Você está na página 1de 236

Cinema e Sociedade:

Resistências e jogos de poder


Cinema e
Sociedade

Resistências e
jogos de poder

O rganizadores

F ábio F eltrin de S ouza


C ássio B rancaleone
Conselho Editorial

Profa. Dra. Andrea Domingues Prof. Dr. Luiz Fernando Gomes


Prof. Dr. Antônio Carlos Giuliani Profa. Dra. Magali Rosa de Sant’Anna
Prof. Dr. Antonio Cesar Galhardi Prof. Dr. Marco Morel
Profa. Dra. Benedita Cássia Sant’anna Profa. Dra. Milena Fernandes Oliveira
Prof. Dr. Carlos Bauer Prof. Dr. Ricardo André Ferreira Martins
Profa. Dra. Cristianne Famer Rocha Prof. Dr. Romualdo Dias
Prof. Dr. Eraldo Leme Batista Prof. Dr. Sérgio Nunes de Jesus
Prof. Dr. Fábio Régio Bento Profa. Dra. Thelma Lessa
Prof. Dr. José Ricardo Caetano Costa Prof. Dr. Victor Hugo Veppo Burgardt

©2016 Fábio Feltrin de Souza; Cássio Brancaleone (Orgs.)


Direitos desta edição adquiridos pela Paco Editorial. Nenhuma parte desta obra
pode ser apropriada e estocada em sistema de banco de dados ou processo similar,
em qualquer forma ou meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação, etc., sem a
permissão da editora e/ou autor.

So895 Souza, Fábio Feltrin de; Brancaleone, Cássio


Cinema e Sociedade: Resistência e jogos de poder/Fábio Feltrin de Souza;
Cássio Brancaleone (Orgs.). Jundiaí, Paco Editorial: 2016.

236 p. Inclui bibliografia.

ISBN: 978-85-462-0143-3

1. Cinema 2. Industria cultural 3. Sociedade 4. Educação I. Souza, Fábio


Feltrin de II. Brancaleone, Cássio.

CDD: 384
Índices para catálogo sistemático:
Filmes 384.8
Equipamentos e materiais visuais 371.335
Representações públicas 791

IMPRESSO NO BRASIL
PRINTED IN BRAZIL
Foi feito Depósito Legal

Av. Carlos Salles Block, 658


Ed. Altos do Anhangabaú, 2º Andar, Sala 21
Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100
11 4521-6315 | 2449-0740
contato@editorialpaco.com.br
Sumário
Introdução 7

Capítulo 1.
Em caso de incêndio, deixe queimar 15
Cassio Brancaleone

Capítulo 2.
Cinema e História: Edukators, de Hans Weingartner 33
Gerson Wasen Fraga

Capítulo 3.
Vida selvagem: escritos sobre liberdade,
aventuras amorosas e contracultura 53
Éverton de Moraes Kozenieski

Capítulo 4.
A crise da Sociedade Individualista
e seu duplo em o Clube da Luta 65
Daniel de Bem

Capítulo 5.
Entre dois mundos: uma análise do filme “Histórias Cruzadas” 93
Daniela Sbravati

Capítulo 6.
Twelve Years a Slave:
usos historiográficos e pedagógicos do filme 113
Marcelo Téo
Capítulo 7.
Pensar historicamente a partir de Blow-Up:
imagens, reminiscências e o olhar historiográfico 135
Rafael Hansen Quinsani

Capítulo 8.
A amizade como A Grande Beleza:
Foucault, Heidegger e Paolo Sorrentino 159
Atilio Butturi Junior

Capítulo 9.
Potências da carne em XXY 183
Prof. Dr. Fábio Feltrin de Souza

Capítulo 10.
Sobre larápios e espertezas em Nueve Reinas
– reflexões sobre a Argentina da virada do século XXI 201
José Alves de Freitas Neto

Referências 217
7

Introdução
Não são novas no campo das ciências humanas as reflexões
que buscam encontrar intersecções entre cinema, educação e
crítica social. Desde pelo menos os desdobramentos das leituras
promovidas pelos mais proeminentes representantes da Escola
de Frankfurt, o enquadramento do cinema como parte dos dis-
positivos criados pela, assim chamada, Indústria Cultural parece
ter superado a antinomia entre reprodutivismo social alienante
e ingênuo entretenimento individualizante. Embora ambos os
aspectos certamente estejam presentes tanto na dimensão do
consumo dos ditos artefatos culturais, quanto na própria partici-
pação de indivíduos e coletividades em processos que impliquem
em uma práxis social autorreferenciada como “cultural”, a com-
plexidade, a multidimensionalidade e a dinamismo daquilo que
contemporaneamente entendemos por cultura nos impele a bus-
car correlações cada vez mais transversais entre ela e os diversos
elementos que constituem a vida social.
Se não é mais recomendável defender qualquer tipo de “uni-
dade de análise transcendental” como ponto de apoio irrefutável
de qualquer teoria, tampouco se pode aceitar o lugar fácil das ge-
neralizações que desaguam nas assertivas do tipo: “tudo é cultura”
(Wagner, 2010). Em outras palavras, o exercício hermenêutico e
mesmo epistemológico em questão reivindica a reflexividade e a
recursividade das opções teóricas como parte de um repertório de
estratégias heurísticas que desvelem conexões possíveis entre de-
terminados fenômenos, visando alcançar a compreensão possível
de determinados aspectos ou ângulos de uma realidade situada.
Nesse sentido, o cinema é um recurso passível de oferecer
fontes inesgotáveis para a reflexão social, histórica e filosófica so-
bre a cultura moderna. Seja como um dos produtos mais bem
delimitados da mencionada indústria cultural, como expressão
narrativa de valores dominantes ou dissidentes, como documen-
8 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

to ou registro de época, como referência imagética de representa-


ções estéticas, entre outros aspectos. Ainda mais: se o diagnóstico
de Guy Debord sobre a espetacularização da sociedade está cor-
reto, o cinema e toda a sua cadeia produtiva praticamente tomou
o lugar ocupado outrora pela indústria moderna no campo da
produção (de sentido) das mercadorias1.
Do ponto de vista dos potenciais usos do cinema como fer-
ramenta na educação, existe um conjunto razoável de recomen-
dações, metodologias e experiências (Napolitano, 2005; Duarte,
2002; Azzi, 1996; Figueira, 1995; Franco, 1992; Ferro, 1976)
que buscam superar o cômodo artifício do “filme-tela-de-fun-
do” ou “isso foi o que aconteceu durante tal ou qual episódio
histórico”, para se debruçar sobre estudos interdisciplinares de
determinados temas mobilizando reflexões a respeito do lugar
das narrativas sobre os processos sociais, suas distintas formas de
recepção, passando por indagações sobre gêneros de linguagens e
genealogias imagéticas, sem com isso emular um debate herméti-
co de especialistas e críticos de arte.
Podemos dizer que estas questões em grande medida inspira-
ram um grupo de docentes dos cursos de ciências sociais e história
da Universidade Federal da Fronteira Sul — campus Erechim, a
elaborar no ano de 2011 o projeto de extensão “Cinema e Socie-
dade”. Para além do uso do cinema em sala de aula (instrumento
muito explorado por alguns de nós), nos interessava promover
um espaço de intercâmbio entre o público interno e externo da
universidade. O projeto, realizado em ciclos temáticos anuais,
teve sua terceira edição no ano de 2014, sob o título de Resis-
tências e Jogos de Poder. E a partir dessa última experiência, mas
sob a atmosfera das anteriores, decidimos realizar uma pequena

1. Assim avaliava o assunto o teórico situacionista: “O princípio do fetichismo da


mercadoria, a dominação da sociedade por ‘coisas supra-sensíveis embora sensí-
veis’, se realiza completamente no espetáculo, no qual o mundo sensível é substi-
tuído por uma seleção de imagens que existe acima dele, e que ao mesmo tempo se
fez reconhecer como o sensível por excelência” (Debord, 2002: p. 28).
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 9

compilação com os materiais produzidos como referência textual


dos filmes assistidos e debatidos, contando com a participação de
autores convidados que comungam de preocupações afins.
Em referência ao III ciclo de exibições e debates de nosso
projeto, Resistências e Jogos de Poder se tornou também o nome
desta obra que o leitor agora tem em mãos. O tema nos foi susci-
tado diante da necessidade e desejo de situar determinadas obras
cinematográficas, apelando às mais diversas conexões de sentido,
no âmbito de um debate mais vasto sobre relações de poder, fi-
gurações hierárquicas e processos de dominação no mundo sis-
tema-mundo capitalista (Wallerstein, 2005). Ainda que, quando
se trata de assuntos dessa natureza, numa era de “pensamento
único”, a remissão direta seja às chamadas “metanarrativas”, nos-
sa perspectiva problematiza o monopólio exercido pelas éticas
(e óticas) de libertação exclusivamente classistas que tomaram
conta do século XX, deslocando o problema da resistência tanto
para níveis mais individualizados ou subjetivos, quanto para re-
cortes étnicos, de gênero, de orientações sexuais, etc., mas sem,
obviamente, desprezar o lugar do trabalho subalternizado nas so-
ciedades capitalistas (o que inclui os “capitalismos de Estado” do
entendido campo do “socialismo realmente existente”).
A alusão aos processos de resistência pode insinuar a entoação
de um velho mantra do que é periférico, pequeno, fragmentado,
frágil, residual e mesmo disfuncional no mundo contemporâ-
neo, especialmente ao se converter na gramática de uma esquerda
mais ou menos radical sem pais ou faróis iluminando caminhos.
De fato, para as perspectivas dominantes, e mais ainda, para as
abordagens existentes nas ciências humanas colonizadas pelas
perspectivas dominantes, tudo o que não está no coração do que
há de mais dinâmico do mercado ou do Estado tal como o con-
cebemos é marginal, inócuo, destituído de valor como força ou
potencial político transformador. A questão, que talvez os artigos
incluídos neste livro possam contribuir para pensar, é que já se
encontra em curso leituras que, ao privilegiar outros lugares te-
10 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

óricos (éticos e epistêmicos), podemos conferir inteligibilidade a


estes traços e dimensões que chamamos por resistência, permi-
tindo sua figuração não mais como fragmentos e “pontos sem
nós”, mas constelações com corpos celestiais das mais distintas
magnitudes, mas que nem por isso deixam de cumprir seus pa-
péis na epopeia cósmica de construção de novas subjetividades,
sociabilidades e modos de vida (Camara et al., 2015; Chagua-
ceda & Brancaleone, 2012; Hardt & Negri, 2005; Deleuze &
Guatarri, 1995).
Certo que de pouco vale “mapear” as resistências e ensaiar
enxergá-las sob outro ângulo sem compreender melhor as estru-
turas e dinâmicas de dominação. Aliás, a própria ideia de “jo-
gos de poder”, parte de nosso guarda-chuva temático, evidencia
essa preocupação de fundo (em grande medida aprendida com
Foucault) em entender as “estruturas de dominação” não apenas
como circuitos fechados e unilaterais que funcionam apenas de
cima para baixo, mas como parte de uma ampla teia de relações
sociais que, se pode ser cristalizada ou sedimentada em determi-
nadas instituições, não deixam de operar com força e efetivida-
de nas mais diferentes regiões ou coordenadas da vida social, de
modo dinâmico, processual e multirrelacional.
Ao longo dos ciclos esperávamos provocar em nosso público
uma atmosfera de inquietação, questionamento e reflexão que
pudesse potencializar um exercício de apropriação e mesmo res-
significação de categorias teóricas, conceitos e ideias, passíveis de
estabelecer pontes entre o conteúdo/forma dos filmes, aspectos
do debate acadêmico e a vida cotidiana. O livro, pois, simboliza
um pequeno aspecto desse esforço coletivo, ainda que resulte na
contribuição autoral daqueles que assinam os artigos.
Os dez artigos que compõem essa compilação são bastante
heterogêneos e representam uma diversidade de leituras e refle-
xões que puderam ser realizadas a partir do tema em questão, evi-
denciando ainda a presença de distintas visões sobre a relação en-
tre cinema, educação e crítica social. A temporalidade das obras
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 11

cinematográficas comentadas compreende um período largo que


vai de 1966 a 2013, abrangendo ainda produções de quatro pa-
íses: Alemanha, Estados Unidos, Itália e Argentina. A maioria
dos filmes aqui listados foram objeto de discussão nos espaços
públicos do projeto, mas para fins dessa publicação, estendemos
o convite a outros autores e incluímos filmes que não constavam
no cronograma original, com o intuito de enriquecer e ampliar
o material.
No artigo “Em caso de incêndio, deixe queimar”, Cassio
Brancaleone explora a inquietação política de fundo presente no
filme O que fazer em caso de incêndio? (Was tun, wenns brennt?,
Alemanha, 101min, 2001), tentando conjugar uma reflexão que
dê conta dos dilemas éticos da violência política revolucionária e
o problema da aquiescência e conformação social em sociedades
profundamente hierarquizadas e desiguais. Em “Cinema e His-
tória: Edukators, de Hans Weingartner”, Gerson Fraga analisa o
filme Edukators (Alemanha, 127min, 2004), lançando mão de
uma perspectiva histórica que situa comparativamente Alema-
nha Ocidental de 1968 e a Alemanha pós-unificação neoliberal
de 30 anos depois, situando nesses marcos, os (não) lugares da
rebeldia e subversão intergeracional. A contracultura e liberdade
sexual é o locus privilegiado por Éverton de Moraes Kozenieski
em “Vida Selvagem: escritos sobre liberdade, aventuras amorosas
e contracultura”, ao abordar o filme Das Wilde Leben (Alemanha,
114min, 2007), enquanto Daniel de Bem pondera as relações
entre violência, anomia e civilização ao analisar Clube da Luta
(Fight Club, EUA, 139min, 1999) em “A crise da Sociedade In-
dividualista e seu Duplo em o Clube da Luta”.
Daniela Sbravati se ampara nas pistas deixadas por Histórias
Cruzadas (The Help, EUA, 146min, 2011) para problematizar
questões raciais, de classe e gênero em “Entre dois mundos: uma
análise do filme Histórias Cruzadas”. Embora a questão racial
também seja central em 12 anos de Escravidão (12 Years a Slave,
EUA, 134min, 2013), Marcelo Téo se propõe a analisar as impli-
12 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

cações do debate sobre a escravidão através das diversas formas


de diálogo entre a história e o cinema em “Twelve Years a Slave:
usos historiográficos e pedagógicos do filme”. Exercício similar
também é desenvolvido por Rafael Hansen Quinsani no artigo
“Pensar historicamente a partir de Blow-Up: imagens, reminis-
cências e o olhar historiográfico”, tendo o filme Blow up (Itália,
111min, 1966) como foco do debate.
Em “A Amizade como A Grande Beleza: Foucault, Heide-
gger e Paolo Sorrentino”, Atilio Butturi Junior se aventura no
campo da estética da existência ao problematizar a amizade e as
relações dos sujeitos com o mundo a partir da ética e da noção
de preocupação/cuidado consigo, compreendidas no processo de
autoconstituição e de produção de si, tendo a película A Grande
Beleza (La grande bellezza, Itália, 141min, 2013) como cerne da
reflexão. Por sua vez, questão vizinha à dimensão da estética da
existência é abordada no artigo “Potências da Carne em XXY”
de Fábio Feltrin de Souza, sobre o filme XXY (Argentina, 86min,
2007), no qual o autor buscar amparar uma linha de reflexão
que articula os pontos de encontros e desencontros entre sexo,
gênero e identidade, e seus desdobramentos em processos de sub-
jetivação que podem ser conduzidos como modos de resistência
e linhas de fuga aos dispositivos de domesticação e padronização
de corpos.
A publicação é encerrada com o artigo “Sobre larápios e
espertezas em Nueve Reinas — reflexões sobre a Argentina da
virada do século XXI”, referente ao longa-metragem Nueve Rei-
nas (Argentina, 114min, 2000). Nele José Alves de Freitas Neto
aborda o paradoxo de um cinema sem pretensão de expor os me-
andros do contexto social e oriundo de uma tradição publicitária
que se torna uma referência indispensável sobre crise argentina
de 2001 e as consequências do projeto neoliberal.
Em suma, os filmes comentados nos respectivos artigos dão
conta de um universo extenso, diverso e heterogêneo abarcando
o macrotema Resistências e Jogos de Poder. Os leitores se verão
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 13

confrontados com problematizações de várias ordens que tan-


genciam questões relativas à contracultura e ao engajamento
geracional, às políticas de subversão, aos processos de subjetiva-
ção e configurações identitárias, à atualidade dos debates sobre
classe, raça e gênero (especialmente quando entrecruzados), aos
impactos do neoliberalismo e às relações entre cinema e história.
Esperamos que a leitura do material seja encorajadora para mul-
tiplicar os debates e reflexões, imprescindíveis para o nosso novo
tempo do mundo.

Cassio Brancaleone
Erexim, julho de 2015
15

Capítulo 1.
Em caso de incêndio, deixe queimar
Cassio Brancaleone1

Introdução

O filósofo esloveno Slavoj Zizek, em seu livro Violência


(2014, p. 24), relata uma anedota sobre um oficial alemão que
durante a II Grande Guerra visitou Picasso em seu ateliê em Pa-
ris. Atormentado com o “caos” vanguardista presente no quadro
Guernica, o militar teria se dirigido ao pintor: “Foi você que fez
isso?”. Com calma, Picasso teria replicado: “Não, isso foi feito
por vocês!”. No bojo da obra, a pequena história é utilizada ao
modo zizekiano como analogia às críticas feitas pelos liberais ou
demais intelectuais de extração ideológica, digamos, “moderada e
eivada em responsável prudência”, em relação aos posicionamen-
tos das frações radicais ou revolucionárias da esquerda por sua
simpatia ou adesão direta a revoltas, rebeliões sociais ou demais
processos de ruptura que implique no uso ou desencadeamento
de violência, cujas consequências, muitas vezes, culminariam em
repressão generalizada e/ou “desestabilização das instituições de-
mocráticas”. “É isso que vocês querem?”, indagam reiteradamen-
te os primeiros. A resposta da esquerda radical, seguindo a réplica
ao questionamento feito a Picasso, não deveria ser outra: “Ora,
isso [as explosões de violência] é o resultado da sua política!”.
Podemos dizer que o filme  O que fazer em caso de incên-
dio? (Was tun, wenns brennt?, Alemanha, 101min, 2001)2 é um

1. Professor de sociologia da Universidade Federal da Fronteira Sul e pesquisador


do Grupo de Pesquisas Anticapitalismos e Sociabilidades Emergentes.
2. A ficha técnica do filme pode ser consultada em <http://www.imdb.com/title/
tt0207198/?ref_=nm_flmg_dr_11>. Acesso em: 11 jun. 2015.
16 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

drama cômico sem grandes qualidades do diretor Gregor Schnitz-


ler. Não se trata de nenhuma obra prima do cinema engajado que
aborda de modo reflexivo, provocador ou inovador o tema da vio-
lência política revolucionária, ou qualquer outro assunto que fos-
se fértil ou relevante na via de cruzamento entre cinema e política.
Mas sem dúvidas é um longa-metragem divertido. Se trata de um
trabalho de cinema pop, simples e pedestre cultura pop, que flui
nas correntezas daquilo que é mais esperado e clichê no circuito
da indústria cultural contemporânea, ainda que com um pequeno
colorido libertário de fundo. Aliás, quiçá, por isso mesmo, o fil-
me mereça alguma modesta consideração e esforço hermenêutico.
Pela sua possibilidade de transitar e participar, através de certas
imagens, ideias e sentimentos, dos domínios da vida cotidiana e
do imaginário de homens e mulheres “comuns”. E, assim, talvez,
implicar em potenciais desdobramentos rizomáticos e pequenas
provocações à deriva (Heller, 1982; Lefebvre, 1991). Ou não.
Trata-se de uma história ficcional sobre seis amigos anarco-
punks berlinenses que compartilharam uma experiência política
e comunitária nos idos dos anos 1980 e que são levados a se re-
encontrar em 2001 em função de uma investigação policial que
está prestes a incriminá-los pela explosão de uma bomba caseira.
Em 1987, o coletivo Gruppe 36 fabricou uma bomba com mate-
riais reutilizados em uma panela de pressão e a instalou no inte-
rior de uma mansão abandonada que fora utilizada como base de
operações da embaixada estadunidense na Alemanha Ocidental.
A polícia local havia sido notificada do mesmo em carta do gru-
po, que justificava a ação como uma resposta às atividades do
imperialismo ianque no país. O que eles não esperavam é que o
artefato iria explodir apenas quatorze anos depois, durante uma
visita ao imóvel realizada por corretores de venda, onde aciden-
talmente o dispositivo foi acionado e feriu duas pessoas.
O incidente levou a polícia local a iniciar a busca por “gru-
pos anarquistas e esquerdistas radicais” nos bairros proletários e
ocupações (squatts) da cidade, na tentativa de encontrar indícios
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 17

da participação dos mesmos no atentado. Por azar, o já extinto


Gruppe 36, que também era um coletivo de produção audiovisual
subversiva, possuía imagens dessa ação, na qual inclusive difun-
diam a pitoresca receita caseira do explosivo. Todo o material do
coletivo caiu nas mãos dos agentes da lei quando a polícia invadiu
o espaço habitado pelos dois últimos e fiéis remanescentes da cau-
sa. E, assim, se desenvolve a narrativa do filme: Tim e Hotte preci-
sam fazer contato com os quatro outros ex-integrantes do coletivo
para avisá-los do risco de serem responsabilizados criminalmente
pela explosão. O “passado incômodo” precisa ser desenterrado e
revolvido, quando eles haviam se afastado há uma década e suas
vidas tomaram caminhos distintos e até antagônicos.
O cenário da narrativa tem seus encantos. O ocaso da Guer-
ra Fria e a unificação das duas Alemanhas. Os desdobramentos
do histórico movimento estudantil pós-68 não alinhado com os
dois blocos hegemônicos (EUA e URSS), o crescimento dos gru-
pos pacifistas, ecologistas e antinucleares, a presença do ativismo
juvenil anarcopunk, além da existência de grupos armados de
guerrilha urbana como a RAF (Fração Exército Vermelho)3, este
com fortes conexões com o mundo árabe.
O movimento anarcopunk, que parece ser a principal coor-
denada sociopolítica na qual se localizam os personagens do fil-
me, na verdade integra de forma muito peculiar esse heterogêneo
e complexo universo que é o da (contra)cultura punk, mesclando
um conjunto de traços característicos da música, moda, arte e
comportamento de uma geração em rebeldia nos anos 1970 e
1980 (Macneil & Maccain, 2014; Gallo, 2010). O contraponto
contracultural em relação à rebeldia pregressa dos hippies é justa-
mente uma espécie de estética da agressividade e uma conjugação

3. O RAF foi um controverso movimento armado que floresceu na Alemanha


Ocidental entre os anos 1960 e 1970 e alcançou inesperada notoriedade e simpatia
no país dividido pela Guerra Fria. Para maiores informações, recomendamos o
filme “O grupo Baader Meinhoff” (Uli Edel, Alemanha, 150min, 2008) e o livro
Televisionários (Vague, 2001).
18 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

mais ou menos acentuada entre niilismo e iconoclastia. O para-


doxo é que a afronta às tradições rebeldes anteriores e ao status
quo parecia produzir uma nova “subcultura” ou tradição, com
seus arautos oficiais e dissidentes. De todo modo, o movimen-
to anarcopunk é uma franja desse universo, assumida pelos seus
elementos mais politizados e com fortes inclinações ao ativismo
social inspirados pelo anarquismo. Se uma das características da
cultura punk é o cultivo de um certo princípio da autonomia
expresso no “faça você mesmo” (do it yourself), aos anarcopunks
interessava canalizar esse princípio em ações que produzissem en-
frentamentos diretos com a ordem instituída.
As ocupações de prédios abandonados (públicos ou privados)
— chamados de Squatts, ou mais recentemente Okupas, possuí-
am grande centralidade na ecologia urbana dos grupos políticos
radicais europeus, em contraste com a cultura hippie que alimen-
tava afinidade com o mundo rural e pequenas comunidades, bus-
cando algum tipo de reabilitação ou comunhão junto à natureza.
Não apenas pela aventura e o desafio de ocupar esses espaços
ilegalmente, muitas vezes, na calada da noite, implicando em
arrombamentos e ações sigilosas, mas também pela sua impor-
tância nos processos de formação da solidariedade e identidade
grupal: a própria recriação desses espaços em centros de vivência,
moradia, sociabilidade, trocas e construção de novas formas de
vida era o coração pulsante de muitos movimentos e da rede de
movimentos (as ocupações também se articulavam formando um
novo território de rebeldias que se retroalimentava). Em 1987 o
Gruppe 36, formado pelos personagens do nosso filme, vivia em
um squatt em Berlim ocidental, na rua Machnow, supostamente
uma zona preenchida por espaços anarquistas.
Mas o propósito desse texto, a rigor, não é produzir uma rese-
nha do filme, seja pelo seu aspecto narrativo, semiótico ou cine-
matográfico. O “tratamento hermenêutico” que me proponho a
realizar se resume basicamente na interpretação e leitura pontual
ou “cirúrgica” de duas problemáticas, lançando mão dos dilemas
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 19

dos personagens e algumas imagens, que podem ser exploradas a


partir da trama do longa-metragem: 1) o problema da aquiescên-
cia e da adaptação ao mundo; e 2) o lugar da violência na política.

Corações socialistas, cabeças liberais

No filme, o reencontro dos 6 amigos que foram anarcopunks


na juventude se revela como um verdadeiro laboratório para pen-
sar o problema da aquiescência e da adaptação (de rebeldes e dis-
sidentes sociais) ao mundo estabelecido. Todos os personagens em
2001 estavam próximos da casa dos 40 anos. Com exceção de Tim
e Hotte, que seguiram vivendo na ex-Okupa (que passara a um
cortiço de pequenos proprietários), e plenamente envolvidos com
ativismo político, ações de sabotagem e pequenos crimes contra
grandes redes comerciais privadas, o destino dos demais pode ser
sucintamente descrito desse modo: Maik se tornou um grande e
bem sucedido publicitário, inclusive, graças à conversão de aspec-
tos de seu antigo “estilo de vida” em excentricidades criativas de
grande apelo e sucesso comercial no mundo da moda e da propa-
ganda; Terror se formou em direito e fazia os ares de um advogado
meticuloso, honesto e extremamente zeloso da lei; Nele virou mãe
exemplar e solteira, dona de casa, vivendo de precários empregos
temporários; e Flo, uma madame que aparentemente gozava de
benefícios materiais graças a um “casamento bem acertado”.
O misto de alegria, nostalgia e surpresa gerado pela reunião
dos amigos, separados por uma década, para recuperar o mate-
rial das filmagens apreendido pela polícia, por vezes dava lugar a
uma atmosfera de deslocamento e tensão: enquanto Tim e Hotte
eram tomados pelo desalento ao ver os antigos companheiros em
suas vidas infelizes ou vendidas, reinseridos no sistema contra o
qual lutavam, os demais se apiedavam dos pobres desajustados
que nunca conseguiram “ser alguém” na vida, sem emprego, ne-
gócio, casamento ou casa própria.
20 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Para além da polarização moral que paralisa, do tipo “os dois


lados tem razão e cada qual vive segundo o seu próprio modo”,
o fato é que o lado mais fraco sempre será o que terá que con-
viver com o julgamento do outro que é tido como “normal”,
somado ou multiplicado pela sua própria dúvida a respeito de
suas capacidades de “ser como o outro” e “alcançar o que o outro
alcançou”. Afinal, esse é o principal drama e sentido de ser o lado
derrotado, subalternizado, oprimido e dominado em qualquer
relação de antagonismo social. O drama dos dominadores geral-
mente são outros: óperas, literatura e divã.
Nos diálogos que atravessam o desenrolar da história, que
progressivamente vai assumindo feições de uma atrapalhada
aventura (os “heróis” precisam invadir a delegacia policial para
recuperar os rolos do filme), algumas vezes se faz notar a ob-
servação dirigida a Tim e Hotte como sujeitos que ainda não
amadureceram, dando a impressão de que o mundo (e as ideias)
que eles representam são constitutivos e típicos de um mundo
pueril, de passagem e para jovens. A adaptação ao “mundo adul-
to”, às vezes apresentado como “desideologizado”, como “mundo
real”, em todos os casos visa simbolizar a ordem social com seu
conjunto de instituições e papéis sociais que a sustenta, enfatica-
mente induzida a ser lida na chave do amadurecimento. A título
de exemplo, a mesma operação pode ser observada em outros
dois filmes que tematizam narrativas afins a esse dilema, percor-
rendo distintos caminhos e sob outras premissas estéticas. De
um lado o cult italiano “Nós que nos amávamos tanto” (Ettore
Scola, Itália, 124min, 1994)4 e, de outro, o hollywoodiano “Sem
proteção” (Robert Redfield, EUA, 125min, 2012)5.
No Brasil, o provocativo adágio “Um homem que não seja
um socialista aos 20 anos não tem coração. Um homem que ain-
4. Ver a ficha técnica em <http://www.imdb.com/title/tt0075793/>. Acessado em
11/06/15.
5. Ver a ficha técnica <http://www.imdb.com/title/tt1381404/>. Acessado em
11/06/15.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 21

da seja um socialista aos 40 não tem cabeça”, circulou bastante


pela boca e escritos do economista liberal Roberto Campos, e fez
“a cabeça” de muita gente que ultrapassou as marcas da “puber-
dade política”. De autoria do estadista francês Georges Benjamin
Clemenceau, ela resume com bastante acuidade o esperado pelos
“homens de bem” em relação aos seus concidadãos que expres-
sam ideias radicais de igualdade e liberdade social que impliquem
no questionamento e ruptura da ordem estabelecida. Embora
tais ideias figurem como valores fundacionais de muitas tradi-
ções ideológicas da esquerda moderna, como princípios morais
são compreensíveis, desejáveis e veneráveis, no entanto, somente
aceitáveis e perdoáveis quando dirigem o comportamento, a ati-
tude e o entusiasmo juvenil. Um “homem maduro”, “um adulto”
acima de tudo, deve moderar o peso dos valores que conduzem
seu comportamento tendo a preservação das instituições que as-
segurem a manutenção da “ordem e paz social” como critério.
Porque esse é o critério de civilidade e o cerne da própria noção
de civilização, “conquistada ao custo de muitos sacrifícios”.
O debate pode parecer antigo, ancestral. Mas não é. Esse é o
legado civilizador de uma civilização em particular: o Ocidente
moderno. Seja em Hobbes ou em Freud, da filosofia política à
psicanálise, as primitivas paixões incontidas são as sempre supos-
tas inimigas da ordem civilizada. Como se não houvesse uma pai-
xão da ordem, do controle, da hierarquia e da dominação. Como
se o status quo também não implicasse em valores impostos e
em constantes processos de imposição (internalização, diriam os
funcionalistas, amenizando com isso sua dimensão conflitiva e
de violência), vistos quase exclusivamente sob a dimensão indo-
lor da acomodação e domesticação — pois sintonizados com os
valores vigentes, legítimos ou hegemônicos.
O mundo moderno, ao instituir a instrução pública gene-
ralizada e obrigatória por uma necessidade de corresponder às
exigências da divisão social do trabalho (especialização, treina-
mento profissional e domesticação das massas, não necessaria-
22 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

mente nessa ordem), criou o “fenômeno da juventude” como nós


o compreendemos hoje: uma fração etária da sociedade seletiva
e gradativamente afastada das exigências imediatas de subsis-
tência via trabalho assalariado (provendo ou contratando), cuja
existência social é preservada por uma ou duas décadas entre o
circuito da vida familiar doméstica e das instituições escolares.
Consideradas as devidas clivagens de classe, gênero e raça, que
encurtam ou prolongam a juventude de uns a despeito de outros,
aí estão as condições sociais de emergência do chamado “conflito
geracional” em proporções massivas, até então, impensáveis: se
aos jovens cabe receber o mundo criado pelos adultos, e se fazer
como indivíduos a partir dele, quais as implicações de os jovens
elaborarem uma ou várias identidades coletivas em virtude de
compartilhar experiências por um dado período de suas vidas,
em reação ao que é recebido?
Muitas formas de controle e disciplinamento foram elabora-
das para prevenir o confronto intergeracional e permitir o proces-
so de reprodução social com o “mínimo de ruídos”. Arquiteturas,
instituições, pedagogias, etc. Verdadeiras tecnologias sociais. A
literatura sobre o assunto é farta, e Foucault é apenas o mais
citado ou conhecido. No entanto, os resultados dos processos
mais repressivos funcionaram eficazmente até certo ponto. Com
o tempo, pareciam produzir muitos resíduos perigosos, corpos e
mentes intratáveis ou efeitos colaterais indesejáveis.
A melhor solução encontrada, para além das “intencionalida-
des sistêmicas” em jogo, foi a mais simples de todas. O segredo es-
tava ali, diante dos olhos, no bom e velho liberalismo: laissez-faire.
Que os desajustados se desajustem por um tempo, pelo tempo de
sua juventude, pelo tempo de seu “ócio” socialmente consentido.
Obviamente dentro de certos limites flexíveis, mas ainda limites.
Não tardou para que as próprias instituições da ordem assumis-
sem a rebeldia juvenil como característica intrínseca (biológica?
psíquica?) do próprio jovem nesse “momento tão conturbado” de
sua existência rumo à passagem ao “mundo adulto”.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 23

Verdadeira lição de homeopatia social, a construção e o reco-


nhecimento social da imagem do “rebelde juvenil” foi o melhor an-
tídoto contra o potencial subversivo das contradições geracionais.
Os jovens, protegidos em sua juventude, podem brincar de rebeldes
desde que cresçam e aprendam com isso a aceitar e a conduzir a
passagem de outros jovens ao mundo adulto (Marcuse, 1999).
E solucionado o “problema juvenil”, quer dizer, contornada
suas potencialidades disruptivas, o que fazer com as ideias e prá-
ticas subversivas originadas em outras coordenadas sociais (traba-
lhadores, grupos étnicos, gêneros subalternizados), e que, muitas
vezes, se ancoravam em grupos juvenis, encontrando ali espaços
de desenvolvimento ou mesmo de reinvenção?
Assim, também, as “ideias perigosas” deixaram de ser peri-
gosas: outra vez mais, laissez-faire. Passaram a ter espaços de livre
circulação dentro de limites estatais e mercantis mais ou menos
flexíveis. Obviamente, não sem antes construir para elas uma “ge-
nealogia” no âmbito do pensamento social e político modernos,
na condição de expressões pueris, mas em desenvolvimento de
ideias mais sofisticadas e aperfeiçoadas do processo civilizador em
curso. E bastou juntar as duas pontas para as soluções se comple-
tarem mutuamente: o pensamento radical de um lado e a juven-
tude de outro, como expressões ou elos inaugurais de um mesmo
processo evolutivo linear, constituintes do mundo moderno, au-
toconsciente de seu próprio amadurecimento civilizatório.
No nascente mundo industrial, o operário rebelde é aquele
que ainda não entendeu ou não aceitou (por má fé, ressentimen-
to, déficit cognitivo, desescolarização etc.) que a satisfação de
suas necessidades vitais materiais virão do pleno funcionamento
das “espontâneas” dinâmicas de alocação de investimentos, mão
de obra e mercadorias, no qual o papel dele é atuar “livremente”
com os recursos que lhe são disponíveis (trabalho) para que o
equilíbrio natural se realize.
O jovem desobediente estaria em condição análoga: não en-
tendeu ou não aceitou (aqui por imaturidade) que obediência à
24 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

autoridade paterna, escolar ou governamental se dá no interesse


de seu bem estar (incompreendido pela sua menoridade). Curio-
so como a mais corriqueira sensação de muitos rebeldes, revolu-
cionários e dissidentes sociais é que eles representam um mundo
pueril, imaturo e, caso não sejam jovens (quando se é permitido
transitar por esses universos de ideias e valores), são desajustados,
perigosos, excêntricos ou fracassados.

Entre a violência legítima e


a legitimidade violenta

A principal referência ao uso da violência apresentada no fil-


me é a bomba. O artefato explosivo é uma das marcas de registro
do nascimento do moderno terrorista. Por outro lado, existe tam-
bém a vinculação entre a bomba e a ação política de personagens
oriundos do anarquismo, como Ravachol: no panteão dos moder-
nos “regicidas”, a bomba foi a arma romântica de vingança utiliza-
da contra reis, políticos e militares repressivos. Mas é importante
ter o devido cuidado para não fazer das ações vingativas e, muitas
vezes, desesperadas, que são expressões pontuais na história do
anarquismo (e não exclusivas dele), uma imagem reducionista
que perca de vista o papel desempenhado pelo anarquismo como
movimento social e filosofia política ao longo da modernidade.
No filme, o uso caricato da violência atribuída aos anarquis-
tas se dá logo no início, com as instruções para a confecção de
uma bomba caseira que são gravadas em vídeo pelo Gruppe 36. E
a resolução do problema que reúne os protagonistas — recuperar
as evidências apreendidas pela polícia — também implicou na
construção de uma outra bomba, utilizada para destruir o depó-
sito de provas do quartel policial. Mas as bombas dos anarquis-
tas do filme foram produzidas e destinadas a atingir ou destruir
objetos inanimados, não ferir e matar pessoas. Tanto a bomba
instalada no prédio abandonado da embaixada dos EUA (que
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 25

inclusive notificava a polícia sobre a mesma em carta do grupo),


quanto a enviada para o depósito não visavam assassinar agentes
da lei ou do capital. Não eram atos homicidas de vingança indi-
vidual, como no caso dos clássicos regicidas.
Na verdade, estão muito mais em sintonia com algumas das
ações destrutivas contemporâneas das manifestações cunhadas
pela mídia corporativa como “antiglobalização” (que por sua vez
podem ser relidas à luz do que significou o luddismo para o mo-
vimento operário do século XIX). A moderna cultura de protes-
tos, petições e marchas, como estratégia para vocalizar demandas
sociais, progressivamente se tornou mais legítima e aceitável para
as instituições da ordem e para as pessoas em geral porque se “ci-
vilizou” ao abdicar da violência — o que quer dizer, abdicar de
todo tipo de ação radical que a ordem entende como violência.
Duas consequências podem ser observadas disso: 1) A dissidên-
cia social como oposição política deve conjugar ou pender entre
a utilização de instrumentos para influenciar a opinião pública
(como as ações coletivas “pacíficas” de protesto) e a canalização
de seu poder social nas instituições de direção do Estado reco-
nhecidas pela lei e que possuem o monopólio da representação
política — os partidos; 2) Violento não são apenas os atos come-
tidos contra a integridade física e psíquica dos seres humanos,
mas, especialmente, qualquer ação que implique na ameaça da
autoridade do Estado e danos ao patrimônio público e priva-
do. Claro que tais atos violentos atribuídos às ações coletivas de
grupos que não são agentes públicos nem privados (poderíamos
dizer: cidadãos da sociedade civil, movimentos sociais e popula-
res, etc.), quando praticado pelo próprio Estado ou por grandes
empresas, causando danos à vida das pessoas e ao patrimônio
público e privado, assumem um qualificativo brando, sendo rela-
tivizados, minorados ou mesmo ressignificados, podendo ser jus-
tificados como necessários, inexoráveis, colaterais, externalidades
ou não intencionais, portanto, deixando de ocupar o espectro do
que podemos (ou devemos) entender e aceitar como violência.
26 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Diante de um quadro de dominação e controle sistêmico por


parte de burocratas estatais, financistas e agentes corporativos so-
bre os chamados “mecanismos de produção do consenso social”
(meios de comunicação, espaços públicos, eleições, partidos po-
líticos etc.), e a neutralização do poder real de enfrentamento das
ações coletivas de protestos, uma nova onda de mobilizações so-
ciais despontou no final dos anos 1960, recuperando a cultura das
barricadas do século XIX e reivindicando o uso tópico de ações
destrutivas (entendidas como violentas pela ordem) contra o apa-
rato estatal e corporativo. Por sua vez, as manifestações convoca-
das pelo “movimento antiglobalização” nos anos 1990, especial-
mente aquelas nas quais se fizeram presentes as táticas que vieram
a ser autonomeadas como Black Bloc, podem ser consideradas ex-
pressões, desenvolvimentos e prolongamentos dessa virada.
É nesse sentido que o filósofo John Zerzan (2007), ao refletir
sobre esse cenário dos novos protestos, insiste na necessidade de
operarmos uma verdadeira inversão da moralidade em relação à
concepção de violência veiculada pela ordem: é inconcebível di-
zer que postes, lixeiras, muros, vitrines e caixas eletrônicos foram
violentados em protestos. Argumenta, pois, que a ação direta
destrutiva que ataca bens e propriedades das grandes empresas
e do Estado significa um ataque coerente e imediato aos símbo-
los, objetos e coisas que representam um modelo de civilização
que coisificou o ser humano. Tais atos se legitimam como uma
rejeição prática, destrutiva e convulsiva, mas não como violência.
O imaginário moderno da civilização foi forjado no plano
discursivo como antítese da violência. Nada mais falso. O que
a modernidade instituiu como civilização foi construído tijolo
a tijolo sobre formas tanto “bárbaras”, quanto sofisticadas e ra-
cionais de violência. No final das contas, a única violência não
tolerada é aquela praticada contra a ordem estatal e mercantil,
suas instituições, seus aparatos e seus agentes.
A blindagem moral contra uma suposta ideia absoluta de vio-
lência é hipócrita. Primeiro porque, em geral, os atos são considera-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 27

dos violentos segundo sua procedência, conforme reiterado acima.


Segundo porque, sob o manto (da fábula) do contratualismo ra-
cional, se ignora a violência que fundou todos os Estados moder-
nos, assim como aquela que perpetua e garante sua manutenção.
Terceiro, pois a violência não é um fenômeno uniforme, absoluto,
homogêneo e tranquilo de ser definido. Se é certo que todo assassi-
nato deve ser considerado uma violência, também é verdadeiro que
há muitas maneiras de ser morto, nas quais causas aparentemente
inofensivas (ou “indiretas”) podem ser solidárias. Sendo a violência
relacional, pode ocorrer em níveis e dimensões diferenciados:

Havia dois ‘Reinos de Terror’, se quisermos lembrar e levar


em conta: um forjado na paixão quente; o outro, no insen-
sível sangue frio... Nossos arrepios são todos em função dos
‘horrores’ do Terror menor, do Terror momentâneo, por as-
sim dizer, ao passo que podemos nos perguntar o que é o
horror da morte rápida por um machado em comparação à
morte contínua, que nos acompanha durante toda uma vida
de fome, frio, ofensas, crueldades e corações partidos? Um
cemitério poderia conter os caixões preenchidos pelo breve
Terror diante do qual fomos tão diligentemente ensinados a
tremer e lamentar, mas a França inteira dificilmente poderia
conter os caixões preenchidos pelo Terror real e mais antigo,
aquele indizivelmente terrível e amargo, que nenhum de nós
foi ensinado a reconhecer em sua vastidão e a lamentar da
forma que merece. (Mark Twain apud Zizek, 2014, p. 7)

O “Terror menor e momentâneo” que trata Mark Twain,


aquele que Hobbes praticamente ajudou a “imortalizar” como
“o medo da morte violenta” causada pela situação in natura do
“homem lobo do homem”, o ataque direto à integridade física
e segurança do cidadão, quer dizer, à sua propriedade e à sua
vida, está no cerne de nossos mais arraigados temores que por sua
vez alimentam todas as chamadas políticas de segurança públi-
ca dos Estados modernos. O que raramente nos ocorre é pensar
28 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

justamente a inversão disso: a artificialidade dessa condição ho-


bbesiana na qual uma determinada estrutura social e econômica
competitiva e darwinista (no sentido vulgar do termo) produz em
escala massiva o homo homini lupus e a insegurança e, dessa forma,
cria não só o inimigo público número um do ocidente moderno
(o marginal ou fora da lei, do bandido pé-de-chinelo ao narco-
-empresário — que mais recentemente compartilha esse status
com o terrorista islâmico), como também seu nêmesis, o policial,
agente-a-serviço-da-lei ou soldado, herói público das principais
produções cinematográficas dos últimos 100 anos, além de todo
os aparatos de controle e repressão que lhe são correspondentes.
Obviamente, não se trata de aceitar ou justificar esse “terror
menor”, que Zizek denomina como violência subjetiva, aque-
la sofrida diretamente pelos indivíduos nas situações usais que
denominamos como crime. Mas situá-lo no interior de uma ca-
deia mais complexa de violações, agressões e sofrimentos e buscar
uma compreensão melhor sobre as suas correlações. Zizek (2014,
p. 17) nos apresenta a noção de “triunvirato da violência” como
uma forma de refletir sobre essa cadeia, na qual estão incluídas,
além da violência subjetiva mencionada acima, a simbólica e a
sistêmica. Por violência simbólica remete à própria estrutura da
linguagem, que nos aprisiona em determinadas visões de mundo
difíceis de ser superadas ou negociadas. A colonização das Améri-
cas e o etnocídio das populações autóctones, por exemplo, ao im-
plicar na imposição das línguas europeias, produziu não apenas
novas relações sociais no novo território, mas igualmente elimi-
nou um conjunto de valores e representações que morreram com
muitos idiomas ameríndios. E o próprio processo de socialização
dentro de uma cultura também é um ato de violência simbólica,
quando essa cultura se apresenta (quase sempre) como referência
exclusiva ou absoluta, o que torna a violência simbólica pratica-
mente um traço dificilmente inescapável da condição humana.
Já a violência sistêmica pode ser remetida ao que Mark Twain
chama por violência invisível, esse “terror real e mais antigo” de toda
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 29

uma vida de privações, exploração, fome, frio, crueldades, etc. É par-


te integrante dos próprios sistemas sociais baseados em regimes de
desigualdades e hierarquias, no qual determinados estratos sociais
possuem acesso privilegiado a recursos materiais e status em detri-
mento de outros. Essa violência sistêmica que, inclusive, está na raiz
de muitos (certamente não todos) fenômenos associados à violência
subjetiva, muito especialmente os crimes associados à pobreza (ainda
que os especialistas da área tentem toda forma de ginástica e prestidi-
gitação teórica para desvincular uma coisa da outra).

Brincando com fogo: considerações finais

Em uma das últimas cenas do filme, quando o grupo se encon-


trava no interior do quartel policial para resgatar Hotte que por des-
cuido havia se metido na caixa com a bomba enviada para destruir
as evidências, o policial Manowsky, velho conhecido dos ex-ativistas
e prestes a se aposentar, se dirige a Tim com uma pérola que é típica
do auge do consenso neoliberal dos anos 1990, e ainda hoje faz su-
cesso: “a linha de batalha já não é mais entre esquerda e direita, mas
entre os vencedores e os coitados que se recusam a ceder”.
Só não parece claro para quem não quer entender: aos inaptos,
só lhes resta ceder. Àqueles que estão em desacordo com as regras
do mundo estatal e mercantil-corporativo (que estão longe de ser
regras democráticas e igualitárias), só lhes resta ceder. Desneces-
sário insistir na dimensão desideologizante da “nova” ideologia.
É certo que ao enfatizar a dimensão violenta que funda e
orquestra a existência de qualquer ordem social, no bojo daquilo
que ficou conhecido na linguagem sociológica e jurídica como
“violência legítima”, é salutar termos o cuidado de não atribuir a
essa violência (e às outras) o papel de bastião exclusivo do poder.
Afinal, toda violência por mais eficaz que seja também não deixa
de ser onerosa e produzir seus efeitos (contrários).
Um batido truísmo sociológico já nos diz que uma ordem
social estável, para se reproduzir temporalmente sem grandes
30 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

abalos, necessita fundar seus mecanismos de integração em pro-


cessos nas quais o consenso, algumas vezes garantido por estru-
turas verticalizadas, jogue um papel mais importante do que a
violência. Isso também significa o relativo sucesso dos mecanis-
mos de dominação em estabelecer no imaginário social o que se
pode ou não entender como violência, e nesse âmbito, qual ação
violenta é legítima a despeito de outras. Em meados do século
XVI, Étienne de La Boétie (2003) escrevia que toda tirania, por
mais forte que seja, se funda não exclusivamente na força ou ca-
pacidade intrínseca do soberano, mas igualmente na aceitação e
aquiescência dos súditos, o que chamou por servidão voluntária.
O mesmo raciocínio deve se aplicar para a compreensão de qual-
quer ordem social temporalmente estável.
A articulação complexa entre imposição e aquiescência pode,
assim, ser entendida como parte fundamental de qualquer “loga-
ritmo” da ordem social. Desse modo, para os grupos sociais dis-
sidentes e rebeldes com intenções revolucionárias, delicadas são
as questões em jogo. Algumas breves considerações: 1) Resistir ao
consenso imposto e aos atos de violência legítima da ordem im-
plica em atuar em muitas frentes, necessariamente conjugando a
disseminação de contravalores ou valores outros e estabelecendo
outras e novas práticas sociais, nômades ou em territórios “to-
mados”; 2) Muitos desses valores e práticas, mesmo ocorrendo
“pacificamente”, inevitavelmente serão reconhecidos como atos
de violência pelos agentes da ordem, podendo ser tratados pela
ordem de diferentes modos segundo o grau de ameaça que repre-
sentam; 3) A disputa semântica dos atos ou a luta pela direção do
sentido da ação política direta é fundamental para desconstruir
a gramática da ordem e fomentar a construção de um novo ima-
ginário compatível com a sociedade que se quer transformar; 4)
Assim como a violência ofensiva e destrutiva contra os objetos e
símbolos do poder estatal e mercantil pode tanto ser provocada
pela ou provocar a violência reativa e convulsiva das explosões
populares e massivas, como ensina Georges Sorel (1992), como
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 31

prenúncio de potenciais insurreições sociais, a desobediência ci-


vil não violenta também é uma relevante escola de politização
popular e pode proporcionar uma não desprezível atmosfera de
organização popular; 5) Sem vanguardas habilitadas, os coletivos
e grupos radicais precisam estar dispostos a se articular e colabo-
rar, formando redes e constelações de ação, apoio e solidariedade;
6) Independente dos meios e linguagens empregados pelos diver-
sos grupos e coletivos, a afirmação e exacerbação da existência da
luta de classes como antagonismo social fundamental é crucial
se o horizonte ético-político é a construção de uma ordem social
livre, autônoma e igualitária; e 7) Mesmo admitindo (e acredi-
tando) na importância da correlação “ação coletiva politicamente
orientada” e “mudança”, há de se considerar os fatores “irracio-
nais” e “não intencionais” desdobrados da própria dinâmica sis-
têmica por parte dos agentes do Estado e do Capital na produção
das crises, impasses e colapsos generalizados.
Por fim, se não queremos seguir o conselho do filósofo mar-
xista Zizek, muito cômodo aliás para intelectuais e aqueles que
possuem uma posição confortável na divisão social do trabalho,
ao afirmar que atualmente o melhor desafio que podemos re-
presentar ao capitalismo é simplesmente não fazer nada, ou seja,
não lhe dar trabalho para que ele não seja capaz de se adaptar às
oposições que produzimos, praticando uma espécie de “resistên-
cia passiva”. Diria que toda e qualquer ação e atitude desafiadora,
por mais insignificante que seja, é água para o moinho da mu-
dança. Talvez a única exceção que faria à “resistência passiva” de
Zizek seria a não colaboração diante de um colapso de grandes
proporções ou encruzilhada crítica que pode se avizinhar: aí sim,
em caso de incêndio, deixe queimar...

Ficha técnica do filme


Título original: Was tun, wenn’s Brennt?
Direção: Gregor Schnitzler
32 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

País: Alemanha
Ano: 2001
Data de estreia: 2001
Duración: 101 min.
Elenco: Aykut Kayacik, Barbara Philipp, Devid Striesow, Doris
Schretzmayer, Jamie Schuricht, Klaus Löwitsch, Martin Feifel,
Matthias Matschke, Nadja Uhl, Sebastian Blomberg, Til Schweiger
Distribuidora: Columbia Pictures
Produtora: Claussen & Wöbke Filmproduktion GmbH
33

Capítulo 2.
Cinema e História:
Edukators, de Hans Weingartner
Gerson Wasen Fraga1

Berlim, início do século XXI. Na cidade cosmopolita, outro-


ra símbolo da Guerra Fria, vive Jule (Julia Jentsch), uma jovem
que passa por sérios problemas financeiros após se envolver em
um acidente de trânsito no qual destruiu o carro de um rico em-
presário. Responsabilizada judicialmente pelo ocorrido, Jule deve
pagar o valor do veículo, nada menos do que cem mil Euros, o
que faz com que praticamente todo o fruto do seu trabalho tenha
como destino o pagamento da dívida. Por conta disto, Jule não
consegue mais quitar o valor de seu aluguel e deve mudar-se para
um lugar menor e mais modesto, providenciando ela mesma,
como medida de economia, a pintura necessária para a entrega
do imóvel que está desocupando. Quem poderia lhe ajudar nesta
empreitada seria seu namorado, Peter (Stipe Erceg), que alega
viver como “colador de cartazes” na capital alemã. Peter, no en-
tanto, viaja para Barcelona no final de semana em que Jule faz
sua mudança, não sem antes pedir a seu melhor amigo, o intro-
vertido Jan (Daniel Brühl), que auxilie sua namorada.
Durante a mudança, dois acontecimentos irão mudar a vida
de Jule. O primeiro é o fato de se envolver com Jan, o que fu-
turamente colocará em xeque as relações de afeto e amizade que
envolvem o trio. A segunda, menos previsível, é descobrir que
Peter não passa suas noites colando cartazes junto com Jan. Na
verdade, os dois amigos promovem ações de contestação ao capi-

1. Professor do curso de História da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS) e


do programa de pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH).
34 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

talismo, invadindo mansões com o intuito de trocar os móveis de


lugar sem roubar nada. Nestas ações, Jan e Peter deixam bilhetes
com mensagens tais como “seus dias de fartura estão contados”
ou “vocês têm dinheiro demais”. Os jovens se identificam como
“Os Educadores” e sua única finalidade é espalhar o medo entre
a alta burguesia berlinense.
Impressionada com o que descobre, Jule praticamente obriga
Jan a invadirem a casa de Hardenberg (Burghart Klaubner), o
milionário a quem ela deve pagar os danos do acidente. Seria
uma ação corriqueira para os Educadores, apenas com Jule no
lugar de Peter, não fosse o caso da jovem esquecer seu telefone ce-
lular na mansão de Hardenberg. Na noite seguinte, quando Peter
já havia retornado de sua viagem à Barcelona, Jan e Jule retornam
secretamente à mansão para recuperar o telefone, mas são sur-
preendidos pelo dono da casa que naquele momento retornava
de viagem. Sem outra saída, Jan e Jule sequestram Hardenberg e
chamam Peter para os auxiliar. O trio resolve, então, ir para uma
casa de campo com seu refém até que encontrem uma solução
para o caso. Diante do ambiente bucólico e da situação insólita,
Jan, Jule e Peter terão a oportunidade de redescobrir e repensar
sua relação, ao mesmo tempo em que Hardenberg poderá se con-
frontar com seu presente e seu passado.
Este é, em linhas gerais, o enredo de Edukators (Die Fetten
Jahre sind vorbei), produção germano-austríaca de 2004, dirigido
por Hans Weingartner. Lançado em um contexto de efervescên-
cia dos movimentos anticapitalistas no mundo e integrante de
uma ótima safra do cinema alemão, o filme acabou sendo indi-
cado para a Palma de Ouro do Festival de Cannes daquele ano,
o que reflete sua boa recepção por parte do público e da crítica.
Edukators, porém, não é um filme voltado apenas para seu pre-
sente, sendo um ótimo objeto de estudo para considerarmos as
relações entre o cinema e a história. É sobre tais relações que
iniciamos agora nossa reflexão.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 35

O cinema (des)educador

As percepções criadas a respeito do cinema durante o tempo


são diversas. Se desde seu princípio o status de nova forma de arte
era evidente (como negar tal status a uma comédia de Chaplin
ou a uma produção de Georges Méliès?), o cinema também foi
considerado uma forma de escapismo, notoriamente nos períodos
de grande convulsão social, como após a crise de 1929, quando as
sessões que cobravam ingressos baratos atraíam legiões de desem-
pregados que não encontravam outra forma de passar seus dias.

