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As religiões da

profecia:
Judaísmo,
Cristianismo e
Islamismo

Marcel Gauchet
As religiões não são mais determinantes para a
vida coletiva E mais:

Michel Cuypers >>Andrea Fumagalli:


As similaridades entre Corão e Bíblia “Os mercados financeiros são
o coração pulsante do
capitalismo cognitivo”
302
Ano IX
Claude Geffré
O diálogo inter-religioso e a consciência >>Michael Löwy:
humana universal O retorno do religioso
03.08.2009
ISSN 1981-8469

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As religiões da profecia: Judaísmo,
Cristianismo e Islamismo

“Não há paz entre as nações sem paz entre as religiões; não há paz entre as religiões sem diá-
logo entre as religiões; não há diálogo entre as religiões sem padrões éticos globais; não há chance
de sobrevivência para nosso planeta sem uma ética global, uma ética mundial, apoiada por pessoas
religiosas e não-religiosas”, propõe o Projeto de Ética Mundial, liderado pelo teólogo Hans Küng.

Numa promoção do Instituto Humanitas Unisinos – IHU e do escritório brasileiro da Fundação


Ética Mundial, que funciona junto ao IHU, inicia nesta semana o Programa Religiões no Mundo.
Uma série de sete documentários organizada e apresentada por Küng, gravada nas grandes capitais
religiosas do mundo, o programa contempla as três maiores correntes religiosas presentes no pla-
neta: as religiões da sabedoria de origem chinesa (Confucionismo e Taoísmo), as religiões da místi-
ca de origem indiana (Hinduísmo e Budismo) e as religiões da profecia de origem no Oriente Médio
(Judaísmo, Cristianismo e Islamismo). A partir dos vídeos, foi desenvolvida uma exposição de 15
banners sobre a temática, de forma sintética e didática, com conteúdos de outras duas tradições
religiosas: as religiões indígenas e as religiões de matriz africana. Os programas serão exibidos e
debatidos em sessões no IHU e no Centro de Cultura Mário Quintana – CCMQ -, em Porto Alegre.
Após as sessões haverá um evento gastronômico com comidas típicas de cada uma das sete culturas
religiosas. A TV Unisinos igualmente exibirá os documentários.

Esta edição da revista IHU On-Line, elaborada em parceria com a Fundação Ética Mundial e por
ela patrocinada, pretende contribuir num melhor conhecimento das três religiões monoteístas: o
Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo.

Contribuem neste número Carlos Frederico Barboza de Souza, doutor em Ciências da Reli-
gião, Michel Cuypers, pesquisador do Instituto Dominicano para os Estudos Orientais, no Cairo,
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto, docente da Universidade Federal Fluminense (UFF), Ruben
Najmanovich, rabino da Sinagoga da União Israelita de Porto Alegre, Guershon Kwasniewski, membro da
Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência (SIBRA), Pedro Rubens, reitor e professor da Uni-
versidade Católica de Pernambuco (Unicap), Karl-Josef Kuschel, teólogo alemão, professor na Faculdade
de Teologia Católica da Universidade de Tübingen e vice-presidente da Stiftung Weltethos (Fundação Ética
Mundial), e Joe Marçal, pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e coordena-
dor de atividades da Secretaria Permanente do Fórum Mundial de Teologia e Libertação.

Participam ainda com reflexões pontuais o teólogo francês Claude Geffré, membro do Comitê
Científico da revista internacional de Teologia Concilium, o filósofo francês Marcel Gauchet, dire-
tor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS) e redator-chefe da revista
Le Débat, e Michael Löwy, cientista social e docente na Escola de Altos Estudos em Ciências So-
ciais, da Universidade de Paris.

A todas e todos uma ótima leitura e uma excelente semana!

IHU On-Line é a revista semanal do Instituto Humanitas Unisinos – IHU – Universidade do Vale do Rio dos Sinos - Unisinos. ISSN 1981-8769.
Expediente

Diretor da Revista IHU On-Line: Inácio Neutzling (inacio@unisinos.br). Editora executiva: Graziela Wolfart MTB 13159 (grazielaw@unisi-
nos.br). Redação: Márcia Junges MTB 9447 (mjunges@unisinos.br) e Patricia Fachin MTB 13062 (prfachin@unisinos.br). Revisão: Mardilê F.
Fabre. Colaboração: César Sanson, André Langer e Darli Sampaio, do Centro de Pesquisa e Apoio aos Trabalhadores – CEPAT, de Curitiba-
PR. Projeto gráfico: Bistrô de Design Ltda e Patricia Fachin. Atualização diária do sítio: Inácio Neutzling e Greyce Vargas (greyceellen@
unisinos.br). IHU On-Line pode ser acessada às segundas-feiras, no sítio www.unisinos.br/ihu. Sua versão impressa circula às terças-fei-
ras, a partir das 8h, na Unisinos. Apoio: Comunidade dos Jesuítas - Residência Conceição. Instituto Humanitas Unisinos - Diretor: Prof. Dr.
Inácio Neutzling. Gerente Administrativo: Jacinto Schneider (jacintos@unisinos.br). Endereço: Av. Unisinos, 950 – São Leopoldo, RS. CEP
93022-000 E-mail: ihuonline@unisinos.br. Fone: 51 3591.1122 – ramal 4128. E-mail do IHU: humanitas@unisinos.br - ramal 4121.

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Leia nesta edição
PÁGINA 02 | Editorial

A. Tema de capa
» Entrevistas
PÁGINA 06 | Michel Cuypers: Corão e Bíblia: similaridades?
PÁGINA 09 | Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto: O Islã: representações de uma Religião Universal
PÁGINA 12 | Carlos Frederico Barboza de Souza: Sufismo: uma mística que busca o equilíbrio
PÁGINA 19 | Guershon Kwasniewski: Chegamos ao topo da babel. É preciso retornar
PÁGINA 21 | Ruben Najmanovich: Deus faz parte do desenvolvimento humano
PÁGINA 23 | Pedro Rubens: “O papel social da religião mudou”
PÁGINA 27 | Claude Geffré: O diálogo inter-religioso e a consciência humana universal
PÁGINA 30 | Karl-Josef Kuschel: O papel contemporâneo da religião
PÁGINA 32 | Joe Marçal: Diálogo inter-religioso: uma questão de saúde pública e planetária
PÁGINA 35 | Marcel Gauchet: As religiões não são mais determinantes para a vida coletiva
PÁGINA 37 | Michael Löwy: O retorno do religioso

B. Destaques da semana

» Entrevista da Semana
PÁGINA 41 | Andrea Fumagalli: “Os mercados financeiros são o coração pulsante do capitalismo cognitivo”
» Brasil em Foco
PÁGINA 44 | Lúcio Esteves: “Não são as pessoas que trazem benefícios para a instituição, mas as ideias”
» Destaques On-Line
PÁGINA 48 | Destaques On-Line

C. IHU em Revista

» IHU Repórter
PÁGINA 50| Felipe Ruiz

SÃO LEOPOLDO, 03 DE AGOSTO DE 2009 | EDIÇÃO 302 

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Religiões do Mundo

De 10-08-2009 a 08-10-2009
Informações em www.ihu.unisinos.br
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Corão e Bíblia: similaridades?
Segundo Michel Cuypers, devido à importância conferida à lei divina, o Islã está
mais próximo do Judaísmo do que do Cristianismo

Por Márcia Junges, Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin | Tradução Benno Dischinger

“P
or seu teocentrismo muito acentuado, o Corão não parece espontaneamente apto
para fazer frente a um mundo secularizado”, analisa Michel Cuypers, autor de
Le Festin. Une lecture de la sourate al-Mâ’ida (Paris: Lethielleux, 2007). Na en-
trevista que segue, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele informa que o Islã
atravessa a crise mais profunda de toda a sua história, a qual gera posições di-
ferentes entre a comunidade muçulmana. Para uns, explica, “o mundo deve mudar e adaptar-se às
leis divinas do Islã”, para outros, continua, “é preciso repensar radicalmente o Islã para reconciliá-lo
com o mundo atual”.
Ainda nesta entrevista, Cuypers aborda aspectos da composição do texto do Corão e diz que “as re-
gras de composição das suras corânicas são as mesmas que se encontram nos textos bíblicos”. Segundo
ele, o Corão e a Bíblia pertencem ao mesmo mundo literário, “não somente em sua forma retórica, mas
também em razão de temáticas similares”. Os livros sagrados são textos antigos, escritos num contexto
diferente do nosso, em função disso, aconselha, “é preciso necessariamente distinguir nesses textos o
que diz respeito à sua época e ao seu meio, e o que tem um valor permanente, que ainda pode inspirar
o homem de hoje”.
Michel Cuypers é belga e residiu no Irã por doze anos. Cursou doutorado em Literatura Persa, na Uni-
versidade de Teerã. Também estudou árabe na Síria e mudou-se para o Cairo, onde reside atualmente
e atua como pesquisador do Instituto Dominicano para os Estudos Orientais. É membro da International
Society for the Studies of Biblical and Semitc Rhetoric, da Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as princi- manos, tenha sido tão mal composto?” ou composição. Eles partem do pressu-
pais teorias e as novas maneiras de Quis então estudar o Corão do ponto posto de que o texto deve ter uma co-
abordar o Corão que o senhor propõe de vista de sua composição. Era uma erência, porém uma coerência que é
na obra Le Festin. Une lecture de la espécie de desafio. Os pesquisadores preciso descobrir. A tradição exegética
sourate al-Mâ’ida? ocidentais que estudaram o Corão a muçulmana se colocou também, desde
Michel Cuypers - Como muitos leito- partir do século XIX, admitiram todos o início, esta questão da coerência e
res não muçulmanos que lêem pela como evidência o caráter composto do da composição do texto, mas sem che-
primeira vez o Corão, fui, há muito texto do Corão, e eles só o abordaram gar a dar uma resposta satisfatória. De
tempo, tocado pela aparente ausência sob o enfoque da crítica histórica, com minha parte, creio ter encontrado a
de ordem e de coerência do texto co- o cuidado de compreender a gênese e resposta, não na tradição da sabedoria
rânico, que parece feito de pequenos a história do texto corânico, classifi- islâmica, mas voltando à exegese bí-
fragmentos postos em sequência sem cando os fragmentos que o compõem blica, que desenvolveu desde o século
nenhuma lógica aparente. Perguntava- numa ordem mais lógica e cronológica. XVIII, porém, sobretudo nestas últimas
me: “É possível que um texto sagrado, Seu acesso ao texto era então clara- décadas, um método chamado “análi-
circundado por tal veneração há qua- mente “diacrônico”. Foi apenas mais se retórica”.
torze séculos por milhões de muçul- recentemente que alguns pesquisa-
dores adotaram outro ponto de vista, IHU On-Line - O senhor aplica ao Co-
 Corão: também conhecido como Alcorão,
significa recitação. É o livro sagrado do Isla- “sincrônico”, procurando compreen- rão um sistema de análise que pro-
mismo, totalmente ditado pelo profeta Maomé der o texto das suras (os capítulos do vém dos estudos bíblicos. Partindo
(Mohammad) e redigido na linguagem árabe Corão) tal como ele se apresenta em deste pressuposto, que nova leitura
por seus seguidores no século VII d.C., em vá-
rias cidades da Arábia. (Nota da IHU On-Line) sua versão canônica, na sua estrutura do Corão propõe?
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Michel Cuypers - Todos os grandes s.j., em seu Tratado de Retórica bí- seu Profeta”. Falando estritamente,
estudiosos clássicos do Corão comen- blica (Lethielleux, Paris, 2007). Ora, o que é não negociável, como você
taram o texto versículo por versículo, eu pude constatar que o texto do Co- diz, é o estrito monoteísmo islâmico,
sem consideração do seu contexto li- rão é construído exatamente da mes- que exclui até a ideia de Trindade e
terário imediato. O resultado é que ma forma. As regras de composição de Encarnação. Não pode haver mul-
eles, com freqüência, deram múlti- das suras corânicas são as mesmas que tiplicidade em Deus, mesmo relativa.
plas interpretações diferentes de um se encontram nos textos bíblicos. É, pois, impensável que Deus possa ter
versículo, entre as quais o leitor não Mas as relações do Corão com o texto um filho, e mais ainda, um filho que
sabe qual escolher. De outra parte, es- bíblico não param aí. O Corão perten- se torna homem! Tal é o artigo de fé
ses comentários clássicos, em vez de ce ao mesmo mundo literário da Bíblia, absolutamente primário e essencial
explicar um versículo, situando-o em não somente em sua forma retórica, para o Islã. Mas, ele é acompanhado
seu contexto literário, explicam-no, mas também em razão de temáticas indissociavelmente da fé no profeta
pondo-o em relação com o que eles similares: a “releitura” de numerosos Maomé, cuja mensagem se resume
chamam tecnicamente “as ocasiões da textos anteriores, seja da Bíblia, seja precisamente nesse monoteísmo rigo-
revelação”, isto é, tal ou tal evento da de textos parabíblicos (textos rabínicos roso. É por isso que o Corão não cessa
vida do profeta Maomé teria sido “a como a Mishna, ou apócrifos cristãos), de convocar ao mesmo tempo Deus e
ocasião” ou a razão pela qual ele teria dando-lhes um novo sentido, conforme seu Profeta. Mas, atenção: nenhuma
“descido” sobre o Profeta. Infelizmen- a teologia corânica; um pouco como o religião se reduz ao seu fundamento
te, é difícil conferir um valor históri- Novo Testamento “relido” segundo os essencial. Este se desdobra em toda
co real à maioria dessas “ocasiões da textos do Antigo Testamento, dando- uma vida, uma tradição, ritos, outros
revelação”. A análise retórica, sim, lhes um novo sentido, “crístico”. pontos de fé importantes (como o últi-
mostrando a estrutura das suras, reco- mo Julgamento). Cabe definitivamen-
loca cada versículo em seu verdadeiro te aos muçulmanos responder à sua
contexto literário que lhe confere seu “O credo muçulmano é questão, e ela já constitui o objeto de
sentido. A descoberta da estrutura é, ásperos debates entre reformistas e
portanto, o caminho em direção ao simples: ‘Eu atesto que fundamentalistas, por exemplo.
sentido do texto, sem que haja neces-
sidade de recorrer ao artifício dessas não há divindade senão IHU On-Line - Como compreender o
“ocasiões da revelação”. mundo de hoje com base no Corão,
Deus e que Maomé é seu isto é, com base em um texto da tra-
IHU On-Line - Como é construído o dição islâmica?
Corão e qual é sua relação com o Profeta’” Michel Cuypers - A questão seria a
mundo dos grandes textos bíblicos mesma no que se refere à Bíblia. O Co-
judeus e cristãos? rão, a Bíblia, são textos muito antigos,
Michel Cuypers - A análise retórica IHU On-Line - O que o Islã tem de es- escritos num contexto histórico preci-
permitiu destacar as regras da “retó- pecífico ou “não negociável” em sua so e totalmente diferente do nosso. É,
rica bíblica”, muito diferente da re- construção interna que, sem isso, essa pois, preciso necessariamente distin-
tórica grega e latina que herdamos. religião perderia sua característica? guir nesses textos o que diz respeito à
Os textos da Bíblia são construídos na Michel Cuypers - O credo muçulma- sua época e ao seu meio, e o que tem
base de simetrias que podem assumir no é simples: “Eu atesto que não há um valor permanente, que ainda pode
três formas ou três “figuras de com- divindade senão Deus e que Maomé é inspirar o homem de hoje. Já um gran-
posição”: o paralelismo (por exemplo, de pensador muçulmano egípcio de
uma sequência de versículos na ordem  Roland Maynet: sacerdote jesuíta, professor fins do século XIX, Muhammad Abduh,
de Exegese do Novo Testamento no Departa-
AB/À’B’), a construção em espelho mento de Teologia da Pontifícia Universidade dizia que muitos versículos do Corão
ou o paralelismo invertido (AB/B’À’) Gregoriana, em Roma, Itália. (Nota da IHU devem ser compreendidos à luz de sua
e a construção concêntrica, quando On-Line) época e que eles não têm um valor
 Mishna: um dos componentes do Talmude, é
um elemento central conecta os dois o primeiro compêndio escrito da Lei Oral ju- permanente. Do ponto de vista da prá-
versículos da construção em espelho daica. (Nota da IHU On-Line) tica religiosa, eles são, pois, caducos,
(ABC/x/C’B’À’). Essas figuras de com-  Apócrifos cristãos: os livros apócrifos, tam- contrariamente a outros versículos que
bém conhecidos como livros pseudo-canônicos,
posição se encontram em diversos ní- são os livros escritos por comunidades cristãs e exprimem uma sabedoria mais univer-
veis do texto: por exemplo, entre dois pré-cristãs nos quais os pastores e a primeira sal e intemporal, válida até o fim do
ou três versículos de um salmo, depois comunidade cristã não reconheceram a pessoa mundo. Esses versículos podem, sim,
e os ensinamentos de Jesus Cristo e, portanto,
um grupo de versículos, e em seguida não foram incluídos no cânon bíblico. O ter- inspirar muito bem a conduta e a fé
um bloco textual mais amplo ainda, e mo “apócrifo” foi cunhado por Jerônimo, no  Muhammad Abduh: reformador e apologista
assim por diante, até o salmo inteiro. quinto século, para designar basicamente an- muçulmano egípcio. Foi pupilo de Al-Afghani.
tigos documentos judaicos escritos no período Embora profundamente influenciado por ele,
Estes princípios foram perfeitamente entre o último livro das escrituras judaicas, envolvia-se menos com o activismo político, e
teorizados pelo padre Roland Maynet Malaquias e a vinda de Jesus Cristo. (Nota da mais com as reformas dos sistemas religioso,
IHU On-Line) legal e educativo. (Nota da IHU On-Line)

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do homem de hoje. Eles se encontram é ultrapassada. Como pode o Corão questão, que o Islã não é monolítico.
principalmente na parte mais antiga ajudar a compreender esta nova con- Fala-se frequentemente do Islã de ma-
do Corão, centrada na perspectiva da figuração social? É necessário passar neira essencialista, como se houvesse
justiça social e do último Julgamento. por uma releitura em face desse novo um só Islã, quando o Islã (como tam-
contexto no qual vivemos? bém o Cristianismo), de fato, é múl-
IHU On-Line - Quais são os pontos de Michel Cuypers - Por seu teocentrismo tiplo. A mídia informa principalmente
ruptura do Islã com o Judaísmo e o muito acentuado, o Corão não pare- sobre tudo o que, no Islã, choca nossos
Cristianismo? ce espontaneamente apto para fazer contemporâneos (condição da mulher,
Michel Cuypers - O próprio Corão diz face a um mundo secularizado, em violência...). Na realidade, o Islã atra-
claramente: é antes de tudo a questão todo o caso, menos do que o Evange- vessa uma crise profunda, sem dúvida
da filiação divina. Não somente a do lho da Encarnação. Mas ele pode ser a mais profunda de toda a sua história.
Cristo, mas também a do simples fiel, um fator de equilíbrio, lembrando ao Os muçulmanos adotam uma série de
cristão ou judeu. A ideia de “diviniza- homem moderno o seu destino eterno, posições diferentes diante desta crise.
ção” do homem, tão cara aos Padres sob a condição, todavia, que os muçul- Podem-se esquematizar, assim, as po-
da Igreja, é um non sens para o Islã. manos aceitem também uma releitura sições extremas: para uns, é o mundo
Segue-se, seguramente, outra concep- do Corão que confira direito, ao lado que deve mudar e adaptar-se às leis
ção da relação do homem com Deus, divinas do Islã (pela ação violenta ou
mas também dos homens entre si, os por um lento trabalho de infiltração e
quais não serão considerados como ir- “Esses versículos podem, de transformação); para outros, é pre-
mãos, filhos de um mesmo Pai. No en- ciso repensar radicalmente o Islã para
tanto, é preciso tomar em conta certas sim, inspirar muito bem a reconciliá-lo com o mundo atual. Entre
correntes místicas que existem no Islã estas duas posições, você encontrará
(o sufismo), cujas vias se aproximam conduta e a fé do homem uma gama de atitudes intermediárias.
da espiritualidade cristã.
Por sua insistência no monoteísmo de hoje. Eles se IHU On-Line - Como o senhor perce-
e também pela importância conferida be a inculturação do Islã no mundo,
à Lei divina, o Islã está mais próximo encontram num momento de globalização e de
do Judaísmo do que do Cristianismo, fronteiras cada vez mais abertas,
embora a polêmica do Corão seja pa- principalmente na parte com grande mobilidade e trocas cul-
radoxalmente mais severa em face dos turais?
judeus do que dos cristãos – sem dúvi- mais antiga do Corão, Michel Cuypers - Seguramente o Islã
da em razão de conjunturas históricas tem dificuldades em se inculturar no
diferentes. centrada na perspectiva nosso mundo de hoje, cuja evolução
muito rápida é, antes de tudo, co-
IHU On-Line - Muitos filósofos defen- da justiça social e do mandada pelo Ocidente. A moderni-
dem que no Ocidente a metafísica já dade, a mundialização não nasceram
 Patrística: nome dado à filosofia cristã dos último Julgamento” do Islã. O Islã deve, pois, se adaptar
primeiros sete séculos, elaborada pelos Pais da à força a condições culturais que ele
Igreja, os primeiros teóricos, daí “Patrística”. não inventou. Mas eu não creio que
Consiste na elaboração doutrinal das verdades
de fé do Cristianismo e na sua defesa contra os da transcendência divina, a todos os isso seja impossível. A história mos-
ataques dos “pagãos” e contra as heresias. Fo- valores humanos do homem de hoje. tra que o Islã soube integrar bastan-
ram os padres da Igreja responsáveis por con- Muitos intelectuais muçulmanos (em te bem culturas diferentes, do Mar-
firmar e defender a fé, a liturgia, a disciplina,
criar os costumes e decidir os rumos da Igreja, geral universitários “laicos”) recla- rocos à Indonésia. O desafio, hoje,
ao longo dos sete primeiros séculos do Cristia- mam por tal nova exegese do Corão, é por certo muito grande (mas para
nismo. É a Patrística, basicamente, a filosofia adaptada ao mundo de hoje. Parece- quem ele não o é, num mundo em
responsável pelo elucidação progressiva dos
dogmas cristãos e pelo que se chama hoje de me que a exegese que eu proponho plena transmutação?). Somente o fu-
Tradição Católica. (Nota da IHU On-Line) em meu livro é um início de resposta turo dirá se os muçulmanos saberão
 Sufismo: corrente
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mística e contemplativa nesse sentido. enfrentá-lo. Em todo o caso, pode-
do Islã. Os praticantes do sufismo, conhecidos
como sufis ou sufistas, procuram uma relação se constatar que muitos muçulma-
direta com Deus através de cânticos, música e IHU On-Line - Quais são as principais nos já conseguem viver harmoniosa-
danças. O termo sufismo é utilizado para des- tendências e os grandes movimentos mente sua fé no mundo globalizado,
crever um vasto grupo de correntes e práticas.
As ordens sufis (Tariqas) podem estar associa- do Islamismo de hoje referentes ao notadamente no Ocidente. Eu creio
das ao islão sunita, xiita ou uma combinação ser humano contemporâneo? realmente que a renovação de que
de várias correntes.O pensamento sufi nasceu Michel Cuypers - A resposta a esta necessita o Islã virá dos muçulmanos
no Oriente Médico no século VIII, mas encon-
tra-se hoje por todo o mundo. Na Indonésia, questão ultrapassaria as dimensões de que vivem no Ocidente.
atualmente a nação com maior número de uma entrevista. No entanto, é preci-
muçulmanos, o Islã foi introduzido através das so lembrar, como, aliás, o sugere sua IHU On-Line - Gostaria de acrescentar
(Nota da IHU On-Line)
ordens sufis.����������

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algum ponto que não foi abordado?
Michel Cuypers - Falamos do que de-
veria ser a exegese do Corão ou do
Islã no nosso mundo globalizado. Mas O Islã: representações de uma
eu creio que a integração dos muçul-
manos se fará tanto mais facilmente Religião Universal
quanto os não muçulmanos que os aco-
lhem ou vivem ao lado deles se abri-
rão a eles e aprenderão a conhecer o De acordo com o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pin-
Corão e o Islã. Respeite aquele que o
respeita, interessamo-nos pelo outro,
to, em todos os sistemas religiosos surgiram ideologias políti-
se ele se interessa por nós. De onde a cas que se pautam numa linguagem religiosa
grande importância de multiplicar os
encontros inter-religiosos, e, para os
Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin
cristãos, uma boa informação, respei-
tosa, sobre a fé muçulmana, longe de

“A
toda polêmica e apologética. É alias,
s tensões e os conflitos existentes entre muçulmanos e
penso eu, a própria finalidade desta
não muçulmanos são derivados de processos políticos”,
entrevista e de sua revista.
aponta o antropólogo Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto.
Para ele, discussões teológicas entre as religiões mono-
teístas não ajudam a resolver as divergências existentes
Leia Mais... entre elas e irão perdurar por décadas. “Se os processos políticos não forem
resolvidos, os conflitos irão continuar”, assegura.
>> O sítio do IHU já publicou entrevistas
sobre Michel Cuypers. O material está disponí-
Em entrevista concedida por telefone à IHU On-Line, Pinto ressalta que
vel na página eletrônica www.ihu.unisinos.br. a valorização “excessiva das dimensões religiosas dos conflitos do Oriente
Entrevistas:
Médio é uma forma de ocultar os processos políticos sociais que existem”.
• Uma leitura renovada do Corão. Entrevista com
Michel Cuypers, publicada em 07-06-2007, dispo- Para ele, o Islamismo “foi eleito como sendo a alteridade da consciência
nível no link http://www.ihu.unisinos.br/index. euro-americana globalizada”. Além disso, enfatiza que religião e política, no
php?option=com_noticias&Itemid=18&task=detal
he&id=7647; caso do Islã, “produzem um discurso sobre a essência do Islamismo, quando
• Diálogo com o Islã. Entrevista com Michel o mesmo fenômeno não produz discursos semelhantes sobre o Cristianismo,
Cuypers, publicada em 26-04-2007, disponível no
endereço eletrônico http://www.ihu.unisinos. o Judaísmo ou o Budismo”.
br/index.php?option=com_noticias&Itemid=18&t Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto é graduado em História e mestre em
ask=detalhe&id=6744.
Antropologia, pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Também é doutor
em Antropologia, pela Boston University, com a tese Mystical Bodies: Ritual,
Experience and the Embodiment of Sufism in Syria (2002). Com experiência
Baú da IHU On-Line em Antropologia da Religião, Síria/Oriente Médio, Curdos/Árabes e Ritual, é
A IHU On-Line já publicou outras edições
docente da UFF. Confira a entrevista.
sobre religiões. O material está disponível na
página eletrônica do IHU (www.ihu.unisinos.br).

