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ABORDAGEM INICIAL DO PACIENTE GRAVE COM HIPOTENSÃO: DESAFIOS


E ARMADILHAS DIAGNÓSTICAS

Lara Virgínia Lordello Melo, Rômulo Mello Sampaio, Patrícia Veiga de C Mello

RESUMO:
Choque é um dos quadros clínicos de maior complexidade em unidades de terapia
intensiva de todo o mundo. Suas manifestações iniciais são reveladas por meio de
um conjunto de sinais e sintomas inespecíficos, necessitando-se de alto grau de
suspeição para que seja possível o diagnóstico precoce. Suas causas e
fisiopatologias são variadas e demandam medidas diagnósticas e terapêuticas
complexas, as quais são essenciais para interrupção do processo de disóxia celular
que leva a falência microcirculatória, insuficiência orgânica irreversível e óbito do
paciente. O diagnóstico tardio, combinado à terapêutica inadequada aliados ao
conhecimento insuficiente de sua intrincada fisiopatologia, em especial dos
componentes genéticos, inflamatórios e imunológicos envolvidos nesses quadros,
mantém seus altos índices de letalidade.

PALAVRAS CHAVES:

Choque, hipotensão, hipoperfusão

INTRODUCÃO

Choque é um dos diagnósticos mais frequentes em unidades de terapia intensiva


(UTI) em todo o mundo, chegando a acometer 1/3 dos pacientes admitidos nessas
unidades.1 Caracteriza-se por quadro de hipoperfusão e oxigenação inadequada
aos tecidos, a qual, se prolongada, leva a falência múltipla de órgãos e óbito do
paciente. 2

O diagnóstico precoce e o início de medidas terapêuticas imediatas e adequadas


representam a melhor chance de bom prognóstico para esses pacientes, os quais
permanecem com elevadas taxas de morbimortalidade.3 O primeiro desafio na
condução desses casos consiste no reconhecimento dos sinais mais precoces de
hipoperfusão, os quais idealmente devem ser identificados antes mesmo da
instalação de hipotensão.2

OBJETIVOS

Ao final deste capítulo, espera-se que o leitor seja capaz de:


• Identificar os sinais precoces dos quadros de choque;
• Avaliar e corrigir as variáveis fisiológicas determinantes da oferta tecidual de
oxigênio;
• Realizar medidas de estabilização inicial do paciente;
• Fazer diagnóstico diferencial por meio de investigação apropriada;
• Iniciar terapêutica definitiva de acordo com diagnóstico etiológico.
2

ABORDAGEM DIAGNÓSTICA E TERAPÊUTICA INICIAL

Medidas diagnósticas e terapêuticas devem ser iniciadas de forma simultânea tão


logo sejam identificados sinais precoces de hipoperfusão. Na sequência, é preciso
identificar o mecanismo causador do desequilíbrio oferta/consumo de oxigênio
(DO2/VO2) presente no quadro. Para tal, deve-se avaliar cada uma das variáveis
determinantes da oferta tecidual de oxigênio (DO2). A DO2 depende do conteúdo
arterial de oxigênio - CaO2 (Sat02, PaO2 e Hb), mas, seu principal determinante é o
débito cardíaco (DC), que por sua vez depende da pré-carga (volemia),
contratilidade e da pós-carga. (Figura 1). Através da avaliação das variáveis
determinantes do DC, é possível delinear o perfil hemodinâmico do paciente e
identificar o tipo de choque apresentado (Tabela 1). Pacientes com choque
hipovolêmico caracterizam-se por diminuição da pré-carga levando ao baixo DC;
pacientes com choque cardiogênico caracterizam-se por apresentarem baixo DC
por déficit de contratilidade ou por arritmias; pacientes com choque obstrutivo
apresentam baixo DC por obstrução ao fluxo e pacientes com choque distributivo
caracterizam-se por apresentarem vasoplegia. As medidas terapêuticas iniciais
visam no primeiro momento à estabilização dos sinais vitais do paciente através da
tradicional abordagem do “ABC” e na sequência a identificação da causa do choque
e terapêutica especifica.

