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Dilemas na reparação do desastre no Rio Doce: conexões entre

arenas deliberativas1

Maria do Carmo Alves Albuquerque2


Fernando Peres Rodrigues3

Resumo:
O artigo analisa as arenas deliberativas voltadas à reparação do desastre da Samarco, em suas
consequências sobre o rio Doce, no Espírito Santo: uma arena de governança do desastre, uma
arena de políticas públicas e uma arena da sociedade civil. Argumentamos, sob a ótica da teoria do
sistema deliberativo, que a conexão entre as arenas é fundamental para a implementação do
processo de reparação, podendo conferir maior legitimidade às decisões tomadas.
A análise se faz desde um ponto de vista privilegiado para a observação destas relações – uma
metodologia de participação da sociedade civil, denominada ComRioComMar Opinião Popular
(CRCMOP). Ela foi construída visando se articular com as estratégias participativas dos atores
sociais, e permite evidenciar as conexões entre arenas e traçar diagnósticos a respeito do sistema.
O artigo se insere no contexto de análise de instituições e espaços de participação. A perspectiva
sistêmica, na teoria deliberativa, permite analisar como nas três arenas se organizaram espaços de
participação que se conectam de forma complementar (Mansbridge et al, 2012). Analisa também a
existência ou falta de mecanismos que podem promover conexões entre as partes do sistema, e
que podem facilitar a construção de encaixeis institucionais (Skocpol, 1992). Assim, o artigo pode
contribuir para duas agendas: a que estuda a perspectiva dos sistemas deliberativos e a que avalia
as possibilidades de encaixes em processos de interação socioestatal (Gurza Lavalle et al, 2019).

I. Introdução:

Com o rompimento da barragem de Fundão, da mineradora Samarco, em Mariana-MG, em


novembro de 2015, rejeitos de minério se espalharam pelo Rio Doce e pelo mar atingindo dezenas
de municípios e afetando milhares de pessoas. Este desastre tecnológico – provocado pela ação
humana - gerou demandas por reparação ambiental e socioeconômica. Estas demandas se
expressaram em centenas de mobilizações: protestos, Audiências Públicas, Ações Civis Públicas

1 Agradecemos à CAPES e o CNPq pelos apoios recebidos no âmbito do Projeto nº88881.118026/2016-01,


edital CAPES-FAPEMIG-FAPES-CNPq-ANA. Fernando Peres Rodrigues também agradece o apoio do
Centro de Estudos da Metrópole (Cem/Cepid), financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado
de São Paulo (FAPESP).
2 Doutora e pesquisadora do Núcleo Democracia e Ação Coletiva (NDAC/Cebrap).
3 Doutorando do CEM/Cebrap, bolsista FAPESP (processo 2019/07966-4, Fundação de Amparo à Pesquisa

do Estado de São Paulo).


(ACP) movidas contra as mineradoras por organizações civis e órgãos públicos de defesa da
cidadania, especialmente o Ministério Público (MP)4.

O Estado e as empresas responsáveis pelo desastre responderam através de um acordo


extrajudicial (Termo de Transação e Ajustamento de Conduta - TTAC, firmado em 2016) que criou
uma estrutura de gestão do desastre, constituída por um Comitê Interfederativo (CIF) integrado por
órgãos públicos e assessorado por Câmaras Técnicas (CTs), e uma Fundação privada (Renova).
Concomitantemente, movimentos sociais e grupos locais emergentes também se organizaram a fim
de participar das decisões para recuperação do meio ambiente, das condições de desenvolvimento
socioeconômico e dos modos de vida drasticamente alterados após o desastre. Esta atuação gerou
o surgimento de outros acordos (TACs) que modificaram a estrutura de gestão do desastre.

Assim, há a consolidação de duas arenas onde se buscava construir decisões para


recuperação e restauração da vida afetada, decisões voltadas à reparação dos danos causados
pelo desastre. Uma delas, uma arena formal com instituições criadas pelo acordo. Trata-se da arena
de governança do desastre, uma estrutura de gestão do processo de recuperação “integral”5 da
região afetada. Por outro lado, surge uma arena não institucionalizada, uma arena da sociedade
civil, constituída por uma diversidade de organizações como movimentos sociais, fóruns,
associações, sindicatos, ONGs etc. Estas organizações atuaram através de protestos, passeatas e
ações locais, como o salvamento de peixes, visando a formulação problemas e propostas
concernentes ao interesse público.

Nota-se ainda uma terceira arena envolvida em decisões concernentes à reparação do


desastre. A arena das políticas públicas é uma arena formal, constituída por instituições públicas já
existentes antes do rompimento da barragem, instituições voltadas à regulação e produção de
políticas públicas na área ambiental, de saúde, educação, moradia, trabalho e renda. São
Ministérios, Secretarias, autarquias, casas legislativas, poder Judiciário, Ministério e Defensoria
Públicos, além de instituições participativas como comissões, conselhos gestores de políticas
públicas e comitês de bacia hidrográfica.

Este artigo se volta à reflexão sobre a relação entre estas três arenas e seus papéis na
produção de deliberações voltadas à reparação do desastre, entre 2015 e 2019. Ele surge a partir
da constituição de um instrumento de participação da sociedade civil, denominado ComRioComMar
Opinião Popular (CRCMOP), que veio somar-se às demais ações que visam influir na formulação
de temas, problemas e soluções para a reparação do desastre.

4 Dornelas et al (2016) citam a existência de 13 ACP em tramitação no estado do Espirito Santo, impetradas
entre novembro de 2015 e maio de 2016. 7 delas impetradas pelo MP do estado, 5 pelo MPF e 5 impetradas
por outros autores como o Município de Colatina, de Linhares, Instituto Colatinense de Meio Ambiente e
Saneamento Ambiental (SANEAR), MP do Trabalho, IEMA e estado do Espírito Santo.
5 No TTAC, p. 2, está a declaração de que o objetivo do acordo, é a “integral recuperação do meio ambiente

e das condições socioeconômicas da região”.


