.
130
KEHL, Renato. No século da Eugenia, In Imprensa Médica. Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 231,
15/01/1937.
75
Os eugenistas não devem preocupar-se em
traçar programas para terem o prazer de os
ver completamente realizados. Se fosse
assim, não se teria construído a catedral de
Colônia, que levou vários séculos para ser
concluída.
Renato Kehl
C APÍTULO 2 – B ASTIDORES E UGÊNICOS
1. “Relações Epistolares” 1
1
Esta expressão foi usada por Renato Kehl em resposta à carta de Paz Soldan (médico
eugenista peruano) em que revela seu empenho na formação de alianças e contatos através
de correspondências escritas. Diz: Vou escrever a este notável eugenista espanhol [ Luis
77
sonoplastas e o diretor, que dali tem uma visão mais global (o desenho
cênico) e de como se desenrola a ‘trama’ teatral. Tanto quanto o pessoal que
fica nas coxias, atrás da platéia tem-se também o controle do espetáculo.
Huerta] que há muito tempo desejo contar entre os amigos com os quaes mantenho relações
epistolares (...). Renato Kehl à Paz Soldan. Rio de Janeiro, 10/12/1928.
78
estreitamento das distâncias entre dois missivistas requer um terceiro
elemento, intermediário – o correio (materializado também na pessoa do
portador da carta, do mensageiro). Esta função é tão importante quanto as do
remetente e do destinatário, por assegurar e garantir a chegada da
mensagem escrita do local original a seu destino final, confirmando com
sucesso a leitura da mesma. Nílvia Pantaleoni sugere, para a segurança do
conteúdo da mensagem, ou seja, para que a mensagem não seja lida por
ninguém além das partes envolvidas na conversa, que os mensageiros
fossem analfabetos.3 Sem tal radicalismo, os correios oficiais passaram a
assegurar a integridade das correspondências e sua não violação.
Para que haja uma relação entre as partes, o ato de abrir o envelope
de uma correspondência recebida acaba por autorizar o início da interação.
Essa interação pressupõe uma ratificação recíproca, ou seja, responder à
carta de alguém é declarar que se está aberto ao outro e vice-versa. Desta
forma, este capítulo pretende mergulhar o leitor na atmosfera íntima da
interlocução a que Renato Kehl estava sujeito enquanto membro expressivo
do eugenismo brasileiro, muitas vezes escrevendo cartas a intelectuais,
políticos e amigos, sempre inseridas nas respostas que recebeu dessas
pessoas, idéias, comentários e sugestões visando ao sucesso do eugenismo.
2
PANTALEONI, Nílvia Teresinha da Silva. As cartas de Ruy Barbosa a Maria Augusta e de
Monteiro Lobato a Purezinha: a interação por escrito e as metáforas do amor. Dissertação de
Mestrado. Língua Portuguesa, PUC/SP, 1999, pág. 3.
3
Idem, p. 7
4
GOETHE. Obras Completas. Buenos Aires: Libreria “El Ateneo” Editorial, 1953.
79
dura, com a inscrição “Autógrafos”5 na primeira capa. Neles constam as
respectivas cartas, coladas, uma em cada página, em ordem cronológica de
recebimento. Pode-se observar o caráter extremamente exigente e metódico
de Renato Kehl pelo modo como tais cartas estão acondicionadas: todas em
ordem cronológica, com números seqüenciais escritos à mão no canto
superior de cada carta, transcritas, se escritas com letra de difícil interpretação
pelo remetente, e muito bem conservadas, sem amassados ou pingos e
manchas no papel ou dobras muito firmes. Ao que tudo indica – pela
existência de dois tipos de letra nos livros, ao lado das cartas – Eunice Kehl
era a responsável pela organização da correspondência recebida por seu
marido, ocupando o posto de secretária.6 Em alguns casos, a
correspondência registra verdadeiras conversas entre remetente e
destinatário. Assim, muitas vezes, o papel entre remetente e destinatário se
confunde, por não ficar evidenciado qual foi a primeira das partes a enviar a
carta. De qualquer maneira, fica claro que Renato envia muito mais cartas do
que recebe. Na maioria das vezes, as cartas dessa coleção são respostas a
correspondências enviadas anteriormente por Renato, pois elas trazem em si
as respostas a possíveis perguntas, ou agradecimentos ao envio de
exemplares de livros recentemente publicados, tal como pode ser visto a
seguir:
5
São três livros de cartas que foram intitulados por Kehl, respectivamente: Livro I (1912-
1929); Livro II (1929-1932) e Livro III (1933). FOC
6
O fato de Eunice ser secretária de Renato Kehl indica que ela organizava também a
correspondência recebida por Renato. Esta é uma suposição que leva em conta os
comentários que parecem ser de Renato e outros, feitos por alguém que organizou o material,
mas nunca respondeu em nome do titular das cartas, Renato Kehl.
7
General Meira de Vasconcelos a Renato Kehl, Rio de Janeiro, 17/03/1936.
80
Conforme pedido, nesta data lhe remeto um
exemplar da these do doutorando Monteleone sobre
‘5 Pontos de Eugenia’.8
8
Borges Vieira a Renato Kehl, São Paulo, 23/04/1929.
9
Roquette Pinto a Renato Kehl, Local não identificado, novembro/1938.
10
É importante ressaltar a relevância do material documental disponível para pesquisa no
Fundo Renato Kehl, na Fiocruz/RJ, que contribuiria de forma bastante positiva para pesquisas
relacionadas ao tema do eugenismo, sobre a vida de Renato Kehl e sobre a epistolografia.
81
Maria Lacerda de Moura, Monteiro Lobato, Oliveira Vianna e Roquette-Pinto,
entre outros.
11
Renato Kehl a Oliveira Vianna. Rio de Janeiro, 04/09/1931.
82
família Kehl, de origem alemã, para que se possa identificar a ascendência
tão buscada pelos eugenistas. Quem sabe, na busca pela origem de seus
antepassados alemães, os Kehl não encontrariam Siegfried, o lendário herói
ariano?
12
Gustavo A. Kehl a Renato Kehl. A bordo do navio Itaquatiá, 12/12/1921.
83
graciosamente idyllica e o título realmente
suggestivo garantem o sucesso da edição, não
falando já no que vae escripto dentro.
84
Zarathustra sobre o ‘filho no matrimonio’. Estou
certo de que você começaria a considerar F.
Nietzche como eu o considero: o apostolo de um
eugenismo transcendente, cujo ideal não está ali no
‘mens sana, etc.’, mas um pouco mais alto, no
‘Superhomem’... É permithido a cada um fixar o seu
ideal, quando o tenha, na altura que quiser: uns ao
nível do estomago, outros, mais baixo ainda..., em
compensação há os (como N.) que visam ‘par delà
de bien et de mal’ para falar no jargon
nietzcheano... (7)Quando recebi o seu livro,
acabava de ler um ensaio de Schopenhauer sobre o
Amor e, se não temesse uma contradição
escandalosa recomendaria a você a leitura como
útil e interessante (aparte o colorido metaphysico),
mas depois do que ficou dito dos conselhos,
desisto...
85
todos os preceitos eugêncios, dizia: vae, menina e
casa com o teu amado...
86
perversa por sugerir que tal moça estivesse ‘encalhada’. 3. Ao comentar o
título do livro, Wlad lembra que, tendo em vista a dificuldade de encontrar um
marido, visto como artigo de luxo, um bom marido seria então uma ave não
rara, mas raríssima. Poderia a escassez de bons maridos, descrita por Wlad,
ser vista como uma crítica ao comportamento masculino? Wlad crê que por
sua aplicação prática o livro devesse chamar ‘Método prático’ ou ‘Como
achar...’. 4. Wlad sugere que Kehl escreva um livro para os rapazes de ‘Como
escolher uma boa mulher’14, pois, com elogios reconhece em Kehl o que
chamou de Tríplice autoridade (esteta, eugenista e marido feliz). 5.
Curiosamente, Wlad ironiza, perguntando a Kehl o que pensarão as mulheres
sobre esse escolhe marido, escrito por um homem,15 e sinaliza que isso
poderia ser um problema ao irmão. 6. Wlad aponta que Renato menciona
Nietzsche por duas vezes, em afirmações que desqualificam o filósofo,
invertendo seu sentido. Wlad, sendo admirador confesso desse autor, mostra
uma primeira divergência teórica entre os irmãos. Diferentemente de Renato,
Wlad considera Nietzsche o apóstolo de um eugenismo transcendente, cujo
ideal não está ali no mens sana, mas um pouco mais alto, no super-homem.
13
Wladimir Ferraz Kehl a Renato Kehl, São Paulo, 19/04/1923.
14
Este livro (Como escolher uma boa esposa) Renato Kehl publicará em 1926 pela Editora
Francisco Alves: Rio de Janeiro, obedecendo, nas palavras de Wlad, seu amor à symetria..
Idem.