Figura 1: Determinantes da oferta tecidual de oxigênio (DO2).


3

Fonte: própria

Tabela 1: Perfil hemodinâmico e principais intervenções terapêuticas nos diversos


tipos de choque.*

*cedido por Veiga C Mello, PM; Dellinger, RP et al. 10


4

1. RECONHECIMENTO PRECOCE DA PRESENÇA DE HIPOPERFUSÃO

O diagnóstico inicial é baseado em sinais clínicos (rebaixamento de consciência,


oligúria, taquicardia, lentificação do tempo de enchimento capilar), hemodinâmicos e
laboratoriais, que mesmo inespecíficos, quando presentes em cenário clínico de
possibilidade de choque, devem ser valorizados e investigados de imediato ( Tabela
2). 4

Tabela 2: Sinais sugestivos de hipoperfusão tecidual.


5

Clínicos Rebaixamento de consciência, taquipneia, taquicardia,


extremidades mal perfundidas com enchimento capilar
lento, palidez, cianose, hipotensão, oligúria
Hemodinâmicos Pressões de enchimento baixas (pressão venosa
central - PVC e pressão de oclusão da artéria pulmonar
- POAP), DC inadequado para demanda metabólica.
Laboratoriais Acidose, elevação de lactato sérico, diminuição de
ScvO2 ou SvO2, elevação do ∆CO2, elevação de ureia
e creatinina
Fonte: própria

Hipotensão freqüentemente acompanha quadros de choque, mas pode


apresentar-se tardiamente. Um paciente em choque hipovolêmico pode
começar a apresentar hipotensão quando já perdeu aproximadamente 30%
de sua volemia. Isso ocorre devido aos mecanismos de compensação
fortemente eficazes com excesso de catecolaminas circulantes5 ou ainda
pelo uso de vasopressores6 sem receber ressuscitação volêmica adequada
de forma concomitante, ou seja, esses pacientes podem apresentar- se com
níveis de pressão normalizados às custas de vasoconstricção e agravamento
da perfusão tecidual.

Dessa forma, a presença de hipotensão não é necessária para o diagnóstico


de choque, mas, sim a presença de hipoperfusão. Denomina-se de choque
críptico ou choque oculto, as situações onde se observa a presença de
hipoperfusão a despeito de níveis pressóricos normais e o retardo na
identificação desses casos pode piorar seu prognóstico. 7

Outro ponto importante é a presença precoce de hiperlactatemia. Em estados


de baixo-fluxo, o mecanismo primário da hiperlactatemia é hipóxia tecidual,
com desenvolvimento de metabolismo anaeróbio.8 Níveis elevados de lactato,
bem como o não clareamento deste em pelo menos 20% a cada 2 horas nas
primeiras 8 horas, se associam a um pior prognóstico. Recomenda-se,
portanto, avaliação seriada a cada 2 horas do lactato nas primeiras horas de
atendimento. 9

2. AVALIAÇÃO DOS DETERMINANTES DA OFERTA TECIDUAL DE


OXIGÊNIO (DO2)

O principal determinante da DO2 é o débito cardíaco (DC), e este, é um


produto da frequência cardíaca (FC) e do volume sistólico (VS), o qual por
sua vez é determinado pela pré-carga, contratilidade e pós-carga (Figura 1).
Um dos primeiros passos na avaliação e estabilização desses pacientes
consiste em identificar e corrigir a presença de arritmias e de forma
concomitante deve-se proceder com o delineamento do perfil hemodinâmico
do paciente, identificando se o mesmo apresenta predominantemente
diminuição da volemia (choque hipovolêmico), falha de contratilidade (choque
cardiogênico), obstrução ao fluxo (choque obstrutivo) ou vasoplegia (choque
distributivo) (Tabela 1).
6

A avaliação da pré-carga (volemia) pode ser feita pela integração das


informações obtidas na anamnese, exame físico e obtenção de dados
laboratoriais e hemodinâmicos (Tabela 3). A avaliação da contratilidade exige
a realização de exames complementares como o ecocardiograma ou
monitorização invasiva para obtenção da mensuração do débito cardíaco
(DC), enquanto a avaliação da pós - carga pode ser estimada pela
temperatura das extremidades ou calculada através de índices de
monitorização invasiva.

