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Nas franquias de livrarias, as prateleiras estão cheias de peras espinhosas e frutos do Mar
Morto da decadência literária. No entanto, nenhuma civilização repousa para sempre
contente com o tédio literário e a violência literária. Mais uma vez, uma consciência pode
falar a outra consciência nas páginas dos livros, e a geração ressecada pode avançar em
direção às fontes da imaginação moral. A primeira palestra anual neste novo Centro para
o Estudo dos Valores Cristãos na Literatura é um esforço para descrever o alto poder de
percepção e descrição que tem sido chamado de “imaginação moral”, e relacionar essa
imaginação ao que Chateaubriand chamou de “o gênio do cristianismo”. O que uma vez
foi, pode ser novamente.
O que é essa “imaginação moral”? A frase é de Edmund Burke, e ocorre em suas Re exões
sobre a Revolução na França. Burke descreve a destruição de maneiras civilizadoras pelos
revolucionários:
“Toda a roupagem decente da vida está para ser rudemente arrancada. Todas as ideias
ajuntadas, oferecidas no guarda-roupa de uma imaginação moral, que o coração
possui, e o entendimento rati ca, como necessárias para esconder os defeitos de nossa
natureza árida e corrompida, e para erguê-la à dignidade de nossa estima, estão para
ser rebentadas como uma moda ridícula, absurda e antiquada.
Neste esquema de coisas, um rei não é senão um homem; uma rainha não é senão uma
mulher; uma mulher não é senão um animal; e um animal não da mais alta ordem.
Toda homenagem prestada ao sexo em geral como tal, e sem visões distintas, é para ser
considerada como romance e tolice… No esquema dessa bárbara loso a, que é a prole
de corações frios e entendimentos lamacentos, e que é tão vazia de sabedoria sólida
como é destituída de todo gosto e elegância, leis são para ser suportadas apenas por
seus próprios terrores, e pela concernência que cada indivíduo pode encontrar nelas de
suas próprias especulações privadas, ou pode poupar a elas de seus próprios interesses
privados. Nos arvoredos da academia deles, ao m de toda vista, você não vê nada a
não ser a forca…
Nada é mais certo que nossas maneiras, nossa civilização, e todas as coisas boas que
são conectadas com maneiras e com civilização, têm, nesse nosso mundo Europeu,
dependido por eras sobre dois princípios; e foram de fato o resultado de ambos
combinados; eu quero dizer o espírito de um cavalheiro, e o espírito de religião.”
Por essa “imaginação moral”, Burke signi ca aquele poder de percepção ética que
ultrapassa as barreiras da experiência privada e eventos momentâneos “especialmente”,
como diz o dicionário, “a forma mais elevada desse poder exercida na poesia e na arte”. A
imaginação moral aspira à apreensão da ordem correta na alma e a ordem correta na
comunidade. Essa imaginação moral era o dom e a obsessão de Platão, Virgílio e Dante.
Delineados a partir de séculos de consciência humana, esses conceitos da imaginação
moral – postos de forma tão vigorosa, embora breve, por Burke – são expressos
novamente de era em era. Assim é que os literatos em nosso século cujo trabalho parece
mais provável de durar não foram neoteristas, mas sim portadores de um padrão antigo,
abandonados por nossos modernos ventos de doutrina: os nomes de Eliot, Frost,
Faulkner, Waugh e Yeats podem ser su cientes para sugerir a variedade dessa imaginação
moral no século XX.
É a imaginação moral que nos informa sobre a dignidade da natureza humana, que nos
instrui que somos mais do que macacos nus. Como Burke sugeriu em 1790, as letras e o
aprendizado são vazios se privados da imaginação moral. E, como sugeriu Burke, o espírito
da religião sustentou por muito tempo essa imaginação moral, juntamente com todo um
sistema de boas maneiras. Faltando essa imaginação, para citar outra passagem de Burke,
somos lançados “deste mundo da razão e ordem, e paz, e virtude, e penitência frutífera,
para o mundo antagonista da loucura, discórdia, vício, confusão e irremediável
sofrimento.”