* Freud e a religião. Edição número 207, de IHU On-Line - Que aspectos espe- ro é a aceitação de que só existe um
04-12-2007, disponível no link http://www. cíficos caracterizam o Islamismo? Deus, e Maomé é seu Profeta; o segun-
ihuonline.unisinos.br//uploads/edicoes/
1165256946.32word.doc; O que o difere de outras religiões do são as orações diárias; o terceiro é a
* Delicadezas do Mistério. A mística hoje. Edição monoteístas como o Cristianismo e esmola, ou seja, o dízimo pago para o
número 133, de 21-03-2005, disponível no ende- o Judaísmo? bem da coletividade. Ainda há o jejum
reço eletrônico http://www.ihuonline.unisinos.
br//uploads/edicoes/1158267172.24word.doc; Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O no mês sagrado do Ramadã e por fim
* Gênero, família e religião. Edição número Islamismo é uma das três religiões mo-  Muhammad, Muhammad (Maomé): líder
114, de 06-09-2004, disponível no link http:// noteístas que surgem no Oriente Médio religioso e político árabe. Segundo a religião
www.ihuonline.unisinos.br//uploads/edicoes/ islâmica, Maomé é o mais recente e último
1158264514.33word.doc; junto com o Cristianismo e o Judaísmo. profeta do Deus de Abraão. Não é conside-
* Política, Ética e Religião. Adela Cortina na Uni- Como toda religião universal, o Islã de- rado pelos muçulmanos como um ser divino,
sinos. Edição número 43, de 18-11-2002, disponí- fende uma série de crenças e rituais mas sim, um ser humano; contudo, entre os
vel no endereço http://www.ihuonline.unisinos. fiéis, ele é visto como um dos mais perfeitos
br//uploads/edicoes/1161291057.03word.doc; básicos que todo fiel deve conhecer, seres humanos. (Nota da IHU On-Line)
* Será a economia uma religião? Edição núme- como, por exemplo, a crença em um  Ramadã: ���������������������������������
nono mês do calendário islâmico.
ro 36, de 23-09-2002, disponível em http:// Deus único, no Juízo Final, nos anjos É o mês durante o qual os muçulmanos pra-
www.ihuonline.unisinos.br//uploads/edicoes/ ticam o seu jejum ritual, o quarto dos cinco
1161371150word.doc. e nos profetas. Além disso, existem os pilares do Islã. A palavra Ramadã encontra-
cinco pilares da fé islâmica. O primei- se relacionada com a palavra árabe ramida,

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a peregrinação à Meca, o Hajj. Nesse religiosos, perfeitos, superiores, mas sectárias. No Iraque, por exemplo,
sentido, tal como o Cristianismo e o Ju- sem nenhum caráter sagrado, e que a antes da queda de Saddam Hussein,
daísmo, é uma religião plural, voltada comunidade dos fiéis pode ser guiada as identidades religiosas tinham uma
para toda a humanidade. Logo, o obje- por líderes escolhidos por ela. Dessa importância na decisão do casamento,
tivo é apresentar a sua verdade religiosa divisão, criam-se diferentes tradições dos relacionamentos. Os xiitas eram
a todos. doutrinais, que terão maior ou menor bastante discriminados e reprimidos
Do ponto de vista muçulmano, a importância, dependendo da época pelo governo de Saddam Hussein, mas,
profecia de Maomé restaura a men- do contexto. Então, por exemplo, no depois da invasão americana, essas
sagem divina que foi apresentada por século XVI, com a ascensão da Dinas- identidades foram mobilizadas num
outros profetas. Então, os muçulma- tia Safávida no Irã, o xiismo se trans- contexto de guerra civil. Assim, exis-
nos se veem como uma continuação formou na religião do país, até então tem tensões sectárias extremamente
no processo da profecia que inclui to- majoritariamente sunita. Foi consti- altas e a criação de discursos e acu-
dos os profetas anteriores a Maomé, tuído, assim, um império xiita, o Im- sações de ambas as partes. Em outros
ou seja, Cristo, Moisés e outros do pério Persa, e impérios sunitas como contextos, entretanto, essas divisões
Antigo Testamento. Conforme os mu- os Otomanos e os Mongóis, na Índia. são percebidas como não importantes
çulmanos foram se expandindo pelo Nesse contexto, as divisões sectárias ou não relevantes.
mundo, outras religiões foram sendo se relacionam com questões políticas,
incorporadas nessa história sagrada. competições entre os Impérios etc. IHU On-Line - Com visões religiosas,
Assim, Buda é visto como um profe- Mas nada impede, por exemplo, xiitas éticas, políticas e morais distintas é
ta antecessor de Maomé. O Islamismo e sunitas de compartilharem devo- possível pensar em uma ética mun-
compartilha com as demais religiões ções ou práticas religiosas. O Suf, por dial entre Islamismo, Cristianismo e
universais essa tendência expansiva Judaísmo? Quais são as possibilidades
de procurar converter pessoas à fé e presentes no Islã para que este diá-
essa pluralidade de expressões sociais “Do ponto de vista logo seja possível e quais os limites
e culturais. que o impedem ou o obstaculizam?
Em cada sociedade, existem dife- muçulmano, a profecia Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O
rentes interpretações e práticas do Islã diálogo inter-religioso é possível, e as
que dialogam entre si. Certas ativida- de Maomé restaura a condições ou limitações não são ex-
des que, para um muçulmano na In- clusivas do Islã. O diálogo é muito fá-
donésia, são corriqueiras, ganham um mensagem divina que foi cil entre as três religiões, porque elas
caráter completamente estranho para adoram o mesmo Deus; o que permite
um marroquino. Há ainda divisões sec- apresentada por outros estabelecer um consenso, no entanto,
tárias entre xiitas e sunitas. O sufismo também afirmam que a verdade per-
é a tradição mística que atravessa es- profetas” tence a elas. Então, a questão é definir
sas duas tradições sectárias. Por isso, o que se quer conquistar com o diálogo
não é possível falar de um único Islã. inter-religioso. O formato do diálogo,
Existe uma pluralidade de práticas e exemplo, tem devoção à família do por sua vez, é feito da ótica cristão-ju-
crenças religiosas que se pensam como Profeta. Os sufistas e xiistas comparti- daica. Assim, a não inserção dos muçul-
parte dessa comunidade mundial defi- lham várias práticas religiosas como a manos nessa configuração levou a uma
nida como Islã. celebração da Ashura, a visitação dos situação em que é preciso mudar o mo-
lugares sagrados ligados à família do delo para incluí-los. Ao mesmo tempo,
IHU On-Line - O que a divisão exis- Profeta. líderes mulçumanos estão engajados
tente no Islã entre sunitas e xiitas A vertente religiosa dominante na no diálogo inter-religioso há décadas. O
representa para a comunidade islâ- Arábia Saudita, o Wahhabismo, consi- falecido Mufti (Chefe do Islã Sunita) da
mica? dera os xiitas hereges. Para os adep- Síria, Ahmad Kuftaru, sempre foi enga-
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto tos dessa corrente religiosa, os xiitas jado no diálogo com outras religiões.
– Essas são as duas grandes divisões devem ser, na melhor das hipóteses,
sectárias. Basicamente, os xiitas veem trazidos para a ortodoxia religiosa Disputas políticas
a família do Profeta como seres ilu- wahhabita ou serem rejeitados como
minados que guiam a comunidade dos muçulmanos. Então, cada contexto O importante é entender que as
fiéis enquanto os sunitas acreditam irá dizer as relevâncias dessas divisões tensões e os conflitos existentes entre
que o Profeta e sua família são seres  Dinastia Safávida: dinastia xiita iraniana  Saddam Hussein Abd al-Majid al-Tikri-
formada por azeris e curdos, que governaram ti (1937-2006): político e estadista ira-
“ser ardente”, possivelmente pelo facto do a Pérsia de 1501/1502 a 1722. Os safávidas quiano, uma das principais lideranças do
Islã ter celebrado este jejum pela primeira fundaram o maior império iraniano desde a mundo árabe. Foi presidente do Iraque
vez no período mais quente do ano. Uma vez conquista islâmica da Pérsia, e estabeleceram no período de 1979 a 2003, acumulando o
que o calendário islâmico é lunar, o Ramadã a escola do Xiismo como a religião oficial de cargo de primeiro-ministro nos períodos
não é celebrado todos os anos na mesma data, seu império, marcando um dos mais importan- de 1979-1991 e 1994-2003. (Nota da IHU
podendo passar por todas as estações do ano. tes pontos de virada na História do Islã. (Nota On-Line)
(Nota da IHU On-Line) da IHU On-Line)

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muçulmanos e não muçulmanos são em nome de Deus, da mesma maneira dos os sistemas religiosos, inclusive no
derivados de processos políticos. Eles que todos os monarcas ocidentais go- Islã, surgiram ideologias políticas que
podem discutir durante décadas ques- vernavam em nome Dele. Porém, o re- se pautam numa linguagem religiosa. A
tões religiosas, mas, se não resolve- presentante político muçulmano não Teologia da Libertação, por exemplo,
rem os processos políticos, os conflitos podia interferir em questões doutri- nada mais é do que uma reformulação
irão continuar. O conflito na Irlanda do nais. Esses são assuntos para um grupo do Cristianismo Católico com fins cla-
Norte não foi “resolvido” com discus- de especialistas, os ulama, letrados ramente políticos e sociais. No século
sões teológicas, e sim com um pacto que tratam da religião. XX, vimos a ascensão do Islã político,
político. A valorização excessiva das Claro que, historicamente, existe mal definido como fundamentalismo
dimensões religiosas dos conflitos do um acordo entre elite política e reli- islâmico, com a produção de vários
Oriente Médio é uma forma de ocul- giosa. Então, os demais sempre legiti- grupos militantes. Eles se enfrenta-
tar os processos políticos e sociais que mavam o poder do Califa que reinava. ram com estados autoritários, políti-
existem. Agora, a ideia de que nunca existiu cas colonialistas e com o imperialismo
separação entre religião e política é americano em vários contextos da mo-
IHU On-Line - Considerando que a completamente falsa, empiricamente dernidade. Isso não caracteriza o Islã
afirmação da própria identidade é incorreta na história do Islã. Isso não como religião, e sim os vários cenários
fundamental para o diálogo inter-re- difere das outras religiões. Tradições políticos em que ele é pensado.
ligioso, que aspectos de sua identi- religiosas como Cristianismo, Judaísmo
dade o Islamismo não pode renunciar e Budismo se aliaram ao poder político IHU On-Line - Como a fé do Islã é vis-
no diálogo com outras religiões? para tentar impor suas ortodoxias. ta, interpretada internacionalmente?
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O
– O Islã não pode renunciar àquilo que “A valorização excessiva Islã foi eleito como sendo a alteridade
outras religiões também não podem da consciência euro-americana globa-
renunciar, ou seja, às suas crenças e das dimensões religiosas lizada. Então, a fé islâmica é mal-in-
aos elementos que o definem como terpretada e analisada. Essa questão
uma religião particular. Os cristãos dos conflitos do Oriente de religião e política, no caso do Islã,
não irão parar de considerar Cristo o produz um discurso sobre a essência
Salvador e nem os judeus irão rejeitar Médio é uma forma de do Islamismo, quando o mesmo fenô-
a lei mosaica para aceitar Cristo. Os meno não produz discursos semelhan-
muçulmanos, por sua vez, não irão re- ocultar os processos tes sobre o Cristianismo, Judaísmo ou
negar a profecia de Maomé, mas eles Budismo. Isso tem relação com uma
aceitam a de Cristo. O que se quer políticos e sociais que questão ideológica da mídia que repre-
com o diálogo inter-religioso? O que se senta o mundo muçulmano como uma
pode ter é uma ênfase nos pontos dou- existem” alteridade ameaçadora, o que se liga
trinais como éticos de cada religião e ao fato de que, no centro do mundo
daí construir um universo de respeito. muçulmano, existem áreas de disputas
Quando o assunto é Islã, parece que geoestratégicas de políticas coloniais
o respeito é esquecido. O Papa Ben- IHU On-Line - No Islã predominam e imperiais no caso do Oriente Médio.
to XVI fez uma declaração lamentável mais aspectos místicos ou políticos? Atitudes extremistas as religiões
de que a profecia de Maomé só trouxe Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto têm. Claro que os homens-bomba pa-
violência e destruição. Esses comentá- – Todo universo religioso tem uma di- lestinos do Hamas não ajudam a criar
rios não levam a nada. mensão política. O Papa é um líder po-  Teologia da Libertação: escola importante
lítico, as Igrejas Protestantes nos EUA na teologia da Igreja Católica, desenvolvida
têm uma atuação política, Israel se depois do Concílio Vaticano II. Surge na Amé-
IHU On-Line - Há, no Islã, relação rica Latina, a partir da opção pelos pobres, e
entre poder religioso e político? Até define como um Estado judeu. No en- se espalha por todo o mundo. O teólogo peru-
que ponto um influência o outro? tanto, ninguém fala que no Judaísmo ano Gustavo Gutierres é um dos primeiros que
ou no Cristianismo se confunda religião propõe esta teologia. A teologia da libertação
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto tem um impacto decisivo em muitos países do
– A relação entre Islã e política não é com política. Não entendo por que no mundo. Sobre o tema confira a edição 214 da
diferente da relação entre Cristianis- Islã a dimensão política cause tanta IHU On-Line, de 02-04-2007, intitulada Teolo-
estranheza. Existe uma dimensão polí- gia da libertação, disponível para download no
mo, Judaísmo ou Budismo e política. link http://www.ihuonline.unisinos.br/uplo-
Essa ideia de que não existe separação tica em todas as religiões, porque, en- ads/edicoes/1175543970.11pdf.pdf. (Nota da
entre política e religião no Islã é uma tre outras coisas, elas falam de poder IHU On-Line)
e isso tem a ver com a política. Mas a  Hamas: partido político sunita palestino que
ficção que alguns orientalistas inven- mantém a maioria dos assentos no Conselho
taram e vários fundamentalistas islâ- utilização de uma linguagem religiosa Legislativo da Autoridade Nacional Palestina.
micos adotaram com gosto. Desde o para a política também irá depender O Hamas foi criado em 1987 pelos Xeiques
de aspectos históricos e contextos so- Ahmed Yassin, Abdel Aziz al-Rantissi e Mo-
século IX, existe uma separação entre hammad Taha da ala palestina da Irmandade
Estado e religião. O Califa governava ciais. No século XX, vimos que, em to- Muçulmana no começo da Primeira Intifada.
Nótorio pelos ataques suicidas, o Hamas man-

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uma imagem positiva do Islã. Mas é
significativo que os mesmos discursos
generalizantes não são produzidos so-
bre os colonos israelenses, que são do-
tados de uma visão judaico-messiâni-
Sufismo: uma mística que busca
ca extremamente violenta - em 1994,
um colono judeu foi responsável pela o equilíbrio
morte de 29 palestinos na Mesquita de
Hebrom -, ou sobre os grupos protes-
tantes radicais dos EUA, que há anos Em busca da unidade sem negar a pluralidade, o Sufismo
praticam atentados e assassinatos con- possui uma concepção transcendente das religiões, assinala o
tra médicos que trabalham em clínicas
especialista em Ciências da Religião Carlos Frederico Barboza
de aborto.
É evidente que existem movimentos de Souza
e atos extremistas feitos em nome do
Islã. Agora, a explicação para isso não
Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin
está em nenhum verso do Alcorão, e
sim no contexto social e político que

P
levou interpretações violentas do Islã
ara o Sufismo, Deus é Um, Único e Eterno e se encontra em tudo.
passarem a fazer sentido para um grupo
“Cabe ao sufi percorrer um caminho para que, aos poucos, vá do
de pessoas. Da mesma maneira que a
explicação para a violência do IRA, na confessar com os lábios esta unidade, ao reconhecer e tomar cons-
Irlanda, não está no Evangelho São Ma- ciência dela, até não ver em nada senão o Único”, aponta Carlos
teus, no Apocalipse, nem em nada do Frederico Barbosa de Souza. Por se tratar de uma tradição mística,
gênero, mas no contexto político local. o Sufismo “possui grande flexibilidade diante das afirmações de fé ou dog-
mática, pois não se prende às afirmações exteriores de um credo”, explica
IHU On-Line - Qual é a contribuição o pesquisador à IHU On-Line, em entrevista concedida por e-mail. Segundo
do Islã para o desenvolvimento da ele, isso faz com que o Sufismo mantenha “um equilíbrio grande entre uma
ética e da paz planetária? crença absoluta e, ao mesmo tempo, aberta e flexível”. Com tais caracterís-
Paulo Gabriel Hilu da Rocha Pinto – O ticas, o Sufismo pode desempenhar um papel importante na construção da
Islã tem uma ética universalista de fra- paz planetária “com todo seu cabedal de tolerância, sua riqueza na forma de
ternidade, solidariedade, respeito, de
lidar com a diversidade, seu empenho nas buscas mais profundas, almejando
moral no sentido de ter atitudes que
superar todo olhar simplista e superficial do mundo”, assegura.
levem ao bem comum. Essas são con-
tribuições à civilização e fazem parte Carlos Frederico Barboza de Souza leciona na Pontifícia Universidade Ca-
de uma herança muito rica produzida tólica de Minas Gerais (PUC-Minas) é mestre e doutor em Ciências da Religião
por todas as religiões. Assim, a contri- pela Universidade Federal de Juiz de Fora. Sua tese intitulada Religio Cordis:
buição dele não é nem maior, menor, um estudo comparado sobre a concepção de coração em Ibn ´Arabi e João da
melhor ou pior que a do Cristianismo, Cruz (2008) e orientada pelo Prof. Dr. Faustino Teixeira, foi eleita a melhor
Judaísmo ou Budismo. tese nacional de Teologia e Ciências da Religião deste ano. Como premiação,
É importante nunca pensar em ne- a pesquisa será publicada pela Editora Paulinas. Confira a entrevista.
nhuma dessas tradições religiosas em
abstrato. Essas religiões só existem em
casos concretos, os quais têm contex- IHU On-Line - Quais são as singula- relação às demais religiões, ele possui
tos históricos, políticos e culturais que ridades da mística islâmica? O que proximidades e distinções, da mesma
devem ser levados em consideração. a difere das demais religiões tradi- maneira que o Islã. Numa perspecti-
Portanto, se as pessoas não compreen- cionais? va comparativa, a proximidade maior
dem por que em determinado contexto Carlos Frederico Barboza de Souza se dá com as chamadas “religiões do
um fato acontece, não é possível falar – Uma primeira observação diz res- livro” ou de herança abraâmica: o
nada significativo sobre qual é a dinâ- peito à diversidade presente no Su- Judaísmo e o Cristianismo. Como os
mica cultural e social do Islã. fismo, pois ele é composto por várias seguidores dessas religiões, os que se
tém extensivos programas sociais e ganhou correntes, escolas, grupos que se colocam na via súfica, também são
popularidade por construir hospitais, escolas e ligam à espiritualidade de um mes- monoteístas, pautam-se pela crença
bibliotecas pela Cisjordânia e Faixa de Gaza. A
Carta Fundamental do Hamas exorta à recap- tre, cada uma dessas vertentes con- numa revelação consignada em um
tura do Estado de Israel e sua substituição pela figurando-se como uma possibilidade livro (embora com um entendimen-
República Islâmica Palestina na área que hoje é única e singular de ser sufi. to distinto do que é revelação e do
conhecida como Israel, a Cisjordânia e a Faixa
de Gaza. (Nota da IHU On-Line) O Sufismo é uma das dimensões processo de como esta ocorre) e pos-
místicas do Islamismo. Portanto, em suem um forte caráter ético na vi-
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vência religiosa. Ou seja, o encontro de si (fana), para que possa se recu- ta, assimila e concretiza essas afirma-
com Deus, muitas vezes nomeado de perar numa outra dimensão, agora já ções. Isso vai lhe propiciar um formato
Real, possui implicações concretas de transformado e consciente da unidade de abertura em relação ao praticante
encontro com as outras pessoas, com de tudo (baqa). de outras crenças religiosas.
o cosmo e com uma prática responsá- Além do mais, em sua forma de ex-
vel de autoconhecimento e abertura IHU On-Line - Em que sentido a mís- plicitar sua prática e crença, consegue
ao outro. tica islâmica pode contribuir para o manter um equilíbrio grande entre uma
O que difere o Sufismo das demais desenvolvimento da paz e o diálogo crença absoluta e, ao mesmo tempo,
religiões, numa primeira olhada, é o com outras religiões? aberta e flexível. Um exemplo disso é
que também lhe confere uma espe- Carlos Frederico Barboza de Souza – sua nomeação de Deus como Real. Esta
cificidade dentro do próprio islamis- A mística súfica pode contribuir de vá- nomeação surge exatamente para dar
mo: sua condição de busca esotérica rias maneiras para o desenvolvimento conta da impossibilidade de nomear o
(pelo menos em boa parte do Sufismo, da paz e do diálogo. Primeiro, se pode Indizível. Portanto, sua relação com o
pois existe também, em alguns países falar em vários tipos de diálogos entre Real é forte e absoluta, ao mesmo tem-
islâmicos, o sufismo popular, carac- religiões: diálogos teológicos, diálo- po que aberta às muitas e diversas no-
terizando-se como uma religiosidade gos sobre práticas solidárias em vistas meações e manifestações deste – pois
popular). Nesse sentido, como todo da construção de um mundo melhor Ele também é diverso–, de modo que
esoterismo, a via súfica se caracteriza (ética) e diálogo sobre a experiência Ele pode e deve ser encontrado em ma-
como um caminho interior e que privi- religiosa (mística). Assim sendo, o Su- nifestações religiosas distintas. Como
legia este jeito de busca com tudo que dizia um sufi do século XIII, Ibn ‘Arabi,
ele exige: um processo de iniciação, se os crentes não aprendem a conhe-
rituais que marcam esta iniciação, a “O Sufismo possui uma cer o Real nas manifestações dele em
existência de um mestre (sheiq), es- outras tradições religiosas e no próprio
tágios e práticas interiores, corporais, concepção da Unidade cosmo, quando chegarem ao Paraíso, e
coletivas etc, a serem cumpridas. E, Ele se manifestar de formas distintas às
sobretudo, há o cultivo de um segredo transcendente das formas que estão acostumados, não O
a ser mantido, segredo este diante do reconhecerão.
que não se deve e não se pode falar, religiões, ou seja, para Por fim, o Sufismo possui uma con-
mas, sobretudo, deve ser vivido e ex- cepção da Unidade transcendente das
perimentado, pois ultrapassa em mui- além de toda a religiões, ou seja, para além de toda a
to as categorias com as quais se pode diversidade religiosa, há uma unidade
explicitar, além de ser um segredo que diversidade religiosa, profunda entre elas. O que não quer
resguarda a intimidade dos amantes: o dizer que para eles todas as religiões
Amado e o buscador ou gnóstico. há uma unidade sejam iguais e a mesma coisa. Esta
Em relação à singularidade do Su- afirmação da unidade transcendente
fismo, pode-se afirmar sua busca pela profunda entre elas” deve ser entendida com base na ló-
unidade (tawhid), que é a afirmação gica da unidade na pluralidade, pois
de que Deus é Um e Único (wahid). De o Sufismo busca a Unidade, mas sem
acordo com a sura corânica de número fismo pode colaborar imensamente na negar a pluralidade, uma vez que esta
112: “Diga: Ele é Deus, Uno, Deus, o perspectiva do diálogo místico, princi- também é manifestação da infinita ri-
Eterno. Não engendrou nem foi engen- palmente porque seus rituais e práti- queza do Real e não pode, portanto,
drado. Não tem pai”. Esta unidade já cas espirituais possuem um caráter de ser apagada nem abolida em nome da
se encontra presente em tudo. Cabe abertura a todo ser humano, pois pro- unidade.
ao sufi percorrer um caminho para cura se inscrever no que é essencial
que, aos poucos, vá do confessar com na vida e retrata uma busca universal, IHU On-Line - O senhor acredita que
os lábios esta unidade, ao reconhecer segundo sua concepção. a mística islâmica poderia se fortale-
e tomar consciência dela, até não ver De igual maneira, em suas con- cer, enriquecer em contato com ou-
em nada senão o Único. Pois o Único cepções, por se tratar de uma tradi- tras místicas, como a cristã?
possui duas dimensões presentes in- ção mística, possui uma grande flexi- Carlos Frederico Barboza de Souza
tensamente nele, que, traduzidas em bilidade diante das afirmações de fé – Penso que sim. Toda religião, assim
categorias ocidentais, se poderiam de- ou dogmáticas. Ele não se prende às como toda pessoa, pode se enriquecer
nominar de dimensão transcendente e afirmações exteriores de um credo (à com o diálogo. O que se pode ter em
imanente (ou tanzih e tashbih, na de- letra pura e simplesmente – embora se mente é que todos possuímos limita-
nominação sufi árabe), de modo que possa dizer que sejam fiéis totalmente ções em nossa forma de ver o mundo,
tudo é Ele/não Ele (hwa/la huwa). à letra -, porém, com uma hermenêu- de experimentá-lo, devido à própria
Para se alcançar a vivência profunda tica particular e extremamente livre condição humana de ser situado num
desta unidade, o gnóstico deve se sub- do texto), e sim ao processo interior e espaço e tempo. O que alarga nossa
meter a um processo de aniquilação único com que cada seguidor interpre- possibilidade de vermos além de nós

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mesmos é a abertura dialogal, que nos Real presente em tudo, também em e não lhe dá o direito de existir; ne-
permite sermos enriquecidos com as princípios éticos. gar a identidade é cair numa postura
experiências de outros, com seus olha- Isso posto, o Sufismo contribui- relativista que também não percebe a
res, baseados em outras perspectivas e ria para a constituição de uma ética diversidade e não propicia o diálogo, já
pontos de vista. Nesse sentido, pode- mundial com todo seu cabedal de to- que o diverso é apagado em nome de
se transferir esta lógica para o diálogo lerância, sua riqueza na forma de lidar uma igualdade abstrata e descontextu-
entre tradições e práticas religiosas: com a diversidade, seu empenho nas alizada. Hans Küng chama esse equilí-
cada uma capta de forma particular buscas mais profundas, almejando su- brio entre a manutenção da alteridade
elementos do Real. Se pensarmos que perar todo olhar simplista e superficial e da identidade de “disposição ao diá-
este Real é infinito em suas manifes- do mundo, da história e da vida. Além logo e firmeza de posição”. Seu ponto
tações e em si mesmo, assim como é disso, ao privilegiar e valorizar a di- de partida é a busca da verdade, uma
dinâmico, em perpétuo movimento, a mensão escondida e interior da vivên- vez que a manutenção da identidade
abertura às captações realizadas por cia espiritual sem excluir sua dimen- religiosa ou a firmeza de posição acer-
outras tradições e crenças abriria nos- são ritual e exterior, o Sufismo aponta ca de uma opção de fé se relacionam
sa experiência religiosa para outras também para a denúncia de toda orto- necessariamente com a opção pelo que
dimensões que nossa própria tradição doxia que mata este tipo de vivência se crê ser verdadeiro e não falso. E há
não captou. Esta abertura é de uma e impede a riqueza da singularidade que se reconhecer que esta opção é
riqueza intraduzível. de cada caminho; é crítico, portanto, algo inerente e intrínseco às tradições
por não entender que favoreceria vi- religiosas. Perder esta busca significa
IHU On-Line – Quais são as implica- vências espirituais profundas, a todo enfraquecer e, em alguns casos matar,
ções e possibilidades da mística islâ- a religião e a fé que um fiel pode ter
mica para o desenvolvimento de uma nela. Por isso, para Küng, diálogo não
ética mundial? “O Islamismo é uma é sinônimo de negação de si mesmo, e
Carlos Frederico Barboza de Souza – A a disposição para a sua realização não
mística islâmica, como o próprio nome religião universal, que provoca o abandono da própria identi-
diz, está enraizada no Islã, uma reli- dade. Aliás, supõe-na, pois “ninguém
gião que nasce da tradição abraâmica, se compreende como consegue compreender profundamente
já possuindo em seu seio implicações uma religião se não a afirma ‘a partir
éticas profundas, presentes desde possuidora desse caráter. de dentro’ com radical seriedade exis-
seus primórdios e retratadas no Corão tencial”. Isso porque a construção de
e na Suna do Profeta, principalmente Portanto, sempre suas uma verdade religiosa ocorre existen-
seu forte caráter igualitário e de cui- cialmente, o que implica relacionar-se
dado com os mais pobres. Além disso, reflexões terão caráter com ela de forma absoluta, isto é, a
o Islamismo é uma religião universal, verdade da religião que o crente segue
que se compreende como possuidora universal, o que não é “a verdade” para ele.
desse caráter. Portanto, sempre suas Mas esta crença que possui como
reflexões terão caráter universal, o quer dizer que ela exclua característica a afirmação de um ab-
que não quer dizer que ela exclua a soluto não quer dizer, necessaria-
diversidade. Aliás, o próprio Corão a diversidade” mente, fechamento à diversidade de
articula muito bem esta exigência de crenças e ao diálogo. Para que isso não
universalidade, pois se baseia na afir- ocorra, ela deve ser acompanhada da
mação da existência única e exclusiva formalismo ou “letra sem espírito” consciência de que da mesma forma
de um Deus, com a exigência da diver- que muitas vezes abunda em tantos que determinada religião constrói sua
sidade, uma vez que se compreende ambientes e pode gerar intolerância e verdade dessa maneira, ela deve dar
como a religião revelada, em seu iní- atitudes violentas. o direito às demais religiões para que
cio, aos árabes e em língua árabe, ten- também o façam. Ainda mais que se
do outros povos também sua própria IHU On-Line - É possível estabelecer deve ter consciência que sua verda-
revelação e profetas válidos. o diálogo inter-religioso, mantendo a de é uma verdade que brota de uma
O Sufismo vai assumir estes valores identidade própria de cada religião? experiência “de dentro”, ou seja, a
presentes na tradição islâmica e verá Carlos Frederico Barboza de Souza partir de um compromisso existencial
tudo como manifestação divina. Em – Não só é possível manter uma pos- e de fé com essa verdade que se inse-
outras palavras: todo o cosmo, bem tura dialogal com a manutenção da re em uma tradição particular situada
como as pessoas, a história e as tra- própria identidade como é necessário
dições religiosas e culturais são como e uma condição sine qua non, em mi-  Hans KÜNG. Projeto de Ética Mundial: Uma
moral Ecumênica em vista da sobrevivência
um espelho que manifestam, de algu- nha concepção, para um diálogo inter- humana, parte B, capítulo V. (Nota do entre-
ma forma, algumas dimensões das in- religioso frutuoso, eficaz e realista. vistado)
finitas dimensões do Real. Daí deriva Negar o diálogo é cair numa postura  Hans KÜNG. Teologia a caminho: fundamen-
tação para o diálogo ecumênico, p. 274.
sua grande capacidade de enxergar o fundamentalista que demoniza o outro ��������������������
Id., ibid., p. 284.