2
A proposta do ComRioComMar Opinião Popular (CRCMOP) surgiu dentro de um projeto
acadêmico fomentado por agências estatais6. Seu desenho previa a implementação uma tecnologia
social de governança participativa, visando identificar propostas prioritárias quanto aos problemas
e soluções por meio de ciclos estimulados de votação, reflexão e reformulação de propostas,
resultando em prioridades qualificadas e referendadas pela comunidade para apresentar aos
tomadores de decisões políticas (policy-makers). Assim, esta metodologia participativa revelaria as
prioridades que deveriam ser consideradas pelos gestores do desastre como o CIF, as CTs, a
Fundação Renova e os órgãos gestores das políticas públicas.

Ao possibilitar a identificação de prioridades dos atingidos e auxiliar no seu encaminhamento


às autoridades – públicas ou de gestão do desastre -, o CRCMOP se coloca numa posição
privilegiada que permite observar as diversas arenas voltadas às deliberações sobre a reparação
do desastre e as possíveis conexões ou desconexões entre elas.

Vemos assim que, para além do sistema de governança criado pelos TACs, a deliberação
pela “integral recuperação do meio ambiente e das condições socioeconômicas da região7”,
colocada como objetivo dos acordos, é também objetivo e interesse das outras arenas. Dada essa
rede de espaços participativos, constituída em partes e com paralelismos, num ambiente de
desastre que gerou intenso ativismo, cabe perguntarmos: Como a participação nestes espaços se
articula levando à deliberação de temas e problemas concernentes à reparação do desastre?

Argumentamos neste artigo que o conjunto de espaços participativos nas três arenas, com
diferentes formatos e diferentes capacidades deliberativas, buscam – com diferentes ênfases,
peculiares a cada arena – atuar na formulação de prioridades e no controle social sobre as políticas
de reparação do desastre. Uma abordagem sistêmica permitiria analisar sinergias, papéis,
complementariedades entre elas. Assim, temos como perguntas: a) quais mecanismos conectam
essas arenas? b) onde e quando as conexões não acontecem ou passam a existir?

Após esta introdução, na próxima seção discutiremos as contribuições e limites que teorias
da participação nos oferecem para analisar esse contexto de conexões entre espaços ou instâncias
participativas. Em seguida, descreveremos o processo de implementação do CRCMOP, construído
em articulação com as estratégias participativas dos atores sociais, e como ele pode ser utilizado
como instrumento metodológico para evidenciar as conexões entre arenas e traçar diagnósticos a
respeito do sistema. A quarta seção descreve como nas três arenas se organizaram espaços de
participação que buscaram contribuir para a deliberação de propostas e ações para a reparação do
desastre. A quinta seção analisa as conexões entre as arenas e a possível construção de encaixeis
socioestatais, concluindo com a reflexão sobre a importância dessas conexões para a legitimidade
deste sistema de reparação do desastre.

6 Chamada 6/2016 CAPES-FAPES-FAPEMG-CNPq-ANA.


7 O TTAC está disponível em www.ibama.gov.br/cif/ttac.

3
II. Uma abordagem sistêmica

As abordagens mais recentes da literatura de participação, deliberação e inovação


democrática têm oferecido diversas lentes analíticas para avaliar instituições e espaços de
participação. No entanto, a inter-relação entre instituições e processos de participação nas
deliberações públicas ainda tem sido pouco explorada. Trata-se aqui de buscar uma análise das
conexões entre as arenas de deliberação sobre a reparação do desastre tecnológico ocorrido no
Rio Doce. Esta perspectiva se diferencia dos estudos sobre a participação ou políticas públicas que
focalizam instituições e atores isoladamente, pois enfatizamos uma dimensão interativa entre
diferentes instituições e atores orientados para a deliberação de um tema ao longo do tempo. Nesta
seção discutimos brevemente uma abordagem sistêmica que possibilita tematizar as conexões ou
interações, a qual tem se preocupado em pensar as possibilidades de democratizar a deliberação
pública, de acordo com princípios deliberativos como a igualdade, a inclusividade, a publicidade
(Gutmann e Thompson, 2009; Bohman, 2009; Cohen, 2009).

A obra Deliberative Systems, organizada por Jane Mansbridge e John Parkinson (2012) se
volta a algumas questões na teoria deliberativa, especialmente as diferentes dimensões da
deliberação, em espaços que podem ser vistos de forma complementar. Identifica diferentes arenas
com distintas funções e papéis no jogo político mais amplo. Considera estas diferentes arenas como
um conjunto de partes que se articulam - um sistema.

Para os autores um sistema “significa um conjunto de partes distinguíveis, diferenciadas,


mas até certo ponto interdependentes” e “conectadas de modo a formar um todo complexo”. Muitas
vezes há uma “divisão funcional do trabalho” entre as partes, uma distribuição de funções entre
elas, de modo que “algumas partes funcionem onde outras não o façam tão bem”. Assim, existe
“alguma interdependência relacional, de modo que uma mudança em um componente trará
mudanças em outros” (idem, p.4). A perspectiva dos sistemas deliberativos busca então “entender
como funciona a divisão de trabalho deliberativo e qual a possibilidade de democratização num
sistema mais amplo” (Almeida, 2013).

Estes desafios são coincidentes com as perguntas centrais deste trabalho, acerca de uma
rede ou “sistema” composto de diferentes arenas participativas, que exercem papéis e funções
distintas no “trabalho deliberativo” voltado à reparação do desastre da Samarco. Por isso
encontramos uma potência analítica adequada a eles na obra de Mansbridge et al, cujo argumento
central afirma a complementariedade entre os espaços que geram decisões políticas os quais,
isoladamente, não geram decisões com legitimidade deliberativa: “nenhum fórum, mesmo que
idealmente constituído, tem capacidade deliberativa suficiente para legitimar a maioria das decisões
e políticas adotadas nas democracias” (Mansbridge et al, 2012, p. 1). Por isso, afirmam os autores,

4
“(...) é necessário ir além do estudo das instituições e processos individuais e examinar sua
interação no sistema como um todo” (p. 2).

Aqui não estudamos porém um sistema estruturado, tal como um sistema de uma política
pública no Brasil, como o SUS ou o SUAS, com suas instâncias decisórias governamentais,
parlamentares e seus conselhos participativos (Almeida e Cunha, 2016), ou um sistema de
participação como o do Rio Grande do Sul (Fonseca, 2019), que não é setorial, mas é igualmente
estruturado. Analisamos uma rede de espaços que vão-se conectando formal e informalmente ao
longo do tempo por compartilhar atores e objetivos.

