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Aula proferida na EAUM no ciclo “Rota Corbusier”: 28 de Janeiro de 2008

Le Modulor
A experiência da medida

Quando me convidaram a fazer uma apresentação para o ciclo Rota Corbusier pensei: Mas, para falar
do quê? Apresentar uma obra? Para falar sobre a Rota do ano anterior? Expor a viagem, falar dos
lugares, da experiência, dizer que correu tudo muito bem!

Instalada a dúvida e com a recorrente incapacidade de dizer não, pensa-se no assunto. Em casa ao
procurar o que teria sobre Corbusier: O Modulor. Comprado vai para dois anos encontrava-se na
estante a ganhar pó, paginado ocasionalmente e de modo aleatório nunca tivera a atenção devida. A
aula sobre proporção em arquitectura, a que este se destinara, nunca passara de uma intenção e a
sua referência era apenas genérica recorrendo aos usuais lugares comuns: regra de medida na
construção, medida do homem ideal modernista (que história!), relação áurea das medidas do
corpo, aplicação da medida humana ao projecto.

À descoberta do Modulor, rapidamente me deparo com uma inquietação comum com o Senhor Le
Corbusier:

“Qual é a regra que ordena, que relaciona tudo?” i

Sistema de medida
Quando medimos a que é que nos referimos? De onde vem a medida que usamos no trabalho?
Quanto é um metro? Onde o encontramos?

O sistema métrico, criado em 1793, surge no contexto revolucionário das convulsões francesas. A
Europa, ou melhor, o Mundo, encontrava-se dividida por fronteiras mais profundas a delimitação
político/administrativa. As medidas de um país não correspondem às medidas do país ou região
vizinha.

É no seio de uma ideologia universalista e igualitária que surge a convenção métrica fixada então
pelo Instituto dos Pesos e Medidas em Paris. Mas o que é o metro? Este é concebido como um
valor matemático/abstracto desvinculado de uma referência directa e reconhecível, ao contrário das
medidas antigas, referenciadas ao corpo.

O Metro é a décima milionésima parte de um quarto do meridiano terrestreii.

Bem! Impossível de experimentar. Mais estranha é a definição que é fixada a partir de 1960, e
reafirmada em 1983 na 17ª Convenção do Instituto dos Pesos e Medidas, dando reforma às barras
de alumínio que fixavam e demonstravam o metro. Uma espécie de definição atómica.
“Longitude do trajecto percorrido pela luz, em vácuo, durante 1/299.792.458 de segundo”

De arrepiar. E nós que todos os dias falamos em metros, medidas, escala e fixamos dimensões que
ditam a organização e configuração de espaços a partir desta medida.

Até esta convenção “universalizante”, o mundo anglo-saxónico tem afinal outro sistema, o corpo
fora sempre a referência a partir da qual se estabeleciam medidas, distâncias, grandezas, se ditavam
regulamentações, se produziam objectos e se lançavam construções.

Sendo toda a obra da humanidade destinada a ser usada pela mesma encontra-se facilmente um
vínculo entre unidade de medida e corpo. Foi a partir dessas unidades que nos foi possível
reconhecer a medida do mundo, organizá-lo e construir toda uma panóplia de objectos e
edificações que nos sustentam o quotidiano. Toda a produção humana se encontra vinculada à
dimensão do corpo, dos seus membros, a partir do qual se estabelecem unidades que permitem
reconhecer a medida do espaço que este ocupa. Unidades de medida como a Polegada, Palmo,
Côvado, Vara, Braça, etc, remetem para a medida do corpo humano.

Polegada (2,54cm); Palmo (22cm); Pé (30,48cm); Côvado (66cm); Vara (5palmos); Braça (10palmos)

Os sistemas de medida associados ao referente corpo exprimem, pela sua unidade essencial, uma
medida reconhecível, que nos serve de intermediação com o mundo e está na base da nossa
experiência com o mesmo.