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histórica e culturalmente. Portanto, sistema de vida em que o lucro é o
é uma verdade que se sustenta em
“Por que surge o Hamas? maior valor. Num mundo assim, como
uma relação com uma confissão de dizia Marx, “tudo que é sólido se des-
fé, o que quer dizer que não é uma
O Hezbollah? Qual é a mancha no ar”; a ética é colocada em
linguagem constatante, com possibili- segundo plano, pois é avaliada em fun-
dade de verificação de sua veracidade
luta de Bin Laden? Se ção do lucro e do ganho que gere ou
fora da experiência de fé. Esse tipo de não; também questões referentes ao
linguagem se origina em um contexto
nos detivermos nestes sentido da vida são esvaziadas, pois
relacional, que diz “algo sobre a rela- somente a lógica da produtividade é
ção subjetiva de uma pessoa com ou-
problemas, veremos que que tem sentido; e o desencanto impe-
tra e sobre a total entrega a outrem”. ra, estando a própria vida e o sagrado
Portanto, não implica afirmações para
possuem causas sujeitos a um processo de “dessacra-
outras religiões, mas circunscreve-se lização”. Além do mais, numa socie-
apenas à própria tradição religiosa.
localizadas e bem dade plural, em que são multiplicadas
as opções de vida e que a geração de
IHU On-Line - Como explicar tantos
precisas nos conflitos conhecimento e a circulação de infor-
atos de agressão, fanatismo e xeno- mações são quase infinitas e há um
fobia em nome da religião? Como o
regionais em que estes processo sistemático de crítica à tra-
Islã vê a violência? Como o Deus islâ- dição que o Ocidente veio forjando há
mico se posiciona diante da violência
grupos estão inseridos e séculos, muita gente se encontra inse-
recebida e praticada? gura diante de que opções tomar para
Carlos Frederico Barboza de Souza
não em questões sua vida. Diante da incapacidade de
– Primeiro de tudo, a violência é um muitos de se assumirem como constru-
fenômeno presente na vida humana,
prioritariamente tores de sua história, o caminho que
na história e nas culturas, conforme apresenta respostas claras e seguras,
pode ser percebido em muitos dados
religiosas” mesmo que gere violência e intolerân-
captados por historiadores e cientistas cia, se torna atraente.
sociais. Além disso, não podermos nos sociedade não menos violenta que
esquecer da reflexão de René Girard projeta para os textos estas suas vi- Conflitos políticos
acerca desta temática e sua relação vências e as concepções decorrentes
com o sagrado, bem como da elabo- de seu modo de vida. Além do mais,
Porém, outra questão se torna in-
ração de Freud acerca da presença ainda no tocante aos textos sagrados,
teressante para a reflexão sobre a vio-
de elementos agressivos já na criança pode-se pensar que esta concepção de
lência religiosa. Penso que facilmente
em seus primeiros anos de vida. Nesse não violência se constrói aos poucos e
se atribuem às religiões causas de con-
sentido, o fenômeno da violência não é uma conquista das sociedades mais
flitos, mas se olharmos profundamente
ficaria de fora das vivências religiosas. recentes (pelo menos quanto à con-
as origens de muitos destes, encontra-
Portanto, frequentemente, vai apa- cepção ideal de vida e que não vale
remos situações complicadas do ponto
recer em vários textos sagrados, pois para todas as pessoas de um deter-
de vista das relações políticas. Basta
estes refletem a humanidade em seus minado grupo social), embora nas so-
uma olhada rápida na história recente
aspectos positivos e negativos, ainda ciedades do passado já se encontrem
do Oriente Médio para perceber que
mais se tivermos presente que a vio- elementos que apontem ou possam ser
toda esta situação tem relação com a
lência retratada em textos sagrados, lidos nesta ótica. Dessa forma, teolo-
queda do Império Turco Otomano no
na maioria das vezes, é fruto de uma gicamente, pode-se falar de uma pe-
final da Primeira Guerra Mundial. Após
dagogia progressiva da não violência
Edward SCHILLEBEECKX. História humana,
����������������������� esse evento, houve uma partilha desta
que é percebida nas manifestações
revelação de Deus, p. 190. região por parte das potências da épo-
 René Girard (1923): Filósofo e antropólogo divinas.
francês. Partiu para os Estados Unidos para dar
ca – sobretudo Inglaterra e França – le-
aulas de francês. É autor de numerosos livros, vando-se em consideração seus inte-
Religião x Violência
entre eles La Violence et le Sacré (A violên- resses geopolíticos e econômicos, sem
cia e o sagrado), Des Choses Cachées depuis
pôr em questão os interesses da popu-
la Fondation du Monde (Das coisas escondidas Quanto às manifestações de xe-
desde a fundação do mundo), Le Bouc Émis- lação que habitava esta região. Com
nofobia, agressividade e violência no
saire (O Bode expiatório), 1982. Todos esses isso, dividiram-se clãs e agruparam-se
livros foram publicados pela Editora Bernard mundo de hoje atribuídas a atores re-
etnias distintas; apoiou-se a criação de
Grasset de Paris. Ganhou o Grande Prêmio de ligiosos, elas podem ter sua origem em
Filosofia da Academia Francesa, em 1996, e o estados e houve povos que ficaram sem
fenômenos como o fundamentalismo,
Prêmio Médicis, em 1990. Reproduzimos uma estados, como os curdos. Fez-se jogo
entrevista de Girard originalmente publicada que é uma das facetas da expressão
de interesse duplo, ora apoiando ára-
no jornal italiano La Repubblica, na IHU On- religiosa na modernidade. Nesse caso,
Line, número 92, de 15 de março de 2004. bes, ora apoiando a criação do Estado
aponta-se para uma reação à moder-
(Nota da IHU On-Line) de Israel. E isso numa região em que
nidade secularizante e que impõe um
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não havia conflito religioso explícito.
Por que surge o Hamas? O Hezbollah?
“Quanto à postura do Islã própria autocompreensão e entendi-
mento de suas crenças e verdades fun-
Qual é a luta de Bin Laden? Se nos de-
tivermos nestes problemas, veremos
diante do fenômeno da damentais. E aqui concordo com Juan
Antonio Estrada. Ele aponta para a
que possuem causas localizadas e bem
precisas nos conflitos regionais em que
violência, em seus necessidade de “uma perspectiva
ecumênica que abarque uma teologia
estes grupos estão inseridos e não em
questões prioritariamente religiosas,
textos fundadores se das religiões contrária às imagens vio-
lentas de Deus”. E vai mais além, ao
embora estas também se encontrem
presentes. Logo, penso que a origem
podem encontrar dois afirmar a necessidade de certo distan-
ciamento racional e crítico à própria
destes conflitos, em sua maior parte,
se encontra numa história de peque-
tipos de concepções: tradição religiosa, percebendo o con-
texto histórico-cultural em que esta
nas ou grandes exclusões e discrimina-
ções étnicas e sociais perpetuadas na
uma que justifica a ação nasce e se insere.
Ao mesmo tempo, também se faz
história e que acabam se revestindo
de elementos religiosos, pois seus ato-
violenta e outra que se necessária uma revisão do conceito
de revelação, levando-se à distinção
res são, ao mesmo tempo, religiosos e
pessoas que atuam politicamente.
direciona no caminho entre a inspiração transcendente e a
interpretação da mesma mediada por

Violência no Islã
da paz” instrumentos e concepções culturais,
pois não há experiências puras da di-
vindade e mesmo uma experiência
leituras cuja tendência será uma rigi-
Quanto à postura do Islã diante do bem íntima e pessoal dela não poderia
dez maior na interpretação dos textos
fenômeno da violência, em seus tex- ser identificada com a realidade da di-
sagrados e na sua aplicação normativa
tos fundadores se podem encontrar vindade em si. O que os seres huma-
ao cotidiano, bem como possuirão um
dois tipos de concepções: uma que nos experimentam é sua proximidade
caráter que evidenciará uma atuação
justifica a ação violenta e outra que se ou sua irradiação, e, muitas vezes, de
política resistente ao pensamento e
direciona no caminho da paz. A título forma obscura. E aqui cabe a distinção
forma de vida ocidentais, buscando
de exemplo, a sura 4:89 faz a seguinte que Edward Schillebeeckx faz – e que
resgatar um Islã glorioso do passado
afirmação: “não tomeis, dentre eles, não se restringe ao conhecimento re-
e que agora se encontra humilhado
aliados, até que emigrem, no cami- ligioso, mas se encontra presente em
pelos problemas socioeconômicos por
nho de Allah. E, se voltarem as costas, toda atividade científica e produção
que passam a maior parte dos países
apanhai-os e matai-os, onde quer que de conhecimento – entre “referencial
islâmicos. Nesse sentido, refiro-me ao
os encontreis”. Porém, também são real”, que seria a própria realidade
Wahabismo, à Irmandade Muçulmana
encontradas muitas outras afirmações da divindade, e “referente disponível
e à teologia política do paquistanês
que indicam caminhos mais pacíficos. ou ideal”, que são as representações
Mawdudi e do egípcio Sayyd Qutb, que
Basta pensarmos que a quase totalida- e imagens da divindade, que interfe-
muito influenciarão grupos islâmicos
de das suras corânicas se iniciam com rem diretamente no agir e pensar do
recentes em suas ideologias.
a afirmação – muito utilizada no coti- crente. Esse “referente disponível
diano de um muçulmano – de que Deus ou ideal” nasce das imagens de Deus
IHU On-Line - O teólogo alemão Hans
é o Clemente e o Misericordioso. construídas historicamente por uma
Küng propõe valores e posturas éticas  Juan Antonio Estrada: mestre e doutor em
Em relação ao Islã atual, entretan-
universais, que devem ser expressas Filosofia, respectivamente, pela Universidade
to, há que se reconhecer a inexistên- de Comillas de Madri e pela Universidade de
por todos os humanos, independente
cia de uma postura única a respeito da Granada, onde atualmente atua como profes-
da orientação espiritual, da religião
violência. De maneira geral, ela não é sor de Metafísica e de Filosofia da Religião.
ou filosofia seguida. Esse compro- É mestre em Teologia pela Universidade de
aceita e deve-se privilegiar sempre a Innsbruck, tendo obtido o doutorado na Uni-
misso pode e deve, de fato, ser as-
paz, que também se encontra na mes- versidade Gregoriana de Roma. Ao longo de
sumido por todas as religiões? Quais
ma raiz árabe da palavra Islam/ Salam sua vida, lecionou como professor convidado
as condições e os entraves para o es- em Faculdades e Institutos de Lima, Assunção,
(paz). E quando se justifica a guerra Manágua, San Salvador e México. É membro da
tabelecimento e impedimento desse
ou algum ato violento, este sempre Sociedade Espanhola de Ciências da Religião e
diálogo?
deve ser motivado pela autodefesa: da Associação de Teólogos João XXIII. (Nota da
Carlos Frederico Barboza de Souza IHU On-Line)
“E combatei, no caminho de Allah, os  Juan Antonio ESTRADA. Imagens de Deus, p.
– Claro que pode e deve ser assumido
que vos combatem, e não comeceis a 67.
por todas as religiões e também pelos  Edward Schillebeeckx (1914): teólogo ho-
agressão. Por certo, Allah não ama os
não praticantes de uma religião, ag- landês, frei dominicano, foi um dos impor-
agressores” (Sura 2:190). Porém, nos tantes assessores oficiais do Concílio Vaticano
nósticos e ateus. Creio, porém, que
dois últimos séculos, mas, sobretudo II, chamados de “peritos” e é um dos mais
há necessidade de compreensões mais
a partir do século XX, surgirão movi- importantes teólogos do século XX. ��������
(Nota da
abertas das religiões acerca de sua IHU On-Line)
mentos no Islamismo que farão outras

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cultura, possibilitando ao crente lidar tas desta tradição mística, centradas, em primeiro lugar, como estando além
com o “referencial real” mediado por muitas vezes, na satisfação dos fiéis de qualquer possibilidade de compre-
elas. Assim, elas se transformam em que se reúnem em uma ordem ou fra- ensão e nomeação. Nesse sentido,
categorias de interpretação do próprio ternidade. No entanto, ele não valori- “Deus” é a Essência inominável e in-
referencial real, apesar de sua inade- zará a institucionalização de sua expe- cognoscível, que existe por Si e para
quação e precariedade para fazê-lo. riência de modo a criar uma ortodoxia Si, independentemente de qualquer
Portanto, não há uma divindade em ou a formalizar rituais desvinculados outro ser. Ele a denominará, frequen-
si, pelo menos sob o ponto de vista de uma vivência interior que exige temente, de Al-Haqq, ou seja, o Real
humano, mas apenas uma divindade um processo iniciático. Além de que, (ou a Verdade, em árabe). Porém, esta
interpretada, que se manifesta na ex- em época de crise ecológica e de de- Essência inominável e absoluta não é
periência religiosa e mística mediante sencanto com o mundo, o Sufismo vai um ser fechado em si mesmo, mas é
uma “imediaticidade mediada”. desenvolver uma mística com fortes um ser que escolhe se comunicar por
Por fim, creio ser importante que implicações cósmicas, resgatando de misericórdia aos seus Atributos (No-
se perceba o fator humano presente seus textos do passado uma teologia mes divinos) que querem se atualizar
nas tradições religiosas, evitando-se, não dualista entre matéria e espírito e (passar da potência ao ato). Daí que
assim, a divinização de práticas, insti- que valoriza de forma muito rica uma o Real é capaz de criar tudo e todo
tuições, funções e doutrinas. Estas são o criado serve como um espelho que
fruto da criatividade humana, embo- reflete seus atributos. Nesse sentido,
ra possam ser consideradas inspiradas “Creio ser importante para Ibn ‘Arabi, o Real possui duas di-
por Deus, pois uma coisa não nega a mensões: em linguagem ocidental, o
outra. Fazem sentido num contexto que se perceba o fator mais próximo seria afirmar que Ele é
particular em que surgem e, por isso transcendente e imanente ao mesmo
mesmo, precisam ser atualizadas, não humano presente nas tempo, ou, em árabe, é tanzih e tash-
absolutizadas em si mesmas e subme- bih; Ele é todas as coisas e não é ne-
tidas, em alguns casos, à crítica. tradições religiosas, nhuma coisa ao mesmo tempo.
João da Cruz,10 em sua obra Subida
IHU On-Line- A mística islâmica ga- evitando-se, assim, a do Monte Carmelo, livro II capítulo 9,1,
nha um novo significado na socie- também apresenta uma concepção de
dade pós-moderna, pós-metafísica, divinização de práticas, Deus. Neste tópico ele estabelece uma
pós-religiosa? Em que sentido isso caracterização geral sobre o ser divino,
ocorre? instituições, funções e afirmando que Ele é “infinito, assim
Carlos Frederico Barboza de Souza ela [a fé] nos propõe infinito; e assim
– Qualquer grupo religioso, juntamen- doutrinas” como é Trino e Uno, ela nos propõe Tri-
te com seus textos e rituais, ganha no e Uno; e assim como Deus é treva
significado diferenciado nos distintos para nosso entendimento, assim tam-
contextos históricos e geográficos cul- vivência mais harmônica com a natu- masco, em 1240. O Mestre de Múrcia escreveu
turais, pois o horizonte de compreen- reza, gerando autoconhecimento e centenas de livros, dos quais 150 ainda são
são deste grupo muda de acordo com a maior sensibilidade aos sinais divinos conservados. Entre os escritos de Ibn Arabi se
destacam a Epístola da Santidade, Pérolas e
realidade em que se situa. Portanto, o na vida e no cotidiano. Por fim, como Sabedoria e As Revelações de Meca, que possui
Sufismo, embora mantendo uma liga- caminho místico, numa época em que mais de 4 mil páginas no original em árabe.
ção com uma longa tradição espiritual prevalecem para muita gente atitu- Confira a entrevista Amor e aniquilação na
mística de Marguerite Porete e Ibn’Arabi, con-
à qual se vincula, também é capaz de des fundamentalistas e intolerantes, cedida por Ernesto Cardenal à edição 133 da
interagir com as realidades espaço- o Sufismo apresenta grande equilíbrio IHU On-Line, de 21-03-2005, disponível para
temporais em que se encontra. Nesse entre firmeza de posição e abertura download no link http://www.ihuonline.uni-
sinos.br/uploads/edicoes/1158267172.22pdf.
sentido, na contemporaneidade, ele dialogal. E isso sem cair, quando bem pdf. (Nota da IHU On-Line)
não fica isento da influência e do diá- orientado, nas soluções superficiais e 10 Ibn Arabi: chamado o “Doutor Máximo” e
logo com a cultura atual, seja ela con- simplistas para a vida. “vivificador da Religião”, nasceu em Múrcia,
na Espanha, em 1165 e faleceu na Síria, Da-
siderada pós-moderna, pós-metafísica masco, em 1240. O Mestre de Múrcia escreveu
ou pós-religiosa. Em que sentido isso IHU On-Line – Quais são as concep- centenas de livros, dos quais 150 ainda são
ocorre? Primeiro, dentro da tradição ções de Deus para Ibn’Arabi e João conservados. Entre os escritos de Ibn Arabi se
destacam a Epístola da Santidade, Pérolas e
súfica surgirão expressões do Sufismo da Cruz? Que aspectos comuns e di- Sabedoria e As Revelações de Meca, que possui
desvinculadas da tradição islâmica, ferentes perpassam o pensamento mais de 4 mil páginas no original em árabe.
construídas pelo próprio sujeito que dos dois místicos? Confira a entrevista Amor e aniquilação na
mística de Marguerite Porete e Ibn’Arabi, con-
lança mão, à sua maneira, de mate- Carlos Frederico Barboza de Souza cedida por Ernesto Cardenal à edição 133 da
riais que a tradição lhe disponibiliza. – Ibn ‘Arabi compreende a divindade, IHU On-Line, de 21-03-2005, disponível para
Da mesma forma, desenvolvem-se  Ibn Arabi: chamado o “Doutor Máximo” e download no link http://www.ihuonline.uni-
“vivificador da Religião”, nasceu em Múrcia, sinos.br/uploads/edicoes/1158267172.22pdf.
expressões intimistas e individualis- na Espanha, em 1165 e faleceu na Síria, Da- (Nota da IHU On-Line)
pdf. ���������

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bém a fé semelhantemente nos cega e IHU On-Line – Qual é para os dois mís- nos braços de Outro”.11
deslumbra”. Portanto, neste pequeno ticos o papel do coração na jornada A centralidade que qualifica o co-
trecho podem-se perceber três grandes espiritual? ração também aponta para outra fun-
elementos da concepção joãocruciana Carlos Frederico Barboza de Souza ção que ele possui: a capacidade de
acerca do Real: infinitude, obscuridade – Para ambos, o papel do coração é integrar a diversidade, de conduzir à
e constituição trinitária. muito semelhante, embora possuam unidade e no diverso perceber o Um.
Ambos se aproximam quando afir- algumas diferenças. Assim, o coração Por isso, é também o coração uma
mam a divindade como infinita, incog- vai ser, em primeiro lugar, o elemento faculdade de síntese, um evento que
noscível e para além de qualquer pos- central do ser humano, no qual estão propicia o encontro com a Unidade de
sibilidade de compreensão, apreensão contidos seus segredos mais íntimos. tudo e com a profundidade de tudo
e nomeação por parte dos seres huma- Também será a Morada do Real devido que existe. Nesse sentido, o coração
nos. Neste aspecto ambos concordam à sua condição de ductilidade e ma- é órgão de conhecimento, pois propi-
acerca da pluralidade inerente ao ser leabilidade, ou seja, o coração é um cia ao intelecto e à razão acessos que
divino sem que este perca sua unida- órgão “capaz de receber toda forma” estes não podem ter. Principalmente
de, seja pelos Três da Trindade ou pe- e assim como o Real é dinâmico, cabe quando se pensa no conhecimento re-
los infinitos Nomes divinos. Também ao coração acolhê-lo devido à sua di- ligioso ou no mundo espiritual, pois “a
estão próximos ao entenderem que o namicidade. É um órgão que “flutua”, pessoa que atingiu o coração em seu
Real de alguma forma se manifesta e capaz de mudanças perpétuas e revi- sentido espiritual é também capaz de
deixa suas marcas em tudo que existe, ravoltas sem fim, não se prendendo a ver o coração das coisas, especialmen-
embora se diferenciem na compreen- nada, mas sempre aberto ao novo e ao te das formas sagradas, e perceber sua
são de como este processo de manifes- unidade interna”.12
tação ou teofania ocorre. E ainda relacionada à sua centra-
“A centralidade que lidade, o coração é o órgão que não
Amor e misericórdia só acolhe o Real e a espiritualidade na
qualifica o coração vida humana, mas também é o órgão
Outra proximidade entre a concep- que a distribui para suas outras dimen-
ção de divindade de ambos diz respeito também aponta para sões: a corporal, a afetiva, a psíquica
à compreensão como um ser de amor etc.
(João da Cruz) ou de misericórdia (Ibn outra função que ele
‘Arabi). Para ambos, este elemento IHU On-Line – O que eles podem en-
está presente no Real e por meio dele possui: a capacidade de sinar à sociedade contemporânea
constitui todo o cosmo e os seres cria- sobre amor, paz, e diálogo inter-re-
dos, propiciando ao Real uma proximi- integrar a diversidade, ligioso?
dade de toda a criação, incluindo aí Carlos Frederico Barboza de Souza
o ser humano, ser convidado a parti- de conduzir à unidade e – Podem ensinar muitas coisas. Primei-
cipar da proximidade com a divinda- ro, vivenciaram uma experiência mui-
de. Portanto, é uma divindade aberta no diverso perceber to forte da divindade. Para isso, foram
e receptiva, ao mesmo tempo que é capazes de se abrir a estas experiên-
também participativa, pois inspira aos o Um” cias transformadoras, bem como ao
que a ela se abrem, propicia experiên- Real que se manifesta no cosmo e na
cias intensas, manifesta Sua vontade vida. Portanto, em tudo souberam ler
e desejos, interfere de alguma forma profundo. E é nesta profundidade que a presença do Real e por tudo se dei-
na história, gerando aperfeiçoamento ele se torna um elemento mediador xaram tocar, percebendo nestes to-
humano/espiritual. entre o ser humano e o Real, entre a ques a Sua mão. E quem sabe ver em
Diferenciam-se na concepção tri- alma e o espírito e a divindade, pois tudo esta Presença e se dispor a por
nitária de Deus presente em João da ele opera a conexão entre o mundo ela ser “desalojado”, também é capaz
Cruz, que é impensável em Ibn ‘Ara- espiritual e o mundo corporal, entre o de mudar de posição diante do outro e
bi, assim como uma mediação crística visível e o invisível. Mais ainda, no seu do diverso e dialogar com ele, com a
para a salvação e a revelação plena de mais profundo centro, ele e o Real se vida e com o cotidiano; sabe acolher
Deus. Na lógica do místico muçulma- encontram e se identificam, de modo a diversidade, pois é treinado neste
no, os Nomes divinos é que ocupam que, como diz Ernesto Cardenal, “no contato forte com a divindade a estar
um lugar grande na intermediação e centro de nosso ser não somos nós aberto ao que ultrapassa sua própria
comunicação entre a divindade e os mesmos, mas Outro. Que nossa iden- compreensão, estar aberto a uma ver-
seres criados, sendo toda a criação tidade é Outro. Que cada um de nós 11 Ernesto, CARDENAL. Vida en el amor, p������
. 41.
concebida como uma manifestação, ontologicamente é dois. Que encon- (Nota do entrevistado)
12 Seyyed Hossein NARS. The �����������������
heart of the
um reflexo do Real. trarmos a nós mesmos e concentrar- Faithful is the Throne of the All Merciful. In:
mos em nós mesmos é arrojarmo-nos James CUTSINGER. Paths to the heart, p. 43-
44. (Nota do entrevistado)

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dade maior e ao aprendizado. Aliás,
em Ibn ‘Arabi, acolher a diversidade e
a pluralidade é condição sine qua non
para o encontro com o Real. Chegamos ao topo da babel.
Além do mais, os místicos têm algo
de “transgressor” no sentido de que
não se prendem aos formatos de suas
É preciso retornar
religiões, mas, sem banalizá-los ou
abandoná-los, são capazes de transcen-
dê-los, ou seja, das verdades e rituais O homem pós-moderno avançou no desenvolvimento da técni-
religiosos, os místicos são capazes de ir ca, da ciência, mas está enfraquecido na vida espiritual, de-
além para atingir verdades inefáveis. fende Guershon Kwasniewski. Para ele, é preciso recuperar o
Com isso, são pessoas que vivem à bus-
ca do essencial e superam em muito as autoconhecimento e aproximar-se das religiões
aparências e formalismos na vivência
religiosa e humana. Por Graziela Wolfart, Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin
Com João da Cruz, podemos apren-

“A
der as sutilezas da alma humana que se
autoengana e se ilude continuamente. pós-modernidade oculta o lado religioso e não deixa os
Daí a necessidade das purificações, so- indivíduos enxergarem o que eles realmente são e de-
bretudo para a vivência do amor, pois, vem fazer para ser”, diz Guershon Kwasniewski à IHU
como ele diz, muitas atitudes pareci-
On-Line. Para ele, o crescimento tecnológico representa
das com o amor, às vezes, são atitudes
também um retrocesso religioso e espiritual, além de dú-
egoístas e de busca de autopromoção.
Portanto, é necessária uma busca de vidas em relação à existência. “O homem da pós-modernidade avançou tanto
purificação pessoal e comunitária, uma que está se perguntando aonde quer chegar”, argumenta. Mas isso, assegura,
busca de superação de imaturidades e não representa o fim da religião, pelo contrário, “as pessoas, conforme o
preconceitos. momento da história, tendem a voltar para a religião”.
Com Ibn ‘Arabi, pode-se pensar que Descendente de família judaica e seguidor dos costumes aprendidos ainda
tudo manifesta o Real, tudo é Seu re- na infância, o professor argentino apresenta, na entrevista a seguir, conce-
flexo. Mesmo as distintas religiões e dida por telefone à IHU On-Line, alguns aspectos da tradição, como a forte
credos. Portanto, as religiões também relação dos judeus com Deus e a identidade marcada pelos rituais de pas-
são formas que manifestam as infinitas sagens, chamados ciclos da vida. Segundo ele, esses “estão engajados com
riquezas do Real e que não podem ser preceitos e mandamentos da vida” que devem ser cumpridos.
expressas em sua totalidade por ne-
Em Israel, Kwasniewski cursou o Machon Grimberg, o Ishtalmut Morim do
nhuma criatura, nem ser humano, nem
Beit Midrash Lebrabanim na Escola Rabínica. Foi professor do Colégio Israeli-
religião. Pensamentos como estes sem-
pre apontam para uma necessidade de ta Brasileiro, de Porto Alegre, e professor convidado pelo Núcleo de Estudos
diálogo, pois este é o caminho para Judaicos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atualmen-
uma complementaridade recíproca te, atua na Sociedade Israelita Brasileira de Cultura e Beneficência (SIBRA).
entre os seres e as religiões, comple- Confira a entrevista.
mentaridade que é um grande caminho
para o mútuo aprendizado acerca do IHU On-Line - Que aspectos his- único Deus. A liberdade e a cren-
Real e da prática do amor, da compai- tóricos e culturais o senhor con- ça em um único Deus marcam um
xão e da ternura. sidera importantes para a cons- momento único na história do povo
tituição dos valores centrais da de Israel.
religião e da ética judaica?
Leia Mais... Guershon Kwasniewski - Dois fa- IHU On-Line - Que ética rege o
tos históricos são importantes. Um Judaísmo e como ela pode contri-
>> Carlos Frederico Barboza de Souza já
concedeu outra entrevista à IHU On-Line. O ma-
deles é a saída dos judeus do Egi- buir para a paz mundial?
terial está disponível na página eletrônica do IHU to, e o outro é a entrega da Torá, Guershon Kwasniewski - A ética
(www.ihu.unisinos.br). ou seja, da lei no Monte Sinai. Os que rege o Judaísmo, aquela que
Entrevistas:
• A mística de Rûmî e o ser humano autônomo
judeus ganharam a liberdade e legaram para nós, fala de Abraão,
contemporâneo. Publicada em Rûmî. O poeta e constituíram-se povo ao receber a Isaac, Jacó, Raquel. Por isso, quan-
místico da dança do Amor e da Unidade. Edição lei. A partir desse momento, uma do falamos de ética, não podemos
222, de 04-06-2007, disponível para download
em http://www.ihuonline.unisinos.br/uploads/
normativa passou a reger aquele esquecer os profetas de Israel e
edicoes/1180986448.99pdf.pdf. povo: existe um líder, Moisés, e um os juízes, pois eles marcaram um

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caminho, a ética e os princípios a
serem seguidos pelo povo. A ética
“Precisamos esclarecer fossem iguais e pensar em um único
modelo religioso. A riqueza está jus-
no Judaísmo se encontra nos man-
damentos. O legado dos profetas foi
o que significa cada tamente na diferença.