15
Esta pergunta de Wladimir mostra o quão machista era a literatura, já que homens
escrevendo às mulheres uma fórmula de como escolher um bom marido parecia-lhe uma
tanto equivocada.
16
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo.Barcelona: Edicomunicación, 1997, pág. 72.
87
é possível fazer uma escolha calculista quando um casal se ama e, dessa
forma, dar prioridade ao fator eugênico? Responde polemizando que a
postura de Renato, como a de todos, seria a escolha pelo amado, ao invés
daquele outro pretendente eugenizado. Argumenta usando a imagem do
Cupido: o amor quando surge é implacável e não há tentativa de controle
sobre isso que obtenha sucesso: “A natureza tem razões que a razão
desconhece”. 9. Wlad desiste da controvérsia sobre a temática do livro escrito
por seu irmão Renato e finaliza a carta fazendo novos elogios e
recomendações. 10. Fala sobre o excesso de trabalho muito acenado por
Kehl nas cartas que recebe e afirma que trabalho demais faz mal à saúde e
degrada o homem, ou seja, é um prejuízo à saúde e vai contra a proposta dos
eugenistas. Lembrando Oscar Wilde, escreve que trabalho demais é o recurso
daqueles que não têm nada mais a fazer. 11. Ao final, levanta uma ‘bandeira
branca’ depreciando suas próprias palavras: depois dessa enxurrada de
asneiras você tem o direito de descansar, enviando um abraço afetuoso e
cumprimentando Eunice e o filho de Renato, Victor Luis, que falecerá aos 14
anos.17
17
A dedicatória do livro de Renato Kehl, Typos Vulgares. Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1946, é uma homenagem ao filho morto Victor Luis Penna Kehl.
88
com conselhos de médicos e pedagogos, e aos 13 anos Hildegart já havia
concluído o curso superior em Direito.
18
Raquel Peláez escreve um belíssimo livro sobre o parricídio de Aurora Rodriguez sobre
Hildegart em 1933. PELAEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas. Criminales o
locos? Madri: Cuadernos Galileo de Historia de la Ciência/Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 1987.
19
Filho de Charles Darwin e grande incentivador do eugenismo. PELAEZ, Raquel A., La
eugenesia em América Latina, op. cit. , p. 131.
20
Hildegart a Renato Kehl. Madrid, 17/01/32 O fragmento mostra que além das publicações
nacionais Renato Kehl publicava trabalhos em jornais fora do Brasil, neste caso o The
Eugenics Review..
89
respostas nos sugere uma pergunta: quais são as normas modernas para
discutir a sexualidade, principalmente se entre os cientistas indicados por
Renato Kehl só há homens? No mínimo, as determinações sobre a
sexualidade, na opinião dos eugenistas, seguirão sempre na linha de
preservar a mãe para a vida doméstica, para cuidar e educar os filhos, e os
homens para a vida pública, e para educar seus filhos mais crescidos durante
a adolescência.21 Esses pressupostos dividem em três séries os estágios de
educação dos filhos e a cargo de quem ficaria a educação em cada um
desses estágios: na primeira série, sob responsabilidade da mãe ou da tutora;
a segunda série, a cargo do pai ou do tutor, e a terceira a cargo do educador e
do médico.22
21
Na Conferência Nacional de Educação, realizada em Curitiba em 1927, durante a
exposição de sua tese nº 75, Renato Kehl esclarece a quem caberia a educação dos filhos, e
propôs o seguinte: “(...) à mãe cabe, naturalmente responder perguntas curiosas dos filhos e,
compete-lhe dar as primeiras instruções. Ao pai incumbe, complementarmente prevenir os
filhos mais crescidos sobre os perigos das más companhias e dos perigos resultantes das
perversões sexuais; compete-lhe, também concilia-los ao respeito próprio e de seus
companheiros, amedrontado-os, talvez, quanto às conseqüências nocivas das leituras,
conversas e práticas obscenas”. In: Conferência Nacional de Educação, SCHMIDT, Maria
Auxiliadora (et. alli), Brasília: INEP, 1997, p. 435.
22
Idem.
23
O termo braço é usado aqui para designar um prolongamento do eugenismo fora da
comunidade médica.
90
Na mesma carta que escreve a Hildegart em 1932 Renato Kehl se
orgulha de ser citado na Espanha por outros autores eugenistas:
24
Renato Kehl a Hildegart. Rio de Janeiro, 28/5/1932.
25
Idem.
26
Idem
91
espaços de decisão tomados por possíveis paixões. Uma racionalidade
política avessa a mudanças radicais é tida por Kehl e por seus parceiros como
a única possibilidade de encontrar o caminho certo, por estar revestida de
neutralidade ideológica.27 A Espanha, desde 18 de agosto de 193128, vivia
numa república democrática, que separou as relações entre o Estado e a
Igreja. A solução da república democrática espanhola caminhou para o Estado
laico – sem intromissão da Igreja – apesar de ter uma inclinação de esquerda
e anti-falangista. Encontramos aí uma discordância entre Kehl e Hildegart, que
era defensora da República:
27
A separação entre razão e paixão na política foi amplamente discutida por BRESCIANI,
Maria Stella (et. alli). Razão e Paixão na Política. Brasília: Editora UnB, 2002.
28
Em agosto de 1930 foi apresentado um projeto de constituição. A partir daí a Espanha se
constitui uma república democrática, laica, descentralizada, com câmara única, sufrágio
universal e Tribunal de Garantias para julgar as irregularidades constitucionais. Desde 28 de
janeiro de 1930 a Espanha vivia a deposição do ditador Primo de Rivera. Atlas Histórico
Mundial: de la Revolución Francesa a nuestros días. Vol. 2. Madrid: Ediciones Istmo, 1985
(10ª edição), p.177.
29
Hildegart à Renato Kehl. Madrid, 17/01/1932.
30
Idem
92
Merece destaque a afirmação de Hildegart de que a defesa dos
métodos anticoncepcionais é feita na Espanha somente a partir do advento da
república que, invalidando o código civil anterior, colocou em vigor as leis de
1870, que abriam margens para a divulgação de métodos de controle
populacional (não previstos, talvez pela antiguidade do Código de 1870).
De acordo com Raquel A. Pelaez,31 Hildegart foi morta por sua mãe em
1933. Sua história ficou muito conhecida em toda a Espanha. Hildegart era
uma menina prodígio anarquista-eugenista, engajada na luta política
espanhola. Conhecida como a Virgen Roja, Hildegart foi morta ao querer ser
independente de sua mãe, que dedicou sua vida para criar uma filha
completamente eugenizada. Ao lado da carta de Hildegart, no livro de
Autógrafos, está escrito a mão:
31
PELAEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas. Op. cit., p. 105.
93
eugenismo.32 A missivista afirma que é inútil pensar em eugenia na defesa da
espécie:
32
Para conhecer melhor a trajetória de luta de Maria Lacerda de Moura, consultar o
minucioso trabalho de LEITE, Mirian Lifschitz Moreira, Utopias educacionais de Maria Lacerda
de Moura, In: História e Utopias. John Manuel Monteiro e Ilana Blaj (orgs.). São Paulo:
ANPUH, 1996. p. 65-70.
33
Maria Lacerda de Moura à Roquette-Pinto, Guararema, 25/05/1929 (Livro I)
34
Idem
94
apresentou juntamente com Renato em 1927 a tese nº 74 (Sobre educação
sexual).35
35
Renato Kehl apresentou a tese nº 75 (O problema da educação sexual: importância
eugênica, falsa compreensão e preconceitos – como e quando e por quem deve ser ela
ministrada). In: Schmidt, M.A. (et. alii). Conferência Nacional de Educação. Brasília: INEP,
1997.
36
PADILHA, Celina. Apud: Schmidt, op. cit., p. 432.
95
Apesar do reconhecimento profissional das médicas ocorrer a partir da
segunda metade do século XIX, muitas pressões de homens e mesmo de
mulheres – que acreditavam ser a medicina uma profissão masculina – foi a
sua afirmação no campo médico a partir do exercício da competência que
contribuiu, entre outras coisas, para a redefinição dos papéis femininos. Mas
deve-se lembrar que as relações de gênero estão perpassadas por outros
antagonismos, como aqueles relacionados à classe social e a raça. 38
37
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo... op. cit., p. 200-201.
38
RAGO, Elisabeth Juliska. Médicas Brasileiras no século XIX. In: Cadernos Pagu, nº15, ano:
2000, Núcleo de Estudos de Gênero, Campinas, pág. 199-225.
39
Renato Kehl a Cecília Meirelles, Rio de Janeiro, 29/04/1933.
96
eugenia. A finalidade dessa colaboração seria, de acordo com a carta de Kehl,
compor uma série de palestras que seriam transmitidas pela rádio Mayrink
Veiga do Rio de Janeiro – palestras que seriam depois transcritas e enviadas
aos principais jornais do país – durante a Quinzena da Eugenia, que se
realizaria no mês de maio. No conteúdo da palestra deveriam constar as
seguintes reflexões:
40
Idem.