Simultaneamente o nosso conhecimento do corpo dá-nos indicações de que este detém valores
harmónicos. Não é apenas a concha de Nautilos que se estrutura numa espiral em crescendo áureo.
Falange, falanginha e falangeta também se encontram numa proporção áurea, de valor F.

A regra que tudo ordena afinal já existe na natureza e terá uma expressão geométrica/matemática.

Referências métricas
As Construções da humanidade, o Parthenon, as habitações de pompeia, os templos indianos ou as
Catedrais foram construídos de acordo com um conjunto de medidas precisas que, pelas suas
características e relação, constituíam um código, um sistema coerente de relação e proporção entre
as suas partes.

Códigos que exprime uma unidade essencial, a medida do corpo, e um conjunto de relações,
associações, harmonias que remetem a factores profundamente enraizados no complexo contexto
cultural que os origina.

Desses códigos o mais antigo, do qual detemos conhecimento, é o cânone encontrado num túmulo
das pirâmides de Mênfis (3000 a.C.). Baseado não apenas no corpo, mas na medida do corpo do
faraó, figura tutelar do governo terreno e espiritual do mundo egípcio, a medida reflectia as
sucessões dinásticas e a medida do faraó então vigente. O cúbito, unidade de medida, correspondia
assim à distância que se estendia do cotovelo à ponta dos dedos do faraó, aproximadamente
524mm, sendo subdividida ainda em 28 partes.

Em Le Modulor, Corbusier remete-nos para a questão da codificação procurando estabelecer um


cânone na continuidade da tradição Vitrúviana recuperada anteriormente para a modernidade por
Alberti, Leonardo e Dürer. A sua pesquisa é assumida, não como novidade absoluta, mas, como
teoria comprovada e fixada em séculos de história da arquitectura. Por outro lado, esta não deixa de
estar imbuída do espírito modernista e da necessária eficácia de resposta aos problemas concretos
da sociedade moderna. A sua pesquisa, associada à ASCORAL iii, procura soluções à normalização,
estandardização e eficácia aos mais diferentes níveis (Produção, Distribuição, Circulação, Comércio
e Cooperação), para a reconstrução do mundo pós 2ª Guerra Mundial. Pode-se resumir como a
procura de uma gama de dimensões harmónicas à escala humana, aplicável universalmente à
“arquitectura e mecânica”

“Qual é a regra que ordena, que relaciona tudo?”

O problema assume-se do ponto de vista matemático/geométrico onde, apesar do espírito da


máquina e eficácia, se considera o estudo da natureza e a inevitável referência ao corpo. Le
Corbusier introduz ainda o Modulor aos fenómenos visuais, relacionando a disposição harmónica
dos elementos no espaço de acordo com uma leitura áurea das profundidades.

“A natureza é regulada pela matemática, e as obras-primas artísticas estão em consonância com a natureza; elas
expressam as leis da natureza, elas mesmas procedem dessas Leis” iv

Explora-se a relação entre as partes do organismo extrapoladas a posteriori para a escala do objecto,
da casa, da cidade e do produto artístico. Esclarece medidas, possibilidades de composição a partir
da rigorosa geometria das partes, tendo presente a sua infinitude combinatória. Medidas, relações,
proporções – o todo e as partes que o compõem. Mas o mesmo Corbusier no seu exacerbado
optimismo e espírito contraditório indica:

“Traçados reguladores não trazem qualquer poética ou ideia lírica; elas não inspiram o tema de trabalho, não são
criativas, apenas estabelecem equilíbrio. Uma questão, pura e simples, de plasticidade” v

Um homem universal
A sua ambição é de construir grelhas que estabeleçam parâmetros de proporcionalidade e harmonia
entendidos como referentes/reguladores métrico-compositivos. A grelha parte da compreensão da
medida do corpo, da proporcionalidade entre as suas partes. A grelha parte da inclusão da figura
humana em dois quadrados (216x108cm de aresta) que apontam a uma unidade mínima de
ocupação do espaço por um homem de braço levantado. 108cm (altura do umbigo), representa a
medida base a partir da qual se estabelece unidade, dupla unidade, e dois valores áureos adicionados
ou subtraídos.