IHU On-Line - Nessa sociedade con-


justamente transmitir os valores aos
mandamentos.
religião. Todas elas temporânea, como fica o papel da
religião? O senhor concorda que
O caminho da lei nos leva ao res-
peito, a considerar o nosso próximo.
buscam verdades vivemos em uma sociedade pós-re-
ligiosa?
Portanto, cumprindo, estudando e
aprofundando os princípios iremos
absolutas, assim sendo, Guershon Kwasniewski - Não vive-
construir o caminho da paz mundial.
Mas quando falamos de paz global,
o que muda é o caminho mos numa sociedade pós-religiosa,
porque as pessoas, conforme o mo-
estamos tratando de algo muito mais
amplo. Devemos começar a construir
para chegar a essa mento da história, tendem a voltar
para a religião. Se nos religamos,
a paz interna, individual. Baseados
nisso, passamos a construir um mun-
verdade” como a própria religião nos diz, es-
tamos longe de uma pós-religião. A
do melhor. religião sempre vai ocupar o seu lu-
gar.
IHU On-Line - O que o Judaísmo ralismo religioso e o “trânsito in- O homem da pós-modernidade
tem de específico ou “inegociável” ter-religioso”, como vemos espe- avançou tanto que está se pergun-
em sua constituição interna que, cialmente em países de grande tando aonde quer chegar. Parece
sem isso, a religião se descaracte- sincretismo como o Brasil? que construiu uma torre de babel e
rizaria? Guershon Kwasniewski - O diálogo ao chegar ao topo, pergunta: “Ago-
Guershon Kwasniewski - Temos um é uma expressão natural do homem; ra, o que faço?” É preciso descer
ciclo de vida próprio e um calendá- o ser humano foi dotado da palavra. novamente. Temos muitos avanços
rio que rege esse ciclo. Mantemos as Temos uma boca e dois ouvidos: de- na ciência, na tecnologia, mas terrí-
nossas festividades: o dia do perdão, vemos ouvir, aprender com o nos- veis retrocessos na vida espiritual. O
a páscoa, as comemorações bíblicas so próximo, e falar o necessário. O homem, quando se volta para a sua
e pós-bíblicas. O que caracteriza o respeito, a tolerância, o convívio essência, acaba se autodescobrindo.
Judaísmo é a circuncisão; circunci- e o diálogo ocorrem quando existe As pessoas têm medo de se aproxi-
darmos nossos filhos com oito dias harmonia entre as religiões, sobre- mar das religiões, porque não que-
de vida. Não podemos abrir mão des- tudo quando existe a possibilidade rem enxergar como são. A pós-mo-
se mandamento, pois descaracteri- de entender e conhecer a cultura do dernidade oculta o lado religioso e
zaríamos a tradição judaica. outro. A partir do momento em que não deixa os indivíduos enxergarem
Outro aspecto forte é a relação isso corre, consigo entender o por- o que eles realmente são e devem
dos judeus com Deus. Os nossos ini- quê da história, do culto, do ritual, fazer para ser.
migos, quando tentaram aniquilar o da tradição das outras religiões. Te-
povo judeu, queriam destruir o tem- mos de trabalhar no campo cultural IHU On-Line - Como os 10 Man-
plo. Não podemos abrir mão da nossa para esclarecer como são constituí- damentos de Deus recebidos por
instituição maior, a sinagoga, a nossa das as identidades religiosas e trans- Moisés perpassam o Judaísmo e as
casa de encontro, onde realizamos o mitir para o próximo o que faz parte demais religiões monoteístas? Qual
culto, respeitamos o calendário ju- de cada essência. a sua validade e pertinência hoje,
daico e consagramos os momentos após milhares de anos após sua
mais importantes da vida, como o Sincronismo apresentação ao mundo?
nascimento, a maioridade religiosa - Guershon Kwasniewski - Nos man-
aos 13 anos para os meninos e aos 12 Temos a bênção de viver em um damentos e nos preceitos está o su-
para as meninas -, o casamento ju- país onde existe muito respeito en- cesso do Judaísmo. A Torá se tornou
daico e o enterro. O judeu tem a sua tre as religiões, a liberdade de culto um livro clássico, porque, mesmo
identidade marcada por esses rituais e, portanto, um clima propício para com milhares de anos, continua atu-
de passagem, os quais estão enga- trabalhar o campo espiritual. Mas, al. Está na contemporaneidade da
jados com preceitos e mandamentos acima de tudo, precisamos escla- mensagem e do recado o sucesso do
da vida que devemos cumprir. Sem recer o que significa cada religião. nosso livro. Mesmo com o avanço dos
isso, ficamos completamente desca- Todas elas buscam verdades abso- tempos, a mensagem continua sendo
racterizados. lutas, assim sendo, o que muda é o atual e contemporânea: falamos do
caminho para chegar a essa verdade. relacionamento entre as pessoas, da
IHU On-Line - Como as religiões Contudo, devemos ter cuidado para relação com a terra, com a nature-
monoteístas dialogam com o plu- não tratar todas as religiões como se za, o relacionamento do homem com

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“Não faças ao teu Deus faz parte do desenvolvimento
próximo o que não
humano
queres que façam
contigo. Isso é a Torá. Segundo o rabino Ruben Najmanovich, o Judaísmo aspira a uma
sociedade com igual acesso à dignidade e à esperança
O resto é comentário”
Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin

Deus, pais e filhos etc.

O
“Não faças aos outros o que não
diálogo do Judaísmo com as outras religiões monoteístas “não
queres que te façam” é um princí-
quer dizer trocas ou negociações”, escreve o rabino Ruben Na-
pio apresentado pelo rabino Hillel,
há muitos anos. Quando uma pessoa jmanovich à IHU On-Line, por e-mail. Na sua visão, “não se
não judia perguntou a ele se poderia pode negociar valores tão fundamentais, que deram, em muitos
lhe ensinar a Torá no tempo em que momentos da história da humanidade, uma visão de respeito, de
apoiava o corpo sob uma perna, ele ética, de amor e de compreensão”.
respondeu: “Não faças ao teu próxi- Na entrevista que segue, concedida por e-mail, ele analisa a tradição ju-
mo o que não queres que façam con- daica e reflete o futuro do Judaísmo na sociedade pós-moderna. Retomando
tigo. Isso é a Torá. O resto é comen- a história, Najmanovich recorda que muitas foram as tentativas de eliminar
tário. Estuda”. Deus, de negar “aquilo que é primordial para poder crescer”. Nesta época
de pós-modernidade, ele aconselha as religiões a se dedicarem à reflexão. “É
IHU On-Line - Hans Küng sugere tempo de refletir (...) a possibilidade de deixar conhecer a religião através
três fundamentos para que a ética
do pragmatismo e de suas concepções”.
mundial seja possível: um consenso
Najmanovich é mestre em Ciências Sociais e Humanidade pela Universida-
fundamental básico com relações a
valores obrigatórios, parâmetros de Nacional de Quilmes, Argentina. É membro diretor da Sinagoga da União
inamovíveis e atitudes espirituais Israelita de Porto Alegre. Confira a entrevista.
básicas. Como as três grandes reli-
giões monoteístas podem chegar a IHU On-Line - Que aspectos históri- de uma profunda elevação ética que
esse consenso? cos e culturais específicos o senhor foi difícil de compreender para um
Guershon Kwasniewski – Todas as destaca para a constituição, ao lon- mundo tão canibal como o de então.
religiões querem o bem do homem. go do tempo, dos valores centrais A concepção vital das ideias aprofun-
Se cada uma delas cuidar dos seus da ética do Judaísmo? dou conjugações verbais que estavam
princípios, chegaremos ao consenso. Ruben Najmanovich - Primeiramen- sempre adiantadas. Sem dúvida, esta
te a entrega da Torá no Monte Sinai, forma de enfrentar a vida baseada em
isso inclui a Tora escrita (shebichtav), um modelo chamado Torá, despertou
os cinco livros de Moisés (Pentateu- sentimentos de inveja que deram lu-
Religiões do Mundo co), e a Torá oral (Mishnáh) com 63 gar à judeufobia. A falta de respostas
tratados. Por sua vez, os valores dos para os paradigmas da vida foi uma
>> Guershon Kwasniewski é um dos de-
fundadores do povo de Israel: Abraão das complexas situações que deu lugar
batedores do evento Religiões do Mundo. Ele
estará na Sala 1G119 na sexta-feira, 07-08-2009, – Isaac – Iahacov (Jacó), imprimiram às frustrações do mundo não judaico.
às 16h, comentando o documentário sobre o Ju- na identidade do povo um conceito Frustrações são situações opostas aos
daísmo. No dia 27-8-2009, o professor também
importante, que foi uma marca inde- comportamentos éticos.
comenta a exibição na Casa de Cultura Mario
Quintana, em Porto Alegre, às 19h. lével na constituição e construção do
povo de Israel. IHU On-Line - O que o Judaísmo tem
O pensamento dos sábios da época de específico em sua constituição
 Rabino Hillel, o ancião (60 a.C.): conhe- pós-primeiro exílio até pós-segundo interna que, sem isso, a religião se
cido líder religioso judeu, que viveu durante exílio levou a criar paradigmas que descaracterizaria?
o reinado de Herodes, o Grande na época do
Segundo Templo. Estudioso respeitado em seu enfrentassem os desafios requeridos. Ruben Najmanovich - Existem três
tempo, Hillel é associado a diversos ensina- A jornada que se iniciou mediante a fundamentos vitais:
mentos da Mishná e do Talmud, tendo fundado saída de Abraham de Ur de Casdim 1- Amarás a Teu D’us com todo o co-
uma escola para ensino de mestres no judaís-
mo. (Nota da IHU On-Line) (Ur de Caldeia), propiciou que as tra-  U���������������������������������������
ma das formas utilizadas por alguns ju-
jetórias estivessem acompanhadas deus de língua portuguesa para se referirem

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ração; lhor olhar ecológico para nosso mun- sobre o ecumenismo e o diálogo in-
2 - Amarás ao próximo, como a ti mesmo; do. Entretanto, temos outros olhares: ter-religioso atuais para a construção
3 - Estudar, investigar e aprofundar faz a distribuição da riqueza, o conceito da paz? Como é possível uma aproxi-
parte do desenvolvimento do conheci- do dizimo (Maaser), a justiça social mação de fato do Judaísmo com ou-
mento. (Tsedakáh), doações voluntárias (te- tras religiões?
rumáh) são vitalmente fundamentais, Ruben Najmanovich - A pergunta tem
IHU On-Line - Como o Judaísmo se para uma melhor convivência do ser uma resposta muito fácil. Quando não
relaciona com as demais tradições humano com a natureza e o desenvol- existir mais esse questionamento, já se
religiosas? Há abertura e espaço para vimento socioeconômico. deu o primeiro passo para começar a
possíveis negociações ou troca de va- O Judaísmo não tem uma teoria po- dialogar, a intercambiar. Contudo, as
lores? lítica, mas duas. Não apenas tem sua outras religiões não deveriam se apro-
Ruben Najmanovich - O Judaísmo res- própria teoria sobre o Estado, prova- ximar do Judaísmo? O Judaísmo foi a
peita as demais tradições religiosas e as velmente a primeira do gênero, mas única fé, crença, conhecimento, filoso-
crenças. Existe abertura para explicar, também uma teoria política da socie- fia de vida que concedeu à humanidade
desmistificar, esclarecer. Isso não quer dade, algo bastante raro na história do riquezas de ordem cultural, científica,
dizer trocas ou negociações. Não se pensamento e, até hoje, não superada social e que, principalmente, nunca so-
podem negociar valores tão fundamen- em sua simplicidade e humanidade. freu uma hecatombe, como sofreram
tais, que deram, em muitos momentos Uma das formas que explica o con- as demais religiões. Para culminar de-
da história da humanidade, uma visão ceito internalizado pelo judeu e pelo sejo expressar que a maior paz existe
de respeito, de ética, de amor e com- judaísmo é a palavra Tsedek, contras- entre aqueles que discordam.
preensão, para obter o quê? Para que tando-o com duas outras teorias polí-
as pessoas me conheçam ou aprendam ticas: o capitalismo e o socialismo. O IHU On-Line - Em uma sociedade mo-
não necessito deixar de ser eu, para capitalismo tem como objetivo a igual- derna (pós-moderna ou até mesmo
poder ser ele. Tenho que seguir sendo ultramoderna), como fica o papel da
eu e explicar ao próximo o que me le- religião? Estamos em uma sociedade
vou a ser de um determinado jeito.
“O Judaísmo tem uma pós-religiosa também?
Ruben Najmanovich – Alguns disseram
IHU On-Line - Qual é a contribuição
riqueza tão profunda que a religião atrofia as mentes, e ou-
específica que o Judaísmo pode dar tros, como Karl Marx, que a religião é
para uma possível solução à crise
que tudo tem uma o ópio do mundo. Todos esses achavam
fundamental que vivemos hoje, a que eliminar D’us da relação homem
crise da economia global, da ecolo-
explicação, uma com seu próximo, consigo mesmo e com
gia, da política? o Criador, se poderia fazer com uma
Ruben Najmanovich - Começar a olhar
concepção e existem simples declaração ou até mesmo com
para os valores sociais, ecológicos e uma atitude hipócrita, negando aquilo
econômicos que a Torá, sendo Divina,
didáticas pedagógicas que é primordial para poder crescer e
em sua sabedoria, dá às respostas para manifestar por atos. Eles passaram pela
os questionamentos. O ano sabático e
para transmitir” história, deixaram movimentos que, vis-
o ano jubilar são duas respostas aos tos de uma ótica objetiva, produziram
desafios socioeconômicos e ecológicos dade de oportunidades, e o socialismo, o caos. Tolice humana não deixar D’us
que hoje o mundo pede. a igualdade de resultados. A visão ju- ser parte do desenvolvimento humano.
Observar a lei de Orláh é dizer daica aspira a uma sociedade com igual Enquanto foi elaborado isso, fizeram-se
como se deve podar uma árvore, como acesso à dignidade e à esperança. Di- em nome de D’us atrocidades. É tempo
respeitar as leis de desenvolvimento ferente do socialismo, ela acredita no de refletir nesta época de pós-modernis-
do trabalho agrário, cuidando do equi- mercado livre, na propriedade privada mo a possibilidade de deixar conhecer
líbrio animal. Isso faz parte de um me- e na mínima intervenção governamen- a religião através do pragmatismo e de
ao criador do mundo sem citar seu nome com- tal. Diferente do capitalismo, acredita suas concepções. Algumas crenças terão
pleto, em respeito a um mandamento recebi- que o mercado livre, isento de redistri- de introspectar dentro de sua teologia
do por Moisés. (Nota da IHU On-Line)
 Ano sabático: ano em que a pessoa tira sem
buições periódicas cria desigualdades e observar valores equívocos, conceitos
trabalhar, especialmente no mundo acadêmico. que, com o tempo, se tornam insusten- errados e didáticas sem fundamentos.
Tem origem na palavra Shabat , da qual se deri- táveis, pois privam indivíduos da inde- O Judaísmo tem uma riqueza tão
va o termo Sábado. (Nota da IHU On-Line)
 Ano jubilar: também conhecido como jubi-
pendência e da esperança. profunda que tudo tem uma explica-
leu, é uma comemoração religiosa da Igreja Ca- Tsedek está construído sobre a ideia ção, uma concepção e existem didá-
tólica, celebrada dentro de um Ano Santo, mas de que posse e propriedade são coisas ticas pedagógicas para transmitir. Fi-
o que difere deste é que a celebração jubilar
é feita de 25 em 25 anos. A celebração cristã
distintas. nalmente expresso: Educação é aquilo
se fundamenta na Bíblia, tanto no Antigo Testa- que ficou depois de haver-me esqueci-
mento, de onde temos a tradição judaica como IHU On-Line - Qual é a sua opinião do de tudo aquilo que aprendi.
no Novo Testamento. (Nota da IHU On-Line)

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“O papel social da religião mudou”
Para o teólogo Pedro Rubens, a efervescência religiosa brasileira representa a
reconstituição do tecido cristão

Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin

N
a sociedade pós-metafísica “o Cristianismo deve ser repensado para além das categorias
do pensamento metafísico, da mesma forma que deveria reencontrar seu lugar numa
sociedade que não é mais regida pelas normas religiosas”, sustenta Pedro Rubens, doutor
em Teologia pelo Centre Sèvres, Faculdades Jesuítas de Paris.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, ele ressalta que o paradigma
metafísico “não dará conta de responder às novas questões colocadas pela existência humana em sua
historicidade e pelas ciências em sua complexidade e especificidade”. Considerando que o papel social
da religião mudou, Rubens frisa que o Cristianismo vive uma situação extremamente paradoxal. E ex-
plica: “por um lado, ele é solidário com o declínio da civilização cristã ocidental e o eclipse da religião
como referencial da sociedade; mas, por outro, a fé cristã é afetada pelo ressurgimento do religioso sob
as formas mais arcaicas, no seio da vida moderna”.
Reitor da Universidade Católica de Pernambuco (Unicap) desde 2006 e professor de Teologia no Pro-
grama de Pós Graduação em Ciências da Religião, Pedro Rubens é formado em Filosofia e Teologia pela
Faculdade Jesuíta de Teologia e Filosofia (FAJE) de Belo Horizonte. Cursou o mestrado e o doutorado no
Centre Sèvres, Faculdades Jesuítas de Paris. Sua tese leva o título La foi vécue au pluriel. Penser avec
Paul Tillich, un discernement théologie du croire en contexte brésilien e deu origem à obra O Rosto
Plural da Fé: da ambiguidade religiosa ao discernimento do crer (São Paulo: Loyola, 2008), que será
lançada no X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e
impossibilidades. De sua produção bibliográfica citamos Karl Rahner em perspectiva (São Paulo: Loyola,
2004), Karl Rahner: 100 anos. Teologia, filosofia e experiência espiritual (São Paulo: Loyola, 2005), em
parceria com Francisco Taborda. Confira a entrevista.

IHU On-Line - Quais são as especifi- concepção bastante dialética: postula numa “religião da superação da reli-
cidades do Cristianismo e como ele a fé em um único Deus, mas o compre- gião” (P. Tillich) ou “religião da in-
se relaciona com as demais tradições ende em sua revelação trinitária (Pai, terpretação” (M. Gauchet) e numa
religiosas, Islamismo e Judaísmo? Filho e Espírito Santo); pode ser con-  Paul Tillich (1886-1965): teólogo alemão,
Pedro Rubens - Essas três tradições siderado uma religião do Livro, mas que viveu quase toda a sua vida nos EUA.
Foi um dos maiores teólogos protestantes do
culturais e religiosas se definem como vive de uma constante interpretação século XX. É autor de uma importante obra.
monoteísmos e são identificadas como das tradições escritas e não escritas; Entre os livros traduzidos em português, pode
religiões do Livro. No entanto, a in- embora identificado com um sistema ser consultados Coragem de Ser (6ª ed. Edito-
ra Paz e Terra, 2001) e Amor, Poder e Justiça
terpretação da unicidade de Deus, o religioso próprio, composto de ritos, (Editora Cristã Novo Século, 2004). (Nota da
conceito de religião e o tipo de re- símbolos, doutrinas e normas, está IHU On-Line)
lação aos textos fundadores são bem constantemente em processo de críti-  Marcel Gauchet: filósofo francês, que com
Luc Ferry é autor do livro O religioso após a
diferentes em cada uma delas. Isso ca de toda e qualquer instituição reli- religião (Paris: Grasset. 2004). Escreveu Le
não implica necessariamente conflito, giosa, em nome da soberania de Deus. désenchantement du monde (Paris: Galli-
da mesma forma que as eventuais se- Finalmente, é a pessoa de Jesus Cristo mard. 1985), La condition historique (Paris:
Stock, 2003) e Un monde désenchanté? (Paris:
melhanças formais não são suficientes ou a narrativa de sua paixão, morte L’atelier. 2004). Confira, no site do Instituto
para fundar o diálogo esperado. Na e ressurreição que constitui o núcleo Humanitas Unisinos, www.unisinos.br/ihu, No-
verdade, seria bem mais interessante da diferença cristã, determinando a tícias do Dia, o seguinte material: “Os direitos
individuais paralisam a democracia”, assegura
e enriquecedor um diálogo com base concepção do tipo de monoteísmo, a Marcel Gauchet, em 20-02-2008, disponível
nas diferenças, no diferencial de cada relação com o Livro e a própria noção para download no link http://www.ihu.unisi-
uma delas. Dito isso, o Cristianismo dialética de religião. O Cristianismo nos.br/index.php?option=com_noticias&Itemi
d=18&task=detalhe&id=12215, “Estamos num
postula sua especificidade em uma consiste num monoteísmo trinitário, momento tanto de invenção religiosa como de
saída da religião”, entrevista com Marcel Gau-

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interpretação dos textos sagrados com quecer-se de buscar as tradições pró- religiosa ou à confissão de um credo
base em novas situações contextuais prias de cada contexto. Acredito que o seria um limite para o diálogo com
(cf. I Pd 3,15) e confrontados ao even- Cristianismo em geral e o Catolicismo outra religião; em sentido oposto,
to Jesus, confessado como o Cristo, em particular devem tomar iniciati- alguém que não tem nenhuma con-
Filho único de Deus, mediador univer- vas, seja onde eles são hegemônicos, fissão de referência, poderia parecer
sal entre Deus e a humanidade inteira. seja onde são minoritários. Para além pretensamente mais apto ao diálogo.
Eis, portanto, que a fé cristã se ba- dos atos de perdão por atitudes que Porém, esse vazio empobrece tam-
seia num paradoxo: por um lado, tem nem sempre privilegiaram o diálogo bém a possibilidade de intercambio
sua revelação plena em Jesus Cristo, e os valores evangélicos, postulo que e diálogo. Na verdade, essa linha que
historicamente situado e, por outro temos algumas concepções favoráveis separa é também a que estabelece a
lado, essa revelação concerne toda a essa tomada de iniciativa: a noção relação de fronteiras. Lugar de risco,
a humanidade, de todos os lugares e de encarnação superando o abismo certamente; mas, igualmente, lugar
tempos. Essa dinâmica vital indica a entre humano e divino; a prática da privilegiado para os intercâmbios.
necessidade de um diálogo que nos
permita afirmar a especificidade da IHU On-Line - Como as religiões mo-
fé, sem negar o valor de outras tradi- “O catolicismo noteístas dialogam com o pluralismo
ções religiosas e culturais, bem como religioso e o “trânsito inter-religio-
o aporte das mediações históricas popular brasileiro, com so”, como vemos especialmente em
da fé em Deus “totalmente outro”. países de grande sincretismo como o
todo o seu imaginário Brasil?
IHU On-Line - O Cristianismo está Pedro Rubens - Não apenas esses diá-
contribuindo para o diálogo inter- de representações, é logos são diferentes para cada mono-
religioso ou as ações desenvolvidas teísmo, como no interior deles, cada
pela Igreja ainda são tímidas? Quais a matriz religiosa mais região do mundo ou momento histó-
são as possibilidades e limites nesse rico específico. Deve-se distinguir o
sentido? importante para fenômeno do pluralismo religioso e do
Pedro Rubens - Creio que sim, mas é trânsito de uma religião para outra, ou
preciso fazer algumas considerações compreender o de uma igreja para outra. No Brasil,
preliminares, antes de indicar algumas há uma diversidade de tradições que
possibilidades do aporte cristão ao di- movimento religioso precisam ser mais pesquisadas, conhe-
álogo inter-religioso. cidas e valorizadas, com destaque e
Primeiro, Cristianismo e Igreja Cató- migratório e um bom prioridade para as tradições de matri-
lica, Apostólica com sede em Roma zes afro-brasileiras. Porém faz-se in-
são realidades que devemos distinguir, ponto de partida para dispensável um estudo interdisciplinar
considerando a real diversidade in- das matrizes populares e da memória
terna do Cristianismo. Neste primeiro pensar um diálogo viva dessas tradições, indissociáveis
nível de diálogo, importa avançar nas da vida real de nosso povo e de suas
experiências e reflexões sobre o ecu- inter-religioso com diversas narrativas, para além dos
menismo entre as diversas confissões conceitos totalizantes, como “sincre-
e igrejas cristãs, sem esquecer-se do base na própria tismo”, incapazes de dar conta da real
diálogo indispensável dentro de cada diversidade.
Igreja/comunidade. Em segundo lugar, formação histórica Vivemos, no Brasil, uma eferves-
deve-se continuar o diálogo com as cência religiosa sem precedente, sus-
tradições monoteístas, notadamente de nosso povo” citando uma ambiguidade sem limites.
com o Judaísmo e o Islã. Em terceiro, Esse fenômeno impressiona não tanto
precisamos estabelecer um maior diá- por uma simples perda de adeptos por
logo com as outras religiões do mundo, interpretação constante dos textos e parte do Catolicismo, mas pela migra-
na sua prodigiosa diversidade, sem es- das tradições religiosas; a perspectiva ção de fiéis de uma Igreja para outra.
chet, em 09-02-2008, disponível para down- do discernimento que poderá evitar Entretanto, não se trata propriamente
load em http://www.ihu.unisinos.br/index. um juízo a priori da realidade ou da de um fenômeno de “retorno do re-
php?option=com_noticias&Itemid=18&task=de experiência, sem o devido reconheci- ligioso”, inclusive porque este nunca
talhe&id=11609, e “A França é um país profun-
damente deprimido”, afirma Marcel Gauchet, mento dos valores. Essas possibilida- saiu do cenário brasileiro; nem se trata
em 23-04-2007, disponível em http://www. des revelam certamente um limite: de um real pluralismo religioso. Trata-
ihu.unisinos.br/index.php?option=com_notic trata-se de uma percepção cristã. se, sobretudo, de uma reconstituição
ias&Itemid=18&task=detalhe&id=6686. Nesta
edição, confira a entrevista exclusiva que con- Uma justa consciência do limite, po- do próprio tecido cristão, em um país
cedeu, por e-mail, à IHU On-Line: As religiões rém, já é uma nova possibilidade. Por marcado historicamente por uma for-
não são mais determinantes para a vida cole- exemplo: alguém poderia pensar que te evangelização católica e uma rica
tiva. (Nota da IHU On-Line)
a pertença efetiva a uma comunidade mescla cultural e religiosa, não sem
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conflitos de toda natureza. Sobre a rigo de projetar as responsabilidades preciso criar novas instituições com
base de um catolicismo popular e tra- humanas para outras esferas. Enfim, base em consensos teóricos e práticos
dicional, portanto, surgiram sucessi- creio que é possível vislumbrar uma rumo à construção de uma ética inter-
vamente diferentes expressões de fé, ética de consensos para além dos tra- nacional, visando à história comum da
resultado de muitos fatores sociorreli- tados de paz em tempos de guerra, humanidade e ao cuidado responsável
giosos, que vão das necessidades mais para além das concepções religiosas e com o planeta.
prementes aos desejos mais místicos, culturais. No entanto, tal carta magna Certamente, o Cristianismo e as
das utopias históricas mais revolucio- planetária precisaria conjugar direitos religiões poderão colaborar, mas sem
nárias aos messianismos políticos mais e valores fundamentais com o respeito ignorar um histórico de violências que
tradicionalistas. Mas, por sua vez, será das diferenças. envolveram diretamente as religiões.
que o “trânsito de uma religião a ou- Não sei se a chamada ética mundial De toda sorte, sem instituições inter-
tra” ou alguns movimentos migratórios é “o” caminho, mas certamente apon- nacionais de consenso e sem experiên-
de uma igreja a outra representam ta para alguns passos importantes. Ali- cias de reconciliação será difícil avan-
uma real mudança de matriz cultural ás, diante de situações complexas, fica çar. Penso, portanto, que se a criação
e religiosa? Por exemplo: um católico, difícil acreditar em resposta simples, de instâncias mediadoras releva mais
quando migra para uma igreja neopen- da esfera política, em sentido amplo,
tecostal, reencontra aí alguns elemen-
tos da religiosidade popular, inclusive
“As religiões correm o as práticas de reconciliação poderiam
ser uma forma de contribuição das
mais identificados com o Catolicismo
tradicional que com a tradição própria
risco de entrar nos religiões, na construção da paz. Mas,
“vamos precisar de todo o mundo”, o
das igrejas inspiradas na Reforma. A
leitura apocalíptica ou messiânica das
conflitos como uma que supõe uma concepção de comuni-
dade humana não apenas para além
Escrituras, bastante frequentes nas
igrejas neopentencostais, são bastan-
legitimação de das diferenças, mas justamente pelo
reconhecimento mínimo delas.
te próximas dessas figuras na religio-
sidade popular brasileira, ela própria
interesses políticos, IHU On-Line - Que contribuições o
Cristianismo pode oferecer para a
muito eclética e ambígua.
Nesse sentido, o catolicismo popular
usando o nome de Deus humanidade neste momento de crise
(social, ambiental, de valores, finan-
brasileiro, com todo o seu imaginário
de representações, é a matriz religio-
para camuflar ceira, de fé, de ética) em que nos
encontramos?
sa mais importante para compreender
o movimento religioso migratório e um
interesses humanos Pedro Rubens - O patrimônio da experi-
bom ponto de partida para pensar um
diálogo inter-religioso com base na pró-
questionáveis por eles ência cristã é mais rico e diverso que sua
história oficial e sua expressão institucio-
pria formação histórica de nosso povo.
mesmos e, sobretudo, nal, contada já com chaves conceituais
de épocas distintas. Antes de antecipar
IHU On-Line - Que ações são impres-
cindíveis para a construção da paz
com o perigo de qualquer possibilidade de contribuição
cristã ao diálogo, eu recordaria a singu-
planetária? O senhor concorda que a
proposta de uma ética mundial é o
projetar as laridade da kenosis (cf. M. Hurtado) ou
do “aniquilamento próprio” em nome do
caminho?
Pedro Rubens - Primeiro, conhecer
responsabilidades outro (ou do Outro), como atitude fun-
damentalmente cristã de diálogo: isso
melhor a diversidade, para além dos
clichês e estereótipos, reconhecendo
humanas para outras não significa que outras tradições não a
cultivem, mas que para o cristão é in-
a real complexidade de concepções
religiosas, culturais, históricas e po-
esferas” dissociável pela referência explícita à
atitude de Jesus Cristo. Evidentemente,
líticas, sobretudo de cada região de essa atitude quebra com a lógica moder-
conflito. Segundo, precisamos reali- caminho único e solução definitiva. na e a necessidade de autoafirmação da
zar cada vez um discernimento para Há várias situações internacionais, no subjetividade. Mas, é um princípio aná-
distinguir melhor as motivações reli- entanto, que reclamam uma legisla- logo ao da não violência ativa, com sua
giosas das outras causas e interesses: ção ou instituições mediadoras acima força, fragilidade e riscos. Os riscos per-
não raras vezes, as religiões correm o dos interesses locais. Há, certamente, manecem, mas Jesus Cristo não recuou
risco de entrar nos conflitos como uma experiências exitosas que poderiam nem diante da ameaça de morte. Não se
legitimação de interesses políticos, ser refletidas e universalizadas. Po- trata de submissão, mas de “coragem
usando o nome de Deus para camuflar rém, não se pode esquecer a dificul- de ser” (P. Tillich), assumindo a vida até
interesses humanos questionáveis por dade do ponto de partida: de onde e as últimas consequências. Esse aniqui-
eles mesmos e, sobretudo, com o pe- de quem? Nesse sentido, creio que é lamento de si não é desumanizante, ao