Ostentando nomes oníricos como La Scala, Rialto e Regal,


os cinemas traziam duas horas e meia de escapismo em ce-
luloide para a população, possibilitando que ela esquecesse
suas dificuldades”. (Parker, 2009, p. 295)

Simultaneamente, outras funções para a “sétima arte” não pas-


savam despercebidas por aqueles que tinham a incumbência de
pensar novas formas de propaganda e difusão política, gerando
obras até hoje lembradas por seu caráter técnico inovador, tais como
Olímpia, de Leni Riefenstahl, ou Alexandre Nevski, de Eisenstein.
Fosse como arte, instrumento de escapismo ou peça política,
uma característica se fazia presente em todas as finalidades atri-
buídas ao cinema: a capacidade de operar com o campo sensorial
do espectador. Inserido em uma sala escura e tendo à sua frente
uma tela com projeção luminosa, este tinha sua atenção direcio-
nada à imagem ali exibida, sendo transportado, então, para locais
e tempos distintos de sua realidade. Ainda assim, o filme deveria
necessariamente lhe dizer algo, dialogar com seus códigos, com
seu presente ou com sua percepção acerca do passado e/ou do
futuro, proporcionando conexões de sentido capazes de fazê-lo
compreender a narrativa e identificar nesta elementos imagéticos
ou discursivos dotados de sentido.
36 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Os sentidos do observador são suspensos, como se estives-


sem fora do tempo e do espaço, atribuindo-lhes um grau
de imaterialidade que preenche todos os espaços de quem
se dispõe a aceitar este jogo, esta experiência. A projeção de
um filme não tem uma localização física e permanente, ela
não desenvolve uma cristalização afetiva do objeto, pois no
seu ato de exibição ela se apresenta impalpável, fugaz e des-
materializada. São justamente estas duas categorias, tempo
e espaço, que estabelecem um ponto chave na reflexão sobre
a imagem cinematográfica e suas relações sobre as impli-
cações destes elementos para a história. Tal imagem inter-
naliza o duplo dentro de si mesma e expressa a soma dos
campos mentais e materiais, as quais revalorizam ou pioram
a realidade que é exposta. Realidade que se tenta capturar ao
máximo possível com a arte realista, onde a imagem obje-
tiva tenta ressuscitar nela as qualidades da imagem mental.
(Quinsani, 2014, p. 30)

Desta forma, desde muito cedo o cinema passou a operar


como uma espécie de “máquina do espaço, do tempo e da reali-
dade” capaz de conduzir o olhar do espectador para o passado e
para o futuro, para outras dimensões do presente ou ainda para
universos paralelos cheios de fantasia. Aqui a relação entre cine-
ma e história começa a ganhar sentido, uma vez que sabemos que
os fatos retratados no cinema, sejam eles históricos ou não, nada
mais são do que representações criadas a partir de certo ponto de
vista (normalmente o do diretor ou de quem está financiando
seu trabalho) e dentro de determinado contexto histórico. Esta
discussão ganha maior sentido uma vez que, tal qual os histo-
riadores, os cineastas são incapazes de recriar o passado em sua
exatidão, oferecendo antes respostas para questões ligadas ao seu
presente. Ainda quando se propõem a trabalhar dentro do gêne-
ro documental, o cinema opera com seleções de imagens, de do-
cumentos, de depoimentos, de versões, aproximando-se muito
do fazer historiográfico.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 37

Tal ponto pode parecer pacífico àquelas pessoas acostumadas


aos meandros das operações historiográficas, aos cineastas, ou
mesmo aos expectadores cujo olhar esteja mais “educado” à lin-
guagem das telas. Contudo, a utilização cada vez mais frequen-
te do cinema como objeto de reflexão historiográfica dentro de
todos os níveis de ensino tem aproximado o público leigo, me-
nos afeito a tais reflexões, das representações históricas oferecidas
pelo cinema. O resultado é um imbricamento cada vez maior en-
tre o saber histórico e as leituras imagéticas, não exatamente em
proporções iguais, uma vez que vivemos em uma sociedade cada
vez mais regida pela imagem e por uma pretensa necessidade de
acesso rápido à informação. Logo, o filme, quando utilizado sem
maiores preocupações reflexivas, acaba por tornar-se tão somente
mais uma ferramenta ilustrativa, diante da qual cabe apenas ao
espectador afirmar: “foi assim que aconteceu”.2
Esta confusão entre o saber historiográfico e a produção de
um passado através do cinema é facilmente perceptível – inclu-
sive em algumas provas que recebemos enquanto professores do
ensino superior – ao abordarmos os assim chamados “grandes
momentos da história”, tais como a descoberta do continente
americano, a Revolução Industrial, a diáspora africana causada
pela escravidão ou a Segunda Guerra Mundial.3 Para além disto,
esta equiparação entre o acontecimento real e sua representação
tem o efeito de obliterar as questões do momento em que o fil-
me é produzido muitas vezes mais presentes na tela do que o
próprio passado ali representado. Uma simples “arqueologia” dos
vilões no cinema norte-americano (que passam de indígenas a
comunistas russos ou alemães orientais, chegando no presente
aos terroristas árabes ou muçulmanos em geral) é elucidativa nes-

2. A expressão teria sido utilizada pelo Papa João Paulo II, em 2004, após haver assis-
tido ao filme “A Paixão de Cristo”, dirigido por Mel Gibson. Posteriormente, o Va-
ticano negou que o Sumo Pontífice tivesse emitido qualquer opinião sobre o filme.
3. Vale aqui relembrar que mesmo o saber historiográfico não deve ser confundido
com a verdade pura e simples.
38 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

te aspecto, muito nos dizendo também quanto às possibilidades


do cinema na propaganda política.
Seja como arte, escapismo, propaganda ou simplesmen-
te como testemunha do seu tempo, o certo é que o cinema se
constitui em um produto cultural que exigiu e obteve, por seus
próprios méritos, a atenção dos historiadores e de outros cientis-
tas sociais. Seu poder de criar representações e de influenciar na
forma com que as pessoas imaginam e compreendem a história é
algo que não pode mais ser ignorado. Voltemos agora ao contex-
to de produção de Edukators.

Primeiro Plano: Berlim, 2004

Os primeiros anos do século XXI podem ser considerados


como um período de transição. Por um lado, o neoliberalismo,
hegemônico ao longo da década anterior, ainda celebrava aqui-
lo que entendia como sua supremacia incontestável após uma
série de acontecimentos paradigmáticos, tais como a queda do
Muro de Berlim (1989), a reunificação alemã (1990) e o fim da
União Soviética (1991). A difusão do “pensamento único” e a
perspectiva do “fim da história”, entendidos como a impossibi-
lidade de existência de novas alternativas socioeconômicas fora
da economia liberal eram festejadas nos escritórios dos grandes
bancos e nas telas das grandes redes de TV. A utopia da aldeia
global (ainda que com globalizantes e globalizados) parecia haver
se tornado uma realidade e a nova revolução tecnológica, pos-
sibilitando a informação e a comunicação em tempo real com
quaisquer cantos do mundo, dava a prova definitiva dos novos
tempos que surgiam.
Este cenário de vitória inconteste, porém, não escaparia ilesa
a um olhar um pouco mais aprofundado:

Na virada do século e do milênio, ao lado do progresso, con-


figuram-se elementos de regressão social, política e cultural-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 39

-ideológica, prenunciando o que Alain Minc denominou de


A nova Idade Média. A era da informática é também a dos
fundamentalismos, do desemprego estrutural e do renasci-
mento dos nacionalismos tribais. Por trás do caos e do cená-
rio de “fim dos tempos”, o que se processa é, em realidade,
a luta pela articulação de um novo sistema mundial, apoia-
do num novo paradigma social e produtivo que substitua o
fordista-keynesiano. Este período de crise e transição, cujos
resultados não se encontram pré-determinados, poderá du-
rar ainda mais umas duas décadas. (Vizentini, 1999, p. 9)4

De fato, o clima de euforia dos sacerdotes do mercado livre não


resistiria por mais de uma década. No primeiro dia de 1994, os cam-
poneses Zapatistas mexicanos de Chiapas desceriam as montanhas,
deixando claro que a história e o sonho de uma sociedade alternativa
ao capitalismo ainda não haviam chegado ao fim. Quatro anos mais
tarde, a organização Ação Global dos Povos (movimento anticapi-
talista proponente da ação direta) e os conflitos de Seatle durante a
reunião da Organização Mundial do Comércio trariam novamente
ao primeiro plano as ruas como cenário de protestos, com grande
participação de jovens urbanos descontentes com o ritmo imposto
por uma sociedade de consumo desenfreado. Em 2001, a primeira

4. No exato momento em que este texto está sendo produzido, a França enfrenta
uma sequência de atentados terroristas promovidos por grupos fundamentalistas
islâmicos e milhares de pessoas buscam refúgio na Europa, tentando escapar da
Guerra Civil na Síria e do terror imposto pelo grupo Estado Islâmico neste país e no
Iraque. Outros tantos milhares de europeus engrossam manifestações de rua contra
o Islã, dando mostras de uma perspectiva não menos fundamentalista, enquanto
número não menos menor marcha propondo a não criminalização do Islã e a convi-
vência pacífica entre os povos. Na Nigéria, uma explosão causada por uma menina-
-bomba deixou duas dezenas de mortos e um igual número de feridos. O atentado,
ao que tudo indica foi organizado pelo grupo extremista Boko Haram. No Iêmen,
outro atentado, este contra uma escola de polícia, matou cerca de 40 pessoas. No
Brasil, as viúvas do regime militar tiram os seus véus e vão às ruas, propondo o fim
da democracia, tendo como base de sua argumentação uma possível “cubanização”
ou “bolivarianização” da política nacional, revivendo assim argumentos da Guerra
Fria. Se sabem quem foi e o que propunha Simón Bolívar, é algo duvidoso.
40 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

edição do Fórum Social Mundial, organizado como alternativa ao


Fórum Econômico Mundial de Davos, tentaria sistematizar as di-
versas propostas alternativas ao capitalismo.
Do outro lado, o atentado contra o World Trade Center em
2001 marca a afirmação de um novo período dentro do imperia-
lismo, no qual os recursos bélicos outrora destinados à Guerra Fria
(e durante a década de 1990 direcionados a inúmeros conflitos
periféricos, como o processo de balcanização da antiga Iugoslávia
e o terror de Estado promovido pelos sionistas contra os palesti-
nos) encontrariam agora uma nova finalidade: o controle das zonas
produtoras de petróleo no Oriente Médio. Esta nova fase pode ser
também entendida como uma tentativa dos Estados Unidos de
reafirmarem sua supremacia no plano geopolítico diante da emer-
gência de novos blocos, tais como a União Europeia, o Mercosul e
a Asean, cujas propostas envolvem a descentralização da economia
mundial e um aprofundamento de relações à margem do controle
estadunidense. Cabe lembrar também que esta nova fase, inau-
gurada em 2001, contou também com um processo de anestesia-
mento promovido pela grande mídia, uma vez que era necessário
agora transformar antigos aliados em eternos inimigos.5
Mas não era somente a geopolítica que daria mostras do quão
precoce havia sido a comemoração dos defensores do Consenso
de Washington. Ainda em 1997, o capitalismo vivenciaria mais
uma de suas crises cíclicas, atingindo em cheio os chamados “Ti-
gres Asiáticos” (Coreia do Sul, Filipinas, Indonésia, Malásia e
Tailândia), provocando o temor de que uma escalada de quebras
das bolsas de valores pudessem ocorrer ao redor do mundo.6
5. Durante o período de invasão soviética ao Afeganistão (1979-1989), o Taliban foi
sistematicamente apoiado, financiado e armado pelos Estados Unidos. As relações
comerciais entre a família Bush e a família Bin Laden são conhecidas, embora nega-
das. Já Saddam Houssein, durante a Guerra Irã-Iraque (1980-1988) recebeu apoio
ostensivo dos Estados Unidos, o que não impediu que estes vendessem armas aos
iranianos para obter recursos e assim financiar a luta dos antisandinistas na Nicará-
gua, através do esquema posteriormente conhecido como “Escândalo Irã-Contras”.
6. Vale lembrar aqui que o processo de recuperação econômica mais exitoso destes
países foi o desenvolvido pela Indonésia, que fez exatamente o contrário do que
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 41

O fantasma da crise global retornaria a partir de 2004, quan-


do a bolha imobiliária norte-americana, originada pelo ofereci-
mento de créditos fáceis com alto risco de retorno, estourou. A
crise se estenderia até o fim da década, gerando um quadro de
intervenção governamental no sistema financeiro (algo hipote-
ticamente avesso ao receituário liberal), de injeção de recursos
por parte do capital petrolífero árabe que, assim, passou a gozar
de maior intervenção no sistema, e de gigantesca inadimplência
(cerca de 500 bilhões de dólares) que também pode ser contabili-
zada através dos dois milhões de norte-americanos que perderam
suas casas.7 É neste contexto que a história de Jan, Jule e Peter se
desenrola. Voltemos novamente agora nossa atenção ao cinema.

A produção cinematográfica alemã no começo


do século XXI

No começo do século XXI, os cineastas alemães brindaram os


cinéfilos do mundo inteiro com algumas produções de altíssimo
nível, que encontraram grande receptividade por parte de público
e crítica. Talvez o início desta safra possa ser demarcado com Corra
Lola, corra, ainda de 1998. Na sequência temos o ótimo Adeus, Lê-
nin!, de 2003, A Queda, de 2004, Edukators, produzido no mesmo
ano e A vida dos outros, de 2006.8 Muito embora os temas abor-
dados nestas produções sejam diversos e seus cenários nos levem
da Segunda Guerra Mundial ao contexto de suas filmagens, há, a
nosso ver, um claro elo de ligação entre os roteiros: a reflexão sobre

propunha o receituário neoliberal, reduzindo a taxa de juros, aumentando os gastos


públicos e fixando as taxas de câmbio.
7. Para melhor compreender a crise de 2004, recomenda-se o ótimo artigo de Fer-
nando López D’Alesandro, “Os Estados Unidos e sua crise econômica”, publicado
originalmente no site espanhol “Rebelión”. O artigo encontra-se disponível, em
português, em: <http://cartamaior.com.br/?/Editoria/Internacional/Os-Estados-
-Unidos-e-sua-crise-economica-%0D%0A/6/14010>. Acesso em: 11 jan. 2014.
8. Esta pequena lista é, evidentemente, arbitrária, e outros títulos podem ser somados.
42 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

a nova realidade vivenciada a partir da década de 1990, que cele-


brava a reunificação alemã e a vitória do capitalismo, ao mesmo
tempo em que o leste europeu passava a fornecer: 1) a mão de obra
barata para a indústria; 2) um cenário promissor para o submundo
do crime através da ação de máfias que se instalavam nos vazios de
poder após a queda do socialismo; 3) um enorme contingente de
pessoas que não encontrava inserção na nova realidade e que ter-
minariam por alimentar as fileiras dos movimentos políticos sau-
dosistas do socialismo real e; 4) novos migrantes para os países do
ocidente onde estes seriam eventualmente responsabilizados pelo
desemprego estrutural da economia de mercado livre, tornando-se
inclusive alvo da violência dos adeptos do neonazismo.
Dediquemos um espaço para demonstrar os exemplos. Corra
Lola, corra, o mais antigo dos filmes aqui citados, tem como centro
de seu enredo a tentativa desesperada da filha de um banqueiro
pelas ruas de Berlim para salvar seu namorado, envolvido com o
submundo do contrabando naquela cidade, algo que ficaria fora
de contexto em uma Berlim Ocidental de anos antes, verdadei-
ro cartão de visitas do capitalismo e modelo máximo do Estado
de Bem-Estar Social encravado dentro do mundo socialista. Em
Adeus Lênin!, as peripécias do protagonista para esconder da mãe o
fim do regime socialista após esta acordar de um período de coma
envolvem sua irmã e seu cunhado, que trocam os estudos uni-
versitários no mundo socialista que ruiu por empregos em redes
de fast food na nova Alemanha às portas da unificação. A história
ainda nos apresenta os antigos amigos da mãe do protagonista,
pessoas idosas que não encontram sentido nem colocação na nova
realidade. A Queda, filme que remete aos últimos dias do nazismo
na Alemanha, pode parecer o “ponto fora da curva” em nossa lista.
Contudo, lembremos que o filme parte das memórias pessoais de
Traudl Junge, secretária pessoal de Hitler, encerrando com uma
severa autocrítica desta a respeito de sua postura de “desconheci-
mento dos fatos” no passado. Ora, sendo a Alemanha Oriental,
unidade política que, então, desaparecia, um dos resultados diretos
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 43

do evento demonstrado no filme, urgia (re)fazer naquele momento


um acerto de contas com aquele passado, ainda mais consideran-
do-se o crescimento dos movimentos neofascistas naquele período
e o próprio preconceito dos alemães ocidentais após a reunificação
em relação àqueles que habitavam no antigo lado oriental.9 Já em
A vida dos outros, o foco temporal volta ao fim do regime socialista
e à reunificação da Alemanha, sem a pretensão cômica de Adeus,
Lenin!, mas abordando as diferenças de perspectiva entre o intelec-
tual inserido na nova realidade e o antigo funcionário encarregado
de espioná-lo, socialmente excluído no novo contexto.
Edukators enquadra-se dentro de uma lógica semelhante. As
atividades anticapitalistas de Jan e Peter remetem diretamente
aos movimentos de contestação e ação direta surgidos a partir
da década de 1990 e aprofundados no começo do século XXI.
Da mesma forma, a desigualdade social ilustrada na relação en-
tre Jule e o empresário Hardenberg não caberia dentro de uma
Berlim que, durante a Guerra Fria, simbolizava a política de Bem
Estar Social do ocidente capitalista europeu. Sob este aspecto,
Edukators apresenta a crítica ao modelo de sociedade que emerge
após a vitória do capitalismo e que, a par de suas promessas, con-
duz aos conhecidos quadros de desigualdade econômica e exclu-
são social. Há, porém, um acerto de contas a ser feito com o pas-
sado, uma vez que há um detalhe da vida pessoal de Hardenberg
desconhecido pelo trio de protagonistas: quando jovem, ele fora

9. “Estes fenômenos [de ascensão de movimentos fascistas] começam a se manifes-


tar de forma preocupante na Europa e a extrema direita aproveita para mostrar sua
face. Não apenas arruaceiros com suásticas jogando Coquetel Molotov em alber-
gues ou espancando estrangeiros. Os fatos são alarmantes, como no caso das pes-
soas chegadas do Leste Europeu e que ficam acampadas próximo das estações fer-
roviárias na Alemanha (região do Ruhr), quando jovens neonazistas são pagos por
pessoas vizinhas para expulsá-los dali, numa tentativa de continuar a tranquilidade
nas redondezas. Ora, a queda do Leste Europeu ampliou em muito o problema das
migrações, onde uma massa de refugiados, se dizendo perseguidos políticos ou de
origem alemã, ou ainda fugindo de guerras, chega à Europa Ocidental diariamen-
te”. (Vizentini, 2000, p. 35)
44 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

um ativo militante nos acontecimentos de 1968, levando um es-


tilo de vida que em nada lembra o bem sucedido empresário do
presente. Diante de seus sequestradores, Hardenberg revive seu
passado, tendo a oportunidade de refletir sobre sua própria traje-
tória. É hora de voltarmos aos anos sessenta.

Segundo plano: Berlim, 1968

A década de 1960 representou, dentro da história da cultu-


ra ocidental, um marco no que se refere ao surgimento de mo-
vimentos de contestação ao capitalismo e proposição de novas
formas de organização social e de novas tendências culturais até
hoje lembradas e reverenciadas. Tempos de celebrar a liberdade e
sonhar com um mundo de paz e amor, sentimentos que em mui-
to contrastavam com os medos advindos da Guerra Fria e com
as imagens quentes que chegavam do Vietnã através da televisão.
Embora esteja fora dos escopos deste artigo uma análise mais
aprofundada dos motivos que fizeram deste um período histórico
de notável ebulição, devemos lembrar aqui que naquele momen-
to a sociedade de consumo e bem-estar social gerada como res-
posta aos desdobramentos do final da Segunda Guerra Mundial
mostraria seus limites. Nos Estados Unidos, o modelo estrutura-
do sobre o consumo e a família tradicional, usufruindo dos avan-
ços da técnica que chegavam até a vida cotidiana sob a forma de
novos eletrodomésticos (os seriados de TV da época transforma-
ram o vendedor de aspiradores de pó em uma figura paradigmá-
tica), e onde se permitia uma rebeldia controlada não oferecia as
necessárias respostas para uma geração que cresceu à sombra da
exclusão social (econômica e/ou racial) e onde os interesses pro-
dutivos da indústria se relacionavam de forma demasiado íntima
com o sistema educacional superior. Por falar neste, suas estru-
turas arcaicas tornavam-se um objeto especial da crítica e da ira
de muitos jovens. Na França, a onda de manifestações estudantis
engajou-se com uma greve dos operários, provocando um mês de
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 45

turbulências políticas que em dado momento parecia colocar fim


ao governo de Charles de Gaulle.10 O quadro de ebulição social
espalhou-se pelo mundo, atingindo países tão diversos como o
México, Brasil, Japão, ou Iugoslávia. Muito embora o contexto
de cada país permita pensar este fenômeno como uma onda de
reivindicações específicas, a agilidade já atingida pelos meios de
comunicação possibilitava a criação de vínculos de solidariedade,
conferindo um caráter unívoco à onda contestatória.

Foram ainda os estudantes de Berkeley que, na vanguarda


do movimento estudantil americano, deram um exemplo
extraordinário da solidariedade da Internacional Estudan-
til, protestando contra a brutalidade da repressão das mani-
festações estudantis em Paris, por duas noites, nas ruas de
Berkeley e construindo barricadas. Como pela primeira vez
os policiais utilizassem bombas de gás lacrimogêneo contra
os estudantes, estes responderam também pela violência,
jogando paralelepípedos e coquetéis Molotov dos telhados
dos edifícios vizinhos. (Matos, 1981, p. 16)11

Tais acontecimentos seriam também sentidos na Alemanha.


Ali, a Sozialistische Deutschen Studentenbund (SDS)12 represen-
taria o papel principal na contestação simultânea ao capitalismo
representado na sociedade de bem-estar e de consumo, ao stali-
nismo e suas amarras, mas também a toda a estrutura arcaica do
ensino universitário alemão. Em uma sociedade onde os movi-
mentos sindicais encontravam-se amortecidos pelas estruturas do
consumo e pelo discurso midiático anticomunista, e em que o

10. Após enfrentar a grande crise social de maio de 1968, que por pouco não pôs
fim a seu governo, Charles de Gaulle foi o grande vitorioso nas eleições do mês
seguinte, quando ampliou sua base política na Assembleia francesa.
11. A troca global de referências culturais já neste período pode também ser exem-
plificada pela canção “É proibido proibir”, de Caetano Veloso, inspirada em uma
pichação feita nas ruas de Paris com a mesma frase (Il est interdit d’interdire).
12. Federação dos Estudantes Socialistas.
46 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

próprio Partido Comunista encontrava-se proibido, era no mo-


vimento estudantil que as forças políticas de extrema esquerda
encontrariam o canal para se expressarem.
Com efeito, é ainda em 1966 que Berlim verá o surgimen-
to dos primeiros movimentos contestatórios, em decorrência da
oposição estudantil à Guerra do Vietnã e da ingerência da OTAN
neste conflito. Junto com as manifestações, Berlim viu surgir tam-
bém as primeiras operações de repressão policial contra seus jo-
vens estudantes, apoiadas pelos políticos e celebradas pelo grupo
de comunicação Springer como atitudes necessárias para a manu-
tenção da ordem. As manifestações estudantis continuarão pelo
ano seguinte, e encontrarão seu primeiro momento de inflexão
com a morte do estudante Benno Ohnesorg, vítima da repressão
policial. A violência do regime tornava-se, assim, explícita, en-
quanto o Springer canalizava a voz do conservadorismo, exigindo
a continuidade do emprego da violência contra os manifestantes.
A esta altura, o movimento iniciado em Berlim já encontra-
va ressonância em outras universidades alemãs, afirmando a SDS
como a grande opção (talvez a única) àqueles que se posiciona-
vam à esquerda no cenário político da Alemanha Ocidental, uma
vez que a entidade encontrava-se rompida inclusive com a Social
Democracia e com os movimentos sindicais que naquele momen-
to se encontravam absorvidos pelo “milagre econômico” alemão.
Neste cenário, um dos alvos das demandas estudantis seria a Uni-
versidade Livre de Berlim, originalmente criada em 1949 a partir
da imigração de professores e estudantes oriundos da Alemanha
Oriental (Matos, 1981, p. 18). Conforme Rodrigues e Padrós:

Em novembro [de 1967], a Universidade Livre de Berlim


e suas “fábricas de saber” foram transformadas, pelos estu-
dantes, em Universidade Crítica de Berlim, rechaçando a
reforma de aceleração da conclusão de curso (e a formação
despolitizada e acrítica resultante). As bandeiras da institui-
ção rebelde foram: a autonomia estudantil, a participação
democrática em todas as instâncias do sistema de ensino e
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 47

o aumento do tempo de formação. Da mesma forma, abria


espaço à crítica permanente do ensino superior e à reflexão
teórica e política da sociedade, através de uma postura de
resistência e de não-obediência contra a visão tecnocrática
e burocrática capitalista. (Rodrigues; Padrós, 2008, p. 239)

A presença de uma universidade renovada e democrática


entre as demandas apresentadas pelos manifestantes alemães no
final dos anos 60 estava longe de se constituir em algo inexpli-
cável. As instituições de ensino superior na Alemanha seguiam
as mesmas estruturas hierárquicas e burocráticas encontradas
em suas congêneres do ocidente europeu e dos Estados Unidos.
Além disto, a grande expansão da oferta de vagas a partir do final
da Segunda Guerra Mundial não foi seguida pelo incremento
nos postos de trabalho com a qualificação correspondente, o que
também mexia com as espectativas de futuro dos estudantes e,
por consequência, colocava em xeque a funcionalidade do siste-
ma de bem-estar social construído pelo capitalismo.
Havia ainda outra questão interna à Alemanha que, no con-
texto dos anos 60, mexia diretamente com a ideologia e com
os valores defendidos pelos estudantes. Trata-se do questionável
processo de desnazificação levado à cabo após o término da Se-
gunda Guerra Mundial, uma vez que o governo alemão estava
ligado a muitos dos nomes do grande capital que, durante o pe-
ríodo hitlerista, mantiveram lucrativas relações com o Estado,
além de existirem elementos de reconhecidas relações com o na-
zismo em alguns postos chave do governo. Isto levava ao questio-
namento do próprio passado alemão, das responsabilidades das
gerações anteriores e, em última instância, da manutenção das
estruturas entre o passado e o presente.
Logo, as manifestações estudantis alemãs estariam atreladas
ao que acontecia no restante da Europa e no mundo, extrapo-
lando o campo da contestação política para atingir a cultura e a
própria organização da vida privada.
48 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Uma das especificidades alemãs foi a curiosa síntese entre


sexo e política. Estudos de Marcuse, Erich From e Wilhelm
Reich apontavam para a existência de uma sistemática re-
pressão sexual que, de certa forma, era responsável pelo
comportamento político das gerações anteriores. Esse fato,
evidentemente, devia ser enfrentado pela geração contesta-
dora. Daí os slogans provocadores como: “Quem transa duas
vezes com a mesma pessoa, já pertence ao establishment”.
Como junção de aspectos comportamentais e políticos, ir-
romperam as comunas (comunidades residenciais precur-
soras das residências coletivas de jovens), verdadeiro campo
de possibilidades de formação política e de experimentação
da liberdade sexual dos seus integrantes, importante afronta
ao moralismo burguês. (Rodrigues; Padrós, 2008, p. 237)

O assassinato de Benno Ohnesorg não seria, infelizmente, o


único ato paradigmático de violência burguesa na conturbada Ber-
lim dos anos 60. Rudi Dutschke, líder do movimento estudantil,
oriundo da Alemanha Oriental e que ficaria conhecido como “Rudi,
der Rote” (Rudi, o Vermelho), seria vítima de um atentado promo-
vido por um membro da extrema direita movido pelas manchetes
difamatórias da imprensa que faziam a apologia à morte do estudan-
te. Imediatamente manifestações foram organizadas, posicionando-
-se contra o grupo Springer, impedindo mesmo a circulação de seus
jornais em diversas cidades alemãs.13 Logo, milhares de estudantes
invadiam as ruas em Londres, Roma, Paris e Florença, manifestando
sua solidariedade à Rudi (Matos, 1981, p. 19).
O movimento estudantil alemão, assim como o Europeu,
entraria em refluxo a partir de meados daquele ano, diante da
impunidade que favorecia a violência burguesa, da difamação
promovida pela imprensa e da criminalização organizada pelo

13. Embora gravemente ferido com três disparos, sendo dois na cabeça, Rudi so-
breviveria. Contudo, sua morte prematura em 1979, por afogamento após um
ataque epilético enquanto tomava banho, não pode ser dissociada dos efeitos que o
atentado produziu em sua saúde.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 49

Estado que, através de leis de exceção levou aos tribunais e à pri-


são muitas das lideranças estudantis de 1968. Um pequeno grupo,
contudo, faria a sempre complexa opção da luta armada, consti-
tuindo a Facção do Exército Vermelho, também conhecida como
Banda Baader-Meinhof que, embora sob severos golpes, manteve-
-se em atividade até 1998 (Rodrigues, Padrós, 2008, p. 240).
Foi neste contexto que Hardenberg viveu sua juventude, fato
inicialmente ignorado por Jule, Peter e Jan. E é para este passado
que sua mente volta ao conviver com seus jovens sequestradores.

Rumo ao fim: anteontem, ontem, hoje e


amanhã (ou: o mundo pós-edukators)

Vinte e seis anos se passaram entre os acontecimentos de


1968 e o sequestro de Hardenberg pelo trio Peter, Jan e Jule. E
mais dez entre o lançamento do filme e a redação deste texto. No
entanto, há questões trazidas pela película de Hans Weingartner
que, por sua atemporalidade, merecem alguma reflexão. Propo-
mos, assim, encerrar este artigo por tal via.
Aos olhos de hoje, Edukators abre duas janelas para o passa-
do: o contexto em que o filme foi realizado – os primeiros anos
do século XXI –, e o conturbado ano de 1968, do qual não apre-
senta imagens de espécie alguma, a não ser as lembranças e a voz
de Hardenberg. E, destas janelas, somos convidados a, inicial-
mente, observar nosso próprio contexto. A principal marca da
ação do jovem trio protagonista é sua oposição às desigualdades
econômicas do mundo, sejam elas relativas ao macroeconômico
(algo visível desde as cenas iniciais, em que temos um protesto
contra os calçados produzidos pelo trabalho semiescravo e in-
fantil na Ásia ou, ainda, pelos fortes diálogos com Hardenberg),
seja no nível micro, da vida cotidiana de qualquer um de nós,
algo exemplarmente mostrado na oposição entre Jule e o em-
presário sequestrado. É absolutamente desnecessário argumentar
50 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

aqui sobre a continuidade de tais estruturas, macro ou micro,


nos dias em que estas páginas estão sendo escritas. No entanto,
sua permanência nestes três momentos (1968, 2004, 2015) nos
lembra que, conforme nos apontou Trótsky, é da natureza do
capitalismo operar de forma desigual e combinada.
De fato, retirando-se as inovações tecnológicas, algo que cer-
tamente não é de pouca monta, o mundo talvez tenha mudado
pouco nas últimas décadas. Não temos mais a Guerra Fria, é ver-
dade. Mas, por outro lado, a ausência do bloco comunista tem
sido plenamente ocupada, aos olhos ocidentais, por migrantes
pobres, muçulmanos árabes e não árabes e todos aqueles que pos-
sam, por qualquer motivo, entrar na classificação de “terroristas”.
A estrutura do sistema produtivo e financeiro parece obedecer,
grosso modo, à mesma lógica do passado, ainda que inovações
semânticas tentem dar conta de transformações nem sempre tão
visíveis. Temos, de fato, novos blocos econômicos internacionais
que buscam se contrapor à hegemonia norte-americana, mas a
ingerência estadunidense no ocidente ainda é, sem dúvidas, uma
realidade sem perspectivas de um fim próximo. Em outros ter-
mos, a divisão entre as partes ricas e pobres do mundo, entre
aquelas que usufruem das inovações técnicas e aquelas que lhes
servem de laboratório pouco mudaram nestas seis décadas. E,
evidentemente, a dicotomia entre ricos e pobres, entre explora-
dos e exploradores não se restringe às fronteiras nacionais, en-
contrando-se tanto dentro de um mesmo país (seja ele “rico” ou
“pobre”), como dentro das paredes de qualquer shopping center.
Isto nos leva ao segundo ponto de reflexão que gostaríamos
de destacar aqui, e que remete a uma fala do personagem Jan:
“o sistema superaqueceu”. De fato, o “sistema” parecia haver su-
peraquecido em 1968, quando, por alguns momentos, o sonho
parecia estar ao alcance das mãos. Desde o fim dos anos 1990,
o capitalismo nos brindou com ao menos duas crises de gran-
de porte, que, todavia, podem ser entendidas como estruturais
ao sistema. O reavivamento dos movimentos anticapitalistas a
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 51

partir da virada do milênio certamente não objetivava mostrar o


sonho ao alcance da mão, mas antes que os sacerdotes do libera-
lismo haviam dado a extrema unção para a história muito antes
de sua hora derradeira. Mas, seria possível falar em um “supera-
quecimento” do sistema em algum momento? Parece-nos que ao
longo do último século, apenas a paradigmática crise de 1929
tenha realmente apresentado o capitalismo à beira do abismo,
muito embora devamos lembrar que uma das opções daqueles
dias, o nazifascismo, bebia diretamente na fonte da economia
de mercado, uma vez que sua recusa ao liberalismo não impedia
que mantivesse relações carnais com o grande capital. Contudo,
pequenos pontos de superaquecimento são visiveis, desde então,
com não pouca frequência, seja na forma de crises econômicas
localizadas, seja na forma de movimentos de contestação nos
moldes de um “Ocupe Wall Street”.
Chegamos assim a um terceiro elemento. Se pontuais demons-
trações de superaquecimento podem ser constatadas com certa fa-
cilidade, mais difícil é sustentar a afirmação de que “todo coração é
uma célula revolucionária” nos dias de hoje. Claro que apenas ge-
neralizações poderão ser estabelecidas aqui, até porque a afirmação
nos diz muito mais sobre algo em potência do que propriamente
sobre um ato, ou ainda por perpassar opções políticas extrema-
mente pessoais. Contudo, a manutenção de um sistema concen-
trador de capital, bem como da hegemonia burguesa nos moldes
gramscianos são ingredientes que muito têm a nos dizer sobre o
poder de manutenção e adaptação da lógica em que vivemos às cri-
ses e contestações. Edukators nos dá algumas pistas neste sentido,
seja ao nos lembrar através da fala de Jan que o que era contestação
no passado hoje tornou-se um produto disponível nos shopping
centers, como as camisetas com fotos de Che Guevara, seja pela
voz de Hardenberg ao nos alertar que as mudanças são, muitas
vezes, imperceptíveis: “quando você vê, seu voto é conservador!”
De forma menos poética, a questão acima pode também ser
entendida, através de um olhar em perspectiva, como uma inter-
52 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

rogação quanto ao papel dos estudantes como motor (ou ao menos


como um dos motores) de transformação social nos dias de hoje. A
questão evidentemente é nebulosa, qualquer tentativa de resposta
passa por percepções pessoais e, ao cabo, não é o objetivo final des-
te texto. Contudo, não há como negar que qualquer tentativa de
repetir o espírito de 1968 inevitavelmente tem soado como farsa
ou tragédia, afinal, a cada época cabe seu próprio espírito.
Tentamos, assim, dar conta de uma análise sobre o filme
“Edukators” privilegiando as ligações entre o cinema e a socieda-
de, sem deixar de lado os aspectos históricos envolvidos no filme,
alguns dos quais muito pertinentes ao que podemos chamar de
história Contemporânea ou mesmo de história imediata. Revisi-
tar esta película uma década após sua produção é um convite a
pensar na perenidade das estruturas do sistema socioeconômico
em que estamos inseridos, que atravessa as temporalidades que
tocam ao filme, chegando aos dias atuais. Sistema que, tal qual
algumas pessoas, parece nunca mudar em seus propósitos e em
sua lógica de funcionamento. Mas, se Edukators retirar nossa
mobília interior do lugar, nos avisando que nossos dias de pas-
sividade estão contados, o propósito do filme estará cumprido.
53

Capítulo 3.
Vida selvagem: escritos sobre
liberdade, aventuras amorosas e
contracultura
Éverton de Moraes Kozenieski1

Introdução

O desafio no qual nos debruçamos neste artigo é o de ela-


borar uma análise do filme Vida Selvagem2, dirigido por Achim
Bornhak, que retrata momentos da vida da alemã Uschi Ober-
maier3, modelo e atriz, considerada símbolo sexual da geração da
década de 60, da também chamada “geração de 68”.
Optamos por não partir, na construção da análise, dos mé-
todos consagrados pela ciência da comunicação, das artes, ou
mesmo de outras áreas do conhecimento. A proposta aqui ex-
pressa resulta de uma reflexão produzida através das inquietações
mobilizadas pelo filme, por meio das sensações produzidas e das
informações veiculadas, em um observador em especial, este au-
tor. Assim, o artigo que segue representa a experiência de um
espectador em sua interação com a produção cinematográfica.
A proposta no qual nos debruçamos está organizada em três
momentos. Em “O roteiro” ofereceremos algumas considerações
a respeito da biografia de Uschi, enfatizando elementos disponi-

1. Geógrafo, mestre em geografia, doutorando em geografia (PPGGea/UFRGS).


Professor da Universidade Federal da Fronteira Sul, campus Erechim. Correio ele-
trônico: everton.kozenieski@uffs.edu.br.
2. Das Wilde Laben, título original do filme em alemão.
3. Interpretado pela atriz Natalia Avelon.
54 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

bilizados pelo filme, sobre suas experiências, conflitos e amores.


No segundo momento, em “O cenário”, teceremos algumas co-
nexões entre as experiências da modelo junto ao universo alter-
nativo e o cenário da contracultura das décadas de 1960, 70 e 80.
Além disso, em “A personagem”, faremos algumas considerações
sobre as ações e as contradições apresentadas pelo filme sobre
Uschi. Recomendamos ao leitor, tendo em vista o formato esco-
lhido para produção da análise, a audiência do filme em questão,
a fim de possibilitar um diálogo profícuo com o texto que segue.

O roteiro

O roteiro do filme retrata passagens da vida de Uschi Ober-


maier, entre as décadas de 60 e 80. A trama ilustra e enfatiza
os relacionamentos amorosos, experiências, conflitos e as opções
alternativa de vida da modelo.
Inicia apresentando os conflitos familiares de Uschi com seus
pais, em Sendling, subúrbio de Munique. O comportamento al-
ternativo da modelo expresso por suas predileções musicais, par-
ticipações em festas e seu estilo de roupas e de cortes de cabelo,
entram em choque com os valores da sua família, alicerçadas em
valores tradicionais para aquele momento na Alemanha. Uschi de-
veria, segundo seus pais, cuidar das aparências perante os vizinhos
e assumir seu papel enquanto mulher numa sociedade patriarcal.
A modelo, naquele momento com um pouco mais de 20 anos de
idade, não assume este papel, rompe com seu destino e parte em
direção a Berlim em busca do sucesso e de outras formas de vida.
O segundo momento tem início com a fuga de Uschi de Sen-
dling, na qual é acolhida, em uma carona, por um grupo hippie
em seu furgão. Trata-se do primeiro momento de contato mais
profundo com o alternativo, fato retratado com satisfação pela
modelo. O grupo vai em direção a K1 (Kommune 1) buscan-
do conhecer a experiência daquela comunidade. Uschi, após um
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 55

primeiro contato com a comunidade, opta por ficar na K1, in-


tegrando o grupo no período compreendido entre 1968 e 1969.
Na comunidade revolucionária, que pretendia subverter va-
lores socialmente construídos, não haviam espaços particulares
ou mesmo privacidade, além disso a prática da nudez e do amor
livre eram incentivadas. Uschi mergulha neste universo em meio
ao seu envolvimento amoroso com Rainer Langhans4, líder da
comunidade. Os valores e as práticas da comunidade não são de
todo assumidas por Uschi, pois ela não compactua completa-
mente com o amor livre praticado com Rainer. Da mesma for-
ma, a ânsia pela fama demonstrada pela modelo em constantes
entrevistas e ensaios fotográficos para publicações da mídia im-
pressa, que tornou-se foco de conflito dentro da K1, e o desprezo
manifesto à formação e às discussões de cunho político, expres-
sam os desacordos com as propostas da comunidade. Uschi não
está completamente satisfeita e busca outras interações.
Em meio ao período de vivência na K1, a carreira da modelo
ganha corpo e sua imagem é associada aos movimentos da comu-
nidade. A fama e as capas de revistas abrem outras portas e circui-
tos para Uschi interagir, o que ocorre com o convite feito a Rai-
ner e a ela para participar de uma das festas oferecidas pelo grupo
de rock The Rolling Stones. Na ocasião eles conhecem Mick Jag-
ger5 e Keith Richards6, figuras as quais Uschi teria envolvimentos
amorosos. A festa apresenta como marcas a excentricidade, o uso
intenso de drogas e a liberdade sexual, representando o espírito
“sexo, drogas e rock and roll”.
A festa é um primeiro encontro que possibilitaria outros
envolvimentos no futuro com os Stones, que são retratados em
diversas passagens no filme, no qual há maior destaque à sua par-
ticipação na turnê da banda em 1975. Nessa ocasião, ela assume
o papel de acompanhante de Richards, numa rotina de shows,
4. Interpretado por Matthias Schweighöfer.
5. Vocalista da banda, interpretado por Victor Norén.
6. Guitarrista da banda, interpretado por Alexander Scheer.
56 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

enclausuramento em hotéis e uso de entorpecentes, até o mo-


mento de sua fuga. Uschi nas diversas passagens com os integran-
tes da banda mostra o seu lado groupie, de deleite com a fama
e de compartilhamento de íntimos momentos com os músicos.
O último momento do filme é aquele que retrata a relação de
Uschi com Dieter Bockhorn7, ao longo de dez anos. Bockhorn
é uma figura emblemática, tinha um estilo de vida extravagan-
te e era conhecido por suas viagens e seu espírito aventureiro.
O princípio de “Sankt Pauli”, alcunha pela qual era conhecido,
possuía alguns estabelecimentos noturnos e, quando não viajava,
estava rodeado por pessoas as quais tinham comportamentos que
lembram súditos perante um rei. A vida alternativa que ele cons-
tituiu estava relacionada às suas aventuras, não estava, contudo,
alicerçada na construção de relações horizontais ou mesmo de
cunho alternativo, com aqueles propostos pela K1.
Uschi conhece Bockhorn e suas aventuras por meio de uma
revista em um ensaio fotográfico. Tem naquele momento a certe-
za de querer conhecê-los e solicita o envio de uma revista, na qual
ela estampava a capa, diretamente a ele, que estava na África.
O príncipe, mesmo sem condições adequadas de comunicação,
liga para a modelo e a convida para uma festa em sua casa. Após
a festa e o encontro, inicia a relação entre eles, com conflitos e
acordos, idas e vindas. O envolvimento entre ambos toma outra
dimensão com a viagem realizada por eles com destino a Índia,
rodando com o ônibus customizado de Bockhorn, por um con-
junto de países asiáticos. As aventuras, as decepções e a paixão
são o foco dessa passagem do filme que culmina no casamento
realizado em conformidade aos rituais e costumes indianos.
Após o casamento na Índia, o casal ruma ao México. Em
meio a praia, afastados de grandes centros urbanas, eles estão
acampados com um conjunto de amigos. Em um determinado
dia, Richards aparece de forma inesperada na praia e encontra o

7. Interpretado por David Scheller.


Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 57

grupo. Uschi é surpreendida e imagina que a visita dele se deve


a ela, que Richards veio vê-la e, talvez, buscá-la para juntos vive-
rem novos momentos e histórias.
Uschi coloca lado a lado os dois homens de sua vida, fato que
causa em Bockhorn uma crise de ciúmes. Em meio a este con-
texto, Uschi deixa de lado Bockhorn e busca reviver momentos
com Richards, acompanhando-o durante a noite. O filme finda
no dia que segue de forma dramática, momento no qual Uschi
perde de sua vida ambos os homens que mais marcaram sua tra-
jetória, pois Bockhorn sofre um acidente ao pilotar uma moto
e Richards anuncia seu casamento, que aconteceria em poucos
dias, motivo pelo qual estava no México.
O roteiro apresenta os dramas e os momentos da vida de Us-
chi, especialmente apresentando as aventuras e desventuras amo-
rosas da modelo. Retrata, assim, as experiências afetuosas, a vi-
vência do amor livre, as paixões e os desejos. Para além da trama
na qual é constituida a narrativa dos envolvimentos amorosos, o
filme apresenta como cenário os movimentos de contracultura
e o desejo de construção de mundos diferentes, alternativos aos
padrões estabelecidos.

O cenário

Se no plano principal da obra está o drama de Uschi em um


tom autobiográfico, no pano de fundo estão as décadas de 1960,
1970 e 1980, especialmente os latentes movimentos de contra-
cultura, na qual a modelo mergulha.
Os primeiros momentos do filme nos dão pistas da vida em
uma comunidade retrato de uma sociedade patriarcal caracterís-
tica da década de 50, a partir do cotidiano de uma família “nor-
mal” nos subúrbios de Munique. Um núcleo familiar no qual
a autoridade masculina era incontestável e em que as mulheres
assumiam o papel de dedicação aos filhos, à cozinha e à igreja
(Albuquerque, 2007). A “moral e os bons costumes”, nesse con-
58 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

texto, significam, entre outras questões, repressão sexual, espe-


cialmente para com as mulheres.
As relações demonstradas em Sendling nos aproximam das
reflexões de Bauman (2003) a respeito da comunidade. Ela repre-
senta a possibilidade de compartilhamento de valores, assim como
a construção de cooperações, que culminam na produção de uma
coletividade. Na comunidade tem-se segurança e pode-se contar
com a boa vontade, com o auxílio dos demais, em momentos difí-
ceis. Ao mesmo tempo em que a comunidade carrega um sentido
de procura por um sonho, de uma necessidade, o que o torna um
“paraíso na terra”, ela impõe restrições à liberdade e a livre ela-
boração das individualidades. O controle, característica típica da
comunidade, se contrapõem a princípios de autonomia, à auto-
afirmação das individualidades e à livre produção de identidades.
Seguindo a perspectiva de Bauman, a modelo vive numa
comunidade que tem como marcas traços do patriarcalismo,
no qual o controle e a repressão aos comportamentos desvian-
tes são marcantes. Pertencer à comunidade, neste contexto, é
contar com a segurança financeira e emocional de sua família e
significa, acima de tudo, abrir mão de possíveis identificações e
experiências, num mundo no qual eclodem novidades. O filme
nos mostra Uschi descontente e pronta a buscar seu caminho,
rompendo com a comunidade, em busca de novas vivências. A
modelo quer experimentar o contraponto ao conservadorismo e
o caminho seguido por ela se torna a imersão na contracultura,
nas diferentes nuanças vivenciados por ela. Assim como Uschi
adentra o universo alternativo em sua fuga, somos convidados a
mergulhar na contracultura.
Contracultura contempla um conjunto de expressões polí-
ticas e culturais que tomam a cena, especialmente no final da
década de 60. Trata-se de:

(...) um fenômeno pouco heterogêneo em termos de modo


de existir, mas bastante heterogêneo nos referenciais que lhe
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 59

davam esteio, disseminou discursos e forjou práticas que o


situaram no campo da contestação às formas de relaciona-
mento vigentes. (Lima, 2013, p. 184)

Uma das características básicas da contracultura está na opo-


sição à cultura vigente, constituída nas instituições das socieda-
des ocidentais, com grande repercussão nos Estados Unidos e
Europa, presentes também em outros países (Cardoso, 2005, p.
13). Representava, portanto, por diferentes caminhos, críticas e
transgressões, produzidas, principalmente, pelos jovens, aos valo-
res, padrões e comportamentos estabelecidos.
O embrião de uma série de manifestações que compõem a
contracultura tem como referência a Geração Beat. Os Beatni-
ck, termo pejorativo no qual a impressa americana denominou
o grupo de intelectuais que, por meio de discursos literários e
práticas sociais, apresentavam, na década de 50, perceptivas in-
conformistas à sociedade americana da época, demonstrando
contraponto ao convencionalismo e à moralidade (Costa, 2006).
A contracultura ganha novos elementos a partir da déca-
da de 60, como nos mostra Lima (2013). O aparecimento do
rock’in roll aliado à postura crítica da literatura Beat tornam-se
elemento importantes profusão de um extenso leque de mani-
festações contraculturais:

(…) festivais de música (woodstock, Monterrey, Ilha de


Wight), debandada hippie, criação de comunidades, ado-
ção de linguagem diferenciada, figurino descolado, culto ao
transcendental e admiração pela cultura oriental, experiên-
cias com drogas alucinógenas e viagens intermináveis pelo
mundo, parece que afirmavam para a sociedade tecnocrata
capitalista que outro mundo era possível. (p. 185)

Com base nestes aspectos, a contracultura se expressa por


meio de diferentes maneiras e formas, como movimento de con-
testação marcado pelas influências locais e princípios assumidos
por cada grupo, em busca de um outro mundo possível.
60 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Como lembra Cardoso (2005), as gerações que seguiram são,


em alguma medida, herdeiras da contracultura e das manifesta-
ções políticas ocorridas das décadas de 1960 e 70, nas quais são
exemplos de mudanças sociais,

(...) as transformações da imagem da mulher, com o femi-


nismo; a liberação sexual; as modificações na estrutura da
família; a entronização do modo jovem de ser como estilo de
vida; a flexibilização das hierarquias e da autoridade; a cons-
trução de novas relações entre o adulto e o jovem e o adulto e
a criança; a criação de um novo imaginário da fraternidade; a
introdução do “novo” na política; a emergência das questões
ecológicas como se fossem também políticas, para ficar com
algumas das referências mais destacadas.8 (p. 93)

Assim, nesse amplo espectro de formulações, encontram-se


sentido para sua expressão na música e na arte, na estética, no
misticismo, no culto à harmonia e à paz, assim como na crítica
e ações políticas.
Desde sua fuga, o caminho experienciado por Uschi nos
mostram três faces da contracultura. O primeiro deles mostra
o movimento alemão de contracultura, enfatizando as ações da
Kommune 1. Os objetivos da K1, primeira comunidade políti-
ca da Alemanha, tinham centralidade na abolição da proprieda-
de, do conceito de privacidade e, além disso, centralidade nas
práticas promíscuas e de amor livre como formas de libertação.
A ações da comunidade tinham conotações políticas e visam à
transformação radical da realidade, mostrando-se, em boa medi-
da, contra formas de resistência violenta.
O segundo mergulho acontece por meio da cena under-
ground do rock, na interação de Uschi com a banda The Rolling

8. A autora destaca o cuidado necessário para a não construção de uma identi-


dade heroica dessa geração, aspecto que pode gerar generalizações e a perda da
historicidade.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 61

Stones. Nesse cenário extravagante e excêntrico, em solo bri-


tânico e norte-americano, aliavam-se a sonoridade agressiva e
as letras de protesto à rebeldia e às transgressões, em meio à
promiscuidade e ao uso de entorpecentes, característico também
dos festivais. O rock representava, ao mesmo tempo, expressão
artística crítica e marca identitária daqueles que celebravam e
ansiavam por novos modos de vida.
O último momento é ilustrado pela viagem pela Europa e
Ásia realizado por Uschi e Bockhorn. Essa passagem do filme
tem inspirações em uma forma em enfrentar a vida baseada
numa perceptiva “On the road”, na qual se entrelaçam o rodar
pelo mundo a uma viagem interior. De “pé na estrada”, tradução
do termo em português e também título do livro de Jack Ke-
rouac, expoente da geração Beat, congrega, portanto, uma busca
existencialista ao viajar sem paradeiro, com liberdade, regado a
um ideal crítico e libertário.