A teoria dos sistemas deliberativos apresentada por Mansbridge et al (2012) possibilita


abranger uma escala maior de tipos de espaços que integram o sistema. Eles têm finalidades
próprias, e desempenham diferentes funções no sistema (pg. 2). Estas funções envolvem a
produção de preferências e decisões (função epistêmica), o controle para a não dominação de uma
parte sobre a outra (função ética) e a inclusão e pluralidade de vozes e interesses (função
democrática) (Gutmann e Thompson, 2004; Mansbridge et al, 2012, p. 11). As preferências,
opiniões e decisões epistemicamente bem fundamentadas devem ser informadas e levar em
consideração as preferências e opiniões dos demais cidadãos. A função democrática significa a
promoção de um processo político inclusivo em termos de igualdade, a inclusão de vozes,
interesses, preocupações e reivindicações múltiplas e plurais. É o elemento central que torna
democráticos os processos deliberativos (idem, pg. 12).

Tais funções podem ser específicas ou compartilhadas entre as arenas que compõem o
sistema. Segundo Mansbridge et. al. funções diferentes correspondem a uma “divisão de trabalho”
na qual as partes do sistema podem manter entre si “relações de complementaridade ou de
deslocamento” (p. 3). Assim o ônus ou a legitimidade da tomada de decisão não recai sobre apenas
um espaço ou arena, mas é distribuído entre as diferentes partes.

O sistema pode envolver partes ou instâncias institucionais ou não. Claudia F. Faria (2017,
p. 4). ressalta que a perspectiva dos sistemas deliberativos pode combinar “arenas formais de
tomada de decisão e arenas informais de formulação de temas e problemas concernentes ao
interesse público que devem operar conjuntamente na construção de decisões legítimas”. Em nosso
caso temos espaços participativos extra institucionais, organizados por movimentos sociais, nos
quais os protestos são formas de ação. Eles colocam em debate a linha entre a pressão e a
persuasão, que caracteriza a função epistêmica de um sistema deliberativo. Mas, segundo Fung
(2005), o protesto pode contribuir para o sistema deliberativo explicitando ou corrigindo fragilidades
nas suas funções. O protesto pode começar a “corrigir desigualdades no acesso à influência,
trazendo mais vozes e interesses para o processo de tomada de decisão”. Pode facilitar e promover
a circulação de informações úteis; pode facilitar e promover interações éticas e respeitosas entre
cidadãos (Mansbrige et al, 2012, p.19).

5
Além do debate suscitado pela presença de protestos, em nosso caso também merece
reflexão a presença de especialistas. Eles, por um lado, são essenciais para a qualificação da
deliberação, mas, também podem fragilizar a qualidade deliberativa do sistema, especialmente em
sua função ética, que sublinha o respeito aos cidadãos. Num sistema deliberativo, os atores sociais
não devem ser pensados como “objetos da legislação” ou como “sujeitos passivos a serem
governados” (Gutmann e Thompson, 2004). Cabe assim a reflexão sobre onde e quando os
especialistas são apropriados e como deliberações de especialistas podem ser conectadas a
decisões dos grupos de cidadãos (Mansbridge et al, 2012, pg. 13). Inovações participativas podem
permitir que os cidadãos desenvolvam sua própria expertise e criem conexões através das quais a
sua expertise possa influenciar a política (Smith 2009).

Como inovação participativa, o ComRioComMar Opinião Popular tem como objetivos


explícitos a devolução do conhecimento e informações produzidos na pesquisa de forma a subsidiar
negociações com autoridades. Dessa forma ele vem buscando conectar os cidadãos com
especialistas contribuindo para aprimorar a função epistêmica no sistema deliberativo, ao trazer
informação e conhecimento maiores e mais diversos; contribui com a função democrática, ao incluir
as perspectivas e interesses de mais cidadãos. Pode-se dizer também que, de certa forma, ele
contribui com a função ética, ao propiciar diálogo respeitoso entre especialistas e cidadãos,
diminuindo assimetrias entre eles.

Conexões ou encaixes socioestatais

Como analisar a conexão entre as partes de um sistema deliberativo? Uma referência teórica
que pode se somar às lentes sistêmicas para melhor analisar estas conexões8 vem da literatura
neoinstitucionalista, com Theda Skocpol e sua noção de encaixe entre Estado e sociedade.

Esta noção é desenvolvida pela autora em suas obras de 1985 a 1995. Skocpol (1985:26)
analisa “pontos de encaixe entre Estado e sociedade” como lócus de construção de significados
políticos e como conexão entre “grupos politicamente ativos” e “pontos de acesso e influência” às
“instituições” políticas (idem, 1992:41).

Quando caracteriza sua “abordagem da polis” (polity approach), Skocpol se refere ao


processo de

(...) encaixe [fit] - ou a falta dele - entre os objetivos e capacidades de


diversos grupos politicamente ativos e os historicamente mutáveis pontos
de acesso e de influência permitidos pelas instituições políticas de uma
nação (Skocpol, 1992:41 e 1995:105).

Nos processos de encaixe estão, por um lado, os atores sociais, com seus objetivos e
capacidades e, por outro, as instituições e seus pontos de acesso. Os dois lados podem operar de

8 Claudia Feres Faria (2017) aponta que o problema da conexão entre as partes é uma das lacunas
importantes da perspectiva dos sistemas deliberativos, e analisa alguns modelos de conectores.
6
forma simultânea. As instituições abrem pontos de acesso, historicamente mutáveis. Os “grupos
politicamente ativos” desenvolvem capacidades para acessar os pontos que correspondam a seus
objetivos. Conforme observa Houtzager (2004:32) através destes processos de encaixe as
instituições dão a alguns atores e coalizões “acesso e influência sobre centros públicos de tomada
de decisões”. O autor assinala que a “habilidade de atores estatais e societários de produzirem
políticas inclusivas depende de sua capacidade de construir processos de encaixe e que estas
novas capacidades de ação se formam “a partir de reiterados ciclos de interação” (2004:32).