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contrário, esconde e revela a esperança zer...” teria mais força que a inversão religiosa, entendemos que o Cristianis-
cristã, sem a qual a fé seria cega, assim proposta ou usada por Jesus? mo deve ser repensado para além das
como sem amor a fé é morta. Na verdade, essa máxima ética não re- categorias do pensamento metafísico,
Para além da experiência religiosa leva de um principio religioso; mas é da mesma forma que deveria reencon-
do Sagrado, a fé cristã pretende ser muito interessante a forma como Jesus trar seu lugar numa sociedade que não
uma experiência de Deus como “ex- inverteu a lógica do provérbio popular, é mais regida pelas normas religiosas. A
periência do sentido radical da exis- insistindo na atitude positiva e da ini- rigor, o paradigma metafísico pode estar
tência” (Lima Vaz) em todas as suas ciativa, como uma espécie de política presente ao lado de outros, mas tudo
dimensões: na dimensão subjetiva, a afirmativa. De toda sorte, esse princípio indica que ele não dará conta de res-
fé postula uma liberdade que não se de sabedoria ética não deve ser identi- ponder às novas questões colocadas pela
deixa corromper nem pela violência ficado com o Cristianismo nem com ne- existência humana em sua historicidade
do outro, exercitando a capacidade de nhuma religião, pois, a rigor, ele não tem e pelas ciências em sua complexidade e
amar o inimigo, pois, como diziam os nenhum conteúdo religioso; ele poderia especificidade. Por sua vez, nas socieda-
padres da Igreja, os cristãos não te- ser referido a uma sabedoria popular. A des modernas ocidentais de direito e de
mem nem a morte (Carta a Diogneto); versão propositiva de Jesus, entretanto, fato, o papel social da religião mudou.
na dimensão intersubjetiva, a espe- supõe um esforço maior, pressupondo O Cristianismo vive uma situação extre-
rança constrói relações para além do a iniciativa do sujeito, tornando-a ain- mamente paradoxal e ambígua: por um
toma lá dá cá, apostando que o outro lado, ele é solidário com o declínio da
é imagem e semelhança de Deus, nos- “O problema não é de civilização cristã ocidental e o eclipse da
so Pai, portanto, acredita-se na espe- religião como referencial da sociedade;
rança de uma fraternidade universal, desaparecimento das mas, por outro, a fé cristã é afetada pelo
para além de raça, sexo, religião, ressurgimento do religioso sob as formas
ideologia; enfim, na dimensão obje- religiões, mas de fim de mais arcaicas, no seio da vida moderna.
tiva, a esperança é uma forte contri- Dada a sua complexidade, esse fenôme-
buição diante de todos os fracassos e uma época em que elas no depende de uma pluralidade de fa-
fatalismos históricos, diante dos ab- tores. Parece inegável, no entanto, que
solutismos e relativismos, diante de representavam, de uma há uma verdadeira onda religiosa e um
toda visão negativa do ser humano, do renovado interesse pelo “espiritual”.
mundo e de Deus. A esperança não é forma ou de outra, o Contudo, em princípio, isso não signifi-
apenas, como diz o dito popular, “a úl- ca uma contradição com os diagnósticos
tima que morre”, mas aquela que não fundamento da visão de do “fim da religião”, embora se exija
decepciona nunca; quem espera, es- uma maior precisão: o problema não é
pera contra toda esperança (Rm 4,18). mundo ou a norma de de desaparecimento das religiões, mas
de fim de uma época em que elas repre-
IHU On-Line - Para Hans Küng, há um organização da sentavam, de uma forma ou de outra, o
princípio que pode ser encontrado em fundamento da visão de mundo ou a nor-
muitas tradições religiosas e éticas sociedade” ma de organização da sociedade. Diante
da humanidade: não faças aos outros do fim desta função, porém, resta ainda
o que não queres que te façam (ou, perguntar-se sobre o “fim”, no sentido
em termos positivos, faças aos outros da mais difícil de ser traduzida em nor- de uma teleologia da dimensão religio-
o que queres que te façam). O senhor ma objetiva, incondicional para todas sa do ser humano e da religião como tal
também considera que esse deve ser as nações e religiões. Enfim, apesar de para a história da humanidade.
um princípio, uma norma incondicio- importante e inspirador, não deixa de Finalmente, essa onda religiosa atu-
nal entre as nações e religiões? ser um princípio mínimo e que, de al- al não autoriza nenhuma religião a so-
Pedro Rubens - A gente poderia pensar guma forma, não pode ser transforma- nhar com um retorno das teocracias
também no princípio da não violência do em lei, apenas proposto como um históricas, nem permite ao Cristianismo
ativa, na própria declaração universal convite. No fundo, não é a questão de ocidental reivindicar um estatuto poli-
dos direitos humanos etc. Porém, afir- Deus que faz problema, mas a questão ticamente privilegiado nas sociedades
mar a absolutidade de qualquer prin- do outro, figura que assume na nomi- contemporâneas, ditas “pós-cristãs”.
cípio já pode ser um começo suspeito, nação de Deus dimensões sem limites. Por sua vez, o fim desse papel do Cristia-
apesar de eu estar de acordo com este nismo no Ocidente não significa que ele
princípio, em particular. Porém, a di- IHU On-Line - É possível falar de fique “desobrigado” diante dos grandes
ficuldade é como construir o consenso uma sociedade pós-metafísica, pós- debates da vida moderna, no tocante
em torno desse principio? Como fazer religiosa? Que papel o Cristianis- aos problemas mais pessoais até os desa-
com quem não estiver de acordo, sem mo desempenha nesse contexto? fios de uma sociedade em vias de globa-
cair em contradição performativa? A Pedro Rubens - Admitindo o linguajar lização. Essas questões vitais concernem
versão que parte da negativa “não fa- de uma sociedade pós-metafísica e pós- ao Cristianismo, na medida em que se

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“Esse papel do cristão
no mundo, a ser
O diálogo inter-religioso e a
reinterpretado em cada consciência humana universal
situação nova,
Para o teólogo Claude Geffré, o diálogo inter-religioso não
independentemente do conduzirá ao relativismo, se as religiões forem fiéis à suas
identidades
status social da religião,
é uma consequência Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin | Tradução Benno Dischinger

da própria dinâmica da

A
s três grandes religiões monoteístas são portadoras de uma men-
Encarnação, sem a qual sagem muito importante para o futuro da humanidade, defende
o teólogo francês Claude Geffré. Em entrevista concedida, por
o Cristianismo não seria e-mail, à IHU On-Line, Geffré afirma que o diálogo inter-religioso
deveria ser facilitado “já que as três religiões monoteístas confes-
mais ele mesmo” sam um Deus criador, Senhor do universo, e prometem a todo o ser humano
uma salvação eterna após a morte”.
implicam o ser humano na sua dignidade
Receptivo à ideia do teólogo alemão Hans Küng, Geffré aponta a proposta
inalienável, a sociedade em seus proje-
de uma ética global “no sentido de que o diálogo inter-religioso deve tomar
tos de busca de uma maior justiça e fra-
ternidade, a história humana e o destino em conta este interlocutor que é o humanismo secular, ou ainda o consenso
do planeta. Trata-se de uma nova forma da consciência humana universal”. E enfatiza: “É desejável que o futuro
de habitar o mundo ou o “Cristianismo do diálogo inter-religioso esteja sob o signo de uma interpelação recíproca
como estilo” (C.Theobald). Esse papel das morais religiosas e das éticas seculares”. Para que o verdadeiro diálo-
do cristão no mundo, a ser reinterpreta- go aconteça, sem que as religiões percam sua identidade particular, Geffré
do em cada situação nova, independen- aconselha: “Elas devem, em primeiro lugar, visar melhor ao conhecimento
temente do status social da religião, é das grandes religiões do Oriente e compreender que elas não são unicamente
uma consequência da própria dinâmica religiões da imanência.” E continua: “Há religiões sem Deus que, no entanto,
da Encarnação, sem a qual o Cristianis- têm o sentido da transcendência. E é justamente porque elas têm um agudo
mo não seria mais ele mesmo. Como di- sentido da transcendência que elas querem ultrapassar a determinação de
ziam os pais da Igreja (patrística), “o que
um deus pessoal”.
não foi assumido pelo Verbo feito carne,
Claude Geffré reside em Paris e é autor de alguns dos mais importantes
não foi salvo”. É tarefa da Teologia dar
razões de nossa esperança (1 Pd 3,15), textos sobre os efeitos do pluralismo religioso, além de ser membro do Comi-
mas, antes de tudo, é próprio da fé cris- tê Científico da revista internacional de Teologia Concilium. Por mais de 20
tã “esperar contra toda esperança” (Rm anos, foi professor de Teologia Dogmática em Le Saulchoir e ainda lecionou
4,18) e, assim, contribuir, corajosa e hu- Hermenêutica Teológica e Teologia das Religiões, no Institut Catholique de
mildemente, eficaz e modestamente, na Paris. Em 1996, foi eleito diretor da École Biblique de Jerusalém. Com Régis
reconstrução das identidades pessoais e Debray publicou o livro Avec ou sans Dieu? Le philosophe et el théologien
culturais, na história comum da humani- (Paris: Bayard, 2006). Publicou tambem De Babel à Pentecôte. Essais de thé-
dade mundializada e no destino da vida ologie interreligieuse (Paris: Cerf, 2006). Confira a entrevista.
no planeta, ameaçado e a ser assumido
responsavelmente.
IHU On-Line - Como o senhor con- e de um pluralismo religioso e cul-
 Christoph Theobald: teólogo jesuíta, pro- cebe a inculturação do Judaísmo, tural cada vez maior, é preciso in-
fessor da Faculdade de Teologia do Centre-
Sèvres em Paris e especialista em questões do Cristianismo e do Islã no mundo, sistir na responsabilidade histórica
de teologia fundamental e de história da exe- num momento de globalização e de comum dos três monoteísmos ante
gese. Em 16-09-2009 proferirá a conferência fronteiras sempre mais abertas? a comunidade mundial. A despeito
Cristianismo como estilo e a narrativa de Deus
numa sociedade pós-metafísica, dentro da Claude Geffré - A inculturação de de sua própria singularidade, os três
programação do X Simpósio Internacional IHU cada um dos três monoteísmos le- monoteísmos são portadores de uma
– Narrar Deus numa sociedade pós-metafísi- vanta problemas específicos. Mas, mensagem muito importante para o
ca. Possibildiades e Impossibilidades. (Nota
da IHU On-Line) na época da globalização do mundo futuro da humanidade, a saber, o en-
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sinamento da Tora, isto é, a impossibi- Judeus, cristãos e muçulmanos reivin- de do povo eleito. Há um face a face
lidade de dissociar o amor de Deus e o dicam uma palavra de Deus diferen- da Igreja e de Israel e uma emulação
amor do próximo. te, com base em textos fundamentais recíproca entre ambos até o advento
diferentes: a Bíblia hebraica, o Novo do Reino de Deus.
IHU On-Line - Em alguns de seus tex- Testamento, o Corão. O diálogo en-
tos o senhor diz que “o Cristo é uni- tre judeus e cristãos é difícil porque IHU On-Line - O que significam, para
versal, mas o cristianismo não o é”. os judeus sempre esperam a vinda do o diálogo islamo-cristão, as proposi-
O que significa isso na época do plu- Messias, enquanto os cristãos identifi- ções dos muçulmanos que apresen-
ralismo religioso? cam Jesus Cristo como o Messias es- tam Jesus como profeta, místico e
Claude Geffré - Eu jamais disse que o perado. Mas o século XX inaugura uma santo? Isso contribui para uma apro-
Cristianismo não é universal. Eu digo nova era na relação entre o Judaísmo ximação e um diálogo ou gera dificul-
simplesmente que não é preciso atri- e o Cristianismo. Por ocasião do trá- dades?
buir-lhe, como religião histórica, uma gico evento da Shoah (holocausto), a Claude Geffré - O próprio Corão tes-
universalidade que não pertence senão Igreja fez um ato de arrependimento temunha um respeito muito grande
ao Cristo que, como evento transistó- pelas diversas formas de um antiju- pelo profeta Jesus. Embora recuse
rico, concilia nele o absolutamente daísmo que tem podido favorecer no absolutamente confessá-lo como Filho
universal e o absolutamente concreto. decurso dos séculos um antissemitis- de Deus, ele é, como diz a tradição,
Isso quer dizer que não convém ab- mo do qual Auschwitz foi a expressão o “selo da santidade”, na medida em
solutizar o Cristianismo como se ele mais extrema. E o concílio Vaticano II que seu nascimento virginal em Maria
totalizasse todos os valores religiosos tomou suas distâncias diante de uma manifesta que ele procede diretamen-
das outras religiões. Além disso, po- falsa teologia cristã do Judaísmo, a da te do Espírito de Deus. Nesse sentido,
dem-se encontrar nas outras tradições substituição, segundo a qual a Igreja ele é maior que o profeta Maomé, em-
religiosas certos germes de verdade, substitui Israel. As promessas de Deus bora ele não seja o último dos profe-
de bondade e de santidade que têm ao povo judaico são feitas sem arre- tas. É o privilégio de Maomé ser o “selo
um elo secreto com o mistério do Cris- pendimento e é preciso falar de um da profecia”, aquele que cumpre as
to que domina toda a história humana cumprimento do Judaísmo pelo Cris- profecias de Abraão, Moisés e Jesus. O
desde seu começo. tianismo que respeite a irredutibilida- diálogo entre o Cristianismo e o Islã se
torna muito difícil no plano teológico,
IHU On-Line - Segundo sua opinião, na medida em que o islã recusa os dog-
 Shoá: na língua iídiche (diáleto do alemão
quais são as principais questões teo- falado por judeus ocidentais) significa calami- mas fundamentais do Cristianismo, o
lógicas que dificultam o diálogo entre dade, e é o termo deste idioma para designar mistério trinitário e o mistério da en-
o Cristianismo e o Judaísmo, o Cris- o holocausto. É utilizado por muitos judeus e carnação. Mas pode-se esperar muito
por um número crescente de cristãos, devido
tianismo e o Islã? E quais são as prin- ao desconforto teológico com o significado li- de certos trabalhos históricos sobre as
cipais questões históricas que geram teral da palavra Holocausto. (Nota da IHU On- fontes do Corão relativas ao Cristianis-
dificuldades para este diálogo? Line) mo que o profeta Maomé pôde conhe-
 Concílio Vaticano II: convocado no dia 11-11-
Claude Geffré - É impossível dissociar 1962 pelo Papa João XXIII. Ocorreram quatro cer. Por que tal desconhecimento da
as questões teológicas das questões sessões, uma em cada ano. Seu encerramento filiação divina de Jesus, que é sempre
históricas. Em princípio, o diálogo de- deu-se a 8-12-1965, pelo Papa Paulo VI. A revi- entendida num sentido carnal, e então
são proposta por este Concílio estava centrada
veria ser facilitado, já que as três reli- na visão da Igreja como uma congregação de tal caricatura da Trindade onde é Deus
giões monoteístas confessam um Deus fé, substituindo a concepção hierárquica do o Pai que gera um filho no seio de Ma-
criador, Senhor do universo e prome- Concílio anterior, que declarara a infalibili- ria? Mas, ao mesmo tempo, é verdade
dade papal. As transformações que introduziu
tem a todo ser humano uma salvação foram no sentido da democratização dos ritos, que a profecia islâmica tem um papel
eterna após a morte. Nós adoramos o como a missa rezada em vernáculo, aproxi- de alertador contra uma compreensão
mesmo Deus, como dizia João Paulo mando a Igreja dos fiéis dos diferentes países. insuficiente da Trindade, que impli-
Este Concílio encontrou resistência dos setores
II, mas a história testemunha lutas conservadores da Igreja, defensores da hierar- caria ofensa à unicidade absoluta de
fratricidas entre os filhos de Abraão. quia e do dogma estrito, e seus frutos foram, Deus.
aos poucos, esvaziados, retornando a Igreja
 Papa João Paulo II (1920 - 2005) foi o Sumo à estrutura rígida preconizada pelo Concílio
Pontífice da Igreja Católica, Apostólica, Ro- Vaticano. O IHU promoveu, de 11 de agosto IHU On-Line - Que mudanças o se-
mana de 16 de outubro de 1978 até 2005 e a 11 de noivmebro de 2005, o Ciclo de Estu- nhor aponta para que as religiões
sucedeu ao Papa João Paulo I, tornando-se o dos Concílio Vaticano II – marcos, trajetórias e monoteístas pratiquem verdadeira-
primeiro Papa não italiano em 450 anos. (Nota perspectivas. Confira, também, a edição 157
da IHU On-Line) da IHU On-Line, de 26-09-2005, intitulada Há mente o diálogo inter-religioso, sem
 Abraão: personagem bíblico citado no Livro lugar para a Igreja na sociedade contemporâ- perder sua identidade?
do Gênesis com o qual se desenvolveram três nea? Gaudium et Spes: 40 anos, disponível para Claude Geffré - Elas devem, em pri-
das maiores vertentes religiosa da humanida- download na página eletrônica do IHU, www.
de: Judaísmo, Cristianismo e Islamismo. Se- unisinos.br/ihu. Ainda sobre o tema, a IHU On-  No original, em francês, a expressão utiliza-
gundo a Bíblia, a mais provável procedência Line produziu a edição 297, Karl Rahner e a da pelo entrevistado é “sceau de la sainteté”.
de Abraão seria a cidade de Ur dos caldeus, ruptura do Vaticano II, de 15-6-2009, disponí- (Nota da IHU On-Line)
situada no sul da Mesopotâmia, onde seus ir- vel no link http://www.unisinos.br/ihuonline/  No original, em francês, a expressão utiliza-
mãos também teriam nascido. (Nota da IHU index.php?option=com_tema_capa&Itemid=23 da pelo entrevistado é “sceau de la prophé-
On-Line) (Nota da IHU On-Line) tie”. (Nota da IHU On-Line)

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meiro lugar, visar melhor ao conheci-
mento das grandes religiões do Orien-
“Alguns acreditam testemunho profético em favor de outro
mundo possível. É porque o Cristianismo
te e compreender que elas não são
unicamente religiões da imanência.
voluntariamente que é a religião da saída da religião, com-
preendida como alienação da autonomia
Há religiões sem Deus que, no entan-
to, têm o sentido da transcendência.
a nova religião dos humana e como utilidade social, que o
Cristianismo pode encarnar uma das fi-
E é justamente porque elas têm um
agudo sentido da transcendência que
direitos do homem vai guras possíveis do futuro da religião.

IHU On-Line - Que tipo de ética o se-


querem ultrapassar a determinação
de um Deus pessoal. Elas nos ajudam
progressivamente tomar nhor reconhece nos grandes mono-
teísmos contemporâneos? Podem as
a procurar um Deus sempre maior e a
superar a representação antropomorfa
o lugar das religiões. religiões contribuir para a proposta
de Hans Küng de uma ética mundial?
de um diálogo entre a consciência hu-
mana e Deus. Em segundo lugar, as re-
Isso seria um erro fatal Em caso afirmativo, que espécie de
ética é possível e desejável?
ligiões monoteístas são tentadas a ido-
latrar sua própria verdade porque são
para o futuro da Claude Geffré - Os três monoteísmos
fundadas na própria Palavra de Deus.
Elas correm, então, o risco de se tor-
humanidade” continuam sendo os testemunhos de
um tesouro moral capital para a comu-
nar intolerantes e mesmo fanáticas. nidade mundial, a saber, o conteúdo
O Judaísmo é sempre tentado a cair do Decálogo. Além disso, a Declaração
no exclusivismo. E, historicamente, o existência social pacificada. Ora, não Universal dos Direitos do Homem se
Cristianismo e o Islã tiveram uma pre- somente o Estado não elimina as fratu- refere a este ethos da religião de Isra-
tensão hegemônica ante as outras re- ras sociais, mas ele gera muitas vezes a el. Mas, é verdade que a afirmação dos
ligiões. Na era do pluralismo religioso, morosidade ou ainda o que alguns de- direitos do homem é uma conquista da
o diálogo entre as religiões não conduz signam como “a era do vazio”. É, pois, consciência humana na reivindicação
ao relativismo se cada religião for fiel muito importante distinguir o Estado de sua autonomia diante de toda hete-
à sua própria identidade. Sem respeito como sociedade política e a nação como ronomia religiosa. E é por isso que ela
por sua própria identidade, não have- comunidade moral que faz apelo a uma entra em conflito, não somente com
rá verdadeiro diálogo, mas consensos história fundada em valores comuns, em a autoridade da Igreja, mas com a do
polidos. É precisamente na confronta- símbolos religiosos, ou não. Há, pois, lu- próprio Deus. Hoje em dia, é a própria
ção com o outro que eu reinterpreto gar nas sociedades modernas para uma Igreja que quer defender e promover
minha própria identidade. Descubro, alteridade, uma transcendência que fa- os direitos do homem, em particular a
então, que minha própria verdade vorece o elo social e estimula a marcha liberdade de consciência e a liberda-
não é necessariamente exclusiva, nem em frente do grupo social. Tornou-se de religiosa. Hans Küng tem razão em
mesmo inclusiva de outras verdades corrente dizer que a chegada da moder-  Hans Küng (1928): teólogo suíço, padre cató-
religiosas: ela é singular. Como crente, nidade e da pós-modernidade coincide lico desde 1954. Foi professor na Universidade
posso receber uma verdade revelada de Tübingen, onde também dirigiu o Instituto
com o fim da religião, sobretudo no Oci- de Pesquisa Ecumênica. Foi consultor teológi-
como uma verdade absoluta. Mas, mi- dente. Um pensador francês como Mar- co do Concílio Vaticano II. Destacou-se por ter
nha concepção humana desta verdade cel Gauchet pôde escrever que o Cris- questionado as doutrinas tradicionais e a infali-
é sempre parcial e relativa, segundo bilidade do Papa. O Vaticano proibiu-o de atuar
tianismo é “a religião de uma saída da como teólogo em 1979. Nessa época, foi nome-
as respectivas épocas da história. religião”. Mas, ele não confunde o fim ado para a cadeira de Teologia Ecumênica. Atu-
da função social da religião cristã com almente, mantém boas relações com a Igreja
IHU On-Line - Quais são os princípios o fim do Cristianismo como religião vi- e é presidente da Fundação de Ética Mundial,
em Tübingen. Um escritório da Fundação de
que devem regular o diálogo inter- vida, como utopia mobilizadora, como Ética Mundial funciona dentro do Instituto Hu-
religioso numa sociedade pós-meta- manitas Unisinos desde o segundo semestre do
física? Ainda há espaço para as reli-  Marcel Gauchet: filósofo francês, que, com ano passado. Küng dedica-se, atualmente, ao
Luc Ferry, é autor do livro O religioso após estudo das grandes religiões, sendo autor de
giões nas sociedades ultramodernas? a religião (Paris: Grasset. 2004). Escreveu obras, como A Igreja Católica, publicada pela
Se sim, qual o papel das religiões Le désenchantement du monde (Paris: Galli- editora Objetiva e Religiões do Mundo: em Bus-
nesta nova era? mard. 1985), La condition historique (Paris: ca dos Pontos Comuns, pela editora Verus. De
Stock, 2003) e Un monde désenchanté? (Paris: 21 a 26 de outubro de 2007 aconteceu o Ciclo
Claude Geffré - Eu não sei muito bem L’atelier. 2004). Confira, no sítio do IHU o se- de Conferências com Hans Küng - Ciência e fé
o que é preciso entender por “socieda- guinte material: Os direitos individuais parali- – por uma ética mundial, com a presença de
de pós-metafísica”. Mas constato que o sam a democracia, publicado em 20-02-2008, Hans Küng, realizado no campus da Unisinos e
Estamos num momento tanto de invenção da UFPR, bem como no Goethe-Institut Porto
projeto de uma sociedade secularizada religiosa como de saída da religião, entrevis- Alegre, na Universidade Católica de Brasília,
imanente a ela mesma coincide com ta com Marcel Gauchet, em 09-02-2008, e A na Universidade Cândido Mendes do Rio de
uma lógica totalitária. O Estado moder- Franca é um país profundamente deprimido, Janeiro e na Universidade Federal de Juiz de
publicado em 23-04-2007. Confira nesta edi- Fora – UFMG. Um dos objetivos do evento foi
no, descartando as legitimações religio- ção uma entrevista exclusiva com ele. (Nota difundir no Brasil a proposta e atuais resultados
sas, tinha a ambição de assegurar uma da IHU On-Line) do “Projeto de ética mundial”. Confira no site
do IHU, www.ihu.unisinos.br, a edição 240 da

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propor uma ética global no sentido de
que o diálogo inter-religioso deve tomar
em conta este interlocutor que é o hu-
O papel contemporâneo da religião
manismo secular, ou ainda o consenso da
consciência humana universal. É, pois, Para o teólogo alemão Karl-Josef Kuschel, sem o cumprimento
desejável que o futuro do diálogo inter- dos dez mandamentos de Deus, não haverá convivência pacífica
religioso esteja sob o signo de uma inter-
no mundo
pelação recíproca das morais religiosas e
das éticas seculares. Concretamente, isso
quer dizer que todas as religiões devem Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin | Tradução Luís Marcos Sander
reinterpretar seus textos fundadores e

