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Pietra Stefania Diwan

O ESPETÁCULO DO FEIO
práticas discursivas e redes de poder
no eugenismo de Renato Kehl. 1917-1937.

Mestrado – História
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
2003
Pietra Stefania Diwan

O ESPETÁCULO DO FEIO
práticas discursivas e redes de poder
no eugenismo de Renato Kehl. 1917-1937.

Trabalho apresentado à Banca


Examinadora, como exigência
parcial para obtenção do título de
Mestre em História Social, sob
orientação da Profª. Drª. Denise
Bernuzzi de Sant’Anna.
Banca Examinadora
R ESUMO

Esta pesquisa não é uma biografia de Renato Kehl, médico mais


comumente conhecido por ser o grande representante do eugenismo no Brasil.
Não se trata também de uma investigação a respeito das relações entre
eugenia e educação, eugenia e nação ou eugenia e higiene, grandes vertentes
de análise do discurso eugenista. Trata-se principalmente de perceber a rede
de relações que compunha a empreitada pela implantação da eugenia no Brasil
– seus adeptos, incentivadores e financiadores – assim como de identificar,
através dos textos de Renato Kehl, uma minuciosa tentativa de desumanizar o
corpo imperfeito, ou seja, dysgenico, relacionando–o à fealdade, anormalidade,
monstruosidade e doença.

O que nos interessa é não unicamente descrever essa rede de poder tal
como ela se apresenta, mas, sobretudo, perceber como ela se constitui
historicamente, quais são seus sentidos, as justificativas científicas e morais
que as sustentam e os interesses políticos em jogo. Renato Kehl será
considerado aqui como um ponto de partida para conhecer as articulações
históricas que o transformaram no maior representante do eugenismo
brasileiro. Ou seja, partiremos do pressuposto que essa condição de Renato
Kehl não é um a priori e sim o resultado de inúmeras relações sociais que
trataremos de avaliar tendo como centro de debate a eugenia.
A BSTRACT

This research is not a biography of Renato Kehl, a doctor most


commonly known as a major apologist of eugenics in Brazil. It is not either an
investigation into the relations between eugenics and education, eugenics and
nation, or eugenics and hygiene, common branches of the analyses of the
eugenist speech. It is related above all to perceiving the net of relations which
made up the endeavor for the implantation of eugenics in Brazil – its adepts,
supporters and financiers – and also to identifying, through the texts of Renato
Kehl, a minute attempt to de-humanize the imperfect body, or dysgenic, relating
it to ugliness, abnormality, monstrosity and disease.

What concerns us is not only to describe this net as its shows itself, but,
above all, to perceive how it was historically constituted, what its meanings are,
the moral and scientific reasons supporting it and the interests involved. Renato
Kehl will be considered here as the starting point to know the historical
articulations which made him the top representative of Brazilian eugenics. That
means we will start from the presupposition that this condition of Renato Kehl is
not an a priori, but rather the result of several social relations, which we will try
to evaluate having eugenics and the center of the debates.
A GRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer a CAPES pelo financiamento desta pesquisa sem


a qual não poderia ser realizada. Muitas foram às pessoas e instituições que
colaboraram para este trabalho. As pessoas que agradeço aqui nada tem a ver
com os equívocos cometidos ao longo do caminho.

Primeiramente, à diretora do depto de Obras Raras da Biblioteca


Municipal Mário de Andrade pela compreensão no empréstimo do exemplar da
Cura da Fealdade para digitalização. Da mesma forma ao CEDIC/PUC,
pessoalmente à Ana Célia Navarro e à amiga e colega na História, Clarissa
Schmidt, pela intermediação.

Às bibliotecárias da Faculdade de Medicina da USP, que mui


atenciosamente procuraram os livros Sexo e Civilização e Tipos Vulgares e, da
Faculdade de Direito do Largo São Francisco que gentilmente emprestaram a
coleção do Boletim de Eugenia e das Actas e Trabalhos do 1º Congresso
Brasileiro de Eugenia para a eficiente microfilmagem feita pelo Arquivo do
Estado de São Paulo.

Agradeço ao Fundo Pessoal Renato Kehl do Departamento de Arquivo e


Documentação da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, que me recebeu na cidade
maravilhosa para descobrir uma série de documentos inéditos sobre Renato
Kehl, entre as quais as epístolas enviadas a ele. Agradeço a Ricardo Augusto,
colega de primeiros contatos e futuros trabalhos que me apresentou o grupo de
Higiene e Eugenismo da Faculdade Estadual de Maringá coordenado pela
Profª. Maria Lúcia Boarini, com quem mantive interessantes ‘relações
epistolares virtuais’.

Ao Marcelo Cid pela revisão pronta e atenta naquele em cima da hora.


Ao Eliseu e a Marisa que salvaram minha dissertação quando meu HD pifou.

Aos inúmeros colegas da PUC/SP, tanto do curso de graduação como


do programa de pós em História, que participaram sempre com críticas e
palavras de otimismo durante este percurso: Márcinho, Raquel, Izilda e Sérgio;
Daniel, Felipe, Alênio, Andréia, Mirtes. À companheira de luta Karina Poli.
6
Aos professores que me formaram na graduação, especialmente pela
dedicação de Antonio Rago Filho pela aula de vida em nossa pesquisa de
Iniciação Científica. Aos professores do Programa de Estudos Pós-graduados
em História da PUC/SP, em especial, Maria do Rosário Cunha Peixoto e
Maurício Broinizi, pelas leituras atentas e por acreditar que este trabalho era
possível.

Às professoras Luiza Margareth Rago e Olga Brites pelas contribuições


durante o exame de qualificação marcado pelo ambiente criterioso mas muito
descontraído.

À minha orientadora, Denise Bernuzzi de Sant’Anna, mulher, que deste


a graduação me causou fascínio. Obrigada pela serenidade, força e segurança
com que conduziu esta inicial e curta viagem pelo eugenismo. Companheira e
cúmplice de minhas inseguranças e grande incentivadora de meus vôos mais
altos. Um exemplo de dedicação e atenção. Os méritos que este trabalho
possa vir a receber devem dirigir-se a você.

À minha querida família, a todos vocês obrigada pela paciência em


suportar minhas ausências. Minha irmã Giovanna, garota que certamente terá
um futuro brilhante e ao meu irmão Filipe, meu grande exemplo de coragem,
Avante! No pasarán! Mãe, por sua luta, você é a leoa que guarda e protege
seus filhos ‘caducos’, sempre! Vovó, Ya-Yá e Bebé, obrigada.

Meu pai, que sempre esteve presente, preocupado e curioso em saber o


que afinal estudo. Batalhador, eu sei que você vai conquistar tudo aquilo que te
pertence. Às vezes temos que olhar para frente, mirar o futuro! Rosa Maria, o
exemplo do otimismo nas situações mais difíceis. Vocês dois me deram uma
grande lição.

Aos meus seis felinos do coração (Pirulito, Maria Mole, Firdusi,


Rapadura, Pinóia e Tigrinho) companheiros de computador nas madrugadas e,
de bagunças e carinhos nas horas de lazer.

Ao meu amor... companheiro de todas as horas, que segurou minhas


‘barras’ e foi fundamental nesta trajetória. A você, José, que poetiza a vida.

7
SUMÁRIO

ABREVIATURAS DOS ACERVOS ............................................................................... 9

INTRODUÇÃO ....................................................................................................... 11

CAPÍTULO I – “À CUSTA DE MUITO SABÃO DE CÔCO(...)” ...................................... 29


1. A Institucionalização da Rede................................................................. 29

2. Tupy or for Tupy?.................................................................................... 57

CAPÍTULO 2 – BASTIDORES EUGÊNICOS ................................................................ 77


1. “Relações Epistolares “ ........................................................................... 77

2. “O Choque das Raças” ......................................................................... 110

CAPÍTULO 3 – O ESPETÁCULO DO FEIO ............................................................... 138


1. Os Caminhos da Desumanização ........................................................ 138

2. Isso é feio! Que triste... ........................................................................ 150

3. “A Cura da Fealdade” ........................................................................... 162

CONSIDERAÇÕES FINAIS .................................................................................... 176

BIBLIOGRAFIA .................................................................................................... 181


1. Artigos, Livros, Dissertações e Teses................................................... 181

2. Obras de Referência ............................................................................. 190

3. Filmografia Recomendada .................................................................... 190

4. Sites ...................................................................................................... 192


A BREVIATURAS DOS A CERVOS

Estarão inscritas as abreviaturas ao final da primeira citação completa nas

notas de rodapé, indicando a que acervo pertence tal documento.

− Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco, USP – FDR

− Biblioteca da Faculdade de Medicina da USP – FMD

− Fundo Pessoal Renato Kehl, Departamento de Arquivo e Documentação

da Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz, RJ – FOC

− Biblioteca Municipal Mário de Andrade – BMA

− Coleção Particular - CP

9
I NTRODUÇÃO

Eva nasceu. Em dezembro de 2002 o mundo se surpreendeu com a notícia


de que o primeiro bebê-clone havia nascido. Era uma menina, Eva, cujo nascimento
foi anunciado por Brigitte Boisseller, geneticista de uma seita religiosa1 que acredita
que o homem foi feito por cientistas de outro planeta. A notícia foi recebida com
descrédito pela comunidade científica.

Pensar nos avanços médicos ocorridos nos últimos anos é ver algo mais,
além de uma tentativa de criar novas tecnologias para melhorar a vida e a saúde
humana. Desde 1994, através de um pool de laboratórios, vem se desenvolvendo
uma corrida pela leitura do DNA humano. Primeiramente, pequenos insetos e
animais foram estudados, e finalmente, após oito anos, o Projeto Genoma Humano2
mostrava ao mundo que somos, fundamentalmente, uma cadeia espiral de 3 bilhões
de genes encadeados. De acordo com os cientistas que participam do Projeto, a
descoberta desse código da vida ajudará a evitar doenças congênitas, além de
possibilitar a modificação das cadeias de DNA a fim de corrigir possíveis falhas
genéticas.3

Enquanto isso a saúde vem se transformando num produto comercializável.


Saúde significa comprar medicamentos de última geração, fórmulas diferentes para
novos modos de viver, métodos de movimentação corporal, exercícios físicos e uma
gama variada de serviços e técnicas para o bem-estar físico. O corpo saudável

1
Essa seita é conhecida como raelianos. Liderados pelo ex-jornalista esportivo Claude Vorillon
(autodenominado Rael), os raelianos, acreditam que o homem é uma criação extraterrestre, e
desenvolveram pequenos aparelhos de “fusão gênica” que são vendidos pelo site do grupo na
internet por cerca de 10 mil dólares. Para saber mais, ver o site The Raelian Revolution:
http://www.rael.org.int. Acesso em 23/03/2003.
2
Para saber mais sobre as implicações sociais e os interesses em torno dos problemas éticos
envolvidos na decodificação do DNA humano, ver WILKIE, Tom. Projeto Genoma Humano: um
conhecimento perigoso. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editores, 1994; e ver site sobre o debate e as
implicações éticas deste projeto em: http://www.nhgri.nih.gov. Acesso em 25/03/2003.
3
“DNA, o guardião do segredo da vida, começa a falar”. Jornal O Estado de São Paulo, 27 de
fevereiro de 2003. http://www.estadao.com.br/magazine/materias/2003/fev/27/316.htm. Acesso em
25/03/2003.

11
adquiriu um valor de mercado na sociedade capitalista; na qual tudo se passa como
se quanto mais se adquire saúde, mais sucesso se tem!

Da mesma forma, a beleza tornou-se uma mercadoria. Ela é um atributo da


saúde conquistada com esforço, dedicação ou altas contas em clínicas estéticas.
Nessas clínicas – há uma em cada esquina – mais e mais pessoas enfileiram-se em
busca da perfeição corporal.

Na imprensa brasileira pode-se ler diversas matérias que fazem referência à


importância de se ter saúde e ser belo. Em outubro de 2002, a capa de uma revista
de grande circulação estampa a manchete “A Popularização da Beleza”,4
registrando que as clínicas de beleza e os tratamentos estéticos pululam na cidade
de São Paulo. Homens e mulheres em busca da perfeição corporal são espetados
por agulhas, queimados por raios laser, besuntados e massageados com cremes,
pagando porém preços menores do que aqueles cobrados por cirurgiões plásticos.
A tentativa de se obter uma boa aparência, ou o “corpo perfeito”, vincula-se não
somente à auto-estima: o sucesso pessoal e a perspectiva de um novo emprego
estão ligados à boa aparência, como afirma a matéria “A Ditadura das Aparências”.5
Segundo uma estatística, os alunos belos podem ter notas maiores em até 40% do
que seus colegas “feios”, assim como os bebês mais bonitos despertam mais a
ternura dos adultos.6 De acordo com Amadieu, as relações sociais são
condicionadas pelas aparências.

Com a crescente valorização da boa forma física e a exposição do corpo


considerado jovem, o espartilho que se usava na década de 1920 está, agora,
“dentro de cada um” e, o que era preocupação estética e cosmética exclusiva da
mulher7 transformou-se numa preocupação médica para ambos os sexos. Cada vez

4
Maria Rita Alonso. Botox, choquinhos, laser e muito mais. In: Revista Veja São Paulo, ano 35, nº
42, 23 de outubro de 2002, pp.12-16.
5
Luis Pellegrini. A Ditadura das Aparências. In: Revista Planeta, ano 31, nº 3, março de 2003, pp.
24-29.
6
Essas afirmações são baseadas num estudo feito por Jean François Amadieu, sociólogo que
lançou na França o livro O Peso das Aparências. In: A Ditadura das Aparências, Op. cit.
7
Para saber mais sobre os significados do embelezamento feminino durante o século XX no Brasil,
ver o completo e minucioso trabalho de: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté. Une
contribution à l’histoire des pratiques et des representations de l’embellissement féminin au Brésil – 1900 à
1980. Tese de Doutorado. História e Civilizações. Universidade de Paris VII. Paris: 1994.

12
mais a estética se especializa, e profissionais os mais diversos são requeridos
dentro de clínicas. Não se trata unicamente de ir ao salão de beleza, mas à clínica
dentro do qual as referências médicas imperam e a atmosfera hospitalar é
recorrente, como se todos vestissem branco para cuidar da aparência. No mundo
moderno – ou pós-moderno? – devemos8 ser belos, magros, ter cabelos lisos, ter
pouco pêlo, enfim, devemos parecer ‘naturais’ diante do espelho, de nós mesmos e
dos outros.

E, para conquistar mais saúde, juventude e beleza os caminhos científicos e


industriais não cessam de se multiplicar; principalmente depois do advento da
revolução que casou a informática com a genética em meados dos anos 70,
resultando em seres transgênicos e em produtos e técnicas outrora inimagináveis.

Dolly foi sacrificada. Em 5 de julho de 1996 o animal nasceu em Edimburgo,


na Escócia, mas o fato só foi divulgado em 1997. Dolly era uma ovelha e o primeiro
animal clonado a partir da célula adulta de um mamífero. Embora com aparência
normal, Dolly nasceu com diversas anomalias cromossômicas. Sofria de
envelhecimento precoce; à sua verdadeira idade deveria se somar a da ovelha de 6
anos da qual se retirou a célula mamária que lhe deu origem. Assim, Dolly foi
sacrificada 6 anos após seu nascimento, por sofrer de uma doença degenerativa. O
fato questiona a própria eficiência da clonagem. De fato, centenas de animais já
foram clonados e todos apresentaram más-formações genéticas e físicas.9

No Japão, cientistas criam uma mistura de porco com espinafre10. A inserção


de genes de espinafre em suínos tem por objetivo produzir uma carne menos
gordurosa e mais saudável. Mas os cientistas consideram que ainda é cedo para
dizer se essa carne é tão saudável quanto o espinafre.

8
O termo devemos é usado com a conotação de dever, como se fosse um dever cívico individual
que deve ser prestado por todos. Dessa forma, ser feio representa atentar contra a civilidade, contra
o coletivo, já que os tratamentos estéticos estão tão popularizados.
9
Sacrificada Dolly, o primeiro clone. (AFP) Jornal O Estado de São Paulo, 15 de fevereiro de 2003.
http://www.estado.estadao.com.br/editoriais/2003/02/15/ger014.htm. Acesso em 25/03/2003.
10
Matéria divulgada pela agência alemã de notícias Reuters em 24 de janeiro de 2002 e publicada na
internet, na página do jornal Popular – um jornal on-line de notícias bizarras – no site:
http://www.terra.com.br/noticias/popular/2002/01/24/005.htm. Acesso em 24/01/2002.

13
Ocasionalmente folheando uma revista médica11, na Faculdade de Medicina
da Universidade de São Paulo, encontrei o anúncio de uma empresa de fibras
óticas produtora de equipamentos para microscópios que possibilitam a criação de
animais transgênicos. Trata-se das agulhas que perfuram óvulos estéreis, para a
inserção de DNA alheio, que freqüentemente vemos na televisão quando se mostra
qualquer experiência de clonagem ou transgenia. Em página branca estão
dispostos dois camundongos idênticos, um acima da página e outro abaixo. Sob os
dois, a seguinte legenda, em inglês: Produto da natureza e Produto da PiezoDrill.

O que isso significa? Que o primeiro é produto da natureza e o outro é um


clone para fins de experimentação médica? Ademais, recebemos essa notícia com
alívio ou angústia? – Que bom... a partir de agora os camundongos gerados pela
natureza serão poupados e só os clones serão usados na experimentação de novas
drogas, terão chips implantados em seus cérebros e após a aplicação de um
medicamento novo serão observados até morrerem, para que os cientistas possam
saber qual é a capacidade de resistência dos animais clonados à dor, à doença e
ao sofrimento. Mas afinal, os clones têm alma? Ou clones humanos têm e os clones
de camundongos não? Eles podem sofrer? Até que ponto se pode manipular o
corpo animal e humano? Quais são os limites éticos da experimentação médica?
Há uma desumanização do homem, ao querer fazer a clonagem, ou haveria uma
humanização do clone? Ou nenhuma dessas duas possibilidades? Qual a diferença
entre o corpo do animal e o corpo humano? O humano tem racionalidade, o animal
não? Estaremos aptos a responder essas perguntas? Este trabalho não objetiva
respondê-las, mas expor algumas das inquietações do presente que nos fazem
voltar ao passado.

Clonagem, transgênicos, saúde, beleza são palavras que circulam


diariamente pelas páginas dos jornais e pelos canais de televisão. São termos que
fazem parte de nossas vidas e cuja historicidade, no entanto, pouco conhecemos.
Afinal, por que hoje faz tanto sentido olhar os rótulos dos alimentos, ser ou não

11
Anúncio da empresa norte-americana Burleigh que pode ser conhecida no site:
http://www.burleigh.com/piezodrill. Anúncio publicado na Revista Cell, Vol. 100, nº 4, 2000.

14
contrário à plantação, comercialização e importação do milho transgênico12 no
13
Brasil? Bruno Latour chamou esse processo de proliferação dos híbridos, seres
ou coisas que são um mix de natureza e cultura que acabam por se sobrepor àquilo
que durante muito tempo o mundo ocidental – do norte! – procurou fazer: segmentar
a vida, separar tudo em compartimentos. Fatos, poder e discurso.14 Já não é mais
possível ao ocidental ler o mundo segmentado. O mundo agora está disposto em
forma de rede, articulando ao mesmo tempo diversas dimensões da vida numa
universalidade multicultural sopreposta. Atravessa o campo da representação, da
linguagem e dos textos.

Neste sentido, fazer um pequeno retrospecto dessa história do presente


contribui para identificar algumas das motivações principais para a elaboração desta
dissertação. Contemplando os anos de 1920 e 1930 no Brasil pode-se entender
como é possível, hoje, pensar questões relacionadas à idéia de saúde e bem-estar,
aliadas aos ideais estéticos. Além disso, há a importância de se perceber que ali
estão localizadas informações relevantes para identificar de que maneira são
formadas as redes de poder15 e de que maneira elas extrapolam muitas vezes a
pretensa sacralidade dos laboratórios médicos e científicos.

Apesar da rede de poder que aqui será objeto de investigação, a


multiplicidade e as singularidades da vida, acredita-se, podem compor de modo
criativo e ético experiências com menos dominação e arrogância, com menos
segregação e mais tolerâncias, com menos divergências e mais consensos. Talvez
para fazer passar os passados que não passam...

12
Atualmente apresenta-se uma polêmica no governo brasileiro sobre a importação do milho
transgênico norte-americano, que foi impedido de entrar no Brasil pelo Ministério da Agricultura e
pelo Departamento de Defesa e Inspeção Vegetal. As autoridades constataram que tal milho era
oriundo de terras que não estavam livres de uma erva daninha (Striga spp) e que não possuía o
certificado necessário. O governo brasileiro ordenou a queimada de todo o milho que adentrou
ilegalmente pelo porto de Itajaí, SC, por crer que ofereceria risco ao meio-ambiente. Se, por um lado,
a importação é proibida, por outro a empresa Monsanto implantou no Brasil (em Sorriso, MT) uma
estação de pesquisa de melhoramento da soja, ou seja, da soja transgênica. Para saber mais ver:
http://www.ibps.com.br. Acesso em 25/03/2003.
13
LATOUR, Bruno. Jamais Fomos Modernos. São Paulo: Editora 34, 1994, p.7-8.
14
Idem, p. 12.

15
* * *

Somos uma semente, que brota, nasce, cresce e morre. Deixamos novas
sementes que serão nossos descendentes, e o ciclo se repete. Herança,
descendência, continuidade. Fazendo a transposição da vida para a árvore é
possível encontrar essa noção de circularidade. Vens do pó e ao pó tornarás, como
afirmam a Bíblia, a doutrina da reencarnação e o espiritismo. Esse paradigma16 está
tão enraizado na formação individual no Ocidente que é quase improvável
vislumbrar outra possibilidade de entendimento da vida.

A árvore possui raízes, troncos, galhos e folhas. Cada uma das suas partes
carrega significado e sentido. As raízes sempre são utilizadas para construir a
imagem de tradição, memória e história. O tronco da árvore tem a função de
encaminhar os sais minerais extraídos da terra pelas raízes, a fim de lançá-los aos
galhos e destes criarem as folhas, que serão ‘alimentadas’ também pela luz solar e
pelo oxigênio, dois componentes fundamentais para a sobrevivência da árvore ou
de qualquer ser vivo. Lembramos que a luz do sol e o oxigênio são elementos
externos, e podemos até ousar um pouco, dizendo que fazem parte do meio, do que
é externo à árvore. As folhas, por fim, são ‘o rosto da árvore’, pois sabemos sobre
sua saúde ao constatar sua aparência verde e firme. São as folhas que interagem
principalmente com o meio exterior.

O mesmo acontece com a eugenia. Uma árvore frondosa, repleta de galhos e


folhas. Seu tronco é firme e grande. Nas raízes estão as disciplinas que contribuem
para dar solidez e estrutura à eugenia. Na imagem da árvore da eugenia,
indiretamente, percebe-se que suas “raízes” querem dizer alguma coisa que não
está dita à primeira vista. Genética, antropologia, estatística, genealogia, biografia,
medicina, psiquiatria, cirurgia, economia, leis e testes mentais figuram entre as

15
Entende-se por rede de poder as conexões entre governo, empresas e mídia perpassados por
interesses pessoais, econômicos, culturais, etc., com a finalidade de dominação de um grupo sobre
outro.
16
Incorpora-se aqui o termo paradigma utilizado por Thomas Kuhn. “Um paradigma é aquilo que os
membros de uma comunidade partilha e, inversamente, uma comunidade científica consiste de
homens que partilham um paradigma”. Diversas vezes utilizaremos essa terminologia, ora para
designar o partilhamento de idéias no interior da comunidade científica ou da sociedade civil, In:
KUHN, Thomas S. A estrutura das revoluções científicas. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p.
219.

16
disciplinas dispostas nas raízes dessa árvore eugênica. Aí estão as ciências que
necessitam, de uma maneira ou de outra, da planificação dos dados, do
esquadrinhamento, da categorização e da experiência empírica, para comprovar
seus dados, as conhecidas ciências objetivas.

Ao falar da árvore da eugenia, é possível remeter o leitor à imagem


encontrada no livro Sexo e Civilização17, de Renato Kehl, com os seguintes dizeres
em inglês: “Like a tree, eugenics draws its materials from many sources, organizes
them into an harmonious entity”18, e o título: “Eugenics is the self direction of human
evolution”19. Pode-se visualizar o objetivo primordial da eugenia: evoluir a espécie
humana.

Na busca de mais dados sobre essa imagem, encontrei o site do Eugenics


Archive, mantido pelo Cold Spring Harbour Laboratory, Nova Iorque, Estados
Unidos20. Trata-se de um site com diversos documentos sobre a eugenia norte-
americana. Essa Eugenics tree logo21 foi exibida na 3ª Conferência Internacional de
Eugenia, realizada no ano de 1932, nos Estados Unidos, que contou com a
presença de Renato Kehl.

Com o olhar de historiadora, lancei-me a observar se a História estava lá. Em


meio a 24 diferentes disciplinas, emaranhadas raízes, umas maiores e mais
grossas, outras menores e mais finas, encontrei-a. À História é reservado o local
entre a geologia22 e a antropometria23, ou seja, uma sub-rama que parte da
geologia e desencadearia na antropometria, sem, portanto, ligar-se a esta última.

17
KEHL, Renato Ferraz. Sexo e Civilização. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1933, pág. 265.
FMD
18
“Da mesma forma que a árvore, a eugenia extrai seus materiais de muitas fontes e organiza-as
numa entidade harmoniosa”.
19
“Eugenia é o próprio sentido da evolução humana”.
20
O Eugenics Archive possui um acervo eletrônico de documentos sobre o eugenismo nos Estados
Unidos. Toda a documentação está acessível e em alta resolução. Ver:
http://www.eugenicsarchive.org. Acesso em 13/12/2001.
21
Como a imagem é chamada pelo Eugenics Archive e pelo livro de Renato Kehl.
22
Ciência cujo objeto é o estudo da origem, da formação e das sucessivas transformações do globo
terrestre, e da evolução do seu mundo orgânico, de acordo com Novo Aurélio Século XXI: dicionário
da língua portuguesa. São Paulo: Nova Fronteira, 2001.

17
Tendo em mente que essa árvore reflete uma sociedade ideal, a História
desempenha então papel secundário, já que outras disciplinas ocupam lugar de
maior destaque na árvore.

Essa árvore contém em si a concepção geral de eugenia. O conhecimento


científico se sobrepõe à experiência humana, as relações sociais determinadas pela
história cumprem um pequeno papel. É através das várias disciplinas descritas
nessa grande árvore que se pode conhecer e conduzir a vida, a experiência e a
história. As folhas, que na árvore que conhecemos anteriormente são o rosto,
podem ser também, nesse caso, o corpo. Folhas verdes, corpos saudáveis,
eugênicos.

* * *

Este trabalho tem como finalidade problematizar alguns aspectos deste


paradigma da árvore como modo de representação da vida, entendido aqui como
representação de um ideal de melhoria da raça brasileira, como proposta por
Renato Kehl e vários adeptos, e que se constituiu de modo arborescente.
Arborescente, pois usando a metáfora da árvore encontra-se a tentativa de construir
um conhecimento hierarquizado com um ponto fixo – a base e suas raízes –
genealógico24 e que pretende ser Uno, ascendente. Como modo de representação,
a árvore é a projeção de uma sociedade utópica, ideal, por ser universalizante e
homogeneizadora. No entanto, como poderá ser visto, a árvore, enquanto modo de
representação da sociedade, não deixará de funcionar também e, sobretudo, em
forma de rede. Não uma rede rizomática tramada pelas potências de vida, mas,
muito mais, uma rede de poder, com formas de dominação e de exclusão por vezes
sutis e por vezes bastante evidentes. Na verdade, esta rede de poder que deriva e
caracteriza a árvore da eugenia sugere os contatos de Kehl, nosso vetor indicativo.

23
Processo ou técnica de mensuração do corpo humano ou de suas várias partes, de acordo com
Novo Aurélio Século XXI, op. cit..
24
Genealógico no sentido atribuído pelo dicionário Novo Aurélio Século XXI, op. cit..
Genealógico/genealogia: 1. Lista, enumeração ou diagrama com os nomes dos antepassados de um
indivíduo e a indicação dos casamentos e das sucessivas gerações que o ligam a um ou mais
ancestrais; 2. O conjunto ou série desses antepassados; 3. Estirpe, linhagem.

18
Essa rede embora pretenda ser a-histórica e Una, é histórica e diversificada.
Com a proposta de identificar as alianças, as formas de visibilidade e de
publicidade, poderá ser visto que em seu interior há relações entre poderes público
e privado, relações entre o Brasil e o exterior, entre médicos e muitos outros
profissionais. Ela expressa aquilo que é preciso destacar sobre o tema aqui
pesquisado: a consolidação de um eugenismo sui generis no Brasil, em relação ao
resto da América Latina, principalmente devido à resistência por parte da Igreja
Católica em adotar seus preceitos. Na verdade, o eugenismo no Brasil tinha a
especificidade de se auto-intitular anti-racista.25 Entre suas principais preocupações
estavam o nacionalismo e o problema da imigração. Nesse interior, havia uma
intensa disputa pelos cuidados com o corpo, incluindo Medicina, Estado e Igreja.

O eixo central em torno do problema brasileiro sobre “emergência da


população” também faz parte desta rede de poder. A preocupação da comunidade
médico-científica com os fenômenos ligados à população, tais como, as epidemias,
a miséria e o trabalho industrial, gerará novas estratégias para tratar do corpo.
Associadas às tecnologias já aplicadas em outros locais do mundo, elas chegaram
ao Brasil através da divulgação de associações e grupos de eugenistas
internacionais. Trata-se de investir no corpo individual, de estimular a ingerência
policial e médica na vida conjugal e sexual de cada um. Essa intervenção tende a
ser feita com o apoio do discurso médico, que a partir de então transporta a
sexualidade e o corpo individual para o campo da ciência e muitos dos preceitos
desta para dentro da intimidade doméstica de cada núcleo familiar. Cria-se uma
política científica, que pensará os ‘males do corpo’ e suas soluções. A eugenia
nasce no interior desse problema.

Assim, a rede de poder mencionada ajudará na visualização desses


interventores. Ela dará conta de mostrar a multiplicidade de idéias e de adeptos da
eugenia, sem sub ou sobrevalorizar Renato Kehl, pois ele é parte desta rede
eugênica que se instala em São Paulo e Rio de Janeiro, e não o seu único autor
apesar de seus esforços para assim parecer que seria. Esta rede não é, portanto,

25
STEPAN, Nancy Leys. The Hour of Eugenics: race, gender and nations in Latin America. Ithaca e
Londres: Cornell University Press, 1991, p.152.

19
rizomática. Ela é parte da própria constituição arborescente proposta pelos
eugenistas, em que as relações de poder são estabelecidas entre aqueles
interlocutores interessados por essa proposta.

Sua constituição seria similar àquilo que Deleuze e Guattari chamaram de


segmentaridade arborificada. Nesse caso, como assinalou Deleuze e Guattari, o
centralizado não se opõe ao segmentário, e os círculos permanecem distintos. Mas
eles podem se tornar concêntricos e definitivamente arborificados (...) O rosto do
pai, do professor, do coronel, do patrão se põem a redundar, remetendo a um
centro de significância que percorre os diversos círculos e repassa por todos os
segmentos.26 Assim, não se têm diversos olhos no céu – como afirmou Deleuze e
Guattari –, mas sim um olho central computador, que varre todos os raios. Dessa
forma caracterizam-se os Estados modernos como segmentaridades
arborificadas.27

Como exemplo, os autores afirmam que o nazismo se tornou possível com a


organização de microorganizações que lhe davam um meio incomparável,
insubstituível, de penetrar em todas as células da sociedade. Desse modo, essa
potência micropolítica ou molecular torna o fascismo perigoso, porque é um
movimento de massa: um corpo canceroso, mais que um organismo totalitário.28

Nesse sentido, utilizar nesta dissertação os conceitos de árvore e rede é


obedecer a uma lógica descrita por Deleuze e Guattari, em que um movimento pode
ser centralizado e rotacional e ao mesmo tempo repleto de segmentaridades e
microfascismos, que acabam por redundar na centralidade inicial, ou, nas palavras
dos autores, num grande buraco negro.

Esses dois conceitos, portanto, não são conflitantes, na medida em que rede,
aqui, não corresponde a rizoma também descrito por Deleuze e Guattari.29 Assim,

26
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. 1933: Micropolítica e segmetaridade. In: Mil Platôs:
capitalismo e esquizofrenia. Vol. 3. São Paulo: Editora 34, 1999 (2ª Edição), p.83-115.
27
Idem, p.89.
28
Idem, p.92. Também no livro Revolução Molecular. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985; Félix
Guattari faz menção à esta espécie de rede de poder referente ao nazismo.
29
DELEUZE, Giles e GUATTARI, Félix. Introdução: rizoma. In: Mil Platôs: capitalismo e
esquizofrenia, Vol. 1. São Paulo: Editora 34, 1995, p.11-38.

20
um faz parte do outro (árvore – rede) e ambas possibilitam a emergência do
eugenismo por meio de organizações, contatos e interesses diversos – baseados
nas teorias biologizantes – que, somados, caem num ponto de acumulação. No
entanto, quando remetemos para o plano molar da eugenia utilizamos também o
conceito de braço para identificar as segmentaridades desse eugenismo: alienismo,
higiene, educação, educação física, educação sexual, legislação, genética,
imigração, cruzamentos, etc. Tais braços trabalham em prol de uma mesma idéia: o
melhoramento do povo brasileiro.

Desse modo, esta pesquisa não é uma biografia de Renato Kehl, médico
comumente mais conhecido por ser o grande representante do eugenismo no
Brasil. Não se trata também de uma investigação a respeito das relações entre
eugenia e educação, eugenia e nação ou eugenia e higiene, grandes vertentes de
análise do discurso eugenista.30 Trata-se, principalmente, de perceber a rede de
relações que compunha a empreitada pela implantação da eugenia no Brasil – seus
adeptos, incentivadores e financiadores – assim como de identificar, nos textos de
Renato Kehl, sua minuciosa tentativa de desumanizar o corpo imperfeito, ou
dysgenico,31 relacionando–o à fealdade, anormalidade, monstruosidade e doença.

O que interessa neste trabalho é não unicamente descrever essa rede de


poder tal como ela se apresenta, mas, sobretudo, perceber como ela se constitui
historicamente, quais são seus sentidos, as justificativas científicas e morais que as
sustentam e os interesses políticos em jogo. Renato Kehl será considerado aqui
como o ponto de partida para conhecer as articulações históricas que o

30
Entre algumas delas estão: MARQUES, Vera Regina Beltrão. Eugenia e Disciplina: o discurso
médico pedagógico nos anos 20. Mestrado em Educação, Campinas/Unicamp, 1992 ; ROMERO,
Marisa. Do Bom Cidadão: as normas médicas em São Paulo: 1889-1930. Dissertação de mestrado.
FFLCH/USP, 1995. Orientação Profª Drª Laura de Mello e Souza ; LUCA, T.R.de. A Revista do
Brasil: Um diálogo para a (N)ação. São Paulo: Editora Unesp, 1999 ; SCHWARCZ, Lilia Moritz. O
Espetáculo das raças: Cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX. São Paulo:
Companhia. das Letras, 1993 e NALLI, M.A.G. O gene educado : a antropologia eugênica de Renato
Kehl e a educação. Dissertação de mestrado. UEM, Maringá, 2000. Orientação Prfª Drª Maria Lúcia
Boarini.; SOARES, Carmem Lúcia. Educação Física: raízes européias e Brasil. Campinas: Editores
Associados, 2001.
31
Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl para designar aqueles que não se enquadram
nos padrões físicos, morais e intelectuais previstos pela eugenia. Disgenia: condição do caráter que
resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. Encontrado em: Novo Aurélio
Século XXI: op. cit.

21
transformaram no maior representante do eugenismo brasileiro. Partiremos do
pressuposto de que esta condição de Renato Kehl não é um a priori, e sim o
resultado de inúmeras relações sociais que trataremos de avaliar, tendo como
centro de debate a eugenia. Nesse sentido, este trabalho objetiva perceber como foi
possível Renato Kehl ter se transformado num dos principais, senão no principal,
representante e autor das idéias eugênicas no Brasil. Assim, além de conhecer
Kehl, torna-se uma proposta tão atraente quanto desafiadora saber quem
compunha a rede de poder do eugenismo.

O conceito de rede de poder, aqui utilizado várias vezes, foi constituído


também graças à inspiração vinda de textos diferentes, entre elas aquelas de Bruno
Latour e Michel Foucault. Este último, por exemplo, define a rede da seguinte forma:
o poder se exerce em rede e, nessa rede não só os indivíduos circulam, mas estão
sempre em posição de ser submetidos a esse poder e também de exercê-lo. Mas
esse poder não é uma espécie de distribuição democrática ou anárquica através do
corpo.32 Aliado a este conceito pensa-se a rede transformando homens de carne e
osso em autoridades,33 como afirmou Bruno Latour.

Seria, portanto, o caso de indagar como se tornou possível a criação do


campo da eugenia, através da atuação de Renato Kehl – percebendo suas relações
de poder com a comunidade médico-científica34 e a classe dominante35, motivando

32
FOUCAULT, Michel. Em defesa da Sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 35-36.
33
LATOUR, Bruno. Ciência em Ação: como seguir cientistas e engenheiros sociedade afora. São
Paulo: Editora da Unesp, 2000, p.81.
34
Por comunidade médico-científica entende-se os membros que pertencem diretamente a institutos
de pesquisa e de medicina, tão comuns nas primeiras décadas do século XX, tais como, Faculdades
de Medicina, Institutos de Higiene e Eugenia e Ligas de Saneamento e Psiquiatria, entre outras,
levando-se em conta que esses membros estavam na maior parte das vezes envolvidos em outras
atividades não institucionais: escreviam para jornais, possuíam fazendas, comércio, etc.
35
Entende-se por classe dominante o grupo econômico e político que se formou após a
Proclamação da República em 1889, e que comandou os mais diversos setores da vida nacional.
Constituída por jornalistas, advogados, médicos, intelectuais, fazendeiros e donos de indústrias
constituídas a partir da consolidação da agricultura exportadora do café e proprietários de comércios
na região urbana. Muitas dessas pessoas pertenciam também à categoria anterior, de forma que não
podemos generalizar e “algemar” esses grupos.

22
seus membros a participarem da empreitada pela eugenia – possibilitando o
desenvolvimento de um novo campo de saber36?

Assim, trata-se de investigar, nessa dissertação, como o eugenismo constitui


(e é constituído) de uma história que envolveu disputas entre médicos e
profissionais do Direito, entre profissionais de saúde, e entre estes e outras
instituições, tais como a Igreja, o Estado e a indústria.

Assim, investigar a eugenia é também, em grande medida, retornar à história


da saúde pública e da higiene, em particular nas cidades de São Paulo e Rio de
Janeiro, tentando compreender como o discurso eugênico influenciou os discursos
científicos, tornando-se, muitas vezes, o pivô de disputas entre medicina e higiene
que estiveram por diversos momentos da história do início do século XX aliados de
acordo com seus interesses. Nesse aspecto, o estudo da eugenia, representa,
ainda, adentrar na história da medicina para entender os estudos contemporâneos
sobre a ética na manipulação dos genes e os riscos da emergência de um
neoeugenismo37 pautado na terapia gênica, na seleção de fetos perfeitos e na
eliminação daqueles considerados inaptos.

Ora, de acordo com Bruno Latour, “A construção do fato é um processo tão


coletivo que uma pessoa sozinha constrói só sonhos, alegações e sentimentos e
não fatos”.38 É dessa coletividade que se partirá como prerrogativa para objeto de
estudo desta dissertação: o eugenismo e Renato Kehl. Assim, voltamos a insistir,
este trabalho não trata exclusivamente de entender a trajetória de Renato Kehl, nem
tampouco de fazer uma genealogia do eugenismo no Brasil. Tenta historicizar o
sentido de sua produção, tendo em vista principalmente a rede de relações que
tornou possível hoje lembrar que Renato Kehl é o mais importante eugenista
brasileiro. Identificou-se diversas conexões deste personagem com escritores,
jornalistas e médicos bastante conhecidos na época e que se perpetuaram por suas

36
A expressão campo de saber é aqui incorporada baseada na leitura de Michel Foucault, em que
teoria e prática não são dois campos distintos, mas a teoria é prática. In, FOUCAULT, Michel,
Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal, 2001, p. 71.
37
Para conhecer mais sobre o neoeugenismo ver na internet diversos sites sobre o assunto. Dentre
eles: http://home.att.net/~dysgenics/eug.htm e http://www.wcotc.com/euvolution/euvolution, este
último prega o nascimento de uma nova raça. Acesso em 25/03/2003.

23
atuações em diversas áreas. Várias referências que situam esses pensadores serão
mencionadas em notas, as quais servirão, em certa medida, como um hipertexto de
informações sobre a eugenia.

Além disso, a amnésia39 do termo eugenia foi motivo de grande controvérsia


após o fim da Segunda Guerra Mundial. Ele foi associado ao regime totalitário
representado pelo nazismo, fascismo e comunismo, o qual usou das doutrinas
eugenistas para afirmar seu poder pelas práticas de eliminação de judeus, ciganos,
homossexuais, entre outros.

No caso brasileiro, essa amnésia produzida historicamente dificulta a


construção crítica da nossa história. Sem a intenção de julgar (absolver ou
condenar) Renato Kehl, afirmo, de modo diferente ao que se lê na carta de Toledo
Piza Junior40, que diz: A verdade é que você [Renato Kehl] está sempre só, ou
como Monteiro Lobato41 escreveu: Dás-me a impressão de um D. Quixote
scientífico, com todo o nobre enthusiasmo do manchego mas sem a loucura delle a
pregar para uma legião de Panças. Ou seja, tentar perceber Kehl a partir do que é
dele, e também distribuir as responsabilidades com todos aqueles que partilharam e
participaram de fato dos Congressos com palestras e conferências, dando espaço
em páginas de jornais e revistas, políticos que apresentaram projetos inspirados
nessas doutrinas ou os próprios eugenistas que disseminaram em diversos setores
sociais tais idéias.

Recusamo-nos a esquecer ou apagar. Este trabalho é também um esforço


para recuperar a memória daqueles que esqueceram.

38
LATOUR, Bruno. Op. cit., p. 70.
39
Amnésia foi o termo usado por Pichot para designar o ‘esquecimento voluntário’ sobre a
importância da eugenia no desenvolvimento da biologia e medicina moderna por sua vinculação com
as ações genocidas praticadadas na 2ª Guerra Mundial. PICHOT, A. O Eugenismo: genetistas
apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, p. 71-96.
40
O Professor Salvador de Toledo Piza Junior pertenceu à Escola Superior de Agricultura “Luiz de
Queiroz” (ESALQ) na Universidade de São Paulo. Carta de 19/11/1937. Cartas Avulsas. FOC
41
Monteiro Lobato, escritor e amigo pessoal de Renato Kehl. Carta escrita em Nova Iorque em
9/10/1929. Livro de Autógrafos I (1912-1929). FOC

24
Esta pesquisa foi realizada a partir de extenso levantamento de fontes em
diversos acervos e bibliotecas42, das quais destaca-se o Centro de Documentação
da Fiocruz, no Rio de Janeiro, e a Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São
Francisco, em São Paulo, por ali constar parte mais significativa da documentação.

O corpus documental abarca a produção escrita e publicada por Renato Kehl.


São livros, artigos de jornais, pequenos suplementos propagandísticos sobre a
eugenia. Dentro de sua vasta produção, foram eleitos alguns livros, que mais
correspondiam aos interesses da pesquisa. Podem ser destacados: Lições de
Eugenia, Sexo e Civilização, Cura da Fealdade, Formulário da Belleza e Conduta.

Entre outras publicações, pode-se destacar o Boletim de Eugenia, editado


por Kehl entre 1929-1931, além de pequenos suplementos e matérias, como os da
Revista Terapêutica. Foram usados também atas, estatutos e textos avulsos de
Kehl relacionados à Sociedade Eugênica de São Paulo e à Comissão Central
Brasileira de Eugenia (CCBE). Além disso, encontrou-se um número considerável
de correspondências inéditas endereçadas a Kehl no período de 1919-1944, que
serão úteis para desenvolver a rede de relações de Renato de dentro de seu
gabinete.