Gurza Lavalle et al (2019, p. 47) assinalam também que os encaixes se tornam


“sedimentações institucionais de processos de interação socioestatal que ganham vida própria” tais
como “instrumentos, regras, leis, programas, instâncias, órgãos”. Os encaixes são assim entendidos
como “artefatos” resultantes de processos de interação socioestatal.

Os mecanismos de conexão entre atores e arenas que integram um sistema deliberativo


podem ser então entendidos como processos de interação socioestatal que poderão (ou não)
produzir encaixes, levando uma rede de arenas participativas a se comportar (ou não) como um
sistema deliberativo - cujas partes podem repartir o trabalho deliberativo – conferindo maior
legitimidade e qualidade democrática às suas deliberações.

Com estes elementos temos então um arcabouço analítico que permite analisar um conjunto
de diferentes espaços de participação (com maiores ou menores capacidades deliberativas), que
compõem distintas arenas participativas institucionais ou extra-institucionais. Essa abordagem
permite olhar além dos potenciais e limites de cada arena, de forma isolada. Integradas a outras,
compondo um sistema, seus potenciais e seus limites poderiam ser aumentados, enfraquecidos ou
mesmo suprimidos na dinâmica de interação. Isto é, em diferentes momentos no tempo, um espaço
de participação pode ter maior ou menor capacidade de influir na deliberação de um tema, conforme
as conexões que surgem entre ele e as demais arenas que tratam do assunto.

Assim, analisamos neste artigo as inter-relações entre arenas institucionais e extra-


institucionais e a constituição incremental de uma rede de arenas participativas que compartilham
as mesmas finalidades e os mesmos objetivos: a reparação integral dos danos causados pelo
desastre ocorrido no Rio Doce. Entendemos que a teoria dos sistemas deliberativos é uma
abordagem que permite fazer uma avaliação contextual deste processo relacional. Com ela
podemos diferenciar distintas partes que se articulam e as funções que elas são capazes de
desempenhar no processo de deliberação. Buscamos analisar as três arenas que poderiam integrar
um sistema deliberativo de reparação do desastre do Rio Doce. Ademais, podemos encontrar os
mecanismos que as podem conectar neste sistema, identificar potencialidades efetivadas ou não
efetivadas e assim entender como tem evoluído o processo decisório em torno da reparação do
desastre. Em nossa análise o CRCMOP surge como um desses mecanismos que contribuem para
formar conexões, favorecendo a construção de encaixes socioestatais. Ele ainda se constitui em

7
ponto privilegiado de observação das diversas partes do sistema e da conexão entre elas, ou sua
falta.

III. ComRioComMar Opinião Popular: facilitador de encaixes no sistema deliberativo

O ComRioComMar Opinião Popular (CRCMOP) é um espaço participativo para a construção


de propostas, pela população atingida, acerca das suas preferências ou prioridades e de estratégias
de ação para alcançar a “reparação integral” dos danos causados pelo desastre da Samarco no
Espírito Santo. Nesta seção apresentaremos como este espaço participativo foi implementado e,
ao mesmo tempo, foi sendo recriado e reinterpretado à luz das estratégias dos atores sócio-políticos
participantes e de sua interação com outras arenas existentes.

O CRCMOP surge da Chamada 6/2016 CAPES-FAPES-FAPEMG-CNPq-ANA que visava


ofertar uma resposta por meio de instituições de ensino e pesquisa para a recuperação da bacia do
rio Doce, atingida pelo desastre. O projeto teve início no final de 2017 apresentando aos principais
atores locais (da Bacia do Rio Doce, no estado do Espírito Santo) a proposta de se implementar
uma tecnologia de governança participativa. Seus objetivos são (i) devolver às comunidades
atingidas o conhecimento gerado pela pesquisa acadêmica e (ii) contribuir para que este
conhecimento auxilie a população local a produzir suas propostas quanto à reparação dos danos.
Estes são objetivos que lhe dão uma função epistêmica, de formar preferências com base numa
razão informada. Ele também assume um papel de conexão contribuindo para a construção de
encaixes socioestatais.

Para atender a estes objetivos recriamos9 uma tecnologia de governança participativa a


partir das seguintes etapas:

- Identificação e construção de relações retro alimentadoras com atores sociais relevantes


na região, especialmente MAB e FCRD.

- Identificação de comunidades e lideranças interessadas em participar da proposta

- Realização de Piloto em 3 comunidades em 2 municípios com realização de debates e


votações locais com escolha de propostas, seguida de ampliação do número de comunidades
votantes10.

- Realização de oficinas trimestrais de capacitação de lideranças capazes de impulsionar


novas rodadas de votações nas comunidades locais

9 O CRCMOP foi baseado na experiência do Painel de Opinião Popular – P0P, em São Paulo
(https://www.p0p.com.br/).
10 Em outubro de 2019 temos 12 pontos de votação, em 5 municípios do estado (São Mateus, Colatina,

Linhares, Serra e Vitória).


.
8
- Identificação nas Oficinas de temas mais votados e construção de relações com
autoridades representativas de canais de acesso ao Sistema CIF e à estrutura das políticas públicas
afetas à reparação dos danos

- Reelaboração e qualificação das propostas prioritárias, com produção de documentos


técnicos e estratégias de negociação com autoridades.

Com esta perspectiva, para entrar no território, buscamos construir relações com os atores
sócio-políticos que já atuavam pela reparação. Esta busca nos levou a atores locais e estaduais –
inicialmente identificados a partir das pesquisas sobre a Sociedade Civil no interior do projeto11.
Estes atores atuavam através de protestos e outras ações, articulando-se com outros atores
societários e construindo uma arena extra-institucional de ação da Sociedade Civil. Encontramos
atores com atuação mais local como associações de moradores e pescadores, e atores mais
amplos como pastorais diocesanas, fóruns e articulações regionais ou estaduais como a Aliança
Rio Doce e o Fórum Capixaba de Defesa do Rio Doce (FCRD) e nacionais como o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB).

Essa arena extra-institucional, ativa desde o rompimento da barragem, já buscava conexões


com arenas institucionais. Em especial, destacam-se as negociações com o Ministério Público
(MPF, MPT, MPES), e a Defensoria Pública da União e do Estado (DPU e DPES) para a criação de
forças tarefa em função do desastre e para a criação de espaços institucionais de diálogo com os
órgãos de gestão do desastre: o CIF e a Fundação Renova.