No inicio das suas pesquisas, que se estenderam de 1942 a 1948, Le Corbusier tomara em
consideração uma figura de 175cm de altura. Contudo, pelas suas viagens (nomeadamente à
América onde contacta e expõe a teoria a Einstein), contactos e experiências os valores estudados
são reequacionados em função de duas novas variáveis: conversão ao sistema de pés-polegadas;
optimização da altura.

Uma vez que parte do mundo ocidental usa o sistema métrico e outra o sistema de pés-polegadas é
necessário, com vista á aplicabilidade universal tornar o sistema convertível, segundo valores
práticos e operativos nos dois sistemas. Por outro lado, é necessário considerar uma medida de
corpo aplicável a um espectro mais amplo, logo mais universal.
Ao contrário do que ouvira sempre não há aqui nenhuma visão sobre um homem ideal moderno,
de relevantes características físicas e intelectuais. Apenas um espírito pragmático na aplicabilidade
do cânone às mais variadas realidades construtivas, a contextos antropométricos distintos, e a
medida é alterada para 183cm, em consequência de um caricato episódio.

Um dia, durante o trabalho, absorvidos pela pesquisa um colaborador um dos colaboradores,


Marcel Py, disse: “Os valores do Modulor na presente forma são determinados pelo corpo de um homem de
1.75m de altura. Mas não é isso, uma medida francesa? Nunca notou (dirigindo-se a Le Corbusier) que nos
romances policiais ingleses, um homem bem-parecido, como o polícia, tem sempre seis pés de altura?” vi

6pés x 30.48cm = 182.88cm.

Aí as graduações do novo Modulor, baseado no homem de 6pés de altura, transpuseram-se


claramente para ambos os sistemas, com medidas operativas (arredondadas à unidade). Nascia
assim o Modulor, concebido como ferramenta internacional de produção, comércio e cooperação.
“Com esta grelha para ser usada em estaleiro, desenhada para que o homem caiba dentro desta, tenho a certeza que
obterá uma série de medidas que reconciliam estatura humana (homem com braço elevado) e matemática…” vii

Revisita à história
“No meu bolso tenho a fita graduada fabricada pelo Soltan, que mantenho numa pequena caixa de alumínio de um
filme Kodak: esse caixa nunca mais deixou o meu bolso” viii.

O anseio na construção de um mundo moderno, não deixa de lado o anseio de permanente


aprendizagem a partir da realidade existente da história da arquitectura. O novo espaço, as suas
regras, a proporcionalidade dos seus elementos não surgem do nada. Surgem sim de um extensivo
conhecimento baseado na experimentação espacial e levantamento do existente. Não é um
conhecimento de estilos de modos mas sim da matéria da arquitectura, das modalidades de
construção e da medida dos espaços. A confirmação do Coda proposto em o Modulor
fundamentou-se, além da explicação matemática e geométrica, no material compilado ao longo de
viagens e de estudos, na observação e experiencia directa da arquitectura. Grande espanto para
Corbusier: as harmonias propostas encontravam-se já em séculos de construção.

“No verão de 1948, estava eu frente a estas ruínas cistercienses do século XIII (Abadia de Chaalis – perto de
Paris). Estava aturdido com as belas proporções da porta (a do transepto se bem me lembro). Tinha acabado de
comprar um postal das ruínas. Escrevi na parte de trás do postal: ‘Domingo, 12 de Junho 1948, em Ermenonville;
entrei na arruinada abadia de Chaalis’. Tirei o ‘Modulor’ do bolso: correcto 226 em (A). Medi a largura (B) 226!
Medi (C)226+140=366! Fui-me embora satisfeito. Depois parei para reflectir. Tendo-me afastado a uma distância
de 200metros, disse para mim: esqueceste-te de medir a largura da porta. Recuei, tirei a medida: 113 (d). agora fui-
me embora realmente feliz. (Moral: a secção áurea fui usada aqui, a altura de um humano de 1.82m=6pés tomada
como ponto de partida)” ix

