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A VISÃO, A MEDITAÇÃO E A AÇÃO

Lama Denys
A Visão
A Natureza da Mente-experiência.
Mahamudra não está alhures, algo que falta conhecer ou descobrir...
Querer obtê-lo, atingi-lo ou fabricá-lo são, portanto desvios que procedem da má
compreensão, de uma visão errônea.
Mahamudra é a experiência primordial, virginal, da realidade antes de ser tocada pelo
mental, contaminada pelo agarrar. É a experiência do real além do ego.
Habitualmente, o ego nasce e renasce e vivemos de instante em instante seus
condicionamentos: nossos diferentes estados de consciência, bem como o mundo exterior que
experimentamos. Nosso ego, quer dizer nossa consciência individual, passa assim de estado à
estado, de mundo em mundo.
Mahamudra é a experiência do que é anterior a nós mesmos e ao nosso mundo.
Mahamudra é a experiência anterior ao nascimento do ego e do samsara.
Mahamudra sempre esteve à mão. Antes de termos a experiência não-dual, nos engajamos
constantemente nas experiências dualistas segundo um processo de solidificação, de
constituição de nossa experiência, de nosso mundo, que repetimos incansavelmente.
O conhecimento sem este ego, sem observador nem observado, é possível. A compreensão
imediata, a experiência primordial não pertence ao ego que é um processo parasitário que se
apropria dela e a deforma. Não somente o ponto de referência e a alteridade face à qual ele se
coloca não são necessários, mas revelam-se inúteis, problemáticos, e finalmente a fonte de
todos os males.
A meditação é freqüentemente uma tentativa de melhorar, de fabricar... De fato, mahamudra
esta essencialmente, completamente além das noções de meditação, de prática ou da não-
meditação, da não-prática, mas de um ponto de vista convencional, podemos falar como da última
forma de meditação, essa característica última reside simplesmente em que esta experiência é a
da não-dualidade.
De uma maneira muito simples e ao mesmo tempo muito profunda, a não-dualidade é última por
que não há duas. Assim, qualquer que seja a via pelo qual a realizamos, a não-dualidade é
muito simplesmente não-dualidade. Não há várias não-dualidades, não há de um lado a “não-
dualidade” e do outro uma verdade diferente. Na ausência de sujeito e objeto, esta não-
dualidade está também além do que não é mais possível ir; é uma experiência na qual as noções
de sujeito ou de objeto, de um viajante e de um início, do eu e do outro desapareceram. Esta
experiência é mahamudra , é madhyamaka, é maha-ati.
Esta experiência não tem nada de intelectual. É difícil de falar do silêncio, da
simplicidade e o discurso que mostra isso pode tornar-se complicado, mas é, entretanto
importante entender de que falamos de uma experiência muito simples. É o estado natural de
nossa mente. É um ensinamento para se realizar, para vivenciar. O obstáculo é tomar a
compreensão intelectual que é relativa pela experiência da realidade; nos tornaríamos assim
incuráveis. Esta impressão de compreensão, com a presunção e a arrogância que ela proporciona,
coloca-nos em uma situação sem saída: não há pior ignorante do que aquele que acredita saber.
Tocar e aceitar esta experiência é difícil; há em nós uma espécie de resistência, de
defesa, de obstáculo, de impedimento. Na transmissão do mahamudra segundo a tradição Changpa,
falamos de quatro obstáculos à experiência do mahamudra. Diz que ela é muito próxima, muito
profunda, muito simples e muito maravilhosa... Muito próxima para ser reconhecida; muito
simples para acreditarmos, muito profunda para ser agarrada; muito maravilhosa para ser
compreendida.
Entretanto, podemos nos aproximar desta natureza inacessível. Na prática estamos sentados,
relaxados, distendidos e largamos nossa mente, a repousamos. Não se trata de observar a mente
nem de modificá-la nem ficar num estado de torpor, de opacidade, de sonolência. A mente assim,
naturalmente, tem uma qualidade transparente, aberta e lúcida...
Esta experiência da mente encontra-se na continuidade de sua natureza essencial. A
transparência da mente, sua insubstancialidade, seu caráter aberto, sem centro nem periferia,
é sua vacuidade. A mente não é somente vazia, no sentido de inerte, de opaca: existe
certamente a claridade, uma luminosidade-lúcida que permite o conhecimento, a inteligência.
Esse é seu segundo aspecto. Nesta luminosidade aberta, nesta transparência luminosa, todas as
espécies de experiências manifestam-se e cuja variedade é literalmente ilimitada, o que
constitui o terceiro aspecto: a “sabedoria ilimitada” ou “ausência de obstáculo”, de entrave.
Esses três aspectos constituem as três características da mente: “em essência vazia, de
natureza luminosa e com manifestações ilimitadas”. Esses três aspectos, ao nível racional são
também suas três qualidades: a abertura, a claridade e a receptividade-disponibilidade. No
nível último são os três corpos do Budha – o corpo absoluto, (dharmakaya), o corpo de
experiência perfeita, (sambhogakaya ) e o corpo de emanação (nirmanakaya).