Paradoxalmente, uma das grandes dificuldades na execução desta pesquisa


está no excesso de fontes encontradas. As possibilidades de análise que se
apresentaram foram inúmeras. Por isso mesmo, diversos trabalhos poderão ser
desenvolvidos e devem ser incentivados, uma vez que a documentação mostrou-se
de grande relevância para aqueles que se interessam pela história do corpo e da
sexualidade, das ciências e das técnicas, assim como da saúde pública no Brasil.

Localizado espacialmente no eixo Rio-São Paulo, este trabalho pretende


acompanhar o pensamento eugênico de Kehl como sendo o irradiador ou senão o
interlocutor das questões relacionadas ao corpo apto. Acredita-se na necessidade
de percorrer a produção literária de Kehl, onde quer que ela se dê. Portanto, São

42
Entre as bibliotecas e acervos visitados pode-se destacar: Biblioteca da Faculdade de
Medicina/USP, Biblioteca da Faculdade de Direito do Largo São Francisco/USP, Biblioteca Municipal
Mário de Andrade, Arquivo do Estado de São Paulo, Centro de Documentação/Fiocruz/RJ.

25
Paulo e Rio de Janeiro serão os locais privilegiados para mapear a rede de Renato
Kehl.

O trabalho está delimitado temporalmente entre 1917 e 1937. Primeiramente,


1917, por se tratar da primeira vez que Kehl se pronuncia publicamente sobre o
tema da eugenia na Associação Cristã de Moços de São Paulo. O ano de 1937, por
ser quando a cruzada eugênica completa 20 anos, com a publicação de Por que
sou eugenista? 20 Anos de Campanha Eugênica43. Para complementar lacunas e
acrescentar dados relevantes, esse marco temporal oscilará para frente ou para
trás, mas tomando como recorte principal o período destacado.

Desta forma, o primeiro capítulo desta dissertação tratará da relação


institucional e pública de Renato Kehl e seus adeptos a fim de iniciar a traçar parte
da rede proposta. Intitulado “A custa de muito sabão de côco(...)”, está dividido em
dois itens. O primeiro, A Institucionalização da rede, pensa a trajetória institucional
da eugenia no Brasil, mostrando seus ideólogos, financiadores e incentivadores.
Tupy or for Tupy? é o título do segundo item desse capítulo. Com a intenção de
identificar as relações entre eugenistas brasileiros e estrangeiros encontramos em
Kehl um respeitável publicista44 da eugenia na comunidade internacional.

Transpondo a discussão institucional e pública do primeiro capítulo para o


âmbito do privado e íntimo, serão mostradas as correspondências recebidas por
Kehl, em que figuram nomes ilustres da intelectualidade brasileira, como Gilberto
Freyre e Oliveira Vianna, entre outros. Bastidores Eugênicos também está dividido
em duas partes, a primeira, “Relações Epistolares”, mostra as relações entre
Renato Kehl e aqueles que estavam vinculados com a eugenia, mostrando sua
atividade intensa na divulgação de seu trabalho, seja entre amigos ou entre colegas
de profissão. Os temas paralelos são desvelados; elogios, desavenças e interesses
estão expressos nas cartas entre aqueles interlocutores que construíram suas
caixas-pretas. Surpreendente foi encontrar entre tantas cartas que ainda não
haviam sido objeto de investigação histórica, um bloco de dezesseis

43
KEHL, Renato. Por que sou eugenista? 20 Anos de Campanha Eugênica. 1917-1937. Rio de
Janeiro: Francisco Alves, 1937. BMA

26
correspondências que necessitaram ser tratadas separadamente. Trata-se de “O
Choque das Raças”: o segundo item desse capítulo. Renato Kehl e Monteiro Lobato
revelaram-se, além de grandes escritores, cúmplices. Relacionando-se
intensamente entre 1923 e 1930, Lobato publica o livro O Presidente Negro, um
manifesto eugênico pouco destacado em sua obra, e troca correspondências
bastante polêmicas com Kehl.

Tornou-se de grande importância dedicar o capítulo final, O Espetáculo do


Feio, à problemática do corpo. Em Os Caminhos da Desumanização as dicotomias
entre saúde/doença; limpo/sujo; belo/feio e alegre/triste serão historicizadas com
base na produção do eugenismo de Kehl, a fim de localizar as intervenções
previstas nos corpos daqueles considerados disgênicos e tristes. Em Isso é feio!
Que triste... o objetivo é identificar que as descrições do corpo imperfeito sempre
estavam associadas às moléstias sociais (alcoólatras, sifilíticos, tuberculosos,
leprosos e vagabundos), descrições da doença, sujeira ou feiúra. Finalmente, em “A
Cura da Fealdade”, outro aspecto trabalhado é a profilaxia indicada para a ‘cura’
dos ‘seres feios’: esterilização, métodos cosméticos, códigos de comportamento,
regulação dos casamentos e genealogia familiar.

44
Termo usado por Renato Kehl para elogiar a atuação de Oliveira Vianna como sociólogo em carta
de 04/09/1931, Rio de Janeiro. FOC

27
Dos encantados da Amazônia aos orixás da

Bahia; do frevo pernambucano às escolas de

samba do Rio de Janeiro; dos tambores do

Maranhão ao barroco mineiro; da arquitetura de

Brasília à música sertaneja. Estendendo o arco de

sua multiplicidade nas culturas de São Paulo, do

Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul

e da Região Centro-Oeste. Esta é uma nação que

fala a mesma língua, partilha os mesmos valores

fundamentais, se sente que é brasileira. Onde

judeus e árabes conversam sem medo. Onde a

mestiçagem e o sincretismo se impuseram, dando

uma contribuição original ao mundo, onde toda

migração é bem-vinda, porque sabemos que em

pouco tempo, pela nossa própria capacidade de

assimilação e de bem-querer, cada migrante se

transforma em mais um brasileiro.

Luiz Inácio Lula da Silva, presidente da República


Federativa do Brasil, em seu discurso de posse no
Congresso Nacional em 01 de janeiro de 2003.
CAPÍTULO I – “À CUSTA DE MUITO SABÃO DE CÔCO(...)”1

1. A Institucionalização da Rede

Considerar a existência de uma instituição é, antes de tudo, perceber


que lugar ela ocupa entre outras. Toda instituição supõe materialidade, ou seja,
algo que a torne material e fisicamente pública2 e que tenha como escopo seu
caráter de atuação. Neste capítulo, a proposta de se perceber a
institucionalização da rede significa perceber quais caminhos percorreram
diversos eugenistas – através dos escritos de Renato Kehl – para consolidar
um campo de saber galgado lentamente, em busca do melhoramento físico e
moral dos homens e mulheres brasileiros. Por isso, este capítulo foi intitulado
de À custa de muito sabão de côco [ariano]! Esta expressão – que está
reproduzida na íntegra adiante – usada por Renato Kehl exibe com clareza
‘metafórica’ o modo como deveriam agir os eugenistas para atingir seus fins.
Esfregando, torcendo, limpando e branqueando os corpos do povo brasileiro,
como se fossem roupas sujas.

Portanto, este capítulo muitas vezes parecerá repetitivo àqueles que de


alguma forma conhecem a temática do eugenismo3, mas essa abordagem se
faz necessária para a compreensão do modo como foi construído este trabalho.
Primeiramente, trata-se da formação do campo eugênico no Brasil, através das
articulações políticas entre seus interessados, das contribuições pessoais e de
grupos da elite que constituirão uma rede de relações. Essa rede de relações

1
Citação feita por Renato Kehl no livro Lições de Eugenia, Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1929 (1ª Edição) e 1935 (2ª Edição), p. 241.
2
O sentido de “público” aqui é usado para entender uma coisa ou idéia que não fica restrita a
um pequeno grupo, mas a quem a ela quiser ter acesso. Para o entendimento da instituição –
ou institucionalização – é necessário ter em mente que ela é resultado de uma ação social para
a formação de alguma organização ou associação, seja ela de caráter religioso, educacional,
filantrópico, médica ou eugênica.
3
Diversos trabalhos tratam da temática do eugenismo e contribuíram de forma fundamental,
juntamente com as fontes trabalhadas, para a construção deste capítulo. Entre eles citamos os
principais: MARQUES, Vera Regina Beltrão. A eugenia da disciplina: o discurso médico-
pedagógico nos anos 20. Tese de mestrado. Departamento de Educação, Unicamp, 1992;
NALLI, Marcos. O gene educado: a antropologia eugênica de Renato Kehl e a educação.
Dissertação de Mestrado. UEM, Maringá, 2000.; LENHARO, Alcir. A sacralização da política.
Campinas: Papirus, 1986 e SCHWARCZ, Lilia Moritz. O espetáculo das raças. São Paulo: Cia.
das Letras, 1993.

29
será posteriormente – como se vê no capítulo Bastidores Eugênicos –
complementada nas relações pessoais entre Renato Kehl e os adeptos do
eugenismo não somente no Brasil, como também no resto do mundo.

Embora a origem do pensamento eugênico internacional esteja


ancorada na segunda metade do século XIX — pelas formulações de Francis
Galton4, após o lançamento do livro Origem das Espécies, de Charles Darwin5
— é apenas nas primeiras décadas do século XX que sua implantação ocorreu
de fato6. Para legitimar suas práticas, o eugenismo sempre recorreu a
estratégias de linguagem7. Um dos exemplos mais comuns e recorrentes nos
textos eugenistas é aquele que remete a origem do homem ao berço da
civilização judaico-cristã ocidental. Os exemplos de passagens da história
hebréia a da Grécia espartana são muito utilizados por Renato Kehl para
justificar sua implantação, levando em conta que as práticas propostas pelos
eugenistas são equivalentes àquelas da Antiguidade. Sob o argumento de que

Desde os tempos imemoriais se proclama a


necessidade de preservar os homens da
degeneração, entravando os fautores perniciosos,

4
Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin e um de seus primeiros seguidores.
Criador da biometria, disciplina que aplica os métodos estatísticos à biologia, e especialmente
ao estudo da hereditariedade, é considerado o pai da eugenia. Publica seu primeiro livro
Hereditary Genius em 1869, e usa pela primeira vez o termo eugenia em 1883 (em inglês
eugenics, do grego eugenes, que significa “bem nascido”). PICHOT, André. O eugenismo:
genetistas apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 18-19. Para saber mais
sobre Francis Galton, consultar também os trabalhos: PELÁEZ, Raquel Alvarez. Sir Francis
Galton, padre de la eugenesia. Madri: Consejo Superior de Investigaciones Científicas/
Cuadernos Galileu, 1985 e GALTON, Francis. Herencia y eugenesia. Madri: Alianza Editorial,
1988 (tradução de Raquel Alvarez Peláez).
5
Charles Robert Darwin (1809-1882), cientista britânico, que criou as bases da moderna teoria
da evolução ao apresentar o conceito de que todas as formas de vida se desenvolveram em
um lento processo de seleção natural. Seu trabalho teve uma influência decisiva sobre as
diferentes disciplinas científicas e sobre o pensamento moderno em geral. Publicou em 1859
seu livro mais conhecido A Origem das espécies por meio da seleção natural. O eugenismo
está historicamente ligado à teoria darwiniana. Enciclopédia Encarta e PICHOT, Op. cit., p.15.
6
Sobre as práticas eugênicas, os Estados Unidos foram o primeiro país a regulamentar a
esterilização a partir de 1907, no Estado da Indiana; em 1909, em Washington, Connecticut e
Califórnia. Em 1928, foi implantada na Suíça e no Canadá; em 1929, na Dinamarca; em 1934,
na Noruega e Alemanha; em 1935, na Finlândia e Suécia. Nos países latino-americanos não
houve uma aceitação das práticas de esterilização, principalmente pela sua maioria católica.
PICHOT, Op. cit., p. 47.
7
Chamo estratégias de linguagem o modo como práticas discursivas são construídas com a
finalidade de seduzir um determinado grupo de pessoas ou um setor social. A estratégia de
linguagem se aproxima do poder de persuasão.

30
premunindo, enfim, a família e a sociedade contra o
abastardamento. (...) desde as prédicas morais de
Abraão e de Moisés; desde quando Licurgo ditou e
impoz as leis que fizeram a glória de Esparta, e
outros ainda se escoaram sob normas religiosas
para o melhoramento moral da humanidade. (...)
Pastores de alma, apóstolos e filósofos, mestres,
educadores e cientistas, todos se esforçaram por
tornar o homem mais homem, portanto menos
animal, mais sadio e de melhores sentimentos, sem
que se evidenciassem os resultados na altura dos
esforços dispendidos.

Obviamente, se forem levados em conta os princípios higiênicos e


morais de Moisés e Abraão e o lançamento dos mau gerados no Rio Eurotas,
em Esparta, pelas leis de Licurgo, será percebido que a segregação e
eliminação daqueles considerados indesejados não é exclusiva do eugenismo
moderno. Apesar da afirmativa das práticas anti-degeneracionistas da Grécia
Antiga, e de admitirem os eugenistas que essas práticas contribuíram para a
evolução do gênero humano8, elas formam insuficientes para o progresso
completo da humanidade. Isso porque a evolução – a que se refere Kehl – não
se processou por igual em todos os lugares9.

A eugenia da época contemporânea redundou no projeto de implantação


de uma prática baseada na hereditariedade, com fundamentação científica,
capaz de resolver os problemas de ordem biológica, social e moral da
sociedade. Esse é um dos aspectos que diferenciam a eugenia implantada no
início do século XX daquela da Antiguidade. Se, na Antiguidade, a eliminação
dos considerados menos aptos – por exemplo, bebês com defeitos físicos ou
mentais – era vista como uma medida preventiva, na época contemporânea, o
parasitismo10 é uma das motivações principais para o empenho dos eugenistas

8
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. op. cit., p. 12. FMD
9
Ibdem.
10
Parasitismo é o modo como Renato Kehl se refere àqueles que vivem sob a tutela ou ajuda
do Estado, por não poderem desenvolver atividades produtivas (ou não conseguirem inserir-

31
brasileiros. Impedir o parasitismo é contribuir para o progresso da sociedade, já
que, com a eliminação do fardo social que sobrecarrega o Estado, o progresso
da civilização estará garantido.

Portanto, percebe-se que a referência feita por Renato Kehl à


Antiguidade intenta justificar uma busca de origem das raízes da eugenia e da
civilização ideal, vista aqui como a construção de um passado que legitime
ações no presente. O reflexo do espelho11 do eugenismo de Renato Kehl vê a
beleza plástica, a retidão moral e a divisão social de maneira idêntica à da
Grécia Antiga12. Em suas palavras:

Imitemos os gregos dos tempos heróicos, no que


elles tinham de bello e salutar. Esforcemo-nos como
elles para rehabilitar physica e moralmente os
atributos humanos que a degeneração se propõe a
alterar. Embellezemos a espécie humana, certos de
que a belleza pode ser creada à nossa vontade.
Não é utópica essa afirmativa. Somos súbditos da
natureza, nem em tudo dependemos della e, em
muito de nós mesmos. A natureza dá-nos a vida.
Nós vivemos prolongando-a, abreviando-a ou
melhorando-a a nosso juízo. 13

Para Renato Kehl, não é utópica a idéia de criar uma civilização bela
física e moralmente, mas essa via só é possível se houver o desligamento da
relação do homem com a natureza, vista como selvagem e sinônimo de paixão,
ou seja, sem racionalidade. Essa idéia é muito parecida com aquela
desenvolvida pelos iluministas do século XVIII, que viam na racionalidade o
único viés possível para o progresso social, colocando no extremo oposto

se), contradizendo a doutrina darwiniana da seleção natural, uma vez que os menos aptos
acabam sobrevivendo, representando um peso para a sociedade considerada produtiva.
11
Para pensar o espelho, usamos a metáfora desenvolvida por Michel Foucault em Lugares
Outros, 1984. A utopia é o reflexo do espelho, ou seja, algo que é projetado como imagem que
existe, mas não está lá de fato. In: Ditos e Escritos, vol. 4.. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2001.
12
Renato Kehl foi mais enfático na afirmação do ideal da beleza grega no livro A Cura da
Fealdade. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1923, p. 11-15. BMA
13
Idem p. 14

32
características como a paixão, o espírito e a ficção (entre outras),
representadas como desvios da verdade (e também como reflexos da vida
selvagem e animal) e do bom cumprimento das normas sociais.

Os primeiros anúncios da eugenia no Brasil encontram-se em 1897, com


a iniciativa do Prof. Souza Lima de defender a eugenia da nacionalidade.
Apoiado pela Academia Nacional de Medicina, Souza Lima propôs uma lei para
tornar obrigatório o exame pré-nupcial e o impedimento legal da união de
tuberculosos e sifilíticos.14 Kehl apóia essa idéia mais tarde, ao escrever:

As leis são geralmente elaboradas por advogados,


sem que haja interferência medica em sua
elaboração, dahi a grande lacuna do nosso Código
Civil, no que diz respeito à protecção da família
contra as doenças transmissíveis por contágio ou
herança (...) Mas o legislador brasileiro, aferrado
ainda ao dogmatismo jurídico mal compehendido,
recusou-se a satisfazer a essa aspiração nacional,
talvez, levado pelo receio de cercear a decantada
liberdade individual.15

Inicialmente, percebe-se a ambição da medicina de Kehl em interferir na


constituição das leis brasileiras. A partir da década de 191016, a comunidade
médica adquire autoridade para, juntamente com advogados, legislar em prol
da saúde pública, a fim de controlar epidemias e regular os espaços de
insalubridade nas cidades.17 Essa aliança entre duas categorias de
profissionais liberais não significa que ambas tiveram uma relação harmoniosa

14
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p.23.
15
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1923, p.
51. FDR
16
Desde o século XIX já existia essa relação entre médicos e legisladores, mas é a partir das
primeiras décadas do século XX que esta atuação se acentua.
17
Para saber mais sobre a medicalização da sociedade ver: MACHADO, Roberto (org.)
Danação da Norma. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1978. Merecem destaque também os
trabalhos sobre saúde pública em São Paulo e Rio de Janeiro, tal como: RIBEIRO, M.A.
História sem fim:inventário da saúde pública. São Paulo: Unesp, 1993; YIDA, M. Cem anos de
saúde pública: a cidadania negada. São Paulo: Unesp, 1994 e TELAROLLI JR., R. Poder e
Saúde: as epidemias e a formação dos serviços de saúde pública em São Paulo. São Paulo:
Unesp, 1996.

33
todo o tempo. Muitos debates serão travados entre eles, principalmente para
definir quais seriam os limites da autoridade médica diante da sociedade,18
onde e como ela deveria interceder e intervir.

Após a primeira iniciativa de Souza Lima, foram publicados no Brasil


alguns trabalhos que tinham como tema central a eugenia19. Entre eles pode
ser destacado o de João Ribeiro, que consolida gramaticalmente o termo
Eugenía, em lugar de Eugênica. Finalmente, antes do surgimento de Renato
Kehl no cenário eugênico20, no Rio de Janeiro de 1914, o médico Alexandre
Tepedino, discípulo do prof. Miguel Couto, apresenta sua tese de formatura
com o nome Eugenia.

Renato Kehl21 utiliza o termo eugenia pela primeira vez em 1917,22 na


realização de uma conferência feita a convite de dois diretores norte-
americanos da Associação Cristã de Moços de São Paulo, intitulada também
Eugenia. Nas palavras de Kehl:

18
Para saber mais ver: ANTUNES, J.L.F. Medicina, leis e moral. São Paulo: Unesp, 1999.
19
Os primeiros trabalhos sobre a eugenia no Brasil, até a primeira conferência de Renato Kehl
em 1917, foram: A. J. Souza Lima, “Exame pré-nupcial”. Discurso na Academia Nacional de
Medicina, 1897; J.B. Lacerda, “O Congresso Universal das Raças”, de Londres. Rio de Janeiro:
Ed. Papel Macedo, 1912; J.B. Lacerda, “Sobre os mestiços (publicado em francês). Paris:
Imprimiere Devouge, 1912; A. Ferreira de Magalhães, “Pró-Eugenismo – Conferência de
proteção à infância”; Anônimo, “O problema sexual”, prefácio de Ruy Barbosa e Coelho Neto,
1913; Alberto Torres, “O Problema Nacional Brasileiro”, Rio de Janeiro: Ed. Imprensa Nacional,
1914; Alexandre Tepedino, “Eugenia”. Tese. Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de
Janeiro: Typografia Baptista de Souza, 1914; Rodriguez Doria, “O Erro Essencial da pessoa na
lei brasileira do casamento civil”, Bahia: Imprensa Official, 1916. In KEHL, Renato, Sexo e
Civilização, Op. cit., p. 269.
20
Entenda-se “cenário eugênico” como categoria de análise a ser construída ao longo do
trabalho para pensar a rede de Renato Kehl e o campo de debate que se formou em torno
desse tema.
21
Renato Kehl nasceu em 1895 em Limeira, interior de São Paulo. Formado em 1909, pela
Escola de Farmácia de São Paulo e em 1915 pela Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro.
Empenhou-se durante a vida na vulgarização da eugenia. Escreveu diversos livros sobre o
assunto e colaborou com diversos jornais e periódicos especializados, nacionais e
internacionais. Mello, Luis Correia. Dicionário de autores paulistas. Comissão IV Centenário da
Cidade de São Paulo, p. 287-288.
22
Conferência realizada em 13 de abril de 1917 na Associação Cristã de Moços de São Paulo,
publicada no Jornal do Commercio, Edição paulista, 19 de abril de 1917. In: Annaes de
Eugenia, São Paulo, 1919, p. 65. CP

34
A definição é curta, os seus fins é que são
immensos; é a sciencia do aperfeiçoamento moral e
physico da espécie humana.23

E completa com ressalvas:

É a sciencia da bôa geração. Ela não visa, como


parecerá a muitos, unicamente proteger a
humanidade do cogumelar de – gentes feias.24

No entanto, como poderá ser visto no 3º capítulo desta dissertação, uma


das propostas de Renato Kehl é a de que o país se povoe de ‘gente sã física e
moralmente’, expressando todo o seu desejo por um país eugenizado em seu
livro A Cura da Fealdade25.

A partir de então, o termo eugenia faria parte de trajetória intelectual


desse autor. A conferência de 1917 discorre sobre a ‘nova ciência’ de Galton e
dos benefícios que pode trazer à sociedade. Um dos principais temas dessa
conferência é a guerra.26 Logo de início, afirma:

A campanha eugênica é opportuna neste momento


em que no Brasil se despertam as forças
regeneradoras. Também o é, pelas lições que se
podem tirar do terrível factor dysgenico27 que é a
guerra, esse flagelo ceifador28 de vidas preciosas.29

A guerra, portanto, era considerada fator degenerativo. Mas aproveitar a


oportunidade no Brasil, em que forças regeneradoras estão surgindo, justifica-

23
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p. 13.
24
Idem, p.15.
25
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op. cit.
26
A guerra a que Kehl se refere é a 1ª Guerra Mundial (1914-1918). Primeiro conflito na Europa
do século XX em que a tecnologia bélica surpreendeu o mundo, por trazer, entre outras coisas,
as armas químicas e os aviões, apesar do combate ter sido travado principalmente nas
trincheiras.
27
Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl. Disgenia: Condição do caráter que
resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras. De acordo com o Novo
Dicionário Aurélio Século XXI, op. cit.
28
Ceifador: arrebatar, tirar (a vida), de acordo com Novo Dicionário Aurélio Século XXI, op. cit.
29
Conferência de 13 de abril de 1917, publicada no Jornal do Commercio, edição paulista em
19 de abril de 1917, In: Annaes de Eugenia, op. cit.

35
se pela discussão registrada na imprensa sobre a composição da
nacionalidade brasileira. Os objetivos estavam em cuidar da higiene da raça
para a grandeza da nacionalidade30. No entanto, na Europa e nos Estados
Unidos, o eugenismo visa à regeneração das massas e à criação de exércitos
capacitados, pois a guerra gerou tal derramamento de sangue anemiando-se
os povos em luta, com o sacrifício de seus elementos essenciais.31

No Brasil, o regime republicano amplia essa discussão, pois para boa


parte dos eugenistas brasileiros o país era ainda uma nação sem povo. Um dos
caminhos apontados para acertar e formar o povo brasileiro seria o
saneamento dos espaços, a organização do trabalho com a regulamentação
das moradias e a domesticação dos corpos e dos gestos.32 Além disso, o ideal
de uma República embasada na igualdade e na democracia criou a
necessidade de formalizar e gerar novos campos de saber, para a produção de
corpos constituintes de um povo homogêneo, tipicamente brasileiro.33 Mais do
que isso, tratava-se de ver o povo brasileiro como população biologicamente
constituída e que, por isso, deveria ser saudável. Esses ideais eram
proclamados por eugenistas como um meio, entre outros, de ‘criar um novo
tempo’, estabelecendo entre os séculos XIX e XX uma diferença radical – não
transformada de modo radical, mas sim lentamente e de maneira crescente.

Nesse sentido, em tom profético, Kehl afirma a emergência de uma nova


era pautada na saúde, na vitória da vida sobre a morte, como se segue:

Aos dias de tempestade, seguem-se felizmente dias


de bonança, o que nos dá a esperança de que o
século vinte, que iniciou sob os domínios da morte,
seja denominado – o século da vida, tal qual o

30
Idem.
31
Idem.
32
Sobre este assunto a bibliografia é vasta. Ver principalmente: RAGO, L. M. Do cabaré ao lar:
a utopia da cidade disciplinar. Brasil 1890-1930. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1985;
MARQUES, Vera Regina Beltrão. A eugenia da disciplina..., op. cit.; CUNHA, Maria Clementina
Pereira. O Espelho do mundo: Juquery, a história de um asilo. Rio de Janeiro: Editora Paz e
Terra, 1986.
33
Coloca-se a discussão de que tipo de povo brasileiro queriam os republicanos. Já naquele
período soava contraditório pensar numa homogeneidade no Brasil, tendo em vista os grandes
fluxos migratórios ocorridos no país desde a chegada dos primeiros europeus.

36
dezenove o foi da luz. Da liberdade e da saúde
serão os annos vindouros.34

Na verdade, o biopoder analisado por Foucault faz parte deste ideário e,


antes disso, ele constituiu, no final do século XIX, a preocupação dos
investimentos sobre a vida e a morte revestidos pelo direito de ‘causar a vida e
devolver a morte’.35 Tratava-se de um investimento no corpo através de
estratégias para extrair a potência para as instituições de poder como a família,
a escola, a polícia, a medicina, entre outras tantas.36 Em suma, de tornar a vida
objeto essencial do poder e, por conseguinte, o corpo um dos principais alvos
de seus investimentos.

O entusiasmo gerado a partir da primeira conferência de Kehl resultou


na fundação da Sociedade Eugênica de São Paulo, que contou com a
participação não somente de médicos, como também de membros de diversos
setores da sociedade interessados em discutir a nacionalidade a partir de
questões biológicas e sociais.37 Datada de 15 de janeiro de 1918, a Sociedade
foi fundada no Salão Nobre da Santa Casa de Misericórdia, onde aconteciam
as sessões da Sociedade de Medicina e Cirurgia, contando com cerca de 140
membros, o que representava um grande número para a época. Era a primeira
associação do tipo, na América Latina.38 A diretoria da entidade era composta
por: Arnaldo Vieira de Carvalho39 (presidente); Olegário de Moura40 (vice-

34
Conferência de 13 de abril de 1917, In: Annaes de Eugenia, Op. cit.
35
FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade: vontade de saber. Vol. 1, São Paulo: Editora
Graal, 1988, p. 130.
36
Idem, p. 132.
37
MARQUES, V.R.M. Eugenia da disciplina... Op. cit., pág. 31.
38
Sociedade Eugenica Argentina (Buenos Aires, 1919), fundada por Victor Delfino; Sociedade
Eugenica Del Peru (Lima, 1919), por iniciativa do médico e escritor Paz Soldan. In, Jornal do
Commercio, 04/04/1919. FOC
39
Arnaldo Vieira de Carvalho. Médico de família ilustre formado pela Faculdade de Medicina do
Rio de Janeiro em 1889, fundou o Instituto Vacinogênico de São Paulo (que em 1925 foi
incorporado ao Instituto Butantã) sendo seu diretor em 1892, trabalhou no corpo clínico da
Santa Casa de Misericórdia a partir de 1897. Fundou a Faculdade de Medicina de São Paulo
em 1913 e foi seu diretor até seu falecimento em 1920. Tinha como genro Júlio Mesquita,
fundador do jornal “O Estado de São Paulo”, que em 1917 fez uma campanha para arrecadar
fundos para a construção da primeira sala de operações da América do Sul no hospital da
Santa Casa de Misericórdia. In: jornal O Estado de São Paulo, 15 de agosto de 2001.
40
Olegário de Moura, segundo consta, presenciou em 1922 uma experiência sobrenatural na
Academia de Estudos Psíquicos Césare Lombroso, em São Paulo, em que ele e o Dr. Carlos
Pereira de Castro acompanharam a materialização e levitação de um homem que se

37
presidente); Renato Kehl (secretário geral); T. H. de Alvarenga e Xavier da
Silveira (segundos secretários); Argemiro Siqueira (tesoureiro arquivista);
Arthur Neiva41, Franco da Rocha42 e Rubião Meira (conselho consultivo).

A imprensa comemorou sua fundação. Diversos periódicos destacaram


a trajetória da Sociedade, publicando parte das reuniões realizadas. Muitas
delas vinham acompanhadas do pronunciamento de Renato Kehl e algumas
outras com somente notas elogiosas. O jornal O Estado de São Paulo publicou
em 1919:

É digno de nota o que se passou hontem na


Sociedade eugênica de São Paulo. Devia entrar em
discussão uma das questões mais apaixonadas e
mais debatidas de que temos notícia em São Paulo,
nestes últimos tempos: a consangüinidade e o
casamento. (...) Uns e outros sustentando os
respectivos pontos de vista, discutiram o assumpto
sem paixão e sem intolerâncias, mas com calma,
com serenidade, com vontade de acertar.

Para os cientistas paulistas foi uma noite


43
memorável a de hontem.

Percebe-se que a Sociedade discutia temas já presentes na imprensa e


que, além disso, seus cientistas tinham vontade de acertar. Vê-se a
consolidação do campo da eugenia no âmbito público. Sua institucionalização
ocorrera de fato. A imprensa noticiou, elogiou e registrou a formação desse

apresentou como Harun al-Rashid e que falava árabe. Em outro caso, houve a materialização
de Giuseppe Parini, poeta italiano do século XVIII, que foi relatado numa tese de autoria do Dr.
Brasílio Marcondes Machado, intitulada Contribuição ao Estudo da Psiquiatria (Espiritismo e
Metapsiquismo), apresentada em 26 de dezembro de 1922 na Faculdade de Medicina do Rio
de Janeiro, e foi recusada.
41
Arthur Neiva (1880-1943) - Viajou em 1912 para os estados de Goiás, Bahia, Pernambuco e
Piauí com Belisário Penna (sogro de Renato Kehl), publicando em 1916 os resultados desta
viagem exploratória que mostravam as condições de vida nos sertões brasileiros. Neiva, A. e
Penna, B. “Saneamento do Brasil”, Rio de Janeiro: Typ. Revista dos Tribunaes, 1918.
42
Franco da Rocha (1864-1933). Idealizador e fundador do Hospital Psiquiátrico do Juqueri, foi
o primeiro professor de Clínica Neuropsiquiátrica da Faculdade de Medicina de São Paulo, para
a qual foi nomeado em 1918. Sua aula inaugural, em 1919, versou sobre a Doutrina de Freud e
ganhou espaço no jornal O Estado de São Paulo, sendo publicada como artigo.
43
Jornal O Estado de São Paulo, Edição Noite, 27/06/1919.

38
campo de trabalho e discussão sobre os problemas nacionais acerca da
composição da população brasileira.

A consangüinidade, no casamento entre indivíduos de uma mesma


família, era criticada por grande parte dos eugenistas, por causar doenças
hereditárias. Mas não encontramos em Kehl uma justificação assumidamente
de natureza moral para o impedimento de tais uniões.

É de grande importância a adesão da imprensa, pois é sabido que vários


dos membros da comunidade médica escreviam nos jornais de grande
circulação e que seus artigos eram lidos por diversos setores da sociedade.
Cogita-se que o jornal O Estado de São Paulo sofria de um certo
‘beneficiamento de informação’ devido à relação de parentesco entre Vieira de
Carvalho (sogro) e Julio de Mesquita (genro).

Ao mesmo tempo, a participação de 140 membros da elite paulista é


significativa, pois setores distintos aderiram à proposta da Sociedade Paulista
de Eugenia. Esse grupo é resultado da consolidação de uma rede de relações
que será perseguida ao longo deste trabalho. Isto indica que parte do grupo já
estava sensibilizada pelas questões relativas ao tema da eugenia. Antes disso,
havia somente iniciativas dispersas.

A Sociedade Eugênica de São Paulo tinha como finalidade, de acordo


com seu estatuto, que era curto e bastante objetivo: estudar as leis da
hereditariedade; a regulamentação do meretrício, dos casamentos e da
imigração; as técnicas de esterilização; o exame pré-nupcial; a divulgação da
eugenia e o estudo e aplicação das questões relativas à influência do meio, do
estado econômico, da legislação, dos costumes, do valor das gerações
sucessivas e sobre aptidões físicas, intelectuais e morais.44

A maior realização da Sociedade Eugênica de São Paulo foi a


publicação dos Annaes de Eugenia.45 Constam nesses Annaes uma série de
conferências realizadas por membros da Sociedade, entre eles alguns já
citados, além de artigos, dentre os quais destacamos os títulos abaixo:

44
Annaes de Eugenia, São Paulo, 1919, p. 6-7.

39
• Saneamento no Brasil – Eugenização no Brasil (Medicina Política) –
Olegário de Moura;

• Saneamento – Eugenia – Civilização (Conferência de Propaganda


Eugênica realizada na Associação Cristã de Moços) – Olegário de Moura;

• Moral e Eugenia – Noé de Azevedo;

• Factores de degeneração de nossa raça – Meios de Combate-los (1ª


Conferência Pública realizada pela Sociedade em 08/05/1918) – Rubião
Meira;

• O Segredo de Marathona (Conferência sobre Athletica e Eugenia) –


Fernando de Azevedo;

• Meninas Feias e Meninas Bonitas (Eugenia e Plástica) – Fernando de


Azevedo;

• Meninas Feias e Meninas Bonitas (Eugenia e Esthetica) – Luiz Pereira


Barreto;

• Eugenia (Seus fina – Factores dysgenicos a combater) – Bernardo de


Magalhães;

• Que é a Eugenia – Renato Kehl;

• Conferência de Propaganda Eugênica na Associação Cristã de Moços,


13/04/1917 – Renato Kehl.

Todas as propostas dos Annaes que dão conteúdo à idéia de eugenia na


época. Apesar das diferenças entre si, têm em comum uma espécie de aposta
na intervenção direta no corpo individual com a intenção de mudar o corpo
coletivo, tendo em vista a formação da nacionalidade brasileira.

Com a morte de Arnaldo Vieira de Carvalho e a mudança de Renato


Kehl para o Rio de Janeiro em 1920, a Sociedade enfraqueceu após apenas
dois anos de sua fundação. Pelas palavras de Kehl:

45
Exemplar de difícil acesso, atualmente raro, dado seu desaparecimento do Instituto Oscar
Freire, após o empréstimo feito a uma grande exposição em São Paulo e sua não devolução
após o término da mesma. Utilizou-se nesta pesquisa uma fotocópia particular.

40
Infelizmente, a Sociedade Eugênica de São Paulo,
que tive a honra de fundar sob os auspícios do Prof.
A. Vieira de Carvalho, e que foi a primeira da
América do Sul, mantem-se, actualmente, em
estado de latência, devido a inconstância no
enthusiasmo que despertam as iniciativas no nosso
paiz. Nascida sob os melhores influxos, após
memoráveis sessões, em muitas das quaes dói
debatida, ardorosamente, a questão dos
casamentos consangüineos, e depois de ter
publicado um grosso volume intitulado “Annaes de
Eugenia” deixou-se ficar paralyzada. De nada
valeram os meus esforços, ao deixar São Paulo,
para que a Sociedade Eugênica tivesse um
modesto agasalho e o valioso bafejo46 da Sociedade
de Medicina e Cirgurgia daquella capital. Enfim,
apesar da desídia que ameaça aquella nobre
instituição paulista, tenho a alentadora esperança
de ver a Eugenia contando cada vez maior numero
de proselytos, entre os meus patricios e, talvez,
mesmo, de vir a ser fundado, no Rio de Janeiro, um
Centro Brasileiro de Eugenia.47

Falando do fracasso da Sociedade Eugênica de São Paulo, Renato Kehl


enfatiza sua responsabilidade na fundação da mesma, e como a Sociedade
ficou à margem, após sua mudança para o Rio de Janeiro, decaindo no
interesse de seus membros. De acordo com a afirmação de Kehl, pode-se
levantar algumas questões: até que ponto a morte de Arnaldo Vieira de
Carvalho influenciou na decaída do interesse paulista pelo debate sobre a
eugenia, afinal a Sociedade era ainda muito nova, com somente dois anos de
fundação, apesar da sua importância em relação à América Latina, com sua

46
Aura de sorte; favor, proteção, fortuna, bafo, de acordo com o Novo Dicionário Aurélio Digital
Século XXI. Op. cit.
47
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p. XI-XII.

41
iniciativa de vanguarda? Ou então, teria tido alguma influência nesse fato a
mudança de Renato Kehl para o Rio de Janeiro nesse mesmo ano, por conta
de seu casamento com Eunice Penna, filha do sanitarista Belisário Penna? Ou
ainda, porque a elite paulista não tinha um real interesse nesse tema, sendo a
Sociedade somente o pretexto para reuniões periódicas para a discussão dos
mais diferentes temas?

Todas essas possibilidades podem ter contribuído para o fim da


Sociedade Eugênica de São Paulo, embora talvez mereça mais ênfase o fato
de Renato Kehl ser o incentivador e estimulador do debate, o que despertava o
interesse de muitos membros da elite paulista, mas não o suficiente para fazê-
los ‘tomar as rédeas’ nos rumos da Sociedade. De fato, alguns dos membros
da Sociedade Eugênica de São Paulo, depois de mais de dez anos, migraram
para a Comissão Central Brasileira de Eugenia, sediada no Rio de Janeiro e
dirigida também por Renato Kehl, como veremos.

Com sua mudança para o Rio de Janeiro, Renato Kehl aliou-se à Liga
Brasileira de Higiene Mental, fundada em 192348 por iniciativa do psiquiatra
Gustavo Reidel, após ter recebido o Grande Prêmio da Exposição Internacional
de Higiene de Estrasburgo, na França. Participavam da Liga a elite da
psiquiatria nacional, médicos, educadores, juristas, intelectuais em geral,
empresários e alguns políticos brasileiros.49 Apesar de estar vinculado à Liga
de Higiene Mental, percebe-se que houve um certo hiato na atuação de Kehl
em prol da eugenia. Mesmo sabendo que importantes livros foram escritos por
ele durante o período de 1920/1929, não vemos um Renato Kehl atuante, no
que diz respeito à institucionalização da eugenia. Isso talvez porque no Rio de
Janeiro ainda não tivesse sido criada uma Instituição específica para o debate
do eugenismo em toda a sua extensão. Deveria haver um esforço para a
formação dessa instituição, e Kehl levou nove anos para concretizar esse
desejo. A nova oficialização de uma entidade preocupada em discutir assuntos
relacionados ao eugenismo, em suas mais diversas dimensões, como a

48
A Liga de Higiene Mental funcionou entre os anos de 1923-1947. Para saber mais ver dois
relevantes trabalhos sobre o tema: BOARINI, Maria Lucia e YAMAMOTO, O.H. Higienismo e
Eugenia: discursos não envelhecem. In: Psicologia Revista. PUC/SP: 2002 e CUNHA, Maria
Clementina Pereira. O Espelho do mundo... op. cit..

42
psiquiatria, a imigração, a prostituição e o trabalho, entre outros, reacendeu o
debate iniciado em São Paulo em 1918, além de rearticular um novo grupo de
interessados em discutir a eugenia.

Nesse sentido, a adesão de órgãos públicos à causa eugênica


impulsionou o movimento para a formação no Rio de Janeiro de uma nova
organização eugênica, que novamente tinha à frente Renato Kehl:

O benemérito Sr. Presidente da República,


prometeu em sua mensagem última tratar do
assumpto [eugenia], tendo sido assegurado um
decreto de saneamento rural, cuja feliz
opportunidade despertou o applauso geral da
nação. A campanha eugênica começa assim a ser
patrocinada pelos poderes públicos do Brasil.50

É certo que a própria Liga agia com os preceitos eugênicos, como afirma
Luzia Castañeda,51 pois para seus membros era preciso prevenir a sífilis, a
tuberculose e o alcoolismo, todos eles fatores considerados degenerativos da
raça, contribuindo com o empobrecimento, a miséria e a loucura. Desta forma,
são colocados no mesmo nível fenômenos de origens diferentes, como a
miséria, que tem origem social, e a loucura, que tem origem psicológica.

Mesmo sendo a prevenção um campo de abordagem da higiene, que na


década de 30 desenvolvia campanhas de prevenção da sífilis, da tuberculose e
do alcoolismo, entre outras52, entende-se que, para os eugenistas, não era
suficiente a prevenção da doença, mas a prevenção dos doentes. Casamentos
deveriam ser regulados para que não gerassem crianças degeneradas, pois se
considerava que a transmissão da doença era hereditária. Dessa forma, o
controle de casamentos impediria na origem o nascimento dos mau nascidos,

49
CASTAÑEDA, Luzia A. Apontamentos historiográficos sobre a fundamentação biológica da
eugenia, In: Revista Episteme, Porto Alegre, Vol. 3, nº 5, 1998, p.23-48.
50
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p. 20.
51
Idem, p.38.
52
Para maiores informações sobre as campanhas de prevenção feitas pelos departamentos
estaduais de saúde pública ver: MORAES, Mirtes. Imagens e Ações: Representações e
práticas médicas na luta contra a tuberculose. São Paulo. 1899-1930. Dissertação de

43
evitando a sociedade dos doentes. Percebe-se aí a dimensão a-histórica do
eugenismo, levando-se em conta que não se admitia a origem social da
doença. Acreditava-se que a tuberculose, por exemplo, era uma doença
degenerativa, passada dos pais para os filhos. A biologização da vida social se
tornava o fundamento de toda a propaganda eugênica. Mas não apenas o
eugenismo estava impregnado das idéias biologizantes. Essa tendência era
particular do período, enfatizada e fundamentada pelos trabalhos da sociologia
do início do século, que viam o corpo como uma máquina e a sociedade como
um corpo.

Nas palavras de Gustavo Riedel, é preciso prevenir para não


degenerar53. Importava aos eugenistas, através da higiene e da saúde pública,
sanear os espaços, conscientizar os indivíduos da classe pobre – pois esses
homens estavam revestidos pelo conceito de classes perigosas,54
representando uma ameaça à nação por possuírem desvios de comportamento
tais como o sexo, a boêmia e a falta de higidez. Além disso, o saneamento dos
corpos se daria através de duas medidas principais: o controle dos casamentos
entre aqueles considerados sãos e a proibição das uniões entre os
considerados degenerados. Portanto, evitar e prevenir as doenças sociais e os
nascimentos de pessoas consideradas doentes era também evitar a
degeneração da raça, o que associava muitas doenças tanto à miséria quanto
à loucura.