Conhecer estes atores, a sua atuação e o território onde atuavam foi essencial para a criação
do CRCMOP. A elaboração desta tecnologia de governança participativa ocorreu entre novembro
de 2017 e junho de 2018, a partir do estudo da realidade dos atores atuantes no estado e nas
comunidades – sua dinâmica de atuação, seus interesses, suas disponibilidades, dificuldades em
relação a deslocamentos e ao uso de tecnologias. Visitas de campo vêm ocorrendo desde 2017,
com a finalidade de conhecer as características geográficas das comunidades, o perfil de atuação
dos atores sociais locais e visando a reflexão sobre estratégias regionais de ação. O MAB e o FCRD
foram os interlocutores principais, permitindo-nos aprimorar o conhecimento da realidade, a relação
com lideranças e elaborar o primeiro desenho da proposta.

Dificuldades quanto ao acesso à internet e ao letramento digital dos participantes, e a


extensão da base de atuação a diversos municípios, com distâncias de cerca de 50 km entre
diversas comunidades, definiram metodologias de atuação em comunidades, associações e
sindicatos.

11 O Projeto é composto pelos seguintes eixos de pesquisa: (i) Sociedade civil; (ii) Capacidades estatais; (iii)
Políticas públicas; (iv) implantar tecnologia de governança participativa. Ver
https://www.comriocommar.com.br/pesquisa.
9
A participação nos locais de votação se dá através da coleta de votos com sugestões, em
urnas onde são depositadas cédulas de votação expressando preferências individuais. As urnas
ficam sob a responsabilidade de lideranças locais as quais, apoiadas por lideranças regionais,
promovem mensalmente debates e votações, informados por um Jornal trimestral, que apresenta a
síntese dos debates e votações anteriores.

A cada trimestre se realiza uma Oficinas de capacitação de lideranças, com o debate de um


tema, que se articula com uma “rodada” trimestral de mobilização, debates e votações nas
comunidades. Os debates com as lideranças e nas comunidades promovem a apropriação de
conhecimento e informação sobre os problemas ambientais, sociais, econômicos, entre outros que
são identificados, o que fundamente a construção das preferências propostas em cada rodada de
votação. As votações incluem a elaboração de propostas e o apoio a propostas existentes. Desse
modo, têm a função de produzir preferências adequadamente informadas, isto é, são espaços com
uma função epistêmica na deliberação.

Os votos de apoio às propostas são agregados por comunidade (ou associação, sindicato),
por município e pela totalidade das regiões atingidas. Esta agregação permite identificar e
consolidar as principais preferências, que serão apresentadas aos tomadores de decisão (policy
makers).

A partir da primeira Oficina de capacitação de lideranças iniciou-se a implantação de um


piloto em comunidades dos municípios de São Mateus e Colatina12. A votação obteve forte adesão
no município de São Mateus, onde tivemos uma liderança regional e duas lideranças locais muito
atuantes, que conseguiram superar problemas de articulação, as distâncias e o isolamento de duas
comunidades selecionadas. Estas comunidades estão localizadas em regiões de manguezais fora
da bacia do rio Doce, e ainda não haviam sido reconhecidas como atingidas. Estavam então
fortemente interessadas e organizadas para reivindicar a categoria de atingidos junto ao Ministério
Público e à Fundação Renova.

Colatina é um município capixaba cortado pelo rio Doce que utiliza sua água para
abastecimento da cidade; tanto a área urbana como rural foram atingidas. Conflitos e outras
prioridades locais dificultaram a implantação do CRCMOP, e a capacidade de mobilização e
geração de propostas foi menor13.

Notamos assim a necessidade de adaptações aos ritmos e à lógica própria dos interesses
dos atores locais. Enquanto em Colatina esta metodologia não parecia atrair os participantes, em

12 Antes disso, em junho de 2018 realizamos um pré-teste, com votações realizadas em encontro Estadual
do MAB e em reunião da coordenação do FCRD, onde se criaram as primeiras propostas. Em julho iniciamos
o piloto.
13 Como este espaço participativo não é promovido por autoridades públicas ou da Renova, e como não há

remuneração, o incentivo para a participação é apenas o interesse do indivíduo em opinar sobre a


recuperação de sua comunidade e região e em levar suas propostas às autoridades tomadoras de decisões.
Por isso, pode resultar em baixa participação em determinados territórios.
10
São Mateus, outras comunidades desejavam integrar-se ao CRCMOP. O interesse em conquistar
o reconhecimento como atingidos e obter as indenizações também surgiu em áreas mais afastadas
do Rio Doce, como nos municípios de Serra e de Vitória, mobilizando os pescadores e camaroeiros
do SINDIPESMES (Sindicato dos Pescadores e Marisqueiros do Espírito Santo) e da ASPEJ
(Associação dos Pescadores de Jacaraípe)14. Compreender os atores locais, seus interesses,
estratégias e seus momento no processo de reparação dos danos do desastre se mostrou
essencial15.

A segunda e a terceira Oficinas marcam um período centrado na reflexão, com as lideranças


e comunidades, sobre as autoridades e arenas decisórias onde buscar soluções para os problemas
mais votados. “Em que portas bater” foi o mote destas oficinas, que buscaram apresentar possíveis
conexões entre a arena da sociedade civil e a arena da governança do desastre. O sistema
começava a ser visualizado pelos atingidos.

A iniciativa destas conexões também partiu de dentro das Câmaras Técnicas (CTs). A partir
da segunda Oficina, alguns integrantes das CTs começaram a procurar o CRCMOP para construir
diálogos com os atingidos. Uma outra arena deliberativa – a arena de governança do desastre - se
torna então permeável à participação dos atores societais. Neste momento a função do CRCMOP
se amplia. Para além de sua função epistêmica, de formação de preferências, criação de propostas,
ele passou a ser, também, um conector, ou seja, um facilitador de encaixes socioestatais. As
conexões com as CTs permitem aos atingidos a elaboração de suas propostas com base em
informação e debates mais qualificados.