Burke sugere que existem outras formas de imaginação além da imaginação moral. Ele
estava bem ciente do poder da imaginação de Jean Jacques Rousseau, “o Sócrates louco da
Assembléia Nacional”. Com Irving Babbitt, podemos chamar o modo de imaginação
representado por Rousseau de “a imaginação idílica” – isto é, a imaginação que rejeita
velhos dogmas e velhas maneiras e se alegra com a noção de emancipação do dever e da
convenção. Vimos essa “imaginação idílica” fascinar muitos jovens na América durante os
anos sessenta e setenta – embora a maioria desses devotos nunca tenha lido Rousseau. A
imaginação idílica normalmente termina em desilusão e tédio.
Quando isso ocorre, muitas vezes uma terceira forma de imaginação obtém ascendência.
Em suas palestras intituladas After Strange Gods (1934), T. S. Eliot aborda a imaginação
diabólica: aquele tipo de imaginação que se encanta no perverso e no subumano. O nome
de Sade vem logo à mente; mas Eliot encontra “as operações frutíferas do espírito
maligno” nos escritos de Thomas Hardy e D. H. Lawrence também. Quem estiver
interessado na imaginação moral e na imaginação anti-moral deve ler atentamente After
Strange Gods. “O número de pessoas que possuem algum critério para discriminar entre o
bem e o mal é muito pequeno”, conclui Eliot; “o número de meios-vivos famintos por
qualquer forma de experiência espiritual, ou para o que se oferece como experiência
espiritual, alta ou baixa, boa ou má, é considerável. Minha própria geração não os serviu
muito bem. Nunca a imprensa esteve tão ocupada, e nunca houve tantas variedades de
disparates e doutrinas falsas. Ai dos profetas loucos, que seguem o seu próprio espírito, e
nada viram!”
Essa “imaginação diabólica” domina a maioria da cção popular hoje em dia; e na televisão
e nos teatros, também, a imaginação diabólica se pousa e se rma. Em certa noite,
hospedei-me em um novo hotel da moda; meu quarto de solteiro custa cerca de oitenta
dólares. Eu poderia ajustar o aparelho de televisão do quarto a certos lmes, por um extra
de cinco dólares. Depois das dez horas, todos os lmes oferecidos eram extremamente
pornográ cos. Mas até mesmo os lmes “da tarde”, antes das dez, sem exceção, eram
produtos da imaginação diabólica, na medida em que serviam à ânsia de violência,
destruição, crueldade e desordem sensacional. Aparentemente, nunca ocorreu aos
gerentes deste hotel da moda que qualquer de seus a uentes patronos, de qualquer
idade e sexo, desejassem lmes decentes. Como Eliot falou na Universidade de Virgínia em
1933, chegamos muito longe na estrada para Avernus. E, à medida que a literatura se
afunda no perverso, a civilização moderna cai para sua ruína: “A maré ofuscada pelo
sangue se solta, e em todos os lugares / A cerimônia da inocência se afoga.”
Todas as principais formas de arte literária tomaram por seus temas mais profundos as
normas da natureza humana. O que Eliot chama de “as coisas permanentes” – as normas,
os padrões – têm sido a preocupação do poeta desde o tempo de Jó, ou mesmo desde
Homero: “o cego que vê” que cantou as guerras dos deuses com os homens. Até muito
recentemente, os homens tinham como certo que a literatura existe para formar a
consciência normativa – isto é, ensinar aos seres humanos sua verdadeira natureza, sua
dignidade e seu lugar no esquema das coisas. Tal era o esforço de Sófocles e Aristófanes,
de Tucídides e Tácito, de Platão e Cícero, de Hesíodo e Virgílio, de Dante e Shakespeare, de
Dryden e Pope.