Esses três corpos, essas três qualidades essenciais da mente não são de nenhum modo alguma
coisa que falta produzir, induzir. Elas são a mente em seu modo essencial. A mente é
essencialmente, naturalmente aberta e livre: é sempre dharmakaya. Ela é espontaneamente
luminosa e lúcida: para sempre sambhogakaya . Tendo indefinidamente esta sabedoria, esta
experiência ilimitada, sem entraves, ela é perpetuamente nirmanakaya. Ela foi sempre desde a
origem a natureza dos três corpos. Trata-se de reconhecer, de viver esta presença.
O reconhecimento dos três corpos na mente é a forma última de vipasyana; e a forma última
de samatha é permanecer de maneira estável e permanente na experiência desta presença última.
Viver esta presença, a cultivar constantemente, o que quer que façamos, é o yoga último, a
última prática, seguida pelos Budas dos três tempos.
Distinguimos freqüentemente quatro principais desvios relativos à visão:
- A primeira é utilizar a vacuidade como rótulo: - “tudo é vazio” – e colocá-la em tudo; é um
grande desvio.
- A segunda é compreender a vacuidade ou a experiência da natureza da mente como alguma
coisa a conhecer, um objeto do conhecimento que possamos compreender e nos apropriar.
- A terceira é utilizar a prática como um remédio que aplicaremos para aniquilar alguma
outra coisa.
- A última reside no fato de considerar e utilizar a prática como uma via para chegar à
um objetivo.

Logo os desvios são, considerar a prática da vacuidade, como alguma coisa a conhecer, uma
etiqueta que fixaríamos, um remédio, ou uma via, algo alhures, alguma outra coisa... A mente,
profundamente, é naturalmente vazia e luminosa, mas dizer-se que ela é vazia e luminosa,
tentar impor, aplicar ao modo de ser natural da mente uma noção de vacuidade, de luminosidade,
do que que seja, é uma forma de desvio.
Todos os erros surgem sempre por falta de preparação, de desenvolvimento de méritos, de
conhecimento imediato. Insistimos muito sobre as preparações fundamentais como meio de evitar
todos esses desvios. Um outro ponto essencial é de que nossa mente tenha sido amadurecida pela
influência espiritual da iniciação, da linhagem, e que a prática possa se desenvolver na
relação privilegiada com um lama competente. Se há preparação, confiança, e esta relação,
nesse momento podemos navegar evitando os escolhos e os diferentes obstáculos.

A meditação
A progressão
Uma compreensão errônea da progressão seria uma visão “linear”, uma sucessão de práticas
correspondentes a vários níveis cada vez mais elevados. A visão exata é “circular”, no sentido
em que os princípios fundamentais da meditação silenciosa, presentes desde o início do
caminho, acompanham-nos e são redescobertos e aprofundados graças aos diferentes métodos dos
quais eles são a seiva.
A meditação samatha-vipasyana está no início, no meio e no fim do caminho.
No início, samatha é atenção. É uma capacidade de estar atento de uma maneira seguida e
estável a um objeto, à espiração. Vipasyana é mais a qualidade aberta, livre da mente, como a
experiência que temos nos momentos de pausa, no instante de liberdade durante o qual a mente
vê claramente “como é” – o que é literalmente o sentido de vipasyana. Um outro tipo de
vipasyana, “analítico”, existe. Ele é necessário, importante e pode ser utilizado como
auxiliar em certos momentos, sendo entendido pelo menos, em nossa tradição, que o acento é
colocado na aproximação contemplativa. Podemos nos perguntar sobre o porque da mente, indo por
um caminho analítico, colocando um certo número de questões, de exames, de investigações, de
perguntas ou questionamentos, mas essa busca esbarra em alguns limites. Porque se
interrogarmos sobre a mente e sobre a natureza da mente, a natureza do que somos, chegamos a
um paradoxo, uma espécie de limite intransponível que reside no fato de que somos aqueles que
nos buscamos. É aí que reside, além disso, algo do “mistério da mente”, que é um mistério
muito bem guardado porque o buscador é aquele que o guarda.

