Você está na página 1de 6

A teoria gerativa e O Enigma de Kaspar Hauser

The generative theory and The Enigma of Kaspar Hauser


Roberson A. S. Vieira1

RESUMO: Este artigo tem por finalidade especular a hipótese da teoria gerativa em
situações reais de aquisição tardia da linguagem, como ocorreu em 1828, na cidade
de Nuremberg, através da competência linguística inata, do dispositivo de aquisição
de linguagem e da Gramática Universal, as quais foram propostas por Noam
Chomsky, utilizando-se do filme O Enigma de Kaspar Hauser, do diretor Werner
Herzog, que retrata a história de um jovem que durante toda sua infância e parte da
adolescência não teve sequer contato algum com outro humano. Este presente
trabalho é de aspecto descritivo de estudo de caso, com caráter qualitativo.
Palavras-chave: Aquisição da linguagem; Competência linguística; Gramática universal; Gramática
gerativa.

ABSTRACT: This article aims to speculate the hypothesis of the generative theory in
real situations of late language acquisition, as occurred in 1828, in the city of
Nuremberg, through innate linguistic competence, language acquisition device and
Universal Grammar, which were proposed by Noam Chomsky, using the movie The
Enigma of Kaspar Hauser, directed by Werner Herzog, which portrays the story of a
young man who, throughout his childhood and early adolescence, had no contact at
all with another human. This present work is a descriptive case study with a
qualitative aspect.
Keywords: Language acquisition; Linguistic competence; Universal grammar; Generative grammar.

Introdução

Através da retratação do histórico caso de Kaspar Hauser, apresentado no


filme O enigma de Kaspar Hauser, que conta a história de um jovem que apareceu
na cidade de Nuremberg em 1828, apenas com uma carta em suas mãos, após ter
passado enclausurado toda a sua infância e parte da adolescência, sem motivo
aparente, e sem ter tido algum contato social ou verbal, é possível levantar diversas
hipóteses sobre a aquisição tardia da linguagem, entre elas pode-se utilizar da
teoria gerativa de Noam Chomsky. Tal teoria será a base para a especulação da
aquisição e desenvolvimento tardio da linguagem do personagem. Segundo
Chomsky, o ser humano é dotado de uma carga genética cuja manifestação envolve
a faculdade inerente da linguagem em gerar expressões de uma língua, em outras

1
Acadêmico da UTFPR do curso de Letras – Português/Inglês, Campus Pato Branco – PR

1
palavras, todo individuo já nasce com a capacidade biológica de desenvolver a
linguagem. Porém, esta capacidade inata da linguagem não é suficiente para que
um individuo consiga formular e desenvolver frases coerentes, pois as sentenças de
uma língua não são enunciadas aleatoriamente, todas as línguas possuem regras
gramaticais e um sistema combinatório finito de palavras para a formulação de
frases. Em toda via, Chomsky propôs também uma teoria chamada de Gramática
Universal, que afirma que há determinados princípios comuns em todas as línguas
naturais, como a existência de vogais, por exemplo, a qual possibilita a aquisição da
língua nativa. Chomsky também propõe que a criança possui um dispositivo de
aquisição de linguagem (DAL), que é acionado através de frases ou falas,
denominado input, e gera como resultado a gramática da língua a qual está exposta.
Este trabalho é uma analise de forma de estudo de caso, de aspecto
descritivo com caráter qualitativo. Utilizando-se como principal ferramenta o filme O
Enigma de Kaspar Hauser de Werner Herzog (1974), assim como outra referência
sobre a vida do personagem, Sobre a vida de Kaspar Hauser – Escrito por ele
mesmo (2009)2. Para analise dos dados foram utilizados recortes do estudo,
conceitos e definições que servirão como base para o entendimento da
interpretação (dispositivo de aquisição de linguagem, competência linguística,
gramática universal, gramática gerativa, input, pobreza de estímulo).