A própria frase “humanidades” [1] implica que a grande literatura serve para nos ensinar o
que é ser totalmente humano. Como Irving Babbitt observa em seu pequeno livro
Literature and the American College (1908), o humanismo (derivado do latim humanitas) é
uma disciplina ética, destinada a desenvolver a pessoa verdadeiramente humana, as
qualidades da virilidade, através do estudo de grandes livros. A literatura do niilismo, da
pornogra a e do sensacionalismo, como Albert Salomon sugere em The Tyranny of
Progress (1955), é um desenvolvimento recente, surgido no século XVIII – embora tenha
atingido o auge em nosso tempo – com a decadência da visão religiosa da vida e com o
declínio do que tem sido chamado de “A Grande Tradição” em loso a.
Esse propósito normativo das letras é especialmente poderoso na literatura inglesa, que
nunca sucumbiu ao egoísmo que dominou as letras francesas no nal do século XVIII. Os
nomes de Milton, Bunyan e Johnson – ou, na América, de Emerson, Hawthorne e Melville –
podem ser ilustrações su cientes do ponto. Os grandes romancistas populares do século
XIX – Scott, Dickens, Thackeray, Trollope – assumiram que o escritor está sob uma
obrigação moral de normalidade – isto é, explícita ou implicitamente, de certos padrões
duradouros de conduta privada e pública.
Agora, não quero dizer que o grande escritor expressa incessantemente as homilias. Com
Ben Jonson, ele pode “ agelar as loucuras do tempo”, mas ele não costuma murmurar:
“Seja boa, doce empregada, e deixe quem seja inteligente”.[2] Em vez disso, o literato
ensina as normas de nossa existência através de alegoria, analogia e segurando o espelho
da natureza. O escritor pode, como William Faulkner, escrever muito mais do que é mau
do que daquilo que é bom; e, no entanto, exibindo a depravação da natureza humana, ele
estabelece na mente do leitor a consciência de que existem padrões duradouros dos quais
caímos; e que a natureza humana caída é uma visão feia.
Vale a pena observar que o poeta mais in uente de nossa época, Eliot, buscou restaurar à
poesia, ao drama e à crítica modernos suas funções normativas tradicionais. Nisso ele se
via como o herdeiro de Virgílio e Dante. O poeta não deve forçar seu ego sobre o público;
em vez disso, a missão do poeta é transcender o pessoal e o particular. Como Eliot
escreveu em “Tradition and the Individual Talent,” o primeiro ensaio encontrado em
Selected Essays, 1917-1932 (1932):
Então a poesia pura, e as outras formas de grande literatura, buscam o coração humano
para encontrar nele as leis da existência moral, distinguindo o homem da besta. Ou assim
foi até quase o nal do século XVIII. Desde então, o egoísmo de uma escola dos românticos
obscureceu o propósito primordial das humanidades. E muitos dos realistas escreveram
sobre o homem como se ele fosse apenas brutal – ou, na melhor das hipóteses,
brutalizado pelas instituições. (Assim surgiu a de nição de Ambrose Bierce em The Devil’s
Dictionary (1906): “Realismo, n. Uma representação precisa da natureza humana, como
vista pelos sapos.”) Em nosso tempo, e particularmente na América, vimos a ascensão à
popularidade de uma escola de escritores mais niilistas do que jamais foram os niilistas
russos: a literatura do nojo e da denúncia, su cientemente descrita em Man in Modern
Fiction (1958), de Edmund Fuller. Para os membros desta escola, o escritor não é defensor
ou expositor de padrões, pois não existem valores para explicar ou defender; um escritor
simplesmente registra, sem reservas, seu desgosto com a humanidade e consigo mesmo.
(Isso é um mundo distante de Dean Swift – que, apesar de odiar a maioria dos seres
humanos, os detestava apenas porque estavam aquém do que deveriam ser.)