97
vida pública, mas sempre com um papel atrelado à sua condição de mãe e
esposa.
41
Cecília Meirelles à Renato Kehl, Rio de Janeiro, 30/04/1933.
42
O termo ‘oficial’ é usado aqui para explicitar uma prática pública, ou seja, publicação em
jornais e revistas, palestras em rádio e auditórios, conferências, etc. Ao contrário, existem
práticas não-oficiais de partilhamento de idéias que estão fora do público. Nas conversas de
gabinete, nas cartas e correspondências, nos saraus e jantares entre amigos, que não exige
daqueles menos envolvidos ou engajados uma postura explícita sobre o tema.
98
Desse modo, fica registrado o contato havido entre Kehl e Cecília
Meirelles, mais uma pessoa do meio intelectual brasileiro que, se não
partilhava dos ideais eugênicos, se relacionava com adeptos de tal teoria.
Essa constatação mostra também que, apesar dos lados ou das correntes
ideológicas a que possam pertencer, é na elite econômica, política e
intelectual que está grande parte dos interlocutores do eugenismo, ou seja, na
classe culta.
43
Casa-Grande & Senzala teve sua primeira edição em 1932.
44
Pela descrição feita por Gilberto Freyre, a pesquisa a que se refere é para o livro que seria
publicado em 1936, Sobredos e Mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento urbano, pela Companhia Editora Nacional, São Paulo.
45
Gilberto Freyre à Renato Kehl, Recife, 05/05/1934.
99
escravidão ao industrialismo) gerado pelo desenvolvimento cafeeiro e
conseqüentemente da mudança do foco político e econômico do nordeste
para o Estado de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX.
46
GALVÃO, Iraci. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada.... op. cit., p, 26.
47
Darwinismo social: Corrente teórica da segunda metade do séc. XIX e primeira metade do
séc. XX, ou a doutrina por ela formulada, que aplica alguns princípios básicos da idéia
darwinista de evolução (como as de seleção natural, luta pela existência, e sobrevivência do
mais apto) ao estudo e interpretação da vida humana em sociedade. [A designação é
historicamente imprecisa, uma vez que as primeiras obras ligadas a essa corrente
antecederam a elaboração e publicação dos trabalhos de Charles Darwin em biologia.]
Apesar da imprecisão da definição indicada pelo dicionário, é oportuno utilizar o termo
100
multiplicando-se em filhos mestiços que uns
milhares de machos atrevidos conseguiram firmar-
se na posse de terras vastíssimas48
darwinismo social por estar mais próxima à terminologia empregada pelos próprios
eugenistas na época. Dicionário Aurélio Digital, Século XXI. Editora Nova Fronteira, 2001.
48
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de
economia patriarcal. Rio de Janeiro/Brasília: Schmidt/INL MEC, 1980, p. 09.
49
Idem, p. 10.
101
econômicas de cultura é problema dificílimo de
apurar.50
50
Idem, p. 297.
51
KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 201.
102
A hibridização ou miscigenação, como era mais conhecida a mistura de
raças, era tema de grande debate na comunidade médica intelectual mundial.
Em fevereiro de 1929 Kehl recebeu cartas de Charles Davenport, diretor do
comitê de cruzamento de raças da International Federations os Eugenics
Organizations, solicitando um estudo sobre o cruzamento de raças durante as
duas últimas gerações no Brasil.
103
entre a população e o governo, pois tal estudo poderia ser considerado
racista.
Outra carta de Davenport foi registrada somente três anos após a carta
de 1929, portanto em abril de 193253. Nesta ocasião, Davenport remete-se a
Renato não mais ocupando o cargo de diretor do comitê de cruzamentos de
raças da International Federation of Eugenic Organizations, mas como
presidente do 3º Congresso Internacional de Eugenia, que seria realizado em
1933. Ambas as entidades estavam sediadas no Museu Americano de
História Natural, com escritório em Cold Spring Harbor, Long Island. O
interessante é que foi exatamente no 3º Congresso Internacional que se
apresentou a árvore da eugenia, trabalhada no início desta pesquisa.54
52
Renato Kehl a Charles Davenport, Rio de Janeiro, 02/04/1929.
53
Charles Davenport a Renato Kehl, Nova Iorque, 04/04/01932.
54
Renato Kehl apresentou nesse congresso a tese Medidas para estimular a fecundidade dos
tipos superiores. In: KEHL, Renato. Lições de Eugenia, Op. cit., p. 24.
55
Annaes de Eugenia, op. cit., p. 177-178.
104
Argentina, com sede em Buenos Aires, deu-se posteriormente ao Brasil.56 Em
1932 o mesmo Victor Delfino, que estava em São Paulo prestigiando Kehl e
os eugenistas paulistas, foi mais bem sucedido, pois tornou-se membro da
Federação Internacional, coisa que Kehl não era. Além da Argentina, da
América Latina figurava na lista apenas Cuba, que tinha forte influência do
pensamento e da política norte-americana.57
56
Victor Delfino fundou em 1932 a Associação Argentina de Biotipologia, Eugenia e Medicinal
Social. In: PELAEZ, Raquel Alvarez. La eugenesia en America Latina, Op. cit., p. 127
57
Os países representados na International Federation of Eugenics Organizations eram:
Argentina, Áustria, Cuba, Tchecoslováquia, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha,
Grã Bretanha, Itália, Noruega, Polônia, Rússia, África do Sul, Suécia e Holanda.
105
O fato de Oliveira Vianna não ter respondido ao questionário enviado
por Kehl, por estar ocupado com o lançamento de um livro sobre o tema da
eugenia dos grupos nacionais e étnicos no Brasil, demonstra um certo
segredo por parte do intelectual diante de uma nova produção. O livro a que
se refere Oliveira Vianna na carta é Raça e Assimilação,59 lançado em 1932,
talvez o texto mais polêmico desse autor. Num dos trechos desse livro,
Vianna, discute a inferioridade do negro em relação à raça ariana:
58
Oliveira Vianna a Renato Kehl, Niterói, 01/09/1931.
59
VIANNA, Oliveira. Raça e Assimilação. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1932.
60
Idem, p.68.
106
ser possível nascer dos bons, maus e dos maus, bons. Mas o critério principal
é que crê que entre os negros há menos aptos do que entre os brancos.61
Poucos dias depois, Kehl escreve uma nova carta62 a Oliveira Vianna
insistindo na possibilidade de que lhe enviasse uma pequena súmula desse
trabalho para ser publicado no Boletim de Eugenia, que como foi verificado
não foi fornecido.
61
Idem, p. 210. Citado também em KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 201.
62
É nesta carta de 04/09/1931 que Renato Kehl pede a Oliveira Vianna para visitá-lo em
Niterói, pois ainda não se conheciam pessoalmente.
63
KEHL, Renato. Lições de Eugenia, Op. cit., p. 243-250.
64
Idem, p. 256.
65
O termo missão é visto como uma tarefa que carrega um compromisso quase religioso, o
que no caso dos eugenistas, parece um tanto paradoxal, pela postura científico-progressita
que adotavam.
107
Tenho a honra de enviar a V.Ex. toda a legislação
nossa relativa á immigração e colonização. Como
dentro em pouco nos reuniremos para o
desempenho da missão que nos confiou o Sr.
Ministro do Trabalho, pareceu-me que seria útil a
V.Ex. ter em mãos as novas leis relativas ao
assumpto que iremos tratar.66
66
Oliveira Vianna a Renato Kehl, data desconhecida, aproximadamente 1935, Rio de Janeiro.
67
Novamente o termo cunhado pelo próprio Kehl remete a uma função proselitista e religiosa,
vista por nós como artifício lingüístico de conquista e sedução. In: KEHL, Renato. Sexo e
Civilização, Op. cit., p. 33.
68
Idem.
69
A classe médica é vista aqui como a única classe capaz de resolver os problemas do Brasil
e é deste poder que vão se investir para conquistar os setores mais diversos da sociedade.
108
de raças que não nos convenham, se impõe para a
melhoria gradativa das gerações futuras.70
70
Gal. Meira de Vasconcelos à Renato Kehl, Rio de Janeiro, 17/03/1936.
109
2. “O Choque das Raças” 71
Contudo, alguns dias depois o Sr. Benson morreu, por causa de sua
idade avançada, levando consigo a solução técnica do aparelho que lhe
custou toda a vida para construir. Destruiu papéis e peças mestras e incumbiu
sua filha de relatar o drama do Choque das Raças nos Estados Unidos no ano
de 2228, a história mais interessante vista no porviroscópio. Em troca, Ayrton
deveria transformar essa informação em livro. Em vários encontros
dominicais, Jane conta a Ayrton como se desdobrou o ‘grande choque’.
71
Este livro foi publicado em 1926 pela Companhia Editora Nacional e reeditado em 1945
pela Brasiliense sob o nome de O Presidente Negro ou O Choque das Raças.