Tabela 3: Avaliação da volemia (pré-carga)

Hipovolemia Hipervolemia
Anamnese Hemorragias, perdas de líquido História de cardiopatia,
(vômitos, diarréia), sequestro insuficiência renal,
líquido para terceiro espaço, hepatopatias
perda cutânea (sudorese
intensa, queimadura)
Exame Físico Mucosas secas e descoradas, Sinais de
palidez, cianose, extremidades hiperhidratação, edema
frias, oligúria, taquicardia, pulmonar, turgência
taquipnéia, pele fria, sudorese, jugular, taquicardia,
ausência de turgência jugular, edema periférico,
tempo de enchimento capilar derrame pleural ou
lento, hipotensão, alteração da ascite
consciência, pulso filiforme,
hipotermia ou hipertermia
Dados Baixas pressões de Elevação de pressões
Hemodinâmicos enchimentos (PVC, POAP), de enchimento (PVC,
colabamento de veia cava POAP), veia cava
inferior com a respiração, inferior túrgida sem
hipotensão variação de diâmetro
com respiração
PVC: pressão venosa central; POAP: pressão de oclusão da artéria
pulmonar.
Fonte: própria

A identificação de quais variáveis determinantes da oferta tecidual de


oxigênio que podem estar causando ou contribuindo para o quadro de
choque é essencial para a intervenção guiada para corrigi-las, interrompendo
assim o insulto inicial e o déficit de perfusão tecidual, evitando injúria
adicional (Figura 1). 2

O objetivo terapêutico inicial deve ser o de proceder com avaliação e


otimização da perfusão celular, garantindo oxigenação e ventilação
adequadas, o que geralmente requer suporte ventilatório e garantia de níveis
mínimos de hemoglobina para que haja transporte de oxigênio. Essas ações
visam à otimização do conteúdo arterial de oxigênio (CaO2). Faz-se também
a avaliação e correção da volemia com uso monitorado de fluidos; a
7

otimização da contratilidade com uso de inotrópicos se necessário e correção


da vasoplegia com vasopressores, mantendo níveis de pressão arterial média
mínima (PAM) compatíveis com a otimização da perfusão tecidual. Por fim, é
necessário ainda que a capacidade de extração e utilização efetiva de
oxigênio a nível celular esteja ocorrendo de forma eficaz. Caso isso não
ocorra, observa-se um desequilíbrio na relação DO2 /VO2 levando a
alterações da saturação venosa mista (SvO2) e/ou da saturação venosa
central ( ScvO2).

Na presença de um estado de diminuição generalizada da oferta ou utilização


tecidual efetiva de oxigênio, desencadeia-se processo de disóxia celular e
inibição da função mitocondrial, que se persistente, pode levar a disfunção
orgânica e na sequência à falência orgânica múltipla e óbito do paciente.1

Independente do mecanismo envolvido gerando o desequilíbrio DO2/VO2, se


secundário a perda maciça do volume circulante, má distribuição do fluxo
sanguíneo, componente obstrutivo, falha na bomba cardíaca, alterações
metabólicas ou mesmo secundário a expressão genética de genes
intracelulares, sempre que houver um estado de hipoperfusão levando a
disóxia celular, podemos dizer que há um quadro de choque (Tabela 4).2

Deve-se ter cuidado ao tentar enquadrar o paciente em um tipo específico de


choque, pois eles frequentemente se apresentam com componentes de
choque hipovolêmico, séptico, obstrutivo e/ou cardiogênico de forma
concomitantes, sendo, portanto, essencial a avaliação cuidadosa dos
determinantes de seu perfil hemodinâmico e otimização de cada um deles
(Tabela 1).