Várias novas iniciativas serão tomadas a partir de 1929. Uma delas é o


lançamento do Boletim de Eugenia55, que teve sua primeira edição em janeiro

Mestrado. História PUC/SP, 2000 e GONÇALVES, Adílson José. SPES: Saúde Pública,
educação e comunicação. Tese de Doutorado. História PUC/SP, 2001.
53
Declaração de Gustavo Riedel na Primeira Sessão do Congresso Brasileiro de Eugenia, In:
Actas e Trabalhos, Congresso Brasileiro de Eugenia, Vol. 1. Rio de Janeiro, 1931. FDR
54
Termo criado na Inglaterra, no século XIX, no período do estabelecimento da Lei dos Pobres,
que criou espaços assistencialistas para os moradores dos cortiços de Londres, que, por causa
do desemprego e da insalubridade, inevitavelmente adoeciam e caíam na marginalidade e no
crime, significando ameaça à burguesia. Ver mais em: BRESCIANI, Maria Stela. E também no
trabalho clássico do pensador que criou a definição, CHEVALLIER, Louis. Classes laborieuses
et classes dangereuses. Paris: Hachette, 1984.
55
Ressaltamos a importância de um estudo detalhado sobre a produção do Boletim de
Eugenia, em que consta material riquíssimo para quem se interessa pelo tema da eugenia, tal
como o trabalho de MAI, Lílian Denise, Boletim de Eugenia (1929-1931): um estudo sobre
forças educativas no Brasil, Dissertação de Mestrado. Faculdade de Educação. Universidade
Estadual de Maringá, PR, 1999. (Sob orientação de Maria Lúcia Boarini)

44
desde ano, sob a direção de Kehl – ele de volta, atuando em favor da cruzada
eugênica56. É de se notar o amadurecimento do autor após mais de uma
década do início de sua ‘jornada’, pois se, antes, sua atuação restringia-se ao
espetro da Sociedade Paulista, agora o Boletim trava correspondências com
estudiosos da eugenia em todo o mundo, além de outras partes do Brasil,
como poderá ser visto no desenrolar deste trabalho.57

Nesse mesmo ano realizou-se o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia,


entre os dias 01 e 07 de julho de 1929, na Praia Vermelha, Rio de Janeiro.
Esse congresso foi realizado a pedido de Miguel Couto, presidente da Nacional
Academia de Medicina que, no 99º aniversário da instituição.

O convite para o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia revela a


importância da discussão do tema para a consolidação do campo da eugenia
no Rio de Janeiro. Foram convocados médicos, pharmacêuticos, clínicos,
biologistas, educadores, sociólogos e associações congêneres que solicitarem
inscripção além dos alumnos das Escolas Superiores da República para a
realização conjunta de outros quatro eventos. São eles: 4ª Conferência
Panamericana de Hygiene, Microbiologia e Pathologia; 2º Congresso
Panamericano de Tuberculose; 10º Congresso Brasileiro de Medicina e o
Primeiro Centenário da Academia Nacional de Medicina. Todos eles foram
realizados no Rio de Janeiro, com sessões na Academia Nacional de Medicina
e no Instituto dos Advogados.58

O Congresso de Eugenia estava dividido em três sessões: Antropologia,


Genética e Educação e Legislação. Aparentemente essas sessões tiveram a
mesma importância; contudo, analisando as fontes, percebeu-se a importância
dada à última sessão, uma vez que somente as atas das reuniões desse grupo
estão na íntegra na publicação do 1º Congresso. Evidencia-se uma hierarquia
no interior do congresso, entre as sessões abertas. Isso quer dizer que
Educação e Legislação é mais importante que Antropologia ou Genética?

56
Termo usado por Renato Kehl em 1937 em seu livro Por que sou eugenista? 20 anos de
campanha eugênica. 1917-1937. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1937. FMA
57
Esta afirmação refere-se às reflexões que serão desenvolvidas no próximo item deste
capítulo: Tupy or for Tupy? e ao segundo capítulo: Bastidores Eugênicos.
58
Actas de Trabalho. 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Op. cit.

45
Talvez pelo número de participantes e pelo teor dos trabalhos apresentados?
Talvez também porque as discussões sobre legislação eram mais valiosas,
naquele momento histórico, que as questões de genética, ou então de
antropologia? Ou ainda, devido à disputa pela formulação das leis – já indicada
anteriormente – entre médicos e advogados?

Modus vivendi, presidida por Levy Carneiro e secretariada por Celina


Padilha (provavelmente quem escreveu a ata), a sessão de Educação e
Legislação contou com a presença de diversas figuras da elite médica nacional.
Entre eles destacam-se, além do presidente do Congresso, Edgar Roquette-
Pinto, e nomes como Achiles Lisboa, Oscar Fontenelle, Mendes de Castro
Xavier de Oliveira, Belisário Penna, Azevedo do Amaral, Gustavo Riedel e
Alcântara Machado, entre outros. Levantando discussões acaloradas, as teses
defendidas nessas sessões geravam diversas controvérsias em torno dos mais
diversos temas, como imigração, raça, educação e política, entre outros.

No primeiro e único volume das atas de trabalho, identificamos somente


duas ‘aparições’ de nosso propagandista. É de se estranhar sua pequena
participação. Será devido a suas outras ocupações? Renato Kehl, afinal, era o
secretário geral do congresso! Naquela época, suas ocupações giravam em
torno da propaganda de medicamentos da Bayer59 e da direção da edição do
Boletim de Eugenia. Mas apesar de parecerem poucas essas atribuições, ele
se ocupava também de manter atualizadas suas relações epistolares com
diversos institutos e associações eugênicas no resto do mundo.

Na seção inaugural, seu presidente, prof. Edgar Roquette-Pinto60, faz a


distinção entre a higiene e a eugenia, enfatizando a complementaridade das
duas e seu ponto de fusão, que é a medicina. Em suas primeiras palavras no
congresso, ele afirma:

59
Renato Kehl foi funcionário da empresa A Química Bayer entre os anos de 1923 e 1944,
ocupando os cargos de farmacêutico responsável e diretor médico, que elaborava as
propagandas de medicamentos daquela companhia.
60
Edgar Roquette-Pinto (1884-1954). Formado médico pela Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Participou da Missão Rondon pelo noroeste do Mato Grosso. É pioneiro da radiofonia
no país. Foi diretor do Museu Nacional e do Instituto Nacional do Cinema Educativo que fez o
filme “O Descobrimento do Brasil”. Almanaque Abril: Quem é Quem na História do Brasil. São
Paulo: Editora Abril, 2000, p. 419.

46
Durante muito tempo, disse, supoz-se que o meio
dominava os organismos, portanto a medicina e a
hygiene resolveriam o problema da saúde; mas a
sciencia demonstrou haver alguma cousa que
independe da hygiene: é a semente, a herança, que
depende da eugenia. É preciso, accrescenta, tratar-
se da semente e assim a Academia de Medicina
deu um grande passo, mostrando que, ao lado da
medicina e da hygiene, há uma sciencia com muitos
pontos de contacto com as primeiras e que nesse
momento congregar as pessoas de boa vontade.61

Assim, higiene e eugenia eram ciências que tinham raiz comum, a


medicina. Nas palavras de Kehl:

Há quem confunda eugenia com educação física,


com plástica, com educação sexual, com birth
control ou a considere um simples ramo da
higiene.62

Acredita-se relevante enfatizar a relação entre os pensamentos de


Renato Kehl e Roquette-Pinto, já que muitas vezes as divergências entre eles
se torna obscura. Lilia Schwarcz63 afirma que Roquette-Pinto estava marcado
pelo culturalismo norte-americano de Franz Boas, sustentou o argumento de
que ‘o problema brasileiro seria uma questão de higiene e não de raça’.64 No
entanto, observando as atas do congresso, o mesmo Dr. Roquette-Pinto
afirma: (...) do ponto de vista moral, no entanto, é preciso reconhecer que os
mestiços manifestam acentuada fraqueza: a emotividade exagerada, ótima
condição para o surto dos estados passionais.65

61
Actas de Trabalho. 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Op. Cit.
62
KEHL, Renato. A definição oficial da palavra ‘Eugenia’, In: Educação Eugênica, Exemplar 1,
Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1932, p. 14.
63
SCHWARCZ, Lilia Moritz. O Espetáculo das Raças. Op. cit., p. 96.
64
Esta citação é extraída da 2ª Reunião do 1º Congresso Brasileiro de Eugenia... op. cit., p.
132.
65
Idem, p. 138.

47
A crítica ao estado emocional dos mestiços no Brasil é racial e tem um
apelo de ordem moral e não eugênico. Tal afirmação anuncia uma vertente
muito difundida pelo eugenismo de Renato Kehl, que era não enfatizar
demasiadamente o problema racial. Ele era visto como importante, mas o que
interessava mesmo aos eugenistas era extirpar do corpo social os indesejáveis.
Apresenta-se uma dupla vertente, que deve ser levada em conta, já que se
tornou muito difícil colocar numa mesma categoria, em sua vertente teórica,
Renato Kehl e seus companheiros, pela ambigüidade de suas afirmações.
Levando a fundo o problema racial e o problema da higiene, amplamente
discutidos pelos eugenistas, inevitavelmente serão encontrados muitos pontos
de concordância e de divergência. Muitas vezes eles serão encarados como
sinônimos e outras como coisas distintas. Nas palavras de Renato Kehl: a
eugenia é a higiene da raça.66

Além disso, há outras controvérsias a respeito, por exemplo: Afrânio


Peixoto, em seu artigo “A antiga e a nova medicina: a higiene”, publicado na
Revista do Brasil de 1918, declara que: Eugênica é uma das ciências da
‘família da higiene’, tal como a Microbiologia, a Dietética, a Parasitologia e a
Quimioterapia.67

O trabalho de Vera Regina Beltrão Marques sobre a educação disciplinar


através do eugenismo da década de 1920 vê a eugenia como uma nova forma
de intervenção da higiene.68 Discordamos da afirmação, levando em conta as
análises dos documentos produzidos por eugenistas que se autodefiniam
melhoristas da raça.

Nas palavras de Kehl:

A saúde assentar-se-há, então sobre duas bases: a


Hygiene, que afastará as causas dos males e a
Eugenia, que sellecionará os indivíduos, tornando-
os mais sólidas unidades da raça. O problema da
doença será, pois, resolvido, em um futuro não

66
KEHL, Renato. Sexo e Civilização , Op. cit., pág. 51.
67
LUCA, Tânia Regina de. A Revista do Brasil: um diagnóstico para a (n)ação.São Paulo:
Editora da Unesp, 1999, p. 205

48
remoto, não somente pelos médicos e homens de
sciencia, mas pelos homens de Estado.69

Entende-se então que higienistas e eugenistas tinham pontos de


similaridade, partilhavam ideais semelhantes, mas não idênticos, e que muitas
vezes divergiam, apesar de ambas as disciplinas se originarem da Medicina.
Percebe-se particularmente uma certa arrogância da classe médica na disputa
pelo poder de definir ou de interferir no encaminhamento de políticas públicas.
Sanistaristas, higienistas, alienistas e eugenistas, em sua maioria, tinham
formação médica. Assim, em nome da corporação, ou da classe médica, o
decoro no tratamento dos colegas demonstra entre a categoria de médicos
uma certa polidez, revestida de arrogância, com aqueles que não pertencem à
classe. Essa idéia está ancorada na medicalização da sociedade e no papel do
médico como detentor do conhecimento necessário para organizar a vida e, por
conseqüência, a sociedade. Portanto, do ponto de vista dos médicos, eles
próprios eram os mais capazes para orientar as políticas públicas de saúde aos
governantes, tinham autoridade científica para isso, dada pela formação em
medicina.

Contudo, na medida em que essas disciplinas tornavam-se autônomas


em relação à Medicina (Higiene e Eugenia, entre outras), tensões, polêmicas e
interesses políticos distintos contribuíram para o afastamento progressivo entre
essas categorias, dando origem a novos grupos de saber e poder.

Por exemplo, fundada em 1913, a Faculdade de Medicina de São


Paulo,70 teve como seu primeiro diretor o Sr. Arnaldo Vieira de Carvalho.
Diversos professores estrangeiros foram contratados para lecionar, entre eles
Alfonso Bovero71, anatomista italiano; Lambert Mayer, fisiologista francês, e
Samuel Darling e Wilson George Smille, higienistas norte-americanos. A
cadeira de Higiene foi instituída em 1918, e em 1924 fundou-se o Instituto de

68
MARQUES, V.R.B. A eugenia da disciplina..., Op. cit., p 04.
69
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social, Op. cit., p. 33.
70
SCHWARTZMAN, Simon. Formação da Comunidade Científica no Brasil. Rio de Janeiro:
Finep, 1979, p. 155.
71
Alfonso Bovero participou do 1º Congresso de Eugenia em 1929. In: Actas de Trabalho, op.
cit.

49
Higiene72, através de um convênio com a Fundação Rockfeller, a fim de obter
autonomia da Faculdade de Medicina, onde seu espaço institucional era
limitado. O interessante é que todo o treinamento do Instituto terá influência
direta norte-americana, diferentemente da orientação européia dos serviços
legislativos, burocráticos e médicos de até então.73

Numa outra perspectiva, pensamos a eugenia como uma ciência nova –


assim entendida por Renato Kehl. Se, por um lado, admite-se que a higiene
está no âmbito da prevenção da doença, por outro lado vemos que a eugenia
conta com a prevenção através da despistagem,74 conceito desenvolvido por
André Pichot. A eugenia, entendida como algo que previne antes da
ocorrência, valia-se da despistagem – como a definia Pichot – queria evitar os
nascimentos daqueles que pudessem desenvolver determinada doença ou
‘anomalia’, ou seja, daqueles considerados disgênicos. Fundamentalmente, era
o caso de pensar também, numa dupla via, melhorar a raça dos bem nascidos
e evitar o nascimento dos degenerados.

A empreitada pela formação da Comissão Central Brasileira de Eugenia


era familiar, pois sua esposa (Eunice Penna) ocupava o posto de secretária
geral e seu sogro (Belisário Penna), diretor geral do Departamento Nacional de
Saúde Pública, era membro efetivo. Renato Kehl, o presidente, publicou em
1931 um pequeno artigo em que definia as condições e atribuições dessa
Comissão:

Era natural, como eugenista brasileiro, que me


preocupasse o desejo de fundar a Commissão

72
Sobre o Instituto de Higiene e toda a composição do arsenal propagandístico do período
através das campanhas de prevenção de doenças sociais (sífilis, tuberculose, alcoolismo, etc.)
ver o completo trabalho de GONÇALVES, Adilson José. SPES: Saúde Pública, educação e
comunicação, op. cit.
73
YIDA, Massako. 100 Anos de Saúde Pública: a cidadania roubada. São Paulo: Editora da
Unesp, ANO, p. 52
74
A despistagem é um conceito usado por André Pichot, para definir na contemporaneidade as
práticas da terapia genética, na qual manipulações genéticas são feitas para evitar o
nascimento de crianças com doenças consideradas congênitas, tais como, a mucoviscidose e a
miopatia de Duchenne. Essa prática não carrega consigo o termo eugenismo, mas os
geneticistas o revestem com uma outra expressão, eutanásia preventiva. In: PICHOT, André.
Op. cit., p. 99-132. Para entender melhor a relação entre a despistagem e a eugenia no mundo
contemporâneo ver: ROUSSEL, François. L’ eugenisme: analyse terminée, analyse
interminable. In: Esprit. Paris: Junho, 1996, nº 222, p.26-54.

50
Central Brasileira de Eugenia, centro de estudo e de
irradiação para a propaganda da eugenia, que aliás
vinha sendo feita entre nós com perseverança,
porém desconnexamente. Acompanhando o
movimento mundial em torno dos problemas da
regeneração eugênica do homem, mantendo,
mesmo, intensa correspondencia com as principaes
associações existentes na Europa e na América do
Norte, convenci-me de que não mais era possível
protellar o projecto.

Entrando em entendimento com os principaes


proselytos da eugenia no Brasil, cheguei á
conclusão de que a idea era perfeitamente viável.
Convinha, entretanto, dar-lhe uma forma que lhe
garantisse a existência e utilidade real. Sou por
índole, como a maioria de nossos patrícios, avesso
a reuniões associativas, como é uso entre nós.
Julgo que não temos, de um modo geral,
temperamento para deliberar,
desapaixonadamente, quando estamos reunidos
para discutir, seja de que for a natureza do
assumpto. A nossa índole é accentuadamente
personalista e as discussões, em comum, viriam
difficultar a marcha de qualquer projecto a bem da
collectividade, sobretudo quando envolvesse
questões que apaixonem.

Nestas condições, combinei com alguns de nossos


eugenistas e especialistas em estudos affins para
formar uma commissão que se propuzesse manter
no paiz o interesse pelos estudos das questões da
hereditariedade e eugenia, a propugnar pela difusão
dos ideaes de regeneração integral do homem e a
prestigiar os emprehendimentos scientíficos ou

51
humanitários de caracter eugênico, dispensando as
reuniões periódicas.

As deliberações serão tomadas pelo systema de


consulta. As theses e outros assumptos levados á
commissão serão remettidos aos seus membros
para que opinem, por escripto, remetendo suas
respostas ao presidente que, por sua vez, apurará a
opinião da maioria.

A commissão poderá prestar, silenciosamnete, sem


discursos, nem banquetes, bons serviços á nossa
pátria e á nossa gente.

(...) Espero que o nosso meio culto brasileiro


comprehenda as louváveis intenções da
Commissão Central Brasileira de Eugenia[CCBE],
que surge modesta em seus intuitos, concorrendo,
também, com o seu valioso auxilio e, sobretudo,
com a sua sympathia para a consecução dos seus
elevados propósitos.75

Como pode ser visto, a proposta da formação da CCBE não previa uma
localização fixa. As atividades da comissão seriam realizadas por meio de
correspondências entre seus componentes, desde que se tivesse em comum a
temática a ser discutida. A extinção das sessões e reuniões – criticada por Kehl
– fornece uma pista do porquê desse novo formato. No 1º Congresso Brasileiro
de Eugenia, as sessões de Educação e Legislação – já citadas – estavam
repletas de polêmicas, e ao final das reuniões poucas eram as opiniões de
consenso. Tal dinâmica de trabalho da Comissão favorece também o debate
entre Renato Kehl e pessoas de diversas partes do Brasil e do mundo. Estados
como Pernambuco, São Paulo, Paraná, Santa Catarina, entre outros, estavam
representados nas correspondências recebidas por Renato, o que poderá ser
visto no próximo capítulo.

75
KEHL, Renato. A Campanha da Eugenia no Brasil. In: Archivos Brasileiros de Hygiene
Mental, nº 2, Mar-Abr/1931. FOC

52
A maneira como Renato Kehl se coloca no texto reproduzido acima
propicia uma outra compreensão de seu papel na rede de relações eugênicas.
Ele se coloca no centro quando diz que as theses e outros assumptos levados
á commissão serão remettidos aos seus membros para que opinem, por
escripto, remetendo suas respostas ao presidente que, por sua vez, apurará a
opinião da maioria. Portanto, Kehl coloca-se como responsável pelo bom
andamento da comissão e pela intermediação entre seus participantes. Neste
caso, Kehl é representado como a autoridade, o poder, o centralizador das
decisões acerca dos rumos da CCBE. No entanto, ele não está sozinho no
centro de sua iniciativa. Kehl conta com o apoio de setores da elite brasileira
assim como, ele depende do conhecimento da mesma em relação às suas
idéias.

Nesse sentido, ao concluir seu texto, Kehl remete à necessidade de


convencer os setores dominantes – Espero que o nosso meio culto brasileiro
comprehenda... – para que seus objetivos fossem alcançados em esfera
nacional. Tanto que trinta anos depois, num texto idêntico ao anterior, com
pequenas reformulações, Kehl comemora o aniversário da comissão
ressaltando as aplicações práticas e seus resultados.

Prestou inestimáveis serviços. Realizou inquéritos


sobre imigração, povoamento, natalidade; fez
intensa propaganda pelo rádio e pela imprensa;
apresentou à Assembléia Constituinte de 1932 um
longo memorial e sugestões que forma lidas e
discutidas, tendo o então deputado paulista prof.
A.C. Pacheco e Silva conseguido a aprovação do
art. 138b que dispunha: ‘incumbe a União, aos
Estados e aos Municípios, nos termos das leis
respectivas, estimular a educação eugênica’.76

Como poderá ser percebido adiante, um desses trâmites relativo aos


inquéritos foi feito em conjunto com Oliveira Vianna, quando a Comissão foi
designada a pensar os problemas da imigração no Brasil, para serem

53
apresentados ao Ministério do Trabalho. Além disso, encontra-se aqui talvez,
uma das únicas leis diretamente eugenista, para estimular a educação
eugênica no país.

Algumas das premissas de Renato Kehl e do movimento eugênico são


particulares ao momento histórico em que estão inseridas, no qual constavam a
noção de linearidade da história e a concepção de tempo ascendente, em prol
de uma regeneração da raça e seu aperfeiçoamento:

Somos melhoristas, isto quer dizer, nos guiamos


pela Eugenía, por essa grande idea do
aperfeiçoamento incessante, moral e physico, dos
nossos semelhantes, pela progressiva regeneração,
emfim, dos mesmos, no presente e dos seus
descendentes no futuro”77

Muito antes dos eugenistas, no Brasil, pensava-se o problema da


degeneração racial (na opinião de cientistas, antropólogos e sociólogos) como
um impedimento para o progresso. As teorias degenerativas do século XIX
tiveram diversos adeptos em nosso país. Ilustres como o Dr. Nina Rodrigues,
Silvio Romero, Afrânio Peixoto e os viajantes que conheceram, escreveram ou
desenharam o Brasil, entre os quais: Gustave Le Bon, Arthur de Gobineau,
Lapouge, Debret, Saint Hilaire, Louis Agassiz e Charles Darwin, que
descreviam a situação promíscua – como descreveu Lilia Schwarcz – em que
viviam os homens do campo e da cidade, principalmente aqueles de
ascendência negra ou mestiça que se ocupavam da vadiagem e pela herança
do colonialismo e da escravidão que produziram os tais ‘elementos
degenerados e instáveis’ que por sua vez eram incapazes de acompanhar o
desenvolvimento progressivo do país. A visão das teorias degenerativas
formou uma espera/demanda pela constituição de uma identidade brasileira. 78

76
KEHL, Renato. A Eugenia no Brasil: Registro de uma data comemorativa. Publicado no A
Gazeta, março, 1951. Papéis Avulsos. FOC
77
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit. p. 125.
78
SCHWARCZ, Lillia. Retrato em branco e negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo
no final do século XIX. São Paulo: Cia. das Letras, 1987.

54
Desta forma, a ansiedade por uma identidade genuinamente brasileira
fez emergir – por parte de teóricos de diversas correntes – leituras de caminhos
possíveis a serem percorridos pela nação para a consolidação de seu povo. Do
branqueamento pelo cruzamento, do cruzamento entre raças somente
(miscigenação) ou pelo segregacionismo das raças. A eugenia insere-se numa
dessas leituras originadas no final do século XIX, mas implantada somente nas
primeiras décadas do século XX, tendo em seu interior as três tendências de
melhoria da nacionalidade citadas acima. Renato Kehl pertence à última
corrente de pensamento, a segregacionista, como veremos adiante.

Um dos aspectos mais interessantes no trabalho de perceber Renato


Kehl como parte de um enredamento e, que vale a pena ressaltar, é que em
absolutamente todas as biografias aqui citadas, os membros pertencentes às
sociedades eugênicas (que em sua época publicaram artigos e travaram
relações com Renato Kehl) não registraram em suas histórias a participação no
metiér eugênico, seja em conferências, trabalhos, publicações, etc.79 Era o
caso de perguntar: trataram – os participantes e simpatizantes do eugenismo –
de apagar os resquícios de sua participação e limpar de sua memória e da
história essa existência? Como exemplo podem ser citados alguns casos:
Roquette-Pinto; Oliveira Vianna; Monteiro Lobato e Vieira de Carvalho, entre
outros.80

Fica a impressão, também, que Renato Kehl foi deixado sozinho, como
se somente ele tivesse participação ativa no eugenismo. Houve muito
investimento e dedicação por parte da intelectualidade brasileira para a
formação do campo da eugenia. Articulados em todo o país,81 esses
intelectuais tinham como foco norteador a figura de Renato Kehl. Interessante é

79
Não me refiro aqui às obras produzidas no interior das universidades, mas de uma pesquisa
paralela efetuada na internet e em livros e biografias, justamente para testar os efeitos
prolongados dessa participação em meios de comunicação de circulação pública. O resultado
dessa pesquisa apontou, na maioria dos casos, a omissão dos dados sobre a participação
dessas pessoas no metiér eugênico.
80
Como fonte de pesquisa foram utilizadas: Almanaque Abril: Quem é Quem na História do
Brasil; sites de busca na internet, principalmente http://www.google.com.br; Enciclopédia
Encarta Digital 2000; entre outros.
81
Não estou aqui querendo inferir sentido de conspiração nacional em prol da eugenia nesse
desenredamento. Restringimo-nos à idéia de rede que se evidencia no grande número de
correspondências enviadas e recebidas por nosso vetor indicativo, Renato Kehl.

55
pensar de que maneira, após mais de 70 anos da plena divulgação da eugenia,
não encontramos tal participação na biografia desses adeptos e investidores –
o que nos abre um caminho de análise bastante interessante, já que questiona
o próprio papel dos historiadores e seu comprometimento com a ética nas
análises e abordagens de determinados temas. Daí a importância, neste
trabalho, de apurar a rede de poderes que compunha a empreitada pela
eugenia. Para isso, foi necessário traçar neste item o caminho das relações
públicas entre Renato Kehl e os adeptos do eugenismo no Brasil. O próximo
item abordará as relações públicas entre Kehl e os pensadores do eugenismo
fora do Brasil. Chamando a si mesmo de simples propagandista da eugenia82,
objetiva-se perceber qual era o tipo de relacionamento estabelecido por Kehl
com a comunidade científica internacional.

82
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit, p.12.

56
2. Tupy or for Tupy?

É irresistível fazer o trocadilho mais lugar-comum deste país83. Isso


prova que temos a quem copiar. Serve também para mostrar-nos que tudo o
que nos mostram não necessariamente devoramos. Não precisamos somente
‘beber nos outros’ para saciar nossa sede de saber. Produzimos aqui também!
Mesmo sabendo que às vezes mimetizamos o que vem de fora. A própria
sobreposição criativa de culturas propicia esse processo de assimilar,
transformar, devorar e devolver uma coisa (idéia, projeto, práxis) diferente da
original, com a especificidade do local onde foi transformada. Se no item
anterior problematizamos o eugenismo no Brasil, algumas de suas relações e
atribuições, neste item, serão identificadas algumas das idéias estrangeiras for
Tupy, que foram assimiladas pelo pensamento eugênico brasileiro.

Partindo deste princípio, perguntamos: de que forma o pensamento


eugênico chegou ao Brasil? Como esse discurso foi incorporado aqui?
Sabendo da existência de múltiplas interpretações e linhas na eugenia, qual
era aquela com que Renato Kehl mais simpatizava?

Os Boletins de Eugenia84 servirão como fonte principal para esclarecer


tais questões, por se tratar de uma publicação carioca que tinha o próprio
Renato Kehl como editor chefe. Trata-se de um jornal em formato tablóide,
publicado entre os anos de 1929 e 1931 – com tiragem de 1000 exemplares –
visto, então, como um pequeno suplemento propagandístico85 sobre o
pensamento eugênico. A leitura mais atenta de sua coleção de 36 números foi
importante para a compreensão da problemática central a que nos propomos
neste item. Quais eram os interlocutores de Kehl fora do Brasil? E quais temas
discutiam?

83
Fazemos aqui uma pequena homenagem a Mario de Andrade, um entre muitos brasileiros
que estimularam o “come-te-a-ti-mesmo” dos modernistas da Semana de 22.
84
Boletim de Eugenia/Instituto Brasileiro de Eugenia. Rio de Janeiro, RJ: O Instituto, 1929-
1931. Suplemento da Medicamenta: Rio de Janeiro. (36 fascículos). Para conhecer mais ver a
dissertação de mestrado sobre a abordagem educacional dos Boletins em: MAI, Lílian Denise,
Boletim de Eugenia (1929-1931): um estudo sobre forças educativas no Brasil, Op. cit.
85
Pequeno porque tinha 4 páginas nas suas primeiras edições, passando a 8 até dezembro de
1931, período da coleção do Boletim a ser estudada.

57
Os Boletins foram observados sob a seguinte perspectiva: as notas e
artigos que compunham cada edição, selecionando aqueles que falavam sobre
os casos internacionais, e as notas escritas por autores estrangeiros.
Surpreendente foi perceber que discorriam sobre um mesmo problema, o que
André Pichot identificou como a genética das populações.

A genética das populações considera que os cruzamentos entre


indivíduos permitem ligar uma dada população a um conjunto de genes.
Estuda, assim, através de métodos estatísticos, como evolui a proporção dos
diferentes genes no seio dessa população, conforme beneficiam mais ou
menos os indivíduos que os possuem. A genética das populações ignora quase
por completo o indivíduo como ser social; preocupa-se apenas com o conjunto
dos genes que constituem a população.86

No princípio do século XX, pouco se conhecia sobre a natureza do gene.


Sabia-se, contudo, que a hereditariedade era transmitida através dos
cromossomos. O gene era uma entidade teórica. A genética fisiológica87 estava
reduzida ainda a uma expressão mínima. Em contrapartida, a genética das
populações era uma disciplina de ponta. Em função dos métodos estatísticos
herdados da biometria de Francis Galton e das leis de Mendel, podia-se
estudar a composição genética das populações sem conhecer a natureza física
do gene. Até a Segunda Guerra Mundial, a genética das populações dominou
quase a totalidade da genética. A importância que se atribuía à seleção natural
incentivava os eugenistas, que preconizavam uma seleção humana. Nesse
contexto, havia uma crítica voraz ao assistencialismo, ou o que chamavam de
“filantropia contra-seletiva”.

A medicina, a filantropia, o sentimentalismo, em suma,


contrariando a seleção natural, salvando e concorrendo
para a multiplicação de fracos, doentes e degenerados –

86
PICHOT, André. Op. cit., p. 78.
87
A genética fisiológica estuda a natureza dos genes, o modo como são fabricados,
transmitidos à descendência e se manifestam nessa descendência através deste ou daquele
caractere anatômico, fisiológico ou bioquímico. A genética fisiológica trabalha no nível
individual, ou, pelo menos, numa única linhagem, da qual estuda sucessivas gerações. Claude
Bernard é considerado o pai da fisiologia. Pichot, Op. cit. p.83.

58
agravam ainda mais a decadência, o abastardamento do
gênero humano.88

A lógica desse raciocínio é que, ao invés de cuidar e ‘criar’ homens mais


sãos, para os eugenistas, a filantropia insiste em ‘proteger’ aqueles que são
considerados degenerados. Por isso, segundo os eugenistas, se faz tão
necessária a eugenia, especialmente para controlar e estimular os casamentos
dos ‘mais aptos’. Não por acaso, o corpo se torna de modo inédito o centro das
preocupações ao mesmo tempo políticas, empresariais e médicas. Cuidar do
corpo, de modo a torná-lo apto para o trabalho, e a disciplina cívica se
transformam em meios de possibilitar o governo da nação.

Esta é a premissa do biopoder que percorre todo este trabalho e, na


qual, o que vale é o controle sobre a vida e a morte. No lugar de investir nas
potências da vida, o biopoder investe no poder sobre a vida, com o intuito de
torná-la matéria-prima. No livro História da Sexualidade, Foucault entende o
corpo, a partir do século XVIII, de duas maneiras distintas, mas não
excludentes: o corpo como máquina, com seu adestramento, na ampliação de
suas aptidões, na sua docilização; e o corpo como espécie, transpassado pela
mecânica do ser vivo e como suporte dos processos biológicos, na
proliferação, nos nascimentos e na mortalidade, no nível da saúde, a duração
da vida89. Desde então, o desempenho do corpo é gerado por uma biopolítica,
ou seja, por uma tecnologia de disciplinarização individual e das regulações da
população, a que nos referimos acima. Ela possui duas faces: anatômica e
biológica; individualizante e especificante, responsabilizando a cada um dos
seres sobre a face da terra pelas conseqüências degenerativas da espécie
humana. No Brasil, nas primeiras décadas do século XX, podemos identificar
alguns traços deste tipo de sociedade, representada pelo que Michel Foucault
chamou de sociedade disciplinar.90

No entanto, esse governo do corpo é disputado entre instituições


diferentes: escola, hospital, empresários, etc. Essa ‘guerra’ de interesse pelo

88
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p.44.
89
FOUCAULT, Michel. Capítulo V – o direito de morte e o poder sobre a vida, In História da
Sexualidade 1: A Vontade de Saber. Rio de Janeiro: Graal, 1988 (14ª edição), p.131.
90
Idem.

59
corpo pode ser representada, por exemplo, pela disputa entre a Igreja – que
propõe a cura da alma, com base assistencialista – e a ciência – que busca a
conscientização do indivíduo para o cuidado de si. A ciência cria estratégias
para que as pessoas se sintam responsáveis por si e, deste modo, parte da
coletividade. Nas fontes, em particular nos Annaes de Eugenia, percebe-se que
o eugenismo de Renato Kehl critica abertamente a atuação da Igreja frente aos
problemas da sociedade. No entanto, ressalta Lenharo,91 a Igreja não
descuidou de se apropriar da racionalidade e dos avanços científicos. Na
imagem de Cristo – por exemplo – foram depositados os significados do Cristo
que vigia, admoesta, policia e, através desta imagem, a Igreja não somente
explicita o que pensa das relações de trabalho; ela faz da imagem o seu
recurso de intervenção nas mesmas relações.92

Na nota A Loucura Homicida da Velocidade93, sem autoria definida,


pode-se perceber a generalização de um discurso do terror e do medo,
principalmente porque o argumento nos é bastante contemporâneo. Estão em
destaque o nervosismo e o alcoolismo:

Durante os cinco últimos annos foram mortos por


automóvel, nos Estados Unidos da América do
Norte 100.000 pessôas, das quaes 30 mil eram
escolares. Cada 42 segundos morre uma pessoa
por accidente automobilístico naquelle paiz, na base
estatística acima. A maioria dos accidentes é devido
ao alcoolismo e ao nervosismo 94 dos motoristas.

Dois aspectos dessa nota chamam a atenção. Em primeiro lugar, o


título: loucura homicida da velocidade é uma alusão aos problemas da vida
moderna, tida aqui como fator negativo. Três palavras, três sentidos
considerados negativos. Loucura, relacionada a um desvio mental. Homicida,
relacionada a um desvio moral, ou seja, o crime. Segundo essa mentalidade, a
velocidade é fruto do crescimento das cidades, que transformou o homem num

91
LENHARO, Alcir. A Sacralização da Política. Op. cit., p. 169.
92
Idem, p. 171.
93
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº5, Maio, 1929, p. 3. FDR

60
‘escravo do relógio’ pela disciplina da fábrica. O foco dos problemas apontados
direciona para os causadores das mortes no trânsito, os bêbados e os
nervosos. A crítica aos alcoólatras é resultado de uma situação agravada pela
Lei Seca em vigor desde 1918 nos Estados Unidos.95 Destaca-se, também, a
importância da genética das populações, revelada nos dados numéricos dos
acidentes: ‘a cada 42 segundos uma pessôa morre por accidente’. O
reducionismo matemático mostra o quanto esses acidentes atingem números
assustadores. Perde-se, a noção de totalidade, pois os números somente
assustam, por excluir o rosto da vítima, transformando-a numa estatística.
Assustam ainda mais, porque os autores dos acidentes são indivíduos
alcoolizados e nervosos. Os primeiros costumavam relacionar o crime, os
segundos à loucura. Esse texto repete-se no boletim de setembro de 1929,
com uma ressalva. É introduzido mais um primeiro parágrafo, que potencializa
o efeito dos dados da nota.

A mania da velocidade nos Estados Unidos da


America do Norte tende a degenerar-se a uma
calamidade geral. Cresce assustadoramente o
numero das victimas desta perversidade (...).96

Ora, por que esse parágrafo foi acrescentado à nota? Seria porque a
partir do número 6/7 o Boletim passa a circular como suplemento da Revista
Medicamenta97? A ênfase no aspecto da degeneração crescente – lembrando
o linear ascendente da linha evolutiva em seu sentido negativo – alcançará o
caos, a calamidade. Mas, afinal, para Kehl e outros eugenistas, os Estados
Unidos não são o exemplo de civilidade? Por que então enfatizaria esse
discurso? Por que, sendo nessa época os Estados Unidos sinônimo de
modernidade e civilidade, os eugenistas o vêem negativamente?

94
Em negrito no original.
95
CATTON, Willian B. História Moderna dos Estados Unidos, Vol. 2. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1965, p. 508. Apesar de estar em vigor, o comércio ilegal de bebidas, a partir da Lei
Seca, gerou um novo hábito de beber em bares clandestinos e nas residências. Mas pode-se
afirmar que muito antes da Lei Seca ser instituída nos Estados Unidos o alcoolismo já
representava um problema social.
96
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro, 1929, p. 4.
97
A Revista Medicamenta era uma publicação mensal da Nacional Academia de Medicina.

61
Em A criminalidade na América do Norte98, artigo de Medeiros de
Albuquerque, afirma-se que os casos de criminalidade nos Estados Unidos não
são praticados pelos estrangeiros, como sugere Gabriel de Andrade e os
daquele país. Argumenta com a tese de que os Estados Unidos foram
originalmente constituídos de 500 mil criminosos degradados pela Inglaterra.
Nesse sentido, para os eugenistas, os Estados Unidos, utilizando o princípio da
Eficiência, implantaram a eugenia para livrar-se dos ‘mau gerados’ e limitar
firmemente a imigração para aquele país, que desde 1917 restringiu a entrada
de europeus do leste, negros, judeus e católicos, latinos e asiáticos,
beneficiando principalmente as imigrações vindas da Grã-Bretanha, Irlanda e
Alemanha.99

Não somente na Europa e nos Estados Unidos, como também no Brasil,


o debate sobre imigração era bastante polêmico. Especificamente para os
eugenistas, era uma questão fundamental. Abrangia questões de fundo
relacionadas ao cruzamento de raças e ao “branqueamento”. Muitas vezes o
discurso de Renato Kehl se mostrava contraditório a esse respeito, como se
pode ver abaixo:

O Brasil, que já é um ‘melting pot’ de raças, será


dominado pelos elementos xanto-negróides, se uma
política migratória enérgica não vier, com presteza,
por cobro a tal ameaça.100

A tese de branqueamento101 pressupunha uma superioridade natural do


branco. Mas essa superioridade não significava a determinação exata das
características inferiores de negros e índios.102 Após a abolição da escravatura
no Brasil, houve uma composição para o enclausuramento cultural do negro.
No debate acerca da possibilidade de branquear o povo brasileiro, acreditava-

98
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 2.
99
CATTON, Willian B. Op. cit., p. 549.
100
KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p.206.
101
Para saber mais ver: SKIDMORE, Thomas. Preto no branco: Raça e nacionalidade no
pensamento brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.
102
Idem, p. 12.

62
se que, sendo o gene branco mais forte, por meio de cruzamentos entre
brancos e negros se acabaria por clarear o povo brasileiro.103

O problema da imigração no Brasil, na visão das políticas eugênicas,


visava também a evitar a entrada de negros e asiáticos. Kehl reforça
ironicamente:

A nacionalidade embranquecerá á custa de muito


sabão de côco ariano!104

Em outra nota o assunto muda completamente – esta é a curiosidade do


setor105 de notas internacionais, seus assuntos são os mais diversos. Em
Causas determinantes da prostituição,106 é de se surpreender com a
quantidade de elementos apresentados:

April Bent publicou os resultados da uma pesquiza


feita entre 113 prostitutas. Em todas era notavel o
temperamento sexual hereditário. Em algumas,
evidenciava-se a instabilidade geral da esphera
emotiva, com tendências ao alcoolismo. A
deficiência mental e hereditariedade criminal foi
encontrada em 67% dos casos. Cincoenta por cento
das prostitutas provinham das classes inferiores da
sociedade.

Primeiramente, o título pretende apresentar as causas determinantes da


prostituição. Segundo o Boletim, a prostituição poderia originar-se de três
fatores que são sociais, mas também hereditários. Primeiramente, a
prostituição seria devida a uma genética – quando uma prostituta tem uma
filha, há grande possibilidade de que esta venha a ser uma prostituta. Em
segundo lugar, o alcoolismo resultaria em prostituição. E, por fim, a
instabilidade emocional – algo, aliás, pouco explicado, que permanece vago e
genérico no Boletim, resultaria igualmente na prostituição. Assim,

103
Idem, p. 81.
104
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p.241.
105
Na verdade as notas internacionais não estão setorizadas, mas as defini assim, por se tratar
de um mesmo viés de seleção.

63
hereditariedade, desvio social e moral e desvio mental estariam na base da
prostituição. A dúvida fica para a última frase da citação do Boletim. Pertencem
à classe alta da sociedade 50% das entrevistadas, ou seja, em qualquer das
duas classes elas podem estar nos bordéis de luxo ou populares. Desta forma,
através dos números e de um saber médico apoiado em estatísticas e no
pressuposto de que os desvios contagiam gerações futuras, se extraiu o
determinante da prostituição.

Nenhuma análise sócio-histórica é considerada importante. Todas as


razões que explicam a prostituição são, segundo o Boletim, de natureza moral
e em particular biológica. Ao contrário dessa postura favorável ao determinismo
biológico sabe-se o quanto a prostituição pode ser compreendida apenas
levando em consideração suas razões históricas. Assim, por exemplo, Luiza
Margareth Rago, em seu livro Os Prazeres da Noite107 estuda as
transformações sócio-culturais que afetam a mulher na cidade de São Paulo.
Discutindo a produção de discursos científicos, de caráter médico, jurídico e
criminológico mostra de modo minucioso as estratégias para a consolidação
das práticas de controle social sobre a prostituição em São Paulo.

Diversas notas do Boletim tomam relevância no que concerne ao


problema da genética das populações, que agora se mescla ao
malthusianismo108 . As notas geralmente tratam de aspectos como imigração,
índices de natalidade e mortalidade, diminuição ou aumento do contingente
populacional. Como lemos em A Natalidade na Itália e na Europa:109

A Agencia de Roma’ extrahiu de um estudo


estatístico germânico da ‘Wirtchaft und Statisk’
algumas interessantes cifras comparativas sobre o
movimento da população na Itália, na Allemanha,
na França e na Inglaterra durante o primeiro
semestre de 1927 a 1928. Resulta de tal estudo que

106
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 5, Maio, 1929, p. 4.
107
RAGO, Luiza Margareth. Os Prazeres da Noite: prostituição e códigos de sexualidade
feminina em São Paulo (1890-1930). São Paulo, Paz e Terra, 1991.
108
Thomas Malthus (1766-1834), economista e demógrafo britânico, sua principal contribuição
foi a teoria da população. Enciclopédia Microsoft Encarta 2000.

64
nesse período o excesso effectivo de nascimentos
sobre mortes foi respectivamente de 213.017 e
239.518 na Itália, 194.370 e 213.287 na Allemanha,
61.397 e 80.277 na Inglaterra e Paiz de Galles e
148 e 39.734 na França. Calculando sobre 1000
habitantes o excesso dos nascimentos é pois na
Itália de 11.5 e 11.8, na Allemanha de 6.2 e 6.8, na
Inglaterra, 3.1 e 4.5 e na França 0.0 e 1.5.

Fica evidente o problema europeu da estagnação do crescimento


populacional. Aí está o cerne do problema europeu sobre eugenia, que rondava
o debate da genética das populações. De acordo com esse texto, todos os
países citados mostraram um número superior de mortes sobre os
nascimentos. Daí surgem os dois problemas advindos da genética populacional
que a eugenia tentava resolver.

Primeiramente, na Europa, a diminuição dos nascimentos, muitas vezes


ocasionada por ‘um nível de civilidade’ impedia a ‘procriação’, o que na
verdade poderia ser lido como o aumento do número de mortes. Na Europa,
portanto, a eugenia era pensada para selecionar os casamentos, garantindo a
continuidade da prole dos indivíduos mais aptos, que correspondiam aos
padrões de identidade nacional. Por isso, os eugenistas necessitavam
estimular a procriação assistida, a fim de desenvolver e melhorar o patrimônio
genético daqueles países.

Já no artigo O malthusianismo na Ásia110 é possível perceber o reverso


dessa interpretação. Esse texto é precedido de artigo nacional pedindo a
diminuição da imigração do número de aborígenes ao Brasil. O artigo foi
publicado no ‘Mercure France’ pela Dra. M. T. Nisot. Disserta sobre a crescente
onda de nascimentos nos países da Índia, China e Japão. Apresenta várias
estatísticas e a necessidade de os respectivos governos recorrerem ao birth-
control, afirmando que:

109
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 6/7, Jun-Jul/1929, p. 4-5.
110
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 3.

65
(...)Os recursos territoriais serão dentro em pouco
insuficientes relativamente à progressão da
população.