A personagem

Apresentamos até aqui algumas considerações sobre o roteiro


e o cenário do filme, cabe destacar, contudo, o elemento que en-
trelaça tais partes, aquele que dá andamento e sentido ao drama.
Trata-se de apresentar algumas considerações sobre a personagem
principal do filme: Uschi Obermaier.
A modelo é figura emblemática no enredo do filme. Não ape-
nas devido aos acontecimentos e dramas de sua vida, mas também,
ao mesmo tempo, pela forma na qual a personagem se mostra
como integrante e produto de um conjunto de acontecimentos
históricos, de uma forma peculiar. Neste sentido, não há dúvidas
de que a personagem anseia por liberdade, que busca mudanças
e novas possibilidades para sua vida. As primeiras cenas do filme
em Sendling já deixam claro sua angústia de pertencer e depender
de uma sociedade que relega as mulheres a papéis vinculados à
família e ao lar. Uschi é inquieta, resiste e busca romper com tais
62 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

predisposições. Esse movimento desenvolvido por ela possibilita a


ampliação de seu mergulho nos movimentos contraculturais e nas
formas de expressão alternativas de sua época.
Em alguma medida, contudo, cabe destacar que as ações e
as situações na qual Uschi se coloca são contraditórias. Um pri-
meiro aspecto que ressaltamos é o pouco protagonismo que a
modelo tem para com os momentos de sua vida. O filme retrata
uma personagem que circulou e vivenciou diversas cenas alterna-
tivas, contudo, suas incursões são guiadas pelo acaso ou mesmo
por figuras emblemáticas no filme. Uschi, por exemplo, descobre
a K1 devido a uma carona. Se ela não entrasse naquela van, será
que ela pertenceria, em algum momento, à K1?
A personagem, apesar de uma predisposição ao novo, parece
ser conduzida e levada para novas experiências por outros. Neste
sentido, os seus envolvimentos amorosos com Rainer, Richards e
Bockhorn ganham importantes significados, pois estes três, em es-
pecial, representam “passaportes” da modelo que a inserem, a seu
modo, no mundo da contracultura. Além disso, estes três persona-
gens, devido à importância que eles têm à protagonista, represen-
tam para ela pilares emocionais que ancoram a dependência psi-
cológica de Uschi a figuras masculinas ao longo do filme. Os seus
parceiros, além de proporcionar novas experiências e abrir novas
portas, são bases de apoio da modelo em situações de dificuldade.
Uschi busca com eles, em seus atos, reproduzir preceitos da
comunidade na qual viveu até a adolescência, aquela de sua fa-
mília que estava alicerçada em princípios patriarcais. Ao longo
do filme Uschi nega, por exemplo, o poliamor com Rainer e se
coloca numa posição de subordinação a Bockhorn. Aparenta ser
a mulher livre em meio às publicações e periódicos, independen-
te, que expõe seu corpo e sua imagem sem os pudores da época,
contudo, em suas relações parece ter dificuldade de romper com
alguns preceitos. Apesar de estar em meio aos movimentos con-
traculturais, nos quais o feminismo era importante pauta, Uschi
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 63

parece não se preocupar e desconhecer tal perspectiva, fato que


nos faz pensar que ela não era uma feminista.
Não apenas o feminismo aparece com pouca importância para
personagem, mas também todo caráter de politização se mostra
desinteressante para Uschi em seus mergulhos junto à contracul-
tura. A modelo é levada à contracultura, anseia liberdade e desven-
cilhar-se de opressões, contudo, não integra de forma profunda os
movimentos políticos nos quais circula, tampouco se interessa em
compreender o que se passa. Uschi transita, experiencia, mas em
boa medida desconhece a motivações dos acontecimentos.
Nesse sentido, não há dúvidas de que a modelo representa
uma grande parcela das pessoas que participaram destes movi-
mentos e que estão presentes em tantos outros, como aqueles
ocorridos nas jornadas de junho no Brasil. Representam uma
base que anseia mudanças, mas que são levadas sem muito co-
nhecer, “vão na onda”. Consequências do ansiar sem politização.
A ânsia por liberdade, a vontade por experienciar o mundo,
associadas ao pouco caso do caráter político dos eventos e ma-
nifestos da contracultura os quais a modelo vivenciou, além da
dependência de outros “personagens”, especialmente figura mas-
culinas, como passaportes de suas experiências, nos fazem ques-
tionar: até que ponto Uschi conseguiu ser livre? Até que ponto
Uschi foi apenas uma referência estética da geração de 68?

Considerações finais

Vida Selvagem retrata, em um tom biográfico, os relaciona-


mentos, as experiências e as opções alternativas de vida da modelo
alemã Uschi Obermaier. Ao mesmo tempo em que a narrativa de
vida da modelo apresenta-se ao espectador, são ilustrados aspectos,
como cenário da obra, da efervescência dos movimentos de con-
tracultura ocorridos, especialmente, nas décadas de 1960 e 1970.
Achim Bornhak apresenta, ao longo do filme, uma persona-
gem que, acima de tudo, deseja experimentar o mundo, (re)cons-
64 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

truindo modos de vidas que são alternativos àquilo que estava


presente na comunidade de Sendling, caraterístico de um mundo
conservador, patriarcal, marca deste período histórico sob o qual
se edifica a contracultura. Trata-se de um enredo que registra, na
cotidianidade dos atos de Uschi, a construção de resistências, por
vezes alienadas e despolitizadas, mas que se tornaram efetivas e
representativas publicamente a seu tempo, expressando a possi-
bilidade de construção de outras formas de vida.
Este filme possibilitará aos espectadores momentos agra-
dáveis de imersão em um momento histórico de importantes
transformações culturais, servido de ponto de apoio para um
repensar, não apenas dos acontecimentos do passado, mas tam-
bém dos modos como constituímos nossas vidas diariamente.
Será que necessitamos, contemporaneamente, de outros movi-
mentos de questionamentos culturais tão intensos como aqueles
retratados no filme?
Por fim, cabe considerar que o filme faz justiça, em partes, ao
seu título em português. As escolhas e as atitudes de Uschi tor-
nam-se selvagens apenas aos padrões sociais do momento histórico
registrado pelo filme ou, então, contemporaneamente, aos olhos
daqueles que estão conformados e preferem não correr os riscos
da elaboração de novos valores e, portanto, de um novo mundo?
65

Capítulo 4.
A crise da Sociedade Individualista
e seu duplo em o Clube da Luta
Daniel de Bem1

“Vamos às atividades do dia:


lavar os copos, contar os corpos e sorrir...
a essa morna rebeldia”
(Versos da canção Lion Man, Criolo)

Introdução

Neste texto pretendo apresentar minha análise sobre um ob-


jeto/documento contemporâneo, inserido dentro da arte cine-
matográfica e da indústria cultural moderna, o qual creio que
debruçar-se sobre a temática dos espasmos anômicos dentro das
modernas sociedades ocidentais e sobre a emergência de outras
sociabilidades, o filme Clube da Luta, lançado em 1999, dirigido
por David Fincher a partir do roteiro de Jim Uhls, baseado no
livro de Chuck Palahniuk (1996).
Antes de apresentar uma breve rememoração do argumento
e elencar alguns pontos de discussão que são suscitados quando
assisto a este filme, gostaria de compartilhar a experiência vívida
e particular de conhecer e conviver com esse filme.
Eu tinha 18 anos e estava no primeiro ano do curso de ciências
sociais. Uma certa quarta-feira era o dia de uma cadeira de histó-
ria, saímos no intervalo das vinte horas para ir ao cinema (nesse
dia tínhamos desconto no preço do ingresso), eu e mais dois ami-
gos e a namorada de um deles. Eu não sabia bem qual filme era,

1. Professor do curso de Ciências Sociais da Universidade Federal da Fronteira Sul


(UFFS) e do curso de pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH).
66 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

sabia o título e os atores principais, mas a sinopse no jornal não


disse muito... Parecia até uma coisa nonsense, mas como naquela
época eu assistia qualquer coisa, fui mesmo assim. Fomos, em
Porto Alegre, no Baltimore, um cinema de bairro, que já nem
existe mais, na sala superior, a segunda maior das quatro salas.
Começou o filme, aquelas imagens, aquela música, aquele
ritmo me conquistou desde o início, e mais, não era uma ficção
científica alegórica como Matrix, passado em uma irrealidade
possível; não, era uma história muito plausível sobre a condição
das pessoas nas cidades, no trabalho, nos relacionamentos con-
temporâneos, como isso adoece, como isso enlouquece silencio-
samente qualquer um.
Comunguei daquele pessimismo, compreendi o discurso de
Tyler, fazia todo o sentido para mim, exprimia em palavras e
imagens, questionamentos que também estavam em mim, mos-
trando que outras pessoas também sentiam uma inquietude bem
parecida com a minha. Mais impactante era perceber, mesmo ali
na sala escura, que nem todos estavam recebendo a história de
forma positiva. Via rostos ferozes, enojados, se não confundo as
histórias, a namorada do meu amigo quis sair no meio da sessão.
O filme terminara e eu ainda estava perplexo e elétrico. Na
noite seguinte, liguei para o meu amigo de mais longa data para
que viesse assistir ao filme comigo (posteriormente, ganhei dele
o VHS). Mas ainda demorei uns dois ou três anos para encontrar
outras pessoas que tivessem o mesmo apego que eu tenho a essa
história: que assisti dezenas de vezes de lá para cá, que não passa
uma semana sem que eu de alguma forma cite, converse sobre ou
seja remetido por alguma divagação a uma cena ou a um diálogo
desse filme, por isso o tenho como um filme de formação.
Para a análise e comentário que pretendo realizar a seguir é
necessário recuperar o enredo do filme com um certo detalha-
mento, que por certo auxiliará no encadeamento do argumento
que aqui apresento.
Você conhece a história?
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 67

(Primeira parte) Homem insone, que trabalha para uma segu-


radora começa a frequentar grupos de autoajuda para conseguir
dormir, o que funciona até que aparece Marla Singer, outra pessoa
que, como ele, “finge” estar tão mal quanto aqueles doentes, o que
bloqueia o processo catártico do protagonista. Voltando o sofri-
mento da insônia, esse homem tenta um acordo de divisão para
frequentar os grupos com Marla, mas antes de implementar o
novo acordo, durante uma viagem de negócios, seu apartamento
pega fogo. O homem até liga para Marla, mas não consegue falar,
então, liga para Tyler Durden, fabricante de sabonetes que conhe-
cera naquela noite no avião de retorno à sua cidade.
Os dois se encontram em um bar, conversam sobre o ocorri-
do, nossa personagem central diz estar perplexa com a perda de
seus bens (uma coleção de móveis e outros utensílios domésticos
pouco utilizados, mas que com sua posse o homem se “alegra-
va”), daí deriva um diálogo no qual Tyler fala sobre a insignifi-
cância do estilo de vida ocidental contemporâneo e a escravidão
do consumo, o que coloca nossa personagem para refletir. Pas-
sadas algumas cervejas, na hora da despedida, Tyler convida o
homem para hospedar-se com ele, mas com uma condição: que
eles lutassem. Eles brigam ali mesmo, no estacionamento do bar,
o que acaba se mostrando uma experiência transformadora. Após
isso vão para a casa de Tyler, “um verdadeiro pardieiro” em uma
área fabril, isolada e decadente da cidade.
O homem se encontra nessa convivência com Tyler, volta a
dormir, está mais confiante, já não se preocupa mais com as re-
gras de relacionamento e convívio social, para ele falsas e opres-
sivas; com seu trabalho, banal e perverso, e nele, com seu chefe.
Assim, para de frequentar os grupos de autoajuda e, consequen-
temente, não encontra Marla por semanas.
As suas lutas com Tyler ocorriam frequentemente, sendo
como a terapêutica que impelia sua metamorfose, e acabaram
atraindo outros homens que frequentavam o mesmo bar e, assim,
foi criado o Clube da Luta. Esse clube tornou-se algo mais amplo
68 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

que os dois amigos, mais como uma vivência coletiva profunda,


geracional; algo que fugia do controle deles, tanto que o amigo
de Tyler acaba encontrando Bob, um ex-colega de um dos grupos
de autoajuda, e eles descobrem que participam das lutas em dias
alternativos, os quais a personagem principal não conhecia, igual-
mente a personagem descobre que Tyler está ganhando renome
como o fundador do clube, o que lhe traz sentimentos ambíguos.
Paralelamente a personagem está cada vez mais seduzida pelo
mundo de Tyler que faz seu sabonete, com gordura furtada de
clínicas de lipoaspiração, enquanto profere discursos niilistas
anticivilizatórios e realiza queimaduras químicas como ritos de
passagem. Igualmente, Marla volta à cena quando é salva por Ty-
ler de uma tentativa de suicídio, envolvendo-se em uma relação
sexual com o mesmo, o que gera mais uma carga de sentimentos
negativos e contraditórios em seu amigo.
(Segunda parte do filme). Numa determinada noite, o dono
do bar (Taverna do Lou), do qual o grupo ocupava o porão, vai
tomar satisfações do que está ocorrendo. Ele quer que aquilo aca-
be, Tyler tenta negociar, o homem se enfurece e espanca Tyler,
mas este se humilha e se atira sobre Lou em uma performance
sanguinolenta e macabra, acabando por convencer Lou a aceitar
a permanência secreta do Clube no porão do bar.
Ao final do ocorrido, Tyler delega que cada um tente puxar
uma briga e propositadamente perdê-la. Nesse contexto, em uma
discussão com seu chefe, nosso protagonista chantageia o primei-
ro e, sob ameaça de demissão, simula uma briga com o mesmo
— mas lutando sozinho, batendo em si mesmo, o que muito lhe
lembra sua primeira briga com Tyler — conseguindo, com essa
artimanha, liberação do trabalho com continuidade do recebi-
mento do salário e a emissão de várias passagens aéreas.
Com o recém adquirido tempo integral dos dois amigos para
cuidar do Clube da Luta e o aumento dos participantes, o Clube
fica mais sério, circulam boatos da formação de clubes da luta
em outras cidades e há delegação de mais tarefas para os seus
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 69

membros. E logo, desde dentro do clube é criada uma organiza-


ção subversiva intitulada Projeto Caos que realiza uma série de
atividades ilegais, questionadoras da ordem social, o que atrai a
atenção da polícia.
Em uma ação de revide liderada por Tyler, os membros do
Projeto Caos intimidam o comissário de polícia e exigem o encer-
ramento das investigações. Todos saem exultantes da ação e vão
comemorar lutando no porão do Bar. Mas o homem sem nome,
o protagonista, se sente à berlinda dos acontecimentos, sentido
uma forte rejeição moral ao que está acontecendo e muita raiva.
Assim, ele bate no rosto de um membro bastante ativo do
Projeto, até deforma-lo. Em seguida, Tyler o convida e mais dois
membros para uma volta de carro, na qual os dois discutem e o
protagonista expõe toda a sua frustração sobre Marla, sobre o Pro-
jeto, sobre a amizade deles. Tyler defende que o Projeto não é deles,
que eles não são especiais e que seu amigo deveria rever o que ele
entendia por vida, amizade, e sobre eles dois, diz para seu amigo
“deixar rolar” e provoca um acidente de carro, não por acaso foco
de trabalho do protagonista, como uma experiência pedagógica.
(Parte final). Durante sua convalescência Tyler vem se despedir
e lhe narra como imagina o mundo futuro. O homem sem nome
acorda sentindo-se abandonado. A casa onde habitavam se trans-
formara em um centro de operações e alojamento, funcionando
ininterruptamente, cada grupo de membros com uma função,
agindo de forma autônoma, mas coligada com os outros grupos em
torno de um objetivo que o protagonista não consegue enxergar.
Marla aparece e é expulsa pelo homem sem nome, ele está bê-
bado e desiludido, mas é rapidamente chamado à realidade com
a trágica morte de Bob, seu ex-colega de autoajuda, amigo, e pelo
qual o protagonista se sentia responsável, pelo menos em relação à
sua entrada no Projeto Caos. Após forte discussão com os outros
membros do Projeto acerca de o que fazer com o corpo de Bob e
demais encaminhamentos, em que a opinião do protagonista é ne-
gada e invertida, esse sai em caçada ao paradeiro de Tyler Durden.
70 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Em várias cidades, ele encontra pistas ou pessoas as quais


imediatamente relaciona com o Clube, mas nada do Tyler. Até
que é identificado por um barman como sendo o próprio Tyler
Durden. O homem sem nome fica incrédulo e resolve ligar para
Marla para confirmar a informação. Depois que ele fala com ela,
Tyler aparece para ele e o faz entender que eles na verdade são
duas personalidades de um mesmo ser. Descontente com sua
vida, o homem sem nome criara essa identidade de Tyler Durden
para si, mas não consegue assimilá-lo (ou seria entregar-se?) por
completo, eventualmente se vendo não como Tyler, mas como
seu eu antigo, refratário, invejoso e amedrontado com toda a
potência que vê em Tyler. A revelação é demais e ele desmaia.
Novamente desperto, o homem sem nome se põe no cami-
nho de volta para sua cidade, ao receber mais uma pista da mo-
vimentação de Tyler, para avisar Marla e a polícia. Relativamente
frustrado nas duas ações: Marla aceita sua ajuda, mas isso acaba
sendo uma cilada de Tyler; e oficiais da polícia estão envolvidos
na ação, agora revelada, de destruir os prédios das sedes das com-
panhias de crédito, trazendo o caos financeiro.
Por fim, o homem sem nome vai enfrentar Tyler, em um dos
prédios do centro financeiro, tentando impedir a execução da ação.
Os dois lutam, Tyler vence e amarra o homem sem nome, o amea-
çando com um revólver. O homem sem nome consegue inverter a
situação, percebendo que se Tyler está com o revólver, ele também
pode estar, e que se não adianta atirar contra Tyler, adianta atirar
contra si mesmo. E atira dentro da boca, perfurando um pedaço
do rosto, mas matando Tyler simbólica e pragmaticamente. Nes-
se instante chega Marla carregada por alguns membros do Proje-
to. Sereno e convicto o protagonista (um novo homem?), acalma
Marla e segura sua mão enquanto contemplam as explosões.
Recordado o argumento do filme, passemos a analisar aqui-
lo do que talvez esse registro/documento/expressão artística seja
uma possível alegoria.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 71

1. O mal-estar da civilização individualista


capitalista

“Não tem um nome. Quem é você? Cornelius? Rupert? Travis?


Algum desses nomes idiotas que você usa?”
(Fala de Marla por volta dos 18min30seg do filme)

Se você prestar atenção, em nenhum momento do filme te-


mos acesso ao nome do protagonista. Ele cria nomes falsos para
se apresentar nos grupos de autoajuda, depois, quando mora
com Tyler, a partir da leitura de contos narrados por órgãos do
corpo humano, passa a recorrer a expressões jocosas como: —
“Eu sou o coração partido de Jack!”. Mas não vemos, ninguém
chamar diretamente o seu nome. Me parece que, assim como fez
esse homem sem nome, qualquer um poderia desejar se tornar
Tyler Durden, qualquer um que sentisse o vazio e o mal-estar que
é o esteio da história.

1.1. A inadaptação individual e anomia: tendência


cultural e problema social

A insatisfação e inadaptação em graus variados dos indivídu-


os dentro de determinado padrão cultural é um fenômeno geral
e “natural” da inadequação de determinados temperamentos e
personalidades intrínsecos (ou socialmente fomentados) de indi-
víduos perante os temperamentos e personalidades privilegiados
na norma/média psíquica do grupo, como nos revelam estu-
dos como “Sexo e Temperamento”, de Margaret Mead ({1935-
2003}), quiçá um pouco envelhecido em relação ao atual jargão
acadêmico, mas ainda bom para pensar os artifícios que orientam
e constroem personalidades e culturas, gêneros e papéis sexuais.
Atentemos que cada cultura tem um tipo social ou humano pre-
ferido para ser socialmente marcado como inadequado (o gordo,
o feio, o espalhafatoso, o tímido, o idoso, o novo, etc.), e inter-
72 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

pretações diversas de como prescrever, performatizar, controlar


e punir ou reeducar aquilo que foge à norma comportamental.
Ocorre que determinados “desvios de conduta” engendrados
em dada sociedade, muitas vezes, são tão anômalos em relação ao
esperado culturalmente, que não existe maneira de lidar com ele.
Por exemplo, no livro citado acima, Mead relata o caso de uma jo-
vem do povo Arapesh (conhecido por seu temperamento pacífico)
que matou seu bebê de forma violenta e as pessoas de sua aldeia
não souberam como proceder, nunca precisaram se preocupar com
algo desse tipo e não tinham uma punição para lhe infligir, tempos
depois a moça fugiu para viver com outro povo de temperamento
mais “forte”, ao qual parece que ela se adaptou melhor. Cada socie-
dade com sua cultura, sua educação e os problemas que dela advêm.
Mas uma coisa é o caso individual de inadaptação social
(com ou sem o rompimento do laço social), outra, bem diferen-
te, é a reincidência estatística e a agudização temporal de com-
portamentos desviantes e antissociais, que podem levar ao esfa-
celamento da própria coletividade enquanto experiência vívida,
memória e projeto. Isso também existe e o cânone sociológico,
desde as teorias de Emile Durkheim, chama de anomia essa con-
juntura na qual o pacto social perde o valor, pondo em xeque a
própria vida dos indivíduos.
As profundas transformações sociais que se desdobraram ao
redor de três grandes processos: (1) as grandes navegações e a
imposição colonial; (2) a revolução industrial e (3) as revolu-
ções políticas (americana, francesa) desde 1500, mas que muito
se adensaram a partir do século XIX, mudaram radicalmente as
formas de organização social em escala e em aspectos nunca an-
tes imaginados. A estrutura que ancora, que contém e amplia o
modus operandi moderno está calcada no individualismo, na es-
pecialização laboral e pelas capacidades de produção e consumo
de cada um, asseguradas e discriminadas dentro de marco regula-
tório contratual e burocrático, que se quer impessoal.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 73

Dentro de tantos avanços e oportunidades presentes nos


arranjos sociais modernos, Durkheim percebeu que intrinseca-
mente se engendram também aspectos anômicos na transição da
solidariedade mecânica para a orgânica (individuação excessiva,
competição, egoísmo, alienação). Por exemplo, Karl Marx apon-
tou a subtração permanente no valor real (simbólico, de uso e
de troca) do trabalho de empregados assalariados, que não são
proprietários dos meios de produção, estando irredutivelmente
expostos no momento da produção e no pagamento de seu “ser-
viço”; algo que embora seja o cerne da economia capitalista, está
calcado sobre ações muito opressivas e sempre expropriadoras, o
que também deturpa e corrói o laço social. E Max Weber sinali-
zou, através de sua sociologia compreensiva, algumas tendências
negativas da excessiva racionalização e burocratização do mundo.
Uma série de outros exemplos práticos e de interpretações
históricas e sociológicas centenárias e atuais nos mostram que
a nossa sociedade parece ter inúmeros processos que exacerbam
esse fluxo em direção anomia.
Apesar da existência de um pensamento crítico que percebe
os efeitos nefastos da forma de organização de nossa sociedade
urbano-industrial, mesmo assim, a lógica das relações sociais con-
formada e legitimada na modernidade (pela ciência, política e mí-
dia), na melhor das hipóteses, invisibiliza ou degreda, e na pior,
rompe com laços sociais outros, importantíssimos dentro de so-
ciedades de padrão holista e, talvez, essas formas de relacionamen-
to social rompidas possam ser estruturais de nossa própria condi-
ção de humanidade. Mas o que são mesmo sociedades holistas?

1.2. Os dois paradigmas de sociedade:


holista versus individualista

Na ciência antropológica, desde os escritos de Kropotkin


(2012) sobre a questão do apoio mútuo como fator evolutivo,
e de Mauss (2003) sobre a economia da dádiva, muitos estudio-
74 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

sos têm se dedicado ao estudo da estruturação de dois grandes


paradigmas que podem ser vistos como referências sobre a orga-
nização societal, quais sejam: a) o paradigma holista, alicerçado
sobre obrigações morais e laços sociais bastante rígidos e b) o
paradigma individualista, estruturado desde a liberdade subjetiva
para a escolha racional.
Sobre o paradigma individualista, o antropólogo canadense
J. T. Godbout afirma:

Esse modelo tende, portanto, a generalizar um valor, o va-


lor de produto. Se, graças à modernidade, libertamo-nos de
nossos laços, por outro lado tornamo-nos cada vez mais
dependentes de nossos bens, de nossos produtos e, prin-
cipalmente, da necessidade de produzir cada vez mais. Em
outras palavras, o que era meio (o produto) torna-se fim.
Inverte-se a relação fim-meio. O que fora inicialmente defi-
nido como estando a serviço das preferências individuais —
a produção — acaba sendo o valor supremo, a finalidade.
(Godbout, 1998, p. 41-42)

Obviamente, podemos vislumbrar os aspectos positivos de


sociedades como as organizadas desde a lógica moderna e oci-
dental: os indivíduos empoderados de, na medida de suas capaci-
dades, tecerem as relações que quiserem a partir de um mediador
mais simples, universal e efêmero, o mercado ou dinheiro. Es-
capar de uma série de obrigações morais, de dívidas, de padrões
imemoriais e extrassubjetivos de etiqueta relacional e simples-
mente adquirir o que se quer, quando se quer, “porque a vida
é agora”, deveria ser mais fácil e mais prazeroso do que todo o
peso das tradições, como ocorre na divisão cerimonial da carne
de uma oferenda entre chans e kachins (Leach, 1995), na oferta
de presentes em um potlach (Mauss, 2003), no comércio kula
(Malinowski, 1978), em um contrato de casamento entre os nuer
(Evans-Prtchard, 1993), nos quais as reais interpretações, senti-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 75

mentos e desejos dos atores sociais parecem diminuídos perante


os imperativos dessas obrigações.
Quando pensamos no difícil caminho rumo a uma maior
igualdade nas relações de gênero e de orientação sexual, e o quan-
to já foi conquistado em nossas sociedades no que tange à es-
ses assuntos; ou quando refletimos sobre as diversas luzes que
a reflexão científica trouxe sobre os mais variados temas (desde
a origem e o fim da existência, passando pela questão racial, a
loucura, a saúde e o saneamento etc.), afastando o obscurantismo
religioso, podemos concordar que o caminho trilhado por nossa
civilização é auspicioso.
De forma que muitos autores definem essa nova condição
desenvolvida na modernidade, como o mais próximo daquilo
que se pode entender por liberdade: a liberdade do indivíduo em
escolher materializar, ou não, algum laço social. Algo antes com-
pletamente impensado em sociedades holistas, nas quais cada
parte está condicionada com o todo e ser um indivíduo é justa-
mente estar fora do mundo social e, mesmo assim, ainda servi-lo
(Dumont, 1985). Mais uma vez, Godbout nos ajuda a identificar
o núcleo pungente dessa importante novidade:

O que nos parece óbvio é, na verdade, algo inaudito. É nem


mais nem menos que a invenção de um laço social inédito,
como mostra Karl Polanyi (1957). É a melhor definição so-
ciológica do mercado: um laço social que visa escapar das
obrigações normais inerentes aos laços sociais. É a essência
da liberdade moderna. “Nesse jogo infinito da circulação de
equivalências, ser um indivíduo equivale a não dever nada
a ninguém” (Berthoud, 1994, p. 53). A liberdade moderna
é, essencialmente, a ausência de dívida. “O par constituído
pelo individualismo e a economia neoclássica busca fundar
a ética do comportamento do homem sem nenhuma dívida
em relação a quem quer que seja. O que justifica a reivin-
dicação dessa teoria de ser reconhecida como o discurso da
liberdade (Insel, 1994, p. 88).” (Godbout, 1998, p. 41)
76 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

O problema, como aponta a sabedoria do homem comum


em relação a todos os contratos, está nas “letras miúdas”. E no
contrato social moderno passa o mesmo. A premissa da liberdade
moderna individualista, baseada no axioma do sujeito que age
e escolhe racionalmente, realiza uma dupla ocultação: primei-
ramente oculta que biológica, psicológica e socialmente outras
agências interferem em nossas eleições, sendo que somos seres
amarrados em uma complexa teia, na qual muitos elementos ex-
trapolam o discernimento individual e a boa orquestração das re-
lações sociais; além disso, se oculta que a própria lógica moderna
condiciona a nossa liberdade que só se expressa através da relação
mercantil. Tudo isso porque:

existe um valor básico, o crescimento. O indivíduo moder-


no tem todas as liberdades quanto às relações sociais, mas
não tem a liberdade de não contribuir para o crescimento
do PNB, da produção. (Ibidem)

O mesmo autor adensa mais o argumento que aqui quere-


mos expor:

Para tanto, voltemos ao postulado das preferências. Como


vimos, é uma teoria dos meios para tomar uma boa decisão,
quaisquer que sejam o objetivo ou os valores da pessoa. O
modelo é, assim, teoricamente neutro diante dos valores.
Ora, o mercado acrescenta uma condição de funcionamen-
to que afeta sua neutralidade quanto aos valores: quaisquer
que sejam os valores, devem poder ser transformados em
mercadoria, devem assumir a forma de produtos que se
coloca no mercado, devem poder ser “mercantilizados”. A
liberdade é plena, mas contanto que todos os valores e cren-
ças e paixões sejam traduzidos em demanda de bens (ou ser-
viços) de consumo. E dizer “somos neutros, contanto que
vocês consumam, que se inscrevam no modelo produtor-
-consumidor”, na realidade não é neutro. É isso que a neu-
tralidade das preferências oculta. (Godbout, 1998, p. 41)
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 77

Um terceiro processo de ocultação deve ser abordado em se-


parado, por ser o mais perverso de todos. A constituição da mo-
dernidade (Latour, 1994) avança de forma que parece que desde
seu aparecimento histórico não existem outras possibilidades de
organização e vida para fora desses moldes, no entanto esses ou-
tros mundos ainda insistem e resistem. Parece que o presente e
futuro, se não um presente perpetuado (pelo argumento do fim
da história), só podem ser pelo caminho do individualismo, pro-
duzido no mercado e regulado pelo estado e que qualquer outra
forma de organização é pré-moderna, pré-lógica e que, pelos pa-
râmetros atuais, já nasce antiga ou morta.
No que reside a perversidade desse argumento? Como expli-
cado nos dois processos de ocultação precedentes, esses outros
laços, para além do mercado, insistem em (re)produzir a lógica
estado-mercantil. De fato, o que se oculta é que, como diria Lévi-
-Strauss (2012), há 100 anos atrás 99% do tempo de existência da
humanidade e três quartos da população mundial viviam em uma
miríade de outras formas de sociabilidades e nada nos garante que
estruturas como o Estado e o Mercado (que da forma como estão
organizados têm menos de 500 anos) são a evolução natural e
permanente do quadro social. Ao contrário, sabemos que só é so-
bre muita violência que essa lógica tem se imposto e reproduzido.
Nos atrevemos a generalizar, que ademais das desigualdades
de gênero, orientação sexual, religiosa, étnica, e quaisquer outras,
tradicionais ou modernas, a organização dessas novas sociedades
individualistas e mercantis opera a partir da burocracia estatal e
dos imperativos econômicos demandados desde a esfera indus-
trial-mercantil, mas regulados pela primeira.
A institucionalização desses dois núcleos como centrais para
o desenvolvimento de nossas sociedades, e as lutas pela assun-
ção ao controle desses processos, leva à formação de uma grande
clivagem na civilização contemporânea que separa aqueles que
detêm, ao menos em parte, o domínio do fluxo mercantil e os
que o sofrem. Poderíamos nos referir à luta de classes, para nos
78 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

atermos ao termo clássico do pensamento sociológico, mas nos


parece que o conceito simplifica uma realidade que é um tanto
mais difusa, pois articula atores e discursos estatais, econômicos,
científicos, midiáticos, tradicionais (quando relativos à desigual-
dade por gênero, raça ou credo). A produção é o que move o
mundo, mas o que organiza a produção, a sua necessidade e sua
oferta, está no plano da cultura.
Em linhas gerais, esse é o paradigma que rege em números
absolutos as sociedades contemporâneas e as sociabilidades nelas
produzidas. Com “cores locais”, na Índia ou no México; com bases
discursivo-ideológicas diversas, nos Estados Unidos da América e
na China; com mais ou menos inclusão e violência, na Europa ou
na África; professando fés conflitantes, no Islã ou na cristandade;
a lógica é a mesma e o mal-estar ontologicamente expresso ado-
enta qualquer ser e, por estar basilado sobre a infinita necessidade
da produção e consumo a partir de uma finita reserva natural para
extração, essa forma de organização social, estatal e capitalista,
põe e risco a própria sobrevivência da espécie e do planeta.

1.3. Retorno ao natural: o fim do capitalismo


e a filosofia primitivista

É contra esses sintomas que o homem sem nome se revolta e


na tentativa de combatê-los vai se tornando cada vez mais Tyler
Durden. Duas cenas do filme sintentizam a dimensão da denúncia
daquilo que está dado e o anúncio de um outro mundo possível.
Logo após o incêndio do apartamento do protagonista, ele se
encontra na Taverna do Lou com Tyler e durante a conversa fala da
tristeza de ter perdido tudo (roupas, móveis, o aparelho de som...):
“Eu tinha tudo (...) estava próximo de me sentir completo”, se
queixa. Tyler lhe contesta dizendo que sabemos e nos preocupa-
mos com coisas vazias e sem sentidos, que somos só consumidores:
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 79

(...) subprodutos da obsessão por um estilo de vida (...). En-


tão foda-se seus sofás e seus acessórios. Eu digo, não queira
ser completo, pare de querer ser perfeito, vamos evoluir, dei-
xar o barco correr (...). (Fala de Tyler por volta dos 31 min)

Tyler fala tudo isso e ainda diz que aquela é a sua opinião,
que ele poderia estar errado, que o ocorrido podia ser mesmo
uma grande “tragédia pessoal”, uma postura bastante autônoma
“com tintas anarcoindividualistas”, como veremos posteriormen-
te. O discurso em questão expressa a revolta com essa perspectiva
do consumo como satisfação ou plenitude, pois é da natureza do
consumo capitalista a impossibilidade da saciedade... É, seguido
do incêndio (fato concreto), o momento de transformação subje-
tiva, de mudança no entendimento da personagem, que o levará
das lutas às ações subversivas e dessas para um quase “suicídio”,
quando propositadamente Tyler provoca uma capotagem.
Lembremos que o homem sem nome trabalha em uma com-
panhia de seguro, justamente na área de seguros automotivos; as-
sim, a cena da capotagem é a identificação da nossa personagem
com as vítimas dos acidentes que são seu objeto de trabalho. Ele
se torna e “morre” como uma das vítimas que antes eram só esta-
tísticas em planilhas. Em decorrência do acidente, o homem sem
nome entra em uma espécie de coma, enquanto Tyler assume
como personalidade preponderante e, assim, se despede e deseja
melhoras para seu alterego:

No mundo que eu vejo você está caçando o alce nas florestas


do Grand Canyon, nas ruínas do Rockfeller Center, vai usar
roupas de couro que duram uma vida inteira. Vai escalar
as heras do Sears Towers e quando olhar pra baixo, vai ver
minúsculas figuras secando charque nas pistas de alguma
autoestrada abandonada. Sare logo campeão. (Fala de Tyler
por volta de 1h42min)
80 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Essa é a segunda cena que gostaria de comentar. Essa des-


pedida marca o começo da terceira parte do filme. Enquanto o
homem sem nome dorme, Tyler visita outros clubes da luta pelo
país e prepara os membros do Projeto Caos para destruírem os
prédios do complexo das financeiras. Podemos argumentar que
Tyler ganha mais força e autonomia com a morte simbólica do
outro, após ter superado a alienação de seu trabalho; mas o que
importa aqui é o anúncio, é o que Tyler enxerga para o depois da
conclusão de seu plano, aonde ele quer chegar.
A fala de Tyler sugere o colapso da civilização em que vive-
mos: as dezenas de milhares de prédios de cidades importantes
como Chicago, Nova York, coberto por árvores, a floresta do
Grand Canyon, e as pessoas seriam caçadoras-coletoras, caçando
alces, secando a carne (no asfalto!) e fazendo roupas do couro de
animais. Após toda a nossa abundância atual, melhor dito, des-
perdício, um período de retrocesso à uma mentalidade primitiva?
Bom, para várias pessoas, e não só de hoje, essa ideia faz sentido
e é vista como positiva e desejável.
O anarcoprimitivismo, ou primitivismo, é uma concepção crí-
tica dentro do vasto campo das ideias anarquistas e autonomistas.
O fundamento dessa análise propõe que a introdução da domes-
ticação de animais e vegetais nas sociedades primitivas foi o mo-
tor de distinções como a hierarquia e a propriedade mantidas por
alienação e coação. De forma que a proposta teórica e prática desse
movimento seria um retorno a formas de organização com baixa
ou nenhuma divisão do trabalho social e tecnologia industrial.
O ponto de “retorno” varia conforme a abordagem, algum
ponto pré-revolução industrial ou a abolição da escrita, do uso
de números e até do pensamento simbólico. Claro, muitos des-
ses pontos são exageros argumentativos no intuito de refletirmos
sobre a antiguidade e estruturalidade dos elementos da estrati-
ficação, desigualdade e controle e coação social. A busca é pela
construção de um outro devir de pessoa e grupo social, que se di-
ferencie dos parâmetros modernos totalitários e universalizantes
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 81

e se oriente para a perspectiva dos grupos nômades, como fazem


muitos caroneiros, mendigos, grupos anarcopunks etc., mesmo
em meio ao contexto urbano-industrial.
John Zerzan, filósofo estadunidense contemporâneo, um dos
expoentes do pensamento primitivista escreveu que:

A literatura especializada pode, apesar de tudo, proporcio-


nar uma ideia altamente apreciável, com a condição de abor-
dá-la com método e consciência apropriada, com a condição
de deter a decisão de ultrapassar seus limites. De fato as de-
ficiências no pensamento ortodoxo correspondem às exigên-
cias de uma sociedade cada vez mais frustrante. A insatisfação
com a vida contemporânea se transforma em desconfiança
frente às mentiras oficiais que servem para justificar estas con-
dições de existência: esta desconfiança permite assim mesmo
esboçar um quadro mais fiel do desenvolvimento da huma-
nidade. Explicou-se exaustivamente a renúncia e a submissão
que caracterizam a vida moderna pela “natureza humana”.
Assim mesmo, o limite de nossa existência pré-civilizada, fei-
ta de privações, de brutalidade e de ignorância acaba por fazer
aparecer a autoridade como um benefício que nos salva da
selvageria. Ainda se invoca ao “homem das cavernas” e o “Ne-
anderthal” para nos lembrar onde estaríamos sem a religião, o
Estado e os trabalhos forçados.
Porém, esta visão ideológica de nosso passado foi radi-
calmente modificada no curso das últimas décadas graças
ao trabalho de universitários como Richard Lee e Marshall
Sahlins. Têm-se assistido a uma mudança quase completa
na ortodoxia antropológica de importantes consequências.
Admite-se a partir de agora que antes da domesticação, an-
tes da invenção da agricultura, a existência humana passava
essencialmente no ócio, que descansava na intimidade com
a natureza, sobre uma sabedoria sensual, fonte de igualdade
entre sexos e de boa saúde corporal. Isso foi nossa natureza
humana, por durante aproximadamente dois milhões de
anos, antes de nossa submissão aos sacerdotes, reis e patrões.
(Zerzan, {1994} 2006, p. 5-6)
82 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

O cerne do argumento já é bastante polêmico, pois como se-


ria possível defender e promover esse “retorno ao natural” através
de ferramentas como livros e páginas na internet, ou até mesmo
filmes? No limite, como propor o não pensamento simbólico
pelo pensamento simbólico? Mas não podemos negar que, para
além das construções teóricas que problematizam as formas de
construção e reprodução de sociedades holistas e individualistas,
como vimos acima, a crítica anticivilização é antiga, remontando
aos filósofos cínicos e Diógenes de Sinope e passando pelo “bom
selvagem” de Rousseau e pelo elogio da vida simples em Wal-
den, de Henry Thoreau. Igualmente, essa crítica sempre esteve
presente no plano material em movimentos anti-industriais (des-
de revoltas camponesas, passando pelas manifestações ludditas
de 1812 e 1813 e pelas inúmeras ações de sabotagem realizadas
pelos operários); em grupos religiosos como os menonitas; em
tendências ecológicas radicais e comunitaristas, etc.
Enfim, embora para mim esse seja o nexo significacional
do filme, a crítica à civilização e uma perspectiva primitivista
como superação ou tendência de escatologia intrínseca ao modo
de produção capitalista, outros temas importantes para o pensa-
mento anarquista e libertário são propostos no enredo. Não con-
seguirei abordar todos eles no formato possível a essa reflexão,
mas gostaria de elencar alguns dos temas que mais se destacam
desde dessa constelação “antropologia + pensamento anarquista”
dentro de minha visão de mundo.

2. Polindo o espelho: o que se reflete no Clube


da Luta?

Quando proferi o comentário que deu origem a esse artigo,


uma pessoa que estava na plateia disse que eu estava esquecendo
o aspecto mais importante da narrativa, o de que essa é uma
história de amor, do amor do protagonista por Marla e de como
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 83

é disso que tudo desdobra. O meu interlocutor tem razão, prin-


cipalmente em relação à forma em que o livro é narrado, mas eu
ainda penso que, pelo menos no filme, o romance é mais um ele-
mento do drama, das coisas que devem necessariamente mudar
com a transformação do ego.

2.1. Primeiro reflexo: a construção da pessoa

Na sinopse do enredo que esbocei nas primeiras páginas, vimos


que o homem sem nome, na tentativa de superar os problemas de
insônia, por indicação médica, participa de grupos de autoajuda
até o momento em que a entrada de Marla desestabiliza sua ca-
tarse. A relação com Marla é tensa, ela expõe sua farsa e a postura
dela o instiga ao confronto. Quando explode o apartamento, ele
até liga para ela, mas não consegue falar, se tivesse se encorajado ali,
tudo poderia ter sido diferente, mas não era para ser assim, havia
a necessidade da existência de Tyler, dessa outra pessoa em que o
protagonista vai se apoiando, mas que na verdade é o efeito aluci-
natório do medo da transformação que já está em curso.
Para que essa transformação é necessária? Alguns, talvez con-
taminados com o ideário do amor romântico, podem dizer que é
para a personagem ser melhor para poder viver esse amor. Talvez,
mas insisto que o amor por Marla não é nem o meio, nem o final,
da transformação do homem sem nome. Sua doença existencial
não pode ser curada pelo amor, mas curada a doença, aí sim se
pode amar. E o remédio nem é o remédio em si, estando mais
como veículo do verdadeiro remédio, a autonomia do ego e a
superação do próprio Tyler, como é mostrado na cena final.
Mas vamos com calma. A linha de raciocínio é a seguinte: o
homem sem nome precisa ser outra pessoa, ele tenta se pacificar
com os grupos de autoajuda — que são, a grosso modo, artifícios
de sociabilidade, de vinculação para a personagem, sem nenhum
vínculo, mas a entrada de uma mulher (um outro, um possível
afim/antagonista sexual-amoroso) desequilibra a construção des-
84 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

se falso laço social. O apartamento explode e o último elo social


é quebrado, ele chega a ligar para Marla (ela sabe que é ele), mas
desliga e, então, aciona a fantasia com Tyler.
É nessa relação alucinada que o homem sem nome aprende
sobre o vazio que sente, sobre o que pode fazer em relação a isso,
como pode distender ou romper alguns pontos do “contrato social”
e das relações de produção e consumo, escancarando a vanidade
e a perversidade do status quo. Tyler é um amigo, um iniciador,
alguém que o convida a ir mais fundo em sua busca por sentido.
Mesmo sendo esquizofrênica, essa relação permite ao homem sem
nome se expressar e, então, ocorre o fundamental: outras pessoas
entendem aquilo, querem participar disso, se expressar também.
Nessa história isso começa com o corpo e a violência, com a
briga. E em inúmeras cenas do filme o tema aparece: um apren-
dizado pela violência, pela dor, pela quase morte, mas que, ao
mesmo tempo, é um teste dos limites, uma aceitação dos riscos
da vida, algo do qual estamos anestesiados nessa sociedade. Por
isso, lutar, para sentir de novo, aceitar a mortalidade, o tempo
que se esvai, o abandono de Deus (como vemos na cena da quei-
madura química na mão), destruir certas premissas para daí co-
meçar a construir outra coisa.
Em outra cena emblemática do filme, a roda do clube já está
formada e tem bem mais pessoas do que de costume. Tyler faz
um gracejo sobre o descumprimento das regras do clube, todos
riem, e Tyler ríspido manda que se calem, caminha pensativo no
meio do grupo, passa a mão na nuca e diz:

Eu vejo aqui os homens mais fortes e inteligentes. Vejo todo


esse potencial desperdiçado. Que droga, uma geração intei-
ra de garagistas, garçons, escravos de colarinho branco. A
propaganda faz a gente correr atrás de carros e roupas, tra-
balhar em empregos que odiamos para comprar merdas que
não precisamos. Somos uma geração sem peso na história,
sem propósito ou lugar. Não temos uma Guerra Mundial,
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 85

não temos a Grande Depressão. Nossa guerra é a espiritual,


nossa Depressão são nossas vidas... Fomos criados através
da tv para acreditarmos que um dia seríamos milionários ou
estrelas do cinema, mas não somos. Aos poucos vamos to-
mando consciência do fato e estamos ficando muito, muito
putos. (Fala de Tyler por volta da 1h10min)

O problema do homem sem nome é um problema anômico,


a experiência de uma geração. Ele não é tão louco, outros sentem
esse abandono e pela tomada de consciência percebem poder cons-
truir um outro laço, com um propósito: despertar outras consci-
ências “na marra”. Voltaremos a esse ponto quando analisarmos o
terceiro reflexo, mas permitam-me tecer uma breve consideração
sobre a questão de alguns pontos cegos na abordagem desse filme
que têm relação com as questões de gênero, raça, classe social.

2.2. Segundo reflexo: uma questão de gênero, de


classe, de raça... que não aparecem

Talvez o principal problema de “Clube da Luta” seja o este-


reótipo que o filme não deixa de reproduzir: o macho branco,
bonito e sarado que pode se dar ao luxo de ser contra o sistema,
contra o consumo, porque já é no mínimo classe média, solteiro
e tem alguma poupança para o caso de necessidade. E mais, será
que a única forma de saída de libertação desse sistema seja a da
violência? E por que isso é algo que ocorre só aos homens?
Só existe uma mulher na história. Claro, Marla Singer não
é qualquer mulher, ela é empoderada, “(...) ela pelo menos não
tem medo de ir fundo”, diz Tyler em determinado momento,
como quem dá um sermão em nosso protagonista.
Marla está O.K., mas a forma como ela vive não contesta o
sistema, ela se aproveita de brechas para adquirir algum dinheiro
e alguns bens de consumo: pega roupas em lavanderias self-service
e vende em brechós, desvia bandejas de refeições da assistência so-
86 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

cial. É fatalista, com tendências suicidas... Faltaria a ela que ele-


mento para a tomada de consciência, para a transformação do ego?
Da forma como o filme é construído não temos como saber
mais sobre a psique de Marla, sabemos que ela é madura para
tentar contornar “os profundos problemas emocionais” de Tyler
e para, posteriormente, aceitar a sua própria impossibilidade de
continuar nessa relação. Mas ocorre de ela ser “atropelada” e le-
vada ao centro dos acontecimentos. Pelo lado do protagonista,
mesmo negando essa relação e a projetando enquanto uma re-
lação de Tyler com Marla, percebemos que essa é uma dentre as
duas únicas relações que a personagem estabelece de fato, antes
da “chegada de Tyler”, sendo a outra com Bob, talvez não por
acaso um “homem com tetas”.
Numa cena do filme, Tyler e o homem sem nome conversam
no banheiro, sendo a mesma pessoa, vemos a rememoração de
diálogos com o pai: perguntas sobre as etapas da vida, sobre casa-
mento. Tyler fala: “(...) somos uma geração de homens criado por
mulheres, me pergunto se é de outra mulher que precisamos”.
Não me atrevo a alongar essa linha de interpretação. Mas
o enredo de o Clube da Luta foi construído por homens, para
contar uma história de homens para homens (talvez mais para
homens brancos), e quem o está analisando agora é um homem.
Não é só isso que importa, obviamente, mas o peso de significa-
do do universo masculino é grande nessa história. Como grande
também é a resistência de pensar qual é o lugar do feminino
e das relações de cuidado (e se essas coisas precisam estar jun-
tas) dentro do esquema dado para a nossa reprodução social e o
quanto disso influencia no mal-estar contemporâneo, para todos
os sexos, gêneros e orientações sexuais, mas, principalmente, para
as masculinidades diante da falência (e falácia) das expectativas
propagandeadas pelo patriarcado.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 87

2.3. Terceiro reflexo: Associação, Ação Direta


e Terrorismo Poético

Tyler Durden é um niilista, trabalha ativamente para a des-


truição dos valores da sociedade capitalista, individualista, consu-
mista que, como já vimos, são dados como certos, como únicos,
como eternos. A tradição filosófica niilista tem entre seus baluar-
tes Friedrich Nietzsche, Emil Cioran, Albert Camus e justamen-
te tenta mostrar o absurdo da condição humana e do apego cego
a regras morais exteriores religiosas, jurídicas, comportamentais
etc. Por volta de 1h30min do filme, quando Tyler discursa para
os membros do Projeto Caos, ele diz assim:

Escutem seus vermes. Vocês não são especiais, vocês não


são uma beleza única, vocês são a mesma matéria orgânica
podre igual a todo mundo. Somos a merda ambulante do
mundo, somos parte do mesmo adubo...