Tabela 4: Classificação de Choque e suas etiologias mais comuns:*

10
*cedido por Veiga C Mello, PM; Dellinger, RP et al.

3. ABORDAGEM TERAPÊUTICA INICIAL - PARTICULARIDADES DO


“ABC” DO PACIENTE CHOCADO

• Vias aéreas e respiração


8

Pacientes com quadros de choque geralmente tem várias indicações para


pronta intubação e suporte respiratório com ventilação mecânica. Salvo
condições onde a reversão do quadro possa ocorrer de forma rápida em
respostas as medidas de estabilização inicial, deve-se evitar retardar na
instalação desse suporte, prevenindo a necessidade de intubação com o
paciente em colapso cardiorrespiratório avançado, o que é associado a piora
do prognóstico dos mesmos.

O colapso cardiorrespiratório leva ao rebaixamento dos níveis de consciência


e perda da capacidade de proteção das vias aéreas. Esta é uma indicação
importante de intubação, particularmente antes de procedimentos ou
transporte do paciente, quando a capacidade de uma intubação rápida é
menor. A prática comum de retardo na instalação do suporte respiratório pelo
receio do agravamento da hipotensão promovido pela vasodilatação induzida
por sedativos associada à diminuição do retorno venoso induzida pelo
aumento da pressão intratorácica da ventilação com pressão positiva deve
ser substituída pela ação pró-ativa no sentido de prevenção desse efeito,
através de medidas concomitantes para otimização volêmica e início ou
aumento das doses de vasopressores. 5

A sedação de pacientes com quadro de choque contribui para a diminuição


do consumo global de oxigênio e ao se instalar a ventilação mecânica
diminui-se ainda mais esse consumo de oxigênio pela musculatura
respiratória. Isso é particularmente importante porque durante o choque, os
pacientes apresentam-se com taquipnéia por acidose, sepse, dor ou
hipoxemia, aumentando a demanda de oxigênio dos músculos respiratórios
os quais passam a consumir uma parcela desproporcional de todo o
fornecimento de oxigênio do corpo. Dessa forma, a intubação eletiva, evita o
procedimento emergencial, minimizando risco de complicações adicionais
como broncoaspiração e também contribui para minimizar o desequilíbrio
DO2/VO2 existente nesses quadros clínicos. 11

A hipoxemia pode estar presente precocemente em pacientes com choque


independente de um processo pulmonar desencadeador do mesmo. Isso
ocorre, pois, lesão pulmonar aguda e síndrome da angústia respiratória
aguda são desencadeadas pela resposta inflamatória ao insulto inicial.
Insuficiência ventilatória com componente de hipercapnia também é
frequente e deve ser investigada de forma precoce através da análise da
gasometria. Dentre as causas frequentes de hipercapnia nesses pacientes
devemos investigar causas centrais (e.g.: eventos neurológicos, excesso de
sedativos), acometimento neuromuscular por doença de base, e ainda
quadros de acidose metabólica importantes levando a fadiga dos músculos
respiratórios a qual pode ser evidenciada pela presença de uso de
musculatura acessória, incapacidade de falar frases completas, presença de
taquipnéia ou frequência respiratória inapropriadamente baixa ou em queda,
presença de respiração abdominal, sudorese profusa e cianose.

• Circulação - A terapia com volume, vasopressores e inotrópicos


9

A ressuscitação volêmica inicial deve ser feita através de acessos venosos


periféricos e calibrosos com soluções cristaloides administradas em bolus.
Nas hemorragias graves, a reposição de sangue deve ser considerada
precocemente na proporção de 1:1:1 para plasma, concentrado de plaquetas
e concentrado de hemácias, evitando ressuscitações volêmicas muito
agressivas com cristalóides. Em seguida, um acesso venoso central deve ser
puncionado para monitorização hemodinâmica (pressão venosa central -
PVC) e de parâmetros adicionais de perfusão como a saturação venosa
central (ScvO2) e pCO2 venosa central para cálculo da diferença artério-
venosa de CO2 (∆CO2).