Mostra-se o problema territorial no Japão em relação ao crescimento da


população. Já no caso chinês, o problema é apresentado da seguinte forma: o
país tem mais pessoas por milha² do que a Bélgica (país mais povoado da
Europa), 873/657 pessoas por milha quadrada. De acordo com o artigo, houve
resistência do governo japonês às idéias malthusianas, mas depois as
autoridades cederam à necessidade do controle de nascimentos, assim como
ocorreu na China. No caso indiano, houve um elemento novo:

E a autora cita as ligas fundadas com esse fim


[malthusianismo], os jornaes favoraveis ao
movimento, os professores e médicos que o
auxiliam, fazendo notar que Mahatma Gandhi lhe é
contrário.111

Parece que, nesse caso, o controle de nascimentos tem fins não só


biológicos, mas também políticos. O líder pacifista Gandhi é posto como sendo
contrário ao controle de nascimentos. É conhecida a sua resistência pacífica à
influência inglesa na Índia, o que colocou no centro das discussões sociais as
teses de natalidade. O Boletim, de certa forma, combate essa resistência de
Gandhi, que é ao mesmo tempo política e nacionalista. Para os autores do
Boletim, essa resistência representaria uma postura política, em que ciência e
política se aproximam a fim de perverter o ideal de justiça e resistência
reclamado pelo próprio Gandhi. No Boletim, o discurso da ciência acaba se
sobrepondo ao da justiça social.

O segundo problema a ser resolvido pelos eugenistas é o do aumento


populacional nos países por eles considerados ‘pouco civilizados’. Pela
procriação desenfreada dos ditos ‘inaptos’, o eugenismo serviria para endossar
a tese de Malthus, de que o aumento populacional chegaria a tal ponto
(crescendo em progressão geométrica), que a quantidade de alimento
(crescendo em progressão aritmética) não seria suficiente para todos, assim

111
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 3.

66
como as condições de vida seriam mais insalubres, gerando um maior número
de epidemias e miséria. Se partirmos do princípio – eugênico – de que nesses
países o nível cultural é ‘inferior’, pela própria composição genética de seus
compatriotas, as medidas eugênicas de seleção racial seriam um ‘prato cheio’.
Portanto, o controle de natalidade está presente nos dois casos citados, no
primeiro para estimular bons casamentos e no segundo para inibir a
disseminação dos considerados ‘menos aptos’.

Mas sempre há uma exceção. A Itália estava fora da estatística de


diminuição populacional. No texto Preconceitos e erros acerca da população: a
ilusão do número112, de F. Nilti (ex-presidente do Conselho de Ministérios da
Itália), a questão das populações é mostrada com base na exceção do caso
italiano, apesar de se condenar o excedente populacional nos países asiáticos.
O autor afirma:

Se o número fosse potencia, os ingleses e


franceses estariam bem longe de sua grandeza e
os hindus e os chineses seriam os donos da terra.
Bastam 80 a 90 mil ingleses para dominar trezentos
milhões de hindus.

E justifica o caso italiano, que apesar de ter ‘muita gente’, tem ‘gente
boa’:

A Itália não pode viver sem emigração, sem ser um


grande paiz industrial, sem levar pelo mundo o seu
esforço de trabalho, os seus productos industriaes e
agrários, a sua força de organização.

Além de o texto afirmar a superioridade italiana e por conseqüência a


européia, a ênfase na inferioridade dos hindus e chineses – de modo geral, os
não europeus – é gritante. Na verdade, a teoria galtoniana de finais do século
XIX já preconizava essas idéias de inferioridade e superioridade dos povos.
Mas, no caso italiano citado acima, como em muitos outros (o Brasil por
exemplo), pode-se perceber a aplicação de uma teoria de superioridade para

112
Artigo extraído do jornal O Estado de São Paulo, 31/03/28. Publicado em Boletim de
Eugenia, Vol. 1, nº 8, Agosto/1929, p. 8.

67
justificar a necessidade de emigração dos trabalhadores italianos. O texto do
Boletim conclui afirmando a potência de exportação da força de trabalho
italiana, que por sinal chegou em grande quantidade no Brasil desde o final do
século XIX e que ainda adentrava pelos portos brasileiros na década de 20.113

O trabalho de Iraci Galvão114 analisa a emergência no Brasil de uma


nova mão de obra – o trabalhador livre – a partir da segunda metade do século
XIX. Todo esse processo exigiu uma reformulação não somente dos processos
de produção e da própria noção de trabalho, mas também das relações de
dominação. Através de um código não escrito – diz ela – mas impresso nas
relações e no comportamento entre as pessoas, a autoridade oficial e a
influência pessoal se confundem. Todo o esforço para conduzir o regime
republicano liberal nessa passagem trouxe as noções de Progresso e
Civilização como argumento fundamental de persuasão para a necessidade da
formação de uma nação democrática.115

Nesse sentido, a preocupação européia com a diminuição de seu


contingente populacional é tão grande que são recorrentes as notas sobre o
tema. Um concurso norte-americano realizado em esfera internacional tenta
visualizar a origem do problema:

Um prêmio de 3500 dollares. A ‘Eugenics Research


Association’ offerece um premio de 3500 dollares a
quem apresentar o melhor trabalho sobre as causas
da queda na natalidade em differentes paízes da
Europa durante os últimos quarenta annos. Os
trabalhos deverão incluir uma relação de todos os
estudos feitos sobre o assumpto, principalmente
entre os povos do Norte ou de origem nórdica
espalhados pelo mundo. Haverá preferência pelos
trabalhos baseados em estudos objectivos. O curso

113
Para conhecer melhor o processo imigracional no Brasil e o debate em torno da política
desenvolvida para regular esta prática no século XX, ver: LENHARO, Alcir. A Sacralização da
política. Op. cit.
114
GALVÃO, Iraci. Trabalho, Progresso e a Sociedade Civilizada. São Paulo: Hucitec, 1986.
115
Idem, p. 137.

68
está aberto para todo o mundo, as theses, porém,
devem ser escriptas em inglez, allemão ou francêz,
assignadas por um pseudonymo e acompanhadas
de um cartão com o nome e endereço do autor. Os
trabalhos podem ser enviados até junho de 1930
para a – “Eugenics Research Association – Cold
Spring Harbor, NY – USA.

Ressalta-se o destaque dado ao trabalho sobre a queda da natalidade,


‘principalmente entre os povos do Norte ou de origem nórdica’, considerados os
remanescentes do Sacro Império Germânico, ou seja, os legítimos arianos, a
raça ‘mais superior’.

Para os eugenistas brasileiros, a crítica ao neomalthusianismo é


enfatizada pela prevenção do controle de população através dos métodos anti-
concepcionais. Nas palavras de Kehl:

As idéias deste economista [Malthus] teriam os


aplausos dos eugenistas se tivessem como
finalidade combater o acréscimo progressivo dos
tarados e dos degenerados. Porém, ao invés disso
preconizam a restrição global da natalidade, tão
somente com intuito de evitar os perigos da
superpopulação.116

Na sua opinião, Malthus erra quando não prevê o controle galtoniano


dos nascimentos, evitando que os degenerados nasçam e estimulando o
nascimento dos mais aptos. Além disso, Kehl afirma que o mundo produz o
dobro do suficiente para alimentar a população mundial.117

Outrossim, o propagandismo de Renato Kehl gerou alguns convites


internacionais, entre os quais damos destaque para a pequena nota O
Cruzamento de Raças:118

116
KEHL, Renato. Lições de Eugenia. Op. cit., p. 214.
117
Idem, p. 213.
118
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº4, pág. 3. FDR

69
A Comissão de estudos do cruzamento de raças da
International Federation of Eugenic Organizations,
com sede em New York, dirigida pelo Prof.
Davenport acaba de convidar o Dr. Renato Kehl
para collaborar nessa commissão apresentando um
estudo sobre o problema dos cruzamentos segundo
o ponto de vista brasileiro.

Mesmo sabendo da controvérsia que representa a miscigenação no


Brasil – aqui colocada como cruzamento – o importante nesse texto é destacar
que o preconceito da nota já revela a postura do Boletim em relação ao tema.
O convite de Davenport a Renato Kehl é para a elaboração de um estudo sobre
‘o problema’ dos cruzamentos. Entende-se daí que estão falando das teorias
de branqueamento, muito em voga nesse período, mas que também
disputavam espaço com os favoráveis à purificação da raça por meio dos
cruzamentos.

Além de convites, os elogios ao trabalho de Renato Kehl eram sempre


publicados, em traduções de cartas recebidas. No primeiro número do Boletim
de Eugenia, numa pequena nota intitulada “Instituto de Eugenia”, Renato Kehl
recebeu do diretor do Instituto de Eugenia de Berlim (anexo ao Kaiser Wilhelm
Institut119 ) a seguinte carta:

Distincto collega. O bello artigo publicado na


Revista Therapeutica sobre o nosso Instituto, bem
assim a remessa de algumas de suas obras e
artigos, foi para nós motivo de grande alegria.
Entreguei tudo, em tempo, ao Professor Fischer.
Não deixarei de ler os seus valiosos trabalhos e de
utilizal-os opportunamente. Espero, muito em breve,
poder enviar-lhe um trabalho que lhe poderá
interessar. Pela presente desejo apenas participar o

119
O Instituto Kaiser Wilhelm-Guilhermo de Berlim monopolizou toda a investigação sobre
gases tóxicos durante a Grande Guerra, para sua aplicação em armas químicas. No entanto,
essa não foi uma arma decisiva no conflito, já que a tradição militar era contrária e havia muitas
restrições quanto à sua aplicabilidade. SANCHEZ RON, José Manuel. El poder de la ciencia:
historia socio economica de la física (siglo XX). Madrid: Editora Sevilla, 1992, p.232.

70
recebimento de seus trabalhos e apresentar os
meus agradecimentos. Muito grato, saudações
respeitosas de Dr. Hermann Muckermann.120

Vale ressaltar a importância dessa primeira nota internacional publicada


no boletim. A intenção de publicar essas notas ‘elogiosas’ a Renato Kehl dá
credibilidade ao jornal e à própria comunidade médica brasileira.

Na nota A Propósito de um livro121 , lemos:

A propósito do apparecimento do livro ‘Lições de


Eugenia’ recebeu o seu autor o Dr. Renato Kehl a
seguinte carta do grande scientista allemão Prof.
Eugen Fischer. “Presadissimo collega, Queria
receber os meus mais sinceros agradecimentos
pela amável remessa do seu bello livro ‘Lições de
Eugenia’. Absolutamente não há duvida de que V.S.
acaba de prestar um grande serviço com este livro
á Eugenia. Justamente num paiz como o Brasil elle
é extraordinariamente útil. Desejo que sua
campanha e que este seu belo compendio tenham
merecido sucesso. Quanto eu posso julgar por uma
rápida leitura, tratou V.S. com elevação e
segurança a Eugenía. Com os mais elevados
agradecimentos o seu admirador, prof. E. Fischer
(assig.). Diretor do Kaiser Wilhelm Int. Antrop.
Eugenik de Berlim.

Para além dos elogios tecidos pelo diretor do instituto berlinense, duas
vezes a afirmação localizada no centro do texto – ‘justamente num paiz como o
Brasil elle [o estudo da eugenia] é extremamente útil’ – demonstra o ideal de
purificação da raça, bastante explícito, porque somos miscigenados. Tanto o
autor [Dr. Hermann Muckermann], como o Prof. Fischer tornaram-se

120
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 1, Janeiro/1929, p. 3.
121
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 9, Setembro/1929, p. 2.

71
colaboradores freqüentes dos boletins nas edições subseqüentes,
demonstrando certa afinidade entre essas instituições.

Em nota sobre Charles Richet122, vice-presidente da Société Française


d’Eugenique, pode ser lido:

(...)membro do Instituto e Professor da Universidade


de Paris em cartas dirigidas ao nosso diretor
[Renato Kehl] após dizer em uma delas: ‘combien je
suis heureux d’avoir votre approbation’ em
agradecimentos aos louvores a ele dirigidos pelo
magnífico livro que publicou sobre Eugenia tem as
seguintes palavras para esta sciencia: ‘de plus em
plus je suis convaincu que c’est vers l’Eugénetique
que doivent tendre tous nos efforts. C’est la science
de l’avenir. J’ai cherché, moi aussi, de contribuer
pour quelque peu au progres social, dans ma
“Selection Humaine: Reussirons-nous à émouvir lês
savants et le peuple?.123

Parece que o comentário de um membro da comunidade médica


internacional dirigindo-se a Renato Kehl, legitima a iniciativa brasileira, como se
este fosse um lastro. Há uma certa civilidade no intercâmbio entre as
associações eugênicas, uma cordialidade, uma polidez no tratamento entre
esses homens, muitas vezes denotando uma formalidade excessiva.

Observando a relação de Renato Kehl com as instituições


internacionais, nota-se uma nova possibilidade de análise. O que pretendia
Kehl ao publicar essas notas elogiosas? Reconhecimento nacional ou respeito
internacional?

Pensando na rede de poder de Kehl, esse mesmo viés de análise


enfatizará sua relação com as associações internacionais. Na década de 30, o
mundo contava com diversas sociedades eugênicas. Em sua grande maioria,

122
Charles Richet (1850-1935). Prêmio Nobel de Medicina em 1913 militava pelo
aperfeiçoamento da espécie humana através da seleção. “(...) deixemos a seleção natural e
tenhamos a coragem de fazer a seleção social”. Apud. PICHOT, André. Op. cit., p.27.

72
tinham publicações próprias. Constatou-se a existência de 27 associações em
1931, oito delas somente nos Estados Unidos.124

No primeiro exemplar do Boletim de Eugenia, encontramos uma nota


bastante intrigante. Totalmente escrita em alemão, “Kleine Nachrichten” parecia
um artigo com pequenos tópicos cujos nomes citados eram de eugenistas e
higienistas brasileiros. A princípio, assemelha-se a um texto transcrito
exatamente como fora publicado originalmente em algum veículo de imprensa
no Brasil. Mas onde, quando, por quem? Não esclarecida a questão, pois não
havia dados para responder a essa primeira indagação, adianta-se à uma
segunda questão. Por que o texto estava escrito em alemão? Para dar
credibilidade à matéria? Quem a leria? Um alemão, por certo. Isto nos faz
pensar que o jornal circulava fora do Brasil – tendo em vista as notas anteriores
e suas boas relações com o Instituto Kaiser Wilhelm-Guilhermo, de Berlim. Mas
é apenas o primeiro número do boletim! Ademais, constatamos que no número
seguinte havia uma nota em francês idêntica à nota escrita em alemão
intitulada Petites Nouvelles125. Daí conclui-se que essa coluna era para a
divulgação das ‘atividades da comissão’ eugênica no Brasil. No entanto, essa
prática não se repetiu nas edições posteriores dos boletins.

Finalizando, percebe-se que ao longo deste item, em todos os


momentos, relacionou-se as políticas de controle e de regulação dos corpos
com um discurso assumidamente racial e biológico que descartam quaisquer
possibilidades de desenvolvimento positivo, ou seja, sem que haja uma
intervenção biopolítica nos corpos.126 Na última nota, O Ensino de Biologia para
os homens políticos, isso fica bastante claro, na medida em que a pressão por
parte da comunidade científica sobre resoluções de Estado torna-se cada vez
mais insidiosa. Discorre a nota:

123
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 1, Janeiro/1929, p. 3.
124
Boletim de Eugenia, Vol. 3, nº 32, Agosto/1931.
125
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 2, Fevereiro/1929, p. 4.
126
Nesse período já é possível identificar um outro tipo de discurso que intervirá diretamente no
corpo feminino – o discurso do embelezamento, desde princípios do século XX inferiu diversos
significados ao ato de se embelezar e no período em questão, embelezar-se significava ser
saudável, ativa e conseqüentemente feliz. Para saber mais ver o trabalho de SANT’ANNA,
Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté... op. cit.

73
Numa carta endereçada ao ‘Times’, em nome da
‘Eugenics Society’ da qual é presidente, Leonardo
Darwin, filho do grande Charles, pede a introdução
da biologia nos programas escolares, porque o
conhecimento do quanto os maiores interesses
nacionaes estão alliados á constituição biológica
das gerações futuras, diffundindo entre as classes
cultas, constitue a única salvaguarda verdadeira
contra os perigos sociaes. Está hoje universalmente
reconhecido que as leis da herança têm vital
importância, não só para o incremente e
melhoramento dos productos da terra, como
também para o desenvolvimento da vida humana.
Darwin affirma em seguida que não unicamente os
aspirantes a uma cathedra de apicultura devem
possuir a adequada preparação sceintífica, mas é
de summa importância que todos quanto aspirem
um posto iminente na política nacional, na pratica
ou nas colônias, possuam sólidas noções das leis
que governam a existência humana e a sua
evolução.127

Parece que o pedido de Leonard Darwin, para que o ensino da biologia


fosse incluído nas escolas, reflete a valorização da medicina e da biologia
expressa na necessidade de que todos aprendam, como numa formação
doutrinária, a importância magna dessa disciplina. Como se não bastasse esse
poder de apreender, o valor da doutrina é confiado às ‘classes cultas’, que têm
a responsabilidade pelas ações de hoje e das gerações futuras, em prol da
preservação da nação. O final do texto arremata brilhantemente: ‘todos quanto
aspirem um posto iminente na política nacional, na prática ou nas colônias,
possuam sólidas noções das leis que governam a existência humana e a sua
evolução’. Além disso, a superioridade européia é representada pela Inglaterra,

127
Artigo extraído da Folia Médica, publicado em 30 de abril de 1929. Boletim de Eugenia, Vol.
1, nº 6/7, Jun-Jul/1929, p. 1-3.

74
que precisa ancorar-se nas ‘leis da existência humana’ para subjugar e gerir a
vida dos ‘pobres coitados’ das colônias.

Enfim, Renato Kehl era propagandista porque tinha influência ou tinha


influência porque era propagandista? Creio que esse jogo de palavras jamais
será solucionado. Investigando os homens de elite na década de 1930, poderá
ser visto que, sendo médico, publicando artigos e com um mínimo de contatos
era possível viabilizar soluções para muitos problemas. Renato Kehl obteve
muitos beneficiamentos relativos a favores e indicações de colegas, como no
caso do emprego que conseguiu na empresa Bayer por indicação de uma
amigo muito próximo, Monteiro Lobato.128 Kehl possuía trânsito livre na
comunidade médica, era muito bem articulado – como ficará mais claro no
próximo capítulo, em que o discurso público dos Boletins de Eugenia será
levado para a privacidade de suas correspondências – todavia não consolidou
para si de fato, ao longo de sua trajetória, um lugar respeitável129 na
comunidade médico-científica, apesar de ter dedicado toda sua vida a ela.

O caminho encontrado por Kehl para conquistar o sucesso da eugenia


foi atingir inicialmente a elite, para depois convencer a população de seus
propósitos. Portanto, as estratégias na rede e da rede são postas em prática
por seus membros, a fim de conquistar o maior número de adeptos. O sucesso
da eugenia está ligado, antes de tudo, à conquista da opinião pública e, em
particular das pessoas cultas.130 Essa conquista da classe culta representava
uma espécie de aval para que as práticas eugênicas de melhoramento da
nação brasileira fossem executadas. Isso quer dizer que se trata de uma
estratégia para a dominação da opinião pública e do povo, mas que, antes de
tudo, deverá ser avalizada pela classe culta.

128
Carta de Monteiro Lobato a Renato Kehl, São Paulo, Fev/1920. (Livro I)
129
Quando digo respeitável, refiro-me ao obscurecimento de seu nome e de sua atuação ao
longo de sua vida dedicada aos problemas da eugenia no Brasil e que, ao contrário de outros
pensadores, caiu no esquecimento. Talvez este esquecimento seja devido à grande repulsa da
comunidade médica e da grande sociedade às práticas eugênicas após a 2ª Guerra Mundial,
em que Adolf Hitler empregou a eliminação de diversos tipos, considerados por sua ideologia,
indesejáveis. Entre eles estavam: negros, judeus, homossexuais, ciganos, deficientes físicos,
entre outros.
130
KEHL, Renato. No século da Eugenia, In Imprensa Médica. Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 231,
15/01/1937.

75
Os eugenistas não devem preocupar-se em
traçar programas para terem o prazer de os
ver completamente realizados. Se fosse
assim, não se teria construído a catedral de
Colônia, que levou vários séculos para ser
concluída.
Renato Kehl
C APÍTULO 2 – B ASTIDORES E UGÊNICOS

1. “Relações Epistolares” 1

Este capítulo tem por objetivo investigar as relações epistolares de


Renato Kehl, levando a problemática do eugenismo e da constituição da rede
eugênica da esfera pública – publicações em jornal, livros, conferências – à
esfera privada. As fontes principais são parte da coleção de cartas inéditas
emitidas e destinadas a Renato Kehl entre os anos de 1919 e 1946.

Até aqui, os dados da constituição formal da Sociedade Paulista de


Eugenia e da Comissão Central Brasileira de Eugenia foram captados de sua
esfera pública, ou seja, do que foi divulgado oficialmente nos meios de
comunicação. Agora, a proposta é levar a construção da rede de relações
eugenistas ao âmbito privado, naquilo que será chamado de Bastidores
Eugênicos. Se, no capítulo anterior, o enredamento de Renato Kehl foi
pensado a partir de suas relações institucionais e públicas – em associações,
jornais, sociedades e faculdades – neste serão as relações pessoais e íntimas
que darão a tônica da problematização acerca do eugenismo. Cartas de
cunho pessoal, demonstrando relações familiares e de amizade, interesses
políticos, editoriais e relacionados à aplicação do eugenismo no Brasil
constituirão o corpus documental principal neste momento da dissertação.

Para pensar os bastidores, o leitor é convidado a acompanhar a


metáfora do teatro, numa analogia com nosso objeto. Entre o palco e a platéia
existe a coxia. É na coxia que ocorrem a conversa, a concentração dos
atores, a troca de roupa, a composição de novos personagens, maquiagem,
figurino, cenário, camareiras, assistentes e objetos cênicos. Contudo, no
teatro, os bastidores estão também em outro local, além da coxia. Atrás da
platéia – na parte mais alta do teatro – é onde trabalham iluminadores,

1
Esta expressão foi usada por Renato Kehl em resposta à carta de Paz Soldan (médico
eugenista peruano) em que revela seu empenho na formação de alianças e contatos através
de correspondências escritas. Diz: Vou escrever a este notável eugenista espanhol [ Luis

77
sonoplastas e o diretor, que dali tem uma visão mais global (o desenho
cênico) e de como se desenrola a ‘trama’ teatral. Tanto quanto o pessoal que
fica nas coxias, atrás da platéia tem-se também o controle do espetáculo.

Para o espectador, muitas vezes, o teatro é o cinema ao vivo, sem uma


relação direta entre a platéia e o ator. No entanto, a base da experiência
teatral é o improviso, o inconstante e a troca de energias entre o palco e o
público. Apesar disso, pode-se dizer que o teatro é também o controle, a
vigilância, a regulação do tempo e do espaço para uma finalidade específica.
– mostrar a arte, o show, principalmente se forem levados em conta todos os
aspectos descritos acima, que fazem parte de toda a construção cênica, ou
seja, a própria noção de bastidores.

Quando o espetáculo se inicia, vemos a movimentação cênica de forma


harmoniosa, calculada e marcada, na qual aparentemente não há falhas nem
conflitos. A noção de bastidor vem da idéia daquilo que está por detrás das
cortinas, escondido do público. Em nossa analogia, para o objetivo desta
pesquisa, trata-se do que não foi dito nem publicado, mas escrito, entre duas
pessoas.

À essa idéia de bastidores liga-se uma outra. Sendo a correspondência


uma relação travada entre duas pessoas, pressupõe-se que tratam de
questões íntimas – no sentido daquilo que está no interior dessa relação – que
interagem através da escrita, com confiança e cumplicidade. De fato,
confiança e cumplicidade são indissociáveis do exercício da correspondência
entre duas partes.

Foi necessário lançar mão de alguns instrumentos teóricos para ler


essas cartas. A epistolografia – a arte de analisar cartas – propicia o estudo
da correspondência através dos tempos, permitindo a reconstituição parcial de
relatos e fatos, por intermédio de uma ótica mais particular, mais subjetiva.2
Ora, a função primordial da carta sempre foi utilitária, pragmática. O

Huerta] que há muito tempo desejo contar entre os amigos com os quaes mantenho relações
epistolares (...). Renato Kehl à Paz Soldan. Rio de Janeiro, 10/12/1928.

78
estreitamento das distâncias entre dois missivistas requer um terceiro
elemento, intermediário – o correio (materializado também na pessoa do
portador da carta, do mensageiro). Esta função é tão importante quanto as do
remetente e do destinatário, por assegurar e garantir a chegada da
mensagem escrita do local original a seu destino final, confirmando com
sucesso a leitura da mesma. Nílvia Pantaleoni sugere, para a segurança do
conteúdo da mensagem, ou seja, para que a mensagem não seja lida por
ninguém além das partes envolvidas na conversa, que os mensageiros
fossem analfabetos.3 Sem tal radicalismo, os correios oficiais passaram a
assegurar a integridade das correspondências e sua não violação.

Muitos remetentes aproveitam a fórmula epistolar para expor suas


opiniões políticas, morais, filosóficas ou religiosas. Um exemplo desse tipo de
composição está nas páginas do romance epistolar de Goethe, Werther, em
que história e ficção se superpõem no relato de um tempo.4

Para que haja uma relação entre as partes, o ato de abrir o envelope
de uma correspondência recebida acaba por autorizar o início da interação.
Essa interação pressupõe uma ratificação recíproca, ou seja, responder à
carta de alguém é declarar que se está aberto ao outro e vice-versa. Desta
forma, este capítulo pretende mergulhar o leitor na atmosfera íntima da
interlocução a que Renato Kehl estava sujeito enquanto membro expressivo
do eugenismo brasileiro, muitas vezes escrevendo cartas a intelectuais,
políticos e amigos, sempre inseridas nas respostas que recebeu dessas
pessoas, idéias, comentários e sugestões visando ao sucesso do eugenismo.

O corpus documental que será trabalhado aqui consta de um conjunto


de cartas encontradas no centro de documentação da Fiocruz/RJ, em ótimo
estado de conservação. Foram encontrados livros encadernados em capa

2
PANTALEONI, Nílvia Teresinha da Silva. As cartas de Ruy Barbosa a Maria Augusta e de
Monteiro Lobato a Purezinha: a interação por escrito e as metáforas do amor. Dissertação de
Mestrado. Língua Portuguesa, PUC/SP, 1999, pág. 3.
3
Idem, p. 7
4
GOETHE. Obras Completas. Buenos Aires: Libreria “El Ateneo” Editorial, 1953.

79
dura, com a inscrição “Autógrafos”5 na primeira capa. Neles constam as
respectivas cartas, coladas, uma em cada página, em ordem cronológica de
recebimento. Pode-se observar o caráter extremamente exigente e metódico
de Renato Kehl pelo modo como tais cartas estão acondicionadas: todas em
ordem cronológica, com números seqüenciais escritos à mão no canto
superior de cada carta, transcritas, se escritas com letra de difícil interpretação
pelo remetente, e muito bem conservadas, sem amassados ou pingos e
manchas no papel ou dobras muito firmes. Ao que tudo indica – pela
existência de dois tipos de letra nos livros, ao lado das cartas – Eunice Kehl
era a responsável pela organização da correspondência recebida por seu
marido, ocupando o posto de secretária.6 Em alguns casos, a
correspondência registra verdadeiras conversas entre remetente e
destinatário. Assim, muitas vezes, o papel entre remetente e destinatário se
confunde, por não ficar evidenciado qual foi a primeira das partes a enviar a
carta. De qualquer maneira, fica claro que Renato envia muito mais cartas do
que recebe. Na maioria das vezes, as cartas dessa coleção são respostas a
correspondências enviadas anteriormente por Renato, pois elas trazem em si
as respostas a possíveis perguntas, ou agradecimentos ao envio de
exemplares de livros recentemente publicados, tal como pode ser visto a
seguir:

Recebi com grande prazer os dois exemplares dos


trabalhos de V. Excia. – Sexo e Civilização – e –
Lições de Eugenia. (...) Fico-lhe grato e irei juntar á
minha leitura o cabedal precioso que me servirá de
orientação no assumpto de interesse
7
profundamente ligado ao nosso – Destino.

5
São três livros de cartas que foram intitulados por Kehl, respectivamente: Livro I (1912-
1929); Livro II (1929-1932) e Livro III (1933). FOC
6
O fato de Eunice ser secretária de Renato Kehl indica que ela organizava também a
correspondência recebida por Renato. Esta é uma suposição que leva em conta os
comentários que parecem ser de Renato e outros, feitos por alguém que organizou o material,
mas nunca respondeu em nome do titular das cartas, Renato Kehl.
7
General Meira de Vasconcelos a Renato Kehl, Rio de Janeiro, 17/03/1936.

80
Conforme pedido, nesta data lhe remeto um
exemplar da these do doutorando Monteleone sobre
‘5 Pontos de Eugenia’.8

Agradeço de coração ter se lembrado de mim. ‘Bio-


perspectivas’ não é só o melhor de teus livros: é um
livro grande e belo.9

Por esse motivo, uma outra perspectiva delimitou o processo de análise


da documentação. Foi necessário ler as cartas duplamente, isso quer dizer,
observar uma seqüência cronológica de recebimento de cartas de um mesmo
autor endereçadas a Renato. Isso porque, como seria de esperar, são poucas
as cópias das cartas enviadas por Kehl. Portanto, houve a demanda por
entender o sentido das cartas enviadas a Kehl levando em conta que se
tratavam, na maioria das vezes, de respostas com elogios, comentários e
novas perguntas a ele.

Foram encontradas também diversas cartas soltas, aqui denominadas


papéis avulsos, que constituem parte da correspondência recebida num
período posterior ao ano de 1933 e que não foram integradas a nenhum livro
de Autógrafos.

A coletânea de cartas foi escolhida de forma bastante aleatória,


levando em conta a autoria das mesmas. No total, foram arroladas para esta
dissertação 74 cartas, o que representa um número pequeno diante de toda a
coleção. No entanto, utilizaremos somente uma parte desse material10 para
ressaltar alguns aspectos da composição e do conteúdo dessas
correspondências entre Renato Kehl e seus aliados e críticos. Figuram nesse
conjunto de cartas nomes de ilustres intelectuais do período, tais como:
Cecília Meirelles, Charles Davenport, Fernando de Azevedo, Gilberto Freyre,

8
Borges Vieira a Renato Kehl, São Paulo, 23/04/1929.
9
Roquette Pinto a Renato Kehl, Local não identificado, novembro/1938.
10
É importante ressaltar a relevância do material documental disponível para pesquisa no
Fundo Renato Kehl, na Fiocruz/RJ, que contribuiria de forma bastante positiva para pesquisas
relacionadas ao tema do eugenismo, sobre a vida de Renato Kehl e sobre a epistolografia.

81
Maria Lacerda de Moura, Monteiro Lobato, Oliveira Vianna e Roquette-Pinto,
entre outros.

O termo publicista serve bem para determinar a atuação de Renato


Kehl no movimento eugenista. Ele divulgava os ‘fatos novos’ a seus
interlocutores, como os lançamentos de livros; intercambiava endereços com
outros eugenistas do mundo; fazia convites para conferências; solicitava
opiniões editoriais, etc. Foi assim que estabeleceu relações – primeiro
epistolares, depois pessoais – por exemplo, com Monteiro Lobato (que poderá
ser visto adiante, em carta de 1918) e com Oliveira Vianna. Como se lê a
seguir:

Aproveito a opportunidade para dizer-lhe que


desejava muito conhecel-o pessoalmente. De longa
data acompanho com muita sympathia e grande
admiração a sua brilhante e laboriosa vida de
publicista e sociólogo.(...) Caso permita irei um dia
visital-o ahi em Nictheroy.11

Além daquelas correspondências estabelecidas com ‘desconhecidos’ –


o que requeria certa formalidade – outras cartas eram menos formais.
Familiares correspondiam-se com freqüência com Kehl. São exemplo seu pai,
irmãos e Gustavo, que têm o mesmo sobrenome Kehl e, ao que parece,
buscam nessas cartas esclarecer suas relações de parentesco:

Acabo de receber uma carta do meu primo em


Wessel acusando recepção da minha carta
referente ao assumpto das relações que talvez
existam entre nossas famílias. Ele terá muito prazer
de s’ocupar d’isso e esperamos que seja habilitado
de nos dar o nome de primos.12

Essa comunicação, cujo objetivo é localizar as relações de parentesco,


mostra uma importante preocupação em se construir a árvore genealógica da

11
Renato Kehl a Oliveira Vianna. Rio de Janeiro, 04/09/1931.

82
família Kehl, de origem alemã, para que se possa identificar a ascendência
tão buscada pelos eugenistas. Quem sabe, na busca pela origem de seus
antepassados alemães, os Kehl não encontrariam Siegfried, o lendário herói
ariano?

Contudo, dentre as cartas recebidas de familiares, destacam-se


especialmente aquelas trocadas com seu irmão mais novo, Wladimir Ferraz
Kehl, também médico. O conteúdo das conversas entre ambos é bastante
diverso. Transitam dos assuntos pessoais aos filosóficos. Sempre num tom
irônico e bem humorado, Wlad – modo como Wladimir assina suas cartas (e
como peço licença para referir-me a ele) – discorre sempre elogios e críticas a
seu irmão mais velho. Numa carta de 19 de abril de 1923, mesmo ano de
publicação de Lições de Eugenia e Como escolher um bom marido, a
ambigüidade da relação entre ambos se evidencia:

(1)19/04/1923. Renato, O seu livrinho ‘Como


escolher...’ chegou-me às mãos justamente no meu
dia de annos. Confesso que fiquei na duvida: será
coincidência, ou trata-se mesmo de um presente de
anniversario? Seja lá como for; alegrou-me receber
mais um trabalho seu de indiscutível utilidade e
deliciosamente pequenino. Não interprete
desfavoravelmente o termo. Livro daquelle tamanho
enfia-se no bolso e, mal se apresente occasião, a
gente abre e lê: enquanto espera o bond, ou
mesmo no bond... É muito commodo. Dois dos
capítulos que o compõe já os conhecia das
columnas do ‘Jornal’, o outro foi novidade.

(2) Realmente, se eu fosse moça e recebesse no


meu 30º anniversário um livro com aquelle título,
certo tomaria o presente como uma insinuaçãozinha
perversa... A Capa com a sua gravura

12
Gustavo A. Kehl a Renato Kehl. A bordo do navio Itaquatiá, 12/12/1921.

83
graciosamente idyllica e o título realmente
suggestivo garantem o sucesso da edição, não
falando já no que vae escripto dentro.

(3)Tenho para mim, entretanto, que se o livro se


intitulasse ‘Como achar um bom etc.’, ou mesmo
‘Méthodo pratico para achar um marido’, não
haveria mãos a medir. Oiço dizer que um marido é
hoje artigo de luxo, - um ‘bom’ marido será então
uma ave, já não direi ‘rara’ mas rarissima!

(4)Infelizmente todos os bons conselhos de que o


livro vae recheado não me podem valer, você
porem fica intimado a escrever um outro, não
menos útil, ensinando aos rapazes de boa vontade
de ‘como escolher uma boa mulher’, digo esposa,
para o que não lhe faltará a Tríplice autoridade de
estheta, de eugenista e de marido feliz. Eu fico
esperando os ensinamentos de sua experiência,
convencido de que você o escreverá, nem que seja
apenas por amor à symetria.

(5)Agora neste ponto, surge-me uma curiosidade: o


que pensarão as mulheres em geral, desse ‘escolhe
marido’? Creio haveria muito a (......)se ellas
quisessem falar... Mas passemos adiante que isso é
maldade e eu sou, você sabe, dos ‘taes bonzinhos’.
(6)Por falar nos ‘taes bons’ lembra-se agora que
você citou o meu sempre admirado F. Nietzche por
duas vezes no seu livrinho e em ambas você lhe
arranhou a autoridade. Se dar conselhos, e
principalmente bons conselhos não fosse coisa
perfeitamente inútil e indiscutivelmente inmoral
(porque desmoraliza a pessoa a que se fala) eu
aconselharia a você a que lesse a opinião de

84
Zarathustra sobre o ‘filho no matrimonio’. Estou
certo de que você começaria a considerar F.
Nietzche como eu o considero: o apostolo de um
eugenismo transcendente, cujo ideal não está ali no
‘mens sana, etc.’, mas um pouco mais alto, no
‘Superhomem’... É permithido a cada um fixar o seu
ideal, quando o tenha, na altura que quiser: uns ao
nível do estomago, outros, mais baixo ainda..., em
compensação há os (como N.) que visam ‘par delà
de bien et de mal’ para falar no jargon
nietzcheano... (7)Quando recebi o seu livro,
acabava de ler um ensaio de Schopenhauer sobre o
Amor e, se não temesse uma contradição
escandalosa recomendaria a você a leitura como
útil e interessante (aparte o colorido metaphysico),
mas depois do que ficou dito dos conselhos,
desisto...

(8)No estado de espírito em que estava no


momento, bastou o título do livro para suscitar
immediatamente uma porção de perguntas,
daquellas perguntas que estão sempre á espera de
resposta satisfactoria. Duas dellas: tratando-se de
casamento por inclinação mútua, é possível uma
escolha fria e calculista? E dado que fosse possível,
seria razoável dar-se prioridade ao critério eugênico
em prejuízo do sentimental? Falemos ‘in concreto’:
a uma moça apresentam-se 2 candidatos; um tem
todas as bellas qualidades exigidas no código
eugênico, o outro, coitado, só tem uma: a de ser
sinceramente amado. Para qual deve pender a
escolha? Fio que você como eu, como todo mundo,
se tivesse de intervir na pendência e não grado

85
todos os preceitos eugêncios, dizia: vae, menina e
casa com o teu amado...

Não tivesse já o Ecclesiastes dito no seu sábio


epicurismo: váe e gosa a vida com a mulher que
amas. Claro está que tudo isso depende da
existência real daquele deusinho nu, com arco e
flechas envenenadas. Parodiando aquele autor cujo
nome me esquece agora, poder-se-ia dizer: la
nature a sés raisons que la raison ne connait pas....

(9)Bom, façamos de conta que estamos de accordo


e terminemos.

(10)Você se queixa sempre de muito trabalho,


dando apesar disso a impressão de que você
mesmo o procura; oiça: trabalho demasiado faz mal
á saúde, degrada o homem e, além disso, como
dizia O. Wilde é o recurso dos que não tem nada
mais a fazer...

(11)E agora, depois desta enxurrada de asneiras


você tem o direito de descansar, mas antes abrace
o Wlad, não se esqueça homem de recommendar-
me a Eunice e de beijar o Victor Luiz por mim.13

Optou-se por colocar esta carta na íntegra para que se tornasse


possível verificar a desenvoltura com que Wlad conduz a conversação. Densa
e erudita – cita Nietzsche, Schopenhauer, Oscar Wilde, o Eclesiastes – crítica
e elogiosa ao mesmo tempo, foi separada aqui em onze partes que tratavam
respectivamente de onze temas diferentes, a saber: 1. Agradece o
recebimento do livro e comenta-o, ressaltando sua utilidade, que questionará
adiante, e o tamanho cômodo, que pode ser lido em qualquer lugar. 2. Ironiza
a coincidência do recebimento do livro em seu trigésimo aniversário, o que
seria para uma moça com trinta anos uma ofensa ou insinuaçãozinha

86
perversa por sugerir que tal moça estivesse ‘encalhada’. 3. Ao comentar o
título do livro, Wlad lembra que, tendo em vista a dificuldade de encontrar um
marido, visto como artigo de luxo, um bom marido seria então uma ave não
rara, mas raríssima. Poderia a escassez de bons maridos, descrita por Wlad,
ser vista como uma crítica ao comportamento masculino? Wlad crê que por
sua aplicação prática o livro devesse chamar ‘Método prático’ ou ‘Como
achar...’. 4. Wlad sugere que Kehl escreva um livro para os rapazes de ‘Como
escolher uma boa mulher’14, pois, com elogios reconhece em Kehl o que
chamou de Tríplice autoridade (esteta, eugenista e marido feliz). 5.
Curiosamente, Wlad ironiza, perguntando a Kehl o que pensarão as mulheres
sobre esse escolhe marido, escrito por um homem,15 e sinaliza que isso
poderia ser um problema ao irmão. 6. Wlad aponta que Renato menciona
Nietzsche por duas vezes, em afirmações que desqualificam o filósofo,
invertendo seu sentido. Wlad, sendo admirador confesso desse autor, mostra
uma primeira divergência teórica entre os irmãos. Diferentemente de Renato,
Wlad considera Nietzsche o apóstolo de um eugenismo transcendente, cujo
ideal não está ali no mens sana, mas um pouco mais alto, no super-homem.

Desta forma, pode se considerar que, se Renato faz uma crítica a


Nietzsche, desqualificando suas análises, Wlad entende-o de outra forma, já
que o super-homem é visto por Nietzsche como um tipo de perfección
absoluta, opuesto al tipo del hombre ‘contemporáneo’, del hombre ‘bueno’ que
forma parte del cristianismo y otros nihilismos16. 7. Refere que recomendaria
Schopenhauer (um ensaio sobre o Amor), se isso não fosse uma contradição,
dado o conteúdo prático do livro de Renato, ficando o amor em segundo plano
quando se escolhe racionalmente um marido. 8. Mais uma vez Wlad
sutilmente critica a proposta do livro de Renato, fazendo a ele tais perguntas:

13
Wladimir Ferraz Kehl a Renato Kehl, São Paulo, 19/04/1923.
14
Este livro (Como escolher uma boa esposa) Renato Kehl publicará em 1926 pela Editora
Francisco Alves: Rio de Janeiro, obedecendo, nas palavras de Wlad, seu amor à symetria..
Idem.
15
Esta pergunta de Wladimir mostra o quão machista era a literatura, já que homens
escrevendo às mulheres uma fórmula de como escolher um bom marido parecia-lhe uma
tanto equivocada.
16
NIETZSCHE, Friedrich. Ecce Homo.Barcelona: Edicomunicación, 1997, pág. 72.

87
é possível fazer uma escolha calculista quando um casal se ama e, dessa
forma, dar prioridade ao fator eugênico? Responde polemizando que a
postura de Renato, como a de todos, seria a escolha pelo amado, ao invés
daquele outro pretendente eugenizado. Argumenta usando a imagem do
Cupido: o amor quando surge é implacável e não há tentativa de controle
sobre isso que obtenha sucesso: “A natureza tem razões que a razão
desconhece”. 9. Wlad desiste da controvérsia sobre a temática do livro escrito
por seu irmão Renato e finaliza a carta fazendo novos elogios e
recomendações. 10. Fala sobre o excesso de trabalho muito acenado por
Kehl nas cartas que recebe e afirma que trabalho demais faz mal à saúde e
degrada o homem, ou seja, é um prejuízo à saúde e vai contra a proposta dos
eugenistas. Lembrando Oscar Wilde, escreve que trabalho demais é o recurso
daqueles que não têm nada mais a fazer. 11. Ao final, levanta uma ‘bandeira
branca’ depreciando suas próprias palavras: depois dessa enxurrada de
asneiras você tem o direito de descansar, enviando um abraço afetuoso e
cumprimentando Eunice e o filho de Renato, Victor Luis, que falecerá aos 14
anos.17

Se o livro de um eugenista falando do modo como as mulheres devem


encontrar um bom marido é motivo de críticas de seu irmão próximo, com
maior ênfase deveriam vir as críticas de mulheres motivadas pela busca de
espaço no interior do próprio eugenismo, dominado por homens em torno de
Renato Kehl. Além da participação de sua esposa Eunice, filha de Belisário
Penna, identificamos outras vozes femininas, como as de Celina Padilha,
Hildegart, Maria Lacerda de Moura e Cecília Meirelles.

Hildegart, estudante de doutorado em direito na Espanha, empenhava-


se na divulgação da eugenia em seu país, através de ligas e escritórios de
birth-control. Considerada uma menina prodígio desde os primeiros anos de
vida, foi criada por sua mãe, Aurora Rodriguez, mulher de família abastada,
que simpatizava com as idéias libertárias e com o eugenismo. Criou sua filha

17
A dedicatória do livro de Renato Kehl, Typos Vulgares. Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1946, é uma homenagem ao filho morto Victor Luis Penna Kehl.

88
com conselhos de médicos e pedagogos, e aos 13 anos Hildegart já havia
concluído o curso superior em Direito.