Malcolm Cowley, escrevendo alguns anos atrás no Horizon sobre a recente safra de
primeiros romancistas, observou que os vários escritores que ele discutia mal haviam
ouvido falar das Sete Virtudes Cardinais ou dos Sete Pecados Capitais. Crimes e pecados
são apenas infelicidades para esses jovens romancistas; amor verdadeiro e ódio real estão
ausentes de seus livros. Para esta crescente geração de escritores, o mundo parece sem
propósito e as ações humanas sem sentido. Eles buscam expressar apenas um ego
errante. (Jacques Barzun, em The House of Intellect [1959], tem algumas coisas sagazes a
dizer sobre o orgulho injusti cado dos aspirantes a escritores da década.) E Cowley sugere
que esses jovens homens e mulheres, introduzidos a nenhuma norma na infância e na
juventude exceto a atitude vaga de que se tem o direito de fazer o que gosta desde que
não prejudique outra pessoa, são desprovidos de disciplina espiritual e intelectual, vazios,
de fato, de desejo real por qualquer coisa.
Esse tipo de escritor sem propósito e infeliz é o produto de um tempo em que a função
normativa das letras foi grandemente negligenciada. Ignorante de sua própria missão, tal
escritor tende a pensar em sua ocupação como uma mera habilidade, possivelmente
lucrativa, às vezes satisfatória para sua sanidade, mas dedicada a nenhum m. Mesmo a
escrita “proletária” dos anos vinte e trinta reconheceu algum m; mas isso morreu de
desilusão e inanição. Se os escritores estão nessa situação difícil, em consequência do
clima de opinião “permissivo” predominante, o que dizer de seus leitores?
Comparativamente, poucos leitores de livros hoje em dia, suspeito, buscam conhecimento
normativo. Eles buscam divertimento, às vezes de caráter grosseiro, ou então buscam uma
vaga “consciência” dos assuntos atuais e correntes intelectuais, adequada para conversas
de coquetel.
Os jovens romancistas descritos por Cowley são do número dos “Homens Ocos” de Eliot. A
natureza abomina o vácuo; nas mentes vagas de normas deve vir alguma força nova; e
muitas vezes essa força nova tem um caráter diabólico.
Um crítico perceptivo, o Sr. Albert Fowler, escrevendo na Era Moderna, faz a pergunta:
“Pode a Literatura Corromper?” – e responde a rmativamente. Então a literatura pode; e
também é possível ser corrompida por uma ignorância das humanidades, sendo muito do
nosso conhecimento normativo necessariamente derivado de nossa leitura. A pessoa que
lê maus livros em vez de bons pode ser sutilmente corrompida; a pessoa que não lê nada
talvez que para sempre à deriva na vida, a menos que viva em uma comunidade ainda
poderosamente in uenciada pelo que Gustave Thibon chama de “hábitos morais” e pela
tradição oral. E a absoluta abstinência de material impresso tornou-se rara. Se um menino
não ler A Ilha do Tesouro (1883) de Robert Louis Stevenson, as probabilidades são de que
ele leia Mad Ghoul Comics.
Então, acho que vale a pena sugerir os contornos da disciplina literária que induz alguma
compreensão de valores duradouros. Durante séculos, tal programa de leitura, embora
nunca chamado de programa, existia nas nações ocidentais. Isso in uenciou
poderosamente as mentes e ações dos líderes da infantil República Americana, por
exemplo. Se alguém examina quais livros foram lidos pelos líderes da Revolução, os
autores da Constituição e os principais homens da América antes de 1800, descobre-se
que quase todos eles estavam familiarizados com alguns livros importantes: a versão do
Rei James da Bíblia, Vidas Paralelas de Plutarco, Shakespeare, algo de Cícero, algo de
Virgílio. Este foi um corpo de literatura altamente normativo. Os fundadores da República
pensavam em sua nova comunidade como uma mistura da República Romana com
instituições inglesas prescritivas; e eles tomaram como seus modelos em liderança os
profetas, reis e apóstolos da Bíblia, e os nobres gregos e romanos de Plutarco. A virtude
teimosa de Catão, os vaticínios eloquentes de Demóstenes, o impulso de reforma
apressado de Cleomenes – tudo isso estava em sua mente; e eles temperaram sua
conduta de acordo. “Mas hoje em dia”, como Chateaubriand escreveu há mais de um
século, “os estadistas entendem apenas o mercado de ações – e isso mal”.