110
Ela descreve a formação do povo americano ao longo dos séculos,
afirmando que para lá foram os elementos mais eugênicos das melhores
raças européias, por conta dos incentivos à imigração. É nos Estados Unidos
onde vive a força vital da raça branca. Desta forma, a Europa perdeu seus
melhores elementos e acabará pigmentada pelos amarelos no século XXIII. O
único erro cometido pelos Estado Unidos em sua composição foi o elemento
negro. O não cruzamento entre as raças branca e negra, continua Jane, gerou
uma barreira de ódio, mas conservou as duas raças puras, diferentemente do
Brasil, que mediocremente fundiu-as, descaracterizando-as, tendo o branco
sofrido uma inevitável piora de caráter.
Foi adotada nos Estados Unidos uma lei espartana, que reduziu a
quase zero o número de ‘desgraçados’ por defeito físico, e a Lei Owen, do
remodelador da raça branca americana. No livro O Direito de Procriar, diz
Jane, Walter Owen lançou os fundamentos do Código de Raça, que promoveu
a esterilização dos tarados, mal-formados mentais, de todos os indivíduos, em
suma, capazes de prejudicar com má progênie o futuro da espécie.
111
Desapareceram os peludos, os surdo-mudos, os aleijados, os loucos, os
morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos, os gramáticos, os
místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptores de donzelas, as prostitutas,
a legião inteira de mal-formados no físico e no moral, causadores de todas as
perturbações da sociedade humana.
112
O Partido Feminino tinha como ideologia central a tese de Georgia
Elvin, autora de Simbiose Desmascarada, que afirmava que a mulher não
constituía a fêmea natural do homem. A mulher original foi extinta ainda na
pré-história e foram as sabinas, roubadas de seus machos originais, que eram
anfíbios. A grande busca desse partido, além da igualdade de direitos já
conquistada, era reencontrar seu macho original. Eram as mulheres uma raça
diferente daquela dos Homo sapiens – elas pertenciam à raça das Sabinas
mutans.
113
Kerlog, eram eles: George Abbot (indústria – chefe da indústria de bonecos
falantes); John Perkins (comércio – comercializava peles de lontra branca);
Harmworth (Finanças – diretor do Banco Universal); John Leland (Artes –
criador da Puericultura Estética); John Dudley (Ciências – pai da cor nº8 e
autor de 72 invenções) e Dorian Davis (Letras – poeta de um soneto único).
114
Jim Roy surpreso contesta: Os raios Omega!!!
- Esterilizam o homem!!!
- Perdoa-me, Jim...
O choque das raças fora prevenido, o que valeu por uma segunda
vitória da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do
embate isenta dos perturbadores ao molde dos retóricos e fanáticos cujas
palavras outrora impeliam as multidões aos piores crimes coletivos. Assim, a
vitória negra foi vista como mero incidente na história americana. Um ano
após a Convenção, a natalidade negra cai a 97%, e os efeitos dos raios
Omega ficaram em mais absoluto segredo.
115
* * *
72
Metropolis, Alemanha, 1926. Fritz Lang (diretor), produção da UFA. Para saber mais ver:
DUTRA, Roger Andrade. Metrópolis: Cinema, Cultura e Tecnologia na República de Weimar.
Mestrado em Historia. PUC/SP, 1999.
73
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.
175.
74
Escrito em três semanas para o jornal dirigido por Mário Rodrigues e publicado entre 5 de
setembro e 1 de outubro de 1926. Carta dos editores. LOBATO, J.B. Monteiro. O Choque das
Raças. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945 (2ª Edição). Para maiores informações ver
também: AZEVEDO, C., CAMARGOS, M. e SACCHETTA, V. Monteiro Lobato: furacão na
Botocúndia. São Paulo: Ed. Senac, 1997 e sobre Monteiro Lobato e sua relação com o
fordismo ver: CAMPOS, André Luiz Vieira de. A república do pica-pau amarelo. São Paulo:
Martins Fontes, 1986.
75
Obras Completas de Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945. Foram
editadas posteriormente com o nome de Cartas Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense,
1959. Ocupam o volume 16 e 17 do Obras Completas.
116
O Choque já saiu em São Paulo, mas ainda não vi.
Esse livro vai mudar o rumo da minha vida. O
consulado americano está interessadíssimo nele.
Viva o talento, Seu Heitor.76
76
Idem, p. 200.
77
Lobato refere-se aqui à editora que pretendia montar nos estados Unidos para publicar
livros de autores brasileiros, mas a idéia não vingou. AZEVEDO, C. Op. Cit., p.217.
78
LOBATO, M. Cartas Escolhidas. Op.Cit., p. 146.
117
Contando já com um escândalo literário, Lobato tentava agora adaptar
o texto para conseguir publicá-lo ali. Contudo, o texto original do Choque não
foi alterado, tampouco publicado nas terras do Tio Sam. Entende-se um dos
motivos da não publicação do texto. Já em finais da década de 20 circulava no
meio eugenista uma tendência que se confirmaria na década de 30, de que o
negro tinha seu potencial e havia dado sua contribuição na formação dos
Estados Unidos. Sob o nome de ‘culturalismo’79, admitia a raça negra na
composição norte-americana, mas como raça distinta da branca. Como dito
anteriormente, nos Estados Unidos, o culturalismo gerou uma situação
segregacionista, que separou os brancos genuinamente norte-americanos dos
negros, chineses, japoneses, indianos e latinos, sem contar o
desaparecimento dos nativos indígenas, desde os princípios da colonização
daquele país.
79
Teoria antropológica defendida por Franz Boas e aceita por Gylberto Freire quando
desenvolve o conceito de democracia racial no Brasil.
80
Ver na net: LAJOLO, Marisa. Negros e negras em Monteiro Lobato, para Octávio Ianni.
Unicamp/IEL, 1998. Net: http://www.as.miami.edu/las/negrolobato2.html. Acesso em:
22/11/2002.
118
sucesso da eugenia no futuro fictício de 2228. Em outras palavras, para além
da questão de raça, o que será enfatizado é seu cunho eugenista. Sob a
justificativa de contar uma história de amor entre Ayrton e Jane, interessa aqui
ver a história de amor entre o futuro e a eugenia, ou sobre o presente de 1926
e a eugenia como projeto de um futuro ideal.
81
A Tia Anastácia foi criada muito depois da consolidação da imagem da “preta gorda e
beiçuda” nas antigas black-face norte-americanas do século XIX. Mammy era a negra
escrava, assexuada, representando o oposto da mulher branca submissa ao marido. Ao
contrário, ela era ligada às atividades domésticas, ao campo sendo gorda e forte, e seu
marido (Sambos) submisso a ela. Na imaginação dos brancos, Mammy representava a família
anti-natural apesar de mostrar uma vida no campo sem conflitos entre senhor e escravo. Ver
na net: http://joseph.oasismag.com/stories/storyReader$17. Acesso em: 20/11/2002
82
Monteiro Lobato a Renato Kehl, São Paulo, 1926.
83
Apesar das desculpas dadas por Lobato, o texto foi dedicado a Arthur Neiva e Coelho Neto,
dois grandes atuantes nas políticas de saúde pública nacional, assim como na rede de
relações eugenista.
119
poda”, é importante enfatizar que, nesse momento, Lobato não está fazendo
uma crítica só ao problema racial e eugênico brasileiro, mas mundial.
84
Dois livros de grande relevância para este trabalho e principalmente para este capítulo
foram: JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2001 e WHITE,
Hayden. Capítulo 5. As ficções da representação factual. In: Trópicos do Discurso. São Paulo:
Editora Edusp, 1994, p.137-151.
85
WHITE, Hayden, op. cit., p. 12.
120
Desta forma, o que vai delimitar o espaço de trabalho dos historiadores,
para que seu ofício seja uma ciência-arte, são as fontes. O passado obedece
à minha interpretação e à eleição de minhas fontes. Elas [as fontes] impedem
a liberdade total dos historiadores e, ao mesmo tempo, não fixam as coisas de
tal modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações. Sendo o objeto
de trabalho dos historiadores o passado, em seu trabalho restam-lhes apenas
os registros desse passado, que conseqüentemente se tornarão relatos
lingüísticos. Nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual, porque o
passado é repleto de acontecimentos, relações, sons, cheiros, sensibilidades
e não somente um relato escrito. À história cabe analisar a precisão dos
relatos dos historiadores, sendo as interpretações meras variações. O estudo
da história é o estudo da historiografia, por conseqüência a história é a própria
historiografia e não um adendo dela.86
86
JENKINS, Keith. op. cit., p. 32.
87
LOBATO, J.B.M. O Choque das Raças. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945 (2ª edição),
p.109.