As relações entre anarquistas e eugenistas eram bastante comuns na


Espanha das primeiras décadas do século XX, tendo em vista uma eugenia
que proporciona a melhoria do corpo através da saúde corporal e mental, do
naturismo e da educação sexual. Essa linha de pensamento anarquista que
se relacionava com o eugenismo rechaçava os ensinamentos católicos, em
prol da ciência. A ciência era para os anarquistas um sinal de progresso,
ligada ao evolucionismo e contra a religião.18

Hildegart era amiga pessoal de Leonard Darwin19. As cartas não


indicam onde ela conheceu Kehl, mas eles passaram a se corresponder após
o 1º Congresso Brasileiro de Eugenia. Numa dessas cartas, Hildegart pede a
Renato um volume das atas de trabalho do referido congresso:

He leido sobre ello [Congresso Brasileiro de


Eugenia] un interesante trabajo publicado por Vd.
en ‘The Eugenics Review’, a la que estoy suscrita, y
que Major Leonard Darwin, me señalo con especial
interés hablándome con grandes frases elogiosas
de Vd. y de labor que en America realiza Vd.20

Em maio do mesmo ano, Renato Kehl escreve a Hildegart. Na resposta


Kehl felicita-a pela fundação da Liga para a Reforma Sexual sobre Bases
Científicas. Kehl indica o nome de três especialistas brasileiros em questões
sexuais para que Hildegart estabelecesse intercâmbio epistolar: Professor
Júlio Porto Carrero, José Cavalcante e Ernany de Irajá. De acordo com Kehl,
são cientistas que encaram o problema dentro das normas modernas. Essa

18
Raquel Peláez escreve um belíssimo livro sobre o parricídio de Aurora Rodriguez sobre
Hildegart em 1933. PELAEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas. Criminales o
locos? Madri: Cuadernos Galileo de Historia de la Ciência/Consejo Superior de
Investigaciones Científicas, 1987.
19
Filho de Charles Darwin e grande incentivador do eugenismo. PELAEZ, Raquel A., La
eugenesia em América Latina, op. cit. , p. 131.
20
Hildegart a Renato Kehl. Madrid, 17/01/32 O fragmento mostra que além das publicações
nacionais Renato Kehl publicava trabalhos em jornais fora do Brasil, neste caso o The
Eugenics Review..

89
respostas nos sugere uma pergunta: quais são as normas modernas para
discutir a sexualidade, principalmente se entre os cientistas indicados por
Renato Kehl só há homens? No mínimo, as determinações sobre a
sexualidade, na opinião dos eugenistas, seguirão sempre na linha de
preservar a mãe para a vida doméstica, para cuidar e educar os filhos, e os
homens para a vida pública, e para educar seus filhos mais crescidos durante
a adolescência.21 Esses pressupostos dividem em três séries os estágios de
educação dos filhos e a cargo de quem ficaria a educação em cada um
desses estágios: na primeira série, sob responsabilidade da mãe ou da tutora;
a segunda série, a cargo do pai ou do tutor, e a terceira a cargo do educador e
do médico.22

Renato afirma ser mais eugenista do que conhecedor das questões


sexuais, e como tal cuido desse assumpto [sexualidade] não como
especialista, mas por necessidade da íntima correlação que existe entre os
problemas eugênicos e os problemas sexuais. Apesar desta declaração, seu
trabalho na Conferência Nacional de Educação prega o controle da
sexualidade através da educação sexual, de modo esquemático. Trata-se,
talvez, não de um especialista no assunto, como ele mesmo ressaltou, mas de
um profundo conhecedor do debate médico acerca da sexualidade, já que
enfatiza a correlação entre eugenia e sexualidade. Neste sentido, identifica-se
mais um braço23 do eugenismo, para além das questões relacionadas à
regeneração da raça – principal atribuição dada aos eugenistas, preocupados
com a regeneração da raça. Raça, sexualidade, imigração, educação,
legislação, alienismo e crime são alguns desses braços a que me refiro.

21
Na Conferência Nacional de Educação, realizada em Curitiba em 1927, durante a
exposição de sua tese nº 75, Renato Kehl esclarece a quem caberia a educação dos filhos, e
propôs o seguinte: “(...) à mãe cabe, naturalmente responder perguntas curiosas dos filhos e,
compete-lhe dar as primeiras instruções. Ao pai incumbe, complementarmente prevenir os
filhos mais crescidos sobre os perigos das más companhias e dos perigos resultantes das
perversões sexuais; compete-lhe, também concilia-los ao respeito próprio e de seus
companheiros, amedrontado-os, talvez, quanto às conseqüências nocivas das leituras,
conversas e práticas obscenas”. In: Conferência Nacional de Educação, SCHMIDT, Maria
Auxiliadora (et. alli), Brasília: INEP, 1997, p. 435.
22
Idem.
23
O termo braço é usado aqui para designar um prolongamento do eugenismo fora da
comunidade médica.

90
Na mesma carta que escreve a Hildegart em 1932 Renato Kehl se
orgulha de ser citado na Espanha por outros autores eugenistas:

Li a obra do Dr. Haro tendo tido o prazer de ver o


meu nome citado em várias passagens. Quando
estiver com este autor transmiti-lhe as minhas
felicitações pelo seu livro.24

Adiante, Renato Kehl percebe no Brasil uma mudança na orientação


teórica de planejamento nacional. Talvez Kehl veja a classe culta mais
influenciada pelas condutas norte-americanas, que buscam o crescimento
nacional pela eficiência, sem prender-se em questões religiosas ligadas à lei e
à moral católica, mas obedecendo aos princípios protestantes. Isso quer dizer
que provavelmente Kehl atribua o atraso, não somente no Brasil, aos
preconceitos religiosos que impediam, por exemplo, a seleção natural – de
sobrevivência dos mais aptos – inviabilizada pelas práticas assistencialistas
da Igreja Católica, espelhada em instituições semelhantes às da Santa Casa
de Misericórdia, de auxílio aos mais pobres.

A idéia reformadora caminha a passos de gigante.


Mesmo no Brasil nota-se a formação de uma nova
mentalidade; isto certamente no seio das classes
cultas. Atribuo o atrazo universal neste sentido aos
preconceitos religiosos.25

Entendo, entretanto que a reforma deverá ser


evolutiva e não revolucionária. Precisamos
caminhar devagar para avançar com segurança.26

A reforma evolutiva e não revolucionária a que se refere Renato Kehl


demonstra sua filosofia baseada no progresso – e no positivismo –,
fundamentada na crítica à possibilidade revolucionária. Caminhar devagar
para avançar com segurança é uma idéia liberal e racionalista, que fecha os

24
Renato Kehl a Hildegart. Rio de Janeiro, 28/5/1932.
25
Idem.
26
Idem

91
espaços de decisão tomados por possíveis paixões. Uma racionalidade
política avessa a mudanças radicais é tida por Kehl e por seus parceiros como
a única possibilidade de encontrar o caminho certo, por estar revestida de
neutralidade ideológica.27 A Espanha, desde 18 de agosto de 193128, vivia
numa república democrática, que separou as relações entre o Estado e a
Igreja. A solução da república democrática espanhola caminhou para o Estado
laico – sem intromissão da Igreja – apesar de ter uma inclinação de esquerda
e anti-falangista. Encontramos aí uma discordância entre Kehl e Hildegart, que
era defensora da República:

Tengo sumo gusto em incluirle los primeros folletos


que yo hube de publicar em 1931, desde luego em
tiempo de la Dictadura, por lo que me mantengo
simplesmente en las líneas teóricas.29

Ainda assim, confirma-se a postura política de Hildegart, como pode ser


encontrado na mesma carta, em destaque no primeiro parágrafo:

Se asombra Vd. Que em España se pude hacer esta


difusión claramente anticoncepcional. Antes, sin la
República los artículos del Codigo Penal lo impedían. Al
venir la República se derrogo ese Código dictatorial y
quedo en vigor el de 1870. Como por entonces nada se
sabia en España de estas propagandas no hay ningun
articulo en el Codigo que explícitamente lo prohiba, y la
propaganda puede pues hacerse30.

27
A separação entre razão e paixão na política foi amplamente discutida por BRESCIANI,
Maria Stella (et. alli). Razão e Paixão na Política. Brasília: Editora UnB, 2002.
28
Em agosto de 1930 foi apresentado um projeto de constituição. A partir daí a Espanha se
constitui uma república democrática, laica, descentralizada, com câmara única, sufrágio
universal e Tribunal de Garantias para julgar as irregularidades constitucionais. Desde 28 de
janeiro de 1930 a Espanha vivia a deposição do ditador Primo de Rivera. Atlas Histórico
Mundial: de la Revolución Francesa a nuestros días. Vol. 2. Madrid: Ediciones Istmo, 1985
(10ª edição), p.177.
29
Hildegart à Renato Kehl. Madrid, 17/01/1932.
30
Idem

92
Merece destaque a afirmação de Hildegart de que a defesa dos
métodos anticoncepcionais é feita na Espanha somente a partir do advento da
república que, invalidando o código civil anterior, colocou em vigor as leis de
1870, que abriam margens para a divulgação de métodos de controle
populacional (não previstos, talvez pela antiguidade do Código de 1870).

De acordo com Raquel A. Pelaez,31 Hildegart foi morta por sua mãe em
1933. Sua história ficou muito conhecida em toda a Espanha. Hildegart era
uma menina prodígio anarquista-eugenista, engajada na luta política
espanhola. Conhecida como a Virgen Roja, Hildegart foi morta ao querer ser
independente de sua mãe, que dedicou sua vida para criar uma filha
completamente eugenizada. Ao lado da carta de Hildegart, no livro de
Autógrafos, está escrito a mão:

Assassinada em Madrid quando dormia. Faleceu


aos 19 anos tendo deixado várias obras impressas

Já que falamos de Hildegart, cabe ressaltar a escassez de


correspondências entre Kehl e mulheres. Além da jovem espanhola, somente
outras duas vozes femininas ecoaram na coleção de cartas escolhidas para
esta dissertação, Maria Lacerda de Moura e Cecília Meirelles.

Uma carta somente, endereçada por uma mulher a Roquette-Pinto,


presidente do 1º Congresso de Eugenia, merece especial destaque. Essa
carta foi encontrada na coletânea de correspondências pessoais de Renato
Kehl, pelo fato de ter sido ele o secretário geral do Congresso, e
provavelmente quem respondeu e resolveu a controvérsia, que infelizmente
não ficou registrada em seus arquivos pessoais.

Maria Lacerda de Moura pede a Roquette-Pinto que a informe sobre a


possibilidade de inscrever-se no congresso e sob quais condições, já que só
soubera da realização desse evento em maio (o Congresso seria realizado em
julho). A tese que gostaria de inscrever tinha por título: A Emancipação
feminina – Liberdade Sexual da Mulher. O interessante é a crítica feita ao

31
PELAEZ, Raquel Alvarez e GARCIA-ALEJO, Rafael Huertas. Op. cit., p. 105.

93
eugenismo.32 A missivista afirma que é inútil pensar em eugenia na defesa da
espécie:

si a mulher é a escrava social do preconceito


sexual, através da monogamia hypocrita e
legalizada no seu tartufismo cômico.33

Lembra ainda que não há um só nome de mulher entre todos os


inscritos e acrescenta:

Um congresso de eugenia só de homens é prova de


que estamos muito distantes da solução do
problema eugenico34

Sua afirmação mostra um dos conflitos existentes entre eugenia e


gênero. Para Maria Lacerda era inadmissível discutir eugenia entre homens,
uma vez que as mulheres são metade da espécie e devem ter tratamento e
respeito igual, diante da elaboração das leis e regras que afetam a todos.
Desta forma, percebe-se que além da aguerrida luta pelos direitos da mulher
travada por Maria Lacerda de Moura, vê-se também uma certa afinidade
dessa anarquista com o debate da eugenia. Seria prematuro afirmar que
Maria Lacerda era eugenista, mas sua carta mostra indignação diante do lugar
periférico ocupado pelas mulheres num congresso que debateria questões
relacionadas à vida da mulher.

Não há cartas remetidas por Celina Padilha nesta seleção de


correspondências. Seu nome merece destaque pela atuação próxima que
essa educadora teve em relações com Kehl em congressos e conferências.
Além de ser a secretária da Seção de Educação e Legislação do 1º
Congresso Brasileiro de Eugenia, escrevendo as atas das reuniões,

32
Para conhecer melhor a trajetória de luta de Maria Lacerda de Moura, consultar o
minucioso trabalho de LEITE, Mirian Lifschitz Moreira, Utopias educacionais de Maria Lacerda
de Moura, In: História e Utopias. John Manuel Monteiro e Ilana Blaj (orgs.). São Paulo:
ANPUH, 1996. p. 65-70.
33
Maria Lacerda de Moura à Roquette-Pinto, Guararema, 25/05/1929 (Livro I)
34
Idem

94
apresentou juntamente com Renato em 1927 a tese nº 74 (Sobre educação
sexual).35

Comentando sua proposta de educação sexual conjunta para meninos


e meninas, enfatizando que esta prática deveria ser estendida para todo o
sistema educacional, Celina faz uma crítica à separação dos sexos na
educação escolar:

Desde que iniciei minha carreira de professora, (...)


isto me feriu, tanto mais quanto, sendo mulher, sinto
a falta de naturalidade que a educação interpõe
entre o homem e a mulher, estragando as mais
belas amizades, quiçá o intercâmbio intelectual.36

Essa preocupação de Celina Padilha demonstra, independente do lugar


ideológico que ocupa, que as mulheres, antes de serem eugenistas,
buscavam romper a separação entre os sexos gerada pela sociedade
machista e patriarcal que relegava à mulher o papel de ‘procriadora’, enquanto
cabia ao homem a administração dos negócios, estudos, pensamento e a vida
pública.

Ser mulher e participar do debate acerca do eugenismo significava


também firmar o lugar da mulher na sociedade, na população e na espécie,
desenvolvendo funções não só de foro íntimo como a administração da casa e
a amamentação, mas também o conhecimento das ciências da vida.
Iniciativas como a de Maria Lacerda de Moura e de Celina Padilha dão
visibilidade para o debate sobre os temas da sexualidade, da regulamentação
dos casamentos, dos exames pré-nupciais a partir da voz da mulher. Mas
esse lugar transforma a mulher, antes (até meados do século XIX) reprimida e
reclusa, em moralizadora dos instintos e da família37, o que não significa uma
libertação por si, porque quem dita as normas ainda são homens e médicos.

35
Renato Kehl apresentou a tese nº 75 (O problema da educação sexual: importância
eugênica, falsa compreensão e preconceitos – como e quando e por quem deve ser ela
ministrada). In: Schmidt, M.A. (et. alii). Conferência Nacional de Educação. Brasília: INEP,
1997.
36
PADILHA, Celina. Apud: Schmidt, op. cit., p. 432.

95
Apesar do reconhecimento profissional das médicas ocorrer a partir da
segunda metade do século XIX, muitas pressões de homens e mesmo de
mulheres – que acreditavam ser a medicina uma profissão masculina – foi a
sua afirmação no campo médico a partir do exercício da competência que
contribuiu, entre outras coisas, para a redefinição dos papéis femininos. Mas
deve-se lembrar que as relações de gênero estão perpassadas por outros
antagonismos, como aqueles relacionados à classe social e a raça. 38

Dada a amplitude dos ‘braços’ do eugenismo, nomes de literatos não


necessariamente ligados a esta corrente de pensamento mantiveram contato
com Renato Kehl. Mas diferentemente de Maria Lacerda de Moura, que
estava envolvida em debates sobre a emancipação da mulher e a educação, e
de Hildegart, que tinha um trabalho engajado pela formação da Liga de
Reforma Sexual na Espanha, ou ainda de Celina Padilha, que estava
diretamente envolvida com a eugenização do Brasil pela educação, o nome
de Cecília Meirelles deixa-nos dúvidas quanto a seu envolvimento com o tema
do eugenismo.

Renato Kehl escreveu uma carta à Cecília convidando-a para participar


de uma campanha de benefício coletivo:

(...) Tomo a liberdade de me dirigir a V.S., no


sentido de pedir a sua valiosa colaboração, para
uma modesta iniciativa da Comissão Central
Brasileira de Eugenia.39

Mais uma vez nota-se um eugenista contactando um desconhecido –

neste caso, desconhecida. Tal pedido demonstra o empenho de Kehl na


campanha pela eugenização, que buscava mobilizar adeptos nos mais
diversos setores sociais, principalmente no meio intelectual. Caberia a Cecília
Meirelles preparar a tese/palestra intitulada: O papel da mulher perante a

37
CUNHA, Maria Clementina Pereira. O Espelho do Mundo... op. cit., p. 200-201.
38
RAGO, Elisabeth Juliska. Médicas Brasileiras no século XIX. In: Cadernos Pagu, nº15, ano:
2000, Núcleo de Estudos de Gênero, Campinas, pág. 199-225.
39
Renato Kehl a Cecília Meirelles, Rio de Janeiro, 29/04/1933.

96
eugenia. A finalidade dessa colaboração seria, de acordo com a carta de Kehl,
compor uma série de palestras que seriam transmitidas pela rádio Mayrink
Veiga do Rio de Janeiro – palestras que seriam depois transcritas e enviadas
aos principais jornais do país – durante a Quinzena da Eugenia, que se
realizaria no mês de maio. No conteúdo da palestra deveriam constar as
seguintes reflexões:

A função da eugenia da mulher; a defesa da prole;


a mulher como fator principal na defesa da
nacionalidade; a mulher mãe e a mulher cidadã; o
que devem fazer as mulheres pela ‘higiene da
raça’.40

De acordo com o sumário proposto por Renato Kehl a Cecília Meirelles,


percebe-se quais eram as principais preocupações relativas ã função da
mulher numa sociedade eugenizada, assim como dos papéis que caberiam a
elas: a função eugênica da mulher (procriação e prevenção da raça); a defesa
da prole (cuidados aos filhos relativos à amamentação e à educação primeira
da criança); a mulher como fator principal na defesa da nacionalidade (são as
mulheres que impõem a ordem e a moral no espaço familiar e íntimo,
propiciando conseqüentemente a ordem no espaço social, preservando desta
forma a nacionalidade); a mulher mãe e a mulher cidadã; (Para os eugenistas
há uma distinção entre a mãe e a cidadã? A mãe é a mulher do lar que cuida
da família e a cidadã é aquela que defende seus interesses no público e por
isso não servem para ser mães? Ou quando têm filhos deixam de ser cidadãs
e passam a ser mães?); o que devem fazer as mulheres pela ‘higiene da raça’
(proposta de como devem agir as mulheres para o sucesso do eugenismo, ou
seja, seguindo todos os parâmetros estabelecidos acima). Há nessa rede uma
expectativa de que a mulher seja, de certo modo, ativa. Ela é parte essencial
na construção da suposta nação eugênica, por servir como elemento
disseminador da moralidade dentro do lar, exigindo a retidão das relações
familiares e podendo atuar, a partir das primeiras décadas do século XX, na

40
Idem.

97
vida pública, mas sempre com um papel atrelado à sua condição de mãe e
esposa.

De modo diverso do que encontramos na carta de Maria Lacerda de


Moura, que critica a não participação feminina das questões relativas ao
eugenismo, Cecília Meirelles é convidada a escrever um texto sobre os temas
eugenistas. No entanto, o próprio sumário sugerido por Kehl acaba
delimitando qualquer espaço de criação sobre o tema da mulher e do
eugenismo. A perspectiva de elaboração do texto foi dada, agora caberia à
Cecília Meirelles responder.

Em 30 de abril de 1932, dia seguinte ao da carta enviada por Kehl,


Cecília responde ao convite para participar da Quinzena de Eugenia:

Convite que muito me honra, tanto pela obra a que


serve como pelas pessoas que a representam.
Vejo-me no entanto, obrigada a solicitar-lhe a fineza
de me desobrigar d’esse compromisso, por estar
empenhada em outros, anteriormente assumidos,
também para o mesmo mês de maio41

A recusa da escritora em participar desse evento sugere duas


perspectivas de análise. A primeira é que, sendo simpatizante do eugenismo
de fato, não pôde participar da referida quinzena por estar atarefada. A
segunda refere-se ao modo delicado como foi feita a recusa, muito polida e
educada, indicando também que pode ter sido uma recusa para não se
envolver com tais questões de modo ‘oficial’42, ou seja, escrevendo uma
palestra que levasse seu nome.

41
Cecília Meirelles à Renato Kehl, Rio de Janeiro, 30/04/1933.
42
O termo ‘oficial’ é usado aqui para explicitar uma prática pública, ou seja, publicação em
jornais e revistas, palestras em rádio e auditórios, conferências, etc. Ao contrário, existem
práticas não-oficiais de partilhamento de idéias que estão fora do público. Nas conversas de
gabinete, nas cartas e correspondências, nos saraus e jantares entre amigos, que não exige
daqueles menos envolvidos ou engajados uma postura explícita sobre o tema.

98
Desse modo, fica registrado o contato havido entre Kehl e Cecília
Meirelles, mais uma pessoa do meio intelectual brasileiro que, se não
partilhava dos ideais eugênicos, se relacionava com adeptos de tal teoria.
Essa constatação mostra também que, apesar dos lados ou das correntes
ideológicas a que possam pertencer, é na elite econômica, política e
intelectual que está grande parte dos interlocutores do eugenismo, ou seja, na
classe culta.

Quando, pouco acima, mencionamos o patriarcalismo no Brasil, torna-


se inevitável a associação dessa temática com um dos grandes pensadores
das primeiras décadas do século XX, que ficou imortalizado por sua obra
Casa-Grande & Senzala.43 Gilberto Freyre também se correspondeu com
Renato. Na verdade foi Renato quem escreveu a Gilberto Freyre, mas na
documentação disponível consta somente a resposta de Freyre à carta de
Kehl.

Nela, Freyre agradece a gentileza pelo envio do livro Sexo e


Civilização, publicado dois anos antes, e ressalta que este será de grande
ajuda para seus estudos iniciados em Casa-Grade e Senzala. Desta forma,
Gilberto Freyre sinaliza para a próxima pesquisa44, de que se ocupará a partir
de então:

(...)da decadência da família patriarcal no Brasil e


dos primeiros effeitos da miscigenação por um lado,
e da urbanização, por outro. Sem esquecer, é claro,
os persistentes effeitos do systema industrial
(escravidão), inclinado, como sou a dar importância
às influências do ambiente (euthenia).45

Como pode ser visto, a decadência da família patriarcal teria ocorrido,


segundo Freyre, em função, dentre outras coisas, da mudança de regime (da

43
Casa-Grande & Senzala teve sua primeira edição em 1932.
44
Pela descrição feita por Gilberto Freyre, a pesquisa a que se refere é para o livro que seria
publicado em 1936, Sobredos e Mucambos: decadência do patriarcado rural e
desenvolvimento urbano, pela Companhia Editora Nacional, São Paulo.
45
Gilberto Freyre à Renato Kehl, Recife, 05/05/1934.

99
escravidão ao industrialismo) gerado pelo desenvolvimento cafeeiro e
conseqüentemente da mudança do foco político e econômico do nordeste
para o Estado de São Paulo, nas primeiras décadas do século XX.

De todo modo, o desenvolvimento – principalmente paulista – gerou


preocupações por parte de políticos e pensadores brasileiros: miscigenação e
urbanização. De que forma as capitais dos Estados, sem infra-estrutura,
receberiam os negros libertos e todo o fluxo imigracional incentivado pela
União? Esse processo gerou um enchimento das capitais e péssimas
condições de vida e de trabalho ao trabalhador, agora livre e inserido num
novo mercado, não mais escravocrata.46

Importante pensar que, numa conjuntura política tão problemática e


complexa, a utilização do termo euthenia, visto como o estudo das influências
do meio ambiente, demonstra uma inclinação ao darwinismo social47. A idéia
da luta pela sobrevivência do mais apto e a eliminação dos mais fracos é
influenciada principalmente pelo meio ambiente, visto como clima,
desprezando a importância das relações sociais, políticas, econômicas na
composição da sociedade. Sabe-se o quanto é redutor e politicamente
perigoso considerar o clima como responsável por aspectos da vida cultural,
por exemplo: a preguiça do homem indígena ou a sexualidade das mulheres
nativas.

Além disso, a importante obra de Freyre tem passagens que indicam


certo machismo e racismo por parte do autor. Para elucidar, serão
apresentadas algumas passagens dessas palavras escritas em 1933.

Misturando-se [os portugueses] gostosamente com


mulheres de cor logo ao primeiro contato e

46
GALVÃO, Iraci. Trabalho, progresso e a sociedade civilizada.... op. cit., p, 26.
47
Darwinismo social: Corrente teórica da segunda metade do séc. XIX e primeira metade do
séc. XX, ou a doutrina por ela formulada, que aplica alguns princípios básicos da idéia
darwinista de evolução (como as de seleção natural, luta pela existência, e sobrevivência do
mais apto) ao estudo e interpretação da vida humana em sociedade. [A designação é
historicamente imprecisa, uma vez que as primeiras obras ligadas a essa corrente
antecederam a elaboração e publicação dos trabalhos de Charles Darwin em biologia.]
Apesar da imprecisão da definição indicada pelo dicionário, é oportuno utilizar o termo

100
multiplicando-se em filhos mestiços que uns
milhares de machos atrevidos conseguiram firmar-
se na posse de terras vastíssimas48

Há quem veja tal afirmação como recurso de linguagem, que usa a


ironia como meio de contar uma história de dominação dos portugueses sobre
os indígenas no território brasileiro. No entanto, esse tom despojado pode
adquirir um caráter depreciativo, pois coloca em xeque quem são essas tais
mulheres de cor que se misturavam com os portugueses, esses machos
atrevidos, termo que mais parece um elogio à esperteza e à perspicácia
portuguesa de conquistar a terra através da sedução das índias. A
interpretação é reforçada nesta outra afirmação:

(...) por qualquer bugiganga ou caco de espelho


estavam [as índias] se entregando, de pernas
abertas, aos ‘caraíbas’ gulosos de mulher49

Afirmações deste tipo mostram as mulheres indígenas como


promíscuas, o que ocidentaliza o julgamento aos indígenas que tinham uma
relação com o corpo e com o sexo certamente bastante diferente da européia.
As afirmações de Gilberto Freyre são tendenciosas e mostram o povo
indígena – e principalmente a mulher – como parte de uma etnia bastante
diferente da branca, ariana, européia e ocidental. As descrições dos indígenas
em relação ao branco não diferem muito daquelas feitas dos negros, como
poderá ser visto:

Não se negam diferenças mentais entre brancos e


negros. Mas até que ponto essas diferenças
representam aptidões inatas ou especializações
devidas ao ambiente ou às circunstâncias

darwinismo social por estar mais próxima à terminologia empregada pelos próprios
eugenistas na época. Dicionário Aurélio Digital, Século XXI. Editora Nova Fronteira, 2001.
48
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família brasileira sob o regime de
economia patriarcal. Rio de Janeiro/Brasília: Schmidt/INL MEC, 1980, p. 09.
49
Idem, p. 10.

101
econômicas de cultura é problema dificílimo de
apurar.50

Apesar da dúvida que deixa em relação às diferenças mentais entre


brancos e negros, não descarta o fator biológico como causa, admitindo assim
uma diferença de origem hierárquica e hereditária entre esses dois grupos. De
uma forma ou de outra, Gilberto Freyre atinge um outro extremo àquele
adotado pelos eugenistas, que apontam a hereditariedade como um dos
fatores principais para a superioridade racial, pois, sendo essa diferença inata,
acaba por desconsiderar as relações sociais e as condições de vida
produzidas pelos fatores econômicos e de cultura. Renato Kehl aponta a
degeneração e a superioridade dos povos como um problema de
miscigenação que deturpa o caractere racial próprio de cada raça. Por isso,
Kehl defende a união entre casais compatíveis intelectual e racialmente e vê
na miscigenação brasileira um aspecto da degeneração da espécie e da
nação.

Os eugenistas não podem, pois, ser favoráveis aos


cruzamentos de raças diferenciadas como seja
entre a branca e a preta, a branca e a amarela, a
indígena e a preta. (...) Só aberrações individuais ou
traições de momento, fazem com que um branco
procure uma preta ou uma branca aceite um preto.
No nosso país, entretanto, levantam-se algumas
vozes suspeitas, advogando tais cruzamentos ou os
admitindo inócuos para o futuro da nacionalidade.
(...) Quando pedimos notícias de mestiços capazes
de se emparelharem no valor físico, psíquico,
mental, com brancos sem mescla de sangues
heterologos, citam sempre a meia dúzia de homens
que todos conhecem, e que mais?51

50
Idem, p. 297.
51
KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 201.

102
A hibridização ou miscigenação, como era mais conhecida a mistura de
raças, era tema de grande debate na comunidade médica intelectual mundial.
Em fevereiro de 1929 Kehl recebeu cartas de Charles Davenport, diretor do
comitê de cruzamento de raças da International Federations os Eugenics
Organizations, solicitando um estudo sobre o cruzamento de raças durante as
duas últimas gerações no Brasil.

Esse estudo deveria obedecer a três critérios: 1, o local, província ou


principais regiões no Brasil em que ocorrem os cruzamentos; 2, as raças
envolvidas nesses cruzamentos e 3, o número de gerações em que a
hibridização tem ocorrido, mostrada em escala. Além disso, Davenport pede
referências e indicações de publicações relativas ao assunto e se há alguém
no Brasil que possa enviar-lhe fotografias.

Prontamente, Kehl responde à carta de Davenport destacando a


dificuldade que há no estudo do cruzamento de raças no Brasil, apesar de
vários cientistas estarem desenvolvendo estudos incipientes, e descreve
quatro problemas fundamentais a dificultar esse estudo:

(...) primeiro a vastidão territorial do nosso país;


segundo a diversidade de cruzamentos
processados nas diferentes regiões; terceiro, a falta
de uma investigação systematizada e orientada por
ethnologistas competentes; quarto, devo dizer,
embora constrangido, que tem concorrido para que
não se interessem pelo problema, preconceitos de
raça e receios de provocar melindres no seio da
maioria da população que é mestiça.52

O último motivo destacado mostra uma resistência à proposta


eugênica, ressaltando que esse discurso não era unívoco e homogêneo a
ponto de se tornar uma unanimidade, mesmo porque, como o próprio Renato
escreve, poderia provocar melindres, mas também desentendimentos políticos

103
entre a população e o governo, pois tal estudo poderia ser considerado
racista.

Na mesma carta, Kehl envia um anexo – que infelizmente não está na


coletânea de cartas – com seu ponto de vista sobre esse assunto e também
indica o nome de Roquette-Pinto (diretor do Museu Nacional) para o
fornecimento das fotografias e referências bibliográficas sobre o cruzamento
das raças no Brasil.

Outra carta de Davenport foi registrada somente três anos após a carta
de 1929, portanto em abril de 193253. Nesta ocasião, Davenport remete-se a
Renato não mais ocupando o cargo de diretor do comitê de cruzamentos de
raças da International Federation of Eugenic Organizations, mas como
presidente do 3º Congresso Internacional de Eugenia, que seria realizado em
1933. Ambas as entidades estavam sediadas no Museu Americano de
História Natural, com escritório em Cold Spring Harbor, Long Island. O
interessante é que foi exatamente no 3º Congresso Internacional que se
apresentou a árvore da eugenia, trabalhada no início desta pesquisa.54

A carta de Davenport mostra o interesse da Federação Internacional de


Organizações Eugênicas em afiliar o Brasil e suas organizações eugênicas ,
como membros fixos. Vale lembrar que do lado esquerdo da página em papel
timbrado em que a carta foi escrita aparecem todos os presidentes de
associações eugênicas em todo o mundo. Dispostos em ordem alfabética, os
países-membros e seus respectivos representantes estão perfilados de cima
para baixo. O primeiro deles é a Argentina; seu representante é Victor Delfino,
médico que presenciou a fundação da Sociedade Paulista de Eugenia em São
Paulo no ano de 1918.55 A formação da primeira sociedade eugênica na

52
Renato Kehl a Charles Davenport, Rio de Janeiro, 02/04/1929.
53
Charles Davenport a Renato Kehl, Nova Iorque, 04/04/01932.
54
Renato Kehl apresentou nesse congresso a tese Medidas para estimular a fecundidade dos
tipos superiores. In: KEHL, Renato. Lições de Eugenia, Op. cit., p. 24.
55
Annaes de Eugenia, op. cit., p. 177-178.

104
Argentina, com sede em Buenos Aires, deu-se posteriormente ao Brasil.56 Em
1932 o mesmo Victor Delfino, que estava em São Paulo prestigiando Kehl e
os eugenistas paulistas, foi mais bem sucedido, pois tornou-se membro da
Federação Internacional, coisa que Kehl não era. Além da Argentina, da
América Latina figurava na lista apenas Cuba, que tinha forte influência do
pensamento e da política norte-americana.57

Vê-se nesse breve demonstrativo que diversos países estavam


envolvidos com as questões relacionadas ao eugenismo, cruzamento de
raças, controle de casamentos e nascimentos, normatização da imigração,
assim como na seleção e investimento no melhoramento da raça. A união
desses países mostra a interlocução de experiências e, além disso, forma um
campo político de força para a discussão de suas idéias.

Finaliza-se a análise desta seleção de cartas com um dos mais


polêmicos teóricos brasileiros, Oliveira Vianna (1883-1951). A primeira
correspondência entre Renato Kehl e Oliveira Vianna data de 01/09/1931. Ela
responde a um pedido feito por Kehl em nome da Comissão Central Brasileira
de Eugenia ,para que Oliveira Vianna respondesse a um questionário sobre a
eugenia dos nossos grupos nacionaes e ethnicos58.

Desculpando-se pelo longo tempo sem dar satisfação sobre o


questionário enviado por Kehl, Oliveira Vianna argumenta o porquê de não ter
respondido à solicitação do eugenista:

Não lhe digo meu pensamento sobre seu


questionário porque estou com um livro quase
prompto, onde o seu questionário se acha
respondido com detalhes completos (...) e terá
então a resposta ao questionário que teve a grande
gentileza de me mandar.

56
Victor Delfino fundou em 1932 a Associação Argentina de Biotipologia, Eugenia e Medicinal
Social. In: PELAEZ, Raquel Alvarez. La eugenesia en America Latina, Op. cit., p. 127
57
Os países representados na International Federation of Eugenics Organizations eram:
Argentina, Áustria, Cuba, Tchecoslováquia, Dinamarca, Estônia, Finlândia, França, Alemanha,
Grã Bretanha, Itália, Noruega, Polônia, Rússia, África do Sul, Suécia e Holanda.

105
O fato de Oliveira Vianna não ter respondido ao questionário enviado
por Kehl, por estar ocupado com o lançamento de um livro sobre o tema da
eugenia dos grupos nacionais e étnicos no Brasil, demonstra um certo
segredo por parte do intelectual diante de uma nova produção. O livro a que
se refere Oliveira Vianna na carta é Raça e Assimilação,59 lançado em 1932,
talvez o texto mais polêmico desse autor. Num dos trechos desse livro,
Vianna, discute a inferioridade do negro em relação à raça ariana:

Em relação ao negro puro, minha opinião é de que,


para certos tipos de inteligência superiores, ele
revela, na sua generalidade uma menor
fecundidade do que as raças arianas ou semitas,
com que ele tem estado em contato (...) Neste
ponto [a proporcionalidade de capacidade
intelectual superior entre brancos e negros], as
duas raças são desiguais – e esta desigualdade se
reflete na desigualdade da riqueza eugenística das
suas elites respectivas.60

Esta clara apresentação de que a raça negra constitui-se de elementos


menos dotados em relação à raça branca acaba por ser seu argumento
principal para a defesa que faz da miscigenação da raça negra como forma de
integração na sociedade. Tal como Gilberto Freyre, a miscigenação é vista
como fim para a elevação da ‘qualidade’ racial no Brasil, que passaria a ter
‘tipos’ mais inteligentes por possuírem os miscigenados características
positivas da raça branca e da raça negra ou indígena, desde que esse
processo fosse selecionista. Oliveira Vianna enfatiza o selecionismo norte-
americano que, através de uma política imigracionista, propõe a identificação
nas diferentes raças de seus melhores tipos (mais inteligentes, mais fortes,
mais belos, mais saudáveis, mais ricos). Por este princípio, a miscigenação
não seria negativa, pois em todas as raças há os bons e os maus, apesar de

58
Oliveira Vianna a Renato Kehl, Niterói, 01/09/1931.
59
VIANNA, Oliveira. Raça e Assimilação. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1932.
60
Idem, p.68.

106
ser possível nascer dos bons, maus e dos maus, bons. Mas o critério principal
é que crê que entre os negros há menos aptos do que entre os brancos.61

Poucos dias depois, Kehl escreve uma nova carta62 a Oliveira Vianna
insistindo na possibilidade de que lhe enviasse uma pequena súmula desse
trabalho para ser publicado no Boletim de Eugenia, que como foi verificado
não foi fornecido.

Toda a necessidade de discutir os problemas nacionais, principalmente


aqueles ligados às raças que compõem o povo brasileiro, estava presente na
maioria das cartas arroladas. Normalmente de cunho íntimo e pessoal, havia
também aquelas que tratavam dos assuntos de interesse nacional, enviadas
de forma oficial. Na década de 1930 foi formada uma comissão empenhada
em discutir a seleção da imigração no Brasil. Era formada por Renato Kehl,
Roquette-Pinto, Raul de Paula, Conde N. Debané e Dulphe Pinheiro
Machado, que foram nomeados pelo Ministro do Trabalho e presidida por
Oliveira Vianna, que entre 1932 e 1940 ocupou o cargo de consultor jurídico
do ministério recém-criado. O trabalho dessa comissão preparar um
anteprojeto de regulamentação da imigração para o ‘Código de Imigração’.63
Se o presidente de tal comissão partia do pressuposto de que o japonês é
como o enxofre, insolúvel,64 nota-se a tônica dos debates sobre a questão
imigratória.

Numa carta em papel timbrado do Ministério do Trabalho, Indústria e


Comércio, Oliveira Vianna, em tom formal, cumprimenta Kehl, remetendo-lhe
todo o material relativo à imigração e colonização, para que os membros da
comissão pudessem estudar, a fim de desempenhar esta missão65.

61
Idem, p. 210. Citado também em KEHL, Renato. Sexo e Civilização, Op. cit., p. 201.
62
É nesta carta de 04/09/1931 que Renato Kehl pede a Oliveira Vianna para visitá-lo em
Niterói, pois ainda não se conheciam pessoalmente.
63
KEHL, Renato. Lições de Eugenia, Op. cit., p. 243-250.
64
Idem, p. 256.
65
O termo missão é visto como uma tarefa que carrega um compromisso quase religioso, o
que no caso dos eugenistas, parece um tanto paradoxal, pela postura científico-progressita
que adotavam.

107
Tenho a honra de enviar a V.Ex. toda a legislação
nossa relativa á immigração e colonização. Como
dentro em pouco nos reuniremos para o
desempenho da missão que nos confiou o Sr.
Ministro do Trabalho, pareceu-me que seria útil a
V.Ex. ter em mãos as novas leis relativas ao
assumpto que iremos tratar.66

O desenvolvimento de políticas públicas que pudessem controlar a


composição racial brasileira impregnada de idéias eugênicas espelhava o
empenho não só de Renato Kehl, considerado o representante da eugenia no
Brasil, mas também de muitos outros interessados na ‘elevação da pátria’.
Como afirmou Mario Pinto Serva, um desses evangelizadores67:

O Brasil está feito. Quando perguntamos nós,


poderemos dizer, - também o brasileiro?68

Tal afirmação mostra o quanto, na opinião dos eugenistas, o brasileiro,


entendido aqui como povo, pode ser construído, manipulado e moldado.
Trata-se principalmente de ver esse povo, ao mesmo tempo, como coletivo e
indivíduo passíveis de manipulação, já que compunham a nação que deveria
ser construída com a ajuda de médicos e seu tão proferido conhecimento
científico sobre o homem. Neste sentido, concluímos com o trecho de uma
carta datada de 17/03/1936 em que o general Meira de Vasconcelos afirma:

(...) a doctrina da seleção deve ser encarada


resoluta e patrioticamente pela classe médica69; a
necessidade da lei de esterilização dos typos
inferiores, quer por degeneração, quer no escalão

66
Oliveira Vianna a Renato Kehl, data desconhecida, aproximadamente 1935, Rio de Janeiro.
67
Novamente o termo cunhado pelo próprio Kehl remete a uma função proselitista e religiosa,
vista por nós como artifício lingüístico de conquista e sedução. In: KEHL, Renato. Sexo e
Civilização, Op. cit., p. 33.
68
Idem.
69
A classe médica é vista aqui como a única classe capaz de resolver os problemas do Brasil
e é deste poder que vão se investir para conquistar os setores mais diversos da sociedade.

108
de raças que não nos convenham, se impõe para a
melhoria gradativa das gerações futuras.70

A melhoria das gerações futuras, almejada não só por Meira de


Vasconcelos, mas também pelos eugenistas, implicava o desenvolvimento de
práticas que pudessem ser implantadas em larga escala. Esterilização,
educação e regulação dos nascimentos e casamentos eram medidas
previstas pelos eugenistas. Para sua implantação, diversos setores deveriam
estar envolvidos na empreitada. Do direito à medicina, da educação à
sexualidade, diversos eram os setores ou braços dos envolvidos no
eugenismo brasileiro. Também na literatura foi encontrado mais um desses
interlocutores, Monteiro Lobato.

70
Gal. Meira de Vasconcelos à Renato Kehl, Rio de Janeiro, 17/03/1936.

109
2. “O Choque das Raças” 71

O Choque das Raças é o título de um romance de Monteiro Lobato,


que conta mais ou menos o seguinte:

Ayrton Lobo mora no Rio de Janeiro e trabalha numa financeira, a Sá,


Pato & Cia. Após comprar um Ford, é designado por seus dois chefes para
liquidar um negócio perto de Friburgo, também no Estado do Rio de Janeiro.
Mas ao atingir a velocidade de 60 quilômetros por hora, o máximo que
chegava seu ‘fordinho’, se distrai com a paisagem e sofre um acidente, que o
deixa desacordado.

Acorda num palacete, a casa do Sr. Benson, um homem misterioso,


que tinha diversos criados, todos mudos. Recebe Ayrton dizendo que a partir
de agora será seu confidente e viverá ali. Nada do que escutasse poderia ser
dito a ninguém.

Benson, caracterizado pelo autor com o estereótipo de sábio, usava


óculos de ouro. Era elegante, falava devagar e conhecia as “coisas da
natureza e ciência”. Tinha uma filha chamada Miss Jane. O anfitrião leva o
hóspede para conhecer o laboratório e lhe explica todo seu esforço ao longo
de sua vida para construir uma máquina, o porviroscópio, que pode ir ao
passado e ao futuro, captando determinado momento histórico através de um
“corte anatômico”, que se pode visualizar em um globo de cristal.

Contudo, alguns dias depois o Sr. Benson morreu, por causa de sua
idade avançada, levando consigo a solução técnica do aparelho que lhe
custou toda a vida para construir. Destruiu papéis e peças mestras e incumbiu
sua filha de relatar o drama do Choque das Raças nos Estados Unidos no ano
de 2228, a história mais interessante vista no porviroscópio. Em troca, Ayrton
deveria transformar essa informação em livro. Em vários encontros
dominicais, Jane conta a Ayrton como se desdobrou o ‘grande choque’.

71
Este livro foi publicado em 1926 pela Companhia Editora Nacional e reeditado em 1945
pela Brasiliense sob o nome de O Presidente Negro ou O Choque das Raças.

110
Ela descreve a formação do povo americano ao longo dos séculos,
afirmando que para lá foram os elementos mais eugênicos das melhores
raças européias, por conta dos incentivos à imigração. É nos Estados Unidos
onde vive a força vital da raça branca. Desta forma, a Europa perdeu seus
melhores elementos e acabará pigmentada pelos amarelos no século XXIII. O
único erro cometido pelos Estado Unidos em sua composição foi o elemento
negro. O não cruzamento entre as raças branca e negra, continua Jane, gerou
uma barreira de ódio, mas conservou as duas raças puras, diferentemente do
Brasil, que mediocremente fundiu-as, descaracterizando-as, tendo o branco
sofrido uma inevitável piora de caráter.

Era 2228, o Brasil cindiu-se em dois: a República do Paraná e o Vale


do Amazonas. O primeiro era um imenso foco industrial, centralizador, às
margens do Rio Paraná, com clima temperado e formado pela parte sul-
sudeste do Brasil, além de Argentina, Uruguai e Paraguai. Já o Vale do
Amazonas, era uma república tropical resultante do desequilíbrio sanguíneo
da fusão das quatro raças: branco, negro, vermelho e amarelo, que era
predominante.