“N
suas tradições em função das aspirações
fundamentais da consciência humana em ão há necessidade de ‘negociações’, e sim de intercâm-
matéria de direitos e de liberdades. Elas bio de valores, e, acima de tudo, de ensino religioso,
correm o risco de perecer se seus ensi- a fim de conscientizar as pessoas de que elas compar-
namentos e suas práticas estiverem em tilham uma origem comum e um destino comum”, de-
conflito com o consenso da consciência
fende Karl-Josef Kuschel ao comentar a relação entre
humana universal. Inversamente, o hu-
as religiões monoteístas. Para o teólogo, elas compartilham tradições e têm
manismo secular deve ficar à escuta do
tesouro ético do qual dão testemunho muitos aspectos em comum, “não só em relação à ética, mas também à Te-
as tradições religiosas. Alguns acreditam ologia, em especial sua crença em Deus criador, mantenedor e consumador
voluntariamente que a nova religião dos do ser humano”.
direitos do homem vai progressivamente Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, Kuschel frisa
tomar o lugar das religiões. Isso seria um que no mundo inteiro há “uma mescla de fenômenos pós e pré-religiosos”.
erro fatal para o futuro da humanidade. Ele cita o secularismo, o humanismo, o pluralismo religioso, lembra o hedo-
O cruel século XX nos demonstrou a trá- nismo e fala também do “retorno da religião” e do conceito pós-secular de
gica fragilidade da consciência humana Habermas. Entre tantas formas de seguir a Deus, ele lança o questionamento:
deixada a si mesma e que pode legitimar “Será que isso também se aplica à África e à Ásia e a muitos países da América
os piores crimes contra a dignidade da do Sul?” E complementa: “Se olharmos para o mundo muçulmano, encontra-
pessoa humana. Nós sabemos melhor o
remos combinações paradoxais, envolvendo o uso de tecnologias ultramoder-
que é intolerável, porque desumano. E,
nas e uma atitude de fundamentalismos ultratradicionais. Essas combinações
para o futuro, a vocação das grandes re-
ligiões do mundo é a de nos ajudar a de- inesperadas, essas misturas surpreendentes de elementos heterogêneos são
cifra o que é o humano autêntico. típicas do papel contemporâneo da religião”.
Karl-Josef Kuschel leciona Teologia da Cultura e do Diálogo Inter-religioso
na Faculdade de Teologia Católica da Universidade de Tübingen. É vice-presi-
dente da Fundação Weltethos (Fundação Ética Mundial). É autor de Jesus im
Spiegel der Weltliteratur. Eine Jahrhundertbilanz in Texten und Einführungen
(Imagens de Jesus na literature mundial. Textos e informações introdutórias
para um século em perspectiva) (Düsseldorf, 1999), Jud, Christ und Muselmann
vereinigt? Lessings “Nathan der Weise” (Judeu, cristão e mulçumano unidos?
Leia Mais... “Natã, o sábio”, de Lessing) (Düsseldorf, 2004). Ele escreveu o Cadernos Teo-
>> Claude Geffré concedeu outras entre-
logia Pública número 28, intitulado Fundamentação atual dos direitos huma-
vistas à IHU On-Line. Acesse no sítio do IHU. nos entre judeus, cristãos e muçulmanos: análises comparativas entre as reli-
Entrevista:
giões e problemas, e número 21, intitulado Bento XVI e Hans Küng: contexto e
• Religião com ou sem Deus? Um diálogo de Régis
Debray com um teólogo, publicada em 28-1-2007. perspectivas do encontro em Castel Gandolfo. Confira a entrevista.
A entrevista está disponível no link http://www.
ihu.unisinos.br/index.php?option=com_noticias&
Itemid=18&task=detalhe&id=4505;
• A secreta cumplicidade entre o humanismo de IHU On-Line - Em uma socieda- continentes do mundo e em diferen-
Jesus e o humanismo secular, publicada na IHU de moderna (pós-moderna ou até tes áreas dentro dos continentes. Nas
On-Line número 248, de 17-12-2007. A entrevis-
ta está disponível no link http://www.ihuonline. mesmo ultramoderna), como fica o grandes cidades do mundo inteiro,
unisinos.br/index.php?option=com_tema_capa&I papel da religião? Estamos em uma temos uma mescla de fenômenos pós
temid=23&task=detalhe&id=886&id_edicao=276. sociedade pós-religiosa também? e pré-religiosos. Temos secularismo e
Karl-Josef Kuschel - Sua pergunta humanismo em vários graus e temos
revista IHU On-Line, de 22-10-2007, intitulada
exige uma resposta que corresponda pluralismo religioso. Temos ainda a
“Projeto de Ética Mundial. Um debate”. (Nota aos desdobramentos muito diferentes influência das igrejas tradicionais
da IHU On-Line) que estão ocorrendo em diferentes e o florescimento de novas “seitas”
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e movimentos religiosos, especial- “Não haverá paz para os cristãos. Mas o relacionamen-
mente no Brasil. Após o colapso das to com “o outro” tem de partir justa-
ideologias tradicionais, temos muita mundial sem justiça mente desse centro. Por ser cristão,
desorientação e hedonismo e o que tenho interesse nas experiências reli-
os sociólogos da religião chamam de mundial” giosas do “outro”. Estou interessado
“retorno da religião”. O mais influen- e disposto a entender a alteridade do
te filósofo alemão contemporâneo, outro, a aprender da riqueza de suas
Jürgen Habermas, falou recentemen- tradições. A mais profunda motivação
compartilham grandes tradições umas
te de uma sociedade “pós-secular” para mim como cristão é a firme cren-
com as outras, estas religiões têm
em que nós (ao menos no Ocidente) ça de que todo ser humano é criado à
muito em comum, não só em relação
vivemos. Pergunto-me: será que isso imagem de Deus e a “regra de ouro”
à ética (os Dez Mandamentos também
também se aplica à África e à Ásia e ensinada por Jesus: “O que queres que
se encontram no Corão), mas também
a muitos países da América do Sul? Se façam a ti, faze-o tu aos outros”.
à Teologia, em especial sua crença
olharmos para o mundo muçulmano,
em Deus como criador, mantenedor
encontraremos combinações parado- IHU On-Line - Como os 10 Manda-
e consumador do ser humano. Não há
xais, envolvendo o uso de tecnolo- mentos de Deus recebidos por Moi-
necessidade de “negociações”, e sim
gias ultramodernas e uma atitude de sés perpassam o Cristianismo e as
de intercâmbio de valores, e, acima
fundamentalismos ultratradicionais. demais religiões monoteístas? Qual
de tudo, de ensino religioso, a fim de
Essas combinações inesperadas, essas a sua validade e pertinência hoje,
conscientizar as pessoas de que elas
misturas surpreendentes de elementos após milhares de anos após sua apre-
compartilham uma origem e um des-
heterogêneos são típicas do papel con- sentação ao mundo?
tino comuns.
temporâneo da religião. Karl-Josef Kuschel - Nossos leitores
e leitoras deveriam saber que man-
IHU On-Line - Qual a contribuição
IHU On-Line - O que o Cristianismo damentos cruciais da tradição judai-
que as religiões monoteístas podem
tem de específico ou “inegociável” co-cristão-muçulmana também são
oferecer à humanidade nesse mo-
em sua constituição interna que, sem compartilhados por adeptos de outras
mento de crise econômica, política e
isso, a religião se descaracterizaria? grandes religiões, como o hinduísmo,
ecológica?
Karl-Josef Kuschel - O Judaísmo, o budismo ou confucionismo. Na decla-
Karl-Josef Kuschel - Em todas as três
Cristianismo e o Islã estão vinculados ração intitulada “Uma ética global”,
religiões monoteístas, há pessoas que
desde o início. Eles compartilham en- do Parlamento das Religiões Mundiais
se dão conta de que a crença no mun-
tre si tradições que não compartilham (Chicago, 1993), eles foram listados
do como criação de Deus implica uma
com religiões de origem indiana ou pela primeira vez na história das re-
forte responsabilidade pela Terra. Caso
chinesa. O Novo Testamento não pode ligiões: compromisso com uma cultura
se leve a sério a crença de que o pla-
ser entendido sem o legado da Bíblia de não violência e respeito pela vida
neta não é propriedade do ser huma-
Hebraica e das tradições rabínicas, (“Não matarás”); compromisso com
no, mas uma dádiva de Deus, deixa-se
e o Corão, a revelação de Deus para uma cultura de solidariedade e uma
de lidar de maneira irresponsável com
o mundo de fala árabe, vê-se situa- ordem econômica justa (“Não furta-
os recursos deste mundo. Por causa de
do na linha da revelação de Deus aos rás”); compromisso com uma cultura
sua profunda convicção de que a Terra
judeus e aos cristãos. O Judaísmo, o de tolerância e uma vida de veraci-
é uma dádiva de Deus, os adeptos das
Cristianismo e o Islã são, com razão, dade (“Não mentirás”); compromisso
três religiões monoteístas deveriam
chamados de “religiões monoteístas, com uma cultura de direitos iguais e
ser a vanguarda na proteção do plane-
proféticas e abraâmicas”. Para rotular de parceria entre homens e mulheres
ta contra a exploração total.
esta característica distintiva, falo de (“Não adulterarás”). Sem esses man-
um “ecumenismo abraâmico” entre damentos básicos, não haverá convi-
IHU On-Line - É possível um diálogo
judeus, cristãos e muçulmanos. Como vência pacífica em nenhuma parte do
 Jürgen Habermas (1929): filósofo alemão, entre as diferentes religiões, sem
mundo. Visto que o ser humano – fa-
principal estudioso da segunda geração da Es- que se descaracterizem ou se digla-
cola de Frankfurt. Herdando as discussões da lando do ponto de vista ético – não
diem? Quais as condições deste diá-
Escola de Frankfurt, Habermas aponta a ação mudou ao longo de milhares de anos,
comunicativa como superação da razão ilumi- logo?
os mandamentos milenares ainda são
nista transformada num novo mito que encobre Karl-Josef Kuschel - Vou começar fa-
a dominação burguesa (razão instrumental). válidos.
lando dos limites. O diálogo inter-reli-
Seus estudos voltam-se para o conhecimento
e a ética. Confira no site do IHU, www.ihu.uni- gioso não tem o objetivo de dissolver
IHU On-Line - Em linhas gerais, que tipo
sinos.br, nas Notícias do dia, o debate entre a identidade da religião da pessoa.
Habermas e Joseph Ratzinger, o Papa Bento de ética o senhor reconhece nos gran-
As várias religiões têm reivindicações
XVI. Habermas, filósofo ateu, invoca uma nova des monoteísmos contemporâneos?
aliança entre fé e razão, mas de maneira di- mútuas a respeito da verdade. A Torá é
Karl-Josef Kuschel - Uma ética que
versa, como Bento XVI propôs na conferência definitivamente o centro do Judaísmo,
que realizou em 12-09-2006 na Universidade segue a observação de que não haverá
assim como o Corão o é para os mu-
de Regensburg. (Nota da IHU On-Line) paz mundial sem justiça mundial.
çulmanos, e a pessoa de Jesus Cristo,

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Diálogo inter-religioso: uma questão
de saúde pública e planetária
Na opinião de Joe Marçal, a sociedade deve pensar o papel da religião na sociedade
contemporânea e, com isso, “sair dessa letargia de espectadora resignada diante
de tudo”

Por Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin

“O
tema do diálogo inter-religioso hoje não é um requinte especulativo, também
não deveria visar a uma espécie de brechó religioso, em que cada tradição
vai buscar ‘curiosidades’ de outras para usar como ‘próteses’ ou enfeitar suas
lacunas”, escreve Joe Marçal em entrevista concedida por e-mail à IHU On-
Line. Para ele, o verdadeiro diálogo entre as religiões e o espaço para trocas
e negociações “se dão onde há um verdadeiro encontro entre alteridades”. Aprender a conviver com
as diferenças religiosas não se reduz a respeitar as tradições, as verdades, vaidades, mas sim a “vida
do planeta”.
Marçal reforça ainda que “a religião tem de se manter em sua função mediativa, sem fins lucrativos
(...) e não ceder à pretensão soteorológica”. E enfatiza: “Se algumas tradições religiosas puderem nos
ajudar a rezar com simplicidade e sabedoria enquanto nos ocupamos responsavelmente com a comple-
xidade de nosso tempo, já será grande coisa”.
Graduado em Teologia pela Faculdade Luterana de Teologia, mestre e doutor na mesma área pelo
Instituto Ecumênico de Pós-Graduação, Marçal atua no Núcleo de pesquisa Teologia e Sociedade do
Programa de Pós-Graduação da Faculdade de Teologia da Pontifícia Universidade Católica do Rio
Grande do Sul (PUCRS). Ele também coordena atividades da Secretaria Permanente do Fórum Mun-
dial de Teologia e Libertação e é pastor da Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB).
Confira a entrevista.

IHU On-Line - Que aspectos históri- lagem; segundo, o Helenismo, com seu ça, e mesmo a noção de “pessoa”. O
cos e culturais específicos o senhor espírito também criativo e sua sensi- que também vale destacar é que estas
destaca para a constituição, ao lon- bilidade estética, sua visão de mundo pessoas, a princípio, não comungavam
go do tempo, dos valores centrais da universalista e, ao mesmo tempo, sua de outra coisa que do fato de estarem
ética do Cristianismo? percepção trágica da condição huma- à margem da sociedade ou de serem
Joe Marçal - A ideia de “valores cen- na; dadas as condições políticas do solidárias a quem assim se encontrava.
trais” para mim remete ao que é ori- Império Romano, o Cristianismo nasce No decorrer da história do Cristianis-
ginário. Nesse sentido, o Novo Testa- assim, híbrido e sincrético. Mas não mo, tudo o que verdadeiramente re-
mento sintetiza os aspectos históricos nasce como “cristianismo”, e sim como forçou o que lhe é eticamente central,
e culturais mais importantes para a um acontecimento, um movimento em decorre disso.
ética do Cristianismo, considerando-o torno de um preso político, como gos-
como documento de um acontecimen- ta de salientar Frei Beto. A pessoa de IHU On-Line - O que o Cristianismo
to que se dá sob condições singulares. Jesus de Nazaré, seu carisma e o movi- tem de específico ou “inegociável”
Dessas condições, destacaria: primei- mento messiânico que alçou em nome em sua constituição interna que, sem
ro, o Judaísmo do primeiro século, do “Reino de Deus”, tornou possível isso, a religião se descaracterizaria?
com sua identidade marcada pelo mo- a experiência inusitada das primeiras Joe Marçal - O específico e inegociável
vimento profético, com sua tradição e comunidades – cuja comunhão euca- do Cristianismo não é uma idéia, um
imaginário messiânico – um judaísmo rística sacramentava um compromisso dogma, uma instituição ou documento,
que aprende, ao longo de gerações, a de bem comum e cuidado mútuo entre mas sim a comunhão com Jesus de Na-
se afirmar e lidar criativamente com pessoas. Ora, aqui vamos encontrar zaré, o Cristo. Não por acaso, o após-
sua tradição em meio a uma história valores centrais, como o da justiça, tolo Paulo, para explicar a dinâmica
marcada por espoliação, exílio e vassa- da graça ou da aceitação da diferen-  Paulo de Tarso (3 – 66 d. C.): nascido em

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organizativa das primeiras comunida- parte igrejas também pentecostais e o
des, usa da metáfora do “corpo” para
“Dadas as condições cristianismo oriental. Essas igrejas se
caracterizar o aspecto participativo e identificam umas com as outras ante
comunitário dessa religião. Entretanto
políticas do Império a exigência de uma cultura de paz. O
já se disse tanto sobre isso que as pa- tema do diálogo inter-religioso hoje
lavras se perdem no vazio. É preciso
Romano, o Cristianismo não é um requinte especulativo, e não
ter em mente que antes de se conce- deveria visar a uma espécie de brechó
ber como “religião”, o Cristianismo foi
nasce assim, híbrido e religioso, em que cada tradição vai
“seguimento”, foi “discipulado”, foi buscar “curiosidades” de outras para
“pertencimento” a uma causa de jus-
sincrético. Mas não usar como “próteses” ou enfeitar suas
tiça e esperança, alavancada por um lacunas. O diálogo entre as religiões
nazareno, à margem do império e da
nasce como hoje é uma questão de saúde públi-
religião oficial. Mas quando ganha ofi- ca e planetária, e deve ser encarado
cialidade, com Constantino, no século
‘cristianismo’, e sim como parte da responsabilidade social
III, o Cristianismo sofre talvez a mais das igrejas. A abertura e o espaço para
profunda descaracterização de sua
como um trocas e negociações se dão onde há
história, perpetuada por outras tan- um verdadeiro encontro entre alteri-
tas alianças imperialistas ao longo de
acontecimento, um dades: podemos e devemos discordar
vinte e um séculos. Simultaneamen- em questões teológicas, mas não sem
te, e graças a uma unidade não insti-
movimento em torno aprender a viver essas diferenças com
tucional, e sim mística, contra todas responsabilidade, pois o que está em
essas tendências de “normatização”,
de um preso político” jogo não são as tradições em si, suas
o Cristianismo manteve internamente verdades/virtudes/vaidades, mas a
sua vocação à diversidade, fazendo-se vida do planeta. Concretamente, há
necessariamente uma religião multi- va de subversão em sua constituição experiências muito significativas em
facetada e híbrida. Não existe “Cris- interna. No Cristianismo, o específico curso. O Conselho Mundial de Igrejas,
tianismo”, mas uma pluralidade de é a pessoa de Jesus, sua paixão, sua por exemplo, vem trabalhando o con-
cristianismos. Ora, não podia ser dife- presença mística e espiritual naque- ceito de diálogo inter-religioso como
rente: uma religião que confessa um les e naquelas que testemunham sua um instrumento colaborativo das reli-
preso político como Mestre e Salvador, causa. De resto, a história nos ensina: giões para a missão que as igrejas cris-
e que torna símbolo de sua fé e espe- sectarismos, reducionismos, funda- tãs reconhecem para si. Outra experi-
rança um dos piores instrumentos de mentalismos e burocratização sempre ência que vale mencionar é o Fórum
tortura já inventados – a cruz –, para estiveram presentes na história dessa Mundial de Teologia e Libertação que,
ser coerente, uma religião assim sem- religião, sem, contudo, ter conseguido seguindo o processo inaugurado pelos
pre manifestará uma dose significati- apagar sua autenticidade, manifesta- Fóruns Sociais Mundiais, vem contri-
Tarso, na Cilícia, hoje Turquia, era originaria- da de forma surpreendente, escanda- buindo para uma reflexão teológica
mente chamado de Saulo. Entretanto, é mais losa e contrária a toda expectativa. identificada com essa intuição, de que
conhecido como São Paulo, o Apóstolo. É con-
siderado por muitos cristãos como o mais im- a teologia cristã está, acima de tudo,
portante discípulo de Jesus e, depois de Jesus, IHU On-Line - Como o Cristianismo a serviço do mundo em sua busca de
a figura mais importante no desenvolvimento se relaciona com as demais tradições paz e justiça.
do Cristianismo nascente. Paulo de Tarso é um
apóstolo diferente dos demais. Primeiro por- religiosas? Há abertura e espaço para
que, ao contrário dos outros, não conheceu possíveis negociações ou troca de va- IHU On-Line - Que contribuição espe-
Jesus pessoalmente. Era um homem culto, fre- lores? cífica as religiões monoteístas podem
quentou uma escola em Jerusalém, fez carrei-
ra no Templo (era fariseu), onde foi sacerdote. Joe Marçal - Depende de que Cristia- dar para uma possível solução à crise
Educado em duas culturas (grega e judaica), nismo estamos falando. Há formas de que vivemos hoje, econômica global,
Paulo fez muito pela difusão do Cristianismo Cristianismo por aí que se querem mais ecológica, política?
entre os gentios e é considerado como uma das
principais fontes da doutrina da Igreja. As suas cristãs que o próprio Cristo. É triste, Joe Marçal - A tipologia de “monote-
Epístolas formam uma seção fundamental do mas a maioria das igrejas não consegue ísta” tem de ser usada com cautela.
Novo Testamento. Afirma-se que ele foi quem unanimidade nisso nem em seus seto- Desde que concebido em sua origina-
verdadeiramente transformou o cristianismo
numa nova religião, e não em mais numa seita res internos. Porém, de modo geral e lidade profética, o monoteísmo deu
do Judaísmo. Sobre Paulo de Tarso a IHU On- positivamente, temos de apontar para uma significativa contribuição ao mun-
Line 175, de 10-04-2006, dedicou o tema de um movimento que perpassa a história do contemporâneo. Primeiro, porque,
capa Paulo de Tarso e a contemporaneidade. A
versão encontra-se disponível para download das igrejas, em prol da unidade entre para os profetas, Deus não surge como
no sítio do IHU, www.ihu.unisinos.br. A última cristãos e também pelo diálogo entre solução de crise, mas é ele quem pro-
edição da IHU On-Line em 2008, número 286, diferentes tradições religiosas. Esse move a crise: os profetas anunciaram
traz como matéria de capa o pensamento de
Paulo de Tarso e sua influência em nossos dias. movimento é representado por um o Deus zeloso, que põe termo a toda
(Nota da IHU On-Line) Cristianismo histórico, do qual fazem forma de agressão contra a vida e que

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definitivamente age em favor das víti- “O monoteísmo ria e não pública. Sintoma não cura.
mas. A violência ganha espaço quando Aí, já não posso deixar de inverter a
falta zelo – uma capacidade sagrada de profético poderia pergunta: na religião moderna, como
se deixar indignar por um ímpeto de fica o papel da sociedade? A socieda-
justiça. Em segundo lugar, os profetas ajudar a sociedade a de é que tem de pensar seus papéis
não falaram em monoteísmo, anuncia- e, pensando-se, sair dessa letargia
ram sim o “Deus vivo”. É interessante consumir menos de espectadora resignada diante de
que a intuição deles não era que de- tudo. E não digo isso por causa da
veria haver mais religião para que as religiosidade e se teologia; mas porque é feio, é des-
coisas fossem para melhor, mas o con- caradamente enganoso e talvez seja
trário: eles clamam por uma economia escandalizar de forma mesmo inconstitucional. O problema
de religião, denunciam a exacerbação é que no Brasil não se discute reli-
religiosa e chamam a uma fé coerente mais criativa e gião. Ao mesmo tempo, para pensar
e, digamos, “sustentável”. Ocorre-me a sociedade no Brasil, temos de pen-
o criativo título de um filme, “Fé de- produtiva” sar a religião junto. Não ajuda seguir
mais não cheira bem”, estrelado por a linha de raciocínio importada da
Steve Martin – acho que, em nossos Europa, que polariza e isola ambas
dias, o monoteísmo profético poderia – a universidade brasileira, aos pou-
ajudar a sociedade a consumir menos prisão, pouco antes de ser assassina- cos, percebe que isso não dá conta
religiosidade e se escandalizar de for- do pelos nazistas: “em dias como os de nosso contexto. Nossa laicidade,
ma mais criativa e produtiva. Veja o nossos, a fé deve se voltar à oração tão moderna, se rende fácil demais
primeiro mandamento: “Eu sou o Se- simples”. É o caminho para a sabedo- ao apelo religioso. Nessas condições,
nhor teu Deus, não terás outros deuses ria, penso. Bastante arriscado, con- urge uma “santidade” social, um es-
diante de mim”. Pronto. A partir dis- siderando especialmente a trajetória pírito profético de “resistência” à
so, como disse Agostinho, “ama, e faz de Bonhoeffer, executado em função exacerbação religiosa. Uma resistên-
o que quiser” – na dúvida, há outros de sua oração simples, que o leva a cia comedida talvez, mas que seja
nove mandamentos para ajudar nisso. comungar da resistência a Hitler e inteligente. O que cabe às religiões?
a exercer seu cristianismo como tão A sociedade deve dizê-lo: as multi-
IHU On-Line - Em uma sociedade mo- somente serviço à sociedade. Curio- dões, em momentos de crise e “pas-
derna (pós-moderna ou até mesmo samente, enquanto lido com essas sagem”, procuram as benesses de um
ultramoderna), como fica o papel da questões, assisto em minha televisão moralismo fácil e pragmático. A reli-
religião? a uma enxurrada de religião midiáti- gião tem de se manter em sua fun-
Joe Marçal - Sempre me impressio- ca. Outro tipo de discurso religioso ção mediativa, sem fins lucrativos,
nam ocasiões em que pessoas falam relativamente novo, mas de um mau seja de fiéis, dinheiro ou qualquer
sobre sua própria religião. As mais gosto sem precedentes. É espantoso valor simbólico, e não ceder à pre-
verdadeiras, via de regra, são aque- como a religião, nos veículos de comu- tensão soteorológica. Veja que isso
las que falam de uma fé simples. As- nicação de massa, se torna publicitá- rende uma pauta de política públi-
sumem seus mitos, sua tradição, sem  Adolf Hitler (1889-1945): ditador austríaco. ca. Em meio a isso, se algumas tra-
O termo Führer foi o título adotado por Hitler
se preocuparem em saber se é mito para designar-se o chefe máximo do Reich e do dições religiosas puderem nos ajudar
ou tradição. É religião, e pronto. Partido Nazista. O nome significa o chefe má- a rezar com simplicidade e sabedoria
Quanto mais o discurso se sofistica, ximo de todas as organizações militares e polí- enquanto nos ocupamos responsavel-
ticas alemãs, e quer dizer “condutor”, “guia”
se “moderniza” arguindo em favor da ou “líder”. Suas teses racistas e antissemitas, mente com a complexidade de nosso
crença, mais ouvimos sem entender, bem como seus objetivos para a Alemanha tempo, já será grande coisa.
e se entendemos, não há sabedoria ficaram patentes no seu livro de 1924, Mein
Kampf (Minha Luta). Atualmente, discute-se
nas palavras, quando muito, argu- se essa obra deve ser liberada para uma edi-
mentos. Sobre o papel da religião, ção crítica do texto. No período da ditadura de
Dietrich Bonhoeffer recomenda a Hitler, os judeus e outros grupos minoritários
seu afilhado, numa carta escrita na
considerados “indesejados”, como ciganos e Leia Mais...
negros, foram perseguidos e exterminados no
 Dietrich Bonhoeffer (1906-1945): teólogo, que se convencionou chamar de Holocausto. >> Joe Marçal já concedeu outra entrevis-
pastor luterano, membro da resistência anti- Cometeu o suicídio no seu Quartel-General ta à IHU On-Line. O material está disponível no
nazista alemã e membro fundador da Igreja (o Führerbunker) em Berlim, com o Exército sítio do IHU (www.ihu.unisinos.br).
Confessante, ala da igreja evangélica contrá- Soviético a poucos quarteirões de distância. A Entrevista:
ria à política nazista. Bonhoeffer envolveu-se edição 145 da IHU On-Line, de 13 de junho de • Da ingenuidade ao cinismo: o Brasil de Sér-
na trama da “Abwehr” para assassinar Hitler. 2005, comentou na editoria Filme da Semana, gio Bianchi. Edição número 249, de 03-03-2008,
Em março de 1943, foi preso e acabou sendo o filme dirigido por Oliver Hirschbiegel, A Que- intitulada mulheres e a sociedade contempo-
enforcado, pouco tempo antes do próprio Hi- da – as últimas horas de Hitler. A edição 265, rânea. Conquistas e desafios. Disponível no
tler cometer suicídio. É autor de, entre outros, intitulada Nazisimo: a legitimação da irracio- link http://www.ihuonline.unisinos.br/index.
Ética (6 ed., São Leopoldo: Sinodal, 1985) e nalidade e da barbárie, de 21-07-2008, trata php?option=com_eventos&Itemid=26&task=even
Resistência e Submissão: cartas e anotações dos 75 anos de ascensão de Hitler ao poder. to&id=170&id_edicao=277.
escritas na prisão (São Leopoldo: Sinodal, (Nota da IHU On-Line)
(Nota da IHU On-Line)
2003). ���������
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As religiões não são mais determinantes para a vida coletiva
Na visão do filósofo Marcel Gauchet, não estamos numa sociedade pós-metafísica,
e sim numa sociedade em que ela é opcional

Por Márcia Junges e Patricia Fachin | Tradução Benno Dischinger

“A
fé desapareceu ou está a ponto de desaparecer. Os ‘crentes’ e principalmente os
‘praticantes’ são, por esse fato, menos numerosos. Mas em geral, eles têm uma fé
muito mais motivada pessoalmente e muito mais esclarecida intelectualmente”,
enfatiza o filósofo francês Marcel Gauchet à IHU On-Line. Autor do livro Depois da
religião. O que será do homem depois que a religião deixará de ditar a lei?, escri-
to em parceria com o filósofo Luc Ferry, Gauchet diz que “as religiões guardam toda a sua importância
aos olhos de seus fiéis. Entretanto, elas não são mais determinantes para a vida coletiva”.
Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele diz ainda que a estrutura religiosa e “a maneira
pela qual o religioso organizou as comunidades humanas até uma data relativamente recente” per-
tencem ao passado.
Ao comentar o papel da religião na pós-modernidade, o filósofo revela ter dúvidas sobre o valor
da noção de pós-modernidade e sustenta que ela tem um erro de diagnóstico. “Ela toma uma ruptura
na modernidade por uma ruptura com a modernidade. Dito isso, o novo curso das mentalidades e das
ideias que ela designa corresponde a uma realidade.” E complementa: “A dita pós-modernidade não
pensa o religioso. (...) Ela lhe dá um lugar unicamente sob o título da emoção e da afetividade”.
Marcel Gauchet é diretor de estudos na École dês Hautes Études em Sciences Sociales (EHESS) e
redator-chefe da revista Le Débat. Publicou, entre outros, La Religion dans La démocratie (Galli-
mard, 1998), La Démocratie contre elle-même (Gallimard, 2002), La Condition historique (Stock,
2003) e Le désenchantement du monde (Paris: Gallimard. 1985), sua obra principal. Escreveu, tam-
bém, La démocratie d’une crise à l’autre (Cecile Defaut: Paris, 2007), L’Avènement de la démocratie
(Gallimard, Paris, 2007) e Les conditions de l’éducation (en collaboration avec Marie-Claude Blais et
Dominique Ottavi, Stock: Paris, 2008). Confira a entrevista.