Em geral pacientes com quadros de choque apresentam taquicardia sinusal


na tentativa de elevar a pressão arterial que se encontra baixa por déficit do
volume sistólico. Essa taquicardia é usualmente revertida com reposição
volêmica adequada. No entanto, quadros de choque cardiogênico podem ser
deflagrados pela presença de bradiarritmias ou taquiarritmias graves, levando
a hipotensão e exigindo a instalação de terapia elétrica com marca-passo
(bradiarritimias) ou com cardioversão elétrica (taquiarritmias). Além disso,
deve-se proceder com a avaliação e correção de fatores predisponentes das
mesmas (e.g.: distúrbios hidro-eletrolíticos, reversão de isquemia, etc.).

Alguns pacientes permanecem inadequadamente bradicárdicos ou


desenvolvem uma taquiarritmia na vigência de quadro de choque deflagrado
por outro mecanismo inicial. Dessa forma, a arritmia deve ser corrigida
independente de ser a causa deflagradora do choque, pois sua presença
pode ser agente mantenedor do mesmo. Terapia medicamentosa (e.g.:
dopamina, atropina, adrenalina ou antiarrítmicos) ou terapia elétrica (e.g.:
marca-passo ou cardioversão) podem ser necessárias para que o paciente
saia do quadro de choque.

A estabilização hemodinâmica frequentemente exige uso combinado de


fluidos e drogas vasoativas, com o objetivo inicial de obter pressão arterial
(PA) mínima compatível com perfusão tecidual. A determinação desse nível
pressórico mínimo deve ser individualizada e o mesmo deve ser determinado
de acordo com os parâmetros de perfusão de cada paciente. A grande
maioria dos pacientes mantém perfusão tecidual com níveis de PAM em
torno de 65 mmHg e não se encontra literatura sugerindo benefício em elevar
níveis pressóricos além desses níveis. Ou seja, o uso de drogas vasoativas
objetivando níveis pressóricos além desse valor não parece trazer benefícios
e pode causar vasoconstricção desnecessária, taquicardia, arritmias. Em
pacientes com trauma penetrante e hemorragia ainda não controlada o
objetivo deve ser o de manter pressão sistólica em torno de 90 mmHg,
evitando ressuscitação volêmica agressiva ou elevação dos níveis
pressóricos até o controle do sangramento sob o risco de promover
perpetuação e agravamento do sangramento e da coagulopatia presente
nesses casos.

No entanto, em pacientes com história de hipertensão, níveis de PAM mais


elevados se associaram a uma menor incidência de disfunção renal.
Também em pacientes neurocríticos com elevação da pressão intracraniana
10

(PIC) níveis pressóricos mais elevados podem ser desejáveis para garantia
de pressão de perfusão cerebral (PPC) > 60mmHg, já que a mesma é
diretamente proporcional à PAM e inversamente proporcional à PIC (PPC=
PAM-PIC).

O exame clínico inicial deverá guiar a decisão acerca da melhor estratégia


inicial para elevar a pressão, se através de fluidos, drogas vasopressoras ou
ambas. Em geral, um paciente chocado com ausculta pulmonar limpa e sem
turgência jugular, provavelmente deve ter choque com componente
hipovolêmico e/ou distributivo e deverá se beneficiar inicialmente de
ressuscitação volêmica mais agressiva. Em contrapartida, quando há
ausculta pulmonar sugestiva de edema pulmonar associada à presença de
turgência jugular, se deve pensar em choque com componente cardiogênico
esquerdo e o uso de vasopressores para obtenção de níveis pressóricos
mínimos é mais prudente até chegada de exames complementares e melhor
avaliação da volemia do paciente. Em pacientes com turgência jugular e
ausculta pulmonar limpa deve-se suspeitar de choques com componente
obstrutivo ou componente cardiogênico de ventrículo direito. Estes pacientes,
em geral, devem ser estabilizados inicialmente com uma combinação de
fluidos e vasopressores, já que o ventrículo direito depende de volume para
seu bom funcionamento.