121
para executar suas tarefas. Tudo era transmitido por ondas.88 Mudanças
importantes também ocorreram na imprensa. Os jornais não tinham mais
amontoados de jornalistas dentro da redação. As matérias, imagens e notícias
eram rádio-transportadas das casas dos colaboradores e diretamente
impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as
casas.89
O mais belo de ser visto em toda a cidade era a vida noturna. Toda a
iluminação pública e residencial era artificial, com luz fria, onde se via que por
dentro e por fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava às
cidades o aspecto de emersas de um banho de fósforo.91
88
Nota-se o quão vanguardista era a visão de Lobato a respeito das inovações tecno-
científicas. Pode-se dizer que anteviu a internet.
89
A televisão com vídeo texto e o enxugamento das estruturas empresariais por causa da
internet é coincidente.
90
LOBATO, J.B.M., O Choque das Raças. Op.cit., p.110.
91
Idem, p.119.
122
científicas, tais como o uso da ciência para fins de dominação de um grupo
sobre outro. Inspirados no cientificismo do século XIX, os eugenistas
acreditavam que a(s) ciência(s) era(m) o guia de toda a forma de ser e que
proporcionaria a resposta a todas as perguntas que se pudesse fazer de
forma racional. Em outras palavras, havia a crença de que o método científico
conduzia à certeza das coisas.92
Com base nessas informações, pode-se dizer que Lobato construiu sua
Cidade do Sol93. De acordo com Alceu Amoroso Lima94, prefaciador da edição
brasileira do livro de Campanella95, o Choque é a melhor das indicações do
que não deve ser uma sociedade bem organizada’96. Por isso, a leitura do
texto deve ser feita pelo avesso, para fazer, em geral, o oposto de que ele
recomenda. Pode-se destacar também outros textos clássicos que tentam
construir uma sociedade ideal. Thomas Morus97 em Utopia e Francis Bacon98
em Nova Atlântida, além do ‘clássico dos clássicos’, a Republica de Platão99.
92
Para saber mais sobre os impactos e as descobertas científicas na Europa ver: KNIGHT,
David: La era de la ciência. Madri: Ediciones Pirâmide, 1988, pág. 17.
93
Cidade do Sol é o título do livro escrito por Tommaso Campanella (1568-1639), calabrês,
que construiu em seu livro a antítese do pessimismo descrito por Santo Agostinho em Cidade
de Deus. Neste livro, Campanella, reformula filosoficamente o mundo representado na
sociedade perfeita, com perfil totalitário, é verdade, mas com muitas reflexões sobre a justiça.
94
Esse texto faz parte do prefácio à edição brasileira de Cidade do Sol. Foi escrito em 1966
por Alceu em sua fase ‘à esquerda’, época em que critica duramente os regimes totalitários e
principalmente a ditadura militar no Brasil. Para saber mais sobre a ambigüidade do
pensamento deste autor, ver: CAUVILLA, Waldir. O pensamento político de Alceu Amoroso
Lima (Tristão de Athaíde) na década de 30. Mestrado em História. PUC/SP. 1992.
95
CAMPANELLA, Tommaso. Cidade do Sol. Rio de Janeiro: Ediouro, sem data.
96
Consta do prefácio de Alceu Amoroso Lima, 1966. In: CAMPANELLA, op.cit., p.15.
97
Thomas Morus (1478-1535). Nascido em Londres. Chanceler na Inglaterra sob o reinado de
Henrique VIII. Autor de Utopia, romance político e social. Morreu decapitado por ter
continuado fiel ao catolicismo e não ter reconhecido o poder espiritual do rei. Foi beatificado
em 1886.
98
Francis Bacon (1561-1626). Filósofo e político inglês destinado à carreira diplomática.
Escreveu Novum Organum, sua obra mais conhecida.
99
Platão (429-348 aC). Célebre filósofo grego, nascido em Atenas. Discípulo de Sócrates
fundou a escola acadêmica. Expôs suas doutrinas nos Diálogos, que trazem nomes dos mais
ilustres interlocutores: Fedro, Protágoras, Timeu, etc.
123
entre os quais: 1984 de George Orwell100 e Admirável Mundo Novo de Aldous
Huxley.101 Esse texto ficcional expõe além de tudo muitas críticas justas aos
abusos sociais que podem ser realizados na questão racial e eugênica.
100
George Orwell, pseudônimo de Eric Blair (1903-1950), em seu livro mais conhecido 1984,
narra com visão profética um futuro mecanizado num mundo totalitário, onde os seres são
controlados pela força onipresente de um ditador. Publicado em 1949. É autor também de A
Revolução dos Bichos, romance que critica o regime soviético.
101
Aldous Huxley romancista era como Julian Huxley (eugenista convicto), neto de Thomas
Huxley, célebre biólogo do final do século XIX. Com mais espírito crítico que Julian, escreveu
Admirável Mundo Novo em 1932.
102
A idéia de que as singularidades devem ser soltas em prol da derrubada das utopias
homogeneizantes é de GOLDENBERG, Ricardo. Demanda de utopias. In: Utopia e mal-estar
na cultura: perspectivas psicoanalíticas. São Paulo: Hucitec, 1997, p.91-97.
103
No Brasil diversos literatos descreveram suas sociedades utópicas nas primeiras décadas
do século XX. Para saber mais: FIORENTINO, Teresinha del. Prosa e ficção em São Paulo:
produção e consumo. São Paulo: Hucitec, 1982.
124
maneira mordaz a atuação decisiva da imprensa em 1909: onipotente
imprensa, o quarto poder fora da Contituição104 .
104
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. p. 115 e ver interessante o
trabalho sobre Lima Barreto de: MELO, Rita de Cássia Guimarães. O mundo urbano na obra
de Lima Barreto: classes médias e pobres nos subúrbios do Rio de Janeiro (1881-1922).
Dissertação de Mestrado. História PUC/SP, 2002.
105
LOBATO, J.B.M. Op. cit., p.119.
106
Idem, p.120.
107
Idem, p.106.
125
problemas morais.108 Vê-se que a eugenia compõe com a eficiência a chave-
mestra para solucionar os males da humanidade. Este princípio da eficiência,
na prática, serve para a organização racional do trabalho, já que numa
sociedade eugenizada todos, sem exceção, são levados a produzir. Isso
porque a eugenia do ano de 2228 havia resolvido os ‘três pesos mortos’
responsáveis pelos males do mundo que sobrecarregavam a sociedade: o
vadio, o doente e o pobre. Ao invés de combatê-los com o castigo, o remédio
e a esmola, adotaram-se três medidas distintas, respectivamente: a eugenia,
a higiene e a eficiência. Em seu texto, Lobato reafirma: era o fim da carga
inútil, do parasitismo, mas sempre sob o sistema representativo.109
108
Idem
109
Idem, p. 108.
110
Para ver a postura eugenista em relação ao assistencialismo ver Capítulo 1, item 2: Tupy
or for Tupy?
111
LOBATO, J.B.M., Op. cit., p.152.
126
em número, ameaçando a ‘estabilidade ariana’ (é justamente o momento em
que Jim Roy – o presidente negro – se elege).
112
Contribuiu para pensar o papel das massas a leitura inspiradora de: CANETTI, Elias.
Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
113
LOBATO, J.B.M., Op. cit., p.152.
127
física, conferido pela natureza e confirmado pelos poderes públicos.114 De
acordo com Lobato em sua história, o número de divórcios diminuiu. Talvez
tenha sido por constarem nas regras do casamento as férias conjugais
obrigatórias, que permitia no inverno 15 dias e no verão 3 meses de
separação entre os casais. No século XXIII havia sido provado por Johnston
Coolidge, autor de Toxinas Conjugais, que tais férias limpavam os cônjuges
do enfaro115 e renascia-lhes o amor ao petit-feu das saudades116 - o que dava
aos casais duas luas de mel por ano, no retorno aos lares depois das férias.
114
Idem, p.155.
115
Ato ou efeito de enfarar ou enjoar; fastio, asco, repugnância, enjôo de acordo com o
Dicionário Digital Aurélio Século XXI, op. cit.
116
LOBATO, J.B.M., Idem.
117
Idem, p. 156.
128
altamente científica. Nessa árvore não há lugar para o povo nem para a
espessura da história.
O único personagem que pode trazer qualquer elemento que seja mais
próximo do popular é Ayrton. Um homem não de ciência, mas “de natureza”,
visto aqui como algo pejorativo, pois como disse Benson: pelo que vejo é um
inocente (...) Chamo inocente ao homem comum de educação mediana e
pouco penetrado nos segredos da natureza.118 Ayrton não domina a natureza,
ele é a própria natureza, que precisa ser controlada, regulada e domesticada,
para a boa saúde da árvore.
O povo representa nada mais nada menos do que a matéria prima para
a consolidação da eficiência. Seria o fim da história mencionada por
Fukuyama, não fosse a potência inventiva de Jim Roy, que transformou os
rumos de uma elite que via a mudança como ameaça, por se tratar
inevitavelmente de alternância de poder.
118
Idem, p.22.