IHU On-Line - No livro Depois da re- saparecimento da crença religiosa. Ele a noteístas? Elas ainda ganham impor-
ligião. O que será do homem depois modifica, todavia, porque uma boa par- tância, por exemplo, no diálogo in-
que a religião deixará de ditar a te da religiosidade tradicional consistia ter-religioso?
lei?, o senhor afirma que o religioso numa espécie de conformismo social, de Marcel Gauchet - Parece-me difícil falar
pertence ao passado. Pode explicar- adesão a uma ordem ritual e cerimonial, das “religiões monoteístas” em geral,
nos essa ideia? sem muita reflexão metafísica nem mes- pois a situação do Judaísmo e mais ain-
Marcel Gauchet - Eu proponho clarificar mo de forte sentimento do sobrenatural da a do Islã me parece muito diferente
a disputa sem fim entre os partidários da ou do divino. O que os cristãos chamam daquela do Cristianismo. Aliás, isso é em
tese da morte de Deus e os partidários de “a fé” desapareceu ou está a ponto parte o que constitui a dificuldade do
da tese do retorno do religioso, introdu- de desaparecer. Os “crentes” e princi- diálogo inter-religioso. Falamos da Euro-
zindo uma distinção entre a estrutura e palmente os “praticantes” são, por esse pa, onde o fenômeno da saída da religião
a crença religiosa. O que “pertence ao fato, menos numerosos. Mas em geral, tem seu destaque mais avançado e se vê
passado” como você diz, é a estrutura eles têm uma fé muito mais motivada melhor isso. O Cristianismo, católico ou
religiosa. É a maneira pela qual o religio- pessoalmente e muito mais esclarecida protestante, deixou de ser um quadro
so organizou as comunidades humanas intelectualmente. intelectual e simbólico englobante. Ele
até uma data relativamente recente. A se tornou uma família espiritual, entre
saída ocidental da religião, após o sécu- IHU On-Line - Se a religião faz par- outras, no seio de uma sociedade filoso-
lo XVI, consistiu em inventar uma forma te de tradições passadas e se a pós- ficamente pluralista e na qual os elos so-
diferente da comunidade humana. Mas modernidade está caracterizada por ciais estão baseados na livre adesão dos
este cancelamento da estruturação reli- crenças individuais, que futuro o indivíduos. Aos olhos de seus adeptos, a
giosa das sociedades não significa o de- senhor vislumbra para religiões mo- religião estava ao lado de Estado, daqui-

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lo que define a ordem e a legitimidade lhe interessa. cimento do Estado. Este papel público
da coletividade em seu conjunto, mes- realmente não significa que as religiões
mo quando havia separação da Igreja e IHU On-Line – Mas então podemos estariam a ponto de reconquistar sua
do Estado, como na França. Agora ela pensar numa sociedade pós-metafí- posição legisladora anterior. Todavia, as
passou para o lado da sociedade civil. As sica? opiniões religiosas são livres em se ma-
Igrejas são componentes da sociedade Marcel Gauchet – A meu ver, nós não nifestar publicamente como as outras e
civil, sob o mesmo título que os partidos estamos numa sociedade pós-metafísi- reclamar sua parte no concerto coletivo.
políticos, os sindicatos ou as sociedades ca, mas numa sociedade em que a pós- Elas são um componente, não o árbitro
de pensamento. Esta é uma mudança de metafísica é opcional, o que é muito supremo.
posição fundamental. As religiões guar- diferente. No que se refere às identidades pes-
dam toda a sua importância aos olhos de soais, às quais a fé religiosa vem respon-
seus fiéis. Entretanto, elas não são mais IHU On-Line - Se Deus morreu como der, é preciso procurar em duas dire-
determinantes para a vida coletiva. instância organizadora da sociedade, ções: de um lado, as dificuldades muito
instituidora da lei, como é dito em grandes de viver sua condição de indi-
IHU On-Line - Como o senhor define seu livro Depois da religião, que es- víduo numa sociedade de indivíduos, e,
o novo Cristianismo baseado na fé paço Ele ocupa na sociedade atual e do outro lado, no plano intelectual, os
dos indivíduos? Em que sentido essa limites mais visíveis da explicação cien-
nova perspectiva, fundada na adesão
pessoal, muda a característica e a
“Se Deus não comanda tífica do mundo. Por isso não creio numa
situação pós-metafísica. A atitude meta-
essência do Cristianismo, tal como é
entendido até o momento?
mais os homens, se Ele física continua sendo uma opção aber-
ta. Ninguém é obrigado a adotá-la, mas
Marcel Gauchet - É muito mais difícil
captar como essa mudança política e
não lhes dá mais uma sua potencialidade continua intacta. Ela
está até mesmo a ponto de ganhar uma
sociológica repercute sobre a substância
da fé, sobre a essência íntima do Cristia-
lei, como os deuses nova credibilidade.

nismo. Ela se traduz, parece-me, por um


sentimento mais intenso da alteridade do
sempre o haviam feito IHU On-Line - O senhor defende ain-
da a ideia de um duplo processo de
divino, de sua exterioridade em relação
ao mundo humano. Se Deus não coman-
através da história, “saída da religião” e de “individua-
lização do crer”. Pode explicar-nos
da mais os homens, se Ele não lhes dá
mais uma lei, como os deuses sempre o
então é preciso melhor este último conceito e como
ele se aplica na sociedade moderna?
haviam feito através da história, então é
preciso pensá-lo diversamente do modo
pensá-lo diversamente Esse é um fenômeno da pós-moder-
nidade?
como se fazia. Isso é ainda mais miste-
rioso do que antes. Sua relação com os
do modo como se fazia. Marcel Gauchet - Já defini o conceito
de saída da religião – a saída da estrutu-
homens é ainda mais problemática. Isso é ainda mais ração religiosa do mundo. “A individua-
lização do crer” designa uma mudança
IHU On-Line - De que forma a pós-
modernidade tende a pensar o reli-
misterioso do que capital no acesso ao religioso. Na socie-
dade estruturada pela religião, a cren-
gioso?
Marcel Gauchet - Devo começar por
antes. Sua relação com ça religiosa nos chegava naturalmente
com a pertença social. Ela se confundia
dizer que tenho grandes dúvidas sobre
o valor desta noção de pós-modernida-
os homens é ainda mais com o senso da comunidade e ela era,
aliás, transmitida essencialmente pelo
de. Vejo muito bem o que ela procura
descrever, mas creio que ela introduz
problemática” canal das famílias. Isso também queria
dizer que a religião tinha por ela a au-
um erro de diagnóstico. Ela toma uma toridade da sociedade, a autoridade de
ruptura na modernidade por uma ruptu- algo exterior e superior à vontade das
ra com a modernidade. Dito isso, o novo como Ele se manifesta no coração do pessoas. A novidade é que doravante
curso das mentalidades e das ideias que humano? a sociedade não comunica nada como
ela designa corresponde a uma realida- Marcel Gauchet - O paradoxo que enga- mensagem religiosa. A crença diz res-
de. Chamemo-la de pós-modernidade, na muitos observadores é que o cancela- peito a um ato de adesão estritamente
se assim o quiseres. A dita pós-moderni- mento do papel organizador ou estrutu- pessoal, fora da existência comunitária,
dade não pensa o religioso. Ela nada tem rante da religião não a impede de ter uma ou mesmo contra ela. A figura ideal do
a dizer a respeito. Ela lhe dá um lugar visibilidade eventualmente acrescida no crente de hoje é o convertido, cuja es-
unicamente sob o título da emoção e da espaço público. Esta existe, porém, em colha se refere a um engajamento pu-
afetividade. Mas o que há de especifica- nome das identidades que constituem a ramente interior. Disso também resulta
mente religioso nesta experiência não sociedade civil e que exigem o reconhe- que esses novos crentes individualiza-

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dos não se submetam voluntariamente
a uma autoridade exterior, qualquer O retorno do religioso
que ela seja. Eles se sentem indepen-
dentes, tanto em face das Igrejas como Para o cientista social Michael Löwy, a religião ainda desempe-
da autoridade da sociedade.
nha um papel essencialmente conservador na sociedade atual
IHU On-Line - Qual é o lugar do sagra-
do na pós-metafísica? Por Márcia Junges, Moisés Sbardelotto e Patricia Fachin | Tradução Benno Dischinger
Marcel Gauchet - O sagrado é mais

“N
outra dessas noções que se lucraria
em definir mais rigorosamente. Eu ossa sociedade está longe de ser ‘pós-metafísica’”, afir-
me lanço: há algo sagrado quando há ma Michael Löwy à IHU On-Line. Para ele, a hipótese de
uma materialização do além no aqui- uma sociedade pós-religiosa “se revelou uma ilusão”. E
em-baixo. A eucaristia é o sagrado por
enfatiza: “A religião continua a jogar um papel muito
excelência dos católicos nesse sen-
importante, talvez mais importante hoje do que há al-
tido. Sob este ponto de vista, existe
um inegável recuo do sagrado. O dis- guns anos”.
tanciamento entre o divino e o huma- Na entrevista que segue, concedida à IHU On-Line por e-mail, entre uma
no, de que eu falava há pouco, torna série de viagens, o brasileiro radicado na França há mais de 40 anos diz que o
improvável para os próprios crentes a “consenso” para a formulação de uma ética universal entre as religiões não é o
manifestação concreta do sobrenatu- entrave para tal prática. Para ele, é preciso apostar em “uma convergência em
ral num objeto, num lugar ou numa torno de princípios universais com caráter emancipador, em oposição ao mons-
pessoa. Há menos coisas que podem truoso sistema de dominação e destruição do meio ambiente em que vivemos:
ser tidas como sagradas. Mas, se se o capitalismo”.
fala tanto do sagrado, a despeito des- Löwy é Cientista Social e leciona na Escola de Altos Estudos em Ciências
se movimento de recuo, é por causa da Sociais, da Universidade de Paris. Entre sua vasta obra, destacamos Ideo-
busca de sensações e de emoções dos
logias e Ciência Social. Elementos para uma análise marxista (São Paulo:
humanos “pós-modernos”. Não lhes
Cortez, 1985), As aventuras de Karl Marx contra o Barão de Münchhausen
basta crer, eles querem experimentar,
sentir, viver. É uma nostalgia subjetiva (São Paulo: Cortez, 1998), A estrela da manhã. Surrealismo e marxismo (Rio
de algo cuja objetividade se desvane- de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002), Walter Benjamin: Aviso de Incêndio.
ce inexoravelmente. Uma leitura das teses “Sobre o conceito de história” (São Paulo: Boitempo,
2005) e Lucien Goldmann, ou a dialética da totalidade (São Paulo: Boitempo,
2005). Confira a entrevista.

Leia Mais...
>> Marcel Gauchet já concedeu outra en- IHU On-Line – Qual é o papel das re- giosa? O que isso significa?
trevista à IHU On-Line. Ela está disponível no ligiões atualmente? Numa socieda- Michael Löwy – Esta hipótese, for-
endereço eletrônico www.ihu.unisinos.br
de pós-metafísica, qual é o espaço mulada há algumas décadas - a “se-
• Crise do crescimento da democracia: Todos so- para a religião? cularização” das sociedades - se re-
mos livres, mas já não temos mais nenhum poder Michael Löwy – A religião não é sem- velou uma ilusão. A religião continua
coletivo. Edição número 250, intitulada Maio de
1968: 40 anos depois, de 10-03-2008. pre revolucionária. Com algumas a ocupar um papel muito importan-
Sobre o pensamento de Gauchet, o sítio do IHU exceções - como o Cristianismo da te, talvez mais importante hoje do
publicou os seguintes artigos e entrevistas, que libertação na America Latina, e seus que há alguns anos. Isso vale não só
podem ser acessados através da nossa página
eletrônica: equivalentes em outras religiões -, para o mundo muçulmano, mas tam-
* Os direitos individuais paralisam a democracia. seu papel é essencialmente conser- bém para a América do Norte, a Amé-
Artigo de Marcel Gauchet, disponível em http:// vador, e muitas vezes reacionário. rica Latina e a África. A Europa tal-
www.ihu.unisinos.br/index.php?option=com_not
icias&Itemid=18&task=detalhe&id=12215; Como dizia bem Marx, a religião vez seja uma exceção, mas mesmo
* Estamos num momento tanto de invenção reli- pode ser tanto um protesto contra na Europa assistimos a uma “volta do
giosa como de saída da religião. Entrevista com a miséria real, quanto um “ópio do religioso”.
Marcel Gauchet, disponível em http://www.ihu.
unisinos.br/index.php?option=com_noticias&Ite povo”. Isso continua sendo valido, já
mid=18&task=detalhe&id=11609; que nossa sociedade está longe de IHU On-Line - Quais as principais
* Os franceses ainda acreditam na política e no ser “pós-metafísica”. tendências e os grandes movimen-
Estado. Entrevista com Marcel Gauchet, disponí-
vel no endereço http://www.ihu.unisinos.br/in- tos das religiões monoteístas com
dex.php?option=com_noticias&Itemid=18&task= IHU On-Line - Podemos dizer que relação ao ser humano contempo-
detalhe&id=4096. estamos numa sociedade pós-reli- râneo?

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Michael Löwy – Cada grande religião

Acesse outras
monoteísta se divide em correntes te-
ocráticas, autoritárias e intolerantes e
correntes ecumênicas abertas ao diá-
logo com outras identidades e respeito
a elas. As religiões também se dividem
em correntes conservadoras ou liber-

edições da
tárias segundo sua posição em relação
ao capitalismo, ao neoliberalismo e à
luta dos pobres por sua emancipação.

IHU On-Line.
IHU On-Line - A Teologia da Liberta-
ção pode se apresentar como uma
“releitura do Cristianismo”?
Michael Löwy – O Cristianismo da Li-
bertação - vasto movimento social
que encontrou na Teologia da Liber-
tação sua expressão mais sistemática
- é uma releitura do Cristianismo à luz
da situação dos pobres na América La-
tina e nos países do Sul, referindo-se
em particular ao paradigma do Êxodo,
aos profetas bíblicos e a práticas das
primeiras comunidades cristãs. O Cris-
tianismo da Libertação utiliza alguns
conceitos essenciais do marxismo, ao
mesmo tempo para entender as cau-
sas da pobreza - o capitalismo - e para
imaginar uma utopia social, uma socie-
dade sem classes, livre e igualitária.

IHU On-Line - Hans Küng, teólogo ale-


mão, defende uma ética global entre
as religiões e afirma que elas devem
seguir princípios universais. Quais
são as possibilidades e os entraves
para esse consenso? Isso é possível?
Michael Löwy – O problema não é o
“consenso” em geral, mas uma conver-
gência sobre os princípios universais
com caráter emancipador, em oposi-
ção ao monstruoso sistema de domina-
ção e destruição do meio ambiente em
que vivemos: o capitalismo.

IHU On-Line - Que contribuições as


religiões monoteístas podem ofere-
cer para a humanidade neste momen-
to de crise (ambiental, financeira, de
valores) em que se encontram?
Elas estão disponíveis na
Michael Löwy – Cada religião têm in-
divíduos, grupos, correntes, que pro- página eletrônica
põem práticas emancipadoras, que

www.ihu.unisinos.br
criticam a civilização industrial capi-
talista, que apontam para alternativas
radicais, ecológicas, humanistas, so-
cialistas, democráticas.

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Participe do Colóquio
Internacional A ética da
psicanálise: Lacan estaria

justificado em dizer “não

cedas de teu desejo”? [ne

cède pas sur ton désir]?

Inscrições abertas no site


www.ihu.unisinos.br

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Entrevista da Semana
“Os mercados financeiros são o coração
pulsante do capitalismo cognitivo”
Na visão de Andrea Fumagalli, a atual crise financeira é uma crise sistêmica, de todo
o sistema capitalista, que vem se desenvolvendo desde a década de 1990 até agora

Por Graziela Wolfart

P
ara o economista italiano Andrea Fumagalli, “a governança política e social baseada na dinâ-
mica livre dos mercados financeiros não tem condições de garantir uma distribuição de renda
adequada em relação à nova forma de acumulação e valorização do capitalismo cognitivo”.
Na entrevista que segue, concedida por e-mail para a IHU On-Line, ele diz que “a estrutura
da propriedade privada parece inadequada para desenvolver a cooperação social que é ne-
cessária para melhorar o processo de acumulação, cada vez mais baseado em conhecimento, relações e
aprendizagem”. Fumagalli explica que “a compensação entre a propriedade intelectual e a necessidade
de livre circulação e difusão do conhecimento é uma das causas da atual instabilidade estrutural. O
conhecimento é um bem ‘comum’, e se ele é privatizado, sua valorização social diminui”.
Ele explica por que considera que, atualmente, os mercados financeiros são o coração pulsante do
capitalismo cognitivo. “Eles financiam a atividade da acumulação: a liquidez atraída para os mercados fi-
nanceiros recompensa a reestruturação da produção que visa à exploração do conhecimento e ao controle
de espaços externos aos negócios tradicionais”.
Doutor em Economia Política, Andrea Fumagalli é atualmente professor no Departamento de Economia
Política e Método Quantitativo da Faculdade de Economia e Comércio da Università di Pavia, Itália. Seus
temas de interesse são teoria macroeconômica, teoria do circuito monetário; economia da inovação e da
indústria, flexibilidade do mercado de trabalho e mutação do capitalismo contemporâneo: o paradigma
do capitalismo cognitivo, entre outros. Dentre seus vários livros publicados, citamos: Il lavoro. Nuovo e
vecchio sfruttamento (Milão: Punto Rosso, 2006), Bioeconomia e capitalismo cognitivo, Verso un nuovo
paradigma di accumulazione (Roma: Carocci Editore, 2007), e La crisi economica globale (Verona: Ombre
corte, 2009). Confira a entrevista.

IHU On-Line - O senhor pode falar cetta, Federico Chicchi, Andrea Fu- IHU On-Line - O capitalismo está
brevemente sobre as dez teses que magalli, Stefano Lucarelli, Christian mesmo em crise? O que a caracteri-
o grupo de pesquisadores da Univer- Marazzi, Sandro Mezzadra, Cristina za? Ela representa também a crise da
sidade Nômade levantaram recente- Morini, Antonio Negri, Gigi Roggero e teoria neoliberal?
mente no sentido de tentar compre- Carlo Vercellone participaram dele, Andrea Fumagalli - Antes de mais
ender a atual crise internacional? e eu redigi o texto. Podemos dizer nada, pensamos que a atual crise fi-
Andrea Fumagalli - As dez teses são que ele é o resultado do “intelecto nanceira é uma crise sistêmica. É a
fruto de uma discussão coletiva que geral” do movimento italiano, es- crise de todo o sistema capitalista que
começou com um seminário sobre a pecialmente daquela parte que tem vem se desenvolvendo desde a década
crise financeira, organizado pela Uni- uma abordagem mais heterodoxa da de 1990 até agora. Isso tem a ver com o
versidade Nômade, em Bolonha, nos análise marxista e provém da tradi- fato de que, atualmente, os mercados
dias 12 e 13 de setembro de 2008 e ção do “operaísmo” (novo movimento financeiros são o coração pulsante do
que continua até hoje. Marco Bas- operário). capitalismo cognitivo. Eles financiam

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a atividade da acumulação: a liquidez através do Estado social, traduzem-se cético quanto a ela, porque esta cri-
atraída para os mercados financeiros em programas estatais de saúde e ins- se necessita de uma solução de curto
recompensa a reestruturação da pro- tituições educacionais públicas), subs- prazo e respostas políticas imediatas
dução que visa à exploração do conhe- tituem o Estado como principal prove- e gerais.
cimento e ao controle de espaços ex- dor de seguridade social e bem-estar.
ternos aos negócios tradicionais. Desse ponto de vista, eles representam IHU On-Line - Com esta crise, que
Isso quer dizer que as origens da a privatização da esfera reprodutiva outros valores ganham mais espaço
crise e suas caracterizações têm a ver da vida. Por isso, exercem biopoder. A no cenário atual? Qual o peso, por
com os seguintes fatos: crise financeira é, consequentemente, exemplo, que adquire o capitalismo
1. A governança política e social uma crise da estrutura do atual biopo- cognitivo?
baseada na dinâmica livre dos mer- der capitalista. Andrea Fumagalli - Penso que esta é
cados financeiros não tem condições a crise da implementação do capitalis-
de garantir uma distribuição de renda IHU On-Line - Que alternativas po- mo cognitivo, como a crise de 1929 foi
adequada em relação à nova forma de demos imaginar neste momento, do a crise do taylorismo em seu início. A
acumulação e valorização do capitalis- ponto de vista econômico? atual crise financeira, que se segue a
mo cognitivo. A negociação individual, Andrea Fumagalli - Pensamos que atu- outras ocorridas nos últimos 15 anos,
a incerteza de receitas estáveis por almente não há condições de imple- destaca, de forma sistemática e estru-
causa do aumento da precariedade, mentar uma espécie de New Deal ins- tural, a inconsistência do mecanismo
a redução de salários, principalmen- titucionalizado (como foi possível na regulatório de acumulação e distribui-
te nos países ocidentais, favorecem o década de 1930), isto é, um New Deal ção que o capitalismo cognitivo ten-
aumento de uma dívida especulativa e resultante de uma conciliação política tou se dar até agora. Além disso, com
instável, de um lado, e afetam negati- entre o trabalho e o capital. Segue-se o advento do capitalismo cognitivo, o
vamente a exploração das economias que podemos nos deparar com duas processo de valorização perde todas as
de ganho e de escala (portanto, os ga- soluções possíveis: a primeira é um unidades de mensuração quantitativa
nhos de produtividade), por outro. aumento na instabilidade geopolítica ligadas à produção material. Essas me-
2. A estrutura da propriedade pri- internacional (rumo a uma nova guer- dições eram, de certa forma, definidas
vada parece inadequada para desen- pelo conteúdo do trabalho necessário
volver a cooperação social que é ne- “Os mercados para a produção de mercadorias, men-
cessária para melhorar o processo de surável com base na tangibilidade da
acumulação, cada vez mais baseado financeiros (...) produção e no tempo necessário para
em conhecimento, relações e aprendi- a produção. Com o advento do capita-
zagem (numa só palavra, no intelecto substituem o Estado lismo cognitivo, a valorização tende a
geral). A compensação entre a pro- ser desencadeada em diferentes for-
priedade intelectual (o tipo de pro- como principal provedor mas de trabalho ou mão de obra que
priedade privada que substituiu par- cortam as horas de trabalho efetiva-
cialmente a propriedade privada de de seguridade social e mente verificadas para coincidir cada
maquinário) e a necessidade de livre vez mais com o tempo geral da vida.
circulação e difusão do conhecimento bem-estar” Atualmente, o valor do trabalho ou da
é uma das causas da atual instabilida- mão de obra está na base da acumu-
de estrutural. O conhecimento é um ra global?), especialmente a fim de lação capitalista e é também o valor
bem “comum”, e se ele é privatizado, definir um novo equilíbrio hierárquico do conhecimento, dos afetos e das
sua valorização social diminui. econômico global, em que os EUA per- relações, do imaginário e do simbóli-
derão o controle unilateral das finan- co. O resultado dessas transformações
IHU On-Line - Quais as consequências ças e da tecnologia. A segunda é que biopolíticas é a crise da medição tradi-
do fato de esta crise ser sistêmica? um New Deal, que se baseie numa for- cional do valor do trabalho ou da mão
Andrea Fumagalli – A principal é que ma nova de distribuição de renda (por de obra e, junto com ela, a crise da
ela necessita de intervenções sistêmi- exemplo, renda básica) e ultrapasse a forma do lucro. Uma solução “capita-
cas e estruturais. dicotomia entre propriedade privada e lista” possível era a medição da explo-
estatal rumo a uma propriedade “co- ração da cooperação social e do inte-
IHU On-Line - O que significa a crise mum”, seja imposto pela força do mo- lecto geral por meio da dinâmica dos
da estrutura do biopoder capitalista vimento social, isto é, um New Deal a valores de mercado. Dessa maneira,
atual? partir de baixo. Uma terceira oportu- o lucro era transformado em renda, e
Andrea Fumagalli - Os mercados fi- nidade pode residir no desenvolvimen- os mercados financeiros se tornaram o
nanceiros, redirecionando forçosa- to de uma nova trajetória econômica, lugar onde o valor do trabalho ou da
mente parcelas crescentes das recei- técnica e social, que normalmente é mão de obra era determinado, trans-
tas do trabalho (como, por exemplo, chamada de “economia ecológica”, formado num valor financeiro que não
pagamentos por demissão e segurida- capaz de resolver qualquer problema é outra coisa do que a expressão sub-
de social, diferentes das receitas que, com um salto forte no futuro. Mas sou jetiva das expectativas de lucros futu-
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ros gerados por mercados financeiros teza, essa crise pode ser uma grande te desenvolvida (que tende a identi-
que, dessa forma, reivindicam renda. oportunidade para os movimentos so- ficar uma forma de mediação entre o
A atual crise financeira assinala o fim ciais globais. A razão disso reside no capital e o trabalho que seja satisfa-
da ilusão de que o financiamento pode fato de que, no capitalismo cogniti- tória para ambos), capaz de garantir
constituir uma unidade de medição do vo, não há espaço para uma reforma um paradigma estrutural estável do
trabalho ou da mão de obra, ao menos política institucional que seja capaz capitalismo cognitivo, não pode ser
no atual fracasso do capitalismo con- de reduzir a instabilidade que o ca- delineada atualmente. Assim, esta-
temporâneo em termos de governança racteriza. Nenhum New Deal inovador mos num contexto histórico em que a
cognitiva. Consequentemente, a crise é possível a não ser aquele impelido dinâmica social não deixa espaço para
financeira é também uma crise da va- pelos movimentos sociais e pelas prá- o desenvolvimento de práticas refor-
lorização capitalista. ticas da institucionalidade autônoma mistas e, acima de tudo, de “teorias”
mediante a reapropriação de um sis- reformistas. O que se segue disso é
IHU On-Line - Como tem aparecido tema de bem-estar saqueado por in- que, percebendo que é a práxis que
nos debates econômicos a proposta teresses privados e congelado na po- orienta a teoria, só o conflito e a ca-
de uma maior intervenção do Estado lítica pública. Algumas das medidas pacidade de criar movimentos mul-
na economia? que podem ser identificadas, desde a titudinários podem permitir – como
Andrea Fumagalli - É muito divertido regulamentação dos salários baseada sempre – o progresso social da huma-
o fato de que alguns dos economistas na proposta de uma renda básica até nidade. Só o reavivamento de conflito
neoliberais que ainda há dois anos se a produção com base na livre circu- social forte supranacional pode criar
horrorizavam com a ideia de interven- lação do conhecimento, não são ne- as condições para superar o estado
ção estatal agora são a favor dela, tal- cessariamente incompatíveis com os atual de crise. Deparamo-nos com um
vez citando Keynes e/ou Marx. É claro sistemas de acumulação e subsunção aparente paradoxo: para tornar pos-
que esse tipo de intervenção estatal síveis novas perspectivas reformistas
é apenas instrumental. Ela segue o e a estabilidade relativa do sistema
princípio da socialização dos preju- “A crise financeira é, capitalista, é necessária uma ação
ízos, a fim de recuperar no futuro a conjunta de natureza revolucionária,
privatização dos lucros. Mas o princi- consequentemente, capaz de modificar os eixos sobre os
pal problema é que a intervenção es- quais se baseia a própria estrutura de
tatal só desempenha o papel de tapar uma crise da estrutura comando capitalista.
os atuais buracos resultantes da falta Precisamos, portanto, começar a
de liquidez monetária (escassez de do atual biopoder imaginar uma sociedade pós-capita-
crédito) sem perspectivas de intervir lista, ou, melhor ainda, a reelaborar
nas razões estruturais da crise. capitalista” a batalha pelo bem-estar [welfare]
na crise como organização imediata
IHU On-Line - Neste momento de cri- das instituições do comum. Isso não
se, qual a importância da união en- do capital, como sugeriram vários te- elimina definitivamente as funções
tre países, como é o caso da União óricos neoliberais. De qualquer modo, da mediação política, mas remove-as
Europeia, Mercosul, etc.? novas campanhas de conflito social e definitivamente das estruturas repre-
Andrea Fumagalli - Ela é muito impor- reapropriação da riqueza comum po- sentativas e absorve-as no poder cons-
tante. Um dos resultados desta crise é dem ser iniciadas com a finalidade de tituinte de práticas autônomas. Em
a morte definitiva da soberania do Es- solapar a própria base do sistema pro- outras palavras, estamos lidando com
tado nacional. Só é possível imaginar dutivo capitalista, isto é, a coerção a transformação do “comunismo do
uma nova governança política supra- do trabalho ou da mão de obra, a ren- capital” no “comunismo do intelecto
nacional. Naturalmente, essa possibi- da como ferramenta de chantagem e geral” como força viva da sociedade
lidade depende das relações dinâmi- dominação de uma classe sobre outra contemporânea, capaz de desenvol-
cas entre as mais relevantes áreas do e o princípio da propriedade privada ver uma estrutura de “estar-comum”
mundo, especialmente do eixo EUA- dos meios de produção (ontem eram [commonfare] e de estabelecer-se
Bric (Brasil, Rússia, Índia e China). as máquinas, hoje também é o conhe- como uma condição efetiva e real da
Quanto à Europa, a crise demonstra as cimento). Em outras palavras, pode- opção humana pela liberdade e igual-
dificuldades do processo de constru- mos afirmar que no capitalismo cog- dade. Entre o “comunismo do capital”
ção da União Europeia econômica. nitivo uma possível conciliação social e as instituições do comum não há es-
de origem keynesiana, mas adaptada peculação ou relação linear de neces-
IHU On-Line - Que cenários de con- às novas características do processo sidade: trata-se, em outras palavras,
flitos sociais são abertos pela crise de acumulação, é apenas uma ilusão de reapropriar-se coletivamente da
financeira atual? teórica, sendo inviável de um ponto riqueza social produzida, rompendo os
Andrea Fumagalli - É bastante difícil de vista político. dispositivos da subsunção e do coman-
responder a essa pergunta. Com cer- Uma política reformista plenamen- do capitalista na crise permanente.