É claro que não foi apenas pelos livros que a compreensão normativa dos autores da
Constituição, por exemplo, foi formada. Sua apreensão de normas foi adquirida também
na família, na igreja, na escola e nos negócios da vida cotidiana. Mas aquela porção de sua
compreensão normativa que foi obtida dos livros era grande. Pois não podemos atingir
muito bem padrões duradouros se con armos simplesmente na experiência pessoal real
como um mentor normativo. Experiência pura, como Franklin sugeriu, é o professor de
tolos nascidos. Nossas vidas são breves e confusas demais para a maioria dos homens
desenvolverem qualquer padrão normativo a partir de sua experiência privada; e como
Newman escreveu: “A vida é para a ação”. Portanto, nos voltamos para o banco e capital
das eras, o conhecimento normativo encontrado na revelação, autoridade e experiência
histórica, se buscamos orientação em moral, gosto e política. Desde a invenção da
imprensa, esse entendimento normativo tem sido expresso, cada vez mais, em livros, de
modo que hoje em dia a maioria das pessoas forma suas opiniões, em parte considerável,
a partir da página impressa. Isso pode ser lamentável às vezes; pode ser o que D. H.
Lawrence chamou de “mastigar os jornais”; mas é um fato. Negue um fato, e esse fato será
seu mestre.
Outro fato é que, por cerca de trinta anos, temos fracassado, aqui nos Estados Unidos, em
desenvolver uma consciência normativa nos jovens através de um cuidadoso programa de
leitura da grande literatura. Nós falamos sobre “educação para a vida” e “treinamento para
adaptação à vida”; mas muitos de nós parecem ter esquecido que as disciplinas literárias
são o principal meio de aprender a se ajustar às necessidades da vida. Além disso, a
menos que a vida a que somos instados a nos ajustar seja regida por normas, ela pode ser
uma vida muito ruim para todos.
Uma das falhas do típico “ajustamento à vida” ou do currículo “permissivo” nas escolas –
paralelos, comumente, a atitudes similarmente indulgentes na família – tem sido a
substituição do estudo da literatura verdadeiramente imaginativa por “situações da vida
real”. Essa tendência tem sido especialmente perceptível nas séries mais baixas da escola,
mas se estende acima até certo ponto no ensino médio. A escola de letras “Dick and Jane”
e “run, spot, run” não desperta a imaginação; e transmite pouca apreensão de normas. Os
apologistas deste aspecto da escola de ajuste à vida acreditam que estão incutindo
respeito pelos valores prescrevendo leituras simples que recomendam um
comportamento tolerante, amável e cooperativo. No entanto, esta não é uma forma e caz
de transmitir um conhecimento de normas: didatismo moral direto, seja da variedade
vitoriana ou do século XX, geralmente desperta resistência no receptor, especialmente se
ele tem algum poder intelectual natural.
O louvável elogio da bondade pode alienar; pode aguçar o apetite pelo pote de biscoitos
na prateleira de cima. Em “The Story-Teller” de Saki, um solteirão travesso diz a três
crianças em um trem a história de uma menina maravilhosamente boa, que recebeu
medalhas por sua conduta. Mas ela conheceu um lobo no parque; e embora ela corresse,
o barulho de suas medalhas levou o lobo diretamente a ela, de modo que ela foi devorada
completamente. Embora as crianças tenham cado encantadas com essa narrativa não
convencional, sua tia protesta: “Uma história muito imprópria para contar a crianças
pequenas!” “Mulher infeliz!”, murmura o solteirão que parte. “Nos próximos seis meses,
essas crianças vão atacá-la em público com exigências por uma história imprópria!”