Mas o niilismo não necessita ser um fim em si mesmo, a cris-


talização de uma postura conformista, alienante e autodestrutiva.
Ao contrário, o próprio Nietzsche advogava que a partir da cons-
tatação da artificialidade, da arbitrariedade, da nulidade daqueles
valores-verdades em nós ensignados pela coação social, podemos
criar outros valores-verdades, os nossos. Podemos nos tornar ato-
res (no sentido teatral da atuação) e semeadores de outros valores
construídos desde os escombros da moralidade superada. Nes-
se sentido, o niilismo negativo ou incompleto cederia perante o
niilismo ativo, a grosso modo, algo próximo ao existencialismo
proposto na obra de Jean-Paul Sartre, na qual através da respon-
sabilidade por si mesmo e por suas ações “o homem encontra-se
condenado a ser livre” e construir a sua existência.
Assim, em o “Clube da Luta” o protagonista constrói seu
alterego e propõe pela propaganda pela ação, para si mesmo (em
seu delírio esquizofrênico), mas também para seus camaradas a
88 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

desconstrução dos principais valores de nossa sociedade, mas não


como um fim em si, mas como a limpeza do terreno para a or-
ganização de uma nova cultura. Quais sejam os elementos dessa
nova cultura isso não fica muito claro no filme, para além do
ponto já comentado (Sessão 1.3) sobre o anarcoprimitivismo.
Deixar esse anúncio em aberto é algo importante para a re-
cepção do filme, dá ao espectador a possibilidade de construir a
sua própria continuação da história. Qual o final dos persona-
gens? O amor vence no final? O que acontece com a cidade, com
a economia, com os contratos financeiros e suas regulamenta-
ções? Acontecem quebra-quebras e a polícia torna-se ineficiente?
E depois? Ou não, o homem sem nome é preso e tudo volta à
normalidade (algo próximo a isso ocorre no final do livro). Essa
autonomia do receptor em fechar a mensagem tem uma potência
de liberdade, de confiança ou respeito ao julgamento do outro,
só por isso eu não posso ver esse filme como uma mensagem fas-
cista, pois acredito que nesse último formato a mensagem já es-
taria dada e nos restaria contemplar um único final para a trama.
Aliás, sobre a questão fascista, poderíamos perguntar se na
forma como se organiza o Clube da luta e o Projeto Caos não
existem ecos dessa ideologia política? Desde as referências que
me informam e da leitura que faço do filme, penso que não se
aplicam comparações sobre a doutrina ou organização fascista,
porque a associação ao clube ou ao projeto se mostrou volun-
tarista, as ferramentas de propaganda inexistentes para além da
ideia anarquista da propaganda pela ação.
Por propaganda pela ação entendo: práticas coerentemente
orientadas para efetivar momentos, objetos e relações horizon-
tais baseadas na reciprocidade e na dádiva, não mediadas pelas
regulamentações estatais e tendendo a uma economia de taxa
zero de acumulação privada de bens mediante exploração do tra-
balho alheio. Essas práticas podem ser muito abrangentes, con-
templando desde ações consideradas benfazejas como cuidado e
ajuda, inclusive financeira, para com animais, idosos, presidiá-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 89

rios, apoio às lutas dos trabalhadores e pelos direitos coletivos de


grupos étnicos e de gênero às demandas de trabalhos, até ações
consideradas violentas e ilegais: dano à propriedade privada e
sabotagens, tudo para demonstrar as contradições da sociedade
estatal-capitalista e as possibilidades de outros arranjos sociais.
O escritor anarquista Hakim Bey, pseudônimo de Peter Lam-
born Wilson, historiador britânico, chama de “terrorismo poé-
tico” (ou TP) ações ilegais também de cunho artístico que têm
um direcionamento político contestador à esquerda em sua per-
formance, em sua estética, que como sabemos desde os escritos
de Wittgenstein, sempre corresponde uma ética. A montagem do
próprio filme flerta com a ideia de que ele pode ser em si uma
ação de “TP”, o homem sem nome e Tyler Durden estão cientes e
falam com a plateia em dado momento do filme, uma fala logo no
início é reapresentada e modificada no final do filme, como uma
piada interna, no final do filme é inserido um pênis nos últimos
frames, como se fosse obra de um projecionista, como se Tyler
fosse o projecionista e estivesse pregando uma de suas peças.
Para além dessas intervenções metalinguísticas, dentro da
própria história contada, as brigas, para quem as assiste; a apre-
sentação pública do homem sem nome quando para de se pre-
ocupar com a opinião dos outros; as tarefas delegadas por Tyler
para seus asseclas: “sujar” a comida servida em restaurantes,
desmagnetizar fitas de vídeo, estragar carros, computadores,
destruir obras de arte públicas, puxar brigas com desconheci-
dos etc. Tudo isso, são formas de “TP” acionadas para provo-
car a reflexão, levando à rejeição ou à transformação daqueles
expostos aos seus efeitos, funcionando, então, conforme uma
propaganda pela ação direta.
Como a narrativa do filme se debruça apenas sobre o pro-
cesso da protagonista em sua transformação pessoal, não temos
muitos elementos para abordar a forma como os demais mem-
bros do Clube da Luta e do Projeto Caos aderem a esses projetos,
desde que trajetórias, com quais enfrentamentos aos elementos
90 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

do individualismo e consumismo e trabalho alienados. Algumas


cenas das relações cotidianas entre os membros do Projeto Caos
nos informam da busca de uma negação da identidade e da hie-
rarquia, mesmo em relação ao homem sem nome/Tyler Durden,
o qual todos chamam de senhor, mas que não tem acesso a vá-
rias informações sobre o seu próprio plano. Aliás Tyler boicota
sistematicamente as tentativas do Homem sem nome assumir
posturas de mando sobre os demais membros do Projeto; uma
cena que situa bem essa constante é quando do interrogatório da
protagonista por policiais que fazem parte do projeto: o homem
sem nome tenta em vão usar da hierarquia para que lhe obede-
çam e os policiais lhe respondem que ele mesmo os tinha avisado
de que tentaria se valer desse artifício.
Portanto, presumo que a associação dos membros ao Clu-
be da Luta e ao Projeto Caos decorrem de seu entendimento,
através de vivencias prévias e das experiências dentro do próprio
Clube, que se para o homem sem nome foram um importante
elemento de sua transformação, podemos inferir que o mesmo
vale para os outros homens. Nesse processo a perda da identidade
individual (basicamente consumidora) conforme os critérios de
nossa sociedade é um importante ponto de mutação, para propi-
ciar a constituição de uma outra identidade.
Isso dentro da dinâmica interna do grupo, mas externamente
poderíamos citar os “sacrifícios humanos” — ações de TP nas
quais se ameaçaria de morte uma pessoa que estagnada em sua
vida para que essa se obrigasse a reagir e a deixar sua vida mais
próxima de seus desejos — como uma tentativa de matar o ego
consumista precário e auxiliar no avivamento do sujeito nietzs-
chiano em indivíduos da sociedade envolvente, externa ao per-
tencimento que relaciona os membros do Clube e do Projeto.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 91

Considerações finais

O objetivo de escrever essa reflexão era o de organizar e re-


gistrar alguns elementos de interpretação do filme aqui aborda-
do desde referências teóricas das ciências sociais e filosóficas do
anarquismo. Um esforço preliminar, de esboçar a descrição da
textura, da densidade, do que aparece de crítico ao atual status
quo e de apresentação de uma outra possibilidade, nesse filme,
quando filtrado por essas leituras.
Vimos nesse filme um retrato da anomia social de nossa so-
ciedade urbano-industrial, existente pela produção e consumo
propostos e regulados pela ciência, o estado e o mercado, na qual
o indivíduo perde o laço e o lastro social. Na história que se
apresenta, testemunhamos a transformação de um homem e a
dor desse processo negado até o último momento, e como essa
transformação impulsiona outros nesse mesmo caminho, o da
superação dos condicionantes sociais que aí estão e nos fazem
repetir e reproduzir esse sistema em cada relação.
Obviamente que Clube da Luta tem limites enquanto filme
e enquanto documento de uma época, não quero encerrar uma
apologia ao filme, outros autores, desde outras trajetórias acadê-
micas e de vida, desde outras orientações políticas tecem duras
críticas ao mesmo, aqui elas não foram abordadas, mas vale a
pena buscar essas outras análises.
De qualquer maneira, esse é um filme bom para se pensar
sobre nossa sociedade: o que lhe ampara? A que custo? O que
encobrimos com o nosso estilo de vida? O que aconteceria se o
sistema financeiro quebrasse? Questões que não fazemos cotidia-
namente, questões das quais nos esquivamos respondendo: “As
coisas são assim mesmo! Esse é o melhor e único jeito de seguir a
vida”. Ainda mais os homens, vítimas e algozes no jogo patriarcal.
92 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Ficha técnica do filme


Título original: Fight Club
Direção: David Fincher
Roteiro: Jim Uhls (baseado na obra de Chuck Palahniuk)
País: EUA
Ano: 1999
Data de estreia: 15/10/1999 (Brasil)
Duración: 139 min.
Elenco: Brad Pitt; Edward Norton; Helena Bonham Carter;
Meat Loaf; Jared Leto
Distribuidora: 20th Century Fox
Produtora: Regency Entreprises
93

Capítulo 5.
Entre dois mundos:
uma análise do filme
“Histórias Cruzadas”
Daniela Sbravati1

Muito mais aproxima o cinema da história do que afasta.


Trata-se de diferentes formas de representar a realidade — ain-
da que uma delas seja reconhecida como ficção. De todo modo
capturar o real já não é mais uma ilusão que norteia o trabalho
dos historiadores e creio que nunca tenha sido o objetivo dos
cineastas. O real tal qual ocorreu é inatingível e o que temos
são apenas fragmentos de uma ou múltiplas realidades. Tais frag-
mentos podem ser interpretados como “janelas para o real” ou
representações. Cinema e história não são opostos e apesar de
comprometerem-se com causas distintas, juntos podem ampliar
as possibilidades analíticas.
Por constituírem-se a partir de processos culturais da socieda-
de que as produziu, as obras cinematográficas (de todos os gêne-
ros) devem ser tratadas pelos historiadores como fontes históricas.
A ficção está sempre impregnada de realidade (Barros, 2011, p.
179, 180 e 188). Neste sentido é possível pensarmos o cinema
como recurso para o ensino de história, considerando ainda a lin-
guagem visual dos filmes em similaridade com a linguagem escrita
dos livros — porém, mais atrativa em função de seu forte efeito
de realidade. Ambas necessitam de problematização e nenhuma

1. Doutoranda em história pela Universidade Federal de Santa Catarina e Professo-


ra de História da Educação Básica da Prefeitura Municipal de Florianópolis.
94 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

delas carrega o estatuto da verdade, ainda que sejam produzidas a


partir de métodos e objetivos distintos (Rosenstone, 2010, p. 14).
Os filmes que tratam de uma época passada, representando
um acontecimento, uma biografia ou um tema social podem ser
considerados como históricos, ainda que abordem muito mais a
atualidade do que o período em questão (Barros, 2011, p. 188).
De lógica semelhante se ocupa a história, pois o estudo do passa-
do é realizado a partir de questões do presente.
Há que se considerar o poder das obras cinematográficas na
formação da consciência histórica das pessoas. “Os filmes históri-
cos, mesmo quando sabemos que são representações fantasiosas ou
ideológicas, afetam a maneira como vemos o passado” (Rosensto-
ne, 2010, p. 18). E é neste sentido que os historiadores não devem
ignorar tal forma de produção e reprodução de conhecimento.
Partindo das premissas iniciais pretende-se analisar as ques-
tões históricas abordadas no filme “Histórias Cruzadas”, utilizan-
do como eixo a temática do “trabalho doméstico”, fio condutor a
partir do qual as relações raciais na cidade de Jackson, Mississipi,
EUA, nos anos 1960 são representadas. O objetivo é compre-
ender as estratégias utilizadas para representar tal tema histórico
e em que medida tal representação perpetua visões de mundo
já existentes, além de refletir sobre uma temática negligenciada
tanto na história quanto no cinema. Certamente um filme e um
livro expressam ou explicam o mundo de formas diferentes e por
este motivo devem ser analisados a partir de critérios distintos.
O valor histórico de um filme pode ser invocado por sua ca-
pacidade de despertar reflexão sobre temas inexplorados e não
sobre exatidão de detalhes, utilização de documentos originais ou
interpretação do ator através da linguagem corporal de voz e ges-
tos (impossível de conhecermos através dos registros históricos)
(Rosenstone, 2010, p. 21-57).
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 95

O poder da escrita

A história narrada por Aibeleen, uma empregada doméstica


negra, é registrada de forma escrita por uma mão branca. Assim,
começa o filme “Histórias Cruzadas”, cujo título em inglês é “The
Help”, uma das formas de se referir ao trabalho doméstico nos
EUA no século XIX (Dudden, 1983, p. 3), baseado no romance
de mesmo nome de Kathryn Stockett. A autora nasceu e cresceu
em Jackson, no Mississipi, se formou em Língua Inglesa e Re-
dação Criativa pela Universidade do Alabama e qualquer seme-
lhança com os personagens de seu livro não é mera coincidência.
Stockett também representa a mão branca, que registra histórias
de vida que se cruzam em suas mais de 500 páginas escritas.
A autora do livro, assim como uma das personagens princi-
pais do filme, Skeeter, se sente motivada a escrever o que pensam
as empregadas domésticas negras de Jackson em função de sua
experiência pessoal.

A Resposta (título em português do livro) é, na maior parte


ficção. Ainda assim, enquanto escrevi, me questionei muito
sobre o que minha família pensaria do livro, e sobre o que
Demetrie (a empregada doméstica) pensaria, também, apesar
de que ela já havia morrido. Tive medo, uma grande parte
do tempo, de estar ultrapassando um limite, ao descrever
uma relação que era tão intensamente influente na minha
vida, tão amorosa, tão grosseiramente estereotipada na his-
tória e na literatura americanas. (Stockett, 2011, p. 572)

Porém tenho certeza do seguinte: não pretendo pensar que


sei como era ser uma mulher negra no Mississipi, sobretudo
nos anos 1960. Acho que é algo que uma mulher branca
que paga o salário de uma mulher negra jamais poderá en-
tender completamente. Mas tentar entender é vital para a
nossa humanidade.
(...)
96 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Tenho bastante certeza de poder dizer que ninguém da


minha família jamais perguntou a Demetrie como era ser
negra no Mississipi e trabalhar para a nossa família branca.
Nunca nos ocorreu perguntar. Era a vida cotidiana, sim-
plesmente. Não era algo que as pessoas se sentissem com-
pelidas a examinar.
Durante muitos anos desejei ter tido idade e considera-
ção suficientes para ter feito a Demetrie tal pergunta. Ela
morreu quando eu tinha dezesseis anos. Passei muito tempo
imaginando como seria a sua resposta. E essa é a razão por
que escrevi este livro. (Stockett, 2011, p. 573)

Ablene Cooper, babá e empregada doméstica que mora e tra-


balha em Jackson, Mississipi, empreendeu um processo contra a
autora do livro, alegando que a trama fora baseada em sua vida.
Stockett negou que a tenha usado como fonte de inspiração,
porém, isso poderia ser possível já que Ablene trabalha há 12
anos para o irmão e para a cunhada da escritora2. Se o tema foi
motivado por uma problemática social relacionada, entre outras
coisas, ao trabalho doméstico, por qual razão as empregadas não
foram ouvidas? Por que elas mesmas não puderam escolher o que
queriam que fosse contado de seus cotidianos? Se de fato Sto-
ckett não tem como saber como vivia uma mulher negra no Mis-
sissipi na década de 1960, porque não perguntou a uma delas?
A tentativa de provocar reflexão acerca de uma temática pouco
discutida, o trabalho doméstico de mulheres negras, é válida, no
entanto não trouxe elementos novos em termos metodológicos,
não inovou em sua forma, já que não se trata de saber sobre tais
mulheres por elas mesmas, mas sim através da visão de mundo
de uma mulher branca. Tal fato pode contribuir para fortalecer e
construir ainda mais estereótipos. A historiadora Faye E. Dudden
relatou na introdução de seu livro “Serving Women Household
Service in Nineteenth Century America” que suas avós eram tra-
2. Disponível em: <http://abcnews.go.com/Health/lawsuit-black-maid-ablene-
-cooper-sues-author-kathryn/story?id=12968562>. Acesso em: 4 fev. 2015.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 97

balhadoras domésticas, porém, elas não falavam sobre suas histó-


rias. Desta forma ela lançou mão das ferramentas metodológicas
do campo da história para analisar o serviço doméstico nos EUA
no século XIX. Os traumas vivenciados ao longo da vida, ao lon-
go da história têm o poder de silenciar ou de serem silenciados e
muito da experiência da classe trabalhadora americana se perdeu
na memória popular porque uma geração não pode falar de suas
histórias dolorosas para a próxima. Neste sentido serviço domés-
tico foi construído como uma experiência feminina silenciada
(Dudden, 1983, p. 1 e 2).
Escrever sobre alguém não é o mesmo que dar voz a este
alguém, já que sempre pautamos nossas ideias, pensamentos e
ideologias a partir de nossas experiências sociais. A ênfase de
Stockett em denunciar as injustiças vivenciadas pelas domésticas
negras ou ainda a possível solidariedade existente entre mulheres
não é novidade, por esta razão é provável que as trabalhadoras
domésticas preferissem que também fosse escrito sobre suas for-
mas de sociabilidade e não somente sobre os momentos em que
serviam suas patroas brancas em seus eventos sociais praticamen-
te como seres invisíveis.
A adaptação para o cinema foi feita pelo cineasta Tate Taylor,
amigo de infância da autora do livro. Nas palavras de Taylor “o
filme conta uma história. Foi isso que me motivou, a humani-
dade dos personagens, e falo basicamente das mulheres, a plu-
ralidade de suas vozes”3. É possível identificar ao menos três ei-
xos temáticos nas falas da escritora e do cineasta: etnia, gênero
e trabalho. Parte-se do pressuposto de que toda mulher negra é
empregada doméstica e vice-versa, o que é preciso analisar com
cuidado, pois generalizações criam estigmas e simplificações que
se cristalizam no imaginário social. O serviço doméstico não é
ocupação exclusiva de mulheres negras, ainda que sejam a maio-
3. Disponível em: <http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,tate-taylor-dire-
tor-de-historias-cruzadas-fala-sobre-parceria-com-autora-da-obra-imp-,830378>.
Acesso em: 30 jan. 2015.
98 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

ria em algumas localidades com contexto histórico específico, da


mesma forma nem toda mulher negra é empregada doméstica,
ainda que suas possibilidades sejam mais restritas se comparadas
a outros grupos.
É possível perceber a tentativa de apagar diferenças de classe
e raça, já que o filme trata sobre mulheres de um modo geral.
Ainda que pudesse existir uma solidariedade de gênero, tal fator
não anula as diferenças sociais existentes entre brancos e negros,
entre uma jornalista e uma empregada doméstica, por exemplo.
É válida e importante a tentativa de “contar” histórias de mu-
lheres, mas é necessário destacar que o papel desprivilegiado ocu-
pado por elas ao longo da história é resultado das relações sociais
entre os sexos, daí emerge a categoria gênero — tratada de forma
superficial no filme. Para dar voz às mulheres não parece coerente
fingir que os homens não existem.
O cinema é um poderoso instrumento formador de opinião
e que tem por objetivo (especialmente em se tratando de filmes
hollywoodianos) atingir o maior número de pessoas possível,
portanto, é necessário problematizar a estratégia pela qual se pro-
cura causar emoção no telespectador. Mensagens humanistas de
que todos são iguais independentemente da cor e que tanto a
patroa quanto a empregada têm muito mais que aproxima do
que afasta pelo fato de serem mulheres constituem-se em simpli-
ficações demasiado vazias. A opressão era vivenciada em níveis
diferentes, atingindo sua máxima potência quando se tratava de
mulheres negras. A desigualdade de gênero não pode de modo
algum minimizar a desigualdade gerada pela questão racial. Ain-
da que a relação entre uma babá negra e uma criança branca
fosse dotada de afeto sincero, tal característica não transcendia a
hierarquia social pautada na classe e raça. O perigo neste caso é
cairmos no discurso de que somos todos iguais pelo simples fato
de sermos humanos, quando na verdade, tal afirmação é uma
falácia da sociedade liberal. E sim, se pouco problematizado o
enredo do filme nos conduz a tal apressada conclusão.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 99

De todo modo dilemas e contradições presentes em nossa


sociedade contemporânea são abordados em “Histórias Cruza-
das”, trazendo à tona polêmicas que, guardadas as questões con-
textuais, ultrapassam os limites geográficos do sul dos EUA. A
produção cinematográfica ancorou-se em acontecimentos sociais
dos anos de 1950 e 1960, período em que a luta antirracista co-
meçava a provocar algumas mudanças no que se refere à severa
segregação racial existente no sul do país.
Norte e sul dos EUA no período colonial desempenhavam
papéis distintos para a metrópole inglesa. Em função do clima
mais quente e solo fértil, foram criadas colônias de exploração na
região sul, fortemente marcada pela mão de obra escrava. Diver-
gências econômicas, especialmente no que se referia à abolição da
escravidão, provocaram a Guerra Civil Americana ou Guerra da
Secessão, entre 1861 e 1865. Ao fim do conflito, com o norte vi-
torioso a escravidão foi “abolida” no país. O período pós-abolição
na região sul foi marcado por uma severa segregação racial que
chegou a ser registrada em leis, que partiam do pressuposto “se-
parado, mas igual” e defendiam o direito dos negros e brancos de
manterem-se segregados, desde que fossem tratados igualmente.
O sistema Jim Crow (como eram chamadas as leis) era composto
por brancos que tinham por objetivo manter sua supremacia:
policiais, juízes, oficiais, promotores, jurados. Na mesma direção
estava a KKK (Ku Klux Klan), responsável pela maioria dos gran-
des crimes contra negros. A despeito de toda a opressão existente,
os descontentamentos começaram a se materializar em protestos.
Em Montgomery, capital do Alabama, no dia 1° de dezembro
de 1955 a costureira negra Rosa Parks recusou-se a dar lugar a
um branco dentro do ônibus. Ela foi detida e levada à prisão. O
protesto silencioso de Parks propagou-se e a ação foi apoiada por
Martin Luther King Jr., um dos mais importantes líderes da luta
por direitos civis dos negros nos Estados Unidos. Em meio a essa
efervescência revolucionária o cotidiano começava a mudar e a
alterar as relações entre brancos e negros e no caso específico do
100 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

filme, entre empregadas domésticas e seus patrões na cidade de


Jackson, Estado do Mississipi4.
A tentativa de conter ou corroborar tais mudanças é repre-
sentada nas atitudes de patrões malvados ou bonzinhos, o que
em algumas vezes provoca raiva e em outras comove, pois se a
história procura se isentar de julgamentos morais, a fim de se dis-
tanciar da ameaça do anacronismo, o mesmo não ocorre numa
produção cinematográfica, que ao criar vítimas e algozes fideliza
a atenção do espectador, que torcerá por este ou aquele persona-
gem. A questão, no entanto, é mais ampla do que antagonismos
ou binômios que se fazem um em oposição ao outro, já que as
relações entre empregadas domésticas e seus patrões eram um
microcosmo da sociedade da época, e ainda nos fazem refletir
acerca da sociedade contemporânea.
O filme, assim como o livro, centra-se na história de três
mulheres: Skeeter, 22 anos de idade, que após graduar-se na uni-
versidade volta para a casa dos pais em Jackson, no ano de 1962.
Aibileen, uma empregada doméstica negra que cuidou de dezes-
sete crianças brancas. Minny, também empregada doméstica, re-
conhecida por seus dotes culinários e por dizer o que pensava (in-
clusive para seus patrões brancos). Embora diferentes umas das
outras, essas mulheres unem-se num projeto secreto. O que elas
têm em comum? Sentem-se de alguma forma oprimidas pelos
valores morais de uma sociedade racista e sexista. Segundo a au-
tora do romance trata-se de uma história atemporal e universal.
O projeto secreto constituía-se de um livro que Skeeter de-
sejava escrever a partir de depoimentos de doze empregadas do-
mésticas negras de Jackson, as trabalhadoras que mantinham a
infraestrutura dos lares, cuidavam das crianças e, ainda assim,
eram invisíveis. Entravam e saiam dos lugares sem serem notadas
e muito menos eram ouvidas. A história do filme desenrola-se
a partir da vida de Skeeter, que serve como interlocutora dos
4. Disponível em: <http://www.cartacapital.com.br/educacao/o-pesadelo-america-
no>. Acesso em: 04 fev. 2015.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 101

testemunhos realizados pelas empregadas domésticas. Se a inten-


ção era dar voz a elas, esse protagonismo lhes foi negado. Tais
histórias aparecem na realidade como um instrumento que per-
mitirá à aspirante de escritora seu grito de independência e uma
carreira promissora. Tal observação não anula o fato de que ques-
tões cruciais históricas e atuais foram abordadas, mas é necessário
questionar a maneira como isto foi feito. Não é à toa que du-
rante muitos anos a figura da princesa Isabel como redentora do
Brasil foi propagada nos bancos escolares. A necessidade de uma
mulher branca empreendendo um movimento que libertou as
populações escravizadas, nos livros de história, nada mais fez do
que criar um imaginário de passividade em relação aos escravos.
As classes populares agiam e também lutavam por seus interesses
e é nesta perspectiva que devemos problematizar o papel de Ske-
eter como porta voz das empregadas domésticas negras. Como
alguém que motivou um desejo de mudança e de denuncia social
antes adormecido, como se as trabalhadoras fossem incapazes de
empreender tal movimento ou se articularem entre o seu próprio
grupo social. “Ouvir” o que elas têm a dizer implica em permitir
que não somente narrem, mas também escrevam suas próprias
histórias. E no fim das contas o que percebemos é que a supre-
macia branca continua tendo o poder do registro. O enredo do
filme nos leva a pensar que jamais uma mulher negra e empre-
gada doméstica na cidade de Jackson, no Mississipi conseguira
sozinha escrever um livro e muito menos publicá-lo (o livro pode
ser uma analogia para se pensar na luta por direitos civis dos ne-
gros nos EUA). Neste sentido, a atuação de uma pessoa branca
era fundamental. Os depoimentos das 12 empregadas domés-
ticas convergiram para que a escritora construísse uma carreira
como jornalista, mostrando que barreiras de gênero poderiam
ser rompidas. Mas e as barreiras raciais? E as barreiras de classe?
Quais eram as brechas possíveis? Dar voz às mulheres negras,
numa sociedade que endeusa o poder do papel parece simbólico.
Um simbolismo que reitera por quem a história é escrita afinal.
102 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Trabalho doméstico

Relações inter-raciais, que não as de submissão poderiam ser


perigosas num período em que o sistema legal orientava a condu-
ta dos não brancos e outras minorias no Mississipi. Tal legislação,
originária do sistema “Jim Crow”, representava a contradição de
um estado liberal que sobrevivia sobre o discurso da igualdade,
que bem sabemos não era e não é para todos. A partir do código
legal é possível analisar como o Estado tratou de separar e oficia-
lizar a inferioridade existente entre aqueles que notadamente des-
cendiam de populações escravizadas e neste sentido as mulheres
negras eram duplamente oprimidas. A maior parte delas se depa-
rava com possibilidades restritas de trabalho e acabavam por en-
contrar no emprego doméstico sua alternativa de sobrevivência.
Tal situação também foi recorrente no contexto brasileiro, onde
ainda nos dias atuais a maior parte dos trabalhadores domésticos
é negra. No ano de 2011, estimava-se que 6,6 milhões de pessoas
eram servidores domésticos no país — deste total, o contingente
de mulheres correspondia a 6,1 milhões (92,6%). Tal ocupação
apresenta o menor rendimento médio mensal, quando compa-
rado a todos os grupos de atividade5. No entanto é importante
ressaltar a universalidade do tema do trabalhado doméstico, que
não se restringe apenas às sociedades que tiveram um passado es-
cravista. Trata-se de uma ocupação que abrange os trabalhadores
pobres em geral e certamente sua composição étnica muda de
acordo com o contexto histórico e social. Outro aspecto impor-
tante a ser observado é sua associação à família, espaço privado
e feminilidade, parecendo ser quase que naturalmente, área de
atuação de mulheres. Entretanto, o caráter pretensamente natu-
ral, bem como sua associação ao grupo doméstico e ao gênero são
representações produzidas socialmente (Cunha, 2007, p. 380 e

5. Disponível em: <http://www.dieese.org.br/estudosetorial/2013/estPesq68em-


pregoDomestico.pdf>. Acesso em: 04 fev. 2015.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 103

381). Não se trata de uma atuação naturalmente feminina, em-


bora a subordinação legal, econômica e cultural inserida num
sistema patriarcal e de origem colonial faça parecer que sim.
Definir as atribuições de um trabalhador doméstico é uma ta-
refa complexa, talvez até impossível. Lavar, passar, cozinhar, fazer
compras no mercado, cuidar das crianças, servir a mesa constitu-
íam-se em algumas das atividades que poderiam ser realizadas. A
indefinição coloca este tipo de trabalho num vácuo conceitual que
dá espaço para acordos ambíguos e exploração. A falta de clareza
presente nos contratos entre patrões e empregados quase sempre
pesa de modo negativo para os trabalhadores, que veem seu poder
de barganha ameaçado pela vulnerabilidade social vivenciada em
seus cotidianos. E na sua chave de escolhas, as possibilidades são
bastante limitadas. Horas irregulares de trabalho e os servidores
passando a maior parte de seu tempo nas casas dos patrões deno-
tam um considerável nível de privação da vida pessoal.
As distâncias sociais aprofundam-se na intimidade do lar,
pois, ainda que a elite precise dos trabalhos das classes pobres, é
preciso que cada um mantenha-se no seu lugar e, por isso mes-
mo, dentro das residências certos espaços não eram e ainda não
são compartilhados, como o banheiro, por exemplo. Essa não foi
uma realidade exclusiva do sul dos EUA na década de 1960, pois
ainda nos dias atuais muitos lares brasileiros mantém o banhei-
ro da empregada escondidos nos fundos da lavanderia. Àquelas
que dormem no emprego quase sempre lhes resta um quarto mi-
núsculo e sem ventilação. Os bairros e as moradias das classes
populares foram associados, no Brasil do final do século XIX e
início do século XX, a locais sujos, insalubres e imorais, onde
se proliferavam doenças. As populações pobres passaram a ser
estigmatizadas, a partir de então, como “classes perigosas”. Neste
contexto mereciam especial atenção os criados domésticos, que
moravam nestas zonas imundas, e ainda entravam nos lares das
classes altas. Os pobres em geral, e as criadas em particular, pas-
savam a ser vistos como portadores do contágio (Graham, 1992,
104 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

p. 133). Certamente tais estigmas não se restringiram somente à


sociedade brasileira ou ao século XIX e início do século XX.
O emprego doméstico constituiu-se ao longo da história como
o mais pessoal de todos os modos de trabalho, o que gerou antago-
nicamente o contato e o confronto entre diferentes classes. Trata-
-se da relação mais duradoura e pessoal que um membro da classe
média estabelece com o universo da pobreza. A doméstica é aquela
que traz para dentro do espaço privado e “protegido” a questão da
luta de classes e o drama da exploração social (Roncador, 2008, p.
167 e 169). Em suas crônicas Clarice Lispector constantemente
falava sobre as empregadas domésticas e numa delas, escrita em
1967, chamada “Por detrás da devoção” declarava:

Por falar em empregadas, em relação às quais sempre me


senti culpada e exploradora, piorei muito depois que assisti
à peça As criadas, dirigida pelo ótimo Martim Gonçalves.
Fiquei toda alterada. Vi como as empregadas se sentem por
dentro, vi como a devoção que às vezes recebemos delas é
cheia de um ódio mortal. Em As Criadas, de Jean Ganet, as
duas sabem que a patroa tem que morrer. Mas a escravidão
aos donos é arcaica e terrível demais para poder ser vencida.
E, em vez de envenenar a terrível patroa, uma delas toma
o veneno que lhe destinava, e a outra criada dedica o res-
to da vida a sofrer. Às vezes o ódio não é declarado, toma
exatamente a forma de uma devoção e de uma humildade
especiais. (Lispector, 1999, p. 50)

O ódio sempre presente, ainda que sufocado, evidencia a ten-


são existente entre duas classes sociais distintas, que convivem no
mesmo espaço íntimo. A maioria dos trabalhadores domésticos
reconhece sua dependência na estrutura existente, porém, rejei-
tam a legitimidade da distribuição de poder e controle e adotam
uma máscara de deferência como uma maneira de enfrentamen-
to de sua situação (Cock, 1980, p. 86). Entretanto, a deferência
do servidor doméstico é mais aparente do que real e pode ser
compreendida como a devoção sinalizada por Lispector.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 105

Ao ultrapassar as fronteiras do mundo íntimo dos patrões,


um conjunto de regras foi criado para assegurar que a posição
subalterna fosse claramente demarcada. Figura como uma das
estratégias desta demarcação à “ritualização” da indiferença, ou
seja, a invisibilidade. O servidor doméstico, desta forma serve
“silenciosamente”, entra e sai dos lugares sem ser notado. Há os
casos em que o trabalhador é considerado “quase da família”,
entretanto, suas refeições ocorrem separadamente e o lugar que
ele ocupa na casa (aos que moram nas residências) também. Por
questões como estas, “normalmente é representado, tanto na li-
teratura como nas artes e na mídia, como um sujeito sem uma
estória de vida pessoal, espécie de vida auxiliar, dedicada exclusi-
vamente a servir os outros” (Roncador, 2003, p. 58). O caso de
Constantine, a empregada doméstica que criou Skeeter demons-
tra exatamente esta afirmação. O fato de ela ser quase da família
e o afeto que demonstrava ter pela filha dos patrões e vice-versa
não impediram que fosse demitida. Porém, ela havia trabalhado
durante décadas na mesma casa, cuidando de interesses que não
eram os seus, numa vida de privações, negligenciando a si mesma
e a sua própria filha.
Ser de dentro da casa não significa necessariamente ter acesso
ou direito a ela, pois o trabalhador doméstico é mantido à mar-
gem deste mundo privado. Tomemos as palavras de uma domés-
tica brasileira contemporânea chamada Lenira:

Tem coisas que só a gente que vive é que sabe. Porque às


vezes, hoje se diz assim: “A doméstica tem muita coisa; ela
tem comida, ela tem casa”. Mas as pessoas não sabem, essa
comida, essa casa, como marcam a gente! É a gente vivendo
que pode saber (…) É você viver numa casa que tem tudo,
que você arruma a casa, mas que você não tem acesso àquela
casa. Então, para mim, eu sou marginal naquela casa. (Car-
valho, 1982, p. 16 Apud Roncador, 2003, p. 61)
106 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

No interior dos lares o trabalhador passa a viver e testemu-


nhar um mundo que, muitas vezes, o trata como ser invisível e
que, entretanto, passa a desejar, “é como se a doméstica de fato
não pertencesse a uma classe social definida, o que se nota, por
exemplo, na natureza ambígua de sua relação com seus emprega-
dores” (Roncador, 2003, p. 61). As redes de solidariedade exis-
tentes entre as domésticas configuravam-se e configuram-se em
importante estratégia de sobrevivência.
Um dos principais problemas enfrentados pelos trabalhado-
res domésticos atualmente, em diferentes contextos, é a dificul-
dade em ter seu trabalho reconhecido como uma ocupação pro-
fissional. Tal obstáculo decorre de ambiguidades que atravessam
tempos e espaços. Dependência, reconhecimento, consideração,
afetividade, subordinação dão os contornos a este tema polêmico
que sobrevive ancorado num sistema de dominação patriarcal.

As babás, um paradoxo

Dentre as múltiplas atividades realizadas por uma empregada


doméstica teve atenção especial no filme “Histórias Cruzadas” o
cuidado de crianças, representado através da relação entre Aibe-
leen e Mae Mobley. Na mesma perspectiva está o documentário
brasileiro produzido por Consuelo Lins no ano de 2011, inti-
tulado “Babás” e que se inicia com o retrato de uma ama seca e
uma criança branca. Trata-se da escrava Mônica no ano de 1860.
O menino se apoia nela com intimidade e, embora não seja
possível afirmar, provavelmente naqueles braços repousou e foi
acarinhado, muitas vezes. Essa situação foi vivenciada na ficção
por Aibeleen que cuidava de crianças brancas, porém, abandona-
va o emprego antes que elas crescessem. Sobre sua relação com a
babá negra Demetrie, Kathryn Stockett escreve: “Porém, depois
de apenas um minuto, minha testa estava contra o seu pescoço
macio e ela me embalava como se fôssemos duas pessoas num
barco (...). Lá estava eu, onde era o meu lugar” (Stockett, 571).
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 107

O lugar de quem era servido. Sobre a relação das babás com as


crianças a doméstica brasileira Lenira declara: “Agora, na mesma
hora que você aceita ter essa afetividade, na mesma hora você se
revolta. Então é o conflito que vive dentro da gente” (Carvalho,
1982, p. 22 apud Roncador, 2008, p. 217).

Retrato de Augusto Gomes Leal e da ama-de-leite Mônica.


Cartão de visita de João Ferreira Villela. Recife, c. 1860.
Acervo da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais
(Recife — PE) CFR 1795.

Apesar das distâncias sociais, a convivência cotidiana possi-


velmente imprimia algum tipo de intimidade na relação entre
empregadas e patrões e como no caso do retrato e também do
filme, com os filhos destes patrões. Neste sentido é possível per-
ceber uma relação afetiva, que, no entanto, não está isenta de vio-
lência. No ambiente privado as crianças eram socializadas numa
lógica hierárquica, que colocava as empregadas num mundo à
parte. Em muitos casos, na maioria, talvez, nem mesmo a inti-
midade e afeto impediam a reprodução de pessoas adultas com
um sentido forte de hierarquia. Construiu-se, então, um mundo
108 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

naturalizado da segregação de espaços, associado a uma questão


de classe (Brites, 2000, p. 106).
A natureza paradoxal do trabalho doméstico se faz presente
na medida em que o trabalhador passa mais tempo com a família
dos patrões, cuidando de seus filhos, enquanto negligencia sua
própria família, seus próprios filhos. Sua necessidade de sobre-
vivência e de seus dependentes o mantém nesta situação (Cock,
1980, p. 63; Milanich, 2011, p. 40). Será que a escrava Mônica
tinha filhos? Caso a resposta seja afirmativa, será que pode ama-
mentá-los e dedicar a eles o tempo que possivelmente dedicou
aos filhos de seus senhores? O trabalho doméstico, através do
convívio no âmbito privado pode ser entendido como uma li-
gação entre diferentes lugares e culturas e os trabalhadores como
mediadores culturais — especialmente quando está entre as suas
atribuições o cuidado de crianças (Brites, 2000; Graham, 1992).

Considerações finais: “os perigos de uma


história única”

O cinema produz forte impacto no imaginário social, ao


passo que o conhecimento histórico sistematizado num modelo
acadêmico de linguagem gera distanciamento social (Hagemeyer,
2012). Na tentativa de analisar uma película fílmica não cabe
aos historiadores questionarem o quanto a obra cinematográfica
ancorou-se ou não em metodologias adotadas em pesquisas aca-
dêmicas. Ao contrário, existe a necessidade de repensar as formas
como a própria história vem sendo construída a fim de que se
possa diversificar a linguagem a partir da qual se apresenta.
A análise de um filme histórico não se resume somente à
trama, mas sim ao seu contexto de produção e estratégias adota-
das a fim de atrair a atenção do público. A película constitui-se
numa fonte histórica, porque foi produzida a partir dos aspectos
culturais da sociedade da qual faz parte. A forma como os acon-
tecimentos são expostos, as questões abordadas, o que é dito e
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 109

não dito, com o que propaga e com o que rompe são aspectos
que precisam ser problematizados, porém, a partir de uma pers-
pectiva diferente da que adotamos para analisar uma pesquisa da
área de história. Caso contrário haverá o pressuposto de que nos
filmes sempre há ausência, pois a linguagem audiovisual não per-
mite captar todas as etapas de um trabalho acadêmico. Da mes-
ma forma que um trabalho acadêmico se distancia da sociedade
para a qual é produzido justamente por sua linguagem pouco
atrativa e por vezes não inteligível aos não historiadores.
A breve análise empreendida sobre o filme “Histórias Cruza-
das” considerou em primeiro lugar a importância do tema abor-
dado. O trabalho doméstico de mulheres negras nos EUA na
década de 1960 é negligenciado, tanto na historiografia, quanto
no cinema. Ainda que notadamente o filme corrobore um mo-
delo de dominação social, a possibilidade de milhões de pessoas
ao menos pensarem sobre a questão pode ser transformadora.
Neste sentido, o ensino de história possui um papel fundamental
na medida em que provoca o olhar crítico através do questiona-
mento e da reflexão. Assim como qualquer outra fonte histórica
o filme precisa ser analisado e interpretado de acordo com o pe-
ríodo em que foi produzido.
A trama se passa nos anos 1960, no entanto diz muito so-
bre a sociedade contemporânea e ultrapassa os limites do sul dos
EUA, evidenciando que o trabalho doméstico permanece como
uma atividade desvalorizada e as domésticas como seres “invisí-
veis”. Ser quase da família mantém o trabalhador numa situação
de indefinição e vulnerabilidade social e os conflitos e tensões
são inerentes às relações entre patrões e empregadas, ainda que
a estratégia da deferência seja amplamente utilizada pelos traba-
lhadores. As relações de afetividade não se isentam de uma lógica
segregacionista, constituída a partir da ideia de superioridade de
um grupo em relação a outro.
Nossa sociedade é dividida entre os que escrevem a história e
aqueles que são objeto dela. Na maioria das vezes os trabalhadores
110 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

das classes populares encaixam-se na segunda categoria. Algumas


experiências nos mostram que existem brechas que tornam pos-
sível romper com este sistema. Um dos exemplos é a obra “Só
a gente que vive é que sabe: depoimento de uma doméstica, de
Lenira Carvalho”, uma das fundadoras da Associação dos Empre-
gados Domésticos de Recife (1979-1988). O título da obra indica
a proposta de Lenira de reivindicar o ponto de vista da doméstica,
a autoridade para narrar sua própria realidade alegando que “só
quem vive conhece” (Roncador, 2008, p. 218). “Quando se fala
dos trabalhadores, é sempre alguém que fala e sempre outro que
escreve! Seria bom que os trabalhadores escrevessem sua própria
história”. (Carvalho, 1982, p. 23 apud Roncador, 2008, p. 220).
Com o poder dos registros históricos nas mãos dos grupos
dominantes, ainda que inovemos metodologicamente, não pro-
vocaremos transformações sociais. Chimamanda Ngozi Adichie
— romancista nigeriana nascida em 1977, em palestra proferida
no ano de 2009, falou sobre o problema em existir uma história
única. Com suas palavras concluo este texto, modesto em sua
apresentação e pretensioso em suas intenções.

Eu sou uma contadora de histórias e gostaria de contar a vo-


cês algumas histórias pessoais sobre o que eu gosto de chamar
“o perigo de uma história única” (...) A “única história cria
estereótipos”. E o problema com estereótipos não é que eles
sejam mentira, mas que eles sejam incompletos. Eles fazem
uma história tornar-se a única história. [...]. Histórias impor-
tam. Muitas histórias importam. Histórias têm sido usadas
para expropriar e tornar maligno. Mas histórias podem tam-
bém ser usadas para capacitar e humanizar. Histórias podem
destruir a dignidade de um povo, mas histórias também po-
dem reparar essa dignidade perdida. (Adichie, 2009)6

6. Conferência anual — TED Global 2009 — DE 21 A 24 de julho Oxford, Reino


Unido/Tema: “A Essência das Coisas Não Visíveis”. Disponível em: <http://nzinga.
org.br/pt-br/africa2>; <http://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc>. Aces-
so em: 14 abr. 2014.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 111

Ficha técnica do filme


Título original: The Help
Direção e Roteiro: Tate Taylor
País: EUA
Ano: 2011
Data de estreia: 03/02/2012
Duración: 146 min.
Elenco:  Viola Davis,  Emma Stone,  Octavia Spencer,  Bryce
Dallas Howard,Jessica Chastain,  Allison Janney,  Cicely Ty-
son, Sissy Spacek
Distribuidora: Disney/Buena Vista
Produtora: DreamsWorksPictures, Reliance Entertainment,
1492 Pictures
113

Capítulo 6.
Twelve Years a Slave:
usos historiográficos e
pedagógicos do filme
Marcelo Téo1

O que faz um historiador quando escreve sobre um filme con-


temporâneo baseado em fatos históricos? Granjeia autoridade de
crítico de cinema ao propor uma leitura formal? Reserva-se à fun-
ção de juiz do passado, identificando erros e acertos? Ou ainda, na
condição de intelectual autorizado, comenta a dimensão política
deste “evento” contemporâneo? Estas são questões que envolvem
respostas complexas, situadas ora no polo positivo, ora no negati-
vo, e que conectam alguns dos dilemas mais discutidos na metodo-
logia histórica nas últimas décadas: narrativa e ficção, história do
tempo presente, história pública, usos pedagógicos e possibilidades
metodológicas de documentos audiovisuais, entre outros.
Falarei de alguns destes temas ao analisar o filme Twelve years
a slave — traduzido no Brasil como Doze anos de escravidão —, do
diretor britânico Steve McQueen. Sua ampla exibição nos cinemas,
seu elenco estelar e as indicações ao Oscar® 2014 têm sido úteis para
trazer à tona um debate sobre as mazelas do sistema escravista nas
Américas, bem como sobre as funções e limites do cinema de histó-

1. Doutor em história social pela Universidade de São Paulo e professor colaborador


do Departamento de História da Universidade do Estado de Santa Catarina, onde le-
ciona a disciplina de Prática Curricular em Imagem e Som I e II, destinada a discutir
e produzir audiovisuais voltados ao campo da história e do ensino. Autor de A vitrola
nostálgica: música e constituição cultural (Florianópolis, décadas de 1930 e 1940)
{2007}, e De Arte: crítica e crônica musical n’A Gazeta (década de 1930) {2007}.
114 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

ria2, tanto do ponto de vista historiográfico, suas normas e obriga-


ções para com o passado, quanto cinematográfico, suas liberdades
poéticas e formais, seu compromisso com o público.
Partindo do pressuposto de que o leitor já conhece o filme,
me abstenho da tarefa de resumi-lo. Assim, a primeira questão
a tratar é a da recepção do filme, tendo em vista que a partir
dela podemos seguir outras ramificações do debate suscitado pela
obra. Obviamente não farei aqui uma busca completa e precisa
da crítica ou das impressões do público nas saídas das salas de
cinema do Brasil ou dos EUA, o que foge completamente às mi-
nhas possibilidades e necessidades. Comento a seguir algumas
linhas gerais das discussões que se seguiram à sua indicação e
posterior premiação no Oscar® 2014.

Embates entre o tema e a forma

Twelve years a slave3 foi recebido de forma paradoxal entre crí-


ticos de profissão, amantes do cinema, acadêmicos e público em
geral. Uma das questões foi o batido — mas não por isso resolvi-
do — embate na história das linguagens artísticas sobre forma e
conteúdo. Acusado de academicista, o filme foi contraposto ao seu
principal rival na premiação do Oscar® 2014, Gravidade, de Al-

2. Cinema de história, filme histórico, “baseado em fatos reais”: são categorias


semelhantes e de difícil definição. Creio que defini-las não seria de grande ajuda,
tendo em vista que o objetivo aqui não é optar por um formato narrativo ou outro,
tampouco optar pela ênfase no tema, no respaldo em fontes em detrimento da
ficção sem compromisso restrito com uma história real. São inúmeras as possibili-
dades no diálogo com a história. Um filme como Django Livre, de Quentin Taran-
tino, por exemplo, que trata de um personagem ficcional, é tão rico para discutir o
tema da escravidão quanto a obra aqui analisada.
3. Optei aqui por utilizar o título em inglês por perceber alguns problemas na tra-
dução comercial para o português. A tradução — Doze anos de escravidão — apaga
a ideia de singularidade de uma trajetória presente no título original. A instituição
escravista durou séculos. Dentro dela, foram milhares de trajetórias singulares. E o
filme fala destas singularidades.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 115

fonso Cuarón: Twelve years a slave representaria a vitória do tema,


seu significado histórico e político; Gravidade, o cinema em si, a
arte em seu esplendor formal.4 Circularam na imprensa e nas redes
sociais críticas ao resultado da premiação pautadas por este emba-
te. Os descontentes acusavam o júri de ter eleito o melhor filme a
partir de critérios não condizentes com uma premiação que, pau-
tada por categorias técnicas, deveria privilegiar aspectos do “fazer”
cinematográfico em detrimento da temática. Twelve years a slave,
portanto, apesar de tocar num ponto importante da história ame-
ricana, com desdobramentos que ultrapassam suas fronteiras tem-
porais e espaciais, tecnicamente não traria nada de excepcional.
Esta não seria, contudo, a primeira vez que um filme “con-
teudista” vencera o Oscar®. Inúmeros outros filmes que trataram
de tragédias como o holocausto ou de biografias de celebridades,
foram agraciados com o prêmio de melhor filme sem necessaria-
mente suprir a necessidade de gozo estético dos fãs do cinema
autônomo (mais preocupado com a forma do que com a história
em si). O efeito social da história contada no filme não deveria
ser, enfim, o norte da eleição do melhor filme. Não farei aqui a
defesa de uma escolha política, especialmente porque ela serviria
para validar prêmios anteriores a filmes como Guerra ao terror
(2010) ou Argo (2013).5 O que interessa aqui, no que diz respei-
to à cerimônia do Oscar® 2014, é o impacto desta escolha, que
trouxe o tema da escravidão de volta à pauta de discussões sobre
desigualdade social tanto nos EUA, quanto no Brasil.6
4. O crítico de cinema do Estadão, Luiz Carlos Merten, menciona brevemente esta
questão ao comentar o resultado da premiação. Ver: <https://www.youtube.com/
watch?v=doiJ828oMgI>. Acesso em: 27 jan. 2015.
5. Ambos os filmes apresentam uma crítica velada aos modos de procedimento do
governo americano nas guerras empreendidas na história recente. São críticas, en-
tretanto, que agem como mecanismos para estimular um julgamento interno, sem,
com isso, promover uma avaliação das ações americanas num horizonte mais am-
plo. Ambos dizem que há algo errado na guerra, mas são erros que podem e devem
ser corrigidos. Não há, por exemplo, uma reapresentação justa do dito inimigo.
6. Bom exemplo disso é o fato de o livro de Northup, pouco lido fora dos meios aca-
dêmicos, até então, ter permanecido por mais de cinco meses no topo da lista de mais
116 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Neste cenário, a pouca ousadia formal, lida como opção con-


servadora do diretor, que teria feito um filme vocacionado para
o Oscar®, talvez deva ser reavaliada, pois só uma análise restrita o
enquadraria no formato das narrativas heroicas hollywoodianas,
nas quais predominam histórias de superação articuladas a uma
cadência vastamente repetida em filmes biográficos ou de super-
-heróis. Em primeiro lugar, não se trata de um homem negro
que alcança fama e sucesso pela via da música ou do esporte,
situações de exceção normalmente associadas às histórias de des-
cendentes de africanos nas Américas. É justamente o oposto: um
homem livre que é arrastado à miséria da servidão, apresentada
por Solomon Northup a partir do olhar dos afro-americanos.
Sua libertação não indica sua consagração segundo os padrões
da sociedade norte-americana, mas o caráter de exceção de sua
trajetória, tornando aquela realidade ainda mais trágica.
Steve McQueen se apropria dessa história, atualizando-a. Re-
corre a uma abordagem mais radical da figura dos senhores de
escravos do que aquela apresentada por Solomon no documento
original. Ao ativismo de Northup, vinculado, em certa medida, ao
abolicionismo nortista, McQueen acrescenta o distanciamento de
um homem negro, inglês, que olha para a sociedade estaduniden-
se atual e identifica, ainda, os abundantes resquícios e sequelas do
escravagismo. Limita o heroísmo nortista e a eficácia das leis de
proibição do tráfico e de manutenção da liberdade das populações
afrodescendentes a partir de um choque de realidade, em que a vio-
lência daquele sistema é desnudada em suas inúmeras dimensões.
Um bom exemplo das sensíveis soluções formais para ques-
tões de ordem política no filme é o contraste criado entre parte
das cenas no Norte, em Nova Iorque e especialmente em Wa-
shington, e no Sul, nas plantations do estado de Louisiana, onde
se passa a maior parte da narrativa. Ao tom escuro e artificial,
vendidos no New York Times após a indicação do filme, vendendo mais neste curto
período do que nos 160 anos precedentes, comparando-se à vastamente consumida
literatura de guerra em que se encaixa, entre outras obras, o Diário de Anne Frank.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 117

noturno, quase subterrâneo do subúrbio de Washington, opõe-


-se uma luminosidade natural, crepuscular da paisagem sulista.
Nas tomadas em Washington, onde Northup é sequestrado e
posto em cativeiro pela primeira vez, a trilha sonora é composta
por ruídos tragicamente artificiais, como máquinas que burlam
a natureza para ir contra ela. No Sul, os sons se harmonizam aos
da paisagem natural. A história de Solomon, de sua trágica esta-
dia em Washington, se passa por debaixo dos panos brancos da
capital legislativa dos Estados Unidos, e seus gritos por socorro
se tornam sussurros diante da distante e asséptica imagem do
capitólio. A história de Platt (nome atribuído a Solomon após
o sequestro), às margens do Rio Vermelho, é apenas uma entre
outras, um caso naturalizado em meio à sociedade branca sulista.
Da música composta por ruídos alienígenas, artificiais, passa-se
para os sons e as imagens de uma natureza exuberante. À medida
que nosso olhar se familiariza com ela, compreende também que a
violência era o costume, justificada sob a ótica da propriedade. A
trilha sonora artificial, maquínica, que caracteriza um local em que
a escravidão é ilegal, mas não por isso menos real e cruel, retorna
quando Chapin, o feitor da fazenda de William Ford, se escora na
lei da propriedade para salvar Platt de ser enforcado por Tibeats,
seu perseguidor mais voraz. A artificialidade da lei e a naturalidade
de violência são narradas não apenas de forma textual, seguindo
os passos do relato, mas também através de sons e imagens que
ajudam o espectador a compreender a sinfonia de agressões que
ressoavam no corpo e na vida de mulheres e de homens negros na
sociedade escravista, fossem eles livres, libertos ou escravos.
Tais indícios não preenchem — e não foram expostos com a
intenção de fazê-lo — as expectativas de gozo estético daqueles
que, descontentes com a premiação, saíram em defesa de Cuarón
e sua obra, Gravidade. Nos ajudam, por outro lado, a pensar algu-
mas ricas possibilidades no trato com o passado através do filme.
A imersão sensorial do espectador contribui para que se envolva
com o passado de forma profunda, a ponto de sentir na própria
118 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

pele, senão a dor, ao menos a angústia e o desespero da violência


ininterrupta narrada no filme, que tem início nos olhares depre-
ciativos lançados à Northup [frame 1], e segue banhando a carne
e a alma dos sujeitos negros que permeiam a narrativa do filme.

Frame 1 — Solomon recebe olhares de estranheza e desdém


quando passeia pela cidade de Washington com seus futuros
sequestradores. O filme dá pistas de como, mesmo no norte
abolicionista (em Washington), um homem negro bem suce-
dido como Mr. Northup, dentro das possibilidades que lhe ca-
biam, era motivo de surpresa, quando não de repulsa e descon-
tentamento entre os membros da elite e da burguesia brancas.

Identificação e negação

Uma pré-estreia gratuita foi realizada numa pequena cidade


do meio oeste norte-americano, atraindo uma parcela da popu-
lação sem muitos recursos para ir ao cinema, a maioria afrodes-
cendentes.7 As reações foram de euforia, entusiasmo, revolta.
Grande foi a identificação com o herói Solomon Northup, ma-
nifestada em comentários, aplausos nas cenas de luta, suspi-
ros e murmúrios. Na mesma cidade, duas semanas mais tarde,
uma sessão paga num imponente teatro local e uma plateia de
brancos. Não há mais reações audíveis e nas cenas de tortura
muitos viraram a cara ou fecharam os olhos. Lágrimas caíram
no momento do encontro com a família, cena que Solomon se

7. Conforme Sylvia Colombo, Folha de São Paulo, Ilustrada, 21/2/2014.


Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 119

recusa a narrar no livro. As expressões de choque e horror foram


constantes ao longo da sessão.
As percepções dissonantes são, em certa medida, esperadas,
especialmente num país em que a segregação permanece viva,
em formas bastante distintas, mas ainda efetivas em relegar às
populações afrodescendentes posições desfavoráveis na hierar-
quia social. Mostram, de um lado, o quão viva é a memória da
escravidão para a população negra. De outro, o choque entre a
população branca indica a quebra de um silêncio. Diferente da
produção sobre o holocausto (filmes, literatura, museus, me-
moriais, monumentos), cujos horrores somo constantemente
convidados a lembrar, o tema da escravidão constitui uma qua-
se completa ausência.8
No Brasil, a situação não é diferente. Talvez ainda mais pre-
cária, por não contarmos com a documentação disponível aos
cineastas norte-americanos — mais de uma centena de relatos
semelhantes aos de Solomon Northup, publicados entre 1760
e o fim da Guerra Civil.9 O cinema nacional pouco se ocupou
do tema e quando o fez, raramente levou em conta a produção
acadêmica sobre o assunto.10
8. No cinema, entre os mais conhecidos estão O Nascimento de uma Nação (1915),
de D. W. Griffith, ainda impregnado de uma mentalidade escravocrata; o clássico
...E o Vento Levou (1939), que oferece uma visão romântica e caricata das rela-
ções entre negros e brancos; e, mais recentemente, Amistad (1997), de Spielberg, e
Django Livre (2012), de Tarantino. Na literatura estadunidense a obra da escritora
Toni Morrison é uma exceção que merece ser lembrada.
9. Tem-se notícia de um único relato do gênero no Brasil, de Mohammad Gardo
Baquaqua, publicado originalmente em inglês no ano de 1854, em plena cam-
panha abolicionista, na cidade de Detroit. A obra teve edições recentes em inglês
— os historiadores Paul Lovejoy e Robin Law republicaram o livro nos anos 2000
— e só agora está em vias de ser publicada em português, talvez impulsionada pelo
sucesso cinematográfico e editorial de Doze anos de escravidão.
10. Os filmes Xica da Silva (1976) e Quilombo (1984), do diretor brasileiro Cacá
Diegues, são interessantes por oferecerem informações históricas relevantes sobre
o contexto colonial brasileiro. Entretanto, reproduzem uma série de estereótipos,
como o da sexualidade aflorada mulher negra em Xica da Silva.
120 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

O problema racial no Brasil parece, para muitos, coisa do pas-


sado. Segundo as historiadoras Lilia Moritz Schwarcz e Maria He-
lena P. T. Machado, em breve artigo sobre o filme aqui discutido,
mencionam os comentários na saída do cinema sobre a crueldade
da escravidão nos Estados Unidos, seguidos da questão/afirma-
ção: — No Brasil não foi assim!? Tal suposição, muitas vezes, an-
corada a uma resistência convicta a medidas compensatórias, está
distante da realidade. Conforme Schwarcz e Machado,

o que hoje se sabe é que a escravidão no Brasil não foi essen-


cialmente diferente da retratada em Doze anos de escravidão.
Ao contrário, foi maior em número de africanos entrados
no país, assim como tomou todo o território e por um perí-
odo de tempo ainda mais extenso.11

Entre as semelhanças, talvez a principal seja justo o tema do


filme: a porosidade das fronteiras entre cativeiro e liberdade. Sid-
ney Chalhoub, entre outros, demonstrou, em pelo menos duas
de suas obras (1990; 2012), como era frágil, vigiada e ameaçada
constantemente a liberdade de mulheres e homens negros livres
ou libertos em meados do século XIX. Os libertos ou negros li-
vres precisavam provar a sua liberdade através de documentos.
Porém, até a matrícula de 1871 ser criada, os senhores não pre-
cisavam provar sua propriedade. Em Visões da liberdade (1990),
Chalhoub nos mostra como a vida na cidade transforma as rela-
ções entre negros e brancos, para o bem e para o mal.