Por outro lado, o acúmulo de um grande número de propostas propiciou o surgimento de


uma percepção macro das preferências, que se refletiram em relatórios sistematizados (boletins
regionais) e embasaram negociações das comunidades em audiências e reuniões com
autoridades16. Os boletins também se dirigiram à arena das políticas públicas. Assim, uma terceira
arena começa a se conectar ao sistema. Conselhos e Secretarias gestoras da política de Saúde,
de Assistência Social, de Meio Ambiente, de Turismo, Comitês de Bacias, IEMA e outros órgãos
responsáveis pelas políticas setoriais, além dos órgãos do MP e DP, passam a integrar esta
interlocução.

Deste modo, a metodologia participativa ComRioComMar Opinião Popular, cujos objetivos


são a devolução do conhecimento e informações produzidos na pesquisa, desempenha a função

14 Inicialmente foram reconhecidos como atingidos apenas os municípios da calha do Rio Doce, como Baixo
Guandu, Colatina e Linhares. O reconhecimento de outras populações atingidas seguiu ritmos diferenciados
e lentos, em resposta às lutas sociais. É o caso das comunidades pescadoras e marisqueiras do município
de São Mateus, da associação de Jacaraípe (ASPEJ) e dos pescadores de todo o estado representados pelo
Sindipesmes.
15 Após um ano o CRCMOP chegou a 16 pontos de votação em 5 municípios do estado (São Mateus, Colatina,

Linhares, Serra e Vitória).


16 Como por exemplo o Ministério Público, as Câmaras Técnicas (CTs), Conselhos Gestores de Políticas

Públicas, Secretarias Municipais e Estaduais, Comitês de Bacia Hidrográfica etc.


11
epistêmica, trazendo informação e conhecimento maiores e mais diversos. Simultaneamente
aprofundou no sistema a função democrática, ao incluir mais atores e interesses na deliberação da
reparação ao desastre. O CRCMOP desempenhou ainda o papel de estabelecer conexões. Os
debates nos momentos de votações e, especialmente, seus espaços de capacitação assumiram
características de conexão entre as arenas, fortalecendo capacidades de negociação, de barganha
e de influenciar as políticas. Aumentando, desta forma, a expertise dos cidadãos atingidos em
utilizar a capacidade deliberativa existente, seja por meio de arenas formais ou informais.

O CRCMOP se configura então como um ponto privilegiado de observação de como essa


rede se formou e em que sentido estas arenas foram se conectando ao longo do tempo, constituindo
um sistema deliberativo. Ao mesmo tempo ele se constitui num mecanismo que favorece conexões,
e a constituição de encaixes entre atores políticos sociais e estatais. Na próxima seção exploramos
como cada uma das 3 arenas se constituiu e atuou no período.

IV. As três arenas: suas funções e os encaixes entre elas

O ComRioComMar Opinião Popular (CRCMOP) tem-se mostrado ponto privilegiado para a


observação de três arenas voltadas à deliberação da reparação dos danos causados pelo
rompimento da barragem de Fundão no estado do Espírito Santo. Duas destas arenas são
constituídas por instituições formais e uma por organizações não formais. Esta arena informal, ou
não-institucionalizada, é a arena da sociedade civil, que compreende organizações como
movimentos sociais, fóruns, associações, sindicatos, ONGs, pastorais etc. Entre as formais, a arena
de políticas públicas é a tradicionalmente analisada nos estudos sobre sistemas deliberativos e
envolve instituições voltadas à regulação e produção de políticas públicas como ministérios,
secretarias, autarquias, casas legislativas e seus espaços participativos como comissões,
conselhos, conferencias e comitês. No caso em estudo, esta arena também é integrada pelo
Ministério e Defensoria Públicos, com suas instâncias federais e estaduais. A outra arena formal foi
estabelecida a partir dos acordos extrajudiciais (TACs), que criaram instituições de gestão e de
participação exclusivas para tratar do desastre, esta é a arena de governança do desastre. Nesta
seção apresentamos como essas arenas foram se formando e se conectando em vista de promover
temas e soluções para a reparação do desastre, no período entre 2015 – quando ocorre o
rompimento da barragem – e 2019.

A arena da sociedade civil

Após o rompimento da barragem de Fundão em novembro de 2015, diversos atores se


organizaram para reivindicar a recuperação da região do Rio Doce no estado do Espírito Santo.
Com maior abrangência regional no estado, o Fórum Capixaba de Defesa do Rio Doce (FCRD)
oscilou com momentos de maior e menor influência. Também surgiu, logo após o desastre, o
coletivo Aliança Rio Doce, envolvendo principalmente as comunidades ribeirinhas ao longo do leito

12
do rio, no trecho capixaba, desenvolvendo ações sociais com especial articulação nos municípios
de Colatina e Linhares. A Diocese de Colatina também se manteve como um ator de forte influência
local, que organiza anualmente uma marcha no aniversário do desastre como forma de protesto.

Num primeiro momento todos esses atores tiveram grande influência local e midiática.
Expuseram a dimensão do crime e suas consequências não apenas para as populações ribeirinhas,
mas também para grupos mais afastados que dependiam da água do mar ou da irrigação
proveniente da água do rio. Nota-se também as ações de divulgação em mídia paralela como a
criação da enciclopédia eletrônica participativa WikiRioDoce, com apoio do coletivo Aliança Rio
Doce. A arena da sociedade civil articula, de formas diversas nos diferentes momentos atores socio
políticos como sindicatos e associações de pescadores, marisqueiros, criadores de peixes,
associações de moradores, de comerciantes, a Comissão de Caciques indígenas de Aracruz, as
associações quilombolas de Degredo, ONGs voltadas à produção de alternativa econômica às
populações que viviam do rio etc.

Os danos causados no estado do Espírito Santo atraíram a atenção do Movimento dos


Atingidos por Barragens (MAB), que estava presente em muitos estados e veio a se organizar no
estado capixaba. Sua mobilização se conecta a do FCRD e ambos, ao compartilhar o interesse em
se espalhar e se enraizar no ES, articularam manifestações com as comunidades atingidas na foz
norte e sul do rio Doce. O MAB promoveu a criação de comissões locais de atingidos, promoveu
manifestações, participou de denúncias internacionais na ONU17 , organizou marchas e encontros
entre os atingidos, promoveu audiências públicas nos legislativos locais e estaduais e articulou-se
fortemente com o Ministério Público em busca da revisão do TTAC. Ambos questionavam a
legitimidade do acordo, visto que realizado sem a participação dos atingidos e da estrutura de
governança do desastre, na qual a participação dos atingidos era irrisória. A articulação entre atores
sociais e MP dá origem à aprovação de um novo acordo, que modifica a estrutura de governança
com a criação de novos espaços de participação social. O MAB se empenha a seguir na
organização das Comissões Locais e na escolha das Assessorias Técnicas – já no âmbito de
conexão com a arena de governança do desastre.