A temperatura e qualidade da perfusão das extremidades podem auxiliar na


identificação da presença de vasoplegia. Em geral, na presença de
hipotensão, a resposta fisiológica esperada é liberação de catecolaminas
com o intuito de aumentar a resistência vascular sistêmica e,
consequentemente, os níveis pressóricos. Dessa forma, a presença de
extremidades quentes na vigência de hipotensão sugere fortemente
componente vasoplégico no choque, sugerindo, ainda, potencial benefício no
início imediato de vasopressores nesses casos. Já as extremidades frias,
sugerem vasoconstrição periférica, a qual esta presente em quadros de baixo
débito cardíaco causado pela presença de hipovolemia e/ou déficit de função
de bomba cardíaca. 1 É importante ressaltar, que mesmo em choques de
mecanismo fisiopatológico de natureza predominantemente distributiva (e.g.:
choque séptico), os pacientes podem apresentar-se com vasoconstricção
periférica, extremidades frias e não ter perfil hiperdinâmico (débito cardíaco
elevado). Isso ocorre em especial, em pacientes que não recebem
ressuscitação volêmica adequada, e também, em estágios avançados do
quadro de choque, e ainda em pacientes que cursam com depressão
miocárdica induzida pela sepse ou que sejam portadores de comorbidades
cardiovasculares.

O refinamento da avaliação da volemia, da responsividade aos fluidos e da


contratilidade miocárdica deverá guiar a reposição volêmica e uso de drogas
vasoativas. A avaliação da volemia é melhor realizada com o uso de
parâmetros de forma dinâmica acoplados à avaliação seriada da resposta do
paciente e dos parâmetros de perfusão.

É importante avaliar de forma adequada a volemia desses pacientes e


também sua resposta à infusão de fluidos. Denominamos de pacientes fluido-
11

responsivos aqueles que ao receberem bolus de fluidos, respondem com


aumento do débito cardíaco e, portanto, com aumento da DO2. A avaliação
da fluido-responsividade é essencial para que se possa evitar a
administração desnecessária de fluidos, evitando ressuscitações volêmicas
agressivas, as quais hoje reconhecidamente associam-se a complicações
importantes como o retardo no desmame da ventilação mecânica, maior
incidência de síndromes de compartimento e maior mortalidade.

A avaliação da fluidorresponsividade pode ser feita de forma mais fidedigna


em pacientes sedados, em ventilação mecânica e sem arritmias analisando a
variação da pressão de pulso (∆PP), no entanto, muitos dos pacientes não
preenchem os critérios para análise desse parâmetro e alternativamente
podem sem avaliados com a realização de ultrassonografia do intensivista
(USI) observando o índice de colabamento da veia cava inferior com a
respiração, e ainda com o teste de elevação passiva das pernas e seu
impacto na variação do volume sistólico.

A reavaliação constante a beira-leito associada à interpretação conjugada


dos parâmetros laboratoriais, hemodinâmicos e de perfusão representam a
melhor forma de condução na estabilização desses pacientes. Dessa forma,
a cada intervenção (e.g.: bolus de fluido ou ajuste de drogas), deve-se
reavaliar o paciente observando o impacto da intervenção e questionar-se: A
perfusão periférica melhorou? A diurese melhorou? O paciente tornou-se
menos taquicárdico? A pressão subiu? O bolus de fluido levou ao aumento
esperado da PVC ou POAP? Esse aumento de PVC ou POAP levou ao
aumento do DC? Houve impacto na relação DO2/VO2? A saturação venosa
melhorou? O lactato caiu? A diferença arterio-venosa de CO2 diminuiu? A
macrocirculação e a microcirculação foram otimizadas?