A instituição da escravidão deixa de ser quando se torna


impossível identificar prontamente, e sem duplicidades, as
fidelidades e as relações pessoais dos trabalhadores, e os escra-
vos se mostraram incansáveis em transformar a cidade num
esconderijo. A cidade que esconde é, ao mesmo tempo, a ci-
dade que liberta. É também a cidade que engendra um novo
tipo de sujeição, fundada na suspeição generalizada. (p. 219)

11. Folha de São Paulo, Ilustríssima, 2/3/2014.


Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 121

O constante olhar de desconfiança lançado à população afro-


descendente constituía uma nova forma de controle, tendo em
vista o amplo crescimento do número de libertos ao longo do sé-
culo XIX. Casos como o de Adolfo Mulatinho, cujo plano para
conquistar a liberdade consistiu em fazer-se prender, preferindo o
cárcere à servidão, entre inúmeros outros dão mostras da propo-
sital precariedade da situação jurídica dos homens e mulheres “de
cor” nas últimas décadas do Império.12 A ausência de uma divisão
clara, como ocorria nos Estados Unidos entre o Sul escravista e o
Norte abolicionista, entretanto, concedeu ao cenário tupiniquim
uma feição bastante distinta. Nos EUA, como lembrou Paul Gil-
roy (2001), as narrativas escravas acabam por formar um gênero li-
terário capaz de transformar a divisão do trabalho intelectual aboli-
cionista, fazendo emergir a figura do ex-escravo como autor, lido e
publicado. No Brasil, à exceção de Baquaqua — que só conseguiu
contar sua história nos Estados Unidos —, não temos notícia da
participação literária da população negra no processo de abolição.
Seu papel nesse processo não foi, entretanto, secundário. Se deu,
como mostrou Chalhoub, nas negociações e lutas do cotidiano,
em que escravos inculcavam-se livres, e eram acolhidos por livres
e libertos que lutavam para manter sua condição num sistema que
colocava em xeque diariamente seu direito à liberdade.
Indício de tal fragilidade foi a reação ao Regulamento no. 798
de 18 de junho de 1851, que deveria entrar em vigor no dia 1o.
de janeiro do ano seguinte. Com tal decreto, o governo imperial
instituía em todo o país o registro obrigatório de nascimentos e
óbitos. Num decreto complementar, determinava-se a realização
de um recenseamento geral. Ambos com a finalidade de obter
dados detalhados sobre a população do país. O que se viu nos
dias seguintes à sua implementação foi um verdadeiro pandemô-
nio, com levantes espalhados em boa parte do Império, fazendo
o governo recuar e suspender a execução dos decretos. Muito se

12. Sobre a precariedade da liberdade de trabalho no século XIX, ver: Lima (2005).
122 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

especulou sobre o motivo das revoltas. O ministro da Justiça Eu-


sébio de Queiroz mencionou as lutas partidárias entre conserva-
dores e liberais e a ilusão desatinada da “gente menos ilustrada”.
O ministro dos Negócios do Império, visconde de Mont’Alegre,
à frente da repartição responsável pela execução do regulamento,
elencou algumas dificuldades práticas: a extensão do território, a
falta de meios de comunicação, o isolamento de grande parte da
população, portadores de “hábitos e vida excêntrica nos lugares
mais desertos do interior”. Depois de muita indagação, desco-
briu-se que o motivo dos motins residia na circulação de um “bo-
ato arteiramente espalhado, e loucamente acreditado pelo povo
rude, de que o registro só tinha por fim escravizar a gente de cor”
(Chalhoub, 2012, p. 17-8).
Neste curioso causo analisado pelo historiador Sidney Cha-
lhoub, fica claro como a tormenta do sistema escravista tornou
frágil e precária a experiência da liberdade de negros livres e pobres
no Brasil oitocentista.13 Situação semelhante, num olhar aéreo, à
da população afrodescendente estadunidense no mesmo momen-
to — lembremos que Solomon foi libertado em 1853, um ano
após o Regulamento no. 798. E a lei que o libertou, mencionada
apenas no livro, dizia respeito a casos de sequestro de homens e
mulheres negros, livres ou libertos, para trabalhar como escravos
ilegalmente em fazendas do Sul, tamanha era a frequência com que
aconteciam.14 Sempre havia brechas. Foram, sem dúvida, centenas

13. Duas décadas mais tarde, a matrícula de escravos de 1871, que tinha por obje-
tivo regularizar a situação da escravidão através do registro, exigindo que também
os senhores comprovassem a sua posse, também foi usada como forma de reescra-
vização ilegal.
14. Conforme Northup, a lei foi a aprovada em 14 de maio de 1840, intitulada
“Uma lei para proteger mais efetivamente os cidadãos livres deste estado de serem
sequestrados ou submetidos à escravidão”. Determinava, assim, o dever do gover-
nador, recebendo informações suficientes de que um cidadão livre do estado de
Nova Iorque estivesse sendo mantido como escravo injustamente em outro estado,
mediante “alegação ou mentira de que tal pessoa seja um escravo, ou que pelo
costume da cor ou pela regra da lei seja considerado ou tomado por um escravo”,
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 123

ou milhares de Solomons no Brasil e nos EUA, homens e mulhe-


res que sofreram pela prática bastarda da escravidão, por punições
carnais tão violentas ou mais quanto as que vimos no filme, pela
contínua — e ainda ativa — sensação de suspeição associada à
cor da pele, mas que também buscaram brechas e desenvolveram
estratégias para romperem com o sistema que os oprimia.
Se os cenários são diferentes, bem como os caminhos para o
fim da escravidão, muito semelhantes foram o sofrimento e os
limites ao acesso dos direitos cidadãos dessas populações nos dois
países. As sequelas da escancarada ilegitimidade desse sistema,
amparado lá e cá mais no costume do que nas leis, estão vivas ain-
da hoje. E manifestaram-se de forma viva nas salas de cinema que
exibiram Twelve years a slave, com plateias divididas entre a iden-
tificação com um herói que lutava por justiça e a negação de um
passado que, atualmente, encontra-se em situação de constrange-
dora bastardia, a qual o filme ajuda a denunciar. Não assumi-lo faz
parte de um teatro do esquecimento bastante “oportuno”, tendo
em vista a necessidade providencial de medidas compensatórias
para desfazer os nós sociais atados naquele momento histórico.

O cinema, a história e o passado

Falou-se até aqui do filme a partir de sua recepção, primei-


ro em termos do que chamamos genericamente de forma, em
suas relações com o tema; em segundo, das reações provocadas
no público, procurando lê-las de forma crítica, respeitando as
limitações da restrita pesquisa realizada para fins exclusivos des-
te artigo. Falamos também de algumas estratégias de linguagem
utilizadas no filme para contar a história de Solomon. E das si-
milaridades históricas com o caso brasileiro. Gostaria, agora, de
traçar alguns comentários sobre a possibilidade de associar ou

tomar medidas que garantissem a restauração de tal pessoa à liberdade (Northup,


2014, p. 233-234).
124 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

mesmo incluir a produção de Steve McQueen no corpus historio-


gráfico sobre a escravidão, explorando os limites e possibilidades
da equivalência entre os dois.
Em linhas gerais, o filme foi muito bem recebido por espe-
cialistas no tema, tanto dos Estados Unidos, quanto no Brasil. A
tônica foi o impacto esclarecedor que o filme de Steve McQueen
tivera sobre o público, ascendendo as chamas de um debate há
muito necessário. Não é incomum entre nós historiadores — es-
pecialmente no Brasil — a crítica sobre a falta de acuidade históri-
ca em filmes que tratam direta ou indiretamente de nossos objetos
de pesquisa. As respostas, quando existem, celebram a licença po-
ética e as necessidades da linguagem como soberanas numa obra
audiovisual, acima, portanto, das exigências pouco conhecidas
pelos cineastas da escrita da história. Talvez a participação mais
efetiva de assessores históricos — sendo estes, historiadores de for-
mação — pudesse ajudar a consolidar um pacto cuja finalidade
mais importante seria erigir um debate sobre as fronteiras móveis
entre ficção e realidade na explicação do passado. De forma ain-
da tímida, isso vem acontecendo em alguns países, especialmente
nos Estados Unidos, onde experiências de consultoria histórica
para grandes produções, tem impulsionado a discussão sobre ci-
nema e história. Mas ainda não no Brasil. Enquanto esse dia não
chega, podemos nos ocupar com exemplos estrangeiros, como o
do filme em questão, cuja temática nos é relevante.
Um ponto de partida para pensar as relações entre o filme e a
escrita da história é a sua repercussão social. Temos, de um lado,
os livros de história, comumente escritos num quase dialeto,
pouco acessíveis a uma população cujo hábito de leitura é precá-
rio. De outro, narrativas audiovisuais, muitas vezes, apreendidas
como transparentes em sua representação. Há um século atrás, o
diretor D. W. Griffith previa que o filme substituiria os livros de
história no futuro:
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 125

Instead of consulting all the authorities... and ending be-


wildered... you will actually see what happened. There will
be no opinions expressed. You will merely be present at the
making of history.15

Esta profecia não se cumpriu, porém, é preciso admitir que,


muitas vezes, o espectador comum aceita o filme como uma re-
produção fiel do passado, a qual lhe servirá como base de infor-
mação e como referência visual na constituição do imaginário
sobre um tempo não vivido.
O alcance do filme, especialmente quando falamos de um
vencedor do Oscar®, é infinitamente superior ao dos livros de
história mais bem-sucedidos. Chegará, portanto, a rincões
onde nossos trabalhos dificilmente chegariam. E, caso chegas-
sem, talvez não encontrassem tanta ressonância. O fato é que
são raros os casos como o de Twelve years a slave, em que o dire-
tor mostra-se completamente a par dos debates historiográficos
sobre o tema tratado no filme, além de contar com qualificada
assessoria histórica.16 Tal aproximação, cheia de limites e “po-
réns”, entre a produção acadêmica e o cinema é riquíssima e
pode render frutos generosos, amplificando o clamor por um
debate público sobre o tema que transcenda, na sua recepção,
os corriqueiros julgamentos em torno do “bom” ou do “mal”
filme, geralmente pautados por padrões de consumo audiovisu-
al referentes à fluência de sua narrativa.

15. “Em vez de consultar todas as autoridades…e acabar aturdido… você vai, na
verdade, ver o que aconteceu. Não haverá opiniões expressas. Você simplesmente
estará presente no fazer-se da história” (Pierre, 2008, p. 1, tradução do autor).
16. O escritor e editor estadunidense Henri Louis Gates Jr. é o responsável pela
assessoria histórica do filme. Diretor do Hutchins Center for African and African
American Research da Harvard University, foi responsável pela organização e direção
de inúmeras publicações e documentários para a TV sobre a presença africana nas
Américas, consagrando-se notório especialista na questão dos direitos e da cultura
afro-americana. A edição do livro pelas editoras Penguin/Companhia das Letras
conta com um posfácio de Gates Jr.
126 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Talvez uma breve comparação entre as possibilidades de aná-


lise do documento que deu origem ao filme — a narrativa de So-
lomon Northup — para o historiador e para o cineasta seja apro-
priada para melhor explorarmos os cruzamentos entre os dois
campos. Imaginemos que nossa fonte seja a mesma que serviu a
Steve McQueen, o relato do sequestro de Northup. Certamente
não aceitaríamos usar a tal “licença poética” para alterar os ditos
de Solomon, como fez McQueen em não raros momentos. A
cena em que Platt, nome dado a Solomon em sua condição de
escravo, tenta contar sua história ao generoso senhor William
Ford, jamais foi relatada no livro. No filme, Ford se recusa a ou-
vir algo que provavelmente já sabia: que Platt, seu escravo, pelos
conhecimentos e pela experiência que carregava, fora um homem
livre e encontrava-se escravo por caminhos ilegais. Se Ford é des-
crito de forma generosa por Solomon, McQueen opta por enfati-
zar a violência das relações, assumindo uma abordagem estereoti-
pada dos personagens senhoriais. As pregações de Ford, descritas
com admiração por Solomon no livro — em contraponto às
absurdas justificativas bíblicas para o castigo expostas por Epps,
cruel senhor com quem Solomon ficou por cerca de dez anos —,
aparecem no filme numa sequência de imagens em meio a qual
adquirem novo sentido: o tirano Tibeats cantando a cruel canção
Run Nigger Run, cenas de trabalho forçado e vigiado, o encon-
tro com indígenas cuja vida livre na mata e as práticas rituais
contrastavam com a dos negros escravos. A sequência acaba com
Solomon defecando no mato, depois de ingerir a carne de javali
junto dos índios e alguns companheiros de servidão. No livro,
fica clara a proximidade de Northup com a doutrina cristã, espe-
cialmente nos comentários sobre as pregações de Ford. No filme,
ela aparece como parte de um sistema hipócrita e contraditório,
à exceção dos usos que fazem dela a própria população negra — a
exemplo da comovente cena do enterro de Uncle Abram, quando
Solomon, num momento de identificação com a cultura negra
da senzala, canta o spiritual Roll Jordan Roll.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 127

A postura do historiador diante das fontes é distinta, embora


tal distinção possa ser problematizada. Não podemos criar novas
cenas para o passado ao qual tentamos remontar. O cinema, sim.
Mas podemos de fato supor, sempre a partir do maior número de
evidências possíveis. Além de propor explicações possíveis, que
variam de autor para autor, também omitimos certas informa-
ções, afinal não se pode falar de tudo. E colocamos outras em
negrito, mudando a proporção de sua importância em acordo
com o objeto de nossa pesquisa. Nosso trabalho com as fontes
é plural, quase aleatório. Formamos, assim, uma espécie de que-
bra-cabeças de combinações instáveis, juntando peças e criando
sentidos. Aceitamos com frequência outros tipos de “licença”,
que não a poética, quando, por exemplo, nos aventuramos com
fontes visuais ou literárias, transferindo indícios do passado, via
ficção, para escrever a história. Há, portanto, e nisso não há no-
vidade, um alto grau de invenção na escrita da história. E den-
tro dos pactos acadêmicos do campo histórico, somos escritores.
Precisamos criar para fazer história.
O cineasta que se ocupa de filmes históricos tem variáveis
distintas. A começar pelas exigências da linguagem audiovisual,
incapaz de explicar de forma objetiva ou de comprovar com no-
tas de rodapé a veracidade das informações. O alto custo de uma
obra cinematográfica implica em compromissos mercadológicos
pouco comuns entre nós historiadores. Há ainda a expectativa
do público e da crítica com relação à dinâmica da narrativa. E
a duração limitada: seria impossível narrar num único filme to-
das as cenas descritas e comentadas por Solomon. Outra questão
fundamental é que de um filme espera-se uma narrativa fecha-
da, que conte uma história cujo sentido é literário. Nós, histo-
riadores, somos movidos por problemas. Nossas obras podem
encontrar sua completude sem agarrar-se a histórias singulares
com começo, meio e fim. Por isso, num filme faz-se necessário
preencher lacunas e, dependendo do intuito do diretor, alterar
sentidos através da montagem, tanto visual, quanto sonora. O
128 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

historiador, por sua vez, precisa cruzar fontes, agregando sentidos


ao documento ou personagem analisado.
Ao fim, ambos complementam os resquícios do passado, mas
de formas distintas. No filme, busca-se fórmulas narrativas que ale-
gorizem determinadas mensagens sobre o evento ou trajetória en-
focado; na escrita da história, cruza-se indícios diversos para provar
ou rebater determinadas hipóteses sobre o passado. Steve McQueen
escolheu a violência como problema histórico a ser debatido em seu
filme. Seus desvios com relação ao livro são estratégias para melhor
sintetizar o espírito da sociedade escravista em sua complexidade.
O relato de Solomon Northup não é, nem para o cineasta,
nem para o historiador, um documento absoluto. É preciso levar
em conta que tenha sido escrito pelo editor branco e abolicionis-
ta David Wilson; que tenha sido publicado junto a uma série de
relatos de ex-escravos que ganhavam força no mercado editorial e
que, por isso, deveriam atender a certas expectativas literárias (de
um público também branco e simpatizante do abolicionismo). O
norte dos Estados Unidos descrito no livro é muito mais puro e he-
roico do que na versão do filme, esta última mais crua e complexa.
Trabalha-se, na escrita da história e na cinematografia, com
formas distintas de síntese: a ficção e a alegoria no filme; recorte
e encadeamento na história. A ficção entendida como permissão
para imaginar em fatos as consequências de uma atmosfera de
época; na alegoria, bastante utilizada por McQueen, faz-se uso
de determinadas cenas/ações/personagens para intuir um espí-
rito mais geral: diz-se algo que, em verdade, quer referir a outra
coisa. O recorte é a habilidade do cientista social de perceber em
fragmentos da realidade a potência para explicar determinados
problemas mais gerais, verdadeiro contraponto à ficção; e, co-
nhecendo um cenário mais amplo, sai em busca de informações
que possam encadear à hipótese/recorte inicial, traçando mapas
da vida social. São procedimentos distintos, é verdade. Mas não
por isso opostos ou incompatíveis.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 129

Cheguei a sugerir, no início deste subitem, que um maior


envolvimento de historiadores em produções cinematográficas
poderia ser uma solução para aumentar o debate em torno dos
filmes históricos. Gostaria agora de inverter esta proposição.

Ver e ouvir a voz da história

Muito se fala sobre os usos do filme em sala de aula. Discute-


-se também como o filme histórico pode ser associado à histo-
riografia. Mas são raras as experiências em expandir a escrita da
história para além do texto, utilizando imagens e sons. O fato é
que o historiador contemporâneo vive um dilema. O passado
tornou-se valiosa mercadoria, que tem sido vendida por profis-
sionais, muitas vezes, desprovidos de formação e interesse em se
familiarizar com as tradições historiográficas correspondentes aos
temas sobre os quais escrevem. O resultado é um distanciamento
entre a pesquisa acadêmica e a história consumida pela maioria
da população. Nesse cenário, o historiador interessado em tornar
públicas suas descobertas pode encontrar em outras linguagens
— para além do texto — poderosos aliados na luta por público
que se trava na atualidade. Para tal tarefa, o auxílio de cineastas,
jornalistas, editores, fotógrafos, designers, montadores, entre ou-
tros é primordial, tendo em vista que tais produtos envolvem
habilidades que fogem à nossa formação tradicional.
No Brasil, alguns poucos cursos de história têm realizado in-
vestimentos nessa direção. Minha experiência junto ao Labora-
tório de Imagem e Som (LIS) no Departamento de História da
Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc) como profes-
sor colaborador durante 4 anos (2012-2015) foi enriquecedora,
mas também frustrante. Orientando alunos no trabalho de dis-
cussão teórica, pesquisa, produção e finalização de documentários
de história voltados ao consumo em escolas públicas, foi possí-
vel vislumbrar um futuro promissor para a disciplina.17 Vídeos

17. Ver Hagemeyer; Téo (2013).


130 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

produzidos no curso alcançaram milhares de visualizações, o que


significa mais “leitores” do que obtiveram algumas das obras de
maior sucesso editorial em nossa área. Entretanto, a completa falta
de investimento material (equipamentos) e pessoal (profissionais
especializados no trabalho de produção e finalização audiovisual)
tornou o processo excessivamente lento e dificultoso, fazendo des-
moronar, muitas vezes, o interesse fulminante dos alunos.
A precária formação da maioria dos cursos de história para
lidar com — e, mais do que isso, produzir — vídeos dificulta
o processo de aproximação e aceitação do trabalho do cineasta
como história ou sua auxiliar na publicização de pesquisas para
além da academia. Tomemos o filme que ora discutimos como
exemplo de colaboração entre os dois campos. Como vimos,
Twelve years a slave conta com densa assessoria histórica (embora
não de um historiador, de um especialista e ativista na área, Hen-
ri Louis Gates Jr.). O filme, que chegou a ser chamado pejorati-
vamente de academicista, leva em conta a produção acadêmica
sobre escravidão, apropriando-se dela de forma bastante adequa-
da. Em consequência disso, o National School Boards Association
decidiu distribuir o filme, o livro no qual é baseado e um guia de
estudos sobre ambos na rede de escolas públicas norte-america-
nas como parte do currículo sobre escravidão.
Não há dúvida que esta é uma medida acertada e de grande
importância, colocando este tema marginal como parte desta-
cada da história americana. Mas pensando no contexto brasi-
leiro — que talvez não seja muito diferente do estadunidense
neste sentido —, estariam os professores preparados para lidar
com este material de forma apropriada, evitando seu subapro-
veitamento? Uma das preocupações reside na possibilidade de
fortalecer (e não desfazer, como seria ideal) a transparência da
obra cinematográfica, aceitando-a como palavra final. Este é um
perigo inerente à imagem, e especialmente ao cinema de história.
A familiarização com a linguagem e, sobretudo, com a produção
audiovisual na graduação e, consequentemente, nas escolas seria
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 131

de grande ajuda não apenas na ampliação do debate em torno


do filme — forma, conteúdo, linguagem, pesquisa histórica, etc.
—, mas na proliferação do debate e na produção de narrativas
semelhantes pelos próprios alunos e professores, fazendo uso do
audiovisual, das redes sociais e de sites de compartilhamento.
A imagem que tem sido esboçada nos debates sobre história
pública de um historiador para além da academia, que enfrente
a popularização inapropriada de temas históricos — por livros
jornalísticos de história, sites de pesquisa universal, canais e pro-
gramas de rádio e TV — ao incluir em seu trabalho a preparação
para uma apresentação popular, precisa ser pensada já no processo
de formação do profissional. E se, como argumentou Jill Lidding-
ton, “o estudo da história pública está ligado a como adquirimos
nosso senso do passado” (2011, p. 34), por meio da memória e
da paisagem, dos arquivos e da arqueologia, e, em especial, do
modo como o apresentamos publicamente, então, está claro que
o vídeo, o filme e a imagem de forma geral devem ser priorizados
enquanto linguagem, fonte e produto final (monografias de con-
clusão de curso) na graduação. As consequências disso podem ser
radicais no que diz respeito ao lugar da história e do historiador
na sociedade. Dentre elas, a progressiva migração de produções
autorais e individuais para trabalhos coletivos e parcerias inter-
disciplinares, expandindo a consciência político-acadêmica das
ciências humanas para outras áreas e acoplando novas habilidades
e técnicas na formação do historiador (Liddington, 2011, p. 47).
Aceitar o cinema como história, como já propôs Robert Ro-
senstone (1998; 2010), ou como parte de iniciativas para a sua
divulgação, não é uma simples formalidade. Traz implicações ra-
dicais que vão de reformas curriculares nos cursos de graduação
e pós-graduação a possíveis revoluções nas formas de produção e
consumo do conhecimento histórico. O impacto de obras como
Twelve years a slave já pode ser percebido e serve como aperitivo
no banquete que celebra o futuro promissor da ciência histórica.
132 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Considerações

Como o leitor já deve ter percebido, utilizei o filme em ques-


tão como motivo para um arranjo bastante ousado e espinhoso.
Procurei encadear as implicações do debate sobre o tema — a
escravidão — a análises da obra em si e a discussões sobre novas
possibilidades de narrativa histórica, envolvendo diferentes for-
mas de diálogo com o cinema. Foram exploradas algumas das
relações possíveis entre o passado, o historiador, a linguagem ci-
nematográfica e o público, tomando a obra de Steve McQueen
como fio condutor e, mais do que isso, como um exemplo extre-
mamente bem sucedido de acordo entre estas quatro dimensões.
A proposta de uma narrativa histórica em imagens e sons
tem sido debatida de forma bastante tímida, talvez pelas barreiras
“naturais” que se colocam à nossa frente: necessidade de investi-
mentos pesados em equipamento e pessoal, disponibilidade de
tempo sem necessariamente receber as recompensas em termos
de currículo, deslocamento contínuo da zona de conforto, neces-
sidade de complementação da formação mesmo após a conquista
do título de doutor. Alguns autores, ainda assim, têm se manifes-
tado sobre o assunto ou, pelo menos, advogado em prol de uma
história pautada por imagens. Talvez o primeiro deles tenho sido
Aby Warburg, quando, em seu Atlas Mnemosine, sugeriu uma
narrativa histórica essencialmente visual. Mais recentes, os traba-
lhos de Hyden White (1998) e Robert Rosenstone (2010), bem
como as discussões sobre eles feitas em sala de aula e com colegas
de profissão, serviram de base para este artigo. Procurei evitar al-
gumas questões postas por ambos, especialmente o debate sobre
qual escola cinematográfica seria ideal para assentar as premissas
da escrita da história, pois entendo que seja uma discussão poste-
rior e com respostas variáveis a cada caso específico.
A questão, ao final, não é fundir historiografia e cinema,
mas aprofundar seus enlaces, intensificar a porosidade entre os
dois campos, a fim de que o saber histórico acadêmico encontre
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 133

ressonância e popularidade, cumprindo parte das ambições de


transformação social inerentes à disciplina. Tratar do passado,
transformar o presente. Acredito que os cineastas interessados
em temas históricos têm muito a aprender com os historiadores.
Mas é preciso entender que temos (nós, profissionais da história)
muito que aprender com eles, especialmente sobre a forma de
lidar com o passado a partir do presente, e das necessidades por
ele impostas. Na era das imagens, as expectativas são visuais. A
compreensão, mediada por imagens. E a formação cidadã passa
pela crítica das fontes visuais, dando origem a novos leitores, eles
também, críticos e ativos.

Ficha técnica do filme


Título original: Twelve years a slave
Direção: Steve McQueen
País: EUA
Ano: 2013
Data de estreia: 30/08/2013 nos EUA e 21/2/2014 no Brasil
Duración: 134 min.
Elenco: Brad Pitt, Michael Fassbender, Chiwetel Ejiofor, Bene-
dict Cumberbatch, Garret Dillahunt, Michael Kenneth Willia-
ms, Paul Dano, Paul Giamatti, Ruth Negga, Sarah Paulson,
Scoot McNairy
Distribuidora: Walt Disney Brasil
135

Capítulo 7.
Pensar historicamente a partir de
Blow-Up: imagens, reminiscências e
o olhar historiográfico
Rafael Hansen Quinsani1

Introdução

A invenção do cinematógrafo, no final do século XIX, consti-


tui um marco da história mundial. Os feixes de luz e de sombras
projetados em um horizonte que se descortinava consolidaram o
cinema na expressão artística por excelência do século XX. Desde
os tempos remotos as imagens têm o poder (de ação e de reação)
de provocar os mais variados sentimentos. Mesmo com o avanço
dos séculos e a saturação de imagens com a qual o ser humano foi
e continua sendo submetido, o fascínio por elas não se apagou,
nem sua capacidade de se reinventar. Acessível e universal em sua
essência, a imagem quando passou a ser projetada pelo cinemató-
grafo, disseminou-se rapidamente por todo o planeta, atingindo
diferentes classes sociais. Do espanto inicial, causado pelo trem
projetado pelos irmãos Lumière — (que, com perspicácia, pro-
jetavam como espetáculo o que era o cotidiano), no dia 28 de
dezembro de 1895, no Café Paris, e que parecia mesmo invadir
a sala e atropelar os espectadores, — em poucos anos o cinema,
seus realizadores e seus espectadores apresentaram um amadu-
recimento em relação a esta nova linguagem numa velocidade
impressionante. Amadurecimento que não excluiu o encanto de
se entregar a “ociosidade dos corpos” numa sala escura.

1. Doutorando em história pela UFRGS. Bolsista CAPES. E-mail: <rafarhq@


yahoo.com.br>.
136 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Partindo destes questionamentos refletiremos como o cine-


ma afeta o historiador e seu trabalho, também abordando como
o historiador percebe e incorpora o cinema em seu fazer histo-
riográfico. A película Blow-up, realizada em 1966 pelo cineasta
Michelangelo Antonioni, servirá de guia para esta reflexão, que
iniciará destacando o contexto histórico, social e cinematográfico
de sua produção, com ênfase para a Itália e o Neo-realismo. Pos-
teriormente a partir do filme serão abordados elementos concer-
nentes à análise proposta, concluindo com uma reflexão centrada
no âmbito histórico-cinematográfico.

Do realismo do Pós-guerra ao Neo-realismo


cinematográfico

Na década de 1950 a Itália sofreu um forte movimento de


imigração do sul para o norte, onde se efetuou uma brutal explo-
ração operária. Esse processo expôs as falhas da unificação reali-
zada no século XIX, desvelando as permanências do preconceito
e da segregação interna italiana. O desenvolvimento do movi-
mento operário é acompanhado por uma evolução da reflexão
sobre a teoria revolucionária, que nos anos 1960 girava em torno
da margem de atividade prática. No âmbito político, a vitória
de Aldo Moro e da social-democracia, em 1963, era vista como
a derrota da classe operária, uma derrota que podia ser atribuída
à classe como um todo ou aos organizadores e dirigentes dessa
classe. Para Mario Tronti (Tronti, 1976, p. 32-3), aqueles que
viam no marxismo a ideologia do movimento operário estavam
equivocados, esta deveria ser a teoria revolucionária. Fundamen-
talmente, pela crítica a ideologia burguesa, desejava-se uma teo-
ria que marcasse o ponto de vista dos operários, não fazendo uma
assimilação passiva de sua tradição.
Nessa teia cultural, surgem diversos grupos de reflexão, tam-
bém voltados para ações e práticas. Como exemplo, podemos
citar: La Classe Operária; La Classe; Potere Operário; Contrapia-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 137

no; Quaderni Rossi. Este último é responsável pela renovação da


esquerda extraparlamentar. Suas atuações chegam ao ápice em
1959, ocorrendo um total de cinquenta milhões de horas de gre-
ves, levando inclusive a uma mudança de eixo político do gover-
no para a centro-esquerda (Moulier, 1976, p. 358-9).
Em um período de crise social, em que se esboça uma situa-
ção de mudança, as lutas operárias prescindem de organização e
novas camadas sociais entram em cena no jogo de disputa. Tanto
sindicalistas como teóricos viam no partido o protagonista e o
eixo centralizador, mas a explosão dos acontecimentos traçou ca-
minhos diferentes. Às vésperas de 68, os sindicatos organizavam
somente uma parte da classe operária. As instâncias sindicais nas
empresas ou não existiam ou tinham funções meramente buro-
cráticas, e o Partido Comunista Italiano (PCI) estava presente
somente nas empresas mais importantes. Como consequência, as
centrais sindicais focalizam-se nas batalhas de alcance geral, vol-
tados para a melhoria de vida do operariado. Em 1968 têm início
greves prolongadas, acentuando os conflitos e surpreendendo os
sindicatos, que apresentam um crescimento neste período. Mas os
núcleos operários escapam ao seu controle, ocorrendo a formação
dos Comitês Unitários de Base (CUBs), compostos por operários
filiados e por não filiados a sindicatos que sofreram uma forte in-
fluência das ideias estudantis. Eles ganham um caráter combativo
pela pressão organizada exercida e uma forte motivação no desen-
cadeamento da luta antes da execução dos seus métodos.
As reivindicações da década de 1960 podem, assim, ser sin-
tetizadas: concessão de aumentos de salários independentes da
produtividade; 40 horas de trabalho pagos como 48 horas; a eli-
minação das categorias hierárquicas; a inclusão do tempo gasto
com o transporte na jornada de trabalho. Um marco do ano de
1968 é a greve de cem mil trabalhadores da Fiat, em Turim. Em
setembro do mesmo ano, um congresso realizado em Veneza sela
a união com os estudantes. Em julho de 1969, o processo se in-
tensifica com as barricadas na Fiat. A síntese das reivindicações se
138 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

expressa no slogan entoado pelos operários: Vogliamo tuto! Que-


remos tudo! (Moulier, 1976, p. 360).
O ano de 1968 foi o ano culminante de contradições acu-
muladas. Contradições que se relacionam com o contexto de
Pós-Segunda Guerra Mundial, e com os traumas materiais e psi-
cológicos ocasionados por ela. Na Itália, o ápice dos movimentos
de contestação ocorreu em 1969, caracterizando o período com
uma crise mais prolongada e profunda, marcado por uma grande
mobilização das massas. Destacam-se uma forte contestação à
universidade e o protagonismo assumido pelo operariado em sua
luta pelo controle da produção, sendo que suas manifestações fo-
ram nomeadas como o Outono Quente (Ribeiro, 1998, p. 26-7).
Esta “longa duração” do 68 italiano pode ser caracterizada como
o “maio rastejante”, por seu prolongamento e tensão constantes
verificados. Assim, este prolongamento se enquadra na análise de
Fredric Jameson, que aponta uma periodização do final da déca-
da de 1960 entre os anos 1972 e 1974 (Jameson, 1992, p. 89).
Neste contexto, no âmbito cinematográfico, surge o movi-
mento Neo-realista. Ele moldou uma nova forma de produzir ci-
nema. Com a carência de recursos, os cineastas levaram o cinema
“para a rua”, utilizando cenários externos, enquanto meios téc-
nicos mais despojados e simples romperam com a estética domi-
nante de Hollywood, caracterizada por uma produção sistemati-
zada e pela estratégia do “Starsystem” a partir da década de 1930.
Boa parte dos cineastas italianos iniciou sua carreira fazendo do-
cumentários de curta metragem, e muitos colaboraram com o
regime fascista. Daí essa estética próxima do jornalismo, voltada
para o enfoque do real. Disto resultou o emprego da câmera na
mão, que posteriormente irá alterar os próprios equipamentos.
As obras dos cineastas italianos refletiam o imaginário do con-
texto de pós-guerra. Com Roberto Rosselini observamos uma
temática que expressa a “degradação espiritual do povo”, um sen-
timento de depressão e de desilusão causados pelo impacto da
tragédia humana da Segunda Guerra Mundial. Com Vitório de
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 139

Sica há um enfoque voltado mais para o cotidiano, representado


como um universo poético, num tom mais de desencanto. No
entanto, ambos nasceram das cinzas e dos escombros de uma
Itália destruída materialmente, onde as pessoas estavam com co-
rações e mentes arrasadas.
Michelangelo Antonioni é considerado um dos fundadores
do cinema moderno, tomado como ícone para diversos cineas-
tas, críticos e estudiosos. Sua filmografia ganha destaque a par-
tir da segunda fase do Neo-realismo, chamada de “Neo-realismo
interior”. Nesta fase os filmes destacaram menos os sofrimentos
dos pobres e mais os problemas de uma nova classe burguesa
enriquecida, seus dramas internos e psicológicos. Antonioni era,
antes de tudo, um estudioso da imagem como um todo. Trocou
correspondência com pintores, estudou Matisse, Braque, Mo-
randi e Rothko. Entre sua vasta filmografia podem ser encontra-
das “unidades” como a tetralogia dos sentimentos (A Aventura, A
noite, O Eclipse, Deserto Vermelho2). Nestas obras o conflito entre
os indivíduos surge na construção do sentido das relações amoro-
sas. A trilogia da identidade (Blow-up, Zabriskie Point, Passageiro:
Profissão repórter3) compõe as três obras realizadas para o estúdio
MGM nos EUA (Chatman, 2005, p. 55-7).
Para Antonioni era mais importante sentir um filme do que
compreendê-lo. Buscava redescobrir o cinema testando os recur-
sos específicos da imagem, averiguando o que ela quer expressar,
privilegiando-a, muitas vezes, desligando os personagens da his-
tória diegética. Os cenários não se constituem em meros panos
de fundo nos quais estão alocados os personagens, eles criam um
sentido participando da história. Seus roteiros apresentam pou-
cos acontecimentos e, muitas vezes, o espectador não consegue
segurar o fio condutor, uma vez que a estrutura temporal, mais
do que impor a ordem dos acontecimentos, reitera o formalismo

2. L’avventura (1960); La Notte (1961); L’éclipse (1962); Il deserto rosso (1964).


3. Blow-up (1966); Zabriskie Point (1970); Professione reporter (1975).
140 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

das imagens. O espectador pode sentir a câmera, perceber a cons-


trução da história narrada com os recursos cinematográficos. Sua
narrativa tem como foco o amor e a relação dos protagonistas
com o mundo e os objetos que os rodeiam. Ela é aberta e utiliza
elipses. Alguns de seus filmes constituem-se em um “policial às
avessas” devido ao “suspense frustrado”, desvelando que há ou-
tro enfoque a ser percebido, não oferecendo uma solução para a
história, negando ao público o entretenimento, impedindo o re-
lacionamento do espectador numa forma sentimental e lúdica4.
Os personagens dos filmes de Antonioni são indefinidos ficcio-
nalmente. As referências históricas e sociais são assimiladas pelas
roupas, pela classe social e pela aparência. Na vasta filmografia de
Antonioni, uma obra ganha destaque por reunir estes diferentes
elementos e centralizar seu foco sobre a constituição da imagem
e suas relações com o mundo. Blow-up foi lançado em 1966. Foi
inspirado no conto Las babas del diablo, de Julio Cortázar. Era a
primeira obra do contrato realizado com a MGM, por isso foi ro-
dado com diálogos em inglês. E quais desafios esta obra apresenta
para seus espectadores?

Imagens, reminiscências e História a partir


de Blow-up

O filme Blow-up tem início de forma muito peculiar. Os cré-


ditos iniciais, que em geral são utilizados de forma burocrática,
já apresentam um indicativo da proposta que será apresentada ao
longo do filme. Por trás dos letreiros há imagens que se apresen-
tam. O olhar do espectador tenta vislumbrar entre os letreiros o
que aparece naquele ambiente. Esta sobreposição de “camadas
de leituras” estará presente em diversos momentos do filme. Ao
terminar os créditos a câmera destaca um espaço urbano quase

4. Em 1959, Antonioni foi obrigado a sair pelos fundos da sala de exibição de Can-
nes devido à hostilidade da plateia durante a exibição de A aventura.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 141

vazio. Pelas ruas surge um automóvel transportando diversas pes-


soas gritando e gesticulando. Esta trupe está caracterizada como
mímicos, artistas que no seu métier trabalham em silêncio. Nesta
cena a imagem apresentada questiona a função dos personagens
nela presentes. A sequência seguinte apresenta o protagonista do
filme, Thomas, que após receber um pacote dirigi-se ao seu carro.
Nestas sequências iniciais foram apresentadas as características
do protagonista: é fotógrafo, pois porta uma máquina profissio-
nal, pertence à burguesia, pois anda de Rolls-Royce, e tem uma
personalidade ambígua. As sequências que sucedem podem ser
sintetizadas da seguinte forma: no caminho até seu estúdio ele
é interpelado pela trupe de mímicos que continuam gritando
e gesticulando, enquanto Thomas permanece em silêncio. Este
silêncio é rompido quando ele fala e passa ordens pelo rádio do
carro. No estúdio ele tira fotos de uma modelo que o esperava
há horas. Segue para um restaurante onde negocia a exposição
de uma série de fotografias suas. Faz uma primeira visita a um
antiquário. Decide caminhar por um parque. Ao avistar um casal
se esconde e passa a fotografá-los. A mulher, ao perceber que
estava sendo fotografada, tenta pegar a máquina de Thomas.
Posteriormente ela irá ao estúdio para tentar novamente obter
o negativo. Curioso com o fato, Thomas revela as fotos. Algo o
inquieta. A partir de observações e ampliações ele descobre um
homem empunhando uma arma entre os arbustos. Sua análise
é interrompida pela visita de duas modelos, que protagonizam
o ousado ménage à trois. Retornando às fotos, Thomas percebe
que alguém foi atingindo pela arma que observava. Ao visitar o
parque à noite encontra um cadáver. Quando retorna no outro
dia com a câmera, o cadáver não estava mais no parque.
A Londres apresentada no filme funciona como um modelo
genérico de uma cidade ocidental. A entrada dos mímicos também
pode simbolizar a entrada triunfal dos aliados nas cidades euro-
peias após a Segunda Guerra Mundial, funcionando como um re-
forço metatextual. O filme nos coloca frente a três grandes espaços:
142 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

o interior da casa e do estúdio de Thomas; o exterior representado


pela cidade; e o parque, o espaço alternativo, eco da representa-
ção da floresta como uma zona de fuga. Os espaços interiores são
demarcados pela presença do quadrado, que simboliza o universo
criado, conhecido e delimitado, enquanto o espaço exterior (prin-
cipalmente o parque) é marcado pelos elementos circulares. Cabe
destacar que também os cenários exteriores são preenchidos por
figuras quadradas, nos prédios, nas esquinas, nas persianas e até nas
roupas das modelos (Conde Muñoz , 2008, p. 171-4).
Um lugar de destaque é o antiquário visitado por Thomas. O
antiquário é um lugar onde se acumula objetos diferentes, cada
um com sua própria história, entretanto retirados de seu tem-
po e de seu espaço, que lhes conferem referências de sentido e
identidade. A própria figura do Antiquário remete a um fascínio
há muitos séculos. Chama atenção do historiador a peculiarida-
de do Antiquário se interessar pelos fatos sem se interessar pela
história. Em seu ambiente circulavam medalhas, livros, plantas,
minerais, instrumentos científicos e diversos objetos que lhes
chamavam atenção. Acreditavam mais na observação empírica
do que na filosofia dogmática, escreviam manuais sistemáticos,
miscelâneas que diferiam das obras históricas produzidas em di-
ferentes períodos. Simbolizavam a erudição e, no século XIX,
foram “derrotados” pelos modernos numa querela oriunda de
séculos anteriores (Momigliano , 2004, p. 85-117).
As personagens femininas presentes no filme aparecem em
momentos pontuais. As duas modelos5 que desejam ser fotografa-
das por Thomas encantam-se pelos vestidos disponíveis no estú-
dio. Os vestidos, que para as mulheres são uma atração, são igno-
rados por Thomas, que não se aflige de pisoteá-los antes da relação
sexual que terá com as duas modelos. Esta cena expressa um ca-
ráter dúbio, pois Thomas promete e recua, deseja e não deseja. A
5. Uma das modelos é interpretada por Jane Birkin, que ficou famosa por interpre-
tar a canção Je T’aime, que reproduzia os gemidos da relação sexual (Menezes, À
Meia-luz: cinema e sexualidade nos anos 70, p. 19).
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 143

casualidade compõe sua constituição, tal qual os relacionamentos


de todos os personagens do filme. Cabe destacar que as mulheres
são representadas como personagens sem vontade, confusas, por
vezes imbecis. Elas são fúteis na forma de ver o mundo, não tem
identidade própria (não possuem nomes), não deixam pistas, pois
se reduzem ao espaço em que se encontram6. Os relacionamentos
de Thomas são permeados por uma espécie de filtro, que aproxi-
ma e distancia, da mesma forma com que se relaciona com obje-
tos. Um exemplo é a cena em que fotografa uma modelo. Depois
de inúmeras poses, Thomas projeta-se sobre o corpo dela numa
simbolização do ato sexual. Aqui, Antonioni demonstra que o ato
de fotografar correlaciona-se ao ato sexual, uma vez que ambos se
constituem em atividades físicas e visuais. Neste ato a capacidade
de penetração do aparato fotográfico é uma forma de violação.
Após o ápice do orgasmo, Thomas senta-se num sofá. Ele está
distante e desinteressado com o que acabou de ocorrer.
Ao visitar a casa de um pintor, Thomas (e o espectador) de-
frontam-se com um desafio e uma revelação. O pintor não vende
e não doa suas obras. Ele busca o significado, tal qual buscará
Thomas com suas fotos realizadas no parque. É a partir deste
desafio que o status da imagem passa a ser alvo de reflexão.
A imagem constitui a base da linguagem cinematográfica, a
matéria-prima fílmica. Ela induz a um sentimento de realidade,
fortalecendo a crença de sua existência objetiva. Sua diferencia-
ção da fotografia se dá na percepção do movimento. A imagem
registrada em uma fotografia aparenta imobilidade, estar para-
lisada no ar, pois todo o representado é reproduzido no mesmo
instante de tempo, ou seja, não visualizamos o desenvolvimen-
to progressivo do gesto como fazemos ao observar uma estátua,
passível de ser dotada pelo artista com a impressão do gesto em
movimento, a qual também é produzida naturalmente pela mo-

6. Uma exceção é a personagem de Vanessa Redgrave, que parece apresentar algu-


ma vontade e demonstra saber o que faz.
144 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

vimentação do olhar do observador. Assim, a veracidade da obra


depende do movimento ocular de quem visualiza uma imagem
(Virilio, 1994, p. 15). A fotografia compõe uma representifica-
ção, ocorrendo um deslocamento temporal no qual o ato de olhar
caracteriza-se por ser a gênese e não o resultado de todo o pro-
cesso. Portanto, a base da constituição de uma ilusão encontra-
-se na reprodução mecânica que aparentemente exclui o homem
deste processo. A fotografia petrifica o tempo e ressalta, através
da “pseudo-presença” desse tempo, os vestígios de sua ausência
(Menezes, 1996, p. 84-5). Ou seja, trata-se de uma imagem física
enriquecida com a mais rica qualidade psíquica (Morin, 2001,
p. 36-7). Imagem física, pois a fotografia não pode dissociar a
imagem de seu suporte, no caso o papel.
Diferentemente, no cinema o que nos atrai é a projeção, o
material em movimento. Os sentidos do observador são suspen-
sos, como se estivessem fora do tempo e do espaço, atribuindo-
-lhes um grau de imaterialidade que preenche todos os espaços de
quem se dispõe a aceitar este jogo, esta experiência. A projeção de
um filme não tem uma localização física e permanente, ela não
desenvolve uma cristalização afetiva do objeto, pois no seu ato de
exibição ela se apresenta impalpável, fugaz e desmaterializada. São
justamente estas duas categorias, tempo e espaço, que estabelecem
um ponto chave na reflexão sobre a imagem cinematográfica e
suas relações sobre as implicações destes elementos para a história.
Tal imagem internaliza o duplo dentro de si mesma e expressa a
soma dos campos mentais e materiais, as quais revalorizam ou
pioram a realidade que é exposta. Realidade que se tenta capturar
ao máximo possível com a arte realista, em que a imagem objetiva
tenta ressuscitar nela as qualidades da imagem mental.
Com o surgimento da câmera fotográfica o homem ganha
uma “prótese humana” que permite a potencialização de um
novo olhar. No início do século XX o fotógrafo é um homem
integrado à metrópole, um observador ativo e, ao mesmo tem-
po, invisível, captando, conhecendo e guardando o que vê ao
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 145

redor. A relação do olhar humano com o olhar da máquina


complexifica-se na medida em que este último permite penetrar
no inacessível (Baltazar, 2008). Com o advento do uso da cor,
agregam-se novos códigos ao realismo expressado na imagem:
a transparência funcionando como instrumento apagador da
imagem-mediadora, e um novo e amplo potencial dramático. É
interessante ressaltar que no filme as fotos realizadas com as mo-
delos são feitas a cores enquanto as fotos destinadas à “exposição
artística” são feitas em preto e branco. A dupla atuação de Tho-
mas também permite refletir sobre a diferença da “Foto Pose” e
da “Foto Caça”. A primeira envolve múltiplas encenações: aquele
que eu me julgo; aquele que eu gostaria que me julgasse; que o
fotógrafo me julga. A segunda permite destacar que o fotógrafo
aprisiona o objeto ao fotografá-lo (Giacomini, 2004).
Diversas cenas se referem e estão correlacionadas ao status da
imagem. Quando fala ao telefone Thomas diz que “as palavras
não são seu forte”. Quando o telefone toca ele se joga no chão
para se aproximar do aparelho, num gesto que remete à explosão,
como uma revelação fotográfica. A ligação de Thomas com o
mundo ocorre pelos olhos das lentes de sua máquina. Fora dela
ele não encontra significado, os episódios vivenciados só adqui-
rem sentido por meio da fotografia, aqui presente com uma fun-
ção duplamente reveladora: o que os olhos de Thomas não viram
e o que os olhos dos espectadores também não viram. Thomas
descobre os fatos pela curiosidade do olhar. A interrupção da sua
investigação para um momento de sexo a três agrega um signifi-
cado ímpar: não somente é preciso saber para onde se olha, mas
também, é preciso reinterpretar o que se olha. A saciedade sexual
permite a descoberta da morte. A ação de Thomas ao olhar a cena
do parque (presencialmente e retrospectivamente) permite uma
reflexão sobre o status do olhar do ponto de vista do historiador.
Temos com Heródoto e Tucídides, o que nomeamos o prin-
cípio, a certidão de nascimento da história, as origens, o começo
da ordem, o germe de um porvir. Heródoto que inventariava,
146 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

viajava, ia ver e narrava. Tucídides, que elevou o valor do re-


gistro escrito, buscava mostrar o sentimento dos personagens,
penetrando no íntimo até a essência dos fatos. Para uma melhor
contextualização dos seus métodos, é válida uma análise de como
se relacionavam com suas fontes. Historeîn e Semaínein. Eis o
princípio. Podemos denominá-las operações, talvez um prelúdio
de um método. Estas operações possibilitaram ver mais longe,
num determinado espaço e tempo. Historeîn deriva de Hístor,
que remete a Idein (ver) e a Oida (saber). Na ideia de Hístor, o
árbitro que encontramos nas narrativas épicas, podemos conce-
ber uma posição de Heródoto como tal, por querer guardar na
memória os fatos, estes vistos pelos dois lados — dos gregos e dos
bárbaros (Hartog, 2001, p. 50-398-9).
Todavia, Heródoto não pode ser Hístor, pois já encontramos
em sua obra e nos seus métodos uma necessidade de investigar, que
remete à ideia de produção de narrativas, que tinham como função
impedir que os traços dos homens se apagassem, conjuntamente
com a não centralidade do relato focado exclusivamente nos heróis.
Junto com Semaínein (significar, “que revela”), Historeîn compõe
um princípio de estilo a ser praticado pelo primeiro historiador.
As primeiras transformações do período micênico (em que
os gregos não conheceram mais monarquias fortes e não deviam
memórias a elas) influenciam o surgimento de um historiador
que não estava ligado ao poder político (se opondo aos modelos
egípcios e mesopotâmicos). Desse modo, havia a possibilidade
de atuação como uma figura subjetiva, influenciado por uma
nova “intelectualidade” que questionava a ordem para melhor
compreendê-la, produzindo uma experiência diferente numa es-
trutura social mais heterogênia. Este historiador quer marcar seu
nome, buscar um lugar para seu saber. Mas este lugar não existia.
Necessitava ser construído. Esta necessidade de investigar pode
ser associada mais a um estado de espírito e um tipo de método
usual, do que a um domínio particular sobre a ação. Estas carac-
terísticas efêmeras devem-se ao fato de que a história se consti-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 147

tuía, naquela época em, um gênero minoritário, não chegando a


compor nem mesmo um gênero. O grego dispõe de outras for-
mas de conhecimento do passado (narrativas e tradições orais).
A história não era objeto de ensino e não se formavam escolas
para ela. Preocupava-se com o presente, não só com as façanhas,
mas com o que circunscrevia o tempo dos homens, o que pode
ser visto como uma transição da epopeia para a história. Heró-
doto não se denominava historiador, ele Historeî, investiga e nar-
ra, viaja, se relaciona com as fontes, substituindo uma visão de
origem divina. Entre o Aedo e o adivinho temos Heródoto, que
dispõe seu próprio nome, imprimindo sua assinatura inaugural.
Com Tucídides, podemos averiguar uma ruptura. Ele Syn-
gráphein, que significa tomar nota, registrar por escrito. Para
“ver” usa a metodologia da autópsia, criticando os testemunhos
mais profundamente, filtrando-os. O advento da visão é privile-
giado, já que com o ouvido se esquece, permitindo que os fatos
se deformem. Temos uma desvalorização da investigação e uma
ascendência dos registros escritos. Tucídides deseja compor uma
“aquisição para sempre” (Ktema es aei) para os homens do futuro.
Critica Heródoto por ele estar próximo da lenda e por suprimir a
falta de documentação com o uso da imaginação. Eis a principal
diferença. Tucídides presenciou a guerra, os fatos. Busca analisar
os indícios e o agrupamento de provas para suprimir o falso e
circunscrever o mítico. Todavia não chega a uma convicção clara
a respeito destes elementos. Ele privilegia o psicológico, marcado
por uma retórica argumentativa (que marcou a literatura gre-
ga negativamente, suprimindo o valor das ideias), buscando um
maior efeito de convencimento daquilo que presenciou.
É notável a diferença de Heródoto e Tucídides em relação à
historiografia moderna, principalmente como os historiadores
gregos antigos tratavam suas fontes. Sua citação não é feita ou se
dá raramente. A diferenciação entre fontes primárias e secundá-
rias é, de certa forma, alheia a seus métodos. Provavelmente, em
seus procedimentos, faziam essa diferenciação, mas a guardavam
148 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