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Em tal processo, o papel autô-
nomo desempenhado pelos movi-
mentos sociais é importante, não só
como programa e ação de caráter
político, mas também, e acima de
Brasil em Foco
tudo, como ponto de referência para
as subjetividades, singularidades ou
segmentos de classe mais duramen-
te atingidos e fraudados pela crise. “Não são as pessoas que trazem
A capacidade de subsunção real da
vida no processo de trabalho e pro- benefícios para a instituição, mas
dução, a difusão de imagens cultu-
rais e simbólicas onipresentes com
base em elementos do individua- as ideias”
lismo (começando com o individua-
lismo “proprietário”) e medidas de Sob a perspectiva do Unafisco Sindical, Lúcio Esteves afirma
“segurança” constroem os principais
pontos críticos do processo de con-
que o órgão entendia que Lina Vieira e sua equipe estavam fa-
trole social e cognitivo do compor- zendo um bom trabalho na Receita Federal, por isso sua demis-
tamento dos trabalhadores e do pro- são provocou revolta
letariado. O alcance e a organização
de uma subjetividade autônoma, que
já vive nas práticas de resistência e Por Graziela Wolfart
produção de uma nova composição

A
de classe, são condições necessárias
para desencadear processos conflitu- inda repercutindo a exoneração da ex-secretária da Receita Fe-
osos, capazes de modificar as atuais deral, Lina Vieira, a IHU On-Line entrevistou por telefone o pre-
hierarquias socioeconômicas. Deste sidente da Delegacia Sindical de Brasília do Unafisco Sindical, Lú-
ponto de vista, todos os excessos e cio Flávio Arantes Esteves. O Unafisco é o Sindicato Nacional dos
insurgências que as subjetividades Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil. Para Lúcio Esteves,
nomádicas conseguem alcançar e várias medidas tomadas por Lina Vieira melhoraram o desempenho da Recei-
animar são bem-vindas. É só dessa ta Federal, avanços esses que “trariam benefícios para a sociedade brasileira
maneira, como mil gotas que se en- e o estado brasileiro”. “E nós esperamos que”, continua ele, “quem quer que
contram para formar um rio ou mil
assuma o órgão, não retroceda com relação a essas políticas”. Ao reafirmar a
abelhas que formam um enxame, tor-
força da atuação do Unafisco quanto aos protestos pela saída de Lina Vieira,
na-se possível colocar em movimen-
to formas de reapropriação da rique- Esteves reconhece que “os sindicatos estão sendo massacrados pela crise
za e do conhecimento, invertendo econômica, de tal forma, que eles têm encontrado grande dificuldade de
a dinâmica redistributiva, forçando reação, porque o poder de barganha está se reduzindo muito com o aumento
os que causaram a crise a pagar por do desemprego e a redução do salário”.
ela, repensando uma nova estrutura Lúcio Flávio Arantes Esteves é economista formado pela Universidade Fe-
do bem-estar social e comum, imagi- deral do Paraná e auditor fiscal da Receita Federal do Brasil, lotado na Dele-
nando novas formas de auto-organi- gacia da Receita Federal de Brasília. Confira a entrevista.
zação e produção compatíveis com o
respeito pelo meio ambiente e pela
dignidade dos homens e mulheres IHU On-Line - Do ponto de vista do tomado, por exemplo, estava uma
que habitam este planeta. Unafisco, o que representa a de- política de melhorar o atendimento
missão de Lina Vieira da Receita ao contribuinte. Como funcionário do
Federal? órgão (porque, além de dirigente sin-
Lúcio Esteves – A Receita Federal, dical, eu tenho meu trabalho na Re-
Leia mais...
quando estava sendo dirigida pela ceita), e por meio dos contatos com
>> Sobre o tema da crise mundial e do ca- doutora Lina Vieira, acabou reali- os colegas de trabalho, sabíamos que
pitalismo cognitivo, leia a revista IHU On-Line
zando importantes modificações do estava em desenvolvimento esse pro-
número 301, de 20-07-2009, intitulada O capita-
lismo cognitivo e a financeirização da economia. ponto de vista da administração, no jeto para melhorar o atendimento ao
Crise e horizontes, disponível no link http:// sentido, a nosso ver, que caminhava contribuinte. Outra iniciativa foi no
www.ihuonline.unisinos.br//index.php?id_edi-
para uma maior eficiência do órgão. sentido de abrir possibilidades (e foi
cao=329.
Entre as iniciativas que ela já tinha isso efetivamente o que ocorreu) para

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que os servidores fizessem sugestões dada a oportunidade para falar sobre superintendes. Nós não nos envolve-
de melhorias quanto a determinados o assunto. Ao que se tem notícia, a mos com questões administrativas.
procedimentos na Receita. Em virtude cada dez superintendentes, sete vêm
disso, várias medidas foram tomadas. do movimento sindical, mas preci- IHU On-Line – Considerando que hoje
Uma delas foi permitir que o contri- so fazer uma ponderação sobre isso. vivemos no Brasil uma crise do movi-
buinte pudesse acessar a internet e ve- Nós, Unafisco, não indicamos a dou- mento sindical, que novidade apare-
rificar determinados dados tributários tora Lina e nenhum dirigente do ór- ce na ação do Unafisco relativamente
com relação à sua própria declaração. gão. E falo isso com o aval dos meus a esse episódio, lembrando o apoio
Outra medida que estava sendo tomada colegas. Nosso sindicato é muito forte das delegacias sindicais do Unafisco
era no tocante à ocupação dos cargos e muito organizado. O que houve foi de todo o Brasil?
de confiança dentro da Receita. Antiga- o seguinte: a doutora Lina assumiu o Lúcio Esteves – A Delegacia Sindical
mente, como acontece na maioria dos poder e convidou algumas pessoas que de Brasília foi a primeira a manifes-
órgãos públicos, os cargos de confian- ela entendia que eram capacitadas tar-se sobre o acontecido, inclusive
ça eram designados por conhecimento para ocupar as funções de confiança. antes mesmo do Unafisco Nacional.
pessoal. E isso acontecia na Receita. Algumas dessas pessoas tinham ocupa- Nós mandamos um comunicado inter-
Agora existe um projeto diferente, do cargos de direção sindical, outras namente, abordando essa demissão da
em que há uma disponibilização para não. Mas a maioria tinha alguma parti- Lina. Houve um processo antidemo-
o público interno de determinada vaga cipação em eventos do sindicato. Por crático e meio estalinista até, o que é
ou função de confiança. As pessoas se consequência, estavam expostos den- conhecido na política brasileira como
candidatam e é feito um processo de tro da carreira. Isso permite acreditar “fritura” de determinada pessoa que
seleção. Isso, para mim, foi um grande que essas pessoas possuem capacidade ocupa um cargo. Esse é um método
avanço, porque democratiza o acesso para desenvolver qualquer capacidade desprezível e inaceitável em uma so-
dos colegas aos cargos de chefia e tor- técnica. E esses técnicos foram cha- ciedade democrática. O ministro tem
na o órgão mais eficiente, na medida mados pela doutora Lina em número todo o direito de escolher quem ele
em que o processo de seleção é am- quiser para dirigir um órgão da esfera
plo. Escolhem-se as melhores pessoas do ministério dele, mas essa liberdade
não por amizade, mas por competência “O interessante nesse de escolha está subordinada ao inte-
técnica. resse público. Não há nenhuma razão
A doutora Lina Vieira tinha uma processo é que não foi para se denegrir a imagem de um ser-
preocupação muito grande com a par- vidor público da maior respeitabilida-
te gerencial da Receita, a fim de criar um movimento de só porque o ministro quer substituir
também um ambiente mais confor- essa pessoa. Esse processo deve ser
tável para os servidores, não no que orquestrado, mas combatido pela sociedade brasileira
concerne ao mobiliário, mas no senti- em qualquer nível.
do dos relacionamentos, da valoriza- independente, de cada Nesse processo de “fritura”, a im-
ção do servidor, ao reconhecer que ele prensa noticiou vários motivos para a
tem capacidade para oferecer suges- setor dos sindicatos” substituição de Lina Vieira. Um deles
tões para a administração do órgão. é a queda na arrecadação. E esse é um
No que diz respeito a esses avanços motivo absurdo, porque a queda só se
que estavam sendo feitos na Receita razoável e tinham uma comunhão de deu pela redução da demanda, devido
Federal, que trariam benefícios para a ideias sobre como dirigir a instituição. à crise global e em virtude das exo-
sociedade brasileira e o estado brasi- Imagino que ela chamou essas pessoas nerações do governo para recuperar a
leiro, tudo o que ela fez foi muito im- por causa disso. economia brasileira. A segunda razão
portante. E nós esperamos que, quem Eu entendo que a manifestação mencionada é que ela teria autorizado
quer que assuma o órgão, não retroce- dos superintendes tenha sido absolu- uma fiscalização na Petrobrás em vir-
da com relação a essas políticas. tamente natural, comum em qualquer tude de um procedimento da empresa
grupo recém-ingressado em uma ad- que seria incompatível com as normas
IHU On-Line – O que motivou a gran- ministração. Foi o líder desse grupo tributárias. As regras servem para to-
de reação dos superintendentes da de trabalho que idealizou todas as das as empresas, sejam elas públicas,
Receita Federal em protesto à saída transformações, que imaginou as ini- colonialistas ou privadas. E a Receita
de Lina Vieira? O que isso significa, ciativas, ou que apoiou as sugestões Federal é uma instituição de estado,
considerando que a maioria dos ser- dadas pelo grupo. É natural que essas não de governo. Ela não tem que olhar
vidores da Receita Federal é sindica- pessoas se revoltem ao ver o seu líder para o proprietário da empresa, mas
lizada? injustiçado e retirado da posição. Elas para a sua contabilidade. Ela não obe-
Lúcio Esteves – Essa pergunta é inte- sentem que não faz mais sentido esta- dece a direções de governos, embora
ressante, porque isso tem sido veicu- rem ali. Mas isso nada tem a ver com o contribua com políticas públicas que
lado na imprensa e raramente nos é sindicato, que não se reuniu com esses sejam do interesse da sociedade. Nós

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“As organizações não governamentais têm crescido
muito e ocupado um espaço político enorme na
crítica, no pensamento e nas reivindicações
com relação às organizações governamentais”

Participe dos eventos do IHU. informações em


entendíamos que Lina Vieira e sua Lúcio Esteves – Não posso responder
equipe estavam fazendo um bom tra- por ela, nem a conheço o suficien-
balho no órgão, por isso esse problema te para isso. Ela era muito próxima
nos revoltou. do sindicato, mas isso não quer dizer
nada, pois o sindicato não é contra a
IHU On-Line – Mas voltando à atuação empresa. Temos várias correntes aqui
sindical, o Unafisco pode ser aponta- e não há uma unidade de pensamen-
do como um modelo nesse sentido, to ideológico no nosso sindicato. Pelo
em função da força que tem demons- contrário, ele é muito diversificado.
trado? E é por isso que ele tem crescido, se
Lúcio Esteves – Se o Unafisco é um fortalecido e é muito representativo,

www.ihu.unisinos.br
modelo de sindicato eu não posso talvez o mais representativo dos sindi-
responder, porque não acredito que catos nacionais.
esteja sendo criado um modelo aqui.
Imagino que qualquer sindicato agiria IHU On-Line – Qual a expectativa do
da mesma forma. O interessante nesse Unafisco em relação à pessoa que
processo é que não foi um movimento ocupará o cargo de Lina Vieira?
orquestrado, mas independente, de Lúcio Esteves – Nós não temos nada a
cada setor dos sindicatos. Sabemos que ver com isso. Sentimentalmente, nós
mundialmente, com a crise, a atuação não pensamos em nenhuma pessoa es-
sindical está adormecida. Antigamen- pecífica. O que deve ser pensado nesse
te, uma situação dessas seguramente momento é em filosofias de trabalho,
teria mobilizado os sindicatos de todas políticas amplas e projetos. Não há
as categorias de trabalhadores. Perce- nada que não possa ser corrigido. Se,
bemos agora que as organizações não por um acaso, o planejamento não re-
governamentais têm crescido muito e sulta como se esperava, fazem-se as
ocupado um espaço político enorme correções de rumo. O importante é sa-
na crítica, no pensamento e nas rei- ber aonde se quer chegar e, se o cami-
vindicações com relação às organiza- nho estiver desviando-se de seus obje-
ções governamentais. Não vejo que há tivos, é preciso abrir outro e retornar
sindicatos participando desse proces- para o rumo. O conjunto de pessoas
so. Vemos que a crise econômica tem que está hoje na Receita Federal, com
massacrado os sindicatos de tal forma a direção interina, está no caminho
que eles têm encontrado grande difi- trilhado por Lina Vieira, e isso é im-
culdade de reação, porque o poder de portante para nós. Nós não vetamos
barganha está se reduzindo muito com ninguém, pois não são as pessoas que
o aumento do desemprego e a redução trazem benefícios para a instituição,
do salário. Aqui no Unafisco, passamos mas as ideias.
por um processo de discussão sobre a
melhor forma de fazer as reivindica- Leia mais...
ções, se é de maneira negociada ou de
>> Sobre o tema da demissão de Lina
confronto, como é tradicional. Vieira da Receita Federal, leia a entrevista com
Guilherme Delgado, publicada nas Notícias do
IHU On-Line – Procede a informação Dia do sítio do IHU, em 25-07-2009, sob o título
Anistia fiscal permanente: um ato de corrupção,
de que Lina Vieira era próxima dos disponível no link http://www.ihu.unisinos.br/
sindicalistas e tinha até uma postura index.php?option=com_noticias&Itemid=18&task
“antiempresa”? =detalhe&id=24199

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Destaques On-Line
Essa editoria veicula entrevistas que foram destaques nas Notícias do Dia do sítio do IHU.
Apresentamos um resumo delas, que podem ser conferidas, na íntegra, na data correspondente.

Entrevistas especiais feitas pela IHU On-Line e disponí- Smartphones e mobilidade: o que os celulares nos
veis nas Notícias do Dia do sítio do IHU (www.ihu.unisi- permitem, hoje?
nos.br) de 26-07-2009 a 01-08-2009. Entrevista com Tiago Lopes
Confira nas Notícias do dia de 30-07-2009
Estão empurrando para a Amazônia os problemas do “A instantaneidade com que as pessoas podem ser encon-
resto do Brasil. tradas faz parte de um movimento social mais abrangente,
Entrevista com Pedro Ribeiro de Oliveira que transcende a popularização dos aparelhos celulares”,
Confira nas Notícias do dia de 26-07-2009 comenta o professor de comunicação digital na entrevista
O sociólogo analisa, nesta entrevista, os debates em que concedeu sobre como a mobilidade está mudando a
torno da relação entre fé e política que ocorreram du- forma como atuamos no mundo de hoje.
rante o 12º Encontro Intereclesial das CEBs.
O pampa alterado.
Os indígenas não são mais atores coadjuvantes. Entrevista com Marcelo Dutra da Silva
Entrevista com Gersem Baniwa Confira nas Notícias do dia de 31-07-2009
Confira nas Notícias do dia de 27-07-2009 O ecologista conversou com a IHU On-Line sobre a atual
O indígena e antropólogo contou sobre a emergência da atu- situação do bioma do pampa gaúcho e trouxe um novo ol-
ação dos movimentos indígenas na América Latina, analisou har sobre a questão. Ele, inclusive, já teve suas pesquisas
a atual situação dos índios no Peru e a principal missão de financiadas por empreendedores florestais, mas hoje está
um líder indígena latino-americano hoje. do outro lado, pois vê que esse apoio pode ser prejudicial
ao resultado dos estudos.
O retrato de um Brasil muito diferente.
Entrevista com José Oscar Beozzo “A transparência acabou se tornando uma palavra
Confira nas Notícias do dia de 28-07-2009 maldita para a governadora”.
Para Beozzo, ao longo da história das Comunidades Eclesiais Entrevista com Marco Weissheimer
de Base, é afirmado que elas “assumem o compromisso na Confira nas Notícias do dia de 01-08-2009
construção de uma nova sociedade; um compromisso políti- Para o jornalista, a transparência é realmente o grande
co ao lado do eclesial. Isso faz o rosto das CEBs”. Nesta en- problema que Yeda Crusius vem enfrentando diante da
trevista, ele também analisou o 12º Encontro Intereclesial quantidade e da gravidade das denúncias a respeito de seu
das CEBs, que ocorreu em Rondônia na última semana. governo. No entanto, “a solução parece ser incompatível
com o chamado ‘novo jeito de governar’”.

Leia as Notícias
do Dia em
www.ihu.unisinos.br
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IHU Repórter
Felipe Ruiz Coelho
Por Graziela Wolfart, Greyce Vargas e Patricia Fachin | Fotos Arquivo Pessoal

N
esta edição que antecede o dia dos pais, a IHU On-Line conversou com o mo-
torista da Unisinos Felipe Ruiz Coelho, 31 anos, que há quatro trabalha na uni-
versidade. Ele, sem dúvidas, tem muito para comemorar nesta data, ao lado da
filha Luiza, que nasceu com problemas de saúde. Diante de tantos desafios nos
últimos meses, com um sorriso no rosto e muita esperança, ele garante que essa
lição lhe “deu mais amor à vida e vontade de viver e aproveitar cada dia que passa”. Sobre
o dia dos pais, comemorado ao lado de seu presente mais precioso, Luiza, ele planeja: “Vai
ser maravilhoso. Minha filha estando bem e em casa não tem presente melhor”. Confira esta
trajetória de vida na entrevista a seguir.

Histórico – Eu nasci em São Leopoldo exemplos que vemos naqueles acidentes, lhar na Unisinos, consegui parar de via-
mesmo. Perdi meus pais cedo. Quando nas tragédias. Isso desvaloriza a classe, jar. Mudou completamente a minha vida,
minha mãe morreu, eu tinha 11 anos. E vai desgastando nossa imagem. Se o mo- minha rotina, que era fora daqui. Eu
meu pai veio a falecer quando eu tinha torista chega a um posto e não abaste- viajava pelo Brasil inteiro. No primeiro
20 anos. Eu sempre quis ser motorista de ce ali, não pode dormir no seu pátio. O final de semana livre, eu não sabia o que
caminhão, meu pai foi contra, mas mes- motorista de caminhão também não tem fazer em casa, porque nunca tive esse
mo assim eu tirei minha carteira de mo- muito acesso a banheiros limpos. As em- tempo sobrando. Tive que me reestru-
torista e fui ser caminhoneiro. Viajei por presas estipulam horários absurdos para turar totalmente, até financeiramente.
sete anos e, quando abriu a vaga aqui cumprir, não importa se ele dorme ou Foi preciso fazer tudo de novo, com uma
na Unisinos, eu vim para cá e parei de não. Elas só querem saber que ele tem nova jornada. Estou na Unisinos há qua-
viajar. Continuei como motorista. Não de carregar e descarregar tal dia. E se tro anos. Trabalhei três anos na Dalkia.
tinha ninguém na família que era cami- ele não for, tem um monte de gente que Quando a Unisinos terceirizou o setor,
nhoneiro, mas tinha um vizinho meu que vai no seu lugar. Então, eu não ficava em eu entrei e trabalhei com o caminhão,
era motorista de caminhão. Ele chegava casa, não tinha Natal, não tinha final de fazendo todo o transporte interno. Estou
de viagem, e eu ficava admirando o ca- ano, não tinha aniversário, feriado, não dentro do câmpus há sete anos, mas sou
minhão. Eu sempre fui bem de vida, mas tinha noite, não tinha dia... funcionário da Unisinos há quatro. Aqui
eu tinha que ser motorista de caminhão. temos uma escala de serviço. Todos os
No colégio, eu sempre desenhava cami- O início – Aos 18 anos tirei minha car- dias, antes de ir embora, recebemos a
nhões. Hoje, já não gosto tanto de cami- teira e no outro mês peguei uma carreta escala do outro dia. É sempre bem cor-
nhão, mas quando era pequeno gostava e fui para o Rio Grande do Norte. Em São rido, mas não sofremos pressão da uni-
muito. Hoje, moro no bairro São João Leopoldo, eu fui o primeiro a tirar uma versidade. Recebemos a orientação de
Batista, em São Leopoldo. carteira “E” com 18 anos. Eu cheguei ao andar dentro das leis de trânsito. Mesmo
Detran e falei que queria tirar essa car- que atrase um serviço, não importa qual
A vida de caminhoneiro – Ser mo- teira e riram. Minha carteira tinha uma a razão, não temos que fazer loucura no
torista de caminhão hoje é um trabalho restrição de que eu não podia dirigir trânsito, temos de manter o padrão da
muito desgastante e tem um dia a dia ônibus, nem carga perigosa. Eu já fiquei universidade. Às vezes, somos os primei-
muito sofrido. Tudo cresceu, a tecnolo- preso com as cargas, os policiais me ata- ros da instituição a receber uma pessoa,
gia evoluiu, mas a profissão de motorista cavam e diziam que eu não podia dirigir. então temos que transportá-la tranqui-
de caminhão ficou meio defasada. Não Depois me liberavam. E foi assim. Tra- lamente, sem assustar. Temos de tratar
se dá mais valor ao motorista em si, à balhei quatro anos numa transportadora todo mundo bem.
pessoa. Se hoje uma empresa pega cem de Canoas. Sai e consegui um emprego
currículos, não se importa com quem são com um amigo, dono de uma empresa Família – Tenho um irmão mais ve-
essas pessoas, não querem saber sua tra- particular. Trabalhei lá até haver vaga na lho. A perda da minha mãe foi numa
jetória, quem foi ou quem é. Se querem Unisinos. época em que toda criança precisa da
cem motoristas, vão pegar aqueles cem mãe. Eu tinha 11 anos. Tive que apren-
currículos e deu. Nisso entram os maus Mudança – Quando comecei a traba- der a viver sozinho. Morei com uma tia

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tar, não é fácil. Convive- não tenho tanto tempo, mas sem-
mos, desde que minha fi- pre que posso, eu vou lá, no sítio.
lha nasceu, com pais que
foram embora sem os Adorador de cavalos – Eu não sei
filhos. E nós ficávamos. quando aprendi a gostar de cavalos.
Algumas vezes, vinha Agora, há pouco tempo, aprendi o
alguma notícia dizendo significado do meu nome e me sur-
que o filho daquele ca- preendi. Felipe significa adorador
sal não tinha resistido. de cavalos. Eu nunca dei bola para
É uma história que nin- essas coisas, mas descobri que para
guém gostaria de passar, mim deu certo. Desde pequeno o
mas graças a Deus nunca meu animal de estimação preferido
>> Felipe com a filha e a esposa tivemos uma notícia que é o cavalo. O meu se chama Outono
não nos agradasse. das Três Estâncias.
por um tempo, depois voltei a mo-
rar com meu pai. Tive que seguir,
Aprendizados – Temos que fazer Religião – Eu acredito em Deus,
mas foi difícil para mim, que era
as coisas com carinho. Eu não espe- tenho muita fé n’Ele, mas não sigo
uma criança. Quando perdi meu
rava que isso fosse acontecer co- uma religião.
pai, já estava viajando como ca-
migo (doença da filha), pois tenho
minhoneiro. Foi uma perda grande
muitos amigos, não sou uma pessoa Certo e errado – Hoje está di-
também. Como perdi minha mãe
ruim. A gente sempre pensa que só fícil de criar um filho, mas a gente
cedo, tive que ir aprendendo a li-
acontece com os outros e, quando tem de mostrar-lhe o que é certo e
dar com essa dor, com as perdas.
algo assim acontece, aprendemos errado. É melhor poder andar com
Meu irmão mora em Rio Grande e
a dar valor à vida. Durante muitos a cabeça erguida do que andar se
nos vemos pouco. Quando minha
finais de semana, ficávamos na ja- escondendo dos outros. As pessoas
filha estava no hospital, nós nos
nela do hospital, vendo o dia boni- têm de ser honestas e boas para os
vimos, mas geralmente nos vemos
to e pensávamos que tínhamos que demais.
uma vez por ano, no fim do ano.
dar valor à nossa vida. Às vezes, as
pessoas estão em casa, têm os fi- Unisinos – Para mim, é uma
Ser pai – Sou casado e tenho
lhos saudáveis e ficam esbravejan- ótima empresa. Ela me apoiou na
uma filha de seis meses. Eu sem-
do com eles ou ficam maltratando fase que estou passando. Quando
pre quis ser pai, pois gosto de
e não sabem o valor que tem poder eu precisei faltar para ir ao hospi-
criança. Minha filha foi um caso
pegar seu filho e ir para casa. Mui- tal, a universidade foi bem acessí-
especial e à parte. Ela nasceu e
tas pessoas não sabem o que é isso. vel e humana.
logo apareceram problemas. Ela
Nossa filha veio para casa, mas de-
tinha má formação cardíaca e no
morou um pouco. Essa lição nos deu Sonho – Meu sonho é ter bas-
esôfago. Ficou cinco meses no
mais amor à vida e vontade de viver tante saúde para poder criar minha
hospital, passou por duas cirur-
e aproveitar cada dia que passa. filha. Aliás, que minha família toda
gias de correção. Foi uma coisa
sempre tenha muita saúde. Tenho
não esperada, nunca pensamos
Dia dos pais – Vai ser maravi- sonhos materiais, como ter um car-
que isso aconteceria com a gen-
lhoso esse dia dos pais. Minha filha ro bom e ser bem sucedido, mas
te. Ela, hoje, está bem, já saiu
estando bem e em casa não tem eles não têm muita importância.
do hospital, está fazendo trata-
presente melhor e maior. É uma
mento ainda, mas está melhor. Os
satisfação estar com ela em casa. Política – Acho que a atual
problemas já foram resolvidos, o
política é uma vergonha, infeliz-
problema cardíaco foi corrigido e
Casamento – Vai fazer oito anos mente. É uma pena que o Brasil,
foi feita a desobstrução do esôfa-
que sou casado. A filhota veio só um país tão rico, sofra tanto. Ele
go. Ela não está 100%, mas é uma
agora, então atualmente, o que a sobrevive, apesar de tanta rouba-
criança normal.
gente mais gosta de fazer é ficar lheira. É tão rico que consegue se
em roda dela. Ela foi uma crian- manter, mas é vergonhoso.
Os últimos seis meses – Nós pas-
ça bem desejada por nós. Então, a
samos dentro de um hospital os pri-
nossa vida é ela. Música – Eu escuto música gaú-
meiros seis meses dela. Não é fácil
cha. Já tive hábito de ir a CTG,
presenciar isso. Às vezes, as pessoas
Lazer – Eu gosto de andar a ca- mas hoje não vou.
nem imaginam o que é estar dentro
valo e laçar cavalo em rodeios. Meu
de um hospital, só ouvem as noti-
cavalo fica numa chácara em São IHU – É um lugar que mostra as
cias, mas não sabem o que é viver
Leopoldo, mas não vou lá com fre- coisas humanas para as pessoas.
dentro de um lugar assim. Largar
quência, porque estou ocupado com Ele abre seus horizontes e faz um
um filho de três meses num bloco
o nenê. Ela faz muitos exames, tem trabalho que abre caminhos.
cirúrgico, com riscos de ele não vol-
que ir ao médico, à fisioterapia. Eu

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Destaques
Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica
A Unisinos, sob a coordenação do Instituto Humanitas Unisinos – IHU, em parceria com a PUC-Rio, realizará de 14
a 17-09-2009, o X Simpósio Internacional IHU: Narrar Deus numa sociedade pós-metafísica. Possibilidades e
Impossibilidades. Confira alguns destaques da programação:

14 de setembro - segunda-feira
9h - Exibição do filme O grande silêncio, com a presença, na parte da tarde, do diretor Philip Gröning
14h às 16h – Oficinas
17h30 – A narrativa de Deus, hoje. Possibilidades e limites - Prof. Dr. Jean-Louis Schlegel - Revue Esprit - França

15 de setembro - terça-feira
9h às 10h - Deus, algo a ver ainda hoje? Reflexões teológicas de um cosmólogo - Prof. Dr. William Stoeger -
Observatório Astronômico do Vaticano - University of Arizona - EUA
10h45 às 12h - Uma narrativa de Deus a partir da cosmologia contemporânea - Prof. Dr. François Euvé - Facultés
Jésuits Paris - Centre Sèvres - Paris
14h30 às 16h30 - Conferências simultâneas
20h às 21h15 - Razão e fé em tempos de pós-modernidade - Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva - USP

16 de setembro - quarta-feira
8h45 às 10h - Cristianismo como estilo e a narrativa de Deus numa sociedade pós-metafísica - Prof. Dr. Christoph
Theobald - Centre Sèvres - Facultés Jésuites de Paris - Paris
10h45 às 12h - O silêncio de Deus e o Deus do silêncio - Prof. Dr. Alexander Navas - University of Arizona - EUA
14h30 às 17h - Minicursos simultâneos
20h às 21h15min – Narrar Deus hoje: uma reflexão a partir da teologia feminista – Profa. Dra. Mary Hunt – Women’s
Alliance for Theology, Ethics and Ritual – WATER – EUA

17 de setembro - quinta-feira
8h45 às 10h – Narrar Deus: meu percurso teológico em diálogo com a literatura – Prof. Dr. Karl-Joseph Kuschel
– Stiftung Weltethos/ Fundação Ética Mundial – Alemanha
10h45 às 12h - A narrativa de Deus a partir do Diálogo Inter-Religioso – Prof. Dr. Felix Wilfred – University of Madras
– Índia

Mais informações e a programação completa estão em www.ihu.unisinos.br Acesse e confira.

Apoio:

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