Vivia-se nos Estados Unidos a vitória da eugenia iniciada no início do


século XX. Após ‘esvaziar’ a Europa, formaram-se os mais perfeitos tipos de
beleza plástica, as mais fortes inteligências, os mais puros valores morais.
Usavam o princípio de Francis Galton, de que qualidade vale mais que
quantidade, e que para a raça branca funcionou como um controle de
nascimentos. No entanto, no século XX, a raça negra não oferecia grande
ameaça, já que estavam segregados pelas leis eugênicas, conservando a
raça negra pura. Mas, ao contrário do princípio de Galton, a raça negra se
preocupava com a quantidade.

Foi adotada nos Estados Unidos uma lei espartana, que reduziu a
quase zero o número de ‘desgraçados’ por defeito físico, e a Lei Owen, do
remodelador da raça branca americana. No livro O Direito de Procriar, diz
Jane, Walter Owen lançou os fundamentos do Código de Raça, que promoveu
a esterilização dos tarados, mal-formados mentais, de todos os indivíduos, em
suma, capazes de prejudicar com má progênie o futuro da espécie.

111
Desapareceram os peludos, os surdo-mudos, os aleijados, os loucos, os
morféticos, os histéricos, os criminosos natos, os fanáticos, os gramáticos, os
místicos, os retóricos, os vigaristas, os corruptores de donzelas, as prostitutas,
a legião inteira de mal-formados no físico e no moral, causadores de todas as
perturbações da sociedade humana.

Mas apesar de sofrer os mesmos processos restritivos dos brancos, a


raça negra cresceu mais que as dos brancos, chegando à proporção da
metade no século XXIII. Predominavam então duas correntes de idéias para
solucionar o problema racial nos Estados Unidos. A ‘solução branca’ que
queria e expatriação do negro para o vale do Amazonas e a ‘solução negra’
que queria dividir os Estados Unidos em dois, o sul negro e o norte branco. No
entanto, a Constituição americana estaria ameaçada diante da ‘solução
branca’, pois perante a lei todos são iguais, além do fato de que os negros
não queriam abrir mão de sua cidadania.

Do ponto de vista estético o negro não era mais negro. A ciência já


havia resolvido o problema de pigmentação dos negros que apresentavam
uma cor esbranquiçada semelhante à das mulatas. No entanto, não havia sido
resolvido o problema do ‘encarapinhamento’ dos cabelos. Politicamente, a
raça negra tinha um representante chamado Jim Roy, uma mistura de
senegalês com pele-vermelha (apesar de não haver um só índio naquela
região). Jim era uma liderança que carregava consigo o poder de unificar a
raça negra em torno de um partido, a Associação Negra, e seus adeptos (54
milhões de pessoas) agiam como autômatos.

Outros dois partidos existiam em 2228. O Partido Masculino que tinha


como presidente em fim de mandato e candidato a reeleição o Sr. Kerlog.
Constituído por 51 milhões de vozes, era a expressão da vitória da Eugenia e
do Arianismo. Havia também o Partido Feminino, constituído por 51 milhões e
meio de mulheres, tinha como candidata à eleição Evelyn Astor, que quase
ganhou a última eleição; sua beleza era tão harmoniosa que tinha força de
dominação.

112
O Partido Feminino tinha como ideologia central a tese de Georgia
Elvin, autora de Simbiose Desmascarada, que afirmava que a mulher não
constituía a fêmea natural do homem. A mulher original foi extinta ainda na
pré-história e foram as sabinas, roubadas de seus machos originais, que eram
anfíbios. A grande busca desse partido, além da igualdade de direitos já
conquistada, era reencontrar seu macho original. Eram as mulheres uma raça
diferente daquela dos Homo sapiens – elas pertenciam à raça das Sabinas
mutans.

Às vésperas da 88ª eleição para presidente dos Estados Unidos,


estavam sendo costuradas as alianças. Era decisivo o apoio de Jim Roy a um
dos dois partidos, como de costume. De Kerlog, Jim queria a atenuação da
Lei Owen, mas Evelyn Astor queria a união das raças sabina e negra, que
foram espezinhadas durante séculos. A princípio, ele não apoiou diretamente
nenhum dos dois grupos e disse que se pronunciaria somente 1 hora antes do
início do pleito.

Nas eleições, o sistema de voto funcionava da seguinte forma: os


eleitores não precisavam sair de casa para votar. Radiavam (mandar
informações através de ondas de rádio) seus votos em direção a central de
Washington, que eram recebidos e apurados automaticamente, sendo
impressos com letras de néon nos painéis de fronte ao Capitólio. As
possibilidades de fraude não existiam, tendo em vista o sucesso da eugenia,
que elevou o nível moral do povo. O pleito durava cerca de uma hora
somente.

No dia da eleição, todos aguardavam a posição de Jim Roy. E ele se


pronuncia: ‘O candidato da raça negra é Jim Roy!’. Miss Astor desmaia e
propõe imediatamente apoio a Kerlog. Há um arrependimento feminino e
todos passam a desprezar a teoria elvinista e declaram: ‘Só a união da raça
branca nos salvará’. Afinal o homem branco era o marido milenar da mulher.

Diante do problema da eleição de Jim Roy e da iminência da separação


dos Estados Unidos, foi organizada a Convenção da Raça Branca. Foram
convocados os seis representantes mais importantes da sociedade. Além de

113
Kerlog, eram eles: George Abbot (indústria – chefe da indústria de bonecos
falantes); John Perkins (comércio – comercializava peles de lontra branca);
Harmworth (Finanças – diretor do Banco Universal); John Leland (Artes –
criador da Puericultura Estética); John Dudley (Ciências – pai da cor nº8 e
autor de 72 invenções) e Dorian Davis (Letras – poeta de um soneto único).

Na Convenção, Kerlog pede aos membros lhe dessem as ‘razões da


raça’ diante do problema da eleição do presidente Jim Roy. Quinze minutos
depois John Leland apresenta uma moção que é lida e ouvida no mais
absoluto silêncio e aprovada por unanimidade. Era a solução teórica para o
problema, que ficou guardada em mais absoluto segredo. A solução prática
veio uma semana após a Convenção, por obra de John Dudley, que realizou
sua 73ª invenção.

Tendo estudado por longos anos o problema do ‘encarapinhamento’ do


cabelo negro, descobriu uma solução para alisá-lo e torná-lo igual ao da raça
branca. Através de três aplicações de três minutos cada ao custo de dez
centavos cada, os Raios Omega seriam a solução para igualar brancos e
negros na aparência física. Formaram-se Postos Desencarapinhantes ao
mesmo número dos postos de vacinação. Não se falava em outro assunto.
Multiplicaram-se as fábricas de pentes, grampos, loções, xampus, brilhantinas
e tinturas, que trabalhavam dia e noite sem conseguir atender à procura.
Novos cabeleireiros surgiram.

A raça negra esqueceu a política, e o dia da posse de Jim Roy


aproximava-se. Após três meses da invenção dos raios Omega, 97% da
população negra já estava ‘omegada’. Até Jim Roy se omegara. No entanto,
sentiu que sua força vital diminuíra. Mas Jim iria dividir a América!

Na véspera da posse, o presidente em exercício Kerlog vai visitar Jim


Roy. E diz: O branco veio assassinar-te... Trago na boca a palavra que mata!
Não penetrarás na casa Branca, lá não cabe Sansão de cabelos cortados.
Tudo é inútil quando o futuro não existe. Não há moral entre raças, como não
há moral entre povos. Há vitória ou derrota. Tua raça morreu, Jim. O branco
deu um ponto final no negro da América.

114
Jim Roy surpreso contesta: Os raios Omega!!!

- Sim, os raios de John Dudley possuem virtude dupla. Ao mesmo


tempo que alisam os cabelos...

- Esterilizam o homem!!!

- Perdoa-me, Jim...

No dia seguinte, Jim Roy é encontrado morto em seu gabinete. Um dia


antes, a pedido de Kerlog, Abbot lançou uma nova boneca que dançava tango
que desviou a atenção da população para a morte de Jim.

O choque das raças fora prevenido, o que valeu por uma segunda
vitória da eugenia. A sociedade, livre de tarados, viu-se no momento do
embate isenta dos perturbadores ao molde dos retóricos e fanáticos cujas
palavras outrora impeliam as multidões aos piores crimes coletivos. Assim, a
vitória negra foi vista como mero incidente na história americana. Um ano
após a Convenção, a natalidade negra cai a 97%, e os efeitos dos raios
Omega ficaram em mais absoluto segredo.

A moção proposta por Leland na Convenção que havia sido mantida


também em segredo dizia o seguinte: “A convenção da raça branca decide
alterar a Lei Owen no sentido de incluir entre as taras que implicam a
esterilização o pigmento negro camuflado. A raça branca autoriza o governo
americano a lançar mãos dos recursos que julgar convenientes para a
execução desta sentença suprema e inapelável”.

Assim, frio como o corte de um bisturi, um grupo de cento e oito


milhões de pessoas foi extinto sem que ninguém percebesse.

Décadas depois, no maravilhoso jardim americano onde só brotavam


camélias de pétalas levemente acobreadas pela força misteriosa do geo-
ambiente, erguia-se, ao alto do monumento de gratidão erigido pelo sócio
branco ao sócio negro, o busto do velhinho Dudley que curou a dor de cabeça
histórica do 87º presidente dos Estados Unidos.

Após finalizar a história, Ayrton, apaixonado por Jane, investe em sua


paixão e beija-a, encontrando finalmente a mulher de seus sonhos.

115
* * *

Esse é o único romance escrito por Monteiro Lobato em 1926, mesmo


ano em que o filme “Metropolis”72 é lançado na Alemanha de Weimar. Nesse
filme, Maria é uma mulher-máquina que manipula os trabalhadores da cidade
baixa – subterrânea. Os trabalhadores vivem no ritmo marcado das máquinas,
com movimentos repetitivos, num ambiente insalubre e sombrio. A rebelião
dos trabalhadores, escravizados pelas máquinas, termina com a reconciliação
das duas classes, a dominante, que vivia na cidade alta com arranha céus e a
alta tecnologia, e a classe trabalhadora.73

No Brasil, em um pequeno romance, Lobato descreve a sociedade do


futuro. Após a vitória da eugenia, amplamente implantada no início do século
XX, os Estados Unidos se depararão com o problema racial mais forte de toda
a sua história, a eleição de um presidente negro.

No ano seguinte da publicação deste livro, Monteiro Lobato seguiria


para os Estados Unidos para ocupar o cargo de adido comercial junto ao
consulado brasileiro de Nova Iorque. Mesmo tendo sido publicado em partes
no jornal A Manhã74, afirma-se que foi escrito com a intenção de ganhar o
mercado norte-americano e tornar-se um best-seller, mas ao que parece, teve
mais visibilidade no Brasil do que nos Estados Unidos. De acordo com as
cartas publicadas no livro Obras Completas de 194575, Lobato confessa a
Heitor de Morais, seu cunhado, em 19 de junho de 1926:

72
Metropolis, Alemanha, 1926. Fritz Lang (diretor), produção da UFA. Para saber mais ver:
DUTRA, Roger Andrade. Metrópolis: Cinema, Cultura e Tecnologia na República de Weimar.
Mestrado em Historia. PUC/SP, 1999.
73
KRACAUER, Siegfried. De Caligari a Hitler. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1988, p.
175.
74
Escrito em três semanas para o jornal dirigido por Mário Rodrigues e publicado entre 5 de
setembro e 1 de outubro de 1926. Carta dos editores. LOBATO, J.B. Monteiro. O Choque das
Raças. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945 (2ª Edição). Para maiores informações ver
também: AZEVEDO, C., CAMARGOS, M. e SACCHETTA, V. Monteiro Lobato: furacão na
Botocúndia. São Paulo: Ed. Senac, 1997 e sobre Monteiro Lobato e sua relação com o
fordismo ver: CAMPOS, André Luiz Vieira de. A república do pica-pau amarelo. São Paulo:
Martins Fontes, 1986.
75
Obras Completas de Monteiro Lobato. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945. Foram
editadas posteriormente com o nome de Cartas Escolhidas. São Paulo: Editora Brasiliense,
1959. Ocupam o volume 16 e 17 do Obras Completas.

116
O Choque já saiu em São Paulo, mas ainda não vi.
Esse livro vai mudar o rumo da minha vida. O
consulado americano está interessadíssimo nele.
Viva o talento, Seu Heitor.76

Assim, o primeiro romance do pai do Jeca Tatu foi escrito já com a


intenção de publicação no ‘estrangeiro’. Mas o que ocorreu de fato foi a
recusa desse livro, devido a seu conteúdo polêmico, que questionava a
crueldade dos brancos americanos diante da raça negra. Quase um ano
depois de lançá-lo no Brasil, Lobato ainda polemizava a respeito nos Estados
Unidos. Numa carta a Gastão Cruls, em 10 de dezembro de 1927, revela:

(...) Tudo depende da saída do meu ‘choque’, e do


escândalo que ele causar. Um escândalo literário
equivale no mínimo a 2.000.000 de dólares para o
autor e com essa dose de fertilizante não há Tupy77
que não grele. Esse ovo de escândalo foi recusado
por cinco editores conservadores e amigos de obras
bem comportadas, mas acaba de encher de
entusiasmo um editor judeu que quer que eu refaça
e ponha mais matéria de exasperação. Penso como
ele e estou com idéias de enxertar um capítulo no
qual conte a guerra donde resultou a conquista
pelos Estados Unidos do México e toda essa
infecção spanish da América Central. O meu judeu
acha que com isso até proibição policial obteremos
– o que vale um milhão de dólares. Um livro
proibido aqui sai na Inglaterra e entra bootlegged
com whisky e outras implicâncias dos puritanos.78

76
Idem, p. 200.
77
Lobato refere-se aqui à editora que pretendia montar nos estados Unidos para publicar
livros de autores brasileiros, mas a idéia não vingou. AZEVEDO, C. Op. Cit., p.217.
78
LOBATO, M. Cartas Escolhidas. Op.Cit., p. 146.

117
Contando já com um escândalo literário, Lobato tentava agora adaptar
o texto para conseguir publicá-lo ali. Contudo, o texto original do Choque não
foi alterado, tampouco publicado nas terras do Tio Sam. Entende-se um dos
motivos da não publicação do texto. Já em finais da década de 20 circulava no
meio eugenista uma tendência que se confirmaria na década de 30, de que o
negro tinha seu potencial e havia dado sua contribuição na formação dos
Estados Unidos. Sob o nome de ‘culturalismo’79, admitia a raça negra na
composição norte-americana, mas como raça distinta da branca. Como dito
anteriormente, nos Estados Unidos, o culturalismo gerou uma situação
segregacionista, que separou os brancos genuinamente norte-americanos dos
negros, chineses, japoneses, indianos e latinos, sem contar o
desaparecimento dos nativos indígenas, desde os princípios da colonização
daquele país.

Os desdobramentos do texto são impressionantes e oportunamente


suas descrições serão mostradas, pois acredita-se que, diferentemente do
que se divulga pelos especialistas em Monteiro Lobato, esse texto foi escrito
também com a finalidade de divulgar a eugenia no Brasil, e não somente com
o intuito de tornar-se um best-seller norte-americano.

Vê-se um Lobato complexo e ambíguo cuja orientação dificilmente


poderá ser definido, já que, sendo fruto de seu tempo e com visão
vanguardista, ora foi reacionário, ora moderno, e por vezes as duas coisas
simultaneamente. Por isso, não quero questionar o cunho racista do texto,
pois teríamos de relacioná-lo com toda a sua obra, já que o tema é bastante
polêmico em relação à representação do negro na obra lobatiana80. Os
trabalhos que analisam os textos de Lobato citam muito pouco o Choque,
como se o autor nunca estivesse envolvido com a temática eugênica. Nesta
dissertação, o romancete de Lobato foi escolhido porque aponta perspectivas
para investigar suas descrições literárias em relação ao problema racial e ao

79
Teoria antropológica defendida por Franz Boas e aceita por Gylberto Freire quando
desenvolve o conceito de democracia racial no Brasil.
80
Ver na net: LAJOLO, Marisa. Negros e negras em Monteiro Lobato, para Octávio Ianni.
Unicamp/IEL, 1998. Net: http://www.as.miami.edu/las/negrolobato2.html. Acesso em:
22/11/2002.

118
sucesso da eugenia no futuro fictício de 2228. Em outras palavras, para além
da questão de raça, o que será enfatizado é seu cunho eugenista. Sob a
justificativa de contar uma história de amor entre Ayrton e Jane, interessa aqui
ver a história de amor entre o futuro e a eugenia, ou sobre o presente de 1926
e a eugenia como projeto de um futuro ideal.

Contudo, não se pode relativizar as declarações de cunho racista de


Lobato pelo fato de ter ele criado a Tia Anastácia81 e de ter mostrado a
opressão sofrida pelos negros em Negrinha. No Choque, sem pudor nenhum,
Lobato faz a defesa dos ideais eugênicos – assumidamente, em carta
particular escrita a Kehl, declara que é adepto de tal teoria. Em carta
endereçada a Kehl em 192682, afirma:

Renato, Tu és o pae da eugenia no Brasil e a ti


devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-
eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no
frontispício, mas perdoai a este estropeado amigo83.
(...) Precisamos lançar, vulgarizar estas idéas. A
humanidade precisa de uma coisa só: poda. É
como a vinha. Lobato

Além de declarar seu texto como grito de guerra pró-eugenia,


diferentemente do que pregam alguns textos que tratam da obra crítica de
Lobato, o romance não é um texto encomendado só para agradar ao público
norte-americano. O escritor afirma de forma veemente a necessidade de
vulgarizar estas idéas [eugênicas]. Declarando que “a humanidade precisa de

81
A Tia Anastácia foi criada muito depois da consolidação da imagem da “preta gorda e
beiçuda” nas antigas black-face norte-americanas do século XIX. Mammy era a negra
escrava, assexuada, representando o oposto da mulher branca submissa ao marido. Ao
contrário, ela era ligada às atividades domésticas, ao campo sendo gorda e forte, e seu
marido (Sambos) submisso a ela. Na imaginação dos brancos, Mammy representava a família
anti-natural apesar de mostrar uma vida no campo sem conflitos entre senhor e escravo. Ver
na net: http://joseph.oasismag.com/stories/storyReader$17. Acesso em: 20/11/2002
82
Monteiro Lobato a Renato Kehl, São Paulo, 1926.
83
Apesar das desculpas dadas por Lobato, o texto foi dedicado a Arthur Neiva e Coelho Neto,
dois grandes atuantes nas políticas de saúde pública nacional, assim como na rede de
relações eugenista.

119
poda”, é importante enfatizar que, nesse momento, Lobato não está fazendo
uma crítica só ao problema racial e eugênico brasileiro, mas mundial.

Além disso, uma outra problemática se apresenta. A ficção futurista de


Lobato contém em si a junção de todos os desejos e medos de uma
sociedade eugenizada. Para isso, entende-se o trabalho literário como fonte
investigativa e rico meio de pesquisa e compreensão sobre o ‘espírito de uma
época’. Houve na historiografia, durante muitos anos – e ainda há – uma
necessidade de se colocar em lugares opostos a verdade e a ficção. Seja
para firmar o ofício dos historiadores do século XIX (empiricista) com a função
de relatar de maneira objetiva a realidade de um passado através de um
discurso neutro, seja pela própria necessidade de conferir ao relato
imaginativo ou literário um status de inverossimilhança sem quaisquer
elementos históricos ou científicos, como se esses relatos – vistos como
puramente poéticos – tivessem determinada autonomia em relação a seu
autor e às condições de espaço-tempo, econômicas, sociais e culturais, vistas
como mero reflexo.

Optou-se aqui, porém, por observar e utilizar a obra de Monteiro Lobato


como fonte histórico-literária, tendo em vista as afirmações de dois
historiadores. Keith Jenkins e Hayden White84. Eles afirmam de maneira
consonante que a história é um modo de contar e ver o mundo, por meio da
linguagem, que só se consolida através do trabalho do historiador, que vai
impregnar determinado relato do passado com seus anseios do presente. O
mesmo pode ser dito da literatura ou da poesia. Os dois ofícios trabalham com
a linguagem. Nas palavras de White: poetizar não é uma atividade que paira
sobre a vida ou a realidade, que as transcende ou permanece alienada delas,
mas representa um modo de práxis que serve de base imediata para toda a
atividade cultural, e até mesmo para a ciência.85

84
Dois livros de grande relevância para este trabalho e principalmente para este capítulo
foram: JENKINS, Keith. A História Repensada. São Paulo: Editora Contexto, 2001 e WHITE,
Hayden. Capítulo 5. As ficções da representação factual. In: Trópicos do Discurso. São Paulo:
Editora Edusp, 1994, p.137-151.
85
WHITE, Hayden, op. cit., p. 12.

120
Desta forma, o que vai delimitar o espaço de trabalho dos historiadores,
para que seu ofício seja uma ciência-arte, são as fontes. O passado obedece
à minha interpretação e à eleição de minhas fontes. Elas [as fontes] impedem
a liberdade total dos historiadores e, ao mesmo tempo, não fixam as coisas de
tal modo que se ponha mesmo fim a infinitas interpretações. Sendo o objeto
de trabalho dos historiadores o passado, em seu trabalho restam-lhes apenas
os registros desse passado, que conseqüentemente se tornarão relatos
lingüísticos. Nenhum relato consegue recuperar o passado tal qual, porque o
passado é repleto de acontecimentos, relações, sons, cheiros, sensibilidades
e não somente um relato escrito. À história cabe analisar a precisão dos
relatos dos historiadores, sendo as interpretações meras variações. O estudo
da história é o estudo da historiografia, por conseqüência a história é a própria
historiografia e não um adendo dela.86

Portanto, acredita-se que o texto de Lobato aposta no projeto


eugenizador das primeiras décadas do século XX, implantado nos Estados
Unidos e difundido no Brasil como forma de equacionar um problema não
somente racial, mas também moral. O Choque mostra fendas ou fissuras que
abrem caminhos para a discussão de questões muito debatidas nessas
décadas, tais como: a imigração, o progresso dos povos, os avanços da
ciência e da tecnologia, da estética e da beleza, assim como da civilização,
evidenciando algumas facetas da vida social e política que tinham em vista a
domesticação dos corpos, para torná-los mais aptos para o trabalho.

Desta forma, o texto de Lobato parte do rádio – visto como expressão


da modernidade em 1926 – como elemento impulsionador dos
desenvolvimentos tecnológicos até o futuro de 2228, onde se desdobra a
história. Nesse futuro, a descoberta de novas ondas, e o transporte da
palavra, do som e da imagem, do perfume e das mais finas sensações
tácteis.87 A partir de então, a vida se transformara e a importância do rádio
transporte era fundamental. As pessoas não precisavam mais se locomover

86
JENKINS, Keith. op. cit., p. 32.
87
LOBATO, J.B.M. O Choque das Raças. São Paulo: Editora Brasiliense, 1945 (2ª edição),
p.109.

121
para executar suas tarefas. Tudo era transmitido por ondas.88 Mudanças
importantes também ocorreram na imprensa. Os jornais não tinham mais
amontoados de jornalistas dentro da redação. As matérias, imagens e notícias
eram rádio-transportadas das casas dos colaboradores e diretamente
impressos em caracteres luminosos num quadro mural existente em todas as
casas.89

Por tudo isso, a ficção de Lobato relata que no ano de 2228 o


transporte, que era visto como um grande problema, fora solucionado. Diz
também, que após a invenção da roda, toda a civilização industrial ocupou-se
em desenvolvê-la e extrair dela todas as suas possibilidades. Até nas
moedas... que são redondas. Mas o diagnóstico dado por Lobato é que o
rádio matará a roda. Em função dos transportes de dados através das ondas,
os homens passaram a desfrutar novamente do caminhar a pé e a perder a
pressa. Lobato mostra o quanto o espaço urbano já se tornara um fluxo de
multidões visto como caótico em 1926.

Em suas descrições de como seriam as cidades no século XXIII afirma


que as ruas tornaram-se amáveis, limpas e muito mansas ao tráfego. Por elas
deslizavam ainda veículos, mas raros (...) A pressa é índice apenas de uma
organização defeituosa e anti-social.90

O mais belo de ser visto em toda a cidade era a vida noturna. Toda a
iluminação pública e residencial era artificial, com luz fria, onde se via que por
dentro e por fora eram pintadas as casas de uma tinta de luar, que dava às
cidades o aspecto de emersas de um banho de fósforo.91

Observa-se que todas as descrições sobre as descobertas


tecnocientíficas são mostradas em sua positividade, desacompanhadas de
críticas, como se não houvesse aspectos negativos nas descobertas

88
Nota-se o quão vanguardista era a visão de Lobato a respeito das inovações tecno-
científicas. Pode-se dizer que anteviu a internet.
89
A televisão com vídeo texto e o enxugamento das estruturas empresariais por causa da
internet é coincidente.
90
LOBATO, J.B.M., O Choque das Raças. Op.cit., p.110.
91
Idem, p.119.

122
científicas, tais como o uso da ciência para fins de dominação de um grupo
sobre outro. Inspirados no cientificismo do século XIX, os eugenistas
acreditavam que a(s) ciência(s) era(m) o guia de toda a forma de ser e que
proporcionaria a resposta a todas as perguntas que se pudesse fazer de
forma racional. Em outras palavras, havia a crença de que o método científico
conduzia à certeza das coisas.92

Com base nessas informações, pode-se dizer que Lobato construiu sua
Cidade do Sol93. De acordo com Alceu Amoroso Lima94, prefaciador da edição
brasileira do livro de Campanella95, o Choque é a melhor das indicações do
que não deve ser uma sociedade bem organizada’96. Por isso, a leitura do
texto deve ser feita pelo avesso, para fazer, em geral, o oposto de que ele
recomenda. Pode-se destacar também outros textos clássicos que tentam
construir uma sociedade ideal. Thomas Morus97 em Utopia e Francis Bacon98
em Nova Atlântida, além do ‘clássico dos clássicos’, a Republica de Platão99.

O texto de Lobato pode também ser comparado aos livros de


inspiração futurista imortalizados na literatura mundial, posteriores ao Choque,

92
Para saber mais sobre os impactos e as descobertas científicas na Europa ver: KNIGHT,
David: La era de la ciência. Madri: Ediciones Pirâmide, 1988, pág. 17.
93
Cidade do Sol é o título do livro escrito por Tommaso Campanella (1568-1639), calabrês,
que construiu em seu livro a antítese do pessimismo descrito por Santo Agostinho em Cidade
de Deus. Neste livro, Campanella, reformula filosoficamente o mundo representado na
sociedade perfeita, com perfil totalitário, é verdade, mas com muitas reflexões sobre a justiça.
94
Esse texto faz parte do prefácio à edição brasileira de Cidade do Sol. Foi escrito em 1966
por Alceu em sua fase ‘à esquerda’, época em que critica duramente os regimes totalitários e
principalmente a ditadura militar no Brasil. Para saber mais sobre a ambigüidade do
pensamento deste autor, ver: CAUVILLA, Waldir. O pensamento político de Alceu Amoroso
Lima (Tristão de Athaíde) na década de 30. Mestrado em História. PUC/SP. 1992.
95
CAMPANELLA, Tommaso. Cidade do Sol. Rio de Janeiro: Ediouro, sem data.
96
Consta do prefácio de Alceu Amoroso Lima, 1966. In: CAMPANELLA, op.cit., p.15.
97
Thomas Morus (1478-1535). Nascido em Londres. Chanceler na Inglaterra sob o reinado de
Henrique VIII. Autor de Utopia, romance político e social. Morreu decapitado por ter
continuado fiel ao catolicismo e não ter reconhecido o poder espiritual do rei. Foi beatificado
em 1886.
98
Francis Bacon (1561-1626). Filósofo e político inglês destinado à carreira diplomática.
Escreveu Novum Organum, sua obra mais conhecida.
99
Platão (429-348 aC). Célebre filósofo grego, nascido em Atenas. Discípulo de Sócrates
fundou a escola acadêmica. Expôs suas doutrinas nos Diálogos, que trazem nomes dos mais
ilustres interlocutores: Fedro, Protágoras, Timeu, etc.

123
entre os quais: 1984 de George Orwell100 e Admirável Mundo Novo de Aldous
Huxley.101 Esse texto ficcional expõe além de tudo muitas críticas justas aos
abusos sociais que podem ser realizados na questão racial e eugênica.

Entre tantos nomes, o impulso literário de escrever uma obra que


projete uma sociedade do futuro acaba por constituir um determinado tipo de
utopismo, já que sua sociedade não tem conflito social e tudo se reduz aos
problemas raciais e eugênicos. Os sistemas utópicos são sempre fechados,
exigindo uma universalidade de projetos e ideais. Por exemplo, quando se
almeja a felicidade de todos, ela só pode ser implementada por um discurso
totalitário. Neste caso, a felicidade tende a ser homogeneizada entre
indivíduos com desejos distintos, solapando as singularidades que o
constituem.102

Da mesma forma, a construção literária de uma sociedade utópica103


indica um desejo contundente por ações “fascistizantes” na vida cotidiana de
mulheres e homens. Para isso, mais do que a disciplinarização dos corpos, é
necessária a docilização das mentes – nisso pode-se ler uma referência à
intelectualidade formadora de opinião que nas primeiras décadas do século
XX escrevia nas colunas dos jornais e revistas disseminando ‘novos modos de
viver’, inspirando-se na burguesia européia, com a intenção de regular os
‘outros modos de vida’ das classes mais pobres. Lima Barreto expressou de

100
George Orwell, pseudônimo de Eric Blair (1903-1950), em seu livro mais conhecido 1984,
narra com visão profética um futuro mecanizado num mundo totalitário, onde os seres são
controlados pela força onipresente de um ditador. Publicado em 1949. É autor também de A
Revolução dos Bichos, romance que critica o regime soviético.
101
Aldous Huxley romancista era como Julian Huxley (eugenista convicto), neto de Thomas
Huxley, célebre biólogo do final do século XIX. Com mais espírito crítico que Julian, escreveu
Admirável Mundo Novo em 1932.
102
A idéia de que as singularidades devem ser soltas em prol da derrubada das utopias
homogeneizantes é de GOLDENBERG, Ricardo. Demanda de utopias. In: Utopia e mal-estar
na cultura: perspectivas psicoanalíticas. São Paulo: Hucitec, 1997, p.91-97.
103
No Brasil diversos literatos descreveram suas sociedades utópicas nas primeiras décadas
do século XX. Para saber mais: FIORENTINO, Teresinha del. Prosa e ficção em São Paulo:
produção e consumo. São Paulo: Hucitec, 1982.

124
maneira mordaz a atuação decisiva da imprensa em 1909: onipotente
imprensa, o quarto poder fora da Contituição104 .

Nos Estados Unidos de 2228, Eropolis, a Cidade do Amor, era o lugar


para onde iam os enamorados, os casados em lua de mel, nela só
permanecendo durante o período de ebriedade amorosa.105 O
esquadrinhamento, o controle do comportamento não deixa de possuir um
teor um tanto totalitário, já que Eropolis é o lugar do Amor, e somente lá.
Tanto que os filhos de Eropolis passaram a constituir uma elite na América – a
nova aristocracia dos filhos do Amor e da Beleza.106

Dessa forma, como dito anteriormente, toda a estrutura social


representada por Lobato continha em si uma positividade identificada na
civilidade dos Estados Unidos. Enfatiza, sobretudo, a eficiência supostamente
alcançada pelos norte-americanos comparando a ‘potência do futuro’ com um
panorama histórico dos povos. A França é uma flâmula com três palavras; a
Inglaterra tem um princípio diretor, a tradição; a Alemanha uma fórmula,
organização; a Ásia um sentimento, o fatalismo e a América [do Norte] um
novo princípio, a eficiência.107 É importante ressaltar que na análise lobatiana
sobre o ‘panorama histórico dos povos’ foram desprezados uma enormidade
de ‘povos’: os da África; Europa Ocidental, os polinésios e os povos da
América do Sul. Para além das análises possíveis das representações feitas
daqueles países colonialistas e da Ásia milenar, muitas culturas foram
desprezadas. Seria isso devido ao fato de serem esses povos considerados
desprovidos de cultura?

Segundo a ficção, o princípio da eficiência resolverá todos os


problemas materiais dos americanos, como o eugenismo resolverá todos os

104
BARRETO, Lima. Recordações do escrivão Isaías Caminha. p. 115 e ver interessante o
trabalho sobre Lima Barreto de: MELO, Rita de Cássia Guimarães. O mundo urbano na obra
de Lima Barreto: classes médias e pobres nos subúrbios do Rio de Janeiro (1881-1922).
Dissertação de Mestrado. História PUC/SP, 2002.
105
LOBATO, J.B.M. Op. cit., p.119.
106
Idem, p.120.
107
Idem, p.106.

125
problemas morais.108 Vê-se que a eugenia compõe com a eficiência a chave-
mestra para solucionar os males da humanidade. Este princípio da eficiência,
na prática, serve para a organização racional do trabalho, já que numa
sociedade eugenizada todos, sem exceção, são levados a produzir. Isso
porque a eugenia do ano de 2228 havia resolvido os ‘três pesos mortos’
responsáveis pelos males do mundo que sobrecarregavam a sociedade: o
vadio, o doente e o pobre. Ao invés de combatê-los com o castigo, o remédio
e a esmola, adotaram-se três medidas distintas, respectivamente: a eugenia,
a higiene e a eficiência. Em seu texto, Lobato reafirma: era o fim da carga
inútil, do parasitismo, mas sempre sob o sistema representativo.109

Aqui se percebe mais uma similitude com os anseios eugenistas em


relação à crítica feita por eles ao assistencialismo110 que sobrecarrega o
Estado com o ônus do tratamento daqueles indivíduos que, impossibilitados
de trabalhar, tornavam-se um estorvo à sociedade. Nas palavras de Lobato: E
a caridade, a filantropia, a assistência pública em matéria de defesa social não
faziam senão despender enormes quantidades de dinheiro e esforço na
criação de hospitais, asilos, hospícios, casas de congresso, repartições
públicas, isto é, abrigos para os produtos lógicos da má origem (...).111

Pode-se observar no Choque também que, da mesma forma que


identificamos nos textos de Kehl e de outros eugenistas, a grande
preocupação da eugenia não era exclusivamente racial, mas moral e
biológica. Controlar os casamentos dos aptos, evitar a procriação dos ‘vadios’,
através da esterilização, era um caminho a ser seguido. Mesmo porque em
2228, a lei espartana era aplicada para ambas as raças. No entanto, Lobato
recupera o problema racial, mostrando que a eugenia não se ocupou como
deveria do problema até que as populações negra e branca se equipararam

108
Idem
109
Idem, p. 108.
110
Para ver a postura eugenista em relação ao assistencialismo ver Capítulo 1, item 2: Tupy
or for Tupy?
111
LOBATO, J.B.M., Op. cit., p.152.

126
em número, ameaçando a ‘estabilidade ariana’ (é justamente o momento em
que Jim Roy – o presidente negro – se elege).

Em relação à melhoria da raça, os eugenistas brasileiros estavam


preocupados essencialmente com o cruzamento. Seu debate girava em torno
de duas principais vertentes: cruzar as raças a fim de branquear o povo
brasileiro, baseando-se na tese de que o pigmento negro seria recessivo ao
longo de gerações, o que sabemos hoje ser uma inverdade; ou evitar os
cruzamentos, mantendo as raças o mais pura possível, pois um cruzamento
entre raças diferentes era visto tal qual um cruzamento entre espécies,
degenerando as duas raças igualmente, obviamente sempre saindo mais
prejudicada – para estes eugenistas – a raça branca. No entanto, as duas
posições consideram as raças como “massas”, amorfas quantidades de
substâncias passíveis de misturas ou de purificações independentemente de
suas complexidades e singularidades. Tudo se passa como se os eugenistas
entendessem a natureza humana de modo simplificado, uma natureza sem
devir e fora da história, algo totalmente ajustável aos desígnios culturais de
uma época. 112

Na opção norte-americana, a prática eugênica deu-se através da opção


de evitar o cruzamento. Lobato avança essa sociedade para o futuro,
apresentando a maneira como funcionariam os casamentos, valendo a regra
para ambas as raças, negra e branca, já que não existiam mais índios
naquele país. Mas, vale lembrar mais uma vez, não havia casamentos inter-
raciais.

O direito de reprodução havia sido instituído pelo Código de Raça,


emitindo o Estado uma espécie de brevet para o pai. Dava-se essa habilitação
para quase tudo. Emprego, construção de casas, cura de dor de barriga.113 O
casamento era feito entre filhos autorizados a procriar, considerados ‘eleitos
da espécie’. Ser pai valia por um diploma de superioridade mental moral e

112
Contribuiu para pensar o papel das massas a leitura inspiradora de: CANETTI, Elias.
Massa e poder. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
113
LOBATO, J.B.M., Op. cit., p.152.

127
física, conferido pela natureza e confirmado pelos poderes públicos.114 De
acordo com Lobato em sua história, o número de divórcios diminuiu. Talvez
tenha sido por constarem nas regras do casamento as férias conjugais
obrigatórias, que permitia no inverno 15 dias e no verão 3 meses de
separação entre os casais. No século XXIII havia sido provado por Johnston
Coolidge, autor de Toxinas Conjugais, que tais férias limpavam os cônjuges
do enfaro115 e renascia-lhes o amor ao petit-feu das saudades116 - o que dava
aos casais duas luas de mel por ano, no retorno aos lares depois das férias.

Interessante ressaltar que após a narrativa de Jane a Ayrton sobre


essa prática, o moço entusiasma-se com a eugenia de tal forma que espera
poder chegar à cidade para nos cafés, nas ruas pregar a eugenia e insultar a
estúpida gente que não vê as coisas mais simples.117

Novamente destaca-se a apresentação da eugenia em seu sentido


positivo. Enfatizando as vantagens da regulação do casamento entre aqueles
considerados mais aptos e a consolidação dessa prática em longo prazo, a
oferta das férias conjugais obrigatórias torna-se instrumento de sedução e
conquista para a adesão ao modelo eugênico pelo cidadão comum.

Além de descrever o meio social e os avanços tecno-científicos, Lobato


debruça-se com afinco para ‘montar’ o panorama político futurista, delimitando
fisicamente os perfis de cada um dos (apenas) três grupos em cena na trama
e seus respectivos representantes: os negros, as mulheres e os homens
brancos.

Pensar a sociedade descrita por Monteiro Lobato no Choque das


Raças, é, de certo modo, pensar na realização da árvore da eugenia
apresentada no 3º Congresso Internacional de Eugenia e publicada por Kehl
em 1935, no seu livro Sexo e Civilização. Trata-se de uma sociedade
hierarquizada, limpa, forte, bela e saudável, e com uma base de sustentação

114
Idem, p.155.
115
Ato ou efeito de enfarar ou enjoar; fastio, asco, repugnância, enjôo de acordo com o
Dicionário Digital Aurélio Século XXI, op. cit.
116
LOBATO, J.B.M., Idem.
117
Idem, p. 156.

128
altamente científica. Nessa árvore não há lugar para o povo nem para a
espessura da história.

Não há uma só vez em quase duzentas páginas de texto em que


Lobato faça uma só referência ao povo, exceto quando este é visto como
massa, como conglomerado de consumidores de jornal, moda, viagens.
Nunca são vistos enquanto sociedade, enquanto conjunto heterogêneo de
potencialidades singulares e como agentes sociais. Lobato somente abriu
espaço para mostrar industriais, artistas, escritores e líderes políticos, além de
cientistas, é claro. Após tantas descrições minuciosas, a descrição de povo
deixou a desejar.

O único personagem que pode trazer qualquer elemento que seja mais
próximo do popular é Ayrton. Um homem não de ciência, mas “de natureza”,
visto aqui como algo pejorativo, pois como disse Benson: pelo que vejo é um
inocente (...) Chamo inocente ao homem comum de educação mediana e
pouco penetrado nos segredos da natureza.118 Ayrton não domina a natureza,
ele é a própria natureza, que precisa ser controlada, regulada e domesticada,
para a boa saúde da árvore.

O povo representa nada mais nada menos do que a matéria prima para
a consolidação da eficiência. Seria o fim da história mencionada por
Fukuyama, não fosse a potência inventiva de Jim Roy, que transformou os
rumos de uma elite que via a mudança como ameaça, por se tratar
inevitavelmente de alternância de poder.

Mas é importante lembrar que Jim Roy era também um membro


‘eugenizado’, ‘omegado’ e ‘descascado’. Era um líder convicto que tratava
seus seguidores também como autômatos. Apesar disso, Jim cumpriu seu
dever de líder. Defender e libertar seu povo que foi submetido durante vários
séculos através da escravidão e da opressão. Um presidente negro foi eleito.
Por causa do automatismo de seus seguidos, ressaltamos mais uma vez, e o
presidente negro e toda a raça negra extinta, por causa da ânsia consumista
por bonecas falantes da outra parte da população.

118
Idem, p.22.

129
O orgulho da raça branca impediu a posse de Jim e que se cumprisse
seu mandato. Num plano venal executado sem segredos, mas com sentido
ambivalente, resgata mais uma vez a perversidade com que se tratam sempre
questões relativas aos mais desfavorecidos ao longo da história.

A ficção de Lobato serve-nos para lembrar dos perigos e sucessos da


ciência, mas também para refletir sobre que tipo de sociedade queremos. Isto
não é o que somos, nem tampouco o que seremos...

* * *

A constatação de uma relação entre Monteiro Lobato e Renato Kehl foi


surpreendente, na medida em que, inicialmente sabia-se do fato de que cada
um deles prefaciou o livro do outro119. Mas, além disso, trocaram
correspondências durante vários anos, estabelecendo uma relação
profissional e de amizade. A primeira carta recebida de Monteiro Lobato, data
de 1918, quando em resposta a uma carta de Kehl, Lobato autoriza a
publicação de seus artigos para a coletânea e primeiro livro publicado por
Lobato chamado Problema Vital. Nessa carta, além de agradecer pelo envio
da conferência feita por Kehl na Associação Cristã de Moços, Lobato elogia-o
com as seguintes palavras:

(...) Confesso-me envergonhado por só agora travar


conhecimento com um espírito tão brilhante como o
seu, voltado para tão nobres ideaes e servido, na
expressão do pensamento, por um estylo
verdadeiramente ‘eugênico’, pela clareza, equilíbrio
e rigor vernacular.120

Essa carta é o primeiro aceno de uma relação que duraria 30 anos. No


Fundo Renato Kehl, de Centro de Documentação da Fundação Oswaldo Cruz
no Rio de Janeiro, foram encontradas 16 cartas de Monteiro Lobato

119
Renato Kehl prefaciou o primeiro livro de Monteiro Lobato, uma coletânea de artigos
publicados em jornal e reunidos pela Sociedade Eugênica de São Paulo em 1919, sob o título
O Problema Vital. Em contrapartida, Monteiro Lobato prefaciou mais tarde o livro de Renato
Kehl chamado Bio-perspectivas de 1938.
120
Primeira carta recebida de Monteiro Lobato, datada de 05 de abril de 1918.

130
endereçadas a Renato Kehl e 3 cópias de cartas endereçadas por Kehl a
Lobato. A última carta tem data de 19 de novembro de 1946, ou seja, dois
anos antes do falecimento de Lobato. Tratava de uma indicação editorial que
seria feita por Lobato para a publicação do livro A Cura do Espírito, a pedido
de Kehl.

Todas as correspondências obedecem a um padrão bastante comum


em toda a coleção de cartas guardadas por Renato Kehl. Sempre são
respostas. Isso significa que o estimulador das relações epistolares é sempre
Kehl. Sempre, ao publicar um livro, Kehl endereça-os aos amigos, parentes e
membros da comunidade médico-científica. E assim recebe as respostas, de
todos eles, que aproveitam a oportunidade para contar ‘as novas’.

Mas algumas especificidades podem ser percebidas na relação entre


os dois. Obviamente, devem ter havido encontros pessoais, que não se
restringiram às epístolas. No entanto, vale lembrar que serão alinhavadas
ações conjuntas entre esses dois interlocutores.

Particularmente, entre os anos de 1922/1923, existem seis cartas de


Lobato a Kehl. Na verdade são cartas-bilhetes de uma única página, em papel
com timbre pessoal de Monteiro Lobato, escritas à mão – o que dificultou a
leitura – e sem data. O conteúdo circulava em torno da publicação de um livro
de Kehl que seria editado e publicado pela Cia. Graphico Editora Monteiro
Lobato em 1923. O livro era A Cura da Fealdade.