129
O orgulho da raça branca impediu a posse de Jim e que se cumprisse
seu mandato. Num plano venal executado sem segredos, mas com sentido
ambivalente, resgata mais uma vez a perversidade com que se tratam sempre
questões relativas aos mais desfavorecidos ao longo da história.
* * *
119
Renato Kehl prefaciou o primeiro livro de Monteiro Lobato, uma coletânea de artigos
publicados em jornal e reunidos pela Sociedade Eugênica de São Paulo em 1919, sob o título
O Problema Vital. Em contrapartida, Monteiro Lobato prefaciou mais tarde o livro de Renato
Kehl chamado Bio-perspectivas de 1938.
120
Primeira carta recebida de Monteiro Lobato, datada de 05 de abril de 1918.
130
endereçadas a Renato Kehl e 3 cópias de cartas endereçadas por Kehl a
Lobato. A última carta tem data de 19 de novembro de 1946, ou seja, dois
anos antes do falecimento de Lobato. Tratava de uma indicação editorial que
seria feita por Lobato para a publicação do livro A Cura do Espírito, a pedido
de Kehl.
131
mas só se faz o que é possível. Espero, entretanto
este mês começar a Cura. L.121
Após algum tempo, escreve para contar a ‘boa nova’. O livro ficou
pronto. Parece que havia uma certa preocupação por parte de Kehl, pois os
bilhetes de Lobato sempre passavam mensagens de tranqüilidade e otimismo
em relação ao livro. Na carta seguinte:
121
Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl. Sem Data. Indicada com o número 6
na parte superior por Kehl.
122
Idem. Indicada com o número 8 na parte superior por Kehl.
123
Idem. Indicada com o número 4 na parte superior por Kehl.
124
Idem. Indicada com o número 5 na parte superior por Kehl.
132
práticas de como melhorar a aparência – através da educação física, de
maquiagens, fórmulas embelezantes – nesse livro, Renato Kehl trata a
fealdade como doença que pode ser curada.125 Ser belo(a) não é só uma
questão de querer – nas décadas de 20 e 30 ainda não representa cuidar de
si que envolve o prazer pessoal – mas uma necessidade social e profilática.
Denise Bernuzzi de Sant’Anna fez uma detalhada pesquisa126 sobre o
embelezamento feminino entre os anos de 1900 e 1980 mostrando que, para
os eugenistas, todo o corpo deve ser belo dia após dia e por isso, o melhor a
fazer é cultivar a saúde.127
125
Este é o argumento principal do capítulo 3: O Espetáculo do Feio.
126
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté...op. cit.
127
“tout le corps doit s’embellir jour après jour et pour cela, le mieux à faire c’est cultiver la
santè”. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. op. cit., p. 170.
128
Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl. Sem Data. Indicada com o número 7
na parte superior por Kehl.
133
nova remessa, sabe o que acontece? Devolvem-
nos, dizendo que não queriam! É o que há de
odioso. O Rio está fechado para nós.129
129
Idem. Indicada com o número 9 na parte superior por Kehl.
130
Monteiro Lobato a Renato Kehl. Nova Iorque, 09/10/1929.
134
Na mesma carta finaliza com uma assertiva de assustar, que enaltece a
Kehl, mas ao mesmo tempo, mostra um Lobato já conhecido por todos,
indignado com os rumos do Brasil, e principalmente com as elites. E pede
segredo de suas declarações na mesma carta.
131
Monteiro Lobato a Renato Kehl. Nova Iorque, 03/09/1930.
132
Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo. Sem data.
135
miúda a nossa! Se com tua eugenia não concertas
esta raça, tela-emos uma das mais sórdidas do
mundo.133
133
Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo, 14/04/1936.
134
Idem.
136
Meu corpo,
Espelho desarticulado que mal percebe os entalhes
do próprio corpo,
sua simetria e enérgica imagem
construída de músculos e artérias
matéria bruta semelhante à idéia
[de quem nunca teve um corpo (...)
J. Viana
CAPÍTULO 3 – O ESPETÁCULO DO FEIO
1. Os Caminhos da Desumanização
Quem não se assustou ao ver pela primeira vez o rosto de John Merrick,
o “homem elefante”?1 A visão de seu rosto era monstruosa. Nessa co-produção
cinematográfica (Estados Unidos/Inglaterra) da década de 80, a personagem
da época vitoriana, John Merrick, era uma das principais atrações de um freak
show2 onde se apresentavam curiosidades da natureza, como casos de
pessoas com gigantismo, anãos, irmãos gêmeos ou irmãs siamesas, mulher
barbada, entre outros. Com a sensibilização de um médico da Inglaterra pós-
Darwin, John Merrick é levado do circo ao hospital, para ser estudado.
1
“O Homem Elefante” (The Elephant-man, 1980), Inglaterra/Estados Unidos. David Lynch
(diretor).
2
Literalmente traduzido significa show dos esquisitos, mais conhecido entre nós como circo de
horrores, em que eram exibidas curiosidades humanas, vista como aberrações da natureza:
enfermos, deficientes físicos, etnias longínquas, tatuados, engolidores de espadas etc.
COURTINE, Jean-Jacques. O desaparecimento dos monstros. Mesa redonda datada de
19/10/2001 juntamente com Denise Bernuzzi Sant’Anna que apresentou o trabalho Do culto ao
corpo às condutas éticas no Seminário Ética e Cultura, realizado no SESC Vila Mariana, São
Paulo. Texto traduzido por: Lara de Malimpensa, p. 3.
138
compaixão pelo corpo disforme, que presidiu à elaboração da noção de
deficiência ao longo do século: o amor por ela manifestado aumenta em
proporção ao distanciamento do objeto.3
3
COURTINE, J-J. Op. cit. p. 8.
4
SANT’ANNA. Denise Bernuzzi. La recherche de la beauté....op. cit.
139
o século criou novas técnicas e artifícios para o embelezamento da mulher, que
aos poucos foi libertando-a dos aparatos externos ao corpo (cintas, sutiãs,
corpetes) e ao mesmo tempo, coagindo-a ao aprendizado e ao consumo de
uma miríade de produtos e técnicas novas, feitas agora para comprar uma
estética de acordo com a moda e os anseios pessoais. Quando se entra em
contato com os textos eugenistas de Renato Kehl, a noção de fealdade adquire
significados diversos, pois suas descrições são tão generalizantes que acabam
transformando em sinônimos adjetivos bem distintos como deficiência,
anormalidade e doença:
5
Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl em 14 de abril de 1936. Escrita à
máquina e assinada à mão.
6
MARQUES, Vera Regina Marques Beltrão. Raça e noção de identidade nacional. O discurso
médico-eugenista nos anos 1920. In: BRESCIANI, Maria Stella (et. alii). Razão e Paixão na
Política. Brasília: Editora UnB, 2002, p. 181-195.
7
Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin e um de seus primeiros seguidores.
Criador da biometria, disciplina que aplica os métodos estatísticos à biologia, e especialmente
140
formação do homem9 saudável, belo, civilizado, definitivamente brasileiro.
Dessa forma, eugenizar nada mais é do que homogeneizar a população,
ressaltando as semelhanças e segregando os diferentes.
141
A este respeito, Michel Foucault é inspirador quando analisa os
anormais. Desenvolvendo a idéia de que o monstro humano é uma noção
jurídica, por fugir à norma, Foucault demonstra como a monstruosidade pode
contradizer a lei. Mas esse monstro não deflagra uma resposta por parte da lei
– ele a deixa sem voz. O anormal do século XIX é o monstro humano cotidiano,
um monstro banalizado, e não mais, como era visto até o século XVIII, uma
infração das leis da natureza.12 O monstro torna-se objeto de estudo médico e
passa a ser considerado um anormal do ponto de vista mental e psicológico.
Mas, também, todos os que fizerem parte desta categoria de ‘anormal’ serão
considerados ‘desviantes sociais’. Assim, a partir do século XIX, há uma
suspeita sistemática de monstruosidade no fundo de qualquer criminalidade.
Todo criminoso traria em si um monstro, assim como para Renato Kehl todo
doente seria um monstro, um anormal. Nas palavras de Kehl:
12
FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de janeiro de 1975. In: Os Anormais. São Paulo: Editora
Martins Fontes, p. 69-71.
142
discurso médico transforma o observado em coisa, não humana, passível de
manipulação e enquadramento a um corpo técnico de regras e processos.14 A
fealdade transforma-se em anormalidade e morbidez, impossibilitando a saúde
do indivíduo. Mais do que isso, ela é a própria incivilidade.
13
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1926, p. 05.
14
COURTINE, J-J. e HAROCHE, C. História do Rosto. Lisboa: Teorema, 2000, p. 218.
15
Para Kehl, a filantropia e o sentimentalismo contrariam a seleção natural, contribuindo para a
proliferação dos fracos, doentes e degenerados, agravando a decadência e o abastardamento
do gênero humano. In: Educação Eugênica. Rio de Janeiro: Livraria Alves, abril de 1932, p. 6.