Com relação ao uso de drogas vasoativas, em geral, inicia-se a estabilização


desses pacientes com uma droga vasopressora. A norepinefrina é o
vasopressor de primeira escolha por suas propriedades predominantemente
α-adrenérgicas, com pouca ação β-adrenérgica. Ela aumenta
significativamente a pressão arterial média e mantém o débito cardíaco sem
causar taquicardia adicional, demonstrando um perfil de segurança e eficácia
superior aos demais vasopressores.8

A dopamina age nos receptores β-adrenérgicos em doses baixas (5-10


µg/Kg/min) e nos α-adrenérgicos em doses mais elevadas (>10 µg/Kg/min).
Em dose muito baixa (<3 µg/Kg/min), a dopamina pode dilatar seletivamente
a circulação hepatoesplênica e renal, contudo, estudos controlados não
demonstraram qualquer proteção renal e seu uso para esta finalidade não é
recomendado. Reconhece-se hoje, inúmeros efeitos colaterais sem efeitos
benéficos ao ser comparada com a noradrenalina, dessa forma, permanece
indicada apenas em casos de choques que se acompanham de bradicardia.
8,12 -14

A epinefrina é o agente vasopressor de segunda escolha, pois apesar de


eficiente efeito vasopressor e inotrópico, associa-se a maior incidência de
taquiarritmias e vasoconstricção no território esplâncnico, estando associada
12

a maiores níveis de lactato e aumento do metabolismo celular. Apesar disso,


estudos recentes demonstram perfil de segurança aceitável para uso nesses
pacientes. 15-17

Drogas inotrópicas são essenciais no manejo de pacientes com componente


cardiogênico causando ou contribuindo para o quadro de choque e a
dobutamina permanece como droga de escolha na maioria dos casos. No
entanto, ela apresenta também efeito vasodilatador e por isso, pode ser
necessária obtenção de pressão artéria média (PAM) mínima com uso de
vasopressores antes do inicio de seu uso. Pacientes hipovolêmicos podem
apresentar queda significativa da pressão, ao passo que pacientes
normovolêmicos mas com déficit de função miocárdica primária, podem não
apresentar hipotensão com seu uso e até mesmo melhorar os níveis
pressóricos já que a vasodilatação diminuirá a pós-carga, otimizando a
função de bomba cardíaca. 8,18

O uso de baixas doses de vasopressina (0,01 a 0,04 unidades/min) em


pacientes apresentando quadro de choque refratário a expansão volêmica
adequada e administração de catecolaminas, tem demonstrado melhor
recuperação dos níveis de pressão arterial e diminuição da infusão de
vasopressores. 19

3. TERAPIA ESPECÍFICA

Tão logo as medidas de estabilização inicial sejam realizadas e o diagnóstico


etiológico do choque seja evidenciado, ações terapêuticas específicas devem
ser simultaneamente implementadas (Figura 2).

São medidas indispensáveis em casos de choque séptico: localização do


foco infeccioso, coleta de exames microbiológicos, inicio da antibioticoterapia
empírica e, se necessário, retirada cirúrgica de tecidos necróticos e/ou
drenagem. O retardo de mais de uma hora na primeira dose do antibiótico
em pacientes com choque séptico está associado a um aumento da
mortalidade em 7,6% por hora de atraso.20 Em casos de choque refratário a
reposição volêmica e a drogas vasopressoras deve-se considerar o uso de
corticóides, uma vez que esses pacientes podem apresentar reserva limitada
de cortisol, o que caracteriza a “insuficiência adrenal relativa”.21

Nos casos de choque anafilático a identificação da substância causadora


deve ser realizada e medidas especificas como uso de medicações anti-
histamínicas (H1 e H2) e corticoide devem ser prontamente iniciados.