Inicialmente, uma carta de explicação justificando não ter iniciado o


trabalho sobre o texto:

Apesar de toda a boa vontade minha, não foi


possível começar teu livro. Fim de ano é coisa
terrível pois tem entregas a prazo certo, com metas
e estamos a galopar para chegar a tempo. Creio
que só em janeiro [1923] começamos o teu livro.
Bem sabe que (ilegível) deram nossos interesses; a
tua pressa de autor e a pressa econômica de editor,

131
mas só se faz o que é possível. Espero, entretanto
este mês começar a Cura. L.121

Após algum tempo, escreve para contar a ‘boa nova’. O livro ficou
pronto. Parece que havia uma certa preocupação por parte de Kehl, pois os
bilhetes de Lobato sempre passavam mensagens de tranqüilidade e otimismo
em relação ao livro. Na carta seguinte:

Renato. Teu livro está lindo. Vaes gostar. Foi


longamente gestado e saiu a contento. Sabe a
razão da demora? Acabou o ‘ouro’ de uma
encadernação (...). Em todo caso, esta semana
receberás a coisa e será ella posta à venda. O Dr.
Belisário [Penna] tem estado aqui e já viu em
brochura! Gostou. Abraço, L.122

Contudo, essa pequena coletânea de cartas sobre a publicação do


Cura indica que, a receptividade não foi como se esperava. Apesar do preço
de capa ser bastante alto, em decorrência do número de 500 páginas da
edição, ficava a 20$000. O mesmo Lobato, editor-otimista e com ótimo senso
de humor descreve:

Tenho a esperança de vender bem a edição.123

A Cura da Fealdade vai ter uma formidável saída


(...). Todos os feios, inclusive eu, vão comprar o
livro para ver se aumentam o focinho. Mas se não
lhes ensinar um meio prático de embelezar
instantaneamente, lyncham-te, na certa!124

O livro A Cura da Fealdade tem uma especificidade em relação aos


outros escritos por Renato Kehl. Apesar de todos eles trazerem sugestões

121
Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl. Sem Data. Indicada com o número 6
na parte superior por Kehl.
122
Idem. Indicada com o número 8 na parte superior por Kehl.
123
Idem. Indicada com o número 4 na parte superior por Kehl.
124
Idem. Indicada com o número 5 na parte superior por Kehl.

132
práticas de como melhorar a aparência – através da educação física, de
maquiagens, fórmulas embelezantes – nesse livro, Renato Kehl trata a
fealdade como doença que pode ser curada.125 Ser belo(a) não é só uma
questão de querer – nas décadas de 20 e 30 ainda não representa cuidar de
si que envolve o prazer pessoal – mas uma necessidade social e profilática.
Denise Bernuzzi de Sant’Anna fez uma detalhada pesquisa126 sobre o
embelezamento feminino entre os anos de 1900 e 1980 mostrando que, para
os eugenistas, todo o corpo deve ser belo dia após dia e por isso, o melhor a
fazer é cultivar a saúde.127

Na carta seguinte, Lobato, desenvolvendo seu talento de editor explica


a Kehl o que está acontecendo com a Cura da Fealdade, que não teve a
venda esperada.

Vendeu 10000? Tu não conheces o país em que


vive, Renato... Isto é menos que África.128

Nessa mesma carta, Lobato recusa um outro livro de autoria de Kehl,


Homem puro Sangue, por não dar margem de lucro suficiente para a editora.
Posteriormente, explica longamente os motivos do não recebimento de
honorários relativos à venda do Cura da Fealdade. Como não temos as cartas
enviadas por Kehl, trabalhamos com uma via de análise somente, mas
podemos supor e indicar as demandas por trás da resposta de uma carta.
Neste caso, a ansiedade de Renato Kehl diante da edição da Cura da
Fealdade dá a tônica da correspondência entre editor e autor:

Renato, Recebi tua carta. A Cura já foi para todas


as livrarias. Mas elas boycotam São Paulo, e não
repetem pedido. É incrível! E se, sabendo nós, que
qualquer delas não possue mais o livro, mandamos

125
Este é o argumento principal do capítulo 3: O Espetáculo do Feio.
126
SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. La recherche de la beauté...op. cit.
127
“tout le corps doit s’embellir jour après jour et pour cela, le mieux à faire c’est cultiver la
santè”. In: SANT’ANNA, Denise Bernuzzi de. op. cit., p. 170.
128
Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl. Sem Data. Indicada com o número 7
na parte superior por Kehl.

133
nova remessa, sabe o que acontece? Devolvem-
nos, dizendo que não queriam! É o que há de
odioso. O Rio está fechado para nós.129

Mais do que mostrar uma preocupação aparece aqui também um


problema de ordem política em relação ao mercado editorial. A velha ‘rixa’
entre São Paulo e Rio de Janeiro se acentua neste caso. O Rio está fechado
para nós. Fechado para os editores paulistas, pois nesta época no Rio de
Janeiro eram preponderantes as edições de Francisco Alves, que tinha filial
em São Paulo, mas sede carioca. Curiosamente, Francisco Alves era o editor
principal dos livros de Kehl. Foi com ele que editou 80 por cento de seus
livros.

A partir das cartas de 1929, percebe-se um Lobato mais voraz e crítico


nas suas opiniões a respeito do Brasil. Sempre ligado ao pensamento
eugênico, que é o elo entre esses dois intelectuais, o inconformismo de
Lobato em relação a seu país é evidente, principalmente porque está falando
como alguém que está vendo o Brasil de fora, já que morava em Nova Iorque.

Cuidado eles [os críticos] acabam te linchando.


Nossa gente quer dopes, cocaínas – illusão. Está
apodrecendo e em vez de curar-se, perfuma-se. É
vivendo num paiz como este que se pode alcançar
em toda a sua extensão a miséria econômica,
physica, biológica e moral da nossa gente.130

O fragmento acima mostra a desilusão de Lobato com o Brasil e


principalmente com os críticos formadores de opinião. Indica que a
intelectualidade, ao invés de preocupar-se em melhorar o país vive no
esnobismo, fazendo festas, sem seriedade e aponta para o destino trágico do
Brasil que será a miséria econômica, physica, biológica e moral da nossa
gente.

129
Idem. Indicada com o número 9 na parte superior por Kehl.
130
Monteiro Lobato a Renato Kehl. Nova Iorque, 09/10/1929.

134
Na mesma carta finaliza com uma assertiva de assustar, que enaltece a
Kehl, mas ao mesmo tempo, mostra um Lobato já conhecido por todos,
indignado com os rumos do Brasil, e principalmente com as elites. E pede
segredo de suas declarações na mesma carta.

Rasgue esta incontinenti, meu caro, antes que


alguém meta o nariz nella. Tudo que te digo é
estrictamente confidencial e só pode ser dicto a um
espírito superior como o teu.

Mas o interessante dado revelado em duas correspondências é a


fórmula que demonstra a Kehl do uso da literatura, seja ela de ficção ou de
ciência, que pode dizer indiretamente que o que não se pode dizer às claras.

È um processo indirecto de fazer eugenia e tenho


commigo que os processos indirectos, no Brasil,
‘work’ muito mais efficientemente que os directos131

Confirma-se essa afirmativa quando, em relação ao lançamento de seu


primeiro livro infantil, destaca novamente a importância de transformar ‘ciência
em brinquedo’:

Realmente aquele livro é bastante útil, e como está


sendo muito bem recebido pelas creanças, anima-
me fazer outro do gênero – de sciência
transformada em brinquedo. Tenho uma idéia
bastante engenhosa para o próximo – Emília no
Paiz da Gramática.132

Alguns anos depois, demonstra sua indignação com a intelectualidade


que desde a celeuma criada com o grupo da Semana de 22, por ocasião da
crítica feita por ele à Anita Malfati, era alvo de inúmeras críticas:

A cainçalha não perdoa ser querido das creanças e


vender meus livros mais que eles. Que gentinha

131
Monteiro Lobato a Renato Kehl. Nova Iorque, 03/09/1930.
132
Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo. Sem data.

135
miúda a nossa! Se com tua eugenia não concertas
esta raça, tela-emos uma das mais sórdidas do
mundo.133

Afirmações como essa demonstram a inclinação da eugenia não


somente para o saneamento racial, pregado pelas teorias de branqueamento,
mas também uma regeneração moral, que extrapola a condição racial do
indivíduo, e a força do exemplo, que deve ser pregado pelas classes cultas.
Ou seja, para uma eugenização efetiva do povo brasileiro, não se deve
extirpar da sociedade somente aqueles maus elementos, portadores de
‘doenças sociais’ como o alcoólatra, o sifilítico, o tuberculoso, o vadio, a
prostituta e as deformidades congênitas da classe pobre, negra e mestiçada,
mas curar os ‘desvios de caráter’ que habitavam também as classes
abastadas e impediam o bom desenvolvimento de políticas públicas objetivas
que contribuíssem para o desenvolvimento do Brasil.

Adepto confesso da eugenia, não é risco afirmar, com base nas


declarações feitas pelo próprio Lobato a Renato Kehl, que seu livro O Choque
das Raças era mesmo ‘um grito de guerra pró-eugenia’. A afirmação mais
escandalosa encontrada está transcrita abaixo, em que se indica a receita
para concertar o Brasil. Ela não precisa de explicações. Ela cala.

Um terremoto de 15 dias para afofar a terra; e uma


chuva de.... adubo humano de outros 15 dias, para
adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita, não?134

133
Monteiro Lobato a Renato Kehl. São Paulo, 14/04/1936.
134
Idem.

136
Meu corpo,
Espelho desarticulado que mal percebe os entalhes
do próprio corpo,
sua simetria e enérgica imagem
construída de músculos e artérias
matéria bruta semelhante à idéia
[de quem nunca teve um corpo (...)

Meu corpo, de estranha geometria


de despropósitos e irrealidade em que espaço habita?
na memória de um outro corpo!?
na frágil nostalgia dos que amaram,
dos que se deixaram trair?

Meu corpo, longo quase imperfeito,


indiferente a beleza dos Gregos, Apolo (...)

J. Viana
CAPÍTULO 3 – O ESPETÁCULO DO FEIO

1. Os Caminhos da Desumanização

Quem não se assustou ao ver pela primeira vez o rosto de John Merrick,
o “homem elefante”?1 A visão de seu rosto era monstruosa. Nessa co-produção
cinematográfica (Estados Unidos/Inglaterra) da década de 80, a personagem
da época vitoriana, John Merrick, era uma das principais atrações de um freak
show2 onde se apresentavam curiosidades da natureza, como casos de
pessoas com gigantismo, anãos, irmãos gêmeos ou irmãs siamesas, mulher
barbada, entre outros. Com a sensibilização de um médico da Inglaterra pós-
Darwin, John Merrick é levado do circo ao hospital, para ser estudado.

Numa das cenas mais fortes do filme, Merrick é perseguido numa


estação de trens em Londres; encurralado, ele exclama: - Eu não sou um
monstro, sou um ser humano! Ocorre então uma mudança de significado de
seu papel de sujeito, na visão de seus dois tutores: o dono do circo que o
transformou em espetáculo preso a uma jaula e o médico que o tornou objeto
de estudo, um espetáculo para a comunidade médica e burguesa da época –
de monstro à doente, de espetáculo à paciente.

De acordo com Jean-Jacques Courtine, houve uma transformação


histórica nas sensibilidades em relação ao olhar dirigido à deformidade humana
no Ocidente. Todavia, para Courtine, o monstro só pode usufruir dos cuidados
médicos e da emoção caridosa da opinião pública sob a condição de
desaparecer do olhar público, ou seja, há na monstruosidade um paradoxo de

1
“O Homem Elefante” (The Elephant-man, 1980), Inglaterra/Estados Unidos. David Lynch
(diretor).
2
Literalmente traduzido significa show dos esquisitos, mais conhecido entre nós como circo de
horrores, em que eram exibidas curiosidades humanas, vista como aberrações da natureza:
enfermos, deficientes físicos, etnias longínquas, tatuados, engolidores de espadas etc.
COURTINE, Jean-Jacques. O desaparecimento dos monstros. Mesa redonda datada de
19/10/2001 juntamente com Denise Bernuzzi Sant’Anna que apresentou o trabalho Do culto ao
corpo às condutas éticas no Seminário Ética e Cultura, realizado no SESC Vila Mariana, São
Paulo. Texto traduzido por: Lara de Malimpensa, p. 3.

138
compaixão pelo corpo disforme, que presidiu à elaboração da noção de
deficiência ao longo do século: o amor por ela manifestado aumenta em
proporção ao distanciamento do objeto.3

Este capítulo trata de estudar os caminhos buscados para consolidar o


distanciamento do sujeito diante da anormalidade, transformando-a não
somente em objeto de estudo e fruto da compaixão dos homens, muito própria
da medicina social do século XIX, mas em objeto de um eugenismo avesso aos
assistencialismos e sedento em perfectibilizar a sociedade brasileira, o que, por
si só, já é um paradoxo – primeiramente, porque a perfeição é busca utopista
de um lugar ideal, com um padrão médio equilibrado e homogeneizado. Em
segundo lugar, ele é um desdobramento do primeiro argumento, segundo o
qual o Brasil é fundamentalmente, um conglomerado de singularidades raciais
e étnicas, que dificilmente seriam homogeneizadas. Contudo, o paradoxo visto
desse modo ainda não esclarece muito. Pois, a própria criação de uma idéia
homogeneizante – a suposta melhoria do patrimônio racial e estético brasileiro
– cria seu avesso, nesse caso, a fealdade, vista como sinônimo de
degeneração. Esse avesso pode ser entendido como uma ameaça ao público e
ao individual enquanto que o medo de estar enquadrado no grupo errado
favorece a realização e a consolidação dessa idéia inicial homogeneizadora.

Paralelamente a essa prática discursiva, surge um outro local para a


cura da fealdade que está fora do corpo, da hereditariedade e da genética – no
crescimento da indústria do embelezamento. Cremes e maquiagens para o
rosto, peças de vestuário que voluptualizam o corpo, alisantes para os cabelos
crespos, cápsulas rejuvenescedoras, bisturis, sugadores de gordura, exercícios
físicos adequados e uma alimentação considerada saudável contribuíram ao
longo do século XX para incutir, não somente nas mulheres como também nos
homens, a idéia de que não é possível ser feio. Ou então: de que é inaceitável
ser feio, com tantas possibilidades estéticas de tratamento, algumas
provisórias, outras permanentes. De acordo com Denise Bernuzzi Sant’Anna4,

3
COURTINE, J-J. Op. cit. p. 8.
4
SANT’ANNA. Denise Bernuzzi. La recherche de la beauté....op. cit.

139
o século criou novas técnicas e artifícios para o embelezamento da mulher, que
aos poucos foi libertando-a dos aparatos externos ao corpo (cintas, sutiãs,
corpetes) e ao mesmo tempo, coagindo-a ao aprendizado e ao consumo de
uma miríade de produtos e técnicas novas, feitas agora para comprar uma
estética de acordo com a moda e os anseios pessoais. Quando se entra em
contato com os textos eugenistas de Renato Kehl, a noção de fealdade adquire
significados diversos, pois suas descrições são tão generalizantes que acabam
transformando em sinônimos adjetivos bem distintos como deficiência,
anormalidade e doença:

(...) país que nasce torto não endireita nem a pau. A


receita (...) para concertar o Brasil é a única que me
parece eficaz. Um terremoto de 15 dias, para afofar a
terra; e uma chuva de... adubo humano de outros 15
dias, para adubá-la. E começa tudo de novo. Perfeita,
não?5

Nesse pequeno trecho de uma carta escrita por Monteiro Lobato a


Renato Kehl, podemos destacar uma das concepções de ‘povo brasileiro’
expressa por um dos grandes representantes da cultura letrada do país: um
povo ‘torto’ e avesso ao ‘endireitamento’. Como analisou Vera Marques,6 após
os desdobramentos da Proclamação da República, em 1889, havia o ideal da
formação de um povo brasileiro que representasse toda a nação, empunhada
pela bandeira da liberdade e da igualdade.

Neste trabalho, Renato Kehl é visto como incentivador de algumas das


idéias ligadas ao progresso e à igualdade difundidas pela ‘nova ciência’ de
Galton7, a eugenia, que a partir de 19178 inicia sua ‘peregrinação’ em prol da

5
Carta de Monteiro Lobato endereçada a Renato Kehl em 14 de abril de 1936. Escrita à
máquina e assinada à mão.
6
MARQUES, Vera Regina Marques Beltrão. Raça e noção de identidade nacional. O discurso
médico-eugenista nos anos 1920. In: BRESCIANI, Maria Stella (et. alii). Razão e Paixão na
Política. Brasília: Editora UnB, 2002, p. 181-195.
7
Francis Galton (1822-1911), primo de Charles Darwin e um de seus primeiros seguidores.
Criador da biometria, disciplina que aplica os métodos estatísticos à biologia, e especialmente

140
formação do homem9 saudável, belo, civilizado, definitivamente brasileiro.
Dessa forma, eugenizar nada mais é do que homogeneizar a população,
ressaltando as semelhanças e segregando os diferentes.

O objetivo deste capítulo é identificar, com base nos textos de Renato


Kehl, sua minuciosa tentativa de desumanizar o corpo imperfeito, ou seja,
dysgenico,10 relacionando-o à fealdade, anormalidade, monstruosidade e à
doença. Essa desumanização resulta de todas as descrições desses corpos
imperfeitos, ao contrário daqueles considerados perfeitos e civilizados. A
imperfeição, então, adquire o status de incivilidade e de desumanidade.
Desumano, porque o homem imperfeito, apesar de ser visto como humano,
está posto num lugar em que o médico tem a autoridade e o Estado tem a
função de determinar o que fazer com ele. O feio seria um ônus para o Estado,
um o atraso para a sociedade e um peso para os belos. Se, como escreve José
Gil, o monstro assinala o limite ‘interno’ da humanidade do homem11, pode-se
dizer que a fealdade passará a indicar, com o eugenismo de Kehl, a
anormalidade psíquica e moral do brasileiro.

Portanto, se faz necessário mostrar as descrições da fealdade como


parte da aposta eugenista na intervenção direta no corpo do indivíduo, com a
intenção de criar o corpo do novo homem e o corpo da coletividade, segundo a
idéia de que cada um é responsável por si e pela saúde da coletividade, o que
se traduz nas práticas que visam a identificar o indivíduo feio como sinônimo de
inapto ao trabalho, anormal, monstruoso, doente, degenerado, incivilizado.

ao estudo da hereditariedade, considerado o primeiro eugenista. PICHOT, André. O


eugenismo: genetistas apanhados pela filantropia. Lisboa: Instituto Piaget, 1995, p. 18.
8
O próprio Renato Kehl institui essa data como ponto de partida de sua empreitada pela
eugenia no Brasil. Ver: Kehl, Renato. Por que sou eugenista? Rio de Janeiro: Editora Francisco
Alves, 1937.
9
“Homem”, no texto, refere-se a homens, mulheres e crianças, ou seja, a formação de uma
humanidade (povo) saudável.
10
Termo freqüentemente utilizado por Renato Kehl para designar aqueles que não se
enquadram aos padrões físicos, morais e intelectuais previstos pela eugenia. Disgenia:
condição do caráter que resultará em prejuízos para o patrimônio genético de gerações futuras.
Encontrado em: Novo Aurélio Século XXI: dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Nova
Fronteira, 2001.
11
GIL, José. Monstros. Lisboa: Ed. Quetzal, 1994, p.16.

141
A este respeito, Michel Foucault é inspirador quando analisa os
anormais. Desenvolvendo a idéia de que o monstro humano é uma noção
jurídica, por fugir à norma, Foucault demonstra como a monstruosidade pode
contradizer a lei. Mas esse monstro não deflagra uma resposta por parte da lei
– ele a deixa sem voz. O anormal do século XIX é o monstro humano cotidiano,
um monstro banalizado, e não mais, como era visto até o século XVIII, uma
infração das leis da natureza.12 O monstro torna-se objeto de estudo médico e
passa a ser considerado um anormal do ponto de vista mental e psicológico.
Mas, também, todos os que fizerem parte desta categoria de ‘anormal’ serão
considerados ‘desviantes sociais’. Assim, a partir do século XIX, há uma
suspeita sistemática de monstruosidade no fundo de qualquer criminalidade.
Todo criminoso traria em si um monstro, assim como para Renato Kehl todo
doente seria um monstro, um anormal. Nas palavras de Kehl:

“(...) a palavra fealdade, aqui empregada, tem uma


significação mais ampla do que a do entendimento
corrente. Não corresponde á falta de predicados
physicos, de graça ou de outros attractivos, que fazem
de um homem ou de uma mulher alvo de admiração e
sympatia. A fealdade é encarada, nas paginas que se
seguem, sob o ponto de vista galtoniano e, como tal
emprestei-lhe o sentido claro de dysgenesia ou
cacogenia. Em outros termos ella equivale á
anormalidade, á morbidez, assim como a belleza
equivale á normalidade, a saúde integral.”13

Como se pode ver na introdução de seu livro A Cura da Fealdade, ser


feio não atenta somente contra um problema estético. As dicotomias
doença/saúde, sujo/limpo, feio/belo, anormal/normal e incivilizado/civilizado são
confrontadas com a intenção de perceber qual discurso do olhar se constituiu
para delimitar as ações do ‘outro’. O afastamento do sujeito observador no

12
FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de janeiro de 1975. In: Os Anormais. São Paulo: Editora
Martins Fontes, p. 69-71.

142
discurso médico transforma o observado em coisa, não humana, passível de
manipulação e enquadramento a um corpo técnico de regras e processos.14 A
fealdade transforma-se em anormalidade e morbidez, impossibilitando a saúde
do indivíduo. Mais do que isso, ela é a própria incivilidade.

As associações feitas entre saúde e beleza são transpostas à doença e


à fealdade. Dessa forma, inúmeras considerações são descritas na prática
discursiva de Kehl. Mais uma vez, os sifilíticos são vítimas dessas associações,
pois sendo considerada a doença que mais degenera a raça, impede a
formação do povo brasileiro. Sinônimo de ônus – mais do que isso – esses
doentes demonstram também a crítica feita ao assistencialismo15 nos casos de
doenças degenerativas. Em suas palavras:

As [crianças] que sobrevivem [à sífilis] são anêmicas,


rachiticas, feias, nevropathas, ticosas, candidatas a
morte precoce ou a se tornarem indivíduos cretinos,
loucos, paranóicos, (a nossa terra é considerada o
paraíso destes degenerados), cegos, paraliticos,
enxaquecados, sujeitos a uma existencia de tormentos,
de martyrios para os outros, e sobrecarga para o
Estado.16

É muito comum encontrar contradições no discurso eugenista de Renato


Kehl. Uma delas pode ser percebida no trecho abaixo, se a compararmos à
origem daquilo que ele considera anormalidade. Mesmo sabendo que no trecho
acima Kehl se refere ao sifilítico, a cegueira contraída por acidente não é
considerada anormalidade.

Segundo a ciência de Galton, não pode ser considerado


anormal o individuo portador de um defeito anatômico ou

13
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. São Paulo: Editora Monteiro Lobato, 1926, p. 05.
14
COURTINE, J-J. e HAROCHE, C. História do Rosto. Lisboa: Teorema, 2000, p. 218.
15
Para Kehl, a filantropia e o sentimentalismo contrariam a seleção natural, contribuindo para a
proliferação dos fracos, doentes e degenerados, agravando a decadência e o abastardamento
do gênero humano. In: Educação Eugênica. Rio de Janeiro: Livraria Alves, abril de 1932, p. 6.

143
fisiológico acidental ou mesmo congênito. A surdez, a
cegueira, a perda, por exemplo de um braço ou de uma
perna por doença ou por acidente, não tem importância
genética. As desordens hereditárias, estas sim,
constituem fatores de degeneração, porque atuam de
forma dominante ou recessiva, dando origem aos
verdadeiros cacoplasmas ou deficientes.17

Dessa forma, são os problemas de origem genética ou hereditária que


constituem fator de degeneração. E, assim, aquilo que vem de dentro do corpo
que é alvo de suspeitas e exames. Sobre o "gigantismo", Renato Kehl sublinha:
provou-se que os gigantes são quase sempre indivíduos anormaes,
degenerados, monstruosos.18 Portanto, para Kehl as deformidades físicas só
têm validade quando são congênitas, não quando adquiridas em acidentes ao
longo da vida.

A construção do que deve ser belo e a descrição daquilo que é feio


representam a maneira como o discurso médico eugenista pretendia interferir
no corpo individual. Apresentar a fealdade como sinônimo de doença conduz o
leitor para a ameaça e o medo do feio e de ser feio. Para ser belo, então, os
eugenistas19 propõem:

A Eugenia pretende certa regularidade nos traços


physionomicos, uma justa proporção nas partes
constitutivas do corpo, vivacidade de espírito,
movimentos graciosos no andar e nos gestos, além de

16
KEHL, Renato. Filhos de Luéticos, Jornal Correio da Manhã, 17 de outubro de 1923. FOC
17
KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas. Rio de Janeiro: Separata da Revista
Terapêutica, nº 3, 1942, p. 3. FOC
18
KEHL, Renato. Anões e Gigantes In: Eu Sei Tudo, nº 70, Março de 1923. FOC
19
Falo em eugenistas por crer que o discurso de Renato Kehl não era solitário e que a
formação do campo de saber e discussão da eugenia continha em si os medos e anseios de
seus correligionários.

144
saúde, força e vigor, para classificar um individuo no rol
dos typos eugenicamente bellos.20

Um dos caminhos para a cura da fealdade é o embelezamento. Os


padrões recomendados são baseados na forma física clássica dos antigos
gregos. Os parâmetros de normalidade estão associados à beleza, mas esta
tem de ser composta de aspectos não só físicos, como também psíquicos e
morais. Sobre a beleza, Kehl diz:

A eugenia considera belleza NORMALIDADE;21


normalidade esta somatica, psyquica e moral. Dentro
deste objectivo, admittem os eugenistas, como bello todo
o individuo dotado de saúde, vigor e robustez e que
apresente uma compleição physica e psyquica normaes.
(...) A fealdade, por sua vez, corresponde a
anormalidade, a desproporção, a desharmonia. Não
pode ser considerado bello o individuo tarado ou doente.
A eugenia não admite a dissociação das qualidades
somáticas e outras. Um imbecil plasticamente perfeito
não é considerado bello, sob o ponto de vista eugênico.22

De acordo com Canguilhem, O patológico não é anormal porque as


doenças fazem parte das funções normais de defesa orgânica e de luta contra
a doença.23 Desse modo, a estrutura do pensamento de Kehl corresponde a
uma concepção de vida que, além de ver no individuo sua hereditariedade,
fisiologia e genética, generaliza o que é patológico como sinônimo de doença.
Ou seja, o doente não pode ser considerado anormal, porque a doença faz
parte das funções de defesa do corpo. Anormal seria não adoecer, isto sim
sairia da norma. Entretanto, a patologia implica pathos (sentimento de
impotência), denunciando a passividade do corpo e do paciente diante da

20
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op. cit., p. 27.
21
Grifo de Renato Kehl.
22
KEHL, Renato. A Cura da Fealdade. op.cit., p. 27.

145
autoridade médica. Os eugenistas se valem de suposições dessa natureza
para encarar a doença (patologia) e considerá-la um desvio da norma,
intolerável porque funcionaria como um obstáculo para o progresso da nação.
Kehl é bastante explícito neste aspecto:

Os intuitos da doutrina eugênica podem ser resumidos


nos itens: 1º) fazer com que as pessoas bem dotadas ou,
mais claramente, as pessoas fortes, equilibradas,
inteligentes, portanto de linhagem hereditária sadia,
tenham maior número de filhos; 2º) que as pessoas
inferiormente apresentáveis (doentes, taradas e
miseráveis) não tenham filhos.24

Considerando a proposta descrita no item número 2 do fragmento acima,


a única maneira de as pessoas ditas ‘inferiormente apresentáveis’ terem
participação numa sociedade eugenizada é não tendo filhos – isto quer dizer,
utilizar-se de um instrumento que, até onde se sabe, não foi praticado no Brasil
de modo oficial nesse período, a esterilização25 de homens e mulheres, além
das proibições dos casamentos indesejáveis – mesmo porque, como afirmou
Jean Héritier, há séculos se considera que o feio é indigno de amar.26

Nesse sentido, Civilizado, Belo e Saudável formam uma tríade que,


segundo Kehl, deve manter suas relações fortes, contrariando a propalada
ameaça de degenerescência provocada, entre outros fatores, pela "miséria".

No final do século XIX, a associação entre pobreza e perigo alimenta o


imaginário médico e higiênico em muitas metrópoles ocidentais. Courtine

23
CANGUILHEM, G. O Normal e o Patológico. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1991, p.
107.
24
KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas, op.cit., pág. 4
25
Na década de 30, diversos países europeus, além dos Estados Unidos e da União Soviética,
já praticavam largamente a eugenia como forma de eliminar os indesejáveis. Um dos casos
assustadores dessa prática deu-se na Alemanha, entre os anos de 1934-1939, onde centenas
de milhares de pessoas foram esterilizadas. Na Califórnia, Estados Unidos, foram praticadas
mais de 50 mil esterilizações entre os anos de 1907 e 1948. Para maiores informações ver:
André Pichot, op. cit.
26
HÉRITIER, Jean. Le martire d’affreux. Paris: Édition Denoel, 1991, p. 82.

146
delimita os campos de dois tipos físicos característicos daquele momento: o
físico popular e o físico burguês. No caso do físico popular, é do anonimato das
fealdades onde pode sempre surgir o rosto da violência e do crime.27 Essa
ameaça de criminalidade relacionada à classe pobre é associada, da mesma
forma, à fealdade.

No Brasil, a associação entre pobreza e perigo fomentou inúmeras


justificativas de especulação imobiliária nas cidades, como meio de sustentar a
ingerência do governo na vida familiar e individual de cada trabalhador de baixa
renda.28 Um dos caminhos possíveis era a tentativa de proibir a existência dos
cortiços, onde se amontoavam famílias em um único cômodo e não havia rede
de esgoto e de abastecimento de água, recolhimento do lixo ou fiscalização
sanitária. Em contrapartida, a formação de bairros higiênicos29 impulsionou o
comércio de propriedades ‘saudáveis’, exacerbando a diferença entre estas e
os insalubres cortiços. Com isso, a necessidade de sanear e de prevenir essas
desagregações pedia ações efetivas das políticas públicas para frear e
controlar o espaço do operário pobre das cidades em ascensão.30

Descrito esse quadro, Michel Foucault é inspirador novamente para


pensar uma biopolítica e um biopoder que emergem do rápido crescimento do
capitalismo no século XIX, ou seja, um método para controlar as populações,
entendendo-as como espécie. Esse biopoder é um poder que incide sobre a
vida, a fim de sujeitar e docilizar os corpos, potencializando com sutilidades
disciplinares as relações do homem com seu meio.31

27
COURTINE, J-J e HAROCHE, C. História do Rosto. Lisboa: Teorema, 2000. pág. 221.
28
A este respeito a bibliografia é vasta. Ver, por exemplo, BENCHIMOL, Jayme (coord.). Febre
amarela a doenca e a vacina, uma historia inacabada. Rio de Janeiro : Fiocruz, 2001 e
CARVALHO, J.M. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. São Paulo:
Cia. das Letras, 1987.
29
Os bairros de Higienópolis e Campos Elíseos, em São Paulo, são exemplos da segregação
dos espaços do saudável e do doente, da formação do bairro burguês em detrimento do bairro
proletário, como, por exemplo, os bairros do Brás e do Bexiga. Maria Alice Rosa Ribeiro.
História Sem Fim... Inventário da Saúde Pública. São Paulo: Editora Unesp, 1993, p. 103.
30
Para saber mais ver: RAGO, Luíza Margareth. Do cabaré ao lar: a utopia da cidade
disciplinar. Op. cit. e RIBEIRO, Maria Alice. História sem fim.... Op. cit.
31
FOUCAULT, Michel. A História da Sexualidade. A Vontade de Saber. Volume 1. Rio de
Janeiro: Edições Graal, 1988.

147
A formação de disciplinas para o entendimento dessa nova sociedade
biopolítica criou campos e saberes específicos sobre o corpo. Demografia,
estatística, a própria sociologia, com seus ramos da antropologia e da
antropometria, para estudar os grupos sociais com o viés biológico ou não, a
biometria e a caracteriologia foram técnicas de análise e medição dos povos
para diagnosticar o lugar do ‘enquadramento’ e a formação da ‘norma’.

Na década de 1930, como se pode ver a seguir, para os eugenistas, a


situação econômica do Brasil só irá melhorar quando se formarem políticas que
dêem conta de educar, sanear e melhorar a sociedade. Segundo Kehl:

Cada dia que passa, mais se nos firma a convicção de


que só uma política educativa, sanitária e uma política
eugenica, dirigida por administradores de escól, poderá
melhorar a situação economica, politica e social do
Brasil.32

A proposta liberal e eugênica para extirpar o feio, o doente, o anormal


prevê a solução desse mal, por meio de duas estratégias: a eugenia e a
eutecnia.

Dentro de cinco gerações a humanidade poder-se-á


encontrar aliviada de 50 por cento de suas
monstruosidades, deformidades e desequilibrados
mentais, realizando um grande passo para o
reajustamento das populações com a elevação da taxa
dos bem dotados, em relação aos mal dotados e aos
ajustados psico-sociais. Tudo poderá realizar-se com o
auxílio da Eugenia, que melhora as condições
hereditárias do homem, e da eutecnia, que melhora as
condições do meio ambiente. 33

32
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op. cit., p. 20
33
KEHL, Renato. O que pretendem os Eugenistas, op. cit., p. 4.

148
Aqui, corpo e meio-ambiente são colocados como coisas distintas, não
influindo diretamente um no outro. A eugenia cuida das condições hereditárias,
que não podem ser modificadas pelo meio-ambiente.

No eugenismo de Renato Kehl não encontramos a importância da


historicidade34 no processo de formação da humanidade. Apesar de admitir a
influência do meio como uma das causas da degeneração, ele é descrito por
Kehl somente na sua dimensão física e climática. Aspectos como a água, a
terra, o calor e o frio são determinantes para a degeneração. As relações
humanas estão colocadas fora disso.

No discurso da Igreja durante a Idade Média, a anormalidade do monstro


servia para ressaltar os aspectos da normalidade. A anormalidade tinha valor
positivo, quando servia para ser mostrada àqueles considerados normais e
sugeria a eles o quanto eram abençoados por não sofrerem desse mal.35 Cria-
se a imagem da pena e da compaixão, características do assistencialismo tão
criticado pelos eugenistas, por pensarem que os problemas da anormalidade
deveriam ser tratados com embasamento científico.

Ao longo do século XIX e no começo do século XX a monstruosidade


ligada à imagem do feio condenava o indivíduo a uma existência marginal,
geralmente ao preço de uma triste exibição de sua anormalidade. Mas a
medicina social, a anormalidade passa a ser objeto de pena – como no caso da
Igreja – e digno de tratamento. Mas a medicina do século XX, e principalmente
a eugenia tratam de observar o anormal sob seu aspecto biológico, vendo-o
não mais como uma alma a ser salva, mas como um corpo a ser curado. Essa
cura necessitará dois tipos de estratégias: o diagnóstico e o tratamento
adequado.

34
Vemos aqui historicidade como processo de construção da história, tendo em vista as
relações sociais do homem com seu meio e da experiência vivida, do modus vivendi como
fatores determinantes para conhecer o homem e seu meio. É essa complexidade que admite a
subjetividade, mas que não dá conta da totalidade de uma realidade que constitui o lugar de
formação dos seres.
35
HÉRITIER, Jean. Op. cit., p. 76.

149
2. Isso é Feio! Que triste...

Como se não bastassem os adjetivos pejorativos atribuídos ao povo


brasileiro – que deveria ser civilizado – cujos membros típicos eram tidos como
feios, anormais, débeis ou medíocres, entre outros, um termo em especial
causa estranhamento, por tentar denominar a composição racial do brasileiro.
O Brasil, conhecido mundialmente como o país do carnaval, que vende alegria
e bem-estar, foi chamado por Renato Kehl em 1923, de país triste.

Apesar de fazer ressalvas em seu livro Eugenia e Medicina Social, Kehl


assegura que a tristeza, a frieza são apanágios do nosso povo.36 Enfatiza que
a tristeza, além de ser resultado de uma herança ancestral, é também
conseqüência da doença do povo brasileiro:

São tristes porque descendem de três raças tristes


principalmente dessa grande raça lusitana dos tristes
fados, dos suspiros e creadora do mais significativo
vocábulo da nossa língua – a saudade (...) Sim, pode ser,
mas o factor essencial da tristeza do nosso povo é a
doença.37

Admitindo que doença é a causa principal da tristeza de nosso povo,


administrar remédios para o corpo significaria mudar o semblante do brasileiro:
de triste a alegre. Como ressaltou Denise Sant’Anna,38 a publicidade foi
fundamental para disseminar essa idéia. Os anúncios da década de 1930
mostram que a tristeza causada pela fealdade – considerada doença pelos
eugenistas – torna-se injustificável com as promessas de um embelezamento
fácil e miraculoso proposto pelos médicos mais diversos para curar a feiura.
Essa postura, principalmente das empresas cosméticas estrangeiras – de
mostrar que o uso de seus produtos representa o fim do sofrimento – era

36
KEHL, Renato. Eugenia e Medicina Social. Op. cit., p.103.
37
Idem, Op. cit., p. 107
38
SANT’ANNA. Denise. Pourquoi souffrir? In: La recherche de la beauté...., Op. Cit., p. 210

150
favorecida pelo apoio dos médicos brasileiros. Nessa perspectiva, as silhuetas
feias e o sofrimento, ocasionado por elas, tendem a ser consideradas como
anormalidades indesejáveis, e como indecente sua dor excessiva e sua
infelicidade.39

A eugenia está no interior desses problemas, preocupada com a cura do


corpo e do espírito. Para isso, a tristeza e a feiúra – vistas como sinônimos de
doença – serão descritas em diversos tipos passíveis de cura. As chamadas
moléstias sociais40 são motivo de grande preocupação para os eugenistas.
Como já mostrado, a sífilis era sinônimo de fealdade:

Não fosse a sífilis, não existiriam tantas pessoas feias,


monstruosas, quer physica, moral ou psicologicamente. 41

Pessoas feias... não somente esteticamente, pois a feiúra está dentro de


cada indivíduo e também na moral e no comportamento. Essa passagem da
fealdade, de fora para dentro, abre uma perspectiva de análise que considera o
feio não apenas um atributo físico, mas também como uma prática do fazer
feio. Afirmações do tipo: - Não faça isso porque é feio!!!, encaminham a
observação do feio não como condição, mas como uma conseqüência do mau
comportamento. Já ouvimos a máxima: - Só é feio quem quer! Assim, a feiúra
torna-se uma questão de querer individual e não somente o resultado de um
acaso natural.

Todavia para Kehl, o problema das moléstias sociais é que elas


condenam as gerações futuras, pela hereditariedade. Em sua análise sobre o
alcoolismo, além do mal que representa o consumo do álcool, o texto revela um
efeito em escala de herança, em que o álcool dissipa o mal e a feiúra aos que
estão em torno dele.

39
Idem, Op. cit, p. 212.
40
Termo usado por CUNHA, Maria Clementina Pereira. Op. cit., p. 192.
41
KEHL, Renato. Formulário da Belleza. Rio de Janeiro: Editora Francisco Alves, 1927, p. 242.
CP

151
Vê lá um louco – é o filho de um alcoólatra. Vê lá um
mentecapto – é descendente de um ébrio. Vê lá aquela
família, maltrapilha e esquelética, as crianças fazendo dó
de magras, pallidas e feias – qual a causa? – O pae,
coitado, deu para beber e abandonou o lar!. 42

Contudo, esse efeito em escala do alcoolismo demonstra um problema


muito mais social do que sanitário. O pai alcoólatra é um coitado – ele não é
cidadão, é um doente, passivo – que abandonou o lar, ou seja, deixou mulher e
filhos que, sem o apoio masculino, ficaram impossibilitados de sobreviver.
Tornaram-se maltrapilhos, esqueléticos, loucos. A afirmação de Kehl
desconsidera por completo, nesse caso, o papel da mulher e a participação da
mãe na educação dos filhos. Para ele, onde estavam as lavadeiras, doceiras e
todas as mulheres trabalhadoras do período? Vê-se que, apresentando o
alcoolismo como um problema médico ele deixa de ser considerado como um
problema social para ser uma questão moral e individual.

O machismo das afirmações de Renato Kehl sugere que se os homens


não bebessem, não abandonariam seus lares, mulher e filhos, e que estes
estariam protegidos dos males do mundo. Enquanto isso, à mãe nem sequer é
reservado um lugar, ou melhor, o lugar da mãe, para Kehl, é de subserviência
ao marido, seja ele alcoólatra ou não.

Sabe-se, contudo o quanto o alcoolismo foi considerado um problema


relacionado à produtividade no trabalho. Visto como passível de degeneração,
deveria ser normatizado e disciplinado. Nesse sentido, a psiquiatria se ocupa
largamente do problema do alcoolismo nas Ligas de Higiene Mental. Isso
porque o alcoolismo é um fator de diminuição da produtividade, de aumento da
freqüência dos acidentes de trabalho dentro das fábricas.

Ao mesmo tempo, o individualismo, ao contrário do que se poderia


pensar, é considerado um obstáculo à política eugênica. Poderíamos imaginar

42
Idem

152
que o eugenismo, ao propor a melhoria do corpo individual e do cuidado de si
representaria um incentivo ao individualismo. No entanto, Kehl afirma
justamente o contrário:

O individualismo ignorante e egoísta constitue o


único empecilho para o advento da política
eugênica. Cada indivíduo, via de regra, pensa
em si e apenas na hora presente, segundo o
anexim: ‘quem vier atrás, que feche a porta’.
Pouco se lhes dá o amontoamento de infra-
homens, de cacoplastas, em suma, de resíduos
humanos; pouco se lhes dá o alastramento dos
que, com pesada e triste herança de anomalias,
são fatores de desharmonia nos lares, de
desordem e desorganização social, além de
ônus para o Estado.43

Interessante perceber que esta é uma citação publicada durante o ano


de 1942, portanto, durante a Segunda Guerra Mundial, em que as políticas
eugênicas estavam sendo executadas a todo o vapor pelo regime hitleriano.

As causas da degeneração são resultado também – de acordo com


Renato Kehl – de práticas que devem ser desestimuladas pelos governos de
modo compulsório ou através de um discurso persuasivo. Entre essas práticas,
está o controle do número de nascimentos de indivíduos inferiores e da
mestiçagem:

Entre todos os povos de cultura européia a fecundidade é


maior entre os indivíduos inferiores do que entre os
indivíduos superiores à média. As classes intelectuais
apresentam uma descendência mínima. Casamentos

43
KEHL, Renato. O que pretendem os eugenistas. Rio de Janeiro: Separata da Revista
Terapêutica, nº3, 1942, ano XXII, p.04. Renato Kehl era editor chefe desta revista na época.
FOC

153
tardios. Limitação da prole. Geração consciente.
Prolificidade natural reduzida: - o número de filhos é
inversamente proporcional à posição social dos pais.
Enquanto o número médio de filhos, por casal, entre
médicos, advogados, engenheiros é de 2 a 4, sobe de 4
a 8 entre os diaristas e trabalhadores braçaes.44

A mestiçagem, tão benquista por Gilberto Freyre, é categoricamente


criticada por Kehl. Os ‘desvios da norma genética’ geram problemas de ordem
social, como pode ser visto:

Os cruzamentos heterogêneos (entre raças diferentes,


por exemplo entre brancos e pretos, entre pretos e
amarelos ou bronze, etc), são responsáveis pelo
aparecimento de excessivas variações que representam
desvios da norma genética. A vida numa sociedade é
tanto mais intensa, desordenada, prenhe de vicissitudes,
de crimes, de degenerações, quanto mais heterozigotos
os elementos que a compõem.45

A argumentação baseada na cientificidade do discurso demonstra a


ameaça da miscigenação como fator de aumento da criminalidade e das
degenerações. Ao mesmo tempo, as referências raciais e étnicas de Kehl nada
tem a ver com a cientificidade, tão cara ao autor eugenista. Branco, preto,
amarelo e bronze são cores e não tipos raciais.

A imigração descontrolada era a principal fonte causadora desses


‘desvios genéticos’. Incentivada por alguns, na esperança da homogeneização
dos povos, é duramente criticada por Kehl. Em suas palavras:

44
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op.cit., p.45.
45
Idem, p. 44.