para si. Investigavam os fatos por conta própria e ao leitor não


cabia essa preocupação (por conseguinte de interpretar e de ve-
rificar). Seu julgamento ocorria pela crítica interna e pela avalia-
ção sobre sua parcialidade. Cabia também ao leitor elaborar a sua
ideia de verdade, excluindo-a da tarefa do historiador. Este po-
dia “manobrá-la”, sem, no entanto, enganá-la, constituindo um
contrato espiritual que a ratificava. O historiador antigo acredita
naquilo que não é mais verificável (Veyne, 1984). Ele caracteriza
uma autoridade, não critica seus colegas, mas aniquila uma imere-
cida autoridade, que, junto com a sua credibilidade, deveriam ser
alcançadas com o tempo, institucionalizando-se. Verificamos um
papel de destaque atribuído mais à tradição do que às fontes. Os
historiadores consideram a si próprios uma tradição, não buscam
simplesmente refazê-la, mas melhorá-la, não deixando de recopiar
uns aos outros. Mas eles não acolhiam essas tradições cegamente,
uma vez que verificavam através de um processo de investigação.
Dificilmente encontramos historiadores da importância de
Heródoto e Tucídides e com relevância tão profunda para a histó-
ria. É fundamental analisá-las em seu contexto para melhor com-
preendê-los. Os gregos tinham a sua maneira de fazer história,
diferente da nossa. Em comum, talvez só o nome. O passado já
continha seus historiadores. Para narrar o seu tempo, faz-se ne-
cessário tornar-se uma fonte, materializar-se, institucionalizar-se.
Ele não tem que interpretar, provar, basta-lhe relatar os fatos pela
investigação, buscando, assim, colocar em evidência o descoberto,
este, objeto permanente para o historiador de todos os tempos.
Voltando ao filme, Thomas, ao revelar as fotos realizadas no
parque, começa a montar e reconstituir a ação presenciada por
ele. Para se aproximar dos detalhes ele amplia as fotos, chegando
inclusive a fotografar as fotos reveladas para ampliá-las na busca
de mais detalhes. Destaca-se que as fotos estão em preto e branco,
e, quanto mais Thomas as amplia, mais borradas e fragmenta-
das ficam as imagens visualizadas. A sequência reconstruída por
Thomas apresenta diversas camadas de leitura: o olhar de Thomas
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 149

durante o ato fotográfico; o olhar do espectador durante o ato


fotográfico; o olhar dos personagens fotografados; o olhar de Tho-
mas ao ver as fotos reveladas; o olhar do espectador sobre as fotos
reveladas; e, por fim, o olhar do diretor sobre o protagonista e
sobre as fotos. Ao reconstruir a cena com as fotos e mentalmente,
Thomas age como o diretor do filme. Ele constrói um sentido na
e pela montagem. Este caminho a posteriori trilhado por Thomas
também constitui a gênese da imagem observada e registrada por
ele. Ao buscar toda verdade nestas imagens Thomas encontra a
decepção, pois se depara com instantes de verdade num conti-
nuum (Didi-Huberman, 2004, p. 65). Em um paralelo Didi-Hu-
bermann critica o processo de ampliação e recorte realizados com
as fotografias de Auschwitz. Ele destaca a importância do olhar
contemporâneo, de mirá-las em sua fenomenologia, processo
que não contenta Thomas ao olhar suas fotos7. Didi-Hubermann
aponta que todo o real não é solúvel no visível, pois há um grau
de impotência da imagem em transmitir todo esse real. Ao visua-
lizar uma imagem pela primeira vez, ela tem o poder de paralisar,
a ponto de um acontecimento registrado numa foto ganhar um
plus de realidade (Didi-Huberman, 2004, p. 128). Contudo, a
repetição do olhar pode levar o acontecimento a perder sua po-
tência de realidade, processo que Thomas vivencia com o passar
do tempo. O fluxo e refluxo da verdade contida nas imagens são
vislumbrados na ação do protagonista. A montagem efetuada por
Thomas não opera uma mera esquematização, ela inicia e retorna
de forma complexa à sua apreensão dos fatos, e o caráter imagi-
nativo não está ausente deste processo, pois “a mesa de trabalho
especulativa deve estar acompanhada de uma mesa de montagem
imaginativa” (Didi-Huberman, 2004, p. 177). Falar de imagem
sem imaginação é separar a imagem de sua própria atividade,
privá-la de sua dinâmica. “Todo ato de imagem é arrancado da
7. Guardadas as proporções do fato retratado no filme de Antonioni, um assassi-
nato ocorrido no âmbito diegético e as fotos realizadas pelos Sonderkommandos em
Auschwitz.
150 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

impossível descrição de uma realidade” (Didi-Huberman, 2004,


p. 185). Descrição que Thomas não descarta, pois a apreensão de
sua realidade visualizada ocorre pelo meio imagético-fotográfico.
Ao testemunhar um fato e fotografá-lo, Thomas ampliou e
multiplicou a reprodutibilidade do ato de testemunhar. O debate
em torno da noção de testemunha é amplo e galgou disputas pela
crescente abrangência e proliferação no meio social e acadêmico.
Ao questionar a transformação do testemunho em ícone de verdade
pelos relatos históricos construídos após o fim dos períodos ditato-
riais, Beatriz Sarlo elenca um histórico sobre os diversos elementos
relacionados ao processo de escrita da história e suas relações com
os historiadores que as executam. Iniciando o debate num âmbito
mais amplo, Sarlo aponta o caráter conflituoso do passado e sua
relação com o presente. Nos dias atuais, um paradoxo pode ser
visualizado: verifica-se um aumento do enfraquecimento do pas-
sado pela supervalorização do instante, mas concomitantemente,
a história adentra no mercado simbólico do capitalismo tardio de
forma abrangente (Sarlo, 2007, p. 30-3). Ligado a este processo,
não se descola uma renovação e variação das fontes utilizadas pela
história, pelas quais as visões do passado irrompem no presente
através de narrativas. Se a história construiu suas regras e méto-
dos de sua disciplina para supervisionar os modos de reconstitui-
ção do passado, no mercado simbólico deste capitalismo tardio a
“história de grande circulação” revela-se mais sensível às estratégias
do presente, organizando-se através de esquemas explicativos con-
forme necessidades afetivas, morais e políticas. Mudam as fontes,
alteram-se as temáticas. Focados no detalhe e buscando perceber
o cotidiano, sua capacidade de transgressão e variações dos indiví-
duos que sob as narrativas realizadas, nos anos anteriores, estavam
encobertas pelo seu enfoque estrutural, reinserindo novas exigên-
cias de métodos para serem aplicados aos “discursos de memórias”.
Nesse discurso, Narração e Experiência se inter-relacionam na
medida em que a primeira insere uma nova temporalidade que se
atualiza constantemente e que não corresponde a aquela do seu
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 151

acontecer. Com isso, quebra-se uma continuidade da experiência,


nem tanto pela diferença geracional, mas pela imposição do novo
ao velho, pela aceleração do tempo. Dentro desse âmbito, Sarlo
aponta que Paul de Man critica a possibilidade de equivalência en-
tre o eu (a primeira pessoa que relata) e o relato, utilizando como
exemplo a autobiografia. O autor aponta que ela não se diferencia
de uma ficção escrita em primeira pessoa. Por outro lado, Jacques
Derrida aprofunda a crítica destacando que não possuímos bases
filosóficas para definir experiência e no processo de relembrar, o
único fundamento da primeira pessoa é seu próprio texto.
A produção dessas narrativas introduz o Dever de memó-
ria, que traz consigo o direito de veto e ressarcimento, afetivo
e moral, do passado. Este ponto insere uma diferença no tra-
balho realizado pelo historiador, pois para a autora não há uma
equivalência entre o direito de lembrar e a afirmação de uma
verdade da lembrança. Assim, nesse contexto, afloram verdades
subjetivas que afirmam saber o que estava oculto há três décadas
pelas ‘ideologias’. Esse campo de conflito instaurado transforma
os combates pela história em combates pela identidade.
O aumento da produção e abrangência da história não aca-
dêmica, destacado por Sarlo realmente reflete a preponderância
que as memórias obtiveram no plano cultural, sendo responsá-
veis, principalmente, pela retomada do debate político e jurídico,
em contraponto a um silêncio institucional que somente nos úl-
timos anos vem sendo rompido. As memórias são elementos cha-
ve nas reconstruções de identidades individuais e coletivas, seja
pela continuação das lutas políticas proporcionadas, seja pela sua
importância em outros contextos (atuais) e para outros indivídu-
os. Há uma constante tensão entre o temor do esquecimento e a
presença do passado. Fica evidente a impossibilidade de que não
se pode retornar ao contexto vivido e que os fatos experimenta-
dos têm efeitos posteriores que independem da consciência dos
indivíduos. Contudo, pode-se argumentar que a experiência de
um momento pode modificar períodos posteriores, já que, em
152 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

sua existência, os sujeitos se movem em futuros passados, futu-


ros perdidos e passados que não passam (Jelin, 2002, p. 13). O
centro das memórias e das identidades está relacionado com um
sentido de permanência ao longo do tempo e do espaço. Elas não
são coisas sobre o que pensamos, mas coisas com o que pensamos,
nas quais o processo subjetivo é ativo e interligado socialmente.
Passado e memória são seleções e suas operações implicam não
só um esquecimento, mas também em múltiplas situações de es-
quecimentos e silêncios conforme diferentes usos e sentidos.
Voltando ao filme, Thomas quer entender o que aconteceu,
quer descobrir a verdade, deseja presentificar a realidade mostrada
na fotografia. Como não consegue, sofre com a angústia dessa
impossibilidade. Essa angústia faz com que ele viva entre a urgên-
cia do presente e a necessidade do passado. Sua busca ao cadáver
denota a necessidade de checar a realidade, de compará-la com
a imagem. Sua forma de agir e enxergar o mundo apresenta a
inversão de referência que se acentuou nas últimas décadas. An-
teriormente medíamos a foto pelo modelo, ao passo que nos dias
atuais medimos o modelo pela foto. Só acreditamos nas coisas que
conseguimos olhar enquanto imagem chegando ao ponto de con-
siderar o referente da fotografia como igual à coisa necessariamen-
te real colocada diante da objetiva. A reflexão sobre o poder das
imagens também se encontra no filme em outras cenas. Thomas
caminha pelas ruas e decide entrar num galpão onde ocorre um
show de rock. Os Yardbirds tocam uma música que não encontra
resposta no público. Todos estão parados, exceto um casal que
dança fora do ritmo executado. Quando o guitarrista Jeff Beck
quebra a guitarra e arremessa seu braço para a plateia, esta deixa o
estado de imobilidade e passa a disputar o pedaço do instrumento
freneticamente. Thomas consegue pegar o objeto e sai correndo
do lugar. Já na rua joga fora o braço da guitarra que é olhado
com indiferença pelos transeuntes. O show, o real presente, não
causava nenhuma reação até que uma imagem daquela cena é le-
vada até a plateia, ocasionando uma reação. Quando o pedaço da
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 153

guitarra é ignorado pelos transeuntes ele está fora de seu contexto,


perdendo seu sentido. Esta cena compõe uma elipse com a cena
do Antiquário que continha objetos fora de seu contexto.
A intensa velocidade dos tempos modernos sacudiu as noções
herdadas de tempo e espaço. A “ideologia do fim” lançou suas
sombras sobre diversas áreas. Além do fim da história, falava-se
no fim da ideologia8 e no fim das narrativas. Richard Kearney
aponta que as narrativas não desaparecem, mas sofrem mutações.
O que ocorreu a partir dos anos 1970 foi a derrocada de narra-
tivas mestras e a superação da narrativa tomada como noção do
romance realista (Kearney, 2002, p. 1-2).
A narrativa possui uma estrutura temporal que busca signi-
ficado em termos de referências ao passado (memória) e futu-
ro (projeção). O que constitui o tempo histórico é o assimilado
nos espaços de experiências correlacionados com os horizontes
de expectativa (Koselleck, 2006, p. 305-27). A narrativa marca,
organiza e esclarece a experiência temporal. O enredo compõe
a mediação entre eventos e história. Nesse sentido, a recriação
(Mímesis) é a redescrição imaginativa que captura a essência da
vida (Kearney, 2002, p. 4-7). A recriação não se constitui numa
cópia passiva da realidade, ela reencena o mundo real da ação
ao ampliar seus traços essenciais. Esta reflexão pode ser aplicada
à reconstituição da cena do parque realizada por Thomas. Ao
vislumbrar os fatos presentificados, Thomas reencena aquele mo-

8. Na atualidade, vivemos um paradoxo muito bem destacado por Terry Eagleton:


os últimos anos foram marcados pelo ressurgimento e pela intensificação de di-
versos movimentos ideológicos ao redor do mundo, mas surpreendentemente (ou
nem tanto), diversas correntes teóricas proclamam que o uso do conceito de ideolo-
gia é obsoleto. Este ceticismo epistemológico caracteriza-se por uma reciclagem da
rejeição ao conceito produzida no Pós-Segunda Guerra, principalmente devido ao
peso que o fascismo e o stalinismo impuseram ao período. A discrepância é que, no
século XXI, não há uma fundamentação política para esta rejeição, tal qual houve
na segunda metade do século XX. O que antes era considerado dogmático, fechado
e inflexível, hoje é referendado como teleológico, totalitário e metafísico (Eagleton,
Ideologia, p. 11-2).
154 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

mento ampliando seus traços essenciais do seu ponto de vista, o


recontar daquele episódio abriu perspectivas inacessíveis a uma
percepção ordinária. O poder catártico da história narrada nos
altera como indivíduo, graças à possibilidade de estar em um
lugar na pele de outra pessoa. O paradoxo de Thomas é que ele
reconta a história visualizada por ele mesmo. O “outro” era “ele”,
e a dificuldade de reconstituir os fatos vivenciados produz a an-
gústia da incompletude da experiência temporal.
Sobre a questão da narrativa, podemos afirmar que após a
década de 1960, o crescente abandono da história social levou
a abordagens culturalísticas, e as principais críticas à disciplina
histórica vieram do campo da linguística. Criou-se uma teoria
tropológica do discurso em que à história se equivaleria a uma
estrutura verbal em forma de discursos orquestrados em prosa
narrativa (Fontana, 2004, p. 400). Sobre isso Rancière ressalta:

Não se trata de dizer que tudo é ficção. Trata-se de constatar


que a ficção da era estética definiu modelos de conexão en-
tre apresentação dos fatos e formas de inteligibilidade que
tornam indefinida a fronteira entre razão dos fatos e razão
da ficção, e que esses modos de conexão foram retomados
pelos historiadores e analistas da realidade social. Escrever a
história e escrever histórias pertencem a um mesmo regime
de verdade. Isso não tem nada a ver com nenhuma tese de
realidade ou irrealidade das coisas. (Rancière, 2009, p. 58)

Kearney destaca a importância de reconhecer a ficcionalida-


de na representação histórica e o caráter histórico das narrativas
ficcionais. O autor aponta o perigo do relativismo pragmático9
de teóricos como Hayden White, que visualizam a narrativa
como uma simples função linguística desprovidas de referenciais
de verdade existentes além delas. Para este teórico devemos trocar

9. Ginzburg (2002, p. 38) lembra que o limite deste relativismo é de caráter cog-
nitivo, político e moral.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 155

a verdade histórica por uma noção de efetividade pragmática.


Kearney ressalta que posturas extremas de relativismo e positi-
vismo ameaçam a legitimidade do testemunho narrativo. Para
ele a narrativa histórica está sujeita a critérios externos ao enredo
e a critérios internos da linguagem. Neste intrincado debate, as
noções de subjetividade e objetividade vêm à tona no bojo dos
questionamentos da base ontológica da narrativa histórica.
A objetividade e a subjetividade foram pensadas de diferentes
formas no processo de escrita da história, conforme diversas épo-
cas e contextos. O conhecimento objetivo seria aquele que ordena,
que é estável, universal, atemporal, isento de emoções e analítico
(Reis, 2006, p. 152). No processo de racionalização moderniza-
dora da disciplina história, a objetividade seria uma garantia das
investigações históricas. Criou-se uma atitude objetivista (Rüsen,
1996, p. 87) que permite ao historiador ultrapassar os elementos
subjetivos embasado numa determinada concepção de história.
As críticas do discurso Pós-moderno concentram-se na igual-
dade da linguagem entre ficção e história. Como a história seria
construção do sujeito, não tendo um enfoque exterior ao huma-
no, os elementos subjetivos seriam incontroláveis. A fronteira en-
tre a ficção e o discurso histórico torna-se cada vez mais turva, o
que acaba levando os historiadores a refletirem sobre sua prática
de trabalho, enfocando o aspecto metodológico e evitando ques-
tões filosóficas mais amplas. Esta postura relativista de caráter
cético agregaria à história a tolerância e a alteridade, ausentes nas
formas de discurso histórico anteriores. A verdade estaria ligada
à eficácia da narração, o que poderia levar à desconexão entre
prova, verdade e história (Ginzburg, 2007, p. 210-30).
A partir destes fatores, podemos nos questionar se é possível fa-
lar em objetividade e qual o grau de sua operacionalidade. O pro-
cesso de cognição histórica constitui-se num procedimento mental
de dois polos: um objetivo, constituído pelas experiências verificá-
veis das fontes; outro subjetivo, ancorado na orientação para a vida
prática (Rüsen, 1996, p. 97-101). A objetividade seria a união do
156 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

pensamento à experiência, no qual a pluralidade de perspectivas


não é seu entrave. A objetividade colocaria limites às interpreta-
ções históricas estabelecendo critérios de validades, consciente da
existência dos elementos subjetivos. A exclusão da subjetividade
tornaria o conhecimento a-humano, levando-nos a esquecer que
também fazemos parte da história (Shaff, 1987, p. 279-310).
Assim, ganha terreno na escrita da história o conceito de re-
presentação, que é entendido como uma forma de composição de
uma visão histórica socialmente produzida na qual está associada a
ela a maneira de narrar e descrever. A relação do conteúdo da pro-
dução histórica com a realidade constitui-se um problema histórico
de grande interesse. Como uma fonte histórica não tem a pretensão
de ser produzida para ser uma fonte histórica, devemos reconhecer
e identificar os códigos das mediações históricas e interligá-los com
os indivíduos criadores e produtores (Bann, 1994, p. 54). História
e ficção constituem um desafio atual, como bem lembrou Reinhart
Koselleck. Cabe a nós destrinchar a ficção do factual contida no
evento representado e a facticidade do fictício contida em fontes
como os testemunhos (Koselleck, 2006, p. 141 e 251).
Um filme narra, explica e apreende acontecimentos individu-
ais, coletivos, sociais, psicológicos e históricos. Seu objetivo é en-
treter, mas na sua constituição faz uso de argumentos racionais e
todos os ingredientes da vida, das carências de orientação. Quan-
do procura representar, traduzir e interpretar a complexidade do
real, o cinema trai, mente e altera. Mas os documentos falsos ou
enganadores têm utilidade, uma vez que eles podem ensinar sobre
o objeto de sua mentira, ou falsificação, e até mesmo o porquê de
suas intenções neste procedimento. O conteúdo de um documen-
to ultrapassa a intenção de quem o registrou. Como lembrou Ko-
selleck, “o controle das fontes assegura a exclusão daquilo que não
deve ser dito. Mas esse mesmo controle não prescreve aquilo que
pode ser dito” (Koselleck, 2006, p. 141). Assim, a escrita cinema-
tográfica possibilita uma linguagem capaz de, em sua exposição,
fundir dialeticamente a multiplicidade dos tempos históricos, au-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 157

xiliando os historiadores a ampliar sua capacidade de produzir co-


nhecimento e potencializar sua transmissibilidade (Nóvoa, 2009,
p. 159-190). Desse modo, o cinema ensina, explica, documenta,
constrói uma memória, é agente e produtor de um discurso sobre
a história (Nóvoa; Barros, 2008, p. 7-24). Trata-se de uma outra
história diferente daquela escrita nos livros, construída com méto-
dos diferentes e inscrita em outra matriz disciplinar.
Este amplo rol de reflexões sobre o status da imagem coadu-
na-se na sequência final da película de Antonioni. Thomas cami-
nha pelo parque. Quando chega à quadra de tênis ela é invadida
pela trupe que foi vista no início do filme. Dois personagens
jogam tênis na quadra com o peculiar detalhe da ausência da
bola. Quando sinalizam que a bola foi arremessada para fora da
quadra, pedem a Thomas que a atire a bola de volta. Thomas ca-
minha pelo gramado, e seus gestos reproduzem a ação desejada.
Após devolver a bola, o protagonista (e os espectadores) passam
a escutar o som do objeto. Com esse gesto, Thomas aceita a re-
alidade das imagens e o filme atinge seu ápice na reflexão meta-
textual sobre o próprio valor do cinema como recriação do real,
da relação de fidelidade com o referente. Neste trajeto percorrido
foi possível esboçar alguns apontamentos sobre cinema, história
e imagens. Pensar historicamente é um exercício vital para refletir
sobre a disciplina Histórica. Mais do que uma fonte, um filme
como Blow-up é agente da história.
159

Capítulo 8.
A amizade como A Grande Beleza:
Foucault, Heidegger
e Paolo Sorrentino
Atilio Butturi Junior1

INTRODUÇÃO2

Duas cenas iniciais marcam A Grande Beleza (La Grande Belle-


zza, 2013)3. A primeira, que mescla a tradição artística da Itália e a
visão de turistas orientais, atoleimados com suas imagens e câmeras
fotográficas. A trilha sonora é uma das versões do poema The Lamb,
de William Blake, que na cena é cantado em sua versão coral de
John Taverner. A segunda, que descreve um mundo privado da alta
sociedade: música eletrônica e DJs, corpos em êxtase e euforia e,
para além de tudo isso, um silêncio radical que perscruta o falatório
do mundo. A trilha, então, é de Bob Sinclair, uma espécie de rumba
eletrônica que tem também um verso repetido, far l’amore4.
A narrativa cinde-se desde o princípio entre um mundo per-
dido (mas já prenhe de elementos hodiernos, como as fotografias

1. Professor da área de Linguística da Universidade Federal de Santa Catarina.


2. Este trabalho parte das leituras e discussões da pesquisa de pós-doutoramento
realizada entre abril de 2014 e abril de 2015 no IEL/Unicamp, sob a supervisão do
professor Kanavillil Rajagopalan, cujo objeto é a relação entre a ontologia funda-
mental heideggeriana e a arqueogenealogia foucaultiana.
3. Gostaria de agradecer a Pedro Paulo Venzon Filho pelas discussões ético-estéticas
travadas acerca do filme e que percorrem este texto.
4. Fazer Amor, numa tradução livre; a canção fez sucesso na década de 70, na voz
de Raffaella Carrà, uma cantora popular italiana.
160 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

— que marcarão todo o filme) e uma urgência de presente e


encenação dos corpos. É na última das cenas — a festa na metró-
pole que comemora os 65 anos do protagonista — que surgem
os personagens centrais da narrativa, uma espécie de clube de
amigos de longa data, marcados pelo ethos artístico de uma Roma
que parece ainda sitiada e já perdida.
A festa, sabemos antes do fim dessa sequência inicial, é a come-
moração de aniversário de 65 de anos de Jep Gambardella (Toni
Servillo, que em 2008 protagonizara El Divo, também de Sorren-
tino), “o rei dos mundanos”, relíquia italiana das letras, mestre de
cerimônias dionisíaco que, a partir de então, poderemos acompa-
nhar durantes aproximadamente duas horas. É dele mesmo que
ouvimos o primeiro traço de identificação, devidamente em off:

Para esta pergunta, quando jovens, meus amigos davam sempre


a mesma resposta: “A xana”. Mas eu respondia outra coisa: “O
cheiro das casas dos velhos”. A pergunta era: “O que você real-
mente mais gosta na vida?”. Eu estava destinado à sensibilida-
de. Estava destinado a me tornar um escritor. Estava destinado
a me tornar Jep Gambardella.

O sujeito como destino e como recriação, parece ser este


um leitmotiv da filmografia de Paolo Sorrentino, o diretor e ro-
teirista italiano responsável pelo filme. Assim é que, se em This
Must Be The Place (2011)5, assistíramos ao percurso inexorável de
Cheyenne (Sean Penn), cantor de rock norte-americano que, na
solidão e no ostracismo, partia para uma viagem-aletheia em bus-
ca de uma conversão e de uma invenção de si, o que A Grande Be-
leza oferece agora é um adensamento da díade sujeição-criação,
na qual as relações entre os sujeitos têm papel fulcral.

5. O título é uma referência à música dos The Talking Heads, homônima (This
Must Be the Place — Naive Song), cantada por David Byrne no filme e mais em
outra ocasião. O primeiro verso evoca algo como a morada do ser: “Home is where
I want to be/ But I guess I’m already there”.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 161

É, pois, desta “grande beleza” que se ocupará o presente tex-


to, questionando o discurso fílmico segundo um discurso da
amizade, responsável pela cisão entre um mundo de códigos mo-
rais — estritamente, o dos abastados decadentes da Roma con-
temporânea — e a aparição de relações éticas de produção de si,
um voltar-se para construções inéditas de formas de subjetivi-
dade agonísticas diante da presença da alteridade. A hipótese de
leitura, como se verá, reúne as discussões de Martin Heidegger
sobre o Dasein e a mundaneidade do mundo para, depois disso,
tomar a amizade, conforme descrita nos últimos escritos de Mi-
chel Foucault (e relida por Giorgio Agamben) como uma saída
diante da sujeição, que faz engendrar modos de ser pautados pela
resistência e pela criatividade.
Trata-se de inquirir o itinerário do personagem central de
Sorrentino, Jep Gambardella, em seu processo de autoconstitui-
ção, de produção de si mesmo. Sua estética da existência, então,
passará a ser entendida a partir de uma crítica à vida codificada,
da ordem da técnica, que se exaure numa reviravolta relacionada
à amizade que trava com alguns dos personagens da narrativa —
destacadamente, sua chefe e sua amante.
Cabe, ainda, ressaltar que não se pretende aqui fazer um
exercício de crítica cinematográfica per se, mas de tomar três
discursos na forma da confrontação. Confrontação, aqui, deve ser
entendida conforme os apontamentos de Heidegger (2010, p.
8) acerca de Nietzsche, como o modelo de leitura diante de um
autor que “[...] assume para si a tarefa de repensar seu pensamen-
to e persegui-lo em sua forma atuante, não em suas fraquezas”.
Sorrentino, Heidegger e Foucault, portanto, tornam-se críticos e
chaves de leitura positivas entre si, a fim de deslindar uma preo-
cupação cara aos três e a alguns de seus contemporâneos — Der-
rida, Deleuze, Agamben, por exemplo —, qual seja: o sujeito e os
modelos possíveis de produção de si e de liberdade.
Para tanto, o texto está assim organizado: na segunda seção,
Ontologia e Genealogia: limites e liames, apresento uma breve in-
162 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

cursão bibliográfica acerca da relação entre Heidegger e Foucault


e um discurso de resistência; na terceira seção, A Amizade e a
Autossubjetivação, debruço-me sobre o discurso da amizade em
Foucault; por sua vez, na quarta e última seção, A Amizade e a
Beleza, promovo uma análise de A Grande Beleza, sob a égide da
estética da existência e do discurso da amizade.

1. Ontologia e genealogia: limites e liames

Inicio as discussões deste texto fazendo notar o papel que o


discurso filosófico de Heidegger ocupa na produção da arqueo-
genealogia de Michel Foucault, que tem sido discutido a partir
de Dreyfus e Rabinow (1995) e tem no próprio Foucault uma
espécie de “defesa”. Menos do que uma presença marcada textu-
almente — a aparição de Heidegger nas discussões foucauldianas
é rara e, geralmente, negativa —, o que se pode vislumbrar é
um trabalho com os arquivos da filosofia contemporânea. Em
célebre entrevista, o francês descreve os três tipos de filósofos de
que se vale: os que não conhece; os que conhece e discute; os que
conhece e não discute (Foucault, 1994, p. 703).
O “caso” Heidegger parece pertencer ao terceiro tipo, o qual
Foucault chama de instrumentos de sua pesquisa. Em várias en-
trevistas, publicadas na década de 80, Michel Foucault traça o
caminho de sua trajetória filosófica, trazendo à tona a ontologia
fundamental como cerne de suas inquietações. Eis o mesmo Fou-
cault (1994, p. 703)6, em 1984:7

Certamente Heidegger foi para mim o filósofo essencial [...].


Todo meu futuro filosófico foi determinado por minha leitura

6. O trecho está traduzido em alguns artigos brasileiros. Ver: Figueiredo (1995) e


Duarte (2002).
7. Como se sabe, Heidegger apontou, no seu Nietzsche, que o autor de Zaratustra
era, ainda, parte da história da metafísica. É essa leitura de Heidegger do discurso
nietzschiano a que Foucault se refere.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 163

de Heidegger [...]. Tinha tentado ler Nietzsche nos anos cin-


quenta, mas Nietzsche sozinho não me dizia nada. Enquanto
que Nietzsche e Heidegger, aí sim, este era o choque filosófico.

Assim, seguindo a atenção dada por Dreyfus e Rabinow (1995)


às relações entre os dois filósofos, passou-se a construir uma “fortu-
na crítica” sobre a possível existência de uma teia de conceitos re-
lacionados, uma maquinaria heidegger-foucauldiana. No caso dos
pesquisadores de Berkeley, trata-se, inicialmente, de um uso pe-
culiar de Heidegger realizado por Foucault, que prescinde de um
a priori fora da linguagem (o que marcaria tanto a pragmática de
autores como Wittegenstein, quanto a própria hermenêutica hei-
deggeriana) e exige uma reviravolta em direção às práticas sociais.
Tais aproximações entre o francês e o alemão têm recebido
alguma atenção. Dreyfus (1996) retomará a discussão, debaten-
do as relações entre a teoria do Ser da ontologia fundamental
e teoria do poder da arqueogenealogia. Na mesma esteira das
aproximações, Sluga (2003) enfatiza o papel da “destruição da
metafísica” na produção de As Palavras e as Coisas, enquanto May
(2003) apresenta o caráter fenomenológico de um dos primeiros
escritos foucaultianos, In Binswanger, texto de 1954 em que o
francês descreve um método psicanalítico-fenomenológico.
No Brasil, a relação entre o francês e o alemão tem sido abor-
dada por autores diversos, sobretudo da Filosofia. Dentre esses,
Nunes (2009, p. 74), no texto Arqueologia da arqueologia, afirma
que “[...] Foucault [quando discute epistemé] dispõe liberalmente
no curso de sua exposição, a forma e o fundo do pensamento
heideggeriano”. Num movimento semelhante, Duarte (2002,
2006) relaciona o postulado dos “princípios epocais” (Heidegger,
2013a) com as “configurações de saber-poder” foucaultianas e,
além disso, aproxima os autores em sua crítica à modernidade
técnica: para Heidegger, uma metafísica da modernidade; para
Foucault, o a priori da governamentalidade e do dispositivo da
segurança. Desse modo, enquanto Heidegger submete a ciência
164 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

à ordem da metafísica, Foucault a entenderia, sobretudo as ditas


ciências humanas, como uma série de dispositivos e técnicas de
sujeição e normalização.
Para os fins deste capítulo, todavia, o recorte incidirá sobre a
relação entre os discursos da ética no chamado “último Foucault”
e o problema da intersubjetividade em Heidegger foram postula-
das por Francisco Ortega (1999) em Amizade e Estética da Exis-
tência em Foucault. Segundo esse autor, seria possível aproximar
a ontologia heideggeriana e a intersubjetividade do problema da
ética da amizade de Foucault.
No intuito de defender tal hipótese, Ortega (1999) retoma
alguns conceitos fundamentais de Ser e Tempo, como o de Dasein
e o de mundo. É mister que os observemos com alguma atenção,
tarefa da subseção a seguir.

1.1 O mundo e o Dasein

Heidegger, no terceiro capítulo de Ser e Tempo, A mundanei-


dade do mundo, reflete sobre quatro sentidos do ser-no-mundo,
que podem ser resumidos conforme Dubois (2004): ôntico ca-
tegorial e ôntico existencial, que dizem respeito a entes e, res-
pectivamente, seriam as possibilidades de entes que podem estar
no mundo e as ocupações públicas da estrutura que chama de
Dasein; ontológico categorial e ontológico existencial, sendo que
somente o último sentido é o do homem como Dasein, capaz de
questionar-se sobre a questão central do ser do ente.
Neste esquema conceitual, o Dasein seria a instância do “ho-
mem” cuja característica fundante é a da abertura para o ser num
questionamento do ente. Questionar o ser do ente, eis a reviravolta
heideggeriana diante da história da metafísica e a tarefa reservada
ao Dasein, vislumbrada no célebre capítulo sexto de Ser e Tempo:

[...] é preciso dar fluidez à tradição empedernida e remover


os encobrimentos que dela resultaram. Essa tarefa nós a en-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 165

tendemos como a destruição do conteúdo transmitido pela


ontologia antiga, tarefa a ser levada a cabo pelo fio-condutor
da questão-do-ser até chegar às experiências originárias em
que se conquistaram as primeiras determinações do ser,
as determinações diretoras a partir de então. (Heidegger,
2012, p. 87, grifos no original)

Vejamos, então, que metafísica é o resultado das determina-


ções do ser pelo ente. Dito de outro modo, é metafísico o pen-
samento que confunde questões ônticas, relacionadas ao ente, e
questões ontológicas, relacionadas ao ser. A diferença metafísica,
lugar do esquecimento da questão do ser, só pode ser pensada a
partir do Dasein, em sua condição privilegiada de ser-no-mundo:
só o Dasein existe enquanto os seres intramundanos têm uma
condição apenas existentativa e não existencial. Não obstante
estar-no-mundo como um ente (ôntico, portanto), é o Dasein
que pode ter acesso ao ser (ontológico). É justamente por sua
constituição ôntico-ontológica que Heidegger aponta que o Da-
sein evoca “[...] o primado ôntico da questão do ser” (Heidegger,
1997, p. 40), o estar-lançado-no-mundo.
Todavia, é importante ressaltar que o caráter ôntico do Da-
sein não o circunscreve a um ente qualquer no mundo, a um
objeto “intramundano”. A relação entre Dasein e mundo não
é de pertencimento espacial e nem de objeto, mas relaciona-se
diretamente com a compreensão do ser na forma de um coper-
tencimento. Mais tarde, na Carta Sobre o Humanismo, o alemão
retoma o “mundo” como clareira do ser: o ser-no-mundo é a
essência do Dasein, tomado como ex-sistente — sempre já proje-
tado para o mundo e, a partir deste, voltado novamente para o
questionamento ontológico. A essa condição, ele responde pelo
modo da ocupação do mundo, uma das teses centrais de Ser e
Tempo. Ser-no-mundo é cuidado (Sorge), uma relação no tempo
que indica formas autênticas e inautênticas para o Dasein, sem-
pre incontornáveis — nesse sentido, não se pode pensar num
166 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

caráter negativo do inautêntico mas cabe entendê-lo como con-


dição e tarefa do ser-no-mundo em seu contato com os entes, os
instrumentos e os outros Dasein.
Atente-se para o cuidado (Sorge). De acordo com Stein
(1988, p. 84), a estrutura da compreensão, via discurso, exige
que o homem seja pensado, numa espécie de revisão da antropo-
logia, a partir de uma definição. Assim, Dasein é definido como
cuidado (Sorge): com o mundo, com toda sorte de ente, consigo.
É aí que residiria a “virada” de Heidegger:

O filósofo sabe, portanto, das consequências da virada pa-


radigmática que ele introduziu com a definição do homem
como cuidado. [...] O cuidado define o homem como ser-
-no-mundo em sua estrutura prática.

Adiante, Stein (1988, p. 85) ratifica a importância de Sorge:

Com a definição do homem como cuidado, Heidegger quer


encontrar uma estrutura prática que ele chamará de estar-
-no-mundo, numa espécie de confronto com o destaque
teórico que aparece na definição tradicional do homem.

Ortega (1999, p. 134) se vale dessa estrutura ontológica de


cuidado do Dasein e faz notar que há, também, uma diferença
entre os tipos de ocupação que é possível aventar: entre os meros
objetos e instrumentos (Zeug) e os outros seres, os outros Dasein:
“[...] Este ente que é o outro está também aí [...]”. O mundo, en-
tão, passa a ser compartilhado: “[...] o ser-em (In-Sein) é ser-com
(Mitsein) com outros”. A distinção heideggeriana exige uma mo-
dificação verbal de sorte semelhante. Assim, enquanto o Dasein se
ocupa de objetos, ele se preocupa (Fürsorge) com os outro Dasein:
“Desse ente o Dasein não se ocupa, pois com ele se preocupa”
(Heidegger, 2012, p. 353, grifos no original). Tal preocupação
pode, positivamente, guardar duas modalidades: “a substitutiva-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 167

-dominadora e a antecipativa-libertatória” (Heidegger, 2012, p.


355). É nessa distensão que Ortega (1999) opera, avaliando que,
enquanto a modalidade dominadora redunda numa espécie de
exigência do outro como “utilizável”; diferentemente, a modali-
dade libertatória é a forma de preocupação que inaugura o cuida-
do entre o o si mesmo e o outro em seu próprio, singular e livre.
Certamente, como aponta Ortega (1999) na esteira do pró-
prio Heidegger, não há um momento transcendental de encon-
tro entre o Dasein e a alteridade, mas tão somente a presença
sempre-já-no-mundo, no trabalho de ocupação com os entes e
de preocupação com o outro, de acordo com a já descrita estru-
tura ôntico-ontológica do ser. Segundo o autor:

O si mesmo não se constitui mediante relação com outro; a


relação consigo mesmo é primária, embora implique onto-
logicamente abertura para o outro (na forma do ser-com).
Nem Heidegger nem Foucault renunciam à relação com o
outro, nem apontam para um sujeito isolado, apesar de a
relação consigo mesmo aparecer ontologicamente em pri-
meiro lugar. (Ortega, 1999, p. 138)

A questão da intersubjetividade sobre a qual se debruça Or-


tega seria o ponto de contato entre uma teoria do cuidado on-
tológico, voltado para a alteridade, e a discussão da amizade que
se vê surgir no chamado “último Foucault”, relacionada à ética
e à política. A próxima subseção tenta alinhavar a aproximação.

1.2 O cuidado e a amizade

O confronto entre os discursos, para ganhar visibilidade,


fará aqui uma espécie de parênteses no que Agamben definiu
como a amizade. Num opúsculo recente (2006), o italiano
traça uma arqueologia do conceito de amigo, remontando sua
produção constitutiva do próprio surgimento da filosofia oci-
168 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

dental. De sua leitura da philos que anima a filosofia, é mister


atentar para duas questões axiais: a primeira, a de que Agam-
ben (2014, p. 60) considera que, linguisticamente, “amigo” é
uma categoria não predicativa, que não pode ser saturada com
uma denotação, sendo um “[...] daqueles termos que os lógicos
medievais definiam como ‘transcendentes’, significam simples-
mente o ser”; a segunda, enunciada na Ética Nichomachea, é a
de que há uma cisão entre a amizade virtuosa e a utilitária. A
primeira é da ordem da ontologia, justamente porque percebe
o amigo como heteros autos, um outro si mesmo.
O autor, então, recria em Aristóteles uma metafísica da ami-
zade: a amizade se dá de maneira doce, tal qual a que se tem dian-
te da existência. Existir, então, é um com-sentir a presença do
amigo: “A amizade é a instância desse com-sentimento da existência
do amigo no sentimento da existência própria” (Agamben, 2014,
p. 68, grifos do autor). Nesse caso, ao contrário do que postu-
lava Ortega, não se trataria de intersubjetividade no cuidado e
na preocupação, mas da divisão sempre-já do sujeito, conforme
Heidegger: “Em termos modernos se poderia dizer que o ‘amigo’
é um existencial e não um categorial”. Todavia, a inversão de
Heidegger acontece pela viragem política. Leia-se:

Mas esse existencial — como tal, não conceitualizável — é


atravessado, entretanto, por uma intensidade que o carrega
de algo como uma potência política. Essa intensidade é o
syn, o ‘com’ que divide, dissemina e torna condisível — ou
melhor, já sempre condividida — a sensação mesma, a do-
çura de existir. (Agamben, 2014, p. 69, grifos no original)

A inversão aqui é clara: diante da precedência intersubjetiva


exigida por Ortega (1999), a ontologia política de Agamben es-
tabelece a amizade como divisão-sempre-já. A partilha, aqui, não
é da ordem predicativa porque não há objetos a dividir e depois
divisão: só a luta como “sinestesia política originária” (p. 71),
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 169

o ser que se remete à imanência e não mais à história perdida


da ontologia fundamental heideggeriana. O processo instaurado
pelo copertencimento é ainda o de uma dessubjetivação (trans-
cendental ou metafísica), mas segundo uma política que exige
para si o lugar da “morada do ser” pelo qual ansiava o Dasein.
É justamente na filigrana dessa reflexão e precedendo-a que o
problema da amizade e da ética são deflagrados por Michel Fou-
cault, entre o final da década de 70 e meados da década de 80 do
século XX. Para além das polêmicas sobre as “fases” de Foucault,
é importante considerar as reflexões que ele mesmo traça acerca
dos deslocamentos de suas preocupações em diversos cursos e en-
trevistas. Dessa perspectiva, em Sujeito e Poder, Foucault (2014a,
p. 119) assume o sujeito como “o tema geral de minhas [dele]
pesquisas”, que tratou em três questionamentos de objetificação:
as ciências humanas; as práticas de divisão entre o normal e o
patológico em diversas instâncias; a transformação do humano
em sujeito de uma sexualidade. Não obstante, assume que sua
investigação toma, ao final, outro rumo: “[...] consiste em tomar
as formas de resistência aos diferentes tipos de poder como ponto
de partida” (Foucault, 2014a, p. 121).
O projeto foucaultiano volta-se, pois, para as “estéticas da
existência, [...] nosso trabalho sobre nós mesmo como seres li-
vres” (Foucault, 1995, p. 347)8, cuja capacidade é a de ultrapas-
sar a sujeição dos códigos morais do dispositivo num “[...] traba-
lho realizado no limite de nós mesmos” (p. 347). Tal inflexão que
mira o sujeito e a resistência inscreve-se na senda do pensamento
crítico, descrito nos cursos da década de 80 no Collège de Fran-
ce. Assim é que, naquilo que se tornaria A Coragem da Verdade,
Foucault (2011, p. 4) considera que há uma partição no saber do
ocidente: por um lado, as formas espirituais e aletúrgicas, que re-
lacionam verdade e ética do sujeito do dizer; por outro, as formas
epistemológicas, que têm como ponto de dominância o momen-

8. Em Dreyfus e Rabinow (1995).


170 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

to cartesiano e a separação entre o conhecimento científico evi-


dente e o sujeito. Ao propor a genealogia das formas aletúrgicas,
o que o francês propunha era investigar:

[...] quais foram os processos, na história da subjetividade e


do pensamento, que levaram a uma ‘desespiritualização’ da
filosofia, isto é, a colocação de sua centralidade no conhe-
cimento e não no cultivo de si [...]. (Gallo, 2011, p. 382)

No interior dessa preocupação ética, em que sujeito e conhe-


cimento se implicam peremptoriamente, Foucault observará a
distinção entre o gnôthi seauton (“conhece-te a ti mesmo”) e a
epimeleia heaotou (“cuida de si mesmo”) (Foucault, 2011, 2013,
2006), invertendo-a em nome de um discurso da resistência e da
urgência ética do pensar. O que infere da tradição greco-latina é
a relação dos sujeitos consigo em práticas ascéticas constantes e
contínuas: “[...] a sua preocupação [dos antigos], seu tema, era
construir um tipo de ética que fosse uma estética da existência”
(Foucault, 1995, p. 225)9.
Tal estética da existência é uma outra forma de se pensar as
resistências em relação ao assujeitamento anterior, presente tanto
nas reflexões arqueológicas, quanto na analítica do poder/biopo-
lítica — os textos que, de modo geral, se inscrevem até Segurança,
Território e População. Foucault retoma o tema da governamen-
talidade e passa a averiguar quais as possibilidades de, no inte-
rior dos dispositivos de governo, existir espécies de autogoverno,
de criação e invenção de si dessujeitada. Castelo Branco (2011)
e Weimann (2006), a fim de elucidar esse movimento, lançam
mão do que, em O Governo dos Vivos, Foucault (2010) cunhou
como “agonística”: poder e liberdade não são antagônicos, mas
travam lutas constantes e infinitesimais, de incitação recíproca.
O reaparecimento da instância subjetiva, pois, é também bipar-
tido entre o código e as práticas criativas de si (Deleuze, 2005;
9. Em Dreyfus e Rabinow (1995).
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 171

Butturi Junior, 2012). Em entrevista ao Magazine Littéraire,


Foucault (2010, p. 244) ratifica essa diferenciação:

Não acredito que haja moral sem um certo número de prá-


ticas de si. É possível que essas práticas de si estejam as-
sociadas a estruturas de código numerosas, sistemáticas e
coercitivas. [...] Mas também é possível que constituam o
foco mais importante e mais ativo da moral e que seja em
torno delas que se desenvolva a reflexão.

Ora, vejamos. Em comum com Heidegger, o “último Fou-


cault” centra as análises genealógicas no problema do “cuidado” —
na tradução latina, “cura sui”, o equivalente agostiniano do alemão
“sorge”. Os projetos, ademais, também empreendem uma crítica
aos discursos metafísicos: Heidegger esclarece que a filosofia torna-
-se metafísica porque não se questiona sobre o ser do ente. Já Fou-
cault, para além do problema de se pensar o ser como fundamento,
faz um uso do alemão, direcionando sua “destruição” para a própria
categoria de ser. No entanto, o que se vê na guinada rumo à ética
dos cursos derradeiros é uma espécie de voltar-se ao Dasein: os pro-
cessos de dessubjetivação são políticos e agonísticos, porém, não
prescindem de um modelo de sujeito novo, capaz de dobrar-se no
dispositivo e de reinventar a si mesmo na ética do cuidado de si.
Ao que parece, a amizade é a discussão não devidamente
elaborada por Foucault, cuja promessa é a da invenção crítica
no retorno àquilo pelo que já não se pergunta — afinal, todo o
questionamento de Heidegger. Na esteira da leitura de Agamben
sobre o amigo, finalmente, é justamente a “luta” foucauldiana, a
agonística entre a liberdade e o poder, que pode ser lida na ins-
tância da com-divisão política — o princípio da amizade, proto-
típico. Antes de passar à Sorrentino, é dessa amizade na forma de
liberdade que se falará na próxima seção.
172 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

2. A amizade e a autossubjetivação

Leiamos dois pequenos trechos da entrevista que Foucault


concedeu ao Gai Pied (1981, grifos meus), em que tem lugar a
discussão sobre a amizade:

É possível criar um modo de vida homossexual? Esta noção


de modo de vida me parece importante. Não seria preciso
introduzir uma diversificação outra que não aquela devida
às classes sociais, diferenças de profissão, de níveis culturais,
uma diversificação que seria também uma forma de relação
e que seria “o modo de vida”? Um modo de vida pode ser
partilhado por indivíduos de idade, estatuto e atividade so-
ciais diferentes. Pode dar lugar a relações intensas que não se
pareçam com nenhuma daquelas que são institucionalizadas e
me parece que um modo de vida pode dar lugar a uma cultura
e a uma ética.

E isso, sem dúvida é a razão pela qual a homossexualidade


não é uma forma de desejo, mas algo de desejável. Temos
que nos esforçar em nos tornar homossexuais e não nos
obstinarmos em reconhecer que o somos. O lugar para onde
caminha os desenvolvimentos do problema da homossexu-
alidade é o problema da amizade.

Dos recortes, à luz da resistência e do cuidado de si, o que se


nota é: inicialmente, a exigência de criação de novas formas de
relacionamento, que ultrapassem a classe, a cultura e a profissão;
depois disso, tais modos de vida surgem na ordem das inten-
sidades (uma luta de forças) e se estabelecem contra o código
(não institucionalizadas); em terceiro lugar, essa novidade é uma
cultura (um trabalho sobre si, portanto) que instaura uma ética
— entendida como contrária ao código e motor de uma nova
relação, mais livre, dos sujeitos; por fim, é justamente na nega-
ção do reconhecimento identitário da homossexualidade (não se
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 173

obstinar em reconhecer) que a amizade aparece como problema,


uma questão capaz de promover a diferenciação.
Segundo Paiva (2011), a amizade a que se reporta Foucault
é diretamente ligada à experiência de uma homossexualidade
criativa. Todavia, é importante relacioná-la com a questão da
ética que até aqui percorre este texto. É, pois, de uma pers-
pectiva ascética, de um “cuidado de si” e de uma nova relação
consigo que se deve observar a amizade. Nesse caso, a “criação
de um modo de vida” da amizade é inédita justamente porque,
ao ultrapassar o discurso da ontologização da sexualidade —
uma identidade homossexual alardeada —, permite auscultar
sua vocação para a resistência. Dito de outro modo, a amizade
é um perigo e uma luta criativa contra o poder pois transcende
o limite do código da sexualidade:

[...] a amizade assume lugar de destaque, justamente na me-


dida em que o amor da amizade implica uma estilística da
existência que serve de alternativa aos aparelhos institucio-
nais de controle da individualidade e dos jogos relacionais
[...]. (Paiva, 2011, p. 63)

A centralidade do discurso homossexual na configuração da


amizade se deveria a dois motivos, portanto: o primeiro, o proces-
so de valorização antiga e desvalorização cristã da intimidade entre
os homens, que redundava na tarefa de repensar as modalidades do
cuidado de si e ética da Antiguidade (o que se viu na seção anterior
deste texto); o segundo, a novidade dos modos de vida “gay” pelos
quais Michel Foucault se aventurava, cuja resistência residia menos
nos atos sexuais e mais no “estilo de vida”. Esse estilo se caracteriza-
va em novas relações, “[...] na ausência de códigos ou de linhas de
conduta estabelecidos.” (Foucault, 2014b, p. 171).
Sob a égide da experimentação, então, as relações entre os
amigos — as “amizades particulares” — recebem de Foucault o
estatuto da invenção a partir do compartilhamento do mundo.
174 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Não cabe aqui, decerto, questionar os limites metafísicos10 desse


discurso amical, mas apontar para aquilo que na amizade é trans-
gressor, extensivo aos heterossexuais, segundo a exigência de “[...]
um novo ‘direito relacional’” (Fernandes, 2011, p. 391). Tal pro-
jeto — pensar a ética e a resistência via amizade — permaneceu
em aberto, como uma promessa. Porém, se delineia como um
voltar-se para outras formas de ser sujeito e de se relacionar com a
alteridade. Diante da luta e da política como com-partilhamento
sempre-já, o que esse último Foucault demanda com a amizade
é uma experiência de eros e de philia entre os sujeitos. O Da-
sein, poderíamos aventar, desloca-se na imanência. Transforma-
-se num esteta, um artista da produção ética de sua vida diante
da existência (ontologicamente marcada e ética) dividida-com
outros sujeitos, produzindo resistência.
É a marca dessa estética da existência que vislumbraremos em
A Grande Beleza, de Paolo Sorrentino.

3. A amizade e a beleza

Volto à introdução deste texto e às duas cenas iniciais já des-


critas: o museu e o passado perdido; a festa do presente. Este é o
início de A Grande Beleza (2013), quando o espectador é infor-
mado sobre o personagem central e a narrativa: Jep Gambardella,
crítico de arte, cidadão típico de uma elite da Roma hodierna, e
autor de um só livro (O Aparelho Humano, escrito há 30 anos em
relação à embreagem temporal do filme) acaba de fazer 65 anos e
o filme se desenrolará na passagem do tempo posterior à festa de
comemoração de aniversário desse que se assume como “o maior
dos mundanos” já no primeiro quarto da película: “Mas eu não
queria ser simplesmente um mundano. Queria me tornar o rei dos
mundanos”, diz a voz do personagem em off, novamente.

10. Para um debate sobre a metafísica presente nesse último Foucault, ver o prefá-
cio de Jurandir Freire Costa para o livro de Ortega (1999).
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 175

Começo a leitura sob o signo desse “mundanismo”. Anterior-


mente, já havia sido discutido o papel do mundo como morada
do ser em Heidegger, como condição de co-ek-sistir do Dasein.
O mundanismo a que se refere Jep, não obstante, pode ser apro-
ximado apenas que Ser e Tempo indicava como “o inautêntico”
característico ser-no-mundo: lançado faticamente no mundo, o
Dasein acaba objetificando-se, utilizando o mundo como ferra-
menta, como instrumento imediato.
Em A Grande Beleza, esse abandono ôntico (que, na moder-
nidade, mora no mundo da técnica), a objetificação de um su-
jeito exigido pela posição de Dasein, é pontuada constantemente
pela presença da maquinaria fotográfica. À Foucault, poderíamos
dizer que é mesmo o dispositivo fotográfico, no que ele implica
em espetáculo e encenação de si, em esquadrinhamento e visibi-
lidade total dos corpos, a descrição repetida que faz Sorrentino
da modernidade tardia — e aqui não precisemos o uso do tardio,
sendo facilmente comutado por pós-moderno ou pós-industrial
sem grande prejuízo para esta leitura.
São várias ocasiões de metalinguagem em que a câmera exerce
seu fascínio de sujeição e de transparência: na primeira cena, em
que aparecem os orientais a fotografar a Itália; nas cenas finais, em
que a Irmã Maria (a “Santa”) posa com uma série de fãs — inclu-
sive, eclesiásticos; em uma das conquistas amorosas de Jep, quan-
do a personagem — que se apresenta como “uma rica” promete
suas fotos e o seu Facebook. O jogo de espelhamentos e produção
imagética não para, entretanto. Jep é crítico de arte, o que permite
que surjam na tela várias cenas em que ele se depara com “mani-
festações de vanguarda”, espetáculos de teatro e exposições, tra-
zendo ao espectador o efeito de mise em abyme, de atenção diante
do poder criador (e destruidor) de uma existência estética.
O filme, porém, avança e não se esvai nesta espécie de mora-
lismo modernizante.
Se, inicialmente, o paraíso perdido e a derrota da arte e dos
valores modernos podem ser vislumbrados, é um sorriso e uma
176 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

assunção da produção estética da existência, tornada arte e pasti-


che, que Sorrentino oferece como elemento central de seu texto.
Ciclicamente, o filme começa e termina epígrafes, enunciadas
distintamente (a primeira, apenas manchada na tela, gráfica; a
segunda, na voz em off personagem central). O texto inicial é de
Céline, o célebre poema Viagem ao Fim da Noite, de que retenho
o seguinte recorte:

A viagem é inteiramente imaginária.