Vemos, então, que a participação da sociedade civil contribuiu para o fortalecimento de


algumas funções no sistema deliberativo. Caso este sistema fosse integrado apenas pela arena de
governança criada pelo TTAC, as vozes dos atingidos não estariam nele incluídas. Através do TAC
Gov os atingidos conquistam espaço na estrutura de governança do desastre. Com a sua inclusão
o sistema ganha em sua dimensão democrática. Contribuem ainda na função epistêmica ao trazer
informações e razões para a formulação de propostas de reparação. Mesmo os protestos
contribuem para a qualidade da deliberação na medida em que incluem novas vozes e as
empoderam, diminuindo as enormes assimetrias entre empresas, governantes e governados e

17 Ver https://www.mabnacional.org.br/noticia/evento-na-onu-discute-vazamento-da-barragem-da-samarco-
e-retrocessos-nas-leis-ambientais-b-0.
13
fortalecendo assim a função ética no sistema. No entanto, a arena da sociedade civil é frágil em
produzir efeitos nas políticas de reparação, caso permaneça desconectada de arenas formalmente
decisórias.

Vemos, porém, que os atores da sociedade civil constroem encaixes com as arenas
institucionais desde o início. Mecanismos de formação de encaixes são construídos inicialmente
através da aproximação das lideranças sociais com os promotores e defensores, e com deputados.
Desenvolvem-se ações em conjunto com estes aliados através da promoção de Audiências
Públicas18. O MAB se torna interlocutor privilegiado do MP nas negociações sobre o TAC gov. A
interlocução ocorre também com outros atores sociais como Sindicatos19.

O CRCMOP também busca contribuir para a construção de encaixes. A partir da segunda


oficina de capacitação ele se torna um mecanismo de conexão entre a arena da sociedade civil e
as arenas institucionais, apontando como “portas20” de conexão os Conselhos, as Câmaras
Técnicas, os órgãos públicos e organizando conversas entre estas autoridades e os atingidos.

A arena de governança do desastre

Instituída a partir do TTAC de 2016 essa arena surge de forma pouco participativa contando
com o Comitê Interfederativo (CIF), as CTs e a Fundação Renova. O CIF tem como função “orientar
e validar os atos da Fundação Renova” à qual cabe “gerir e executar as medidas de recuperação
dos danos resultantes da tragédia”21. O Comitê Interfederativo (CIF) é composto por 11 Câmaras
Técnicas que prestam assessoria às decisões por meio de estudos e pareceres. Elas auxiliam os
membros do CIF a supervisionar e deliberar sobre os 42 programas definidos pelo TTAC22.

O Ministério Público (Federal e do Estado de Minas Gerais) questionaram o TTAC23,


produzindo um novo acordo. O TAC Governança assinado em 25 de junho de 201824, versaria sobre

18 Audiências públicas foram promovidas na Câmara Federal, nas Assembleias legislativas. Ver por exemplo,
http://www.defensoria.es.def.br/site/index.php/2017/11/27/defensoria-participa-de-audiencia-publica-na-
camara-dos-deputados-sobre-dois-anos-do-desastre-de-mariana/; e www.mabnacional.org.br/noticia/em-bh-
audi-ncia-p-blica-faz-balan-dois-anos-do-crime-da-samarco-em-mariana.
19 Ver Termo de audiência realizada no dia 14/4/2016 na sede da Procuradoria do Trabalho em Colatina-ES

para tratar de Projeto para pescadores artesanais proposta pela Federação dos Pescadores do Espírito Santo.
20 Ver em https://www.comriocommar.com.br/cartilhas-e-materiais as Cartilhas de subsídio às Oficinas que

colocam como “portas” em que os atingidos podem bater os diversos atores das arenas institucionais de
deliberação sobre o desastre – CIF, CTs, Renova, Conselhos, Prefeituras etc.
21 Ver https://www.ibama.gov.br/cif. O CIF é presidido pelo Ibama e composto por representantes da União,

dos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, dos municípios impactados, das pessoas atingidas, da
Defensoria Pública e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce.
22 Ver http://www.brasil.gov.br/recuperacao-da-bacia-do-rio-doce/camaras-tecnicas-do-comite-
interfederativo.
23 Ver www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/mpf-questiona-proposta-de-acordo-judicial-da-
uniao-e-estados-com-samarco-vale-e-bhp.
24 O TAC-Governança foi negociado entre representantes da União (Advocacia Geral da União), do estado

de Minas Gerais (Advocacia Geral do Estado), das empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP
Billiton Brasil Ltda., e do Comitê Interfederativo, assim como do Ministério Público Federal, Ministério Público
de Minas Gerais e das Defensorias Públicas da União e do estado do Espírito Santo, visando “reformular o
sistema de governança e repactuar os programas”. Ver http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-
samarco/documentos/parecer-no-279-2018. Ver www.ibama.gov.br/cif/tac-gov.
14
uma estrutura mais complexa de governança, com principal atenção a instituições de participação
da população. Para isso foram criadas as Comissões Locais, em 17 territórios (sendo 8 em MG, 8
no ES e mais o território quilombola de Degredo), as Câmaras Regionais e as Assessorias
Técnicas25. Ampliou-se também o espaço de participação no CIF e nas CTs. Criou-se um
“orçamento atingido” para garantir a participação nas instâncias criadas. Abre ainda a participação
dos atingidos nas CTs, no CIF e em colegiados da Fundação Renova.