A teoria gerativa e a aquisição da linguagem

Por volta do fim dos anos 50, Noam Chomsky, linguista americano,
juntamente com outros linguistas do Instituto de Tecnologia de Massachusetts
(MIT), introduziu uma proposta teórica linguística que associa a mente/cérebro e a
língua, nomeada Teoria Gerativa, também conhecida como Gramática Gerativa, tal
teoria defende que o ser humano já nasce com a capacidade inata e instintiva da
linguagem, de acordo com Margarete e Carmen (2017):

Para explicá-las, ele considera a hipótese de que existe, na mente


humana, um módulo linguístico responsável pela compreensão e
formação de expressões linguísticas, dedicado somente à língua, o
qual chama de ‘faculdade da linguagem’. Segundo ele, essa faculdade
é inata nos seres humanos, e a teoria que designa seu estado inicial
denomina-se Gramática Universal.

Esta teoria tem como objeto de estudo a Gramática Universal (GU), a qual
segundo Vitral (1998) estabelece “aspectos sintáticos que são comuns a todas as
línguas do mundo", como o fato de toda a língua possuir um sujeito, mesmo que
oculto como na língua portuguesa, e por consequência disto, a GU não tem relação
com analise da língua, mas sim da linguagem.
Chomsky também propôs que as crianças possuem um dispositivo de
aquisição de linguagem (DAL) em que elas selecionam as frases e regras
gramaticais e tomam para si como próprias, através daquilo que ouvem dos adultos
2
http://kasparbio.blogspot.com/2009/04/sobre-vida-de-kaspar-hauser-escrito-por.html

2
(input). Porém é necessário um estímulo, a falta deste é um problema conhecido
como a pobreza de estímulo, ou problema lógico da linguagem, Segundo Augusto
(2005, p. 255), citado por Daniel (2014, p.35):

O problema lógico da linguagem, ou pobreza de estímulo, consistiu


em um norteador das preocupações assumidas pelos gerativistas. O
fato de crianças dominarem uma língua natural com surpreendente
rapidez, apesar da ausência de evidência negativa, da frequência
com que sentenças incompletas ou interrompidas são usadas pelos
adultos, somado ao fato de que o input a que a criança é
efetivamente exposta é finito [...] Isto é, a informação que se faz
necessária e não está disponibilizada no input linguístico recebido
pelas crianças é atribuída a princípios linguísticos inatos.

Utilizando-se desta teoria pode-se associar ao fato de que Kaspar Hauser ter
conseguido aprender a falar e escrever, mesmo que tardiamente, através deste
input e DAL, pois apesar de uma dificuldade inicial, ele conseguiu se adequar a
língua falada pelos seus tutores. Porém a falta de estímulo durante o período crítico
de aprendizagem pôde ter comprometido seu desempenho.

Competência e Desempenho

Chomsky, segundo Paula (2006) “define a competência linguística como uma


habilidade inata de um individuo tem de produzir, compreender e reconhecer a
estrutura de todas as frases de sua língua”, tendo relação com a criatividade do
falante de criar, a partir de um número finito de regras já adquiridas pelo individuo
(GU). Enquanto que o desempenho toma parte da performance linguística, ou seja,
leva em consideração a interação do falante pelo uso efetivo da língua em situações
concretas. De acordo com Veronez (2016):

A gramática universal, juntamente com a competência linguística,


tem a ver com o aspecto criativo (intuição), dessa maneira, Chomsky
(1978) defende a gramática gerativa afirmando que ela tenta realizar
uma composição explícita dos processos criativos da linguagem,
uma tentativa que não foi elaborada pelas gramáticas tradicionais.