Eis a sua força.
Vai da vida para a morte.

Pessoas, animais, cidades,


coisas, é tudo inventado.
É um romance,
apenas uma história fictícia.

A Grande Beleza é arrematada com a voz em off de Jep:

Termina sempre assim. Com a morte. Mas primeiro havia a


vida. Escondida sob o blá, blá, blá. Está tudo sedimentado
sob o falatório e os rumores. O silêncio e o sentimento.
A emoção e o medo. Os insignificantes, inconstantes lam-
pejos de beleza. Depois a miséria desgraçada e o homem
miserável. Tudo sepultado sob a capa do embaraço de estar
no mundo. Blá, blá, blá, blá...O outro lado é o outro lado.
Eu não vivo do outro lado. Portanto...que este romance co-
mece. No fundo...é apenas uma ilusão. Sim, é apenas uma
ilusão. A Grande Beleza.

O segundo recorte, é certo, aponta para a crítica pós-moder-


na, um dos discursos do filme. Entrementes, ambos os enuncia-
dos recorrem à “imaginação”, à “ilusão” como única possibilida-
de de existência. Não se pensa mais em termos de autenticidade,
mas de uma imersão na mundaneidade do mundo (Heidegger?)
e, no mesmo movimento, no mundo mundano, da ordem dos
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 177

corpos que vivem e que morrem (Foucault). A vida é apresen-


tada como um romance e uma ficção e, ao final, não se lamenta
uma humanidade perdida ou uma arte sem valor. Vive-se neste
mundo, não do “outro lado” e isso é a Beleza.
Acolho essa assunção da imanência como a Beleza e do tra-
balho de encenação de si mesmo como um modelo de liberdade
— as metanarrativas perdem a força, mas ganha-se, com isso, em
mobilidade —, aproximando-o do debate sobre a amizade. Antes
de passar a ele, novamente é mister fazer alguns apontamentos
sobre a construção da narrativa de Sorrentino por meio de even-
tos que chamo, para fins de análise, de “eventos de comemora-
ção” e “eventos de morte”.
Olhemos para os “eventos de comemoração”, fundamentais
na constituição do personagem como um “mundano”. Durante
pouco mais de duas horas de exibição, deparamo-nos com dois
grandes festejos no terraço de Jep — aliás, que faz vizinhança
com o Coliseu —, um casamento no campo, reuniões entre ami-
gos íntimos e dois jantares. Por sua vez, os “eventos de morte”
perfazem o número de três: a morte de um amor do passado de
Jep, de uma amante que conhece durante a narrativa (Ramona,
uma stripper de mais de 40 anos) e de Andrea, o filho de uma de
suas grandes amigas. É o movimento entre a morte corriqueira e
inexorável e a celebração dionisíaca da vida, portanto, que emba-
la o enredo do filme de Sorrenti.
A morte, se pode imaginar, ocupa uma instância paradigmática
no itinerário dos personagens. Duas delas merecem, aqui, destaque.
Momento um: Andrea, filho da amiga Viola e que sofre de
algum transtorno mental não devidamente elucidado, morre.
Precedendo a cena da missa, ele afirma que “O funeral é um
evento mundano por excelência”. Deve-se cumprir os códigos e
regras sociais, deve-se enunciar frases e jamais chorar — a morte
é uma ocasião de busca da moralidade. Todavia, durante a cena
seguinte, passada na igreja, o padre solicita: “Agora eu peço aos
amigos de Andrea que venham aqui. Assim, o caixão poderá ser
178 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

conduzido para fora”. A sequência mostra, então, o rosto supli-


cante de Viola e a ausência de amigos de Andrea, substituídos,
então, pelos confrades da mãe em luto. Nesse momento, ao car-
regar o corpo de Andrea e contra a moralidade que defendera,
Jep Gambardella chora.
Momento dois: Jep e sua amante Ramona, stripper de meia
idade acometida de uma doença grave — olham para o teto do
quarto. O interessante é que, apesar das aparências, eles não ti-
veram relações sexuais, somente um contato íntimo e doce da
amizade. O crítico sempre vira no teto um mar (uma cena inicial
nos mostra Jep a devanear com esse oceano), em seus devaneios.
Eis essa conversa derradeira entre os dois:

Jep: Consegue ver o mar?

Ramona: Onde?

Jep: No teto.

Ramona: Sim, estou vendo.

Dois cortes, a partir desse momento: o teto branco e a certeza


de que Ramona encena, não vê o mesmo que o grande crítico ita-
liano; os pêsames ao pai de Ramona, que desaparece do mundo.
Numa espécie de visão, uma senhora vocifera para Jep: “E agora,
quem vai cuidar de você?”.
Em A Grande Beleza, tais mortes se acumulam a outras, me-
nos figurativas: a morte da Roma antiga e mágica; a morte da arte
moderna; a morte da tradição política; a morte do discurso reli-
gioso. Essa finitude, porém, ganha os contornos do cuidado de
si, da invenção atenta de modos de existir. Aí aparece a amizade
como personagem central da narrativa.
Volto, mais uma vez, à festa de aniversário de Jep, que deflagra
os demais conflitos. É ali, nas primícias da história, que aparecem
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 179

seus amigos, os personagens com os quais com-divide a existên-


cia, com os quais se produz como sujeito para uma liberdade.11
Uma de suas amigas é sua editora, Dadina (Giovanna Vignola).
Não sem propósito, a personagem é vivida por uma anã que, tam-
bém numa inversão, é umas das responsáveis pela vida cultural de
Roma. Dadina surge desde o início, na festa de aniversário, e é pre-
sença constante em todas as reuniões de amigos no terraço de Jep.
Uma cena específica materializa a relação de amizade entre os dois:

Jep: Ficou ofendida com o comentário da estatura?

Dadina: Não seja bobo! É a parte mais engraçada! Eu sou


uma anã, não é segredo. É a primeira e a última coisa que
todo mundo diz sobre mim.

Jep: Você é uma mulher espetacular, Dadina.

Sem o impacto de uma revelação, a cena do diálogo é cons-


truída na intimidade da ausculta. O franco falar entre os amigos
(a parrhesia que Foucault investigara) é o modo pelo qual Jep e
Dadina, ilusões perdidas, permanecem na proximidade da ami-
zade. Não se trata de uma ocasião esparsa: os encontros entre os
amigos, em A Grande Beleza, são um outro modo de vida: Dadina
é uma anã solteira, Romano um diretor de teatro em decadência
(e solteiro), Viola é viúva e seu filho sofre e morre, Stefania tem
um casamento de aparência. Para ambos, a existência dândi não
é uma aventura da ordem da mentira, mas uma possibilidade de
travar relações diversas daquelas que são exigidas: o casamento, a
produção da obra (Jep é um “desistente” da literatura), a crença
política ou o fundamento metafísico.
Este refúgio de produção de si é evocado também por Roma-
no, outro dos amigos próximos de Jep, em sua despedida, con-
forme o recorte abaixo:

11. Produz-se, conforme ele mesmo enunciara: “[...] destinado a me tornar Jep”.
180 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Romano: Estou largando tudo, vou voltar à minha cidade


natal, para sempre. Nem vou arrumar minhas coisas, vou
deixar tudo como está. Eu vivi nesta cidade por 40 anos.
Cheguei à conclusão que...o único que merecia uma des-
pedida era você.

Jep: Mas como, vai embora? Romano... por que está indo
embora?

Romano: Roma me decepcionou muito. Tchau, Jep.

Passo com algum vagar por esse enunciado. Centralmente, a


despedida anuncia também uma relação de amizade e proximi-
dade. Se Roma havia decepcionado o “Romano” — o diretor de
teatro cuja vida afetiva é marcada de insucesso com as mulheres
—, o amigo Jep era a única causa de uma despedida. Estrangei-
ros em Roma, Jep e Romano ali se produziram como dândis:
entenderam os códigos da cidade, seus dispositivos. O abandono
de Romano, nessa esteira, é da linhagem do niilismo, das ilusões
perdidas de um mundo sem os valores tradicionais.
Todavia, outra vez o que faz Sorrentino é resistir e festejar
uma modalidade de existência. Assim como Foucault (2010a,
2010b) assegurava uma ética de eros, relacionada ao prazer e à
amizade, o personagem central consola-se entre os mundanos,
imerso no palavreado do mundo. Poucos minutos depois, já está
entre os seus, numa outra comemoração da vida, numa outra
festa. A amizade é retomada em diálogo íntimo com Dadina:

Jep: Talvez eu devesse fazer como o Romano. Não estou


mais adaptado à esta cidade.

Dadina: Ninguém mais está adaptado, Jep. Quem diz é a


rainha dos desajustados.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 181

Jep: Tudo ao meu redor está morrendo. Pessoas mais jovens


que eu, as coisas... Diante dos meus olhos, e eu...

Dadina: E você sofre. E não entende. Como está a sopa,


Jeppino?

Jep: A sopa está boa. Por que me chamou de Jeppino? Há


séculos que ninguém me chama assim.

Dadina: Porque um amigo tem o dever, de fazer outro ami-


go se sentir como quando era criança.

O que se pretende elucidar é aquilo que, em seções anterio-


res, este texto delineou como um “novo direito relacional” que a
amizade tornava factível. Jep e Dadina, Jep e Romano, no inte-
rior do dispositivo contemporâneo de normalização, produzem
na amizade um vínculo diferencial, transformador e criativo. Ini-
cialmente, é o laço amical que os permite existir diante de um
mundo esvaziado de sentido. Na partilha sempre-já desse mun-
do, é a amizade que permite um cuidado de si ético, para além
da categoria de sujeito. No enunciado de Dadina, ser amigo é
mesmo trazer o outro à infância, em sua potência criadora de
profanação. Em A Grande Beleza, ela é o motivo de admiração e
de um cuidadoso olhar sobre si mesmo.
Finalmente, as relações transversais, desviantes e abjetas que
esses amigos travam entre si são aquelas de inovação e não de
negação do presente, no que poderíamos batizar, com Foucault,
de uma ontologia crítica. É mesmo por um elogio ao artefato,
por uma radical produção de novos sujeitos e novas formas de
se relacionar que esses italianos do início do século XXI estabe-
lecem sua experiência e sua luta — prazerosa e microfisicamente
libertadora. Uma espécie, sim, de Grande Beleza.
182 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Considerações finais

Neste breve excurso sobre o filme A Grande Beleza, o que in-


tentou foi uma confrontação entre discursos que têm como pon-
to comum problematizar as relações dos sujeitos com o mundo,
a partir da ética e da preocupação/cuidado consigo. Elegeu-se a
interlocução entre Heidegger e Foucault para estabelecer um solo
de leitura sobre o problema da amizade e, a partir daí, partiu-se
para a materialidade fílmica.
Na empresa de produzir uma leitura de resistência para o lon-
ga de Paolo Sorrentino, a ênfase foi dada ao ultrapassamento de
uma crítica negativa da modernidade (perdida e negada em sua
idealidade) e no papel que a amizade ocupa na produção das for-
mas de subjetividade (e resistência) entre os personagens do filme.
Muitas questões não foram abordadas, como o papel da re-
ligiosidade e da música no discurso de Sorrentino. Outras, ain-
da, podem ser suscitadas a partir do que se realizou. O romance
que fala o diretor (“Portanto... que este romance comece”) e que
encerra a existência como fabular é, por fim, essa tensão ininter-
rupta que anseia por leituras. Pode, portanto, recomeçar agora na
forma do discurso, essa coisa pelo que se luta e que exige, sempre,
novas confrontações.
183

Capítulo 9.
Potências da carne em XXY
Prof. Dr. Fábio Feltrin de Souza1

Corpo como imagem: fragmentos

Para Gilles Deleuze (1990), a imagem no cinema (objeto por


excelência da modernidade) já não é algo imóvel, ou um arquéti-
po, pois não está fora da história, fora do tempo. Ele é um corte
dado pela mobilidade, uma imagem-movimento armada dentro
de uma trama social. É uma carga de tal dimensão que Benjamin
via naquilo que chamou de imagem dialética, que era para ele o
próprio elemento da experiência histórica. Experiência esta que se
faz pela imagem, e as imagens estão, elas próprias, carregadas de
história. É por isso que podemos afirmar que nosso imaginário é
estruturado a partir da organização discursiva de imagens disper-
sas e o cinema tem um importante papel de confirmar, desviar,
opor e reconstruir essas narrativas porque, ele mesmo, é uma nar-
rativa por excelência. Ao compreender a imagem como discurso,
como produção cultural, a narrativa cinematográfica ganha, neste
empreendimento, ainda mais potência do agora: cada filme abre-
-se não como fonte a revelar um contexto dado e estanque, mas
sim como um acontecimento, como a instauração de uma verda-
de no interior da trama discursiva a compor uma cenografia.
Neste capítulo pretendemos problematizar os modos como
a celebrada película argentina XXY, da diretora Lucia Puenzo, de
2007, constrói uma reflexão visual sobre o drama social da interse-
xualidade vivida pela personagem Alex, uma adolescente que come-
ça a desenvolver características masculinas, inibidas com remédios.

1. Professor do curso de História da Universidade Federal de Fronteira Sul (UFFS) e


do programa de pós-graduação interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH).
184 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Para isso, pretendemos revisitar as problematizações em tordo do


corpo, do gênero e da sexualidade elaboradas por Michel Foucault
e Judith Butler, no que tange ao questionamento das normatiza-
ções, dos binarismos e, sobretudo, do saber médico a instaurar uma
verdade sobre os corpos que apresentam uma ambiguidade genital.
Hermafroditismos, genitália incompleta, anomalia sexual,
intersexualidade são algumas nomenclaturas que encontramos
na literatura médica quando se abordam os corpos que causam
estranhamento por não se encaixarem nos padrões normativos.
Essa diversidade figura como sintoma dos diferentes discursos e
saberes que construíram verdades sobre esses indivíduos, refe-
rindo-se a esse estado corporal, compreendido como ininteligí-
vel, e o colocando em relação a uma determinada concepção de
corpo e sexualidade. Tal afirmação pode ser constatada quando
nos referimos a “Anomalias da diferenciação sexual”, por exem-
plo. Seu enunciado carrega o significado de patologia causada
por um desenvolvimento “anormal”, sendo, pois, necessária uma
intervenção cirúrgica que estabeleça a desejada normalidade. Da
mesma forma a expressão “genitália incompletamente formada”
está centrada na assertiva de que nascemos homens ou mulheres,
biologizada, dessa forma, a inscrição do sexo no gênero.
Desmontar essa vontade de verdade que a medicina inscre-
veu sobre o corpo e a sexualidade parece ser um dos objetivos do
filme, a começar por seu próprio nome: XXY é a sigla que designa
a Síndrome de Klinefelter e não a intersexualidade, tema central
da obra. Mais do que um erro grosseiro cometido pela direto-
ra, e que lhe rendeu inúmeras críticas da comunidade médica, o
“descuido” parece estar carregado de intencionalidade na medida
em que as categorias médico-científicas, e toda a ordem discur-
siva organizada a partir dela, são deslegitimadas pela narrativa
visual construída. Tanto que Alex decide assumir o destino de
seu corpo ao parar de tomar os corticoides e hormônios e evitar
a cirurgia “corretiva”, justamente por parecer não concordar que
algo precise ser gerenciado ou corrigido.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 185

O segredo, o sigilo e o silêncio

Após a sequência inicial do filme, observa-se a chegada de um


casal de amigos dos pais de Alex. O médico Ramiro, sua esposa
Érika e o filho adolescente, Álvaro, desembarcam num momen-
to conflituoso da vida de Alex. Além das dúvidas quanto ao seu
corpo e sua sexualidade, ela havia brigado na escola justamente
por ter contado a um amigo sua condição interssex. A parte inicial
do filme é contida numa atmosfera de mistério. Mistério em re-
lação ao sexo. Mistério em relação ao corpo de Alex. Mistério na
atitude de Ramiro ao esconder de Álvaro um livro, exames e ano-
tações sobre cirurgias. Silêncio e sigilo pedidos pela mãe de Alex à
amiga e esposa do médico chegado de Buenos Aires. A narrativa
construída pela diretora parece zombar da solenidade com que se
aborda o tema da sexualidade humana, sobretudo mediada pelo
saber médico, bem como da “hipótese repressiva”, defendida pela
psicanálise freudiana, (Foucault, 2011) que teria sequestrado o
sexo e o transformado em silêncio geral. O murmúrio que habita
a centralidade desta hipótese sustenta que a repressão funciona
como uma espécie de desaparecimento, mas também como in-
junção ao silêncio, constatando que não haveria nada para se ver
ou se saber. Essa repressão, entretanto, transbordaria em espaços
autorizáveis ligados às sexualidades dissonantes: ali onde os corpos
e os prazeres escapam à ordem das coisas, ali onde as palavras, ges-
tos, hábitos, posições e palavras estão sob a autorização da sombra
e da surdina (Foucault, 2011, p. 11). Fora da alcova clandestina,
restaria o mutismo, a interdição, o puritanismo, a sobriedade.
É preciso estar atento às novas economias das relações entre
sexo e poder que se consolidam no século XIX. Nesse sentido,
Foucault argumenta que existiria outra razão para formular a rela-
ção entre sexo e poder em termos de repressão. Se o sexo é repri-
mido, fadado ao silêncio e ao sigilo, “o simples fato de falar sobre
sua repressão possui um ar de transgressão deliberada” (Foucault,
2011, p. 12). Eis o motivo pelo qual haveria tanta solenidade e
186 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

pose ao se falar sobre sexo, principalmente por parte de médicos,


psiquiatras e psicanalistas. O médico portenho chega ao pequeno
vilarejo uruguaio para analisar e resolver o “problema” clínico de
Alex munido de toda pompa, saber e autorização para fazê-lo. A
construção do personagem de Ramiro parece encarnar o argu-
mento de Michel Foucault. Ao contrário de uma crescente repres-
são, o que se percebe é a colocação do sexo em discurso: no lugar
de restrições, ele foi submetido a um conjunto de mecanismos de
incitação, técnicas de poder exercidas sobre o corpo, normas regi-
das por uma certa vontade de saber que provocaram o surgimento
de uma ciência sobre a sexualidade (Foucault, 2011, p. 19).
O médico adentra o universo privado da família de Alex,
circunda o íntimo da personagem, com o intento de catalo-
gar, diagnosticar, medir e “consertar” aquele corpo ambíguo e
dissonante, já que sua posição no jogo de poder é de quem
pode curar aquele corpo doente. Há um regime de poder-saber-
-prazer que sustenta o discurso sobre a sexualidade humana.
Desse modo, torna-se central no argumento de Foucault levar
em consideração o fato de se falar de sexo e com isso averiguar
quem fala, de quais os lugares é possível se falar, que institui-
ções incitam a fala ou carregam função de difundir o que se diz
sobre o sexo. Dito de outra maneira, investiga como o sexo é
colocado em discurso e de que modo se passou a falar de sexo
em espaços e de maneira autorizadas.
A zombaria fica evidente em duas outras cenas: na primeira,
Alex fala abertamente, sem cerimonias, interditos ou solenidades
sobre masturbação com Álvaro e sobre a possibilidade dos dois
transarem. Na segunda, eles escovam os dentes juntos e a cons-
trução da imagem desnaturaliza e transforma aquele momento
numa espécie de ritual de sedução, num convite ao sexo oral.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 187

Imagem 1: Alex e Álvaro escovam os dentes juntos enquanto


trocam olhares. XXY. Direção: Lucia Puenzo. Fotografia Na-
tascha Braier. AVH, 2007. 1 DVD (86min), NTSC, color.

A imagem cinematográfica, tal qual as identidades, deslizam


num intricando processo de produção de sentido. Nietzsche de
alguma forma já havia antecipado esse problema ao se debruçar
sobre as ilusões e enganos da atividade cognitiva e das certe-
zas que as imagens poderiam carregar. (Nietzsche, 1992, p. 15).
Para ele nada está dado como real ou evidente, a não ser o mun-
do dos desejos e paixões. Não há realidade fora de nossos impul-
sos, pois pensar seria apenas uma inter-relação desses impulsos
(Braida, 1997, p. 34). Isso nos leva a constatar que as impres-
sões sensoriais e, principalmente, a visão, são completamente
sem sentido quando tomadas em si mesmas. A experiência dos
objetos, portanto, resulta numa luta dessas impressões com a
linguagem que as ordena e configura. Assim, não haveria ne-
nhum fato imediato, tanto ao nível das sensações, como ao nível
do pensamento. Um pensamento e uma sensação são sinais ou
sintomas de alguma outra coisa (Nietzsche, 2008, p. 66). E essa
coisa somente adquire um sentido na medida em que é interpre-
tada por um esquema organizador, por um processo normativo.
Em outras palavras, a criação de um sentido, o ato de conhecer,
não passaria de uma atividade temporal; histórica, portanto.
188 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Desse modo, a afirmação de que não há fatos ou objetos dados


implica em dizer que não existe nenhum factum em si. Em ou-
tras palavras, ao nos depararmos diante dessa imagem estamos
“diante de uma hiper-temporalização, infinita e potencializada,
do evento singular que torna-se singular-plural” (Antelo, 2008,
p. 14). Assim, de súbito, a imagem fragmenta-se e esse eclipse,
ou essa noite que chega de repente é a impossibilidade do regres-
so nostálgico à origem ou à essência; mesmo porque ela nunca
existiu como tal; está em constante fluxo.
De alguma forma, como dissemos anteriormente, as iden-
tidades, usos da sexualidade e os papéis de gênero poderiam ser
lidos nessa chave conceitual. O filme XXY parece se inscrever
não apenas no cenário no Novo Cinema Argentino, cujos filmes
são celebrados e aclamados nos festivais internacionais, como nas
discussões em torno dos chamados estudos queer. A dita Teoria
Queer aparece nos Estados Unidos, durante os anos de 1980, a
partir de um encontro entre uma vertente dos Estudos Culturais,
o pós-estruturalismo francês, e o feminismo de terceira onda.
Para Annamarie Jagose, durante o século XX, o termo identidade
rondava os trabalhos acadêmicos como uma das categorias cul-
turais mais naturalizadas do momento. Parecia que a identidade
marcava a existência de um sujeito como um ponto de realidade
inegável, fora de qualquer quadro de representação. Ou seja, a
identidade marcava a existência dos indivíduos como tais (Jago-
se, 1996, p. 78). Porém, a partir da metade do século XX, esta
lógica, até então, praticamente autoevidente, começou a ser radi-
calmente problematizada por autores como Louis Althusser, Mi-
chel Foucault, Ferdinand de Saussure, Jacques Lacan e Sigmund
Freud (Jagose, 1996, p. 79). Juntas, estas ideias contribuíram
para certos alargamentos no campo das Ciências Humanas, em
especial no que Stuart Hall vai dizer ter sido “o descentramento
final do sujeito cartesiano” (Hall, 2005, p. 120). As identidades
começam a ser tratadas como uma sustentável e persistente fanta-
sia, ou mito cultural (Jagose, 1996, p. 79). Como gênero e sexo,
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 189

sujeito e raça não passariam de conceitos performativos que se


transformam em substâncias fictícias, possuindo apenas uma re-
alidade linguística, sem referencialidade natural, já que possuem
uma história, um momento de emergência e são produzidos cul-
turalmente (Figari & Díaz-Benítez, 2009, p. 21).

É possível escapar do dispositivo?

O começo do filme constrói um curioso jogo de cenas a


alternar a imagem de animais marinhos (entre eles o peixe-pa-
lhaço, uma espécie que carrega as duas características sexuais)
com a de Alex e uma amiga em perseguição a outro animal no
meio a uma floresta. Os passos da protagonista e sua ofegan-
te respiração contrastam com a calma e delicadeza da dança
aquática daqueles animais livres de dispositivos e subjetivações.
Ao fim da perseguição, Alex golpeia a presa com uma violenta
machadada. Em seguida surge o título do filme insinuando que
o Y seria resultado de uma intervenção no terceiro X a compor
o nome da obra. A cena seguinte é protagonizada pelo pai de
Alex, Kraken, um biólogo marinho no meio do processo de
cesariana numa tartaruga. Ao abrir o animal e retirar o feto, eis
que surge a primeira fala do filme: “é fêmea”.
Esses dois momentos parecem produzir um interessante di-
álogo cujo propósito seria o de sugerir uma resistência de Alex
ao dispositivo de sexualidade. Por dispositivo compreendemos
aquilo que nomeia alguma coisa ou uma atividade em vistas a
governar uma atividade sem nenhum fundamento no ser. Dessa
forma, os dispositivos implicam em processos de subjetivação e
normatização na medida em que organizam nossa maneira de
agir e pensar (Agambem, 2005, p. 39). Por isso, e expandido a
noção cunhada por Michel Foucault, o filósofo italiano Giorgio
Agamben opta por chamar de dispositivo toda e qualquer coisa
que tenha a capacidade de “capturar, orientar, determinar, inter-
ceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as
190 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

opiniões e os discursos dos seres viventes” (Agamben, 2005, p.


40). Sendo assim, não apenas as instituições disciplinares da mo-
dernidade ou as medidas jurídicas teriam alguma conexão com o
poder, mas qualquer utensílio que seja modelado como prótese,
tal qual o celular, uma caneta, um livro ou uma cadeira de rodas.
Agamben vai além e sugere que a própria linguagem seria não
apenas um dispositivo, mas que talvez seja o mais antigo de to-
dos e, sem nos darmos conta, teríamos nos deixado capturar por
ela. Dessa forma, a linguagem, como um poderoso dispositivo,
produz sujeitos pois age nos seres viventes compondo todo um
conjunto de características chamado identidade pessoal. Nesse
caso, ao dizer “é fêmea” ou “é menina”, a partir da classificação
da genitália e, condicionando biologicamente o sexo e o gênero,
a linguagem instaura uma ordem das coisas no mundo.
Ao golpear com força o título do filme, Alex parece querer
interromper os imperativos que governam nossas vidas e nega
a captura operada pela linguagem a instaurar a catalogação dos
corpos. Sua ambiguidade desestabiliza a norma e seu gesto tira
da medicina o poder de intervenção sobre seu corpo. XXY pro-
blematiza o quanto o dispositivo da sexualidade está em ação
e é “renovado”, a partir de estratégias diversas, como um ritual
automático. Esse ritual, essa ordem discursiva, inventa os cor-
pos e os captura; cria-os ao defini-los modulando as práticas e
os prazeres possíveis (Swain, 2006). É por isso que podemos
afirmar que a identidade de gênero possui sua base na repetição
performática e estilizada de atos através do tempo e não uma
essência absoluta e perfeita. As possibilidades de transformação
do gênero, portanto, devem encontrar nessa relação arbitrária a
potência de interromper a repetição, subverter o estilo e encon-
trar outras relações consigo (Butler, 2003). O desenrolar do
filme anuncia essa história dolorosa e dramática de resistência
ao dispositivo, construindo o que poderíamos chamar de linhas
de fuga. Fuga provavelmente do encontro com a “verdade sobre
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 191

o sexo” ou a “verdade sobre o corpo”, já que se impõe como


imperativo a procura das verdades mais secretas e profundas.
Michel Foucault estudou as memórias de Alexina Bardin.
Trata-se de um raro testemunho de um desses indivíduos que
o direito e a medicina do século XIX interrogaram de manei-
ra obstinada sobre sua verdadeira identidade sexual (Foucault,
2010, p. 83). Criada no ambiente feminino do convento, Ale-
xina, seu apelido, e provável inspiração para a criação do per-
sonagem de Alex, foi reconhecida como um verdadeiro rapaz
que, obrigado a mudar de nome e se adaptar à nova realidade,
cometeu suicídio. O caso interessou o filósofo francês porque
é justamente por volta das décadas de 60 e 70 do século XIX
que se buscou de maneira mais intensa a identidade sexual. Essa
busca não teria ficado restrita apenas ao verdadeiro sexo dos
hermafroditas, mas se estendido a qualquer indivíduo que apre-
sentasse anomalias sexuais (Foucault, 2010, p. 86).
Passado pouco mais de um século, a ambiguidade sexual
continua a ser um problema médico. Segundo a Intersex Society
America, intersex é uma definição usada para explicar a variedade
de condições nas quais as pessoas nascem com os órgãos reprodu-
tivos e anatomias sexuais que não se encaixam na típica definição
de masculino e feminino (Machado, 2005). O diagnóstico de
intersexualidade é feito mediante avaliações clínicas, anatômicas,
genéticas, endocrinológicas e por imagem. Amparados em deter-
minados saberes sobre o corpo acumulados pela literatura médi-
ca, certos dispositivos tecnológicos são “criados” para se medir os
corpos e somente a partir dessas medições se torna possível discu-
tir quais indivíduos são normais, anormais, completos ou incom-
pletos. O momento do diagnóstico está imerso em “estratégias de
relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas
por ele” por meio de elementos discursivos e não discursivos e
com uma função de dominação (Foucault, 2005, p. 246). Feito
isso, a maioria dos médicos indicam cirurgias “reparadoras”, afir-
mando que essas crianças possuem a genitália incompletamente
192 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

formada e que, através da cirurgia, as correções seriam realizadas.


Além das cirurgias, hormônios são prescritos, dilatações vaginais
são feitas regularmente para que estes corpos possam ser normali-
zados. Em dois momentos específicos, a narrativa do filme sugere
que os pais de Alex sabiam desde a gravidez da condição de sua
filha e não permitem qualquer intervenção médica.
Da mesma forma que Alexina viveu no “lusco-fusco” do re-
gime de “descrição” do ambiente daquele convento, antes de ser
arremessada no duro jogo de verdade sobre seu sexo, Alex foi
levada por seus pais para o isolamento de um balneário pesquei-
ro na costa uruguaia para manter seu corpo, de alguma forma,
escondido e protegido. Entretanto, o dispositivo cobra a publici-
dade e os efeitos taxonômicos do binarismo de gênero, cedo ou
tarde, invadem os corpos imersos no isolamento e na ambigui-
dade cobrando a sanidade e a perfectibilidade dos corpos, pois

O poder não para de nos interrogar, de indagar, registrar e ins-


titucionalizar a busca da verdade, profissionaliza-a e a recom-
pensa. [...] estamos submetidos à verdade também no sentido
em que ela é lei e produz o discurso verdadeiro que decide,
transmite e reproduz, ao menos em parte, efeitos de poder.
Afinal, somos julgados, condenados, classificados, obrigados
a desempenhar tarefas e destinados a certo modo de viver ou
morrer em função dos discursos verdadeiros que trazem con-
sigo efeitos específicos de poder. (Foucault, 2008b, p. 180)

Além da chegada do médico Ramiro vindo de Buenos Aires


com sua família para “curar” e resolver o “problema” de Alex, há
uma outra situação em que o dispositivo de sexualidade cobra
seus efeitos. É na banalidade do cotidiano que aquele corpo en-
contra seu lugar no discurso: a abjeção. Alex havia contado para
Vando, seu colega de escola, a respeito de sua situação. O jovem,
talvez abismado com tão peculiar condição, não se contém e es-
palha para os outros rapazes o segredo. Certo dia, ao voltar para
casa pela praia, Alex é abordada pelo grupo de rapazes. Ao tentar
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 193

correr, é agarrada por eles que logo tiram seu calção e vasculham
sua genitália em busca de respostas e deparam-se, estupefatos e
extasiados pelo exotismo, com os dois sexos. Ao mesmo tempo
em que um deles pergunta se “fica duro”, a acaricia e parece que-
rer penetrá-la, Vando surge e dissipa o grupo. A cena é construída
com forte carga dramática, enfatizando o quase estupro de Alex
em toda sua brutalidade. Da mesma forma, questiona e denuncia
a possibilidade daquele corpo ser invadido, violentado, escrutina-
do sem que isso se configure como um “problema”. Que jogo de
verdade este corpo está inserido que permite tal ato? A heterosse-
xualidade compulsória cria sua necessária exterioridade, ou seja,
os corpos anormais, e a possibilidade biopolítica de intervenção
em gays afeminados, intessex, travestis, lésbicas e todo corpo que
rompa com a norma (Calling & Santos, 2011, p. 245). Para Fou-
cault, nada escaparia ao poder, principalmente ao poder sobre a
vida, ao poder que criou e classificou corpos como errados, doen-
tes, anormais e passíveis de intervenção, como o de Alex.
O filósofo francês identificou o nascimento da biopolítica
num momento histórico bem definido, no qual a vida passa a
ser considerada um objeto do poder. Esse poder se caracterizaria
pelo direito de vida e morte, isto é, pelo direito de “fazer morrer e
deixar viver” e seria exemplificado pela espada do soberano. Des-
sa forma, o soberano exerceria seu poder sobre a vida do súdito
na medida em que pode matá-lo. No entanto, a partir do século
XIX há um deslocamento do exercício do poder que Foucault
identificou como “fazer viver, deixar morrer”. Esse novo direito à
vida passou a ocupar um lugar central nos destinos da sociedade,
ao passo que a morte ocuparia o lugar do privado. Essa ruptura,
contudo, não se deu de maneira abrupta, tampouco se manifes-
tou como uma simples sucessão, foi percebida a partir de fatos
concretos que se tornaram mais evidentes com o aparecimento
das tecnologias disciplinares que tornaram o capitalismo mais
rentável, nas políticas de natalidade e mortalidade e no nasci-
mento de uma ciência política (Foucault, 1999).
194 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Enquanto Foucault identifica a inclusão da vida na política


apenas na época moderna, para Agamben esse é o fato próprio
da política. Na tetralogia Homo Sacer, o filósofo italiano demons-
tra como a exceção da vida nua, na qual se funda toda política
ocidental desde os gregos, é uma relação inclusiva-exclusiva con-
tínua. Assim, a soberania, que carrega a estrutura da exceção, in-
cluiria a vida na ordem jurídica por meio de sua exclusão, fato que
sempre esteve no centro do poder soberano. Agamben, com isso,
demonstrou uma face oculta presente em todo exercício de po-
der, em todo discurso político e identificou a biopolítica moderna
como apenas um dos estágios de sua efetivação (Agamben, 2007).
A biopolítica para Agamben seria o espaço de politização da
vida enquanto mera vida nua entregue ao sacrifício, ao matável,
ao descartável e encontra no campo de concentração sua forma
mais bem acabada. O campo de concentração é o espaço da exce-
ção, pois escaparia ao direito formal constituído, muito embora
não seja uma pura exterioridade em relação ao direito. Por isso,
aqueles que são aprisionados nos campos são incluídos no direito,
por meio de sua própria exclusão. Se os campos de concentração
são espaços nos quais o direito só vale na medida em que instau-
ram a exclusão para além do direito, por meio do ordenamento
jurídico, então, aqueles que ali se encontram estariam desprovidos
de qualquer linguagem, de qualquer possibilidade de fala:

O campo [de concentração], na medida em que seus mora-


dores foram despojados de qualquer condição política e re-
duzidos à vida nua, é também o espaço biopolítico mais ab-
soluto jamais realizado, no qual o poder só tem diante de si
a pura vida sem qualquer mediação. Por tudo isto, o campo
é o paradigma mesmo do espaço político no ponto em que a
política se converte em biopolítica e o homo sacer se confun-
de virtualmente com o cidadão. A pergunta correta com res-
peito aos horrores do campo não é, por conseguinte, aquela
que inquire hipocritamente sobre como foi possível cometer,
neles, delitos tão atrozes em relação aos seres humanos; seria
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 195

mais honesto, e sobretudo mais útil, indagar atentamente


sobre os procedimentos jurídicos e os dispositivos políticos
que tornaram possível chegar a privar completamente a al-
guns seres humanos de seus direitos e prerrogativas, até o
ponto em que realizar qualquer tipo de ação contra eles já
não seria considerado como um delito (neste ponto, de fato,
tudo se havia tornado possível). (Agamben, 2007, p. 277)

A situação de abjeção a qual determinados corpos são co-


locados parece guardar uma relação com o debate aberto por
Agamben, na medida em que os sujeitos abjetos estão despoja-
dos de qualquer regimentalidade e o delito cometido contra tra-
vestis, gays, lésbicas, intessex parece não configurar crime algum.
A construção do “outro” foi, ao longo da história, operada pela
lógica da diferença como jogo de espelhos invertidos, ou seja, ao
catalogar esse outro, cria-se um “eu”, uma interioridade com-
preendida como hierarquicamente superiores. Por isso, bárbaros,
negros, judeus, homossexuais, indígenas, travestis, mulheres fo-
ram construídos historicamente como negação da norma, como
exterioridade. A abjeção desperta emoções típicas relacionadas
ao contexto de sua emergência e consolidação, entretanto uma
emoção básica relacionada a esses corpos é repugnância (Figari &
Díaz-Benitez, 2009, p. 22). O repugnante se situa no domínio
do asco, essa forma primitiva de reação ao abjeto e opera como
um sentimento criador de fronteiras entre o sujeito e objeto,
entre interior e exterior. Esse corpo que gera o asco deveria ser
evitado, separado e até mesmo eliminado já que seria perigoso,
imoral e obsceno. A abjeção seria a cisão entre a perfectibilidade
do humano e o mundo natural. O estado de natureza em que
o animal se encontra é compreendido como outro do humano,
portanto, quanto mais o corpo se aproxima da animalidade e da
deformidade em relação ao normativo, mais monstruoso ele se
torna. Esses corpos “fora do lugar”, como o de Alex, estão a mer-
cê não apenas da intervenção das taxinomias e das intervenções
196 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

do discurso médico, como dos cálculos de estado, da curiosidade


da imprensa ou do sadismo que o “bizarro” pode despertar.

Extrapolando o binarismo: potências

A paisagem estética inventada pelo pintor norte-americano


Edward Hopper tem sido largamente apropriada pelo cinema. De
Alfred Hicthcook a Blade Runner, muitos filmes têm se valido da
sua visão realista daquilo que se esconde no interior do cotidiano
de muitos: solidão e melancolia. Edward Hopper inspirou-se nas
juventudes perdidas na Guerra, nos escravos da época, nos em-
pregos perdidos aos milhares, ou seja, nos subalternos, nos esque-
cidos e por que não dizer, nos abjetos? Com um incomum jogo
de luzes e sombras, ele parecia querer captar o vazio, a solidão, a
imobilidade que aprisiona as emoções e as vidas das personagens.
As figuras humanas pintadas por Edward Hopper demonstram
uma melancolia e um silêncio que mais facilmente associaríamos
a paisagens. Além disso, muitas das suas personagens são corpos
ambíguos, que questionam o binarismo de gênero e a norma esta-
belecida, como o de Alex. Supomos que o tom azulado e melan-
cólico da textura da imagem, as tomadas alongadas, a estética da
casa, bem como na cena capturadas e reproduzida abaixo tenham
sido uma clara inspiração da diretora nas construções de Hopper.

Imagem 2: XXY. Direção: Lucia Puenzo. Fotografia Natas-


cha Braier. AVH, 2007. 1 DVD (86min), NTSC, color.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 197

O corpo de Alex é exposto de tal modo que somos incapazes


de definir se pertence a um homem ou a uma mulher. Aliás, a
ambiguidade de Alex é apresentada não só nesta cena, como em
seus trejeitos e indumentária. O filme, como um todo, parece ser
um elogio à ambiguidade, à indecidibilidade, à anticonfissão e à
opção ética por não decidir. Em especial, a cena capturada, assim
como outra ocorrida em sua cama, parecem corroborar esse ar-
gumento. Na primeira, ao acordar Alex abre a gaveta e pega seus
remédios, repetindo o que parece ser uma rotina diária. Entre-
tanto, naquele dia ela não toma os hormônios e com isso deixaria
de inibir o desenvolvimento de suas características masculinas.
Na outra cena, seu pai lhe fala sobre a possibilidade dela decidir
o que tem de ser feito. Após uma pausa, Alex responde que tal-
vez não haja nada para ser decidido. O corpo de Alex passa a ser
um espaço de resistência frente ao dispositivo de sexualidade, ao
saber médico, ao binarismo de gênero, principalmente porque o
corpo intessex desafia e perturba esse sistema binário na medida
em que escrutina os critérios para classificar um homem ou uma
mulher (Machado, 2005, p. 268). Tal qual Donna Haraway, a
película de Lucia Puenzo parece acreditar que:

não há absolutamente nada a respeito do ser “mulher” que


aglutine naturalmente todas as mulheres. Não há nem mes-
mo este estado do “ser” mulher que é em si uma categoria
altamente complexa, construída por discursos científicos
sexuais e em outras práticas. A consciência de gênero, raça
e classe é uma conquista que nos foi imposta por meio da
terrível experiência histórica das realidades sociais contra-
ditórias do patriarcado, do colonialismo e do capitalismo.
(Haraway, 1994, p. 250)

Alex resiste aos imperativos ritualísticos do binarismo de gênero,


bem como ao discurso médico. As bonecas estampando pequenos
pênis, suas roupas neutras, a decisão de não tomar remédios, de não
fazer cirurgia e de denunciar os rapazes que lhe violentaram na praia
198 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

são um conjunto de práticas de subjetivação que constituem um


“si” aberto num processo que nunca encontra seu fim. Esse processo
supõe uma “contraefetuação que não estabelece com a própria efetu-
ação de uma relação de casualidade, mas de pressuposição recíproca”
(Grunvald, 2009, p. 51). Por isso, podemos afirmar que a subjeti-
vação aparece como ponto central dos processos de resistência ou
linhas de fuga e que a constituição de si por tecnologia própria desfaz
qualquer política de reconhecimento, deixando de representar um
sentido. O corpo de Alex aparece, portanto, como heterotopia.
Em Hetorotopias, outros espaços, Michel Foucault pensa o es-
paço como uma forma de relação de posições, em que a vida é
comandada por espaços sacralizados, nominados, organizados
pela potência biopolítica de normatização da vida operada na
modernidade. Também diferencia utopia de heterotopia. A pri-
meira diria respeito a lugares que não são reais, sem lugar fixo. Já
a segunda, se ligaria a lugares reais, mas que estão fora dos lugares
aceitos (o mesmo). Para o filósofo francês, a sociedade produz
heterotopias. Reivindica estes outros lugares como possibilidade
de desvio, ou seja, aqueles comportamentos que estão fora do que
a sociedade aceita e impõe, as chamadas condutas verdadeiras,
com suas normas bem estabelecidas e regulamentadas. São nestes
espaços que, para Foucault, estão contidos os conflitos e tensões
que se exercem pelas relações de poder de uma sociedade deter-
minada, quando o sujeito se reconhece como agente do poder de
transformação de si, de seus lugares constituídos e normalizados.
Por isso, podemos dizer que tanto Alex quanto Álvaro inventam
novas práticas, novos usos para seus prazeres, novos encantamen-
tos. Eles deslizam para fora da gramática ao navegarem na dúvida,
na potência da carne. A cena em que Alex penetra Álvaro perturba
todas as taxinomias de sexo, gênero e sexualidade, sobretudo por-
que até aquele momento o espectador possui poucas informações
sobre o corpo da protagonista. Ao descobrir que Alex possui um
pênis a diretora nos conduz a uma indecidibilidade radical e não
podemos mais afirmar se ela é homem ou mulher.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 199

Imagem 3: Alex penetra Álvaro. XXY. Direção: Lucia


Puenzo. Fotografia Natascha Braier. AVH, 2007. 1 DVD
(86min), NTSC, color.

Os estudos queer problematizaram a existência de diversas


possibilidades de gêneros além do masculino e feminino, como
o intersexual. O gênero, seja ele qual for, é construído na per-
formance como já afirmamos anteriormente. A perspectiva que-
er compreende o “si” como derivado de um intrincado jogo de
forças sociais, culturais e econômicas que constroem uma falsa
noção de autonomia. Nesta abordagem, as intervenções da bio-
medicina são vistas como normalizadoras e a concepção de iden-
tidade, ao privilegiar a ação e o social, exclui o biológico como
um marcador importante para configuração do “si”. Além disso,
o direcionamento das paixões perde qualquer referencialidade
exterior ao agenciamento, tanto que Alex e Álvaro parecem, esca-
pando da convencionalidade normatizada, estarem enamorados.
A trama construída por Lucía Puenza congrega não apenas
temáticas comuns ao que se convencionou chamar de Novo Ci-
nema Argentino, como também se vale de uma forma percebida
nas películas depois da década de 1990. Ao tratar os dramas vivi-
dos por uma adolescente intersexual e o desvelamento de todo os
jogos de poder aí contidos, a diretora faz o que Gonzalo Aguilar
chamou de cinema aberto ao presente. Esse novo cinema teria
como força central a capacidade de construir narrações abertas
que podem retratar personagens fora de um universo social co-
mum, processando, dessa forma, o impacto das transformações
200 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

das últimas décadas. A partir de uma vontade de verdade mani-


festada na tentativa de controle normativo do corpo de Alex e
construindo numa atmosfera alegórica e recheada de mistérios
sobre sua condição, o filme parte para a possibilidade desse mes-
mo corpo ser um espaço de resistência aos poderes e encena pos-
síveis linhas de fuga ao tratar a carne como potência. Embora não
se escape do dispositivo, já que não há exterioridade ao discurso,
seguindo Foucault, podemos afirmar que onde há poder há resis-
tência. Ao dobrar-se sobre si, operando fugas, o processo de sub-
jetivação torna-se aberto a novos encontros, torna-se potência.
201

Capítulo 10.
Sobre larápios e espertezas em
Nueve Reinas - reflexões sobre a
Argentina da virada do século XXI
José Alves de Freitas Neto1

A produção cinematográfica argentina na virada do século


XXI alcançou êxitos surpreendentes no país e fora dele. O senso
comum de que uma imagem vale mais do que mil palavras é
apenas parcialmente validado se considerarmos uma série de pro-
duções ficcionais que fizeram seus registros ou que circularam no
período da grave crise experimentada pelos argentinos em 2001.
Mais de uma década depois, a produção audiovisual daquele pe-
ríodo demanda uma observação e concatenação com significados
mais amplos e contextualizados. A obra Nueve Reinas, de Fabián
Bielinsky (2000) insere-se nesta tela de uma crise ética, social e
econômica na Argentina recente.
A ficção narra e projeta representações sobre o seu próprio
tempo, mas é tão somente um conjunto de percepções visuais
que se transmite por meio de imagens e produz um discurso
aberto no qual uma infinidade de sujeitos interage com elas, ou
seja, há um espectro que vai da crítica especializada ao público
que frequenta as salas de cinema ou os assiste no incontável e in-
controlável espaço de reproduções que as tecnologias atuais per-

1. Professor, doutor no Departamento de História da Universidade Estadual de


Campinas (Unicamp) e membro da Linha de Pesquisa História Intelectual, Cultu-
ra Visual e Patrimônios do Programa de Pós-Graduação em história da mesma uni-
versidade; Visiting School da Columbia University (2013), pesquisador do CNPQ
e autor de livros e artigos na área de cultura e política na América Latina.
202 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

mitem. A leitura de um historiador pressupõe um diálogo com a


própria obra, mas também com a série de leituras que emergem
de campos autônomos e, muitas vezes, com perspectivas arbi-
trárias, se considerados os intentos dos diretores e produtores.
Voltar a seu contexto de produção e circulação, assim como à
observação das imagens, sons e palavras que saltam à vista do
espectador é uma demanda extra após o conjunto de recortes que
um trabalho é submetido até que a obra encontre seus públicos.
Uma produção cinematográfica tem um apelo perceptível
como fonte histórica por estar inserida num quadro social e cul-
tural que se expressa na concepção, execução e no resultado de
uma narrativa. Isso não significa, entretanto, que um filme seja
refém do contexto histórico e social, mas que ele estabelece uma
reciprocidade entre o que projeta e o quanto do universo ao re-
dor, com suas ideologias e concepções de mundo de quem a pro-
duziu, emerge na obra. O cinema e as imagens por ele criadas
não expressam a realidade social ou política, mas cria represen-
tações que permitem pensar o mundo e tornam-no apreensível
por meio das mediações narrativas que estabelece na observação
dos diálogos, nos enquadramentos, na trilha sonora, fotografia,
edição e no processo de montagem. Em todos esses elementos,
que podem e devem ser postos em perspectiva, transparecem,
além das técnicas e linguagens próprias da sétima arte, uma visão
de mundo.

La pantalla revela el mundo, evidentemente no como es, sino


como se le corta en la mesa de montaje, como se le comprende
en una época determinada; la cámara busca lo que parece im-
portante para todos, descuida lo que es considerado secundario;
jugando sobre los ángulos, sobre la profundidad, reconstruye las
jerarquías y hace captar aquello sobre lo que inmediatamente
posa la mirada. (Sorlin, 1985, p. 28)
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 203

O filme e a crise argentina de 2001

A via de mão dupla entre cinema e sociedade é o que nos


move na análise do filme de Fabián Bielinsky, Nueve Reinas, pro-
dução argentina do ano 2000. A obra é exemplar do eco entre a
representação visual e as lógicas da sociedade argentina em tem-
pos de crise. Questões como o papel da modernidade, o espaço
urbano na conformação de lógicas de sobrevivência, os vínculos
pessoais e coletivos e, sobretudo, discussões sobre limites éticos
são provocadas e inspiradas na obra que teve um grande êxito e
foi vista pela crítica como um exercício de representação da crise
de 2001, que depôs presidentes e convulsionou o país quando
houve a quebra da paridade entre a moeda argentina e o dólar,
que foi a base do plano de controle inflacionário no governo de
Carlos Menem (1989-1999). Na transição entre o final do perío-
do do modelo neoliberal do menemismo e o colapso do governo
de Fernando De la Rúa (1999-2001), o filme ganhou as salas e
foi visto, sobretudo no exterior, como metáfora dos processos
internos do país latino-americano que apostou, de forma mais
radical, nas reformas privatizantes e no ideário neoliberal com a
diminuição do Estado e suspensão de direitos sociais e trabalhis-
tas na década de 1990.
A escolha do filme de Bielinsky, entre tantos outros diretores, é
deliberada. Um filme de grande êxito e de um diretor que é visto,
no conjunto de cineastas argentinos do período, como integrante
dos autores industriais, ao lado de Juan José Campanella, Marcelo
Piñeyro e Eduardo Milewicz, pois utilizam um código narrativo
clássico e os seus universos de construção dos personagens se en-
contram com um perfil comercial (Wolf, 2002). Outros direto-
res, vistos como “independentes”, como Adrián Caetano, Pablo
Trapero e Lucrecia Martel possuiriam obras mais afinadas com o
discurso das crises sociais e dos conflitos pessoais e éticos. A divisão
entre “comerciais” e “independentes” passa pelas diferenças de lin-
guagem, técnicas, circuitos e repercussão, mas ela é arbitrária e sus-
204 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

cita amplas discussões que não são o foco da minha preocupação.


O esquematismo encobre o fato de que a produção audiovisual é
coletiva (diretores, produtores, técnicos, atores etc.) e atribuiria a
alguns a virtude de capturar um sentimento e uma representação
da sociedade enquanto que outros seriam incapazes de fazê-lo.
Fabián Bielinsky (1959-2006) foi um dos diretores mais pre-
miados do período. Sua breve carreira como diretor de longas
restringe-se a Nueve Reinas e El Aura (2005). Antes, foi assistente
de direção e também produziu curtas inspirados em obras lite-
rárias de Borges e Cortázar. Oriundo do mercado publicitário,
Bielinsky terminou o roteiro de Nueve Reinas em 1997. A pro-
dução, entretanto, não emplacou num primeiro instante pois os
produtores não acreditavam no êxito de um filme sobre trapacei-
ros e golpistas. Em 1998, Bielinsky ganhou o concurso “Nuevos
Talentos Cinematográficos” e, quando estreou em 2000, venceu
o Cóndor de Plata, prêmio da Asociación de Críticos de Cine de
la Argentina (ACCA) e o People’s Choice Awards, concedido pela
MTV América Latina. Os dois prêmios são indicativos da reper-
cussão entre críticos e público que a produção alcançou.
Entre o roteiro de 1997 e a estreia em circuito comercial em
2001, a temática dos delitos e crimes praticados pela dupla Mar-
cos e Juan, personagens interpretados pelos atores Ricardo Darín
e Gastón Pauls, respectivamente, adquiriu outros significados.
O sonho do enriquecimento, mesmo que oriundo de golpe, foi
lido como alegoria dos processos econômicos do país. A ideia da
riqueza repentina e do reencontro da Argentina com a prosperi-
dade após décadas foi uma marca do período Menem. Porém, a
conta do início dos anos 2000 mostrava-se amarga e não havia
garantia de soluções paulatinas. Marcos e Juan procuraram dar o
golpe de suas vidas e parecia ser aquele o único caminho possível
para qualquer argentino. A corrupção, a impunidade e os cri-
mes permeavam uma leitura que ia dos altos cargos executivos às
pessoas mais comuns. No filme, o diálogo de Marcos, o mestre-
-golpista apresentando o mundo ao amador Juan é explícito:
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 205

Están ahí, pero no los ves. De eso se trata. Están, pero no están.
Así que cuidá el maletín, la valija, la puerta, la ventana, el
auto. Cuidá los ahorros, cuidá el culo. Porque están ahí, van a
estar siempre ahí. Chorros. No, no, eso es para la gilada. Son des-
cuidistas, culateros, abanicadores, gallos ciegos, biromistas, me-
cheras, garfios, pungas, boqueteros, escruchantes, arrebatadores,
mostaceros, lanzas, bagalleros, pesqueros, filos. (Bielinsky, 2000)

O fascínio de Bielinsky, conforme entrevistas durante a divul-


gação do filme, não era por uma denúncia ética e social do compor-
tamento dos portenhos. Seu fascínio era pela psicologia do delito,
partindo do modelo da literatura policial e de mestres do cinema
como Hitchcock. Porém, a questão local não foi ignorada pelo
diretor. Os golpes aplicados durante a película, que acompanha 30
horas na vida de Marcos e Juan, são um jogo de escalas entre os
delitos praticados por eles aos executados pelo sistema financeiro.
Entre a vontade do diretor e a forma como a leitura foi realizada
há um hiato e um processo incontrolável por parte de Bielinsky. A
produção audiovisual argentina do período foi marcada pelo con-
texto da crise e, ao mesmo tempo, o cinema projetou-se com ela.
O escárnio da situação do país foi saudado como ato heroico, mas
também como uma realidade impossível de ser capturada pelas telas.

