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O Tatu, a Amazônia e minha azia

A Amazônia está queimando, mas sinto mais de perto a minha azia. Queima, queima,
queima. Não posso tirar o café. Acordo às cinco da manhã para estar na escola às sete. Acordar,
tomar banho, comer, me vestir, escovar os dentes, pegar o ônibus lotado para estar na escola às
sete. Eu não posso tirar o café. Se eu tirar o café, não dou conta. Se não der conta, não pago as
contas. Se não pagar as contas e aí? Não, eu não posso tirar o café. Espero que o Sonrisal dê
conta. Mas já estou saindo do assunto. Voltando. A Amazônia está queimando. Penso nisso
enquanto volto para casa, após conversar com o professor de biologia lá da escola, onde leciono
matemática.

Lembro que, quando eu era criança, a gente já fazia uns cartazes e pendurava na escola
nas feiras de ciências. Títulos como: A IMPORTÂNCIA DA AMAZÔNIA, ou, A MAIOR
FLORESTA TROPICAL DO MUNDO, em letras maiúsculas cobertas por hidrocor, seguidos
de gráficos, imagens e textos. A gente falava da importância da Amazônia para o meio ambiente
e, também, de sua grande variedade de animais e plantas. A moda era dizer que ela era o pulmão
do mundo. Mesmo assim, depois de decorar tantas falas sobre assunto tão importante, o
importante mesmo era a nota. Eu queria dez na feira de ciências, pois precisava equilibrar as
notas vermelhas das matérias que tinha dificuldade. E eu precisava equilibrar as notas
vermelhas ou então minha bunda é que ia ficar vermelha, com as chineladas de mainha. A
Amazônia já queimava quando eu era criança, mas as chineladas eram mais palpáveis do que
os gráficos de queimadas em nossos cartazes.

Esse ônibus parece mais lotado hoje. Tem gente aqui que não tem cara de quem pega
ônibus. Alta da gasolina, talvez? Não só da gasolina. Tá tudo alto, menos o salário da maioria.
“Vem pra rua protestar pela Amazônia”, meu irmão mais novo chamou. No meio da semana?
Se eu faltar um dia na escola perco nove aulas. São noventa reais a menos. Sabe o que dá para
comprar hoje em dia com noventa reais? Nada! Mas é melhor que nada. Cheguei ao meu ponto.

A vida está difícil e meu estômago tá queimando mais que o normal, parece até... a
Amazônia. É que o professor de Biologia me disse que lá sempre queima nessa época do ano.
Queima mesmo todo ano, mas esse ano a coisa tá pior. A vida tá pior pra todo mundo, irmão,
não é só pra bicho, não. Penso enquanto janto meu cuscuz com ovo, enquanto tomo meu suco
de goiaba. Mas, mesmo assim, eu tenho pena dos bichos. Eu vi a foto do bombeiro dando água
pro tatu. Eu nunca vi um tatu de perto. Onde eu moro não tem tatu. Eu nem sei se dá para
abraçar um tatu, será que ele deixa? Sei que quando vi a foto, eu quis abraçar o tatu. Eu quis
ser o bombeiro. Eu quis dar água para o tatu e para todos os outros bichos. Eu quis jogar água
no fogo todo. Apagar a queimada duma só vez. Eu também queria tomar um remédio que fizesse
minha azia sumir de vez, mas querer não é poder. Querer não é nada. Querer é só querer. Poder
é que é poder. Querer sem poder é só tristeza e raiva.

Enquanto lavo a louça, imagino o protesto do meu irmão. Sonho em estar lá, rodeado
por uma multidão de insatisfeitos. Todos com aqueles cartazes da minha infância. A
IMPORTÂNCIA DA AMAZÔNIA. O PULMÃO DO MUNDO... Chegaríamos ao congresso
nacional, haveria conflito, não dá para evitar. De cima, vejo como num filme. Bomba de efeito
moral. Bala de borracha. Cacetete. Cavalaria. Tiro de verdade. Bomba de verdade. Gente
sangrando. Gente correndo. Gente gritando. Gente apanhando. Gente morrendo. Gente
matando. E a Amazônia em chamas. E o Brasil em chamas. E o futuro em cinzas.

Tomo uma Magnésia Bisurada e coloco o despertador para as cinco da manhã. Amanhã
o hoje volta. Amanhã tem feira de ciências lá na escola. O tema é: A IMPORTÂNCIA DA
AMAZÔNIA. Já pegando no sono, começam a se misturar imagens de reportagens com
trabalhos escolares. Fogo. Mato. Bichos. Índios. Números. Notas. Cartazes. Tabelas. Gráficos.
Estatística. E eu, que nunca de perto vi um, durmo e sonho com o tatu.

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