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Alguns aspectos do uso de atividades artisticas em terapia ocupacional Maria José Benetton!) Resumo, O artigo se refere a0 papel que as atividades artisticas ttm na expresso das enfermi- dades mentais e no trabalho da terapia ocupacional sobre elas. [Abstracts Aspects of the use of atistical activites in occupational therapy. The article concerns ‘othe function that the artstical activities have ‘occupational therapy may have over them. Segundo estudos de Eugene Bleuler, “uma disposigdo esquizéide € provavel- mente a condigio mais importante da cria- Go artistica”, Aparentemente, o esquizdi- Ge é capaz de separar 0 seu eu original do seu eu social. Sua imaginacdo Ihe permite tstabelecer relagées que dependem muito pouco da realidade social e objetiva. Esta Eisdo possibilita-o criar sistemas afastados do mundo, sendo que seus desejos ¢ suas angistias, numa plena’ autonomia “tem poriria” do seu psiquismo, permitem dar tima fisionomia 20 sev afnbiente interior. ‘Asperger, fazendo uma relagio entre 2 ccrianga autista e o artista acrescenta que Spara certas atividades artisticas e cienti- fleas uma certa dose de autismo, um corte entre 0 individuo eo mundo é necesséria”. 'Na psicose, onde existe essencialmente tum problema do ev, um deslocamento en- tre as fronteiras deste e do mundo exte- Tor distancia o individuo de uma parte a realidade factual, No lugar deste mun- do que ele nfio reconhece ¢ em parte per- eu, cle coloca uma realidade delirante e Slucinada, Seja no plano da linguagem, Go pensamento ¢ da imagem, soja na mm mien ou no comportamento, as criagdes Originals ou mesmo grotescas se produ zem freqiientemente. ‘Se alguém que nunca foi artista éatingi do pela psicose, observamos 0 surgimento Ge capacidades criativas no comego.ou durante o curso da doensa. ‘the expression of the action that the A destruigio da barreira das conexdes permite formular espontaneamente, com maior destaque nas artes grificas, scus tormentos, seus sofrimentos, uma dor mui- to particular! Entre as obras de arte de doentes men- tais, aquela que ocupa o primeiro lugar €a dos psicéticos, pois a dinamica mental es- ta estritamente ligada Aquela da criagio. ‘Otto Rank reconhece que a eriatividade do artista envolve destocamentos ciclicos de energia mental entre as diferentes ca madas da mente e ainda considera a pe cepgio inarticulada, que precede o surgi mento da idéia formativa definitiva, como uma mera interrupgio da consciéncia, ou Seja, vazia de imagens. Similarmente, Freud compara a curta tensio “criativa” que precede a invencdio de um chiste com Siguma coisa semelhante a uma “distra- do”. E (Os estudos porteriores de Varendonk, desenvolvidos provavelmente através do seu método de recordacio, permitiram re- conhecer as imagens freqicntemente tur bulentas dos estados criativos. No estado ‘eriativo, as fungbes da mente profunda Sko estimuladas, sendo este um estado transitivo. Ele se assemelha ao devaneio porque tende a ser relembrado mais tarde como tuna mera “distraglo” (lacuna, vazio, in- terrupgao da consciéncia), submergido en- tao as imagens do inconsciente. {iy Torapeute oeupacional do Departamento de Psiquiawia de Escola Paulista de Medicina. 2 BOL. DE PSI. SP Vou. 17, Ne 2: 83-08 JUNHO/1984 Na psicose o eu est mais perto desta forma criativa, porém sendo menos “tran- sitoria”. Isto que 0 artista saudivel pro- cura muitas vezes em vao, o individuo com psicose pode ter naturalmente em alguma fase de sua doenga, ‘Originariamente, a psicose é vista por rnés como resultante da mentira da mie, sendo esta a condigio necesséria, como também a falta da palavra do pai, que poderia restabelecer a verdade, a condigiio Suficiente, Esta mentira ¢ o niio restabele- Cimento da verdade dcixam, como conse- qiéncia no individuo, um ego esburacado paradoxalmente cheio de faltas. Nés, tera~ peutas, através do vinculo teraptutico, te- ‘mos que necessariamente nos tornar o vei- culo inicial preenchedor. Na terapia ocupacional tems sido © objeto e veiculo de um vineulo que ocorre através do que esta sendo produzido. A ‘compreensio, informagao ¢ interpreta da produgio artistica levam em conta, principalmente, o acontecer de uma rela- so. simbiética. 