(…) o novo cinema argentino passou a ter a crise econômica


e política como pano de fundo para os enredos, mas não só.
A crise também se tornou a principal arma de marketing des-
sa cinematografia. ‘Os cineastas argentinos tomaram carona
na crise e passaram a ser saudados no exterior por estarem
produzindo em condições precárias. Muitos deles, entre-
tanto, não chegaram perto de retratar a realidade argentina.
Tome um filme como “El Bonaerense” (2002, Pablo Trapero)
e compare a vida daquele policial com as notícias dos jornais.
Aquilo é uma coisa para crianças, na visão de Fernando Sola-
nas, cineasta da geração de 1960. (Colombo, 2006)
206 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

A questão do realismo como estética e como função política


marcou o cinema em décadas anteriores e não é o foco dos ci-
neastas atuais, muitos deles oriundos do mercado publicitário e
das novas escolas de cinema que existem na Argentina (Campo,
2010, p. 15-47). Como observou a pesquisadora Silvina Díaz,
os diretores dos anos 1990 deslocaram temáticas que estavam na
pauta dos cineastas dos anos 1960, embora preservassem aspectos
aproximados ao abordar dualidades da sociedade argentina, como
as relações entre centro e periferia, marginalidade e integração nos
diferentes momentos (Díaz, 2005). Se o cinema da virada do sé-
culo não possuía mais a pretensão de expor o contexto social, o
que emergia nas telas era a própria vida de protagonistas, seus de-
sencontros e as crises. O colapso não era somente de um quadro
econômico, mas de indivíduos que experimentavam o mal-estar
de não saber exatamente para onde mover-se, de uma inadequa-
ção de vontades e desejos e, consequentemente, os problemas par-
ticulares dos personagens passaram a ser a tônica tanto nos filmes
com linguagens mais intimistas ou nos mais comerciais.
A forma como a Argentina produziu suas representações na
produção cinematográfica é um ponto a ser refletido no debate
entre o audiovisual e a sociedade na qual foram produzidos e na
qual circulou originalmente. A tradição historiográfica discutiu
experiências como a ditadura militar e o “mapa arrasado do pe-
ríodo menemista” (Oubiña, 2003, p. 194), colocando em pers-
pectiva problemáticas como culpas, cumplicidades e formas de
resistência que apelavam a discursos e alegorias de um país que
se questionava sobre suas escolhas. Mas, ao mesmo tempo, a pro-
dução dos anos 1990 e 2000 também expressou uma rejeição a
identidades coletivas. A lógica da individuação sobrepôs-se a lei-
turas de classe social ou de valores compartilhados em torno do
argumento nacional, por exemplo. Lugares como o argumento
da tradição ou o sentimento de pertencimento foram margina-
lizados na produção imagética sobre os deslocamentos que a Ar-
gentina havia experimentado num espaço temporal muito curto.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 207

O crítico David Oubiña ao analisar outras obras do período


fez um diagnóstico que nos parece útil para compreender que,
mesmo negando um caráter essencializado e totalizante da so-
ciedade, existe a construção de um discurso pela dinâmica do
cinema que não pode ser ignorado como forma de interação e
compreensão social. Para o autor há:

(…) una hermenéutica visual que testimonia en imágenes un


cierto estado de cosas y, en el mismo movimiento, hace su críti-
ca: el desmontaje despiadado de un neoliberalismo omnipresen-
te que, como una microfísica, atraviesa (y produce) los hábitos
y los comportamientos. (Oubiña, 2003, p. 195)

O pesquisador Breno Juz, que dedicou-se ao período, mas


não ao mesmo cineasta, afirma com precisão que a historicidade
na qual os filmes foram empreendidos encontra-se marcada pela
história argentina das últimas décadas do século XX.

As convulsões sociais vividas pelo país entre 1999-2001 são


desdobramentos da década 1990, e sinalizaram uma radica-
lização do sentimento de mal-estar e da crise social vivida
pelo país. (Juz, 2010, p. 151)

Mesmo que Bielinsky não assuma a tarefa de ser um intér-


prete ou produtor de alegorias da Argentina recente, a crise de
2001 instaurou-se no campo da memória como a grande chave
explicativa dos desdobramentos políticos e sociais do período e,
neste aspecto, a produção audiovisual é potencializadora por suas
imagens e histórias, como observamos na obra em questão.

A trama de Nueve Reinas e seus impasses

Nueve Reinas centra-se na história de dois personagens que


vivem de pequenos golpes pelas ruas de Buenos Aires. O encon-
208 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

tro dos dois, num posto de gasolina, é o início de uma trama


que parece ser uma relação de mestre (Marcos/Darín) e apren-
diz (Juan/Pauls). Entre trambiques divertidos e pequenos delitos
surge a oportunidade para a grande cartada que poderia solucio-
nar as questões financeiras de ambos: a venda de uma raríssima
coleção de selos, as Nueve Reinas, que tinha um grande valor.
Marcos necessita do comparsa e, principalmente, da confian-
ça de Juan. O plano mirabolante consiste em vender a coleção a
um empresário estrangeiro que é um filatelista e está envolvido
em um escândalo de corrupção. O sigilo e a velocidade para a
negociação, com blefes e agilidades próprias nesse tipo de ne-
gociação, é uma sucessão labiríntica de eventos que passa por
dramas e disputas familiares, falsificações e outras artimanhas. A
cumplicidade entre Marcos e Juan parece estreitar-se a cada even-
to em que o golpe ameaça ruir. A proposta fílmica é eletrizante e
o enredo envolve o espectador.
O olhar de quem assiste ao filme é o de Marcos. O fio condu-
tor da narração é dado pelo personagem de Darín e este é um dos
artifícios usados por Bielinsky para prender o espectador e tornar
o desfecho do filme imprevisível. A série de personagens que são
inseridas e os vínculos entre elas são expostas apenas ao final do
filme. O grande golpe não ocorre com a venda das Nueve Reinas,
embora toda atenção do filme seja em torno dos selos. Aspectos
vivenciados pela sociedade argentina, como a crise financeira e a
fragilidade do sistema bancário emergem no filme, assim como
a necessidade de encontrar soluções extraordinárias para resolver
impasses mesmo entre vínculos familiares.
O cenário urbano de uma Buenos Aires na era das cidades
globalizadas, com edifícios gigantes e a multidão nas ruas e no
comércio, é um elemento pouco distintivo à primeira vista, quan-
do o reconhecimento do espectador é de que a história poderia
passar-se em qualquer grande metrópole. O cenário portenho,
entretanto, impõe-se na lógica que unifica excluídos, que vivem
dos pequenos golpes, e integrados, que usam carros luxuosos, são
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 209

bem vestidos e usufruem do êxito econômico. As personagens


que “estão aí, mas não vemos” ocupam o mesmo espaço: a cida-
de. Buenos Aires é personagem por expor as regiões moderniza-
das pela arquitetura de Puerto Madero e também pelos galpões
e regiões que coexistem nos arredores. A identificação com as
avenidas largas, com o metrô antigo, com prédios charmosos e
decadentes da zona central, o trânsito nervoso e explosivo, os pe-
quenos restaurantes e cafés tradicionais, o lunfardo nas conversas
corriqueiras pelas ruas são objeto do olhar da câmera de Bie-
linsky que o transpõe para aquela cidade. Mas o que faz o filme
ser uma metáfora das crises e das questões que envolvem a socie-
dade argentina no início do século XXI é o conjunto de situações
expostas nos diálogos, na imagem vibrante e numa montagem
que inclui uma produção sonora que remete a valores portenhos
e à crise ética que o filme, de forma despretensiosa, sinaliza.
Uma questão que o filme sugere a todo tempo, enquanto
o público é enredado pela narrativa e torce pelo êxito dos gol-
pistas, é sobre as estratégias adotadas numa sociedade na qual
cada um “se vira como pode”, e cada personagem procura saídas
particulares dentro de um contexto em que todos são cúmplices
e, ao mesmo tempo, todos são vítimas. A relação entre Marcos
e Juan é marcada por uma série de distinções que, sobretudo na
personagem de Darín, é um exercício de autoconvencimento: o
golpista é um ator e não se confunde com um delinquente. A
capacidade de enganar a si e aos outros pressupõe sangue frio e
certa indiferença diante de situações arriscadas. É necessário ter
talento para obter êxito nas investidas contra senhoras, transeun-
tes ou mesmo contra magnatas e corruptos.
A estratégia de Marcos é obter vantagem numa selva de con-
correntes. Para tanto, além da habilidade e do treino, é preciso
ter uma ousadia que se equipararia a uma arte. É neste ponto que
ele se diferencia dos assaltantes comuns: ele não usa armas, ape-
nas o talento para lograr em suas ações. Quando Juan o repreen-
de em um determinado momento, Marcos o adverte para olhar
210 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

ao redor e perceber que quase todos são como ele, mas que não
assumem o que fazem, nem o que desejam. É quase um exercício
de superação da moral convencional.
Marcos não se enxerga como o único ser corrompido no
mundo. Mesmo que sua história remeta a dilemas com seus ir-
mãos mais jovens desde a partilha de uma herança composta por
poucos bens, Marcos pretende dar um golpe maior para poder
solucionar as questões anteriores e, para isso, reúne suas econo-
mias e pede auxílio a Marcos, selando a parceria entre ambos.
Os golpistas precisam investir no próprio golpe e, por isso, há a
tensão em relação à venda da coleção de selos. À medida que o
espectador conhece as histórias e as razões do personagem, somos
expostos a uma hesitação que fica patente no olhar de Juan. É o
instante em que Marcos provoca o comparsa perguntando-lhe
por qual quantia seria capaz de dormir com outro homem. Na
resposta negativa imediata, Marcos vai elevando o valor hipotéti-
co de uma oferta financeira até obter o silêncio de Juan. Da ne-
gativa veemente ao silêncio que expressa o vacilo de Juan, Marcos
conclui que “putos no faltan, lo que faltan son financistas”.
A possibilidade de não viver de trapaças é posta em diferen-
tes momentos. Juan, por exemplo, aprendeu alguns truques na
infância com o pai e é apresentado na película como um ser an-
gustiado na atividade em que se encontra. No desdobramento de
Nueve Reinas sabemos que seu pai está preso e isso o incomoda.
Mas este incômodo não é a porta para um discurso moraliza-
dor, apenas reforça a impressão de que para certas pessoas, como
Juan e Marcos, a vida enquadrada nos códigos sociais não é mais
possível. As causas, claro, não são abordadas pelo filme, mas po-
demos inferir múltiplas combinações como aspectos pessoais do
comportamento e o simulacro de ganhar prata na jogatina que o
país se transformou.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 211

A Argentina e os impasses de seu jogo

A história argentina é marcada pelas apostas radicais no ideário


da modernidade. Desde os processos da independência à aposta ra-
dical do neoliberalismo no período do menemato há, com oscilações
e questionamentos, um discurso postulado pela tradição ilustrada
e liberal de eruditos do século XIX que convive nos tempos atuais.
Do processo de consolidação territorial, após sangrentas batalhas,
permaneceram as dimensões e expectativas sobre o porvir histórico
que o país deveria atingir entre as grandes nações do mundo e que,
portanto, demandavam a construção de um dos grandes mitos ar-
gentinos que é o do país que sabia qual rumo seguir.
A Argentina foi desejada e fez apostas enormes em seu futu-
ro. Muitas destas apostas se concretizaram em alguns momen-
tos, como a política de alfabetização do período sarmientino ou
ainda o “pleno emprego” na era Perón. E muitas destas apostas
fracassaram, como as feridas abertas da ditadura mais recente e
a enorme crise do projeto neoliberal de Menem. A dor por estas
apostas reverbera em momentos cruciais que eles vivem na atua-
lidade e no reconhecimento, cada vez mais explícito, de que inte-
gram o rol de latino-americanos e seus processos de desigualdade
econômico-social (Freitas Neto, 2008).
Os vínculos pessoais e coletivos de uma sociedade sob pres-
são e sob demandas permanentes, como o caso da Argentina pós-
2001, produziram um outro país. Mas os marcos da crise que o
cinema projetou estão presentes na flexão que o país fez ao ques-
tionar as escolhas do menemismo. O pensamento econômico
hegemônico foi posto em questão pelo governo dos presidentes
Néstor e Cristina Kirchner, mas o custo político teve outros im-
pactos, como o verticalismo, centralismo e carácter plebiscitário,
que tornam a democracia argentina débil e dispersa, na opinião
de Beatriz Sarlo (Sarlo, 2011).
A questão que desde o início foi posta em Nueve Reinas é so-
bre as estratégias e se as regras do jogo eram claras. É necessário
212 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

reforçar que Nueve Reinas não é um retrato cabal da Argentina,


mas expressa indícios de um comportamento vivenciado por
muita gente. Em que crer em tempos de crise? A pergunta não
é simples e expõe um problema que tem uma dimensão ampla e
que não se restringe a escolhas individuais, como parece sugerir
as decisões de Marcos e Juan. O sistema bancário, por exemplo,
é importante na trama de Bielinsky e um verdadeiro martírio
na experiência argentina. Quando Marcos consegue vender os
selos e, para sua infelicidade recebe o pagamento em um che-
que administrativo, veremos o sonho do golpista ser destroçado
pelo calote financeiro do qual ele e a sociedade foram vítimas.
O banco havia falido e houve intervenção governamental. Epi-
sódios assim não eram uma novidade, nem uma fatalidade do
destino na história argentina, mas a constatação de um sistema
frágil no qual golpes milionários eram dados por diretores, com
a conivência das autoridades financeiras.
No filme, o emaranhado de trapaças cria uma atmosfera de
conspirações frenéticas e que tantos acordos secretos vão se des-
velando. Marcos não apenas perdeu a grande aposta de sua vida,
mas os recursos que investiu no golpe. O caráter imprevisível e
improvável da história — afinal estamos num jogo de criação
— faz dos espectadores pessoas que foram fatalmente enganadas
e surpreendidas com o desfecho final, tal como o protagonista
Marcos, que foi o guia da ação e da observação. Há, no rotei-
ro, um desacordo dos protagonistas com o código legal, com a
regra, mas isso não é um óbice para a ação e a empatia com os
personagens. A narrativa fílmica propõe um raciocínio legítimo
de que a transgressão é uma estratégia plausível e necessária. Bie-
linsky expõe a incapacidade ou descrença de Marcos em pensar
outras hipóteses. E Marcos é, de fato, um trapaceiro e, ao mesmo
tempo, a vítima de um grande plano e do próprio sistema. Este
é o lugar do incômodo que o filme escancarou. O desrespeito às
normas e à sociedade vem por todos os lados: na manifestação
de privilégios e concessões a grupos políticos e econômicos, que
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 213

se configuram como a elite do país, ou através de grande parte


da população que não se vê como parte integrante do país, posto
que são desrespeitados como cidadãos e que procuram alterna-
tivas dentro dos limites estreitos, agindo com as máximas “estou
sem saída”, “salve-se quem puder” e “cada um por si”.
Entretanto, as chances de redenção, mesmo escassas, existem.
O filme não pretende fazer nenhum discurso moral, mas a si-
tuação retratada também não é produto de um determinismo.
Numa sequência próxima do final, após a derrocada do projeto
na porta do banco falido, Juan está no metrô quando entra um
garoto vendendo imagens religiosas para levantar algum dinhei-
ro. Juan está sentado e coloca em suas pernas um brinquedo e,
na outra, a imagem que estava sendo oferecida e uma nota. O
olhar do garoto oscila entre um e outro, mas opta pelo dinheiro
e efetiva a relação de troca que dele se espera. Ato seguinte, Juan
dá a ele o carrinho que havia sido desejado, mas repudiado diante
da decisão a que foi condicionado.

Quem engana quem?

Quem assistiu ao filme e quem ainda não teve a oportuni-


dade já tem informações suficientes que embaralham as relações
entre Marcos e Juan. Juan não é o aprendiz de Marcos, nem o
garoto que aprendeu pequenos truques com pai que está no pre-
sídio: ele também é um mestre. A atuação de Gastón Pauls é
extremamente cuidadosa e convincente. A cada momento que o
golpe das Nueve Reinas parece fracassar suas reações são de quem
está a ponto de desistir. É praticamente impossível fazer com
que Marcos e os espectadores possam supor sua participação em
qualquer parte do plano, mesmo para aqueles que estão habitua-
dos a este tipo de filme. A confiança e a aparência de ingenuidade
são os motes para perguntar-se sobre quem engana quem num
jogo metaforizado por atores aposentados em torno de uma mesa
de carteado da penúltima cena.
214 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Marcos, cuja última aparição no filme é correndo tentando


entrar no banco fechado, fez uma aposta num sistema que ele
mesmo sabia dos riscos. Mas a autoconfiança e a ideia da superio-
ridade de sua arte lhe fizeram cair num golpe que teve a atuação
do comparsa e da própria condição econômica da ciranda finan-
ceira que o país experimentara desde o quadro hiperinflacionário
dos anos 1980. A crença de Marcos é que ele poderia enganar
todos e nunca ser trapaceado. O distanciamento que atribui en-
tre si e os demais golpistas ou, principalmente, com o sistema
financeiro ou com o Estado é aparente e retórico: produz um dis-
curso para não se ver como um igual, mas aposta numa atuação
improvisada, dissimulada e que tem uma aparência de normali-
dade. O olhar que a câmara sugere em tantas imagens externas
pelas ruas de Buenos Aires é o de normalidade, de vivacidade
e que muitos podem perceber um certo mal-estar, mas poucos
poderiam dizê-lo ou localizá-lo. A tomada à distância cria um re-
gistro que se desfaz na aproximação e na particularidade de cada
personagem que encena vidas corriqueiras enquanto arma planos
para sobreviver. Mas seria o caso de Marcos estar tão convencido
de suas estratégias que o cegam diante do óbvio? E Juan, com a
entrega de um anel de noivado à sua namorada e irmã de Marcos,
pretendia simplesmente retomar uma vida de pequenos golpes?
Para que exista golpe é necessário ter vítimas. O golpe, não
deixa de ser irônico, ocorre sobre o espectador na maestria do ro-
teiro de Bielinsky. Ocorre nas simulações de recursos financeiros
infindos para alimentar desejos; ocorre na dimensão social e po-
lítica que a Argentina atravessou naquele contexto histórico. O
jogo de possibilidades interpretativas não se esgota. Tudo parece
normal na superfície, inclusive a atuação de larápios e esperta-
lhões, mas há um subtexto de acordos secretos, de práticas cor-
rompidas e de permanentes conspirações, a ponto de não saber se
se engana a alguém ou, principalmente, a si mesmo.
O discurso ficcional de Nueve Reinas expressou a atmosfera
de uma sensibilidade particularmente argentina e, de forma ar-
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 215

bitrária ao pretendido pelo diretor, retira a ingenuidade dos que


pensam que estão apenas na plateia assistindo ao que ocorre ao
seu redor. As cenas e situações do filme, compartilhadas e viven-
ciadas no cotidiano, transpõe os espectadores para a constatação
de que há graus e um universo em que golpistas e vítimas não
são definidos a priori, nem pelo desejo que trapaças não ocorram,
pois o golpe pode vir ou ser dado no lugar que menos se espera.
A questão é saber, neste grande palco, qual a dimensão do papel
que é reservado a cada um.

Ficha técnica do filme


Título original: Nueve reinas
Direção: Fabián Bielinsky
País: Argentina
Ano: 2000
Data de estreia: 24/08/2001
Duración: 114 min.
Elenco: Gastón Pauls, Ricardo Darín, Graciela Tenenbaum,
María Mercedes Villagra, Gabriel Correa, Pochi Ducasse, Luis
Armesto, Ernesto Arias, Amancay Espíndola, Isaac Fajm, Jorge
Noya, Leticia Brédice, Oscar Nuñez, Ignasi Abadal, Carlos La-
nari, Roberto Rey, Tomás Fonzi, Celia Juárez, Alejandro Awada,
Antonio Ugo, Leo Dyzen, Elsa Berenguer, Carlos Falcone, Ricar-
do Díaz Mourelle, Ulises Celestino, Norberto Arcusín, Gabriel
Molinelli, Emanuel Mercado, Claudio Rissi
Distribuidora: Alta Films
Productora: Patagonik Film Group, Naya Films S.A., FX Sound,
Industrias Audiovisuales Argentinas S.A., J.Z. & Asociados, Ko-
dak Argentina S.A.
217

Referências
AGAMBEN, G. O amigo. O que é um dispositivo. Trad. Viní-
cius Nicastro Honesko. Chapecó: Argos, 2014.
______. Homo sacer: o poder soberano e à vida nua I. Belo
Horizonte: Humanitas, 2007.
A GRANDE beleza. Direção: Paolo Sorrentini. Itália, França:
Indigo Film, 2013.
AGUILAR, Gonzalo. Otros mundos. Buenos Aires: Santiago
Arcos Editor, 2006.
ANTELO, Raul. As imagens como força. In: Revista Crítica
Cultural, v. 3, n. 3, jul./dez. 2008.
ALBUQUERQUE, Carlos. Contracultura à alemã: quando o
privado tornou-se político. 2007. sítio da Deutsche Welle. Dis-
ponível em: <http://dw.de/p/9mWj>. Acesso em: 01 nov. 2014.
AMADO, Ana. “Novo cinema argentino: fábulas do mal-estar”,
Sinopse. Revista de cinema, ano IV, n. 9, ago. 2002, CINUSP,
Universidade de São Paulo.
AZZI, Riolando. Cinema e educação: orientação pedagógica e
cultural de vídeos. São Paulo: 1996.
BADIOU, Alain. El cine como experimentación filosófica. In:
YOEL, Gerardo (comp.). Pensar el cine 1. imagen, ética y filo-
sofia. Buenos Aires: Manantial, 2004, p. 23-81.
BALTAZAR, Maria João. Do olhar moderno em O Homem da
câmara de filmar ao olhar do fotógrafo em Blow-up. In: MAR-
TINS, Moisés de Lemos; PINTO, Manuel (Orgs.). Comunica-
ção e Cidadania. Actas do 5º Congresso da Associação Por-
tuguesa de Ciências da Comunicação. 6-8 set. 2007, Braga:
218 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade (Universidade


do Minho), 2008.
BANN, Stephen. As invenções da história: ensaios sobre a re-
presentação do passado. São Paulo: UNESP, 1994.
BARROS, José D’Assumpção. Cinema e História — Considera-
ções sobre os usos historiográficos das fontes fílmicas. Comuni-
cação & Sociedade, ano 32, n. 55, p. 175-202, jan./jun. 2011.
BARTHES, Roland. Ao sair do cinema. In: ______. O Rumor
da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004, p. 427-433.
______. A imagem. In: ______. O Rumor da Língua. São Pau-
lo: Martins Fontes, 2004, p. 434-444.
BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: A busca por segurança no
mundo atual. Trad. Plínio Dentzien. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2003.
BENJAMIN, Walter. “Magia e técnica, arte e política”. Obras
Escolhidas II. São Paulo: Editora Brasiliense, 1995.
______. O narrador. Considerações sobre a obra de Nikolai
Leskov. In: ______. Magia e Técnica, Arte e Política. [Obras
Escolhidas]. São Paulo: Brasiliense, 1993, p. 197-221.
BHABHA, Homi K. O local da cultura. Belo Horizonte: EDU-
FMG, 2007.
BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do
campo artístico. São Paulo: Companhia das letras, 2005.
BRAIDA, Celso. A crítica do conhecimento em Nietzsche. In:
Nietzsche: uma provocação. Porto Alegre: Ed. UFRGS, 1997
BRITES, Jurema. Afeto e desigualdade: gênero, geração e clas-
se entre empregadas domésticas e seus empregadores. Cadernos
Pagu, n. 29, p. 91-109, jul./dez. 2000.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 219

BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão


da identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
________. Cuerpos que importan. Sobre los limites materiales
y discursivos del “sexo”. Buenos Aires: Paidós, 2008.
BUTTURI JUNIOR, A. A passividade e o fantasma: o dis-
curso monossexual no Brasil. 2012. 280f. Tese (Doutorado em
Linguística) — Programa de Pós-Graduação em Linguística,
Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis.
CALDAS, Pedro Spinola Pereira. Que significa pensar historica-
mente: uma interpretação da teoria da história de Johann Gustav
Droysen. 213 f. 2004. Tese (Doutorado em História) — Progra-
ma de Pós-Graduação em História Social da Cultura, PUC-RJ.
CALLING, Leandro & SANTOS, Matheus Araujo. O corpo in-
tersex e a politização do abjeto em XXY. Intexto, Porto Alegre,
UFRGS, v. 2, n. 25, p. 234-250, dez. 2011.
CAMARA, Paula et al. Prefigurar lo político. Disputas contrahe-
gemonicas en America Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2015.
CAMPO, Monica Brincalepe. História e Cinema: o tempo
como representação em Lucrecia Martel e Beto Brant. 2010. Tese
(Doutorado em História) — IFCH/Unicamp, Campinas.
CARNES, Marc. (org.). Passado Imperfeito: a história no cine-
ma. Rio de Janeiro: Record, 1997, p. 417.
CARDOSO, Irene. A geração dos anos de 1960: o peso de uma
herança. Tempo Social [online], São Paulo, v. 17, n. 2, p. 99-
107, nov. 2005. Disponível em: <http://dx.doi.org/10.1590/
S0103-20702005000200005>. Acesso em: 01 nov. 2014.
CASTELO BRANCO, Guilherme. Agonística e palavra: as
potências da liberdade. In: ______; VEIGA-NETO, Alfredo
(Orgs.). Foucault: filosofia & política. Belo Horizonte: Autênti-
ca, 2011, p. 153-161.
220 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

CEZAR, Temístocles. Narrativa, cor local e ciência: notas para


um debate sobre o conhecimento histórico no século XIX. His-
tória Unisinos, v. 8, n. 10, p. 11-34, 2004.
CHAGUACEDA, Armando & BRANCALEONE, Cassio
(Org.). Sociabilidades Emergentes y Mobilizaciones Sociales
en America Latina. Buenos Aires: CLACSO, 2012.
CHALHOUB, Sidney. Visões da liberdade: uma história das
últimas décadas da escravidão na corte. São Paulo: Companhia
das Letras, 1990.
______. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil
oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
CHATMAN, Seymor. Malattia dei sentimenti. Cult, n. 93, p.
55-57, 2005.
COCK, Jacklyn. Maids and Madams: domestic workers under
apartheid. South Africa by Ravan Press Ltd, 1980.
COLEÇÃO: Os Pensadores (Malinowski). São Paulo: Abril
Cultural, 1978.
COLOMBO, Sylvia. Crise gerou renovação no cinema. Folha
de S. Paulo, São Paulo, 17 out. 2006, Ilustrada
CONDE MUÑOZ, Aurora. La precisión de la nada (reflexiones
sobre Blow-up). Cuadernos de Filologia Italiana, v. 15, p. 157-
179, 2008.
COSTA, Bruno. Cores, transparências e opacidade: os limites da
representação da realidade em Blow-up e em Kracauer. Famecos,
Porto Alegre, n. 21, p. 1-9, 2009.
COSTA, Marco Antônio Margarido. Um painel sobre as obras
de Jack Kerouac traduzidas no Brasil na década de 1980. Tra-
dterm [online], v. 12, p. 247-267, dez. 2006. Disponível em:
<http://www.revistas.usp.br/tradterm/article/view/46742/
50508>. Acesso em: 01 nov. 2014.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 221

CUNHA, Olivia Maria Gomes da; GOMES, Flavio dos Santos


(Orgs.). Quase-cidadão: Histórias e antropologia da pós-eman-
cipação no Brasil. Rio de Janeiro, Editora: FGV, 2007.
DAMÁSIO, Antonio. O erro de Descartes: emoção, razão e cé-
rebro humano. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
DELEUZE, G. Foucault. São Paulo: Brasiliense, 2005.
______. A imagem tempo. São Paulo: Editora Brasiliense, 1990.
______; GUATARRI, Felix. Mil Platôs. Vol.1 a 5. São Paulo:
Editora 34, 1995.
DÍAZ, Silvina. “La construcción de la marginalidad en el cine
argentino: la generación del 60 y el cine de los 90”. ” In: LUS-
NICH, Ana Laura (Org.). Civilización y barbarie: en el cine
argentino y latinoamericano. Buenos Aires: Biblos, 2005.
DÍAZ-BENITEZ, Maria Elvira & FÍGARI, Carlos Eduardo. Pra-
zeres dissidentes. Rio de Janeiro: Garamond Universitária, 2009.
DIDI-HUBERMAN, Georges. Imágenes Pese a Todo: memo-
ria visual del holocausto. Barcelona: Paidós, 2004.
DOGGAN, Christopher. The Republic. In: A concise history
of Italy. Cambridge University Press, s/d.
DREYFUS, H. Being and power: Heidegger and Foucault. In-
ternational Journal of Philosophical Studies, n. 4, p. 1-16,
1996. Disponível em: <http://socrates.berkeley.edu/~hdreyfus/
html/paper_being.html>. Acesso em: 21 mar. 2011.
______.; RABINOW, P. Michel Foucault, uma trajetória fi-
losófica: para além do estruturalismo e da hermenêutica. Trad.
Vera Porto Carrero. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995.
DUARTE, A. M. Foucault à luz de Heidegger: notas sobre o
sujeito autônomo e o sujeito constituído. 2002. Disponível em:
<http://works.bepress.com/andre_duarte/21/>. Acesso em: 20
mai. 2013.
222 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

______. Heidegger e Foucault, críticos da modernidade.


Trans-form-ação, Marilia, v. 29, n. 2, p. 95-114, 2006. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0101-3173
2006000200008&script=sci_arttext>. Acesso em: 20 mai.
2012.
DUARTE, Rosália. Cinema e Educação. 2. ed. Belo Horizonte:
Autêntica, 2002. 128p.
DUBOIS, Christian. Heidegger: introdução a uma leitura.
Trad. Bernardo Barros Coelho de Oliveira. Rio de Janeiro: Jorge
Zahar Ed., 2004.
DUDDEN, Faye E. Serving Women. Household Service in
Nineteenth-Century America, 1983.
DUMONT, Louis. O individualismo: uma perspectiva antro-
pológica da ideologia moderna. Rio de Janeiro: Rocco, 1985.
EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo: Boitempo, 1997.
EVANS, Peter. Em defesa da história. Lisboa: Temas e Debates,
2000.
EVANS-PRITCHARD, E. E. Os nuer: uma descrição do modo
de subsistência e das instituições políticas de um povo nilota. 2.
ed. São Paulo: Perspectiva, 1993.
FABRIS, Mariarosaria. Proibido ultrapassar a esquerda: as Bri-
gadas Vermelhas na visão de Gianni Amélio, Marco Bellocchio
e Marco Tullio Giordana, In: CAPELATO, Maria Helena et. al.
História e Cinema. Dimensões históricas do audiovisual. São
Paulo: Alameda, 2007, p. 173-192.
FERNANDES, S. Foucault: a experiência da amizade. In: AL-
BUQUERQUE JUNIOR. D. M. de; VEIGA-NETO, A.; SOU-
ZA FILHO, A. de. (Orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Ho-
rizonte: Autêntica, 2011, p. 377-391.
FERRO, Marc. Cinema e História. São Paulo: Paz e Terra, 1992.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 223

______. “O filme: uma contra-análise da sociedade”. In: LE


GOFF, Jacques.; NORA, Pierre. (Orgs.). História: novos obje-
tos. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1976.
FIGUEIRA, Cristina Aparecida. O Cinema do povo: um proje-
to de educação anarquista, 1991-1921. 1995. Dissertação (Mes-
trado em Educação) — PUC-SP, São Paulo/SP.
FIGUEIREDO, L. C. Foucault e Heidegger: a ética e as formas
históricas do habitar (e do não habitar). Tempo Social, São Pau-
lo, v. 7, p. 136-149, out. 1995.
FONTANA, Josep. A História dos homens. Bauru: EDUSC,
2004.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro:
Graal, 1988.
______. Microfísica do Poder. 28. ed. Rio de Janeiro: Edições
Graal, 2008.
______. Vigiar e Punir: o nascimento da prisão. Petrópolis: Vo-
zes, 1997.
FOUCAULT, M. A ética do cuidado de si como prática da liber-
dade. In: ______. Ditos e escritos V: ética, sexualidade e políti-
ca. 2. ed. Trad. Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa.
Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010, p. 264-287.
______. O governo de si e dos outros — cursos no Collège de
France (1982-1983). Trad. Eduardo Brandão. São Paulo: Mar-
tins Fontes, 2013.
______. A coragem da verdade: o governo de si e dos outros
II —- Curso no Collège de France (1983-1984). Trad. Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2011.
______. A hermenêutica do sujeito. 2. ed. São Paulo: Martins
Fontes, 2006.
224 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

______. Do governo dos vivos — curso no Collège de France,


1979-1980. Trad. Nildo Avelino. São Paulo: Centro de Cultura
Social; Rio de Janeiro: Achiamé, 2010.
______. Sujeito e poder. [1982]. In: FOUCAULT, M. Ditos
e escritos IX: genealogia da ética, subjetividade e sexualidade.
Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2014a, p.118-140.
______. Escolha sexual. Ato sexual. [1982]. In: FOUCAULT,
M. Ditos e escritos IX: genealogia da ética, subjetividade e sexu-
alidade. Trad. Abner Chiquieri. Rio de Janeiro: Forense Univer-
sitária, 2014b, p.156-173.
______. Da amizade como forma de vida. Entrevista de Michel
Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet e J. le Bitoux. Gai Pied, n.
25, p. 38-39, abr. 1981. Trad. Wanderson Flor do Nascimento.
Disponível em: <http://portalgens.com.br/portal/images/sto-
ries/pdf/amizade.pdf>. Acesso em: 9 dez. 2013.
______. História da Sexualidade I: A vontade de saber. 3. ed.
Rio de Janeiro: Graal, 1979.
______. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France
(1975-1976). São Paulo: Martins Fontes, 1999.
______. A ordem do discurso. 17. ed. São Paulo: Edições Loyo-
la, 2008.
FRANCO, Marília da Silva. “A natureza pedagógica das lingua-
gens audiovisuais”. In: ______. Cinema: uma introdução à pro-
dução cinematográfica. São Paulo: Fundação para o Desenvolvi-
mento da Educação, 1992.
FREITAS NETO, José. “Utopias e projetos: distinções e desdo-
bramentos políticos na América do XIX”. Revista Tempo Brasi-
leiro, Rio de Janeiro, n. 174, p. 67-75, jul./set. 2008.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 225

GABLER, Neal. Vida, o filme: como o entretenimento conquis-


tou a realidade. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
GALLO, Ivone. “Por uma historiografia do punk”. In: Revista
Projeto História. São Paulo: PUC-SP, Vol. 4, 2010.
GALLO, Sílvio. Do cuidado de si como resistência à biopolítica.
In: CASTELO BRANCO, Guilherme.; VEIGA-NETO, Alfre-
do. (Orgs.). Foucault: filosofia & política. Belo Horizonte: Au-
têntica, 2011. p. 371-391.
GIACOMINI, Jair Marcos. A Fotografia em Las babas del dia-
blo e em Blow-up: marca de indecisões. 114 f. 2004. Disserta-
ção (Mestrado em Letras) — Programa de Pós-Graduação em
Letras, UFRGS, Porto Alegre.
GILROY, Paul. O Atlântico negro: modernidade e dupla cons-
ciência. São Paulo, Rio de Janeiro: Editora 34; Universidade
Cândido Mendes — Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros. Verdadeiro, falso, fictí-
cio. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
______. Relações de força: história, retórica, prova. São Paulo:
Companhia das Letras, 2002.
GODBOUT, Jacques T. Introdução à dádiva. Rev. bras.
Ci. Soc., São Paulo,  v. 13,  n. 38,  p. 39-52,  oct. 1998. Dis-
ponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_
arttext&pid=S0102-69091998000300002&lng=en&nrm=i
so>. Acesso em: 03 fev. 2015.
GRAHAM, Sandra Lauderale. Proteção e Obediência. Criadas
e seus patrões no Rio de Janeiro 1860-1910. São Paulo: Compa-
nhia das Letras, 1992.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade.
Rio de Janeiro: dp&a; 2005.
226 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

HAGEMEYER, Rafael Rosa. História & Audiovisual. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2012.
______; TÉO, Marcelo Robson. Narrativas audiovisuais em his-
tória: questões metodológicas. In: Encontro Internacional de
Estudos da Imagem, 2013, Londrina, Anais, p. 2008-2019.
HARDT, Michael; NEGRI, Antonio. Multidão. Rio de Janeiro:
Record, 2005.
HARAWAY, Donna. Um manifesto para os ciborgs: ciência, tec-
nologia e feminismo socialista na década de 80. In: HOLLAN-
DA, Heloísa Buarque de (Org.). Tendências e impasses. O fe-
minismo como crítica cultural. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.
HARTOG, François. (Org.). A História de Homero a Santo
Agostinho. Belo Horizonte: EdUFMG, 2001.
HEIDEGGER, M. Carta sobre o humanismo. Trad. Rubens
Eduardo Frias. 2. ed. rev. São Paulo: Centauro, 2005.
______. Nietzsche — volume um. Trad. Marco Aurélio Casano-
va. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010.
______. Ser e tempo. Trad. Fausto Castilho. Campinas, SP:
Editora da UNICAMP; Petrópolis, RJ: Vozes, 2012.
______. Ser e tempo: parte I. 6. ed. Trad. Márcia de Sá Caval-
cante. RJ, Petrópolis: Vozes, 1997.
HELLER, Agnes. La revolución de la vida cotidiana. 3. ed.
Barcelona: Península, 1982.
HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos. 1914-1994. São Pau-
lo: Companhia das letras, 2005.
JAGOSE, Annamarie. Queer Theory: an Introduction. New
York: New York University Press, 1996.
JAMESON, Fredric. As marcas do visível. Rio de Janeiro: Gra-
al, 1995.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 227

______. Periodizando os anos 60. In: HOLLANDA, Heloísa


Buarque de. (Org.). Pós-modernismo e política. Rio de Janeiro:
Rocco, 1992.
JELIN, Elizabeth. Los trabajos de la memoria. Madrid: Siglo
veintiuno, 2002.
JUZ, Breno de Souza. Representações cinematográficas da Ar-
gentina em crise (1999-2004). 2010. Dissertação (Mestrado)
— IFCH/Unicamp, Campinas.
KEARNEY, Richard. A narrativa faz a diferença. Trad. Gilka Gi-
rardello. In: ______. On Stories. London: Routledge, 2002, p.
1-16.
KOSELLECK, Reinhart. Futuro Passado. Contribuição à se-
mântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Contraponto,
2006.
KOZENIESKI et al. O Ensino De Geografia E O Cinema.
Para Onde!?, v. 1, n. 1, ago. 2011. ISSN 1982-0003. Dispo-
nível em: <http://seer.ufrgs.br/index.php/paraonde/ article/
view/22066/12820>. Acesso em: 01 nov. 2014.
KROPOTKIN, Piotr. Apoio mútuo: um fator de evolução. São
Sebastião, SP: A Senhora, 2012.
LA BOÉTIE, Étienne de. Discurso sobre a servidão voluntá-
ria. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
LEACH, Edmund Ronald. Sistemas políticos da Alta Birmâ-
nia: um estudo da estrutura social kachin.   São Paulo Ed. da
USP, 1995.
LEFÈBVRE, H. A vida cotidiana no mundo moderno. São
Paulo: Editora Ática, 1991.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A antropologia diante dos problemas
do mundo moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.
228 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

LIDDINGTON, Jill. O que é história pública: os públicos e


seu passado. In: ALMEIDA, Juniele Rabêlo de; ROVAI, Marta
Gouveia de Oliveira (Org.). Introdução à História Pública. São
Paulo: Letra e Voz, 2011.
LIMA, AArtemilson Alves de. Excurso sobre o conceito de con-
tracultura. Holos, Natal, v. 4, n. 29, p. 183-192, 2013. Dis-
ponível em: <http://www2.ifrn.edu.br/ojs/index.php/HOLOS/
article/view/1536/715>. Acesso em: 01 nov. 2014.
LIMA, Henrique Espada. Sob o domínio da precariedade: escra-
vidão e os significados da liberdade de trabalho no século XIX.
Topoi, v. 6, n. 11, p. 289-326, jul./dez. 2005.
LISPECTOR, Clarice. A descoberta do mundo. Rio de Janeiro:
Rocco, 1999.
LOURO, Guacira. O corpo estranho. Ensaios sobre sexualida-
de e teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
MACHADO, Paula Sandrine. O sexo dos anjos: um olhar so-
bre a anatomia e a produção do sexo (como se fosse) natural.
Cadernos Pagu, n. 24, Núcleo de Estudos de Gênero — Pagu/
Unicamp, 2005.
MACNEIL, Legs & MACCAIN, Gillian. Mate-me por favor.
A história sem censura do punk. Porto Alegre: L&PM, 2014.
MARCUSE, Herbert. A Grande Recusa Hoje. Petrópolis: Vo-
zes, 1999.
MATOS, Olgária C. F. Paris, 1968: as barricadas do desejo. São
Paulo: Brasiliense, 1981.
MAUSS, Marcel; LÉVI-STRAUSS, Claude; NEVES, Paulo
(Trad.). Ensaio sobre a dádiva. In: Sociologia e antropologia.
São Paulo (SP): CosacNaify, 2003.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 229

MAY, T. Foucault’s relation to phenomenology. In: GUTTING,


G. The Cambridge Companion to Foucault. 2. ed. Cambrid-
ge: Cambridge University Press, 2003, p.284-311.
McKEOWN, Luke Daniel. (Re)presenting the Past: historio-
graphical and theoretical implications of the historical docudra-
ma. 2008. (Mestrado) — University of Waikato, New Zealand.
MEAD, Margaret. Sexo e temperamento. 4. ed. São Paulo:
Perspectiva, 2003. 316 p.
MENEZES, Paulo. À Meia-luz: cinema e sexualidade nos anos
70. São Paulo: Ed. 34, 2001.
______. Cinema: imagem e interpretação. Tempo Social, USP,
São Paulo, v. 8, n. 2, 1996.
MILANICH, Nara. Women, Children, and the Social Organi-
zation of Domestic Labor in Chile. In: Hispanic American His-
torical Review. Duke University Press, 2011.
MOMIGLIANO, Arnaldo. As raízes clássicas da historiogra-
fia moderna. Bauru: Edusc, 2004.
MORETTIN, Eduardo Victorio. O cinema como fonte his-
tórica na obra de Marc Ferro. História: Questões & Debates,
Curitiba: Editora UFPR, n. 38, 2003. Disponível em: <http://
calvados.c3sl.ufpr.br/ojs2/index.php/historia/article/viewFi-
le/2713/2250>. Acesso em: 18 nov. 2007.
MORIN, Edgar. El cine o el hombre imaginario. Barcelona:
Crítica, 2001.
MOULIER, Yann. Prefácio à edição francesa. In: TRONTI,
Mário. Operários e Capital. Porto: Afrontamento, 1976.
MULSLOW, Alun. Desconstruindo a História. Petrópolis: Vo-
zes, 2009.
230 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

NAPOLITANO, Marcos. Como usar o cinema na sala de aula.


2. ed. São Paulo: Contexto, 2005.
NICHOLLS, Bill. La representación de la realidad: cuestiones
y conceptos sobre el documental. Barcelona: Paidós, 1997.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica.
São Paulo: Cia das Letras, 2008.
______. Além do bem e do mal: prelúdio a uma filosofia do
futuro. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia das Letras,
1992.
NORTHUP, Solomon. Doze anos de escravidão. São Paulo:
Penguin Classics; Companhia das Letras, 2014.
NÓVOA, Jorge; FRESSATO, Soleni Biscouto; FEIGELSON,
Kristian. (Orgs.). Cinematógrafo: um olhar sobre a História.
Salvador: EDUFBA/UNESP, 2009.
______; BARROS, José D’Assunção. (Orgs.). Cinema-Histó-
ria: teoria e representações sociais no cinema. Rio de Janeiro:
Apicuri, 2008.
NUNES, Benedito. Arqueologia da arqueologia. In: ______. O
dorso do tigre. São Paulo: 34, 2009. p. 61-78.
ORTEGA, Francisco. Amizade e estética da existência em
Foucault. Rio de Janeiro: Graal, 1999.
OUBIÑA, David. Un mapa arrasado. Nuevo cine argentino de
los ’90. Sociedad: revista de la Facultad de Ciencias Sociales de
la UBA, Buenos Aires, n. 20/21, p. 193-205, outono de 2003.
PAIVA. Antônio Christian Saraiva. Amizade e modos de vida
gay por uma vida não facista. In: ALBUQUERQUE JUNIOR.
Durval Muniz de; VEIGA-NETO, Alfredo; SOUZA FILHO,
Alípio de. (Orgs.). Cartografias de Foucault. Belo Horizonte:
Autêntica, 2011, p. 53-67.
PARKER, Selwyn. O Crash de 1929: as lições que ficaram da
grande depressão. São Paulo: Globo, 2009.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 231

PENA, Jaime: Historias extraordinarias: el nuevo cine argenti-


no (1999-2008). Buenos Aires: T&B Editores, 2009.
PERREIRA, Carlos Alberto Messeder. O que é contracultura.
8. ed. São Paulo: Brasiliense, 1992. (Primeiros passos).
PRUDENZI, Angela; RESEGOTTI, Elisa (Orgs.). Cinema po-
lítico italiano — anos 60 e 70 São Paulo: Cosac Naify, 2006.
QUINSANI, Rafael Hansen. A Revolução em Película: uma
reflexão sobre a relação cinema-História e a Guerra Civil Espa-
nhola. São José dos Pinhais: Estronho, 2014.
RANCIÈRE, Jacques. A Partilha do Sensível. Rio de Janeiro,
Ed. 34, 2009.
REIS, José Carlos. História e Verdade: posições In: História e
Teoria. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 2006. p. 147-177.
RIBEIRO, Luiz Dario Teixeira. 1968 no mundo. In: PONGE,
Robert. 1968: o ano das muitas primaveras. Porto Alegre: Uni-
dade Editorial, 1998.
RODRIGUES, Gabriela; PADRÓS, Enrique. Edukators —
seus dias de fartura estão contados: reflexões sobre o 68 alemão,
suas persistências e contradições. In: PADRÓS, Enrique; GUA-
ZZELLI, César (Orgs.). 68: História e cinema. Porto Alegre:
EST, 2008.
ROGERS, C. The illustrated book of scottish songs: from
the 16th to the 19th century. London, 1966. Disponível em: <
http://goo.gl/6pfygK>. Acesso em: 12 jan. 2015.
RONCADOR, Sonia. Criadas no more: notas sobre testemu-
nhos de empregadas domésticas. Estudos de literatura brasi-
leira contemporânea, Brasília, n. 21, pp 55-71, jan./jun. 2003.
______. A doméstica imaginária. Literatura, testemunhos e a
invenção da empregada doméstica no Brasil (1889-1999). Brasí-
lia: Editora Universidade de Brasília, 2008.
232 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

ROSENSTONE, Robert. A história dos filmes e os filmes na


história. Trad. Marcello Lino. São Paulo: Paz e Terra, 2010.
______. História em imagens, história em palavras: reflexões so-
bre as possibilidades de plasmar a história em imagens. Revista o
Olho da História, n. 5. Salvador, 1998.
RÜSEN, Jörn. História Viva. Teoria da História III: formas e
funções do conhecimento histórico. Brasília: UNB, 2007.
______. Narratividade e Objetividade nas Ciências históricas.
Textos de história, v. 4, n 1, p. 75-102, 1996.
______. Razão Histórica. Teoria da História I: os fundamentos
da ciência histórica. Brasília: UNB, 2001.
______. Reconstrução do passado. Teoria da História II: os
princípios da pesquisa histórica. Brasília: UNB, 2007.
SARLO, Beatriz. “Vísperas de una nueva victoria peronis-
ta”. Disponível em: <http://elpais.com/diario/2011/10/22/opi-
nion/1319234412_850215.html>. Acesso em: 05 fev. 2015.
______. Tempo Passado: cultura da memória e guinada subjeti-
va. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
SCHAFF, Adam. História e Verdade. São Paulo: Martins Fon-
tes, 1987.
SLUGA, H. Foucault’s encounter with Heidegger and Nietzs-
che. In: GUTTING, G. The Cambridge Companion to Fou-
cault. 2. ed. Cambridge: Cambridge University Press, 2003, p.
210-239.
SOREL, Georges. Sobre a violência. São Paulo: Martins Fontes,
1992.
SORLIN, P. Sociología del cine: la apertura para la historia de
mañana. México: FCE, 1985.
STEIN, E. Diferença e metafísica: ensaios sobre a desconstru-
ção. 2. ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2008.
Cinema e Sociedade: Resistências e jogos de poder 233

______. Seis estudos sobre Ser e Tempo. Petrópolis: Vozes,


1988.
STOCKETT, Kathryn. A Resposta. Tradução Caroline Chang.
3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand, Brasil, 2011.
SWAIN, Tani Navarro. Entre a vida e a morte, o sexo. labrys,
estudos feministas, junho/ dezembro 2006. Disponível em:
<http://www.unb.br/ih/his/gefem/labrys10/livre/anahita.htm>.
Acessado em: 31 mai. 2015.
TRONTI, Mário. Operários e Capital. Porto: Afrontamento,
1976.
VAGUE, Tom. Televisionários. São Paulo: Conrad, 2001.
VEYNE, Paul. Acreditavam os gregos em seus mitos? Ensaio
sobre a imaginação constituinte. São Paulo: Brasiliense, 1984.
VIDA SELVAGEM. Direção: Achim Bornhak. Produção:
Eberhard Junkersdorf; Dietmar Güntsche. Alemanhã: Warner
Home Video, 2007. DVD (110 min.), son. color. Legendado.
Título original: Das Wilde Leben.
VIRILIO, Paul. A máquina da visão. Rio de Janeiro: José Olym-
pio, 1994.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. A nova ordem global: relações
internacionais do século 20. Porto Alegre: Editora da Universi-
dade/UFRGS, 1999.
VIZENTINI, Paulo Fagundes. O ressurgimento da extrema di-
reita e do neonazismo: a dimensão histórica e internacional. In:
MILMAN, Luis; VIZENTINI, Paulo Fagundes (Orgs.). Neo-
nazismo, negacionismo e extremismo político. Porto Alegre:
Editora da Universidade/UFRGS: CORAG, 2000.
WAGNER, Roy. A invenção da cultura. São Paulo: CosacNaif,
2010.
234 Fábio Feltrin de Souza | Cássio Brancaleone (Orgs.)

WALLERSTEIN, Immanuel. Análisis de sistemas-mundo: una


introducción. México: Siglo XXI, 2005.
WEINMANN, A. de O. Dispositivo: um solo para a subjetiva-
ção. Psicologia & Sociedade, Porto Alegre, v. 18, n.3, p.16-22,
set./dez. 2006. Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/seerpsic-
soc/ojs/viewarticle.php?id=42&layout=html>. Acesso em: 22
set. 2010.
WHITE, Hayden. Historiografia e Historiofotia. Trad. Rafael
Rosa Hagemeyer e Paula Cogno Lermen. In: American Histori-
cal Review, v. 93 n. 5, p. 1193-1199, dec. 1998.
WOLF, Sergio. “De la Industria al cineindependiente: (¿hay au-
tores industriales?)”. In: BERNARDES, Horacio et al. Nuevo
Cine Argentino. Temas, autores y estilos de una renovación.
Buenos Aires: Ediciones Tatanka/FIPRESCI, 2002. pp. 119-
132.
XAVIER, Ismail. O Olhar e a cena: melodrama, Hollywood,
Cinema Novo, Nelson Rodrigues. São Paulo: Cosac & Naify,
2003.
YOEL, Gerardo (comp.) Pensar el cine 1: imagen, ética y filoso-
fía. Buenos Aires: Manantial, 2004.
______. Pensar el cine 2: cuerpo(s), temporalidad y nuevas tec-
nologias. Buenos Aires: Manantial, 2004.
ZERZAN, John. Futuro Primitivo. Porto Alegre: Editora De-
riva, 2006.
______. O Futuro Primitivo. Porto: Deriva, 2007.
ZIZEK, Slavoj. Violência. São Paulo: Boitempo, 2014.
______. Primeiro como tragédia, depois como farsa. São Pau-
lo: Boitempo, 2011.
Título Cinema e Sociedade: Resistência e jogos de
poder
Organizadores Fábio Feltrin de Souza
Cássio Brancaleone
Coordenação Editorial Kátia Ayache
Assistência Editorial Augusto Pacheco Romano
Érica Cintra
Capa e Projeto Gráfico Matheus de Alexandro
Assistência Gráfica Wendel de Almeida
Preparação e Revisão Taine Fernanda Barriviera
Formato 14 x 21 cm
Número de Páginas 236
Tipografia Adobe Garamond Pro
Papel Offset 75g/m2
1ª Edição Janeiro de 2016
Caro Leitor,

Esperamos que esta obra tenha


correspondido às suas expectativas.

Compartilhe conosco suas dúvidas


e sugestões escrevendo para:

atendimento@editorialpaco.com.br

Compre outros títulos em


www.pacolivros.com.br
Professor tem desconto especial

Publique Obra Acadêmica pela Paco Editorial

Saiba mais em
www.editorialpaco.com.br/publique-pela-paco/

Av. Carlos Salles Block, 658


Ed. Altos do Anhangabaú – 2� Andar, Sala 21
Anhangabaú - Jundiaí-SP - 13208-100
11 4521-6315 | 2449-0740
contato@editorialpaco.com.br

Você também pode gostar