143
fisiológico acidental ou mesmo congênito. A surdez, a
cegueira, a perda, por exemplo de um braço ou de uma
perna por doença ou por acidente, não tem importância
genética. As desordens hereditárias, estas sim,
constituem fatores de degeneração, porque atuam de
forma dominante ou recessiva, dando origem aos
verdadeiros cacoplasmas ou deficientes.17
16
KEHL, Renato. Filhos de Luéticos, Jornal Correio da Manhã, 17 de outubro de 1923. FOC
17
KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas. Rio de Janeiro: Separata da Revista
Terapêutica, nº 3, 1942, p. 3. FOC
18
KEHL, Renato. Anões e Gigantes In: Eu Sei Tudo, nº 70, Março de 1923. FOC
19
Falo em eugenistas por crer que o discurso de Renato Kehl não era solitário e que a
formação do campo de saber e discussão da eugenia continha em si os medos e anseios de
seus correligionários.
144
saúde, força e vigor, para classificar um individuo no rol
dos typos eugenicamente bellos.20
20
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op. cit., p. 27.
21
Grifo de Renato Kehl.
22
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op.cit., p. 27.
145
autoridade médica. Os eugenistas se valem de suposições dessa natureza
para encarar a doença (patologia) e considerá-la um desvio da norma,
intolerável porque funcionaria como um obstáculo para o progresso da nação.
Kehl é bastante explícito neste aspecto:
23
CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p.
107.
24
KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas, op.cit., pág. 4
25
Na década de 30, diversos países europeus, além dos Estados Unidos e da União Soviética,
já praticavam largamente a eugenia como forma de eliminar os indesejáveis. Um dos casos
assustadores dessa prática deu-se na Alemanha, entre os anos de 1934-1939, onde centenas
de milhares de pessoas foram esterilizadas. Na Califórnia, Estados Unidos, foram praticadas
mais de 50 mil esterilizações entre os anos de 1907 e 1948. Para maiores informações ver:
André Pichot, op. cit.
26
HÉRITIER, Jean. Le martire d’affreux. Paris: Édition Denoel, 1991, p. 82.
146
delimita os campos de dois tipos físicos característicos daquele momento: o
físico popular e o físico burguês. No caso do físico popular, é do anonimato das
fealdades onde pode sempre surgir o rosto da violência e do crime.27 Essa
ameaça de criminalidade relacionada à classe pobre é associada, da mesma
forma, à fealdade.
27
COURTINE, J-J e HAROCHE, C. História do Rosto. Lisboa: Teorema, 2000. pág. 221.
28
A este respeito a bibliografia é vasta. Ver, por exemplo, BENCHIMOL, Jayme (coord.). Febre
amarela a doenca e a vacina, uma historia inacabada. Rio de Janeiro : Fiocruz, 2001 e
CARVALHO, J.M. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Cia. das Letras, 1987.
29
Os bairros de Higienópolis e Campos Elíseos, em São Paulo, são exemplos da segregação
dos espaços do saudável e do doente, da formação do bairro burguês em detrimento do bairro
proletário, como, por exemplo, os bairros do Brás e do Bexiga. Maria Alice Rosa Ribeiro.
História Sem Fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo: Editora Unesp, 1993, p. 103.
30
Para saber mais ver: RAGO, Luíza Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade
disciplinar. Op. cit. e RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim.... Op. cit.
31
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. A Vontade de Saber. Volume 1. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1988.
147
A formação de disciplinas para o entendimento dessa nova sociedade
biopolítica criou campos e saberes específicos sobre o corpo. Demografia,
estatística, a própria sociologia, com seus ramos da antropologia e da
antropometria, para estudar os grupos sociais com o viés biológico ou não, a
biometria e a caracteriologia foram técnicas de análise e medição dos povos
para diagnosticar o lugar do ‘enquadramento’ e a formação da ‘norma’.
32
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p. 20
33
KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas, op. cit., p. 4.
148
Aqui, corpo e meio-ambiente são colocados como coisas distintas, não
influindo diretamente um no outro. A eugenia cuida das condições hereditárias,
que não podem ser modificadas pelo meio-ambiente.
34
Vemos aqui historicidade como processo de construção da história, tendo em vista as
relações sociais do homem com seu meio e da experiência vivida, do modus vivendi como
fatores determinantes para conhecer o homem e seu meio. É essa complexidade que admite a
subjetividade, mas que não dá conta da totalidade de uma realidade que constitui o lugar de
formação dos seres.
35
HÉRITIER, Jean. Op. cit., p. 76.
149
2. Isso é Feio! Que triste...
36
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p.103.
37
Idem, Op. cit., p. 107
38
SANT’ANNA. Denise. Pourquoi souffrir? In: La recherche de la beauté...., Op. Cit., p. 210
150
favorecida pelo apoio dos médicos brasileiros. Nessa perspectiva, as silhuetas
feias e o sofrimento, ocasionado por elas, tendem a ser consideradas como
anormalidades indesejáveis, e como indecente sua dor excessiva e sua
infelicidade.39
39
Idem, Op. cit, p. 212.
40
Termo usado por CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., p. 192.
41
KEHL, Renato. Formulário da Belleza. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1927, p. 242.
CP
151
Vê lá um louco – é o filho de um alcoólatra. Vê lá um
mentecapto – é descendente de um ébrio. Vê lá aquela
família, maltrapilha e esquelética, as crianças fazendo dó
de magras, pallidas e feias – qual a causa? – O pae,
coitado, deu para beber e abandonou o lar!. 42
42
Idem
152
que o eugenismo, ao propor a melhoria do corpo individual e do cuidado de si
representaria um incentivo ao individualismo. No entanto, Kehl afirma
justamente o contrário:
43
KEHL, Renato. O que pretendem os eugenistas. Rio de Janeiro: Separata da Revista
Terapêutica, nº3, 1942, ano XXII, p.04. Renato Kehl era editor chefe desta revista na época.
FOC
153
tardios. Limitação da prole. Geração consciente.
Prolificidade natural reduzida: - o número de filhos é
inversamente proporcional à posição social dos pais.
Enquanto o número médio de filhos, por casal, entre
médicos, advogados, engenheiros é de 2 a 4, sobe de 4
a 8 entre os diaristas e trabalhadores braçaes.44
44
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op.cit., p.45.
45
Idem, p. 44.
154
(...) A idéia de que a humanidade se homogenizará no
futuro, em virtude de fatal mestiçamento de todos os
povos, não nos parece admissível.46
46
Idem, p. 207.
47
LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Op. cit., p.112-113.
48
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op.cit., p. 208.
155
Nas palavras de Renato Kehl,
49
Idem, p. 206.
50
Idem, p. 44.
156
de Janeiro nos dias de carnaval. A fealdade physica e a
degradação moral aproveitam a oportunidade para se
exhibirem com todo o seu repugnante e verdadeiro
aspecto. Os indivíduos não põem mascara, - tiram-na.
Todo o resíduo informe da plebe, por influencia diabólica
do álcool e do vicio, sobrenada, vem á tona, para
misturar-se com a parte melhor do povo e contaminal-a
pelo delírio das baixas paixões. Asneiras de toda a sorte
são commetidas pelos indivíduos apparentemnete
ajuizados, mas que perdem, facilmente, o controle e
cahem no domínio dos instinctos.
51
KEHL, Renato. Scenas Deprimentes. In: Boletim de Eugenia. Volume 1, nº 2, fevereiro de
1929, p. 03.
157
Tal comentário de Kehl mostra um imenso mau-humor diante da vida
social e pública. Divertir-se no carnaval é ceder à influência diabólica do vício,
cair no domínio dos instintos e ainda motivo de ironia e desprezo lingüístico
com a chamada plebe (doente, desengonçada e feia), que mais representa o
cidadão comum e trabalhador: vestida andrajosamente em trapos, a tremelicar
e saracotear pelas nossas ruas! Nossas ruas? A rua não é o lugar do público?
Pela afirmação de Kehl, parece que não.
158
respectivamente: 36, 32 e 18 annos; a menina tem
apenas 9 anos de idade.
52
KEHL, Renato. Uma Família Brasileira cujos elementos não possuem braços nem pernas. In:
Boletim de Eugenia. Volume 2, nº 21, setembro de 1930, p. 03.
159
Essa matéria foi publicada em dois lugares antes do Boletim de Eugenia
(um jornal carioca e o Eugenical News53). Como se vê, trata-se de uma família
de doze filhos sendo que seis deles nasceram com problemas físicos
congênitos (anomalias). De acordo com Kehl, o mais interessante é terem sido
os homens os mais prejudicados. Essa afirmação denota, mais uma vez, um
certo machismo de Kehl, pois poderiam (talvez com menos custo social) ser as
mulheres as aleijadas. Seu comentário tem um tom queixoso, como se o fato
de os homens não terem braços nem pernas fosse um desperdício para a
sociedade, já que eles não podem trabalhar.