Dessa forma podemos concluir que a competência está apenas relacionada a


parte intuitiva da gramática, enquanto que o desempenho está relacionado com o
aspecto social, tendo diversas características envolvidas, como Botha (1981) citado
por Margarete e Carmen (2017) elabora:

a)sua competência linguística ou conhecimento linguístico


inconsciente;
b) sua natureza e limitações relacionadas ao discurso de produção e
mecanismos de percepção de fala e a aspectos cognitivos, tais
como memória, atenção, concentração e outras capacidades

3
mentais;
c) seu ambiente social e status;
d) o ambiente dialetal onde está inserido;
e) ao seu idioleto e estilo individual;
f) o conhecimento factual e a visão do mundo em que vive;
g) seu estado de saúde, estado emocional e outras circunstâncias
acidentais semelhantes.

Kaspar Hauser e o gerativismo

O filme de Werner Herzog nos traz a história de um jovem que foi


aprisionado, não se sabe com qual idade, em no que parece ser um porão, onde era
alimentado apenas com água e pão, e sem nem nunca ter visto quem o alimentava,
possuindo apenas dois cavalos e um cachorro de madeira, como é descrito na sua
autobiografia, para se distrair. Certo dia um homem, que possivelmente era seu
captor, começou a lhe ensinar a escrever, pegando-o pela mão e repetindo a
palavra “escrever”, e falando sobre o cavalo, repetiu várias vezes até que Kaspar
repetiu, “cavalo”. Após essa compreensão de Kaspar, seu captor retirou-o de sua
prisão, e pôs-se a leva-lo nas costas, mas devido ao cansaço resolveu ensiná-lo
como caminhar, durante uma pausa ele repete a frase “Devo me tornar tão bom
cavalheiro quanto meu pai foi” (00:15:39), neste momento Kaspar gravou a palavra
“cavalo” e “pai”. Seu captor largou-o em meio a uma praça na cidade de Nuremberg,
na Alemanha, no século XIX, deixando-o consigo uma carta. Parado por tanto
tempo no mesmo lugar, chamou a atenção e a curiosidade dos habitantes, até um
dos moradores resolver se aproximar e perguntar o que ele queria ali, Kaspar
apenas pronunciou a palavra “cavalo” e a frase “como meu pai foi”, O homem
perguntou-lhe se vinha de Regensburg, ao que ele repetiu a palavra “Regensburg”.
Ele foi então encaminhado ao oficial da cavalaria, a quem a carta estava
endereçada. Ao ouvir a palavra “estrebaria”, Kaspar associou a palavra “cavalo”.
Ao tentarem descobrir quem ele era e o que fazia ali, os oficiais leram a carta
que dizia que Kaspar havia sido abandonado pela mãe e deixado a porta da casa de
um trabalhador que não possuía o suficiente para cuida-lo, e que não devessem
maltrata-lo, pois ele não sabia se comunicar, mas que compreendia rapidamente
quando estimulado. A partir disso, rapidamente as pessoas quiseram saber sobre a
vida dele, e aos poucos foram lhe ensinando algumas coisas, com a sua interação
com as crianças e adultos, com o passar do tempo, Kaspar começou demonstrar
habilidade de comunicação, como mencionado por Margarete e Carmen (2017):

4
Examinando o comportamento linguístico do personagem, observa-
se que, com o passar do tempo, ele conseguiu elaborar algumas
sentenças complexas para expressar seus pensamentos e
sentimentos, mostrando razoável domínio sintático, fonético e
semântico.

Mesmo que Kaspar Hauser tenha adquirido a habilidade de se comunicar,


possuía ainda problemas na capacidade de abstração, como num diálogo com seu
tutor, mostrado no filme (01:01:06):

(Kaspar): – Não entendo. Só um homem muito grande poderia ter


construído isso (ele olha para a torre). Eu gostaria de conhecê-lo.
(Tutor): – Não é preciso ser tão grande para construí-la, pois existem
andaimes. Entenderá quando o levar a uma construção. Você morou
nesta torre, atrás daquela janela. Não se lembra?
(Kaspar): – Isso não é possível, pois só tem alguns passos de
largura. Quando estou dentro do quarto e olho para a direita, a
esquerda, a frente e para trás, só enxergo o quarto. Quando olho
para torre e depois me viro, a torre desaparece, então o quarto é
maior que a torre.

