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ALGUMAS CARACTERÍSTICAS DA CRIANÇA AUTISTA E DO SEU “JEITO DE FUNCIONAR NO MUNDO”

Gizele Almeida1
Apresento neste texto a compilação de um excelente artigo2
publicado pela psicóloga Profa. Dra. Paula Ramos Pimenta3, com quem
tive a oportunidade de um pouco aprender sobre a estrutura autista,
quando realizei um de meus estágios no CEPAI/BH, pela UFMG, em 2009.
Desde que a primeira descrição do autismo foi proposta por
Leo Kanner em 1943, poucos avanços foram obtidos quanto à
identificação de sua etiologia. Inúmeras são as hipóteses e poucas são as
comprovações.
Diante disso, basicamente, a Dra. Paula Pimenta procurou
elucidar no referido artigo as contribuições da teoria psicanalítica
lacaniana para o tratamento do autismo, enfatizando que a multiplicidade dos comportamentos autistas nos faz
considerar que esta se trata de uma síndrome fora-das-normas, ou seja, que o autista deve ser compreendido para
além de sua condição cognitiva, posto que se encontra o tempo todo num árduo trabalho de defesa diante do Outro,
(este Outro que pode aqui ser compreendido como as pessoas e/ou os lugares especiais para este sujeito).
Pois bem, o objetivo deste resumo é o de apresentar, de forma mais acessível e clara, a riqueza teórica do
artigo da Dra. Paula Pimenta aos profissionais da educação, aos familiares e cuidadores de crianças autistas, que,
juntos, são os principais atores na promoção do laço social, por serem capazes de convidar o autista a sair do seu
fantástico mundo interno e explorar um pouquinho do mundo externo, ou seja, do social.
Sendo assim, traço aqui algumas características da criança autista e do seu “jeito de funcionar no mundo”,
que vão para além da nosografia psiquiátrica estabelecida pelo CID 10 e DSM V, procurando, para tanto, seguir
fielmente ao exposto pela Dra. Paula Pimenta. Iniciemos, pois.
Em primeiro lugar, falaremos sobre a “esquiva” do autista do mundo: o mais marcante é o trabalho
defensivo do autista em relação ao Outro, que é muito grande. Isso nos indica que as intervenções com tais crianças
devem ser, portanto, cautelosas, realizadas com bastante respeito e tolerância, em vez de impostas. É preciso
convidar o autista a estabelecer um laço social, e isso não significa apresentar à criança “comportamentos ajustados
às normas sociais”, mas, sim, auxiliá-la para que possa consentir com este social que vem do Outro (dos pais, da
escola, da cultura, etc.) e, a partir daí, se apropriar dele.
Outra questão é o corpo do autista. Para a psicanálise, o corpo de cada um de nós é constituído, e não
dado. Ele se diferencia do organismo, o que fundamenta a idéia de que somos um “eu” diferente dos outros. Nesse
sentido, os autistas não têm essa ideia de “corpo”, já que essa delimitação entre um “eu” e um “outro” não ocorre
no autismo. Isso nos leva a compreender um pouco mais sobre esse “corpo” autista, como exemplifico a seguir.
Quanto ao corpo e aquilo que pode afetá-lo, observa-se que é frequente na criança autista uma certa
insensibilidade à dor, mas isso não significa que ela não exista, pois pode apenas não ter sido reclamada. Também
não se observa no autista um interesse pela própria imagem. Algumas crianças, por exemplo, só se interessam pelos
buracos nela contidos: boca, olhos, nariz, etc.
Em geral, elas também possuem um jeito diferente de se relacionar com os objetos que entram e saem
desse corpo: algumas crianças autistas precisam ser alimentadas, senão morrem de fome; outras evacuam
escondido; outras seguram no pênis ou vagina para sinalizar desejo mictório; outras, ainda, apresentam seletividade
alimentar e se interessam por um padrão restrito e mutante de alimentos (hoje só come biscoito, na semana
seguinte só come arroz com feijão, dias depois só quer frutas, etc.).