Vêem de fora os levantamentos e apontamentos dos cadernos de viagens: Relevo do templo de Seti
I em Abydos; Santa Sofia em Istambul; Igreja do Mosteiro de Philoteu no Monte Athos; Templos
do Forum e Casa del Noce d’Argento em Pompeia; Parthenon; vagões de combois. Espanta-o o
rigor destas construções, o seu sistema harmónico e encara-as como referências intemporais pela
densidade cognitiva que transmitem.
“O espírito da geometria produz formas tangíveis, expressões de realidades arquitectónicas: paredes aprumadas,
superfícies perceptíveis entre quatro paredes, ângulo recto, marco de balanço e estabilidade. Eu denomino-o do espírito
sob o signo do esquadro, e a minha descrição é confirmada pelo nome tradicional de “all’antica” dado à arte
arquitectónica mediterrânica, pois “all’antica” significa antiga, baseada no esquadro” x

Unité e a prática do Modulor


Na Unité de Marselha são convertidos, pela primeira vez e de modo extensivo, à prática da
construção as pesquisas de estandardização, proporcionalidade e relação métrica homem/edificado
de Le Corbusier. A aplicação sistemática do Modulor cria um estado unitário de agregação. Segundo
afirma o autor xi numa obra desta envergadura, complexidade e precisão construtiva são usadas
apenas 15 medidas, todas elas consequentes do sistema de harmonias por si criado e decorrentes de
combinações da série azul (226cm, BL), e vermelha (113cm, RO).

O Modulor revela-se de modo definitivo como uma ferramenta de trabalho, um instrumento de


precisão ao serviço da arquitectura e da mecânica.

Todas as partes se relacionam através dessas medidas: O volume da construção; a grelha estrutural;
a medida da célula habitacional; a compartimentação da célula; a organização de superfícies; a
configuração de mobiliário; brise-soleil; etc. Tudo disposto segundo o Modulor: proporções áureas;
sequências de Fibonnaci.

E os enunciados na construção: a estela de medidas e a grande parede no acesso pedonal.

“Sou arquitecto, um plasticista, um construtor. Tentando explicar as circunstâncias da invenção de uma ferramenta
de trabalho destinada a quem trabalha na construção, pensei e escrevi do ponto de vista do arquitecto. Esta
ferramenta de unificação da textura das conquistas arquitectónicas, oferecendo-lhe firmeza e saúde.” xii

Contudo, há ressalvas à sua obra:

“Lutarei contra qualquer fórmula e instrumento que me retire a mais pequena partícula de liberdade. Quero manter
a liberdade tão intacta que a qualquer momento, quando as figuras áureas e diagramas apontarem para uma solução
perfeitamente ortodoxa possa responder: ‘pode ser, mas não é belo’.” xiii

“A palavra está agora do lado dos usuários” xiv


i
CORBUSIER, The Modulor. Basel, Birkhäuser, 2004. P.26
ii
Longitude de onda de uma linha específica de um espectro atómico é 1.650.763,73 longitudes de onda em um vazio de
radiação correspondente a transição entre os níveis 2p10 e 5d5 do átomo de kripton-86.
iii
ASCORAL, Assemblée de Constructeurs pour une Rénovation Architectural.
iv
Op. Cit. P.29
v
Op. Cit. P.35
vi
Op. Cit. P.56
vii
Op. Cit. P.37
viii
Op. Cit.P.49
ix
Op. Cit. P.192
x
Op. Cit. P.223
xi
Op. Cit. P.118
xii
Op. Cit. P.224
xiii
Op. Cit. P.183
xiv
Op. Cit. P.239

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