Bem, mitos gregos e nórdicos, por exemplo, às vezes não são muito adequados; contudo,
despertando a imaginação, eles fazem mais para obter uma apreensão antecipada das
normas do que qualquer número dos aborrecidos e intermináveis feitos de Dick e Jane. A
história de Pandora, ou da aventura de Thor com a velha e sua gata, dá a qualquer criança
uma visão das condições da existência – vagamente compreendida no momento, talvez,
mas ganhando poder com o passar dos anos – que nenhuma utilitária “real situação de
vida” pode equiparar. Por serem eternamente válidos, Hesíodo e os cantores de saga são
modernos. E as versões de Hawthorne ou de Andrew Lang são muito melhores do que o
inglês quasi-básico imposto aos jovens em muitos livros-texto recentes.
Assim, atrevo-me a sugerir aqui, em reduzido esboço, como é possível formar uma
consciência normativa através do estudo das humanidades. O que tenho a dizer deveria
ser comum; mas essas idéias parecem ter sido esquecidas em muitos quadrantes. Esse
esforço normativo deveria ser o trabalho conjunto da família e da escola. Como a arte da
leitura muitas vezes é ensinada melhor pelos pais do que pode ser ensinada em uma
turma grande na escola, o conhecimento de bons livros vem ao menos com tanta
frequência de casa quanto da escola. Meu próprio gosto por livros cresceu a partir de
ambas as fontes: estantes de livros de meu avô, de minha mãe e de uma ótima pequena
livraria da escola primária. E se uma escola está deixando de transmitir um gosto por bons
livros, isso muitas vezes pode ser remediado por atenção interessada na família.
Se as crianças estão para começar a entender a si mesmas, as outras pessoas e as leis que
governam nossa natureza, elas devem ser encorajadas a ler a coleção de contos de fadas
de Lang, dos Irmãos Grimm (até mesmo as mais cruéis), de Andersen, as Mil e Uma Noites
e todo o resto; e, atualmente, os melhores romancistas para jovens, como Blackmore e
Howard Pyle. Até a Bíblia, no começo, é fantasia para os jovens. A alegoria de Jonas e da
baleia é aceita, inicialmente, como um conto do maravilhoso, e assim ca na memória.
Somente nos últimos anos alguém reconhece a história como o símbolo do exílio dos
judeus na Babilônia, e de como a fé pode preservar homens e nações através das mais
terríveis das provações.
2. História narrativa e biogra a. Meu avô e eu, durante as longas caminhadas que
costumávamos fazer quando eu tinha seis ou sete anos, falávamos do caráter de Ricardo
II, da vida doméstica puritana e da ferocidade dos assírios. A parceria intelectual de um
homem imaginativo de sessenta e um garoto inquisitivo de sete é uma coisa edi cante.
Minha preparação para essas conversas veio de livros na biblioteca de meu avô: Uma
História da Inglaterra para Crianças (1910) de Dickens, Cadeira do Avô (1840) de
Hawthorne, os quatro volumes ilustrados de História do Mundo (1897) de Ridpath. Mais
tarde, meu avô me deu Esboço de História (1920) de H. G. Wells. Na plenitude do tempo,
eu vim a discordar das interpretações da história de Dickens e Wells; mas tudo foi para o
bem, pois estimulou minhas faculdades críticas e me conduziu aos estudos apropriados da
humanidade – e aos grandes historiadores, Heródoto, Tucídides, Xenofonte, Políbio, Tácito
e todos os demais; às grandes biogra as, também, como as Vidas de Plutarco, Johnson
(1791) de Boswell e Scott de Lockhart. A leitura de grandes vidas faz algo para criar vidas
decentes.