'Nosso trabalho geralmenteseinicia com informagdes que passamos ao docnte, aquilo que estamos sentindo do seu traba~ Tho, dando a ele o primeiro degrau para a recomposigio da sua histéria, Sua produ- ‘gdo nos faz sentir algo que esté sendo simbolizado. ‘O espanto e surpresa que geralmente causamos ao inferir fatos que possam ter focorrido, dio quase que imediatamente lugar a um grande alivio a0 se sentirem vistos reconhecides. Muitas vezes somos 0s objetos qi ccam entre o paciente e sua propri Ge; outras vezes usamos, como Winnicott, f atividade como fendmeno transicional, ‘No momento posterior, © préprio pa ciente como que lidando com seus sonhos faz associagbes com a sua obra de arte, ros permitinds a compreensio e interpre~ {aga dos conteddos intrapsiquicas. Mais tarde, isto que parece magica, por ser ndo~ “verbal ja devidamente contido de simbo- Tose significados, passa a ser verbalizado. "Aquele que era entio um individuo sem histéria, scm simbolizasio, sem discrimi- ago entre si € 0 outro, passat a expres- BOL, DE PSI. 8P ©=—-VOL. 17, N°2: 53-96, sar o seu reconhecido sentir, falar de sie do outro, Em 1981, jovens entre quinze ¢ trinta anos, que faziam tratamento conosco no Hospital-Dia "A Casa”, foram com al- guns de nés visitar a Bienal. ‘A mostra dos trabalhos de arte inco- mum foi o que mais lhes chamou atengio fe, mais que nada, os trabalhos dos pa- cientes da Dra. Nise da Silveira De volta a “A Casa” nossos pacientes se mostravam bastante irritados com a for- ma de apresentagio dos trabathos, p jpalmente no que diz respeito a histéria ica dos autores descrita nos tabldides. w“Afinal, por que os préprios autores no estavam presentes.e falavam de seus trabalhos?” — “Pode-se ver a loucura através da pintura?” Principalmente nos grupos de terapia coupacional fomos questionados quanto 20 diagnéstico, evolupdo, prognéstico © tratamento dos pacientes autores, porém, no foi necessério muito trabalho da te rapeuta para que as perguntas s¢ tornas- sem pessoais e identificatdrias. Por que vocts nunca falam o que eu ‘Como posso saber o que eu tenho pelos meus quadros?” — “Se eu for esquizofitnico, aparece nos quadros?”« Estas questdes foram respondidas aos nossos pacientes em dois niveis: no pri- meiro deles, procuramos trabalhar aspec- tos da relagio terapeuta-paciente-ativida- de. No segundo nivel, foi mostrade que les pareciam achar que havia algo em comum entre seus trabalhos € os que es- tavam sendo expostes. Neste momento, os pacientes passaram a confrontar seus préprios trabalhos com fs trabalios apresentados, Alguns deles chegaram a reconhecer seu estilo, fazendo neste momento uma sintese entre seus fa~ tos internos e a arte, Frases como estas foram comu — “Creio que faco uma arte, mas é uma arte que vers de dentro; acho que preci- samos de alguém para nos dizer se isto € arte ou nai JUNHO/1984 73 Acreditando que nosso vinculo como terapeutas deveria ser preservado, suge- rimos a introdugio de um artista plastico para ajudi-los na avaliacao artistica dos seus trabalhos. Se nossos pacientes atéeste momento jf tinham certeza ¢ tranqtillidade de verem fem seus trabalhos a reconstituigo de sua propria hist6ria, passaram, apés a intro- dugdo do artista, a verificar e avaliar a Funcdo criativa. Este artista plastico fez, junto a cada um dos pacientes, uma avaliacéo de seus trabalhos sob o ponto de vista artistico, Em paralelo, 0 terapcuta ocupacional tra- balhava com os grupos a importancia da criagio livre € a beleza da expresso dos sentimentos Com estes dois vértices, percebemos que 0s pacientes passavam a fazer sua propria selesdo de trabalhos, entre aque- Jes que mais gostavam, mais achavam que tinham falado de si e de sua histéria, Sen- timos que a beleza plistica passava a ser considerada, porém nio sendo o elemen- to principal de anilise. A introdugo do artista plistico tam- bém veio colaborar para a organi de uma exposi¢do dos trabathos de pintu- ra. que 05 nossos pacientes resolveram fa zer, de certa mancira confroniando com a exposicdo que haviam visto na Bienal. Colocavam como caracteristica relevante, nesta exposi¢ao, aspectos que foram rele- gados na outra, tais como: a presenga do autor junto a obra, a possibilidade de eles préprios falarem sobre seus trabalhos, re~ 4 BOL. DE PSIG. SP ‘ceberem familiares, amigos, psicanalistas, artistas e compradores. Durante toda organizagio da exposicio foram trabalhados tanto os aspectos arti ticos, como os aspectos dindmicos da pin- tura e's fatos emocionais decorrentes da exposigao. Foram os trabalhos gréficos e pinturas escothidos para serem expostos, devido & expressiva superioridade numérica, frente a outros tipos de atividades desenvolvi- das pelos. nossos pacientes. Explicamos isto admitindo que nas psicoses ocorrem processos onde o:pensamento abstrato, no tendo se desenvolvido, & substituido pelo pensamento concreto. As idéias sf0 apresentadas sob forma de imagens. Uma ‘vex cindido ¢ submerso 0 pensamento I6~ gico, fica simultaneamente prejudicada a linguagem verbal, 0 principal instrumen- to de expresso ¢ comunicagao. Desde que 0 pensamento do psiedtico ui em imagens, ele muito naturalmente as usard para exprimir-se, reproduzindo- sas. Uma arte tecnicamente mais elabo- rada, comoa escultura ou mesmo o isso de sofisticados, apresenta uma dificuldade bastante significativa que ¢ @ necessidade de muito rapidamente expor suas imagens. , ‘O sucesso desta exposicdo no pode ser medido apenas pelos belos trabalhos apre- sentados ou mesmo pela efetiva participa- io dos pacientes, mas fundamentalmente pela possibilidade que nés, terapeutas, ti- vemos de aprender mais com a linguagem das imagens, VOL. 17, Ne 2: 53-88 JUNHO/1984

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