53
Interessante saber que um jornal eugenista norte-americano publicava notícias sobre casos
brasileiros.
160
com saúde. Eles poderiam ser infelizes para Kehl, mas será que se sentiam
assim?
161
3. A Cura da Fealdade 54
54
A Cura da Fealdade é o nome dado ao livro de Renato Kehl, que descreve técnicas de
embelezamento, normas e parâmetros de beleza estética.
55
Idem, p. 183.
56
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 183.
57
Idem.
162
disso, pois só a norma era insuficiente para reverter um estado de degradação
social.
58
Idem, p.169.
163
Como ressaltou Marcos Nalli59, a educação é um exemplo de
intervenção eugênica e, dessa forma, apresentava fragilidades em sua eficácia,
assim como a religião e o progresso da ciência sozinhos não conseguem
impedir a degeneração dos povos. Nas suas palavras:
59
NALLI, Marcos. Antropologia e segregação eugênica: uma leitura das Lições de Eugenia de
Renato Kehl. Mestrado em Psicologia. Universidade de Maringá, 2000.
60
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 45.
164
leis naturais e dos princípios que dominam a vida
individual e social. Quando muito trazem apenas a
bagagem, de uma ‘boa educação’ e nenhuma
compreensão dos deveres para com a descendência,
para com as gerações futuras. Individualismo e não
coletivismo. Misticismo. Preocupações de vida... extra-
terrena!62
61
Idem, p. 50.
62
Idem, p. 45.
63
Ressaltamos os trabalhos elaborados sobre a educação física que merecem destaque na
constituição deste aparato educacional proposto pelos eugenistas, especialmente: SOARES,
Carmem. As raízes da educação física... op. cit.
64
Sobre a história da infância no Brasil, ver o belo trabalho de: BRITES, Olga.A imagem da
infância: São Paulo, 1930-1950. Tese de Doutorado. História PUC/SP, 1999.
65
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 190.
165
Os eugenistas acreditavam os débeis mentais e alienados, além de
representarem um prejuízo para o Estado, sobrecarregam os que são
considerados produtivos.
66
Idem, p.190.
67
Para Foucault, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno corrente na sociedade, por isso é
muito difícil determiná-lo. Ele é regular na sua irregularidade. O incorrigível é o monstro
empalidecido, banalizado, em que fracassaram todas as técnicas, procedimentos e
investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo.
Portanto, o indivíduo a ser corrigido é incorrigível. FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de janeiro de
1975. In: Os Anormais, op. cit., p.73.
166
Dessa forma, Kehl dá as justificativas para a aplicação da esterilização,
em que casos o homem e a mulher devem ser submetidos a esse método:
68
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 194.
167
educação anticoncepcional69, o fim do tabu sexual70 e o controle compulsório
de nascimentos.71 Pra o caso brasileiro, Kehl enfatiza a importância do controle
racional de nascimentos, com os seguintes argumentos:
69
Adotada na Alemanha e Holanda desde o século XIX. Na Suécia é praticada pelas ‘classes
inferiores’. In: Idem, p. 196.
70
No caso dinamarquês, a educação sexual e o desprendimento da moral católica geraram um
estado de coisas que possibilitou o ‘amor livre’, mas ao contrário da libertinagem vê-se uma
sociedade eugenizada em que o índice de doenças venéreas é baixo e os casamentos são
realizados dentro das normas eugênicas. In: Idem, p. 197.
71
Caso japonês: o estado limitou o número de nascimentos nas famílias a partir de 1930. In:
Idem, p. 198.
72
Idem, p. 198-199.
73
Idem, p. 199.
168
aspecto, por admitir que o sexo pode ser prazeroso e não ter somente a função
da procriação. No entanto, essa liberdade para o prazer sexual dirige-se
somente ao homem, o que faz o modernismo de Kehl ser parcial. Na verdade,
o controle de nascimentos é dirigido principalmente àquelas famílias pobres
que não têm condições para sustentar os filhos.
169
hospitaes, prisões, asylos de loucos, e com socorros, que
tal família custou ao Estado de New York, não contando
os prejuízos inderectos de roubos, homicídios, destruição
de propriedades, etc.
Agora o contraste:
74
Ibidem.
75
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 5, maio/1929, p.03
76
Como foi possível fazer a genealogia de Max Jukes, um pobre pescador do século XVIII,
arrolando mais de 1200 descendentes? É de se questionar a veracidade desses dados.
170
Para que existam famílias de boa descendência, é necessário fazer um
plano para estimular o aumento do índice de nascimentos dos casais
superiores. Kehl propõe o que chamou de “política de natalidade”, que envolve
de modo esquemático os meios de ação para a diminuição da fecundidade dos
indivíduos abaixo da média e o correlativo aumento da fecundidade dos
indivíduos acima da média (a primeira com caráter eliminatório e a segunda
com caráter eletivo e estimulador). Por exemplo:
77
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 231.
78
Idem, p. 232-233.
171
Para facilitar a execução dos remédios eugênicos é necessária a
organização da árvore genealógica de todas as famílias. Para isso, o autor
propõe:
79
Idem, p. 233.
80
Restam ainda propostas como a da propaganda eugênica, política asilar, exame pré-nupcial,
testes mentais.
172
sonho totalitário, por outro lado tinha planos detalhados para a sua
implantação. Faltou-lhes o quê?
* * *
173
11. Regulamentação da situação dos filhos ilegítimos.
81
Idem, p. 213.
174
Todo o dom tal como a beleza, a inteligência, ou
habilidades sociais, ajudarão suas crianças na
conquista da felicidade e do sucesso.
Ron Harris, fotógrafo de moda
C ONSIDERAÇÕES F INAIS
176
Por isso, cada um dos capítulos desta dissertação pode ser lido
separadamente pela própria especificidade da abordagem e do tipo de fonte
histórica trabalhada. Boletins, atas de congressos, cartas pessoais e livros
contribuíram para a partir de Renato Kehl indentificar inúmeras conexões entre
ele e seus companheiros da rede arborificada. Esta rede era também, mais
uma rede (ou célula) microfascista entre diversas outras da época.
Obviamente, a leitura completa do texto trará uma melhor compreensão do
objetivo desta dissertação. As duas problemáticas deste trabalho também se
entrecruzam com freqüência (rede e corpo); os braços eugenistas aparecem
em todas as fontes e, a ênfase deste trabalho era em saber o modo como Kehl
constituiu tal rede e com que pessoas.
1
KEHL, Renato. No século da Eugenia, In Imprensa Médica. Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 231,
15/01/1937.
177
Renato Kehl não foi o único nem o último a propor práticas de
melhoramento da raça e da espécie. O Brasil, ainda que miscigenado e
múltiplo ainda tem muito a melhorar no que diz respeito às tolerâncias nas
diferenças. No entanto, ao redor do mundo temos visto demonstrações cada
vez mais atrozes (pessoais e de Estado) de indicam uma tendência à
segregação dos povos.
178
Ambos são muito ativos, saudáveis, com mentes
brilhantes como meus irmãos. Eu não tenho nenhum
vício, não uso drogas, não jogo, nem meus pais.2
2
Anúncio disponível no site: http://www.ronsangels.com. Site de venda de óvulos e banco de
esperma de modelos “bonitos” norte-americanos idealizado por Ron Harris fotógrafo de moda.
Acesso em 29/03/2003.
3
KEHL, Renato. Sexo e Civilização, op. cit., p.05.
179
B IBLIOGRAFIA
180
- CASTAÑEDA, Luiza. Apontamentos historiográficos sobre a
fundamentação biológica da eugenia IN Revista Episteme, Porto Alegre,
v.3, n.5, 1998 (23-48)
181
- DRULHE, Marcel. Comment mesurer la santé?. In: Esprit. Paris, nº
229, fev. 1997.
182
- GOETHE. Obras Completas. Buenos Aires: Libreria “El Ateneo”
Editorial, 1953.
183
- _____________. Ciência em Ação: como seguir cientistas e
engenheiros sociedade afora. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
184
- MELO, Rita de Cássia Guimarães. O mundo urbano na obra de Lima
Barreto: classes médias e pobres nos subúrbios do Rio de Janeiro
(1881-1922). Dissertação de Mestrado. História PUC/SP, 2002.
185
- PELÁEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas.
Criminales o locos? Madri: Cuadernos Galileo de Historia de la
Ciência/Consejo Superior de Investigaciones Científicas, 1987.
186
- SANT’ANNA, Denise Bernuzzi. O Prazer Justificado: História e Lazer
(São Paulo, 1969/1979)
187
- __________________. Luzes: cinco entrevistas com Bruno Latour.
São Paulo: Unimarco, 1999.
188
- WILKIE, Tom. Projeto Genoma Humano: um conhecimento perigoso.
Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994
2. Obras de referência
3. Filmografia Recomendada
189
baseados nas black-face do início do século XX como crítica ao
racismo, mas o show se torna um sucesso.
190
4. Sites
191