Quanto ao corpo no ambiente, Dra. Paula Pimenta ressalta que a relação dessas crianças com o espaço
estabelece-se, com freqüência, mediante circuitos inteiramente obrigatórios, devendo-se passar somente em
determinados lugares ou andar de determinada forma. Configuram-se, aí, seus rituais. Na prática, observa-se uma
ritualização na vida: a criança gosta sempre do mesmo desenho, ou brinca com o mesmo brinquedo. Seus
movimentos de vai-e-vem com as pecinhas dão indícios de um comportamento estereotipado e, à primeira vista,
pouco criativo, mas que, na verdade não é, posto que a criança, enquanto assim brinca, viaja por seu mundo interno.
Outra questão relacionada ao corpo no ambiente é a indiscriminação espacial, ou seja, a ausência de
sistemas de oposição linguística: aqui e ali. Também há distorções na temporalidade, o que parece desconectar a
criança do tempo. Assim, ela brinca muito tempo com o mesmo brinquedo, conversa sem respeitar o tempo da fala,
o que produz uma comunicação com um lapso de tempo tal que parece desconectar uma ideia da outra.
Aproveito para explicitar um pouco mais sobre a fala, esta que se dá de uma maneira fracionada, isso
quando não produzida em eco. Por vezes, também ocorre de o autista usar sempre uma mesma palavra para
expressar uma gama de ideias semelhantes. Por exemplo, quando a criança quer que a carreguem, ela diz “pega”;
quando quer uma fruta, diz “pega”; quando quer que a devolva um brinquedo, também diz “pega”.
Em cada caso, a fala aparece com roupagens diversas: uns não falam, outros falam no tempo certo; outros
começam a falar tardiamente, por volta dos três anos; outros repetem (ecolalia); outros se autorreferem na terceira
pessoa (por exemplo: “Pega bolo para Maria”, ou “João xixi”).
Com relação à exploração do ambiente, este corpo costuma se apresentar com uma indispensável
manipulação de objetos. Não basta ver, tem que tocar. E, não basta tocar, esse toque geralmente é repetido várias
vezes, até que se apreenda o objeto. Nesse sentido, traz incômodo ao autista a incessante tentativa dos adultos de
tirar-lhe as mãos dos objetos que insiste em tocar.
Sobre a sua relação com o Outro, o autista comumente parece funcionar como se sentisse perseguido pelo
Outro, em especial por esses dois objetos: o olhar e a voz. Às vezes, o autista até aparenta ser surdo ou ter
problemas no olhar. No entanto, não é disso que se trata, pois é dessa necessidade de esquiva do Outro que
decorrem as estratégias dos autistas de evitar o olhar e de ficarem alheios quando lhe dirigem a palavra. Também
parece ser pelo mesmo motivo que aí se inserem os rituais, que ganham o status de uma zona de conforto e
proteção, na qual o Outro não o alcança.
Em suma, essa sensação de invasão do Outro parece ser a chave para se compreender “o jeito autista de
funcionar no mundo”. Por se sentir invadido é que se torna tão difícil ao autista lidar com o novo, com o imprevisto e
com a frustração. Por isso é que ele se desorganiza completamente quando lhe tratam com gritos ou repreensões
severas. Esse Outro, que já lhe é invasivo em situações cotidianas, ante a uma agressão se torna ainda mais aversivo.
Outra importante questão é o que poderíamos chamar de uma ausência da dimensão do apelo. O autista é
uma criança que não faz apelo, ele não pede, não entra na dialética da demanda. Isso explicaria porque crianças
autistas, que notadamente se mostram habilidosas ao montar um complexo quebra-cabeça ou jogar ao celular,
demoram tanto a tirar a fralda, por não conseguirem falar quando querem ir ao banheiro. Mas, por que isso
acontece, se o controle esfincteriano está atrelado à cognição? Simples: há cognição, mas não há demanda. Assim, o
autista sente dor, mas não chora; está com fome, mas não fala; sente vontade de fazer cocô, mas não pede que lhe
levem ao banheiro; fica triste e sofre quando ouve críticas negativas sobre ele, mas não reclama.