3. Prosa Re exiva e Ficção Poética. Quando eu tinha sete anos, minha mãe me deu um
conjunto de romances de James Fenimore Cooper; e mais ou menos na mesma época eu
herdei de um tio-avô meu conjunto de Hawthorne. Isso me lançou na leitura de romances,
de modo que, aos dez anos, eu já havia lido tudo de Hugo, Dickens e Twain. A cção é mais
verdadeira do que o fato: quero dizer que na grande cção obtemos a sabedoria destilada
dos homens de gênio, entendimentos da natureza humana que poderíamos alcançar – se
alguma vez alcançamos – sem a ajuda de livros, apenas no nal da vida, depois de
inúmeras experiências dolorosas. Comecei a ler Sir Walter Scott quando tinha doze ou
treze anos; e acho que aprendi com os romances Waverley e com Shakespeare, mais das
variedades de caráter que jamais obtive de manuais de psicologia.
Essa navegação diversa no reino da cção raramente faz mal. Quando eu tinha onze ou
doze anos, fui muito in uenciado por Mysterious Stranger (1916) de Twain, um trato ateu
disfarçado de romance da Áustria medieval. Não me transformou em um ateu juvenil; mas
isso me levou a inquirir sobre as causas primeiras – e com o tempo, paradoxalmente, isso
me levou a Dante, meu principal suporte desde então. De certa forma, o grande romance
e o grande poema podem ensinar mais sobre normas do que podem a loso a e a
teologia.
4. Filoso a e Teologia. Para o coroamento dos estudos literários normativos, nos voltamos,
em torno da idade de dezenove ou vinte anos, à abstração e generalização, moderadas
pela lógica. Simplesmente não é verdade que
Não é da natureza vegetal que se adquire algum conhecimento das paixões e anseios
humanos. Existem, sim, na frase de Emerson, uma lei para o homem e uma lei para as
coisas. A lei para o homem aprendemos com Platão, Aristóteles, Sêneca, Marco Aurélio;
com os profetas hebreus, São Paulo, Santo Agostinho e tantos outros escritores cristãos.
Nossa pequena racionalidade privada baseia-se na sabedoria dos homens de eras mortas;
e se nos esforçarmos para guiar nossos egos somente por nossas limitadas percepções
privadas, caímos na vala da irracionalidade.
A verdade “cientí ca”, ou o que é popularmente considerado verdade cientí ca, varia de
ano para ano com velocidade acelerada em nossos dias. Mas a verdade poética e moral
muda pouco com o lapso dos séculos. Para o inalterável na existência humana, as
humanidades são um ótimo guia.
Se um público não terá a imaginação moral, tenho dito, então cairá primeiro na
imaginação idílica; e presentemente na imaginação diabólica – esta última se tornando um
estado de narcose, gurativa e literalmente. Pois somos seres morais criados; e quando
negamos nossa natureza, em letras como em ação, os deuses dos cadernos com fogo e
abate retornam. Eu atesto a visão moral de homens como Aleksandr Solzhenitsyn; alguns
começaram a se posicionar, na república das letras, contra a imaginação diabólica e o
regime diabólico. Um corpo humano que não pode reagir é um cadáver; e um corpo de
letras que não pode reagir contra ilusões narcóticas pode melhor ser enterrado. As
virtudes teológicas podem encontrar fortes campeões nestes últimos anos do século XX:
homens e mulheres que se lembram de que no princípio era o Verbo.
Notas:
[1] – Kirk usa o termo “humane letters”, o qual resolvi traduzir para “humanidades”, já que
não é corrente o uso da tradução literal, “letras humanas”. Quando Kirk usa apenas o
termo “letters”, optei simplesmente pela tradução como “letras”. [N. do T]
[2] – Do inglês: “Be good, sweet maid, and let who will be clever.”
Dos títulos dos livros que se seguem no texto, embora a maioria permaneça no original
em inglês, alguns eu resolvi traduzir para o português para proporcionar um melhor
entendimento das ideias que Kirk busca transmitir no texto. [N. do T]
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