A arena de governança do desastre é assim o lócus de deliberação sobre a reparação do


desastre. Esta deliberação, porém, não se restringe apenas a ela. Os órgãos que a integram são
desde sempre conectados com a arena das políticas públicas. Sem estas conexões a arena de
governança do desastre criada pelo TTAC teria déficits importantes nas funções deliberativas.
Embora formalmente pudesse ter uma grande capacidade deliberativa, atendendo em alto grau à
função epistêmica, haveria um déficit importante na inclusão das vozes dos atingidos – função
democrática -. Além disso, pode-se constatar que também haveria déficit na função ética, visto que
a composição dos espaços é marcada por grandes assimetrias em relação à participação dos
atingidos.

Os mecanismos de conexão com a arena de políticas públicas já estavam desenhados no


TTAC embora com déficits, principalmente na relação com os municípios. O TAC Governança cria
espaços de conexão com a arena da sociedade civil, além dos criados por iniciativas dos atores,
entre eles o CRCMOP, como veremos mais detalhadamente.

A arena de políticas públicas

Esta arena inclui órgãos públicos que integram os três poderes nos três níveis federativos,
incluindo Ministérios, Secretarias, as instituições da Justiça como o Ministério e a Defensoria
Públicos, e as instituições de controle social, vinculadas ao Executivo, como os conselhos gestores
de políticas públicas e comitês de bacia hidrográfica. O envolvimento dessas instituições na
construção de deliberações sobre a reparação do desastre, contudo, tem ocorrido de forma diversa
ao longo do tempo.

Alguns atores acudiram imediatamente à tomada de decisões sobre o desastre, logo após
aparecerem suas consequências. A Presidência da República, o Ibama, os órgãos de defesa civil,
o Mistério Público Federal, o Mistério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União agiram
no que podemos considerar o primeiro momento, isto é, antes mesmo da assinatura do TTAC. Os
governos estaduais e municipais tardaram e se incorporaram em tempos distintos a esta perspectiva

25 As Assessorias Técnicas são ONGs escolhidas pelas Comissões locais para assessorar os atingidos em
todos os espaços institucionais de participação. Elas são financiadas pela Fundação Renova, e são
monitoradas através de processo coordenado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos. As Comissões Locais
terão o apoio de Assessorias Técnicas para “Acompanhamento e/ou comparecimento nas instâncias ou
momentos de deliberação e debate” (cap.3, $2, Tac-gov).
15
de ação reparadora. Em especial os governantes do estado do Espírito Santo demoraram a
reconhecer o status de atingido do estado e dos municípios.

Embora formalmente colocadas na própria composição da estrutura de governança do


desastre (CIF, CTs e Renova) as conexões entre esta arena e a arena das políticas públicas mais
gerais não foram uma construção fácil. Integrando o CIF e as CTs, alguns gestores de políticas
públicas, como Secretários municipais e estaduais de Saúde e de Assistência Social pautaram
críticas à atuação da Fundação Renova, por assumir um protagonismo indevido nas tarefas
decisórias.

Exemplo claro disso é o caso apresentado pela CT Saúde, integrada por representante da
Secretaria de Saúde de Minas Gerais, quando acusa, em março de 201826, a necessidade de se
rever o Programa27 14, de “apoio à Saúde Física e Mental da População impactada” no sentido de
substituir “apoio e fortalecimento das políticas públicas” por “apoio e fortalecimento do Sistema
Único de Saúde” (Oficio 23, de 2018 do Coordenador da CT Saúde, p.1), explicitando a necessidade
de vinculação e contextualização de ações reparadoras pontuais com um Sistema nacional
assoberbado pelo desastre. No mesmo sentido, a Câmara Técnica de Organização Social (CT OS)
acusa divergências quanto ao Programa de Proteção Social apresentado pela Fundação Renova
pois “as ações da Assistência Social” não podem ser isoladas e nem ter “caráter meramente
voluntarista, altruísta, mas devem estar sempre dotadas do caráter de Direito Social
constitucionalmente previsto” e devem “ocorrer de forma integrada e articulada” (Nota Técnica nº24
CTOS, 2019). Assim, ao arbitrar estas questões, estas CTs destacam a necessidade de considerar
os sistemas de políticas públicas (como SUS e SUAS) que se organizam nos estados e munícipios,
considerando os espaços de participação e as capacidades estatais para a implementação das
políticas, mas cujas capacidades técnico-gerenciais e orçamentárias precisam ser apoiadas e
fortalecidas frente aos impactos decorrentes do desastre. Vemos assim a exigência da construção
de conexões entre a arena de governança de desastre e a de políticas públicas.

As críticas apresentadas acima se referem a um déficit nas funções que poderiam garantir
a legitimidade deliberativa do sistema: a Nota Técnica da CT OS se refere explicitamente ao risco
de soluções isoladas e “voluntaristas” quando a Fundação Renova ignora os princípios
constitucionais e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que a definem como direito do
cidadão que deve ser garantido de forma integrada. A Fundação infringe assim a função ética de
um processo deliberativo, quando se relaciona com os cidadãos como meros objetos de “altruísmo”
e não como sujeitos de suas vidas.

A incorporação dos municípios ao processo decisório da reparação foi lenta. Sem recursos
para ações emergenciais os gestores evitaram iniciativas até mesmo de reconhecimento das

26Ver Oficio 23, de 2018 do Coordenador da CT Saúde e Nota Técnica nº 024, de 2018 da CTOS.
27A Fundação Renova elaborou 42 programas, socioeconômicos e socioambientais, em resposta às cláusulas
do TTAC.
16
demandas. Os planos municipais de Saúde e de Assistência Social (de São Mateus e Linhares28)
nem sequer se referem ao desastre. A avaliação epidemiológica ignora as consequências do
desastre na saúde. Os Conselhos municipais, que elaboraram estes planos, não incorporam estes
problemas e não elaboram planos de metas para sua solução. O desastre não aparece nos
orçamentos municipais. Ainda assim, é possível notar casos isolados de servidores municipais
participando de espaços como o CRCMOP em busca das conexões necessárias para alterarem
este cenário.

Também se destaca a construção de conexões entre a arena de governança do desastre e


a arena de políticas públicas, quando o governo do ES cria um grupo de articulação “Comitê gestor
da Crise Ambiental na bacia do rio Doce”. Alguns municípios como Linhares também criam
conexões entre os órgãos das políticas municipais e a s CTs, como é o caso da “Intersetorial.
Linhares. Samarco”29.

V. As conexões e encaixes socioestatais

Na seção