Por fim, a Dra. Paula Pimenta trás um último traço característico da relação do autista com o Outro: parece
haver um “problema de separação” deste primeiro em relação ao segundo, ou seja, há no autista uma ausência da
noção de fronteira entre o seu corpo e o corpo do outro. Com isso, ele costuma mostrar com o gesto o que gostaria
que o corpo do outro fizesse com o dele, em vez de pedir. Por exemplo, se está com sede, em vez de expressar isso,
o autista abre a geladeira e pega um suco, e não importa se esta é a da sua casa (com a qual tem familiaridade), se é
a de um vizinho ou o freezer de um restaurante, no qual nunca foi antes. Outro exemplo: em vez de dizer a quem o
acompanha que está com fome, a criança pega a mão deste e com ela toca a comida que lhe interessou.
Pois bem, com este resumo, procurei abarcar as considerações que Dra. Paula Pimenta expressou em seu
artigo, principalmente o fato de que a variabilidade da manifestação do autismo em seus diferentes portadores nos
convoca a enxergar as crianças portadoras do Transtorno do Espectro Autista (que vai do autismo clássico à
síndrome de Asperger) sob a ótica da singularidade de cada caso e, com isso, oferecer-lhes o devido e merecido
respeito e a tolerância às diferenças individuais do sujeito.
Como bem nos advertiu o cientista astrofísico Carl Sagan, saber muito não nos torna inteligente. A
inteligência se traduz na forma como recolhemos, julgamos, manejamos e, sobretudo, onde e como aplicamos esta
informação. Assim, da mesma forma como ele se propôs a transmitir as bases científicas da astrofísica ao público
não especializado, este também foi o meu objetivo, embora mais modesto que o dele: trazer de forma um pouco
mais clara os dados teóricos acerca das impressões da psicanálise sobre o autismo ao público de modo geral, como
forma de auxiliar as pessoas na lida cotidiana com tais crianças, que tanto nos exigem, nos exaurem, nos instigam e
nos ensinam. Espero que tenha sido útil em alguma medida.

1
Gizele Aparecida de Almeida é psicóloga (UFMG, 2010), pós-graduada (UFOP, 2014). Atende crianças, adolescentes e adultos em
consultório particular. Atua na rede municipal de educação de São Gonçalo do Rio Abaixo/MG, na área de Psicologia Escolar. Currículo Lattes:
http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4495902H9. Email: gizelepsicologia@gmail.com.
2
Artigo “A abordagem do autismo feita pela psicanálise”. Referência bibliográfica: Pimenta, P. R. (2010). A abordagem do autismo
feita pela psicanálise. In Revista de Psiquiatria & Psicanálise com Crianças & Adolescentes. v.8, n.14 (jan. dez. 2010) - Belo Horizonte: Centro
Psíquico da Adolescência e Infância - FHEMIG. 2010, PP. 66 – 73. Disponível em: www.fhemig.mg.gov.br/pt/publicacoes
3
Dra. Paula Ramos Pimenta é psicóloga (UFMG, 1993), Mestre e Doutora em Psicologia (UFMG, 2003 / UFMG, 2012), com pesquisa
voltada para o tema do autismo. Professora do curso de Psicologia da Faculdade de Ciências Médicas de Minas Gerais (FCMMG). Psicóloga
colaboradora do CEPAI / FHEMIG, no período de 2008-2014. Psicanalista membro da Escola Brasileira de Psicanálise e da Associação Mundial
de Psicanálise. Membro da equipe responsável pelo Núcleo de Pesquisa em Psicanálise com Crianças do Instituto de Psicanálise e Saúde
Mental de Minas Gerais. Membro fundador do Movimento “Psicanálise, Autismo e Saúde Pública” (MPASP), de âmbito nacional. Currículo
Lattes: http://buscatextual.cnpq.br/buscatextual/visualizacv.do?id=K4746045E3. Email: paula.pimenta@cienciasmedicasmg.edu.br.

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