No choque hipovolêmico deve-se proceder com o controle da hemorragia e o


uso precoce de hemoderivados deve ser feito de forma racional, evitando
ressuscitações volêmicas agressivas com cristaloides, as quais podem
promover hemodiluição e deslocamento do coágulo hemostático,
perpetuando o sangramento e agravando distúrbios de coagulação 22,23
13

A síndrome coronariana aguda representa a principal causa de choque


cardiogênico. O choque constitui a causa mais comum de morte no IAM com
elevação de ST, com taxas de mortalidade entre 70% e 90%. Nestes quadros
a mortalidade é elevada caso a terapia de revascularização não seja
implementadas nas primeiras horas do evento. 24,25

No choque obstrutivo o fluxo deve ser imediatamente restaurado por meio da


remoção do insulto causador da obstrução, devendo-se proceder tão logo
possível com as manobras de alivio, como drenagem pericárdica se
tamponamento cardíaco, drenagem torácica se pneumotórax hipertensivo e
trombólise se tromboembolismo pulmonar maciço.

Figura 2: Abordagem diagnóstica e terapêutica inicial do choque*

*cedido por Veiga C Mello, PM; Dellinger, RP et al. 10

CASO CLÍNICO:

Paciente estava com amigos em riacho de águas rasas e ao pular da árvore


em mergulho já não levantou e não moveu mais as pernas. Foi socorrido por
amigos e ao chegar no hospital, encontrava-se com os seguintes sinais vitais:
PA 70/40mmHg, FR: 32irm, FC: 40bat/min, Sat O2 ar ambiente 80%, sem
mover as pernas. Diante desse contexto, em sua opinião qual a causa mais
provável do choque desse paciente?

a. Choque Hipovolêmico
b. Choque Neurogênico
c. Choque Cardiogênico
d. Todas acima
14

Resposta: letra d.

COMENTÁRIO:

O tipo e causa do choque se tornam óbvios na maioria das vezes com


adequada história clínica, exame físico e investigação laboratorial e
hemodinâmica. Entretanto, o mais prudente é que, durante a avaliação inicial,
nenhuma possibilidade seja afastada, pela possibilidade real da sobreposição
de dois ou mais diagnósticos.

No cenário acima, a hipótese de choque neurogênico com lesão medular é a


mais provável pela história do mergulho, imobilidade das pernas após o salto
e presença de bradicardia. Contudo, essa possibilidade não impede a
existência de componente importante de hipovolemia por lesão de órgão
intra-abdominal ou fratura de bacia; não impede a presença de um
pneumotórax ou de tamponamento cardíaco secundário ao trauma e levando
a um componente obstrutivo contribuindo para o choque; não impede a
possibilidade de que antes da queda o paciente tenha sido picado por uma
abelha e ter feito uma reação anafilática causando tontura e queda; não
impede a possibilidade de um evento coronariano agudo ou arritmia como
causa inicial da queda da árvore, a qual pode ter sido complicada com um
trauma raquimedular; não impede a presença de componente séptico pois o
paciente pode ter broncoaspirado, afinal encontra-se francamente hipoxêmico,
ou ainda poderia ter sofrido ruptura de vísceras ocas pelo trauma.

Dessa forma, a melhor resposta para a pergunta acima seria portanto a


alternativa “d” e a única forma de abordar um paciente chocado de forma
completa e integral deve ser a de evitar “rótulos” estando consciente da
multiplicidade de possibilidades diagnosticas nessas situações. Ao invés
disso, deve-se sempre avaliar as variáveis determinantes da DO2 (Figura 1),
buscando identificar quais dessas variáveis estão inadequadas para a
demanda metabólica do paciente e portanto causando ou agravando o
quadro de choque otimizando-as uma a uma.

Ao nos depararmos com o paciente chocado, deve-se sempre avaliar se


existe componente hipovolêmico, obstrutivo, séptico/distributivo, e ou
cardiogênico causando ou contribuindo para o quadro de choque do paciente.

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