Houve também a princípio o problema da indistinção entre sonho e realidade


(01:10:55), quando Kaspar comentou que havia tido um sonho, e seu tutor diz que
ele fez progresso, pois “Antes você não diferenciava sonho de realidade” (01:11:10),
isto pode ter acontecido pelo fato de ter perdido o tempo ideal de aprendizagem
quando ainda criança. E segundo Botha (1981), citado por Margarete e Carmen
(2017) “seu desempenho linguístico, ao que tudo indica, sofreu limitações devido a
fatores relacionados à aquisição tardia da linguagem”.
A rapidez com a qual o personagem teve de produzir sentenças em sua
língua materna se dá ao fato de que através da pobreza de estímulo, juntamente
com a DAL, que segundo Sacks (2005, p. 66), citado por Margarete e Carmen
(2017), havia “suspeitas de que ele já houvesse aprendido um pouco da língua
antes de ser confinado, algo relativo ao conhecimento linguístico ‘de uma criança de
três anos’”.
Embora a teoria gerativa possa explicar como o personagem pôde adquirir a
habilidade de fala e escrita tardiamente, ainda há enigmas em muitos aspectos, pois
não há muitos registros da história completa de Kaspar.

Considerações finais

Examinando o percurso linguístico do personagem, é possível perceber a


hipótese de realmente ter acontecido uma aquisição tardia de linguagem através da
teoria gerativa, porém, sofrendo algumas limitações, como o caso de incapacidade
de abstrair algumas informações. Todavia, com a morte prematura do personagem,
é impossível ter conhecimento de uma possível superação das suas limitações.
O personagem após ter tido interação social foi capaz de acessar as
gramáticas de sua língua mãe, através do input, mesmo com a uma pequena
porção de estímulos (pobreza de estimulo), se adequando ao meio social.

5
REFERENCIAS

HERZOG, Werner. O Enigma de Kaspar Hauser. Título original: Jeder für sich und
Gott gegen alle [filme – vídeo]. Direção e produção: Werner Herzog. Alemanha
Ocidental. 1974. Cor. 110 min.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Wplj0ITkwho Acesso em: 23 nov.
2019.
DE SOUSA, A. R. B. A teoria inatista de aquisição da linguagem.
Disponível em: http://www.partes.com.br/2012/06/24/a-teoria-inatista-de-aquisicao-
da-linguagem/. Acesso em: 26 nov.2019.

SALERNO, D. O. Instrução por processamento e a aquisição de adjetivos do


inglês como L2 por alunos brasileiros.
Disponível em:
http://bdtd.ibict.br/vufind/Record/USP_85eda6af88244d9a0e4aab54d0914c62
Acesso em 26 nov. 2019.

DE SOUSA, A. R. B.; PAIVA, R. F. Aquisição da Linguagem à luz do Modelo


Gerativista.
Disponível em: http://www.profala.com/artpsico67.htm
Acesso em 26 nov. 2019.

HAUSER, Kaspar. Autobiografia. In: Christian Burgois (Org.). Kaspar Hauser: écrits
de et sur Kaspar Hauser, 2003. Tradução de Elton P. A autobiografia de Kaspar
Hauser.
Disponível em: http://kasparbio.blogspot.com/2009/04/sobre-vida-de-kaspar-hauser-
escrito-por.html Acesso em 26 nov. 2019.

VITRAL, L. O que é gramatica gerativa?


Disponível em:
http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/anais_lingua_portuguesa/article/view/
8045 Acesso em 26 nov. 2019.

FIORIN, José Luiz et al. Introdução à Linguística I. Objetos teóricos 6. Ed. São
Paulo: Contexto, 2010 227 p.

VERONEZ, M. Relações e reflexões entre a competência linguística de Noam


Chomsky e a competência discursiva de Dominique Maingueneau.
Disponível em:
http://www.seer.ufu.br/index.php/dominiosdelinguagem/article/view/32580 Acesso
em 29 nov. 2019.

Você também pode gostar