154
(...) A idéia de que a humanidade se homogenizará no
futuro, em virtude de fatal mestiçamento de todos os
povos, não nos parece admissível.46

Como afirmou Alcir Lenharo, a idéia do sangue-doença, portador da


destruição e desgraça, representa uma ameaça de morte para uma nação. O
sangue saudável seria sinônimo de nacionalidade saudável. No Brasil, na
década de 1930, as paixões racistas elevam um espírito de intolerância pela
ânsia nacionalista. Nesse sentido, as leis de imigração pautavam-se pela
negação. Havia mais certezas sobre o indesejável do que seu contrário.47

Asiáticos e negros eram os alvos principais do elemento de negação à


imigração. Kehl critica a política imigracionista adotada no Brasil, ressaltando a
importância de que sejam feitos incentivos às imigrações de grupos de países
de raça nórdica, não aceitando imigrações vindas de países asiáticos.

O Japão em pletora, a China em peores condições, a


Índia.... Imagine-se estes países a nos expelirem seus
rebutalhos multicor e multiforme!... E há quem defenda a
imigração estipendiada pelo Estado, para nos trazer tais
elementos. Se fossem suecos, noruegueses, ingleses e
alemães, ainda se conceberia. A lavoura precisa de
braços, eis o grito que se ouve e o governo que a
atenda! Questão de raças? “Isto fica para mais tarde”,
dizem os nossos pseudo-estadistas.48

O controle de imigração é visto também como uma das medidas de


preservação da nacionalidade. Muito defendida por Kehl foi a postura adotada
pelos Estados Unidos desde o século XIX, limitando a entrada de negros e
asiáticos em seu território. Não somente no caso norte-americano, mas em
todo o ocidente, a preocupação imigracionista gera debate entre os eugenistas.

46
Idem, p. 207.
47
LENHARO, Alcir. A sacralização da política. Op. cit., p.112-113.
48
KEHL, Renato. Sexo e Civilização. Op.cit., p. 208.

155
Nas palavras de Renato Kehl,

A terra, desde a era cristã, tem sido governada


pelos povos do velho continente, pela raça branca, como
se diz, ou pelo menos tem-lhe cabido o bastão de
mando, o controle do movimento político, econômico e
social do planeta. Começam porém, as migrações em
grande escala. As facilidades de transporte e a liberdade
de entrada em muitos países, concorrem para essas
fortes transmigrações. Dentro de algumas décadas,
muitos países estarão completamente mestiçados,
predominando os elementos asiáticos.49

A crítica de Renato Kehl estende-se também à própria medicina,


apresentada como fator degenerativo da espécie, no Brasil. Aliada à filantropia
e ao sentimentalismo, tornam-se obstáculo para a seleção natural. Essa idéia é
consoante àquelas pregadas pelo darwinismo social desse mesmo período.
Foi o que Kehl chamou de filantropia contra-seletiva:

A medicina, a filantropia, o sentimentalismo, em suma,


contrariando a seleção natural, salvando e concorrendo
para a multiplicação de fracos, doentes e degenerados, -
agravam ainda mais a decadência, o abastardamento do
gênero humano.50

Mas a espetacularização está posta especialmente em duas notas


publicadas no Boletim de Eugenia, que, apesar de longas, mostram com
clareza o modo como é feita a transposição da fealdade à degradação moral.
Scenas Deprimentes é o nome desta nota:

Não são poucos os brasileiros que se envergonham com


as cenas deprimentes que se assistem nas ruas do Rio

49
Idem, p. 206.
50
Idem, p. 44.

156
de Janeiro nos dias de carnaval. A fealdade physica e a
degradação moral aproveitam a oportunidade para se
exhibirem com todo o seu repugnante e verdadeiro
aspecto. Os indivíduos não põem mascara, - tiram-na.
Todo o resíduo informe da plebe, por influencia diabólica
do álcool e do vicio, sobrenada, vem á tona, para
misturar-se com a parte melhor do povo e contaminal-a
pelo delírio das baixas paixões. Asneiras de toda a sorte
são commetidas pelos indivíduos apparentemnete
ajuizados, mas que perdem, facilmente, o controle e
cahem no domínio dos instinctos.

A nossa plebe é feia, desengonçada e doente: - imagine-


se ‘caricaturizada’, pintada com farinha e cal e borrada
com tinta vermelha, - vestida andrajosamente em trapos,
a tremilicar e saracotear-se pelas nossas ruas!

Será isto o carnaval digno de ser conhecido e apreciado


pelos estrangeiros?51

Analisando essa nota por partes, podemos constatar que, segundo as


afirmativas de Kehl, parte dos brasileiros se envergonha com tais scenas
deprimentes. Quem são esses brasileiros? A elite intelectual europeizada (a
parte melhor do povo) que se mistura à plebe feia, que contaminará e
degradará o melhor do povo brasileiro? Então o brasileiro se envergonha e o
povo é contaminado pelo vício? A fealdade e a degradação moral do povo
brasileiro são argumentos de origens distintas – um biológico e outro do meio –
mas são juntadas a fim de explicar a necessidade de eugenização da
sociedade. Quando se refere aos estrangeiros, nós somos espetáculo para
eles? Não é com essa finalidade que querem “eles” (os estrangeiros),
conhecer o exotismo brasileiro?

51
KEHL, Renato. Scenas Deprimentes. In: Boletim de Eugenia. Volume 1, nº 2, fevereiro de
1929, p. 03.

157
Tal comentário de Kehl mostra um imenso mau-humor diante da vida
social e pública. Divertir-se no carnaval é ceder à influência diabólica do vício,
cair no domínio dos instintos e ainda motivo de ironia e desprezo lingüístico
com a chamada plebe (doente, desengonçada e feia), que mais representa o
cidadão comum e trabalhador: vestida andrajosamente em trapos, a tremelicar
e saracotear pelas nossas ruas! Nossas ruas? A rua não é o lugar do público?
Pela afirmação de Kehl, parece que não.

Um longo relato de Kehl de uma curiosidade da natureza expressa bem


a idéia de quanto a medicina se apropriou da espetacularização para seduzir e
demonstrar as necessidades de controle sobre os corpos dos indivíduos
brasileiros, desde o seu nascimento, passando pelo casamento e morte:

Há tempo um vespertino do Rio publicou uma notícia,


acompanhada de photographia, sobre uma família
residente em Guarapuava, cuja dolorosa história a
muitos impressionou.

Referia-se ella a um casal com 12 filhos dos quaes 6


nasceram sem pernas nem braços.

A “Eugenical News” de julho de 1930 traz sobre esta


desgraçada família dados mais pormenorizados, cuja
publicação poderá ser de grande interesse para os que
se dedicam a estudos sobre hereditariedade e,
principalmente, como advertência para o perigo dos
casamentos consangüíneos.

O mais interessante é terem sidos os homens os mais


prejudicados, pois dos 12 filhos, seis são anormaes,
sendo 5 rapazes e 1 menina. Os seis normaes são todos
do sexo feminino.

Das seis meninas normaes morreu 1. Dos seis anormaes


já morreram 2 rapazes. Os três restantes contam

158
respectivamente: 36, 32 e 18 annos; a menina tem
apenas 9 anos de idade.

A mãe e o pae, Gabriel Baptista da Rocha e Luciana


Rosa dos Santos, não apresentam qualquer
anormalidade aparente. O marido é tio da esposa. Seus
filhos são os primeiros que apresentam anomalia na
família, cujos membros são e forma physicamente
normaes.

Um reverendo missionário inglês Mr. H. Cook, que


visitou em Guarapuava este casal, fez minucioso
inquérito, sem conseguir descobrir antecedentes que
justifiquem taes anomalias; os quaes só podem ser
attribuidas á consangüinidade dos esposos.

Estes pobres aleijões andam sobre os joelhos com


relativa facilidade, comem com os côtos de braços que
possuem e fazem alguns trabalhos leves. Um delles, diz
o pae, corta lenha e até atira laço! A saúde geral destes
infelizes é boa.

As pernas terminam, nos rapazes, num pequeno pedaço


de tíbia em ponta. Na menina os braços, que terminam
na junta do cotovello, apresenta um côto emquanto, que
os delles acabam, antes da articulação. Um delles faz
excepção, porque dos seus braços um tem articulação e
o outro não.52

52
KEHL, Renato. Uma Família Brasileira cujos elementos não possuem braços nem pernas. In:
Boletim de Eugenia. Volume 2, nº 21, setembro de 1930, p. 03.

159
Essa matéria foi publicada em dois lugares antes do Boletim de Eugenia
(um jornal carioca e o Eugenical News53). Como se vê, trata-se de uma família
de doze filhos sendo que seis deles nasceram com problemas físicos
congênitos (anomalias). De acordo com Kehl, o mais interessante é terem sido
os homens os mais prejudicados. Essa afirmação denota, mais uma vez, um
certo machismo de Kehl, pois poderiam (talvez com menos custo social) ser as
mulheres as aleijadas. Seu comentário tem um tom queixoso, como se o fato
de os homens não terem braços nem pernas fosse um desperdício para a
sociedade, já que eles não podem trabalhar.

A cidade onde moram é Guarapuava, interior do Rio de Janeiro. A


família foi visitada por um reverendo inglês – da Igreja Protestante – que fez
um rigoroso inquérito. Dois problemas se insinuam aqui: 1. Um reverendo
inserido na pesquisa eugênica? Isso quer dizer que a Igreja católica é o alvo
dos eugenistas, os protestantes não, pela sua ética?; 2. A própria noção de
inquérito é contraditória: o inquérito é feito pela polícia, não pelo padre! Isso
significa uma criminalização dos deficientes, ou a completa disposição que
essa família deve ter para contribuir em tais pesquisas? O reverendo
desempenha a função do antropólogo.

As descrições são irônicas e frias, quase científicas, e mostram ainda


que, apesar do problema originado pela consangüinidade, os aleijões andam,
comem, trabalham, e um deles até atira o laço! Esse modo de conduzir o texto
leva-nos a questionar algo mais: para Kehl, o que torna essas pessoas
espetáculo? O defeito físico, o modo como lidam com o defeito físico, sua
saúde ou a origem genética desses problemas?

Podemos vislumbrar no objeto dessa nota um foco de resistência, de


adaptação ao modo de vida. Para os eugenistas, talvez fosse mais
desesperador ver que, no campo ou na cidade, famílias numerosas de vida
humilde, com eventuais problemas físicos, poderiam viver de forma alegre e

53
Interessante saber que um jornal eugenista norte-americano publicava notícias sobre casos
brasileiros.

160
com saúde. Eles poderiam ser infelizes para Kehl, mas será que se sentiam
assim?

Dessa forma, por saber que a multiplicidade dos sujeitos e a capacidade


de criação de todos é infinita, as fontes mostram que o eugenismo tinha que
criar um super aparato de técnicas, estratégias e condutas para que a
sociedade melhor, tão almejada, pudesse ser alcançada. Adiante serão
mostrados alguns remédios indicados para a cura dos males do Brasil.

161
3. A Cura da Fealdade 54

Para evitar o aumento da população de anormais, ou, segundo Renato


Kehl, dada a necessidade de impedir a proliferação dos resíduos humanos,55
algumas propostas são desenvolvidas para eliminar da sociedade os
considerados inaptos, degenerados e criminosos. Como pôde ser visto nos
dois itens anteriores, estavam incluídos nesses critérios pessoas que, além de
defeitos físicos congênitos, possuíam certas características de fundo moral e
social.

Para os eugenistas, não bastava visar o ideal de um tudo, mas o de um


ótimo para obter uma sociedade eugênica.56 Os norte-americanos – ressalta
Kehl – optaram por adotar uma postura segregacionista em relação à raça.
Diga-se de passagem, não somente a segregação racial, mas também a
segregação daqueles que devem estar isolados do meio social, os elementos
mais nocivos, tais como todos os débeis mentais e os epiléticos, e orientando
aqueles medíocres e menos perigosos para que pudessem produzir seu
próprio sustento.57

Todo um projeto foi construído para a formação de um aparato


tecnológico e disciplinar, visando a cercar de forma eficiente os possíveis
escapes da população. Isso quer dizer que a sociedade disciplinar, além de
sua preocupação em docilizar os corpos, para que se tornem mais produtivos,
servia-se também de uma prática discursiva baseada na biologia para se
legitimar.

A potência criativa dos grupos, o pulsar das singularidades escapam


inevitavelmente das mais diversas estratégias disciplinares, consolidando-se
nas resistências silenciosas ou não. Sugere-se que os eugenistas já sabiam

54
A Cura da Fealdade é o nome dado ao livro de Renato Kehl, que descreve técnicas de
embelezamento, normas e parâmetros de beleza estética.
55
Idem, p. 183.
56
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 183.
57
Idem.

162
disso, pois só a norma era insuficiente para reverter um estado de degradação
social.

Para que todas as proposições fossem implantadas de fato, deveriam,


antes de tudo, serem legitimadas não somente pela classe culta mas também
pelo poder legislativo. Kehl, porém, é implacável com essa organização.
Sustenta que, no Brasil, o congresso não é patriota:

A regeneração política de qualquer país civilizado


depende essencialmente de um aparelhamento
legislativo culto e verdadeiramente patriota. Outro tivesse
sido o nosso extinto corpo legislativo e já teríamos leis
modernas sobre imigração, proteção às mães e à
infância, e a lei regulamentando o casamento, todas elas
de proveito eugênico e consentâneas com as
necessidades do nosso país, atualmente em franca
evolução política, social e biológica, apesar dos óbices
opostos pela rotina, pela politicagem, pelo desgoverno,
além de outros múltiplos fatores que vêm atuando em
sentido contrário ao progresso.58

Diferentemente de diversos trabalhos que centralizam a discussão


acerca do eugenismo em torno da educação – como se fosse a vertente mais
importante de análise sobre esse tema – este objetiva demonstrar que a
educação representava uma vertente entre outras tantas. Todas essas
vertentes tem como critério principal estudar o caminho percorrido pela eugenia
para atingir seu fim, a profilaxia do indivíduo: educação (pedagógica, higiênica,
sexual, física), imigração, controle de nascimentos (birth control), legislação,
esterilização, paternidade, exame-pré-nupcial, genealogia, propaganda, entre
outras.

58
Idem, p.169.

163
Como ressaltou Marcos Nalli59, a educação é um exemplo de
intervenção eugênica e, dessa forma, apresentava fragilidades em sua eficácia,
assim como a religião e o progresso da ciência sozinhos não conseguem
impedir a degeneração dos povos. Nas suas palavras:

O progresso material, o progresso da ciência, a


educação, a religião não têm concorrido de modo
apreciável para impedir a decadência física e psíquica
dos povos.60

Desse modo, a educação é insuficiente para milagrosamente salvar os


cegos, surdos, cretinos, débeis mentais. Para tratar dessas pessoas, outras
medidas devem ser tomadas, mas Kehl não as apresenta de modo objetivo:

A educação, tão somente, elucidando, convencendo, não


conseguirá o milagre da regeneração humana porque há
cegos, há surdos, há cretinos, existem milhões de débeis
mentais, para os quais a educação não esclarece nem
persuade. Para estes impõem-se outras medidas... que
por serem eugênicas, não deixam também de ser
humanas, sem o falso sentimentalismo dos que olham
para o presente sem perscrutar o futuro, que olham para
um indivíduo, sem considerar a coletividade.61

Medidas eugênicas... e humanas. Do que está falando Renato? Da


esterilização? Ele sugere uma prática, mas não a nomeia. Apenas constata que
a educação é insuficiente para cuidar desses casos. Kehl ressalta mais uma
vez a tendência ao individualismo, que é motivo de crítica, por desprezar as
preocupações com a coletividade.

Os indivíduos não saem das escolas para a vida no


verdadeiro sentido, isto é, com a concepção clara das

59
NALLI, Marcos. Antropologia e segregação eugênica: uma leitura das Lições de Eugenia de
Renato Kehl. Mestrado em Psicologia. Universidade de Maringá, 2000.
60
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 45.

164
leis naturais e dos princípios que dominam a vida
individual e social. Quando muito trazem apenas a
bagagem, de uma ‘boa educação’ e nenhuma
compreensão dos deveres para com a descendência,
para com as gerações futuras. Individualismo e não
coletivismo. Misticismo. Preocupações de vida... extra-
terrena!62

Esse tipo de crítica ao individualismo é recorrente, ainda mais quando se


trata da educação. Ela é vista como uma boa educação (pedagogicamente
falando) mas não dá à pessoa nenhuma compreensão dos deveres para com a
decência, para as gerações futuras. O dever do indivíduo não é respeitar os
seus desejos, mas observar o futuro como o resultado de suas ações do
presente, tendo em vista o bom comportamento, a cientificidade, a visão de
hereditariedade, o civismo para a proteção das gerações futuras. Não se pode
esquecer que, quando se fala da educação, isso quer dizer educação sexual,
física, pedagógica, higiênica e, sobretudo, eugênica.63

Todas essas perspectivas educacionais têm uma finalidade principal:


conscientizar os indivíduos, principalmente as crianças, da necessidade do
cuidado do corpo para a proteção da hereditariedade e do Estado.64 Tendo
sempre como referencial as práticas de esterilização dos Estados Unidos, Kehl
enfatiza a necessidade da implantação desses procedimentos no Brasil, tendo
em vista a diminuição da miséria social e, como conseqüência, para melhorar a
situação dos indivíduos e do Estado.65

61
Idem, p. 50.
62
Idem, p. 45.
63
Ressaltamos os trabalhos elaborados sobre a educação física que merecem destaque na
constituição deste aparato educacional proposto pelos eugenistas, especialmente: SOARES,
Carmem. As raízes da educação física... op. cit.
64
Sobre a história da infância no Brasil, ver o belo trabalho de: BRITES, Olga.A imagem da
infância: São Paulo, 1930-1950. Tese de Doutorado. História PUC/SP, 1999.
65
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 190.

165
Os eugenistas acreditavam os débeis mentais e alienados, além de
representarem um prejuízo para o Estado, sobrecarregam os que são
considerados produtivos.

Os débeis mentais e os alienados além de


constituírem pesado ônus econômico são forças
negativas em prejuízo das produtivas. (...) Considere-se
a fabulosa soma necessária para manter esse formidável
peso morto e se aquilatará da importância transcendente
de uma medida como a esterilização. (...) São esses
resíduos humanos os causadores da miséria, do
infortúnio de tantas famílias, em cujo seio se reproduzem
degenerados de toda sorte, cretinos, idiotas, criminosos,
malandros, bêbedos, e toda a caterva de indesejáveis
que trazem a sociedade em permanente estado de
exsudação mórbida e criminal.66

Apesar de seu tom pesado, quando se refere aos indesejáveis como


resíduos humanos, a esterilização seria eficaz por cuidar dos incorrigíveis,67
como lembra Foucault. Além disso, a esterilização impede a procriação do
homem e da mulher. No caso masculino, significa simbolicamente a castração
(o método usado é a vasectomia), que impede que o homem espalhe sua
descendência através de seu sêmen. No caso feminino, a ligadura de trompas
(laqueadura) também adquire um significado simbólico: privar a mulher de seu
papel de mãe, uma vez que, nessa sociedade, culturalmente masculina, o lugar
reservado à mulher é cuidar do lar e dos filhos, e não poder ter filhos, na
década de 1930, é não ser mulher.

66
Idem, p.190.
67
Para Foucault, o indivíduo a ser corrigido é um fenômeno corrente na sociedade, por isso é
muito difícil determiná-lo. Ele é regular na sua irregularidade. O incorrigível é o monstro
empalidecido, banalizado, em que fracassaram todas as técnicas, procedimentos e
investimentos familiares e corriqueiros de educação pelos quais se pode ter tentado corrigi-lo.
Portanto, o indivíduo a ser corrigido é incorrigível. FOUCAULT, Michel. Aula de 22 de janeiro de
1975. In: Os Anormais, op. cit., p.73.

166
Dessa forma, Kehl dá as justificativas para a aplicação da esterilização,
em que casos o homem e a mulher devem ser submetidos a esse método:

Indicações para a esterilização. a) Esterilização de


alienados e de perversos instintivos; b) esterilização de
grandes criminosos e de miseráveis; c) esterilização
econômica, no caso de casais incapazes de fornecer,
pelo próprio esforço, os meios necessários para garantir
a subsistência e a educação dos filhos; d) esterilização
social, a fim de reduzir as despesas progressivas que a
coletividade é forçada a sustentar com asilos de débeis
mentais e inaptos ao trabalho, cada vez em maior
número; e) esterilização obrigatória, imposta por
doenças mentais; f) esterilização voluntária, praticada,
habitualmente por indivíduos com doenças físicas, por
exemplo, tuberculosos, por mulheres após repetidos
partos, havendo perigo de vida, cuja morte deixará na
orfandade os filhos.68

São seis as justificativas para as indicações da esterilização. Nesse


trecho, Renato Kehl explica de modo bastante cuidadoso quais são as pessoas
que se enquadram e que são potencialmente esterilizáveis. Sem simplificar ou
reduzir a explicação de Kehl, em outras palavras o que ele quis dizer é que a
esterilização é indicada aos: loucos, criminosos, pobres, vagabundos,
deficientes físicos, deficientes mentais, doentes (sifilíticos, tuberculosos, etc.) e
mulheres que correm perigo de vida, após diversos partos.

A necessidade de evitar os nascimentos dos indivíduos considerados


inferiores e estimular o nascimento dos superiores é quase uma obsessão dos
eugenistas. Kehl cita exemplos de países em que o controle de nascimentos é
empregado de maneira racional. Alemanha, Holanda, Dinamarca, Suécia,
Polônia e Japão figuram entre os exemplos analisados, com seus métodos de

68
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 194.

167
educação anticoncepcional69, o fim do tabu sexual70 e o controle compulsório
de nascimentos.71 Pra o caso brasileiro, Kehl enfatiza a importância do controle
racional de nascimentos, com os seguintes argumentos:

Somos partidários do birth control como medida de ultra-


profilaxia contra a pletora de débeis mentais, de
resíduos humanos, como defesa para os casais
eugenizados, mas que não podem, por motivos
econômicos, arcar com o sustento e a educação de
vários filhos.72

Muitas vezes o controle de nascimentos era confundido com liberação


sexual, já que o sexo não implicava necessariamente a procriação e sim
prazer. Mas Kehl, o astuto, não se furta a justificar que sua proposta não é
essa:

Não é nosso intuito propagar idéias


subversivas contra a moral vigente, muito
embora a precariedade desta sob muitos
aspectos. Não pretendemos a ‘liberdade de
amar’ porém a ‘liberdade para administrar
sensatamente o fruto do amor’73

Sob determinado aspecto, a liberdade para administrar os frutos do amor


seria conviver a partir de então com os métodos anti-concepcionais, com a
gravidez programada e com a qualidade de vida, o que, para o período,
representa uma postura arrojada. Pode-se dizer que Kehl é moderno nesse

69
Adotada na Alemanha e Holanda desde o século XIX. Na Suécia é praticada pelas ‘classes
inferiores’. In: Idem, p. 196.
70
No caso dinamarquês, a educação sexual e o desprendimento da moral católica geraram um
estado de coisas que possibilitou o ‘amor livre’, mas ao contrário da libertinagem vê-se uma
sociedade eugenizada em que o índice de doenças venéreas é baixo e os casamentos são
realizados dentro das normas eugênicas. In: Idem, p. 197.
71
Caso japonês: o estado limitou o número de nascimentos nas famílias a partir de 1930. In:
Idem, p. 198.
72
Idem, p. 198-199.
73
Idem, p. 199.

168
aspecto, por admitir que o sexo pode ser prazeroso e não ter somente a função
da procriação. No entanto, essa liberdade para o prazer sexual dirige-se
somente ao homem, o que faz o modernismo de Kehl ser parcial. Na verdade,
o controle de nascimentos é dirigido principalmente àquelas famílias pobres
que não têm condições para sustentar os filhos.

As nossas idéias se dirigem contra a inconsciência,


contra a ignorância, contra a estupidez das proles
numerosas, geradas à la diable, pelos incapazes da boa
procriação e pelos que não tem recursos para educar e
alimentar seus frutos, espuriamente gerados.74

Portanto, além de racial, maneira o eugenismo como sempre se


apresentou, trata-se também de uma teoria classista. Assim, o alvo dos
eugenistas são não somente os doentes hereditários e os cruzamentos inter-
raciais, mas também os pobres de modo geral. Deve-se, então, ressaltar mais
uma vez a dimensão a-histórica da eugenia, por considerar a pobreza uma
conseqüência da hereditariedade e não um resultado das relações sociais
historicamente constituídas. Assim, utilizando a comparação da descendência
de duas famílias norte-americanas, Kehl justifica a importância da eugenia
enfatizando um contraste:

Max Jukes, nascido em 1720, era um pescador ‘fraco de


espírito’; até hoje sua geração é de mais de 1200
pessoas. Pois bem, destas, 300 morreram recém-
nascidas, 60 forma ladrões habituaes; 130 criminosos
diversos, condenados a penas graves, 7 assassinos, 440
vagabundos, maltrapilhos, precocemente inválidos e
mortos, 300, finalmente ociosos, que nunca procuraram
ganhar honestamente a vida; apenas 20, dentre todos
estes, exerceram uma profissão e só a metade delles
aprendeu o offício no cárcere. Kraemphfert calcula em 40
mil contos o total das despezas de manutenção nos

169
hospitaes, prisões, asylos de loucos, e com socorros, que
tal família custou ao Estado de New York, não contando
os prejuízos inderectos de roubos, homicídios, destruição
de propriedades, etc.

Agora o contraste:

Jonathan Edward teve também uma prole numerosa: há


dez annos os seus descendentes andavam por 1.394.
Destes descendentes, 295 formaram-se em
universidades, 13 foram directores de collegio, 65
professores, 75 officiaes, 60 escriptores, que produziram
135 obras, algumas de grande valor, 30 juízes, 3
senadores e 1 vice presidente da República. Nenhum
membro desta família foi jamais condenado pela
Justiça!75

No texto em que está escrito ‘fraco de espírito’ leia-se pobre. É evidente


que o destino trágico da família Jukes não é tão trágico quanto parece, porque
o pescador do século XVIII, de origem humilde, não é o responsável direto pela
sua descendência.76 Além disso, mais de mil desses mil e duzentos
descendentes provavelmente encontraram impedimentos econômicos para
melhores condições de vida, tendo de recorrer a atividades ilícitas. Ainda mais,
no caso dos criminosos, ladrões e assassinos, Kehl não questiona de modo
algum as circunstâncias de cada caso. O texto é absoluto e generalizante
demais. A análise da família Edward não foge à regra. Além de ser muito
menor o texto, a ênfase ao status profissional de cada membro dessa família
desconsidera por completo o caráter de homens de tão altos postos de
trabalho.

74
Ibidem.
75
Boletim de Eugenia, Vol. 1, nº 5, maio/1929, p.03
76
Como foi possível fazer a genealogia de Max Jukes, um pobre pescador do século XVIII,
arrolando mais de 1200 descendentes? É de se questionar a veracidade desses dados.

170
Para que existam famílias de boa descendência, é necessário fazer um
plano para estimular o aumento do índice de nascimentos dos casais
superiores. Kehl propõe o que chamou de “política de natalidade”, que envolve
de modo esquemático os meios de ação para a diminuição da fecundidade dos
indivíduos abaixo da média e o correlativo aumento da fecundidade dos
indivíduos acima da média (a primeira com caráter eliminatório e a segunda
com caráter eletivo e estimulador). Por exemplo:

Propagar as vantagens do casamento dentro da mesma


raça, da mesma classe e, quanto possível, dentro da
profissão paterna ou da vocação predominante na
família. Esta proposta nós a apresentamos sem qualquer
intuito nacionalista, nem qualquer preconceito de raça.
Entendemos que a mestiçagem é dissolvente,
desmoralizadora e degradante, prejudicando, o espírito
superior visado pela procriação eugênica. É indiscutível o
antagonismo e mesmo a repulsa sexual existente entre
indivíduos de raças diversas. Só motivos acidentais ou
aberrações mórbidas fazem unir-se via de regra, um
homem branco com uma negra ou vice-versa. E o
produto deste conúbio nasce estigmatizado não só pela
sociedade, como, sobretudo, pela natureza; está hoje
provado, não obstante a grita de alguns cientistas
suspeitos, que o mestiço é um produto não consolidado,
fraco, um elemento perturbador da evolução natural.77

Além disso, faziam parte do plano algumas medidas como: a formação


de sindicato em defesa do progresso dos superiores; bolsa matrimonial – para
jovens expoentes em universidades casarem-se; concursos de eugenia para
adultos; impostos para os celibatários; concessões especiais ao militares mais
bem dotados; exame pré-nupcial obrigatório, entre outras.78

77
KEHL, Renato. Sexo e Civilização....., op. cit., p. 231.
78
Idem, p. 232-233.

171
Para facilitar a execução dos remédios eugênicos é necessária a
organização da árvore genealógica de todas as famílias. Para isso, o autor
propõe:

Novo sistema de recenseamento da população, a fim de


facilitar o histórico genealógico das famílias. Organização
de registros genealógicos ou dispensários eugênicos nas
cidades com o propósito de instruir os candidatos ao
himeneu, sobre seus defeitos e qualidades e facilitando a
formação de family stocks favorecendo, assim, a
procriação de geno-tipos de elite.79

Retorna-se assim à árvore genealógica como uma das medidas


fundamentais para a implantação eugênica. Se a rede de poderes de Renato
Kehl foi concebida como uma segmentaridade arborescente, representada na
árvore da eugenia, quando se fala em árvore genealógica pode se perceber
essa segmentaridade sendo reproduzida individualmente, no nível molecular.
Cada indivíduo é uma árvore (com auto-controle, o cuidado de si e do coletivo),
e a família é também uma árvore (com a tradição e a hereditariedade), todos
eles inseridos numa sociedade concebida em forma de árvore (centralizadora,
mas com segmetaridades fixas.

Foram apresentadas aqui algumas das propostas de erradicação do feio,


da doença e do anormal. Dificilmente todas as propostas seriam esgotadas.80 A
reflexão sobre tais propostas eugenistas necessitaria de uma nova dissertação.
Por isso, como no item anterior se aprofundou o aspecto do cruzamento e da
imigração, neste item tratou-se de alguns outros, como educação legislação,
genealogia, esterilização, controle de nascimentos e paternidade.

Assim, reproduzimos na íntegra a ambição de Renato Kehl, e de grande


parte dos eugenistas, de reformar a sociedade brasileira, ambição que, se por
um lado é utópica, por querer uniformizar e homogeneizar a sociedade num

79
Idem, p. 233.
80
Restam ainda propostas como a da propaganda eugênica, política asilar, exame pré-nupcial,
testes mentais.

172
sonho totalitário, por outro lado tinha planos detalhados para a sua
implantação. Faltou-lhes o quê?

* * *

Esquema dos remédios propostos

1. Registro obrigatório individual e genealógico das


famílias.

2. Segregação dos deficientes, dos criminosos e dos


socialmente inadaptados.

3. Esterilização dos anormais e criminosos com


grandes taras transmissíveis por herança.

4. Procriação consciente e prevenção dos nascimentos


por processos artificiais para evitar a concepção, nos
casos especiais de degeneração, de doença e miséria.

5. Regulamentação eugênica do casamento e exame


prenupcial obrigatório.

6. Propaganda popular de conceitos e preceitos


eugênicos, por intermédio dos institutos oficiais de saúde
pública

7. Educação eugênica obrigatória nas escolas


primárias, secundárias e superiores, tendo em vista a
seriação dos assuntos de acordo com o grau das
referidas escolas.

8. Luta contra os fatores disgenizantes por iniciativa


oficial e privada.

9. Testes mentais das crianças nas escolas, em geral,


e testes vocacionais nas escolas profissionais e nos
cursos superiores.

10. Estabelecimento de cuidados pré-natais,


obrigatórios, por lei e de pensões às mais pobres.

173
11. Regulamentação da situação dos filhos ilegítimos.

12. Regulamentação da imigração sobre base na


superioridade media dos habitantes do país, estabelecida
por testes mentais.

13. Verificação dos defeitos hereditários disgênicos que


impedem o matrimônio e os que podem servir de base e
pleiteação do divórcio.

14. Proteção e auxílio aos indivíduos de reconhecidas


capacidades superiores, mas desamparados por motivos
sociais imprevistos.

15. Legislação destinada ao incremento das boas


estirpes (redução de impostos, direitos de preferência,
etc.).81

81
Idem, p. 213.

174
Todo o dom tal como a beleza, a inteligência, ou
habilidades sociais, ajudarão suas crianças na
conquista da felicidade e do sucesso.
Ron Harris, fotógrafo de moda
C ONSIDERAÇÕES F INAIS

Esta dissertação quis mostrar ao longo de seus três capítulos que o


eugenismo de Renato Kehl se constituiu em forma de uma rede de poder
levando em conta que, o instrumento principal para esta constituição era sua
prática discursiva. Desta forma, é necessário neste momento fazer um
pequeno esclarecimento sobre a estruturação deste trabalho.

Como foi dito na introdução, a rede de poderes de Kehl, não é


rizomática, mas faz parte de uma segmentaridade arborescente, de acordo
com as leituras de Deleuze e Guattari. No entanto, este trabalho foi construído
como um rizoma. Ou seja, a própria dificuldade de enfrentar um tema tão
áspero quanto a eugenia, esclarecia ao mesmo tempo que seria inviável dar
conta da totalidade de sua complexidade e de suas inúmeras facetas. Estas
facetas foram chamadas durante o trabalho de braços do eugenismo.

Desta forma, educação, imigração, legislação, sexualidade, imprensa,


acabam por ser desdobramentos de uma teoria que se diluiu na sociedade
brasileira com o passar dos anos e que, hoje, não se pode identificar seus
resquícios porque seus propósitos do passado foram reconfigurados sob outros
significados.

Não foi pretendido, portanto, trabalhar estes desdobramentos. Esta


dissertação foi construída como um rizoma. Sem começo, meio ou fim. Foi
estruturada de modo não hierarquizado, sem pretender ser Una ou então
arborificada. Optou-se examinar como foco central, duas problemáticas que se
mostraram de grande importância nas fontes históricas. Primeiramente, as
redes de poder em que Renato Kehl estava inserido – como resultado das
ações e experiências sociais e, em segundo lugar, nas descrições do corpo
imperfeito feitas por ele, na tentativa de preparar uma ação política para
disciplinar os corpos considerados inaptos ou improdutivos por estes atrasarem
a evolução do Brasil.

176
Por isso, cada um dos capítulos desta dissertação pode ser lido
separadamente pela própria especificidade da abordagem e do tipo de fonte
histórica trabalhada. Boletins, atas de congressos, cartas pessoais e livros
contribuíram para a partir de Renato Kehl indentificar inúmeras conexões entre
ele e seus companheiros da rede arborificada. Esta rede era também, mais
uma rede (ou célula) microfascista entre diversas outras da época.
Obviamente, a leitura completa do texto trará uma melhor compreensão do
objetivo desta dissertação. As duas problemáticas deste trabalho também se
entrecruzam com freqüência (rede e corpo); os braços eugenistas aparecem
em todas as fontes e, a ênfase deste trabalho era em saber o modo como Kehl
constituiu tal rede e com que pessoas.

O caminho encontrado por Kehl para conquistar o sucesso da eugenia


foi atingir inicialmente a elite, para depois convencer a população de seus
propósitos. Portanto, estas estratégias são postas em prática por seus
membros, a fim de conquistar o maior número de adeptos. A frase: a conquista
da opinião pública e, em particular das pessoas cultas,1 mostra o envolvimento
deste setor social com a eugenia. Então se pergunta: a elite se seduziu com
estes propósitos? Dificilmente será encontrada uma resposta para esta
pergunta, já que podem ser percebidos até hoje vestígios das práticas
eugenistas do começo do século atuando de modo bastante sólido, mas que,
para o senso comum são consideradas ‘naturais’ e sem historicidade. Exames
pré-nupciais, testes de QI, a educação física como disciplina obrigatória, etc.

Esta biologização da vida alavancada pelo lançamento do livro de


Charles Darwin, desprezou durante muito tempo o papel da história na
constituição das sociedades. A biologia e as ciências da vida passaram a
explicar os fenômenos ‘naturais’, transformando a história num relato objetivo e
racional. Talvez esta separação da história com o mundo, enfatizada pelas
ciências exatas durante tanto tempo, prejudicou o próprio entendimento da
humanidade no mundo.

1
KEHL, Renato. No século da Eugenia, In Imprensa Médica. Rio de Janeiro, Ano XIII, nº 231,
15/01/1937.

177
Renato Kehl não foi o único nem o último a propor práticas de
melhoramento da raça e da espécie. O Brasil, ainda que miscigenado e
múltiplo ainda tem muito a melhorar no que diz respeito às tolerâncias nas
diferenças. No entanto, ao redor do mundo temos visto demonstrações cada
vez mais atrozes (pessoais e de Estado) de indicam uma tendência à
segregação dos povos.

Além disso, com os desenvolvimentos das técnicas de leitura de DNA e


de reprodução humana que aliam a genética com a informática, atualmente já é
possível programar o nascimento de uma criança, tendo em vista, a aparência
que ela deve ter. Multiplicam-se na internet os sites de bancos de esperma e
de venda de óvulos de homens e mulheres belos. O preço de cada óvulo ou de
cada material para inseminação é determinado de acordo com os caracteres
físicos e principalmente pela observação dos pais do candidato à venda do seu
material, ou seja, a hereditariedade. Abaixo foi transcrito o anúncio do Modelo
89, cujo sêmen vale 15 mil dólares, que se parece bastante com as descrições
de Renato Kehl sobre o corpo e a herança:
SAÚDE PERFEITA, HOMEM DE NEGÓCIO BEM
SUCEDIDO HETEROSEXUAL E MODELO DE HOMEM.
Eu sou um homem sincero, honesto que compreende as
necessidades dos pais e o amor que um pai tem a uma
criança. Eu sou filho único, em meus 30 anos, olhos
azuis, cabelo castanho. Sou investidor e cuido dos
negócios da família e de investimentos para executivos.
Eu sou um de cinco filhos – cada um de nós tem um ano
de diferença do outro. Eu sou o filho do meio com 2
irmãos e 2 irmãs - todos nós estão com a saúde perfeita,
com nenhuma doença e, altura e peso proporcionais.
Meus pais foram casados depois que se graduaram da
mesma Universidade onde minha mãe era oradora e meu
pai atleta. Ainda são casados e aposentados após ambos
terem carreiras bem sucedidas: minha mãe no governo e
meu pai como o professor e técnico de educação física.

178
Ambos são muito ativos, saudáveis, com mentes
brilhantes como meus irmãos. Eu não tenho nenhum
vício, não uso drogas, não jogo, nem meus pais.2

A eugenia ontem e hoje tem suas especificidades, mas o que está e


estará sempre em jogo é a defesa da nacionalidade, para que o país se povoe
de gente sã moral e fisicamente3. Mas o preço que deverá ser pago para que
possa existir uma espécie saudável pode ser perversa e sórdida na medida em
que segrega os mais diferentes grupos.

Conclui-se, portanto, que a história do corpo nada mais é do que a


história da civilização – vendo civilização como civilidade – em que são
necessárias as mais diversas estratégias de disciplina e controle. O corpo é
objeto de estudo e a vida um conjunto de ações determinadas por interesses
muito particularistas. A ética apresenta-se então como um caminho possível
para que o lugar do indivíduo na sociedade possa ser resguardado e a história,
nesse sentido, contribui para a compreensão de que a vida não é natural, mas
histórica.

2
Anúncio disponível no site: http://www.ronsangels.com. Site de venda de óvulos e banco de
esperma de modelos “bonitos” norte-americanos idealizado por Ron Harris fotógrafo de moda.
Acesso em 29/03/2003.
3
KEHL, Renato. Sexo e Civilização, op. cit., p.05.

179
B IBLIOGRAFIA

1. Artigos, Livros, Dissertações e Teses

- ANTUNES, J.L.F. Medicina, leis e moral: pensamento médico e


comportamento no Brasil (1870-1930). São Paulo: Unesp, 1999.

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Sacchetta. São Paulo: Editora Senac/São Paulo, 1997.

- BAKIRTZIEF, Zoica. Conhecimento científico e controle social: a


institucionalização do campo da hanseníase (1897-2000). 2001, 125 f.
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2. Obras de referência

- Atlas Histórico Mundial: de la Revolución Francesa a nuestros días.


Vol. 2. Madrid: Ediciones Istmo, 1985 (10ª edição), p.177.

- Dicionário AurélioEletrônico Século XXI. Versão 3.0. São Paulo:


Editora Nova Fronteira, 1999. Multimídia. 1 CD-Rom.

- Dicionário de autores paulistas. Comissão IV Centenário da Cidade


de São Paulo: 1954 (Luis Correia Mello – organização).

- Enciclopedia de la Filosofía. Barcelona: Ediciones Garzanti, 1992.

- Enciclopédia Microsoft Encarta 99. São Paulo: Editora Nova


Fronteira: 1998. Multimídia. 1 CD-Rom.

- Quem é Quem na História do Brasil. São Paulo: Editora Abril, 2000.

3. Filmografia Recomendada

- 1984 (Inglaterra), 1956. Michael Anderson (diretor). Baseado no livro


de George Orwell, conta a história de uma sociedade sob o regime
totalitário no futuro, sob os olhos do Big Brother. Narra a história de um
funcionário da censura que se apaixona e rebela-se contra o sistema.

- Bamboozled (EUA), 2000. Spike Lee (diretor). Um frustrado escritor


de seriados para a TV norte-americana propõe um show de menestréis

189
baseados nas black-face do início do século XX como crítica ao
racismo, mas o show se torna um sucesso.

- Daqui a Cem Anos (Inglaterra), 1936. Willian Cameron Menzies


(diretor). Mostra a sociedade após um 2º conflito mundial em que se
instaurou a praga e a anarquia, mas um Estado racional reconstrói a
civilização nas bases eugenistas.

- Fahrenheit 451 (Inglaterra), 1956. François Truffaut (diretor). Numa


sociedade do futuro são proibidos os livros. Os bombeiros
desempenham o papel de polícia que controla, vigia e pune aqueles
que lêem.

- Gattaca (EUA), 1997. Andrew Nicol (diretor). História futurista de um


homem geneticamente ‘imperfeito’ e sua busca por inserção numa
sociedade eugenizada.

- Homem Elefante (Inglaterra / EUA), 1980, David Linch (diretor). A


história de John Merrick um homem transformado em espetáculo para a
comunidade burguesa da Inglaterra vitoriana e o dilema moral de um
médico.

- Hommo Sapiens 1900 (Suécia), 1998. Peter Cohen (diretor).


Documentário sobre o eugenismo no início do século XX. Mostra
também a implantação das práticas de esterilização e de controle de
nascimentos na Suécia, Estados Unidos, União Soviética e Alemanha,
principalmente.

- Meu Tio (França/Itália), 1958. Jacques Tati (diretor). Retrata uma


família de classe média e seu convívio com os aparatos tecnológicos de
uso doméstico que acabam por criar um novo modo de vida.

- O Ovo da Serpente (EUA/RFA), 1977. Igmar Bergman (diretor). Na


semana entre 3 e 11 de novembro de 1932, em Berlim, às vésperas da
ascensão nazi, conta a violência física a psicológica a que são
submetidos os indivíduos ‘não arianos’.

190
4. Sites

Eugenismo norte-americano – http://www.eugenicsarchive.org (inglês)

Portal com imagens e documentos disponíveis para download, sobre o


movimento eugenista norte-americano. Financiado pelo Ethical, Legal
and Social Implications Research Program National Human Genome
and Research Institute, Cold Spring Harbour e Rockfeller Archives
Center. Acesso em 24/11/2003

Neo eugenismo – http://home.att.net/~eugenics/index.htm (inglês)

Stephen J. Gould é chamado de ‘sabotador marxista da ciência’.

Pregam uma nova raça de “Crianças de Prometeu”

Criticam judeus, negros.

Oferecem testes de QI, disponíveis através de download de software.

Fazem uma revisão dos textos neoeugenistas da atualidade, em que


pesquisadores com Phd desenvolvem trabalhos com este tema. Acesso
em: 24/11/2002.

Anti-neoeugenista - http://www.eugenics-watch.com/ (inglês)

Indica artigos sobre bioética, sobre democracia e racismo.

Dá acesso ao The American Eugenics Society (1922-1994) e da British


Eugenics Society (1994) em que aparece Renato Kehl como membro
desde 1937, mostrando a lista integral de seus membros, com
publicações e atividades destas associações. Acesso em 24/11/2002.

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