Descrição do Ngöndro [...]


(Aqui o autor descreve o Ngöndro)
Após os Ngöndro, existe uma etapa suplementar chamada “a prática de um Yidam”. Yidam é a
“deidade da mente”, sua natureza divina, seu estado não-dual. Os Yidams não são outros deuses,
em algum lugar. A deidade esta além da noção de “eu” e do outro; é a natureza da mente sob uma
forma, uma representação simbólica. Uma prática como a Sadhana de Tchenrezi, finalmente,
introduz-nos ao Mahamudra, porque a natureza da deidade é precisamente o Mahamudra. É uma
prática extremamente profunda, um “meio hábil”, que opera um processo de transmutação no qual
os véus, nossas paixões, nossas fixações, nossa confusão habitual são integradas à prática que
as transforma, as transmuta. Este é o sentido do yoga da divindade, da prática de um Yidam 1.
Na base desta prática vem em seguida alguns outros yogas espirituais chamados os “Seis
Yogas de Naropa”, os Seis Yogas de Niguma” – “Tummo”, “O Corpo Ilusório”, “O Yoga do Sonho”,
“O Yoga da Clara Luz”, “Da Transferência da Consciência” e do “Bardo”. Esses yogas são também,
particularmente meios e métodos para nos aproximar da experiência de felicidade vazia que é a
natureza de mahamudra.
Finalmente, a prática mais profunda, a mais fundamental, é a experiência samatha e
vipasyana no nível essencial. A experiência de samatha é então a mente do imediato ou uma
certa estabilidade na experiência imediata e Vipasyana, nesse momento, é a visão do “como”
desta experiência e o reconhecimento nela dos “três corpos do despertar”. [...]

Do livro: Dharma – La Voie du Bouddha – tradução do texto: Flávio Capllonch Cardoso


1. Os yidams (tib. yi dam, mente sagrada ou mente do compromisso) são as divindades
meditacionais (sânsc. ishta-devata) do buddhismo Vajrayana. Essas “divindades” não são deuses no sentido
comum, mas mentes iluminadas (sânsc. buddha) que representam aspectos específicos da transformação
interior, sendo visualizadas durante as liturgias (sânsc. sadhana) tântricas. Esta prática, chamada yoga
da divindade ou união com a divindade (sânsc. devata-yoga, tib. leneljor / lha’i rnal ‘byor) é de muita
importância no budhismo Vajrayana pois utiliza simultaneamente os meios hábeis e a sabedoria. Os meios
hábeis (sânsc. upaya) são os métodos para alcançar a iluminação e trazer benefício a todos os seres,
enquanto a sabedoria (tib. prajna) é a consciência que compreende a natureza vazia dos fenômenos.
O termo “divindade” é uma tradução parcial e imprecisa de yidam, que literalmente significa “mente
sagrada”. No tantrismo, a “divindade” é uma manifestação da dimensão pura do próprio indivíduo, não de
algo externo. A forma irada da “divindade” representa a natureza dinâmica da energia. A forma alegre [com
consorte] representa a sensação de êxtase; e a forma pacífica representa o estado calmo da mente sem
pensamentos.
Chögyal Namkhai Norbu

2
A AÇÃO

Os Samayas do Mahamudra
Virupa
Extrato dos Cantos de Virupa nas: Oito Coleções de Doha- Tradução: comitê Lotsawa

Os samayas do Mahamudra dos quais não devemos nos separar:


Mesmo se, provido de uma profunda confiança, não esperes nada dos budhas relativos*.
Não abandones o grande desenvolvimento de méritos e dedique o teu melhor à sua realização.
Mesmo se, a mente amedrontada pelas realidades da existência cíclica desapareceu, e que
estás livre de medos,
Ajas preservando-te dos atos negativos, mesmo os mais sutis.
Mesmo se, vazios e sem limites, os fenômenos são reconhecidos como semelhantes ao espaço,
o desejo, o ódio, o agarrar... Abandone radicalmente todos os apegos.
Mesmo se a natureza essencial, a grande abertura sem limites for realizada, enquanto uma
estabilidade não for obtida, guarde em segredo suas experiências e sua realização.
Mesmo se a ausência de diferença última entre eu e o outro foi realizada,
Aspire realizar no relativo o grande desígnio: servir os seres.
Mesmo dotado da profunda convicção de conformar-se com um guia, talvez outro seja
necessário.
Leve teu lama de grande bondade no alto de sua cabeça.
budhas relativos*: por oposição à experiência direta do despertar.
Conclusão
O ABSOLUTO NÃO-DUAL
Em sua obra “A via da felicidade”, Lama Denys apresenta a experiência primordial de Mahamudra-Dzogchen
numa aproximação universal além das diferentes tradições e de suas formulações conceituais.
Esta experiência absoluta realça uma presença não-conceitual que não é redutível a nenhuma formulação.

Por definição, o absoluto não depende de nada. Desprovido de alteridade, dito de outra
maneira, sem dualidade ele se basta a si-mesmo. Assim ele é o estado cognitivo que precede o
apreender dual, o que cria a impressão de separação entre um sujeito observador e dos objetos
observados. O absoluto vive na liberação desta apreensão, além da ilusão do eu e do outro, do
sentimento daqui e dali. Para o Dharma, o estado absoluto é nossa natureza desperta ou
natureza Búdica. Sua experiência de não-dualidade é última ou final, no sentido em que esta
não é mais “alguém” para ir além de “alguma coisa” que lhe seja diferente.

“Absoluto” é um termo convencional para designar a natureza da mente-experiência que vive


no não-agarrar, no não-suporte conceitual.
Esta experiência libertadora final pode-se conceber como tendo três qualidades ou
dimensões:
Abertura absoluta, sem centro nem periferia, ou então cujo centro está em tudo e a
periferia em nenhuma parte.
A presença perfeita da experiência não dual, à qual nada falta.
A compaixão infinita, livre de todo apego e de todo bloqueio.

Rangjung Dordje, o terceiro Gyalwang Karmapa, um dos principais mestres de nossa linhagem
que foi detentor das tradições Mahamudra e do Dzogchen, disse ao falar desta natureza
absoluta:
Nada pode exprimi-la como sendo “isto”.
Nada pode limitá-la como outra além “disto”.
Esta natureza, transcendendo a intelecção, é incondicionada;
Possa seu sentido último tornar-se certeza.
Se ela não for realizada, giramos na roda das ilusões;
Se ela for realizada, Budha não está em outro lugar;
Ela é tudo, e nada é outra.
Realidade fundamental, substrato universal,
Possa o que a distorce ser compreendido.
O substrato universal, primordial que evoca Rangjung Dordje, não é redutível a um nome,
próprio ou comum, nem a uma formulação conceitual qualquer que seja. É a energia experiencial
da Clara Luz, o dinamismo cognitivo anterior à separação sujeito-objeto. Dum ponto de vista
prático, a energia e o dinamismo em questão coincidem com a dissolução do apego conceitual que
abre à experiência do substrato sem nome nem forma, Alaya em sânscrito, no qual reside a
conjunção dos opostos. Liberando-se da ilusão das representações, produz-se a abertura à
experiência primordial que chamamos também a eterna presença. Esta percepção vive na suspensão
do mental discursivo, revela a presença do imediato ou a instantaneidade primordial.
A experiência absoluta da presença não-conceitual pode ser qualificada de imanente ou de
transcendente. Imanente, porque a presença tem nela mesma a natureza onipresente e intrínseca
da mente-experiência. Transcendente, porque ela ultrapassa o ego e as ilusões dualistas
sujeito-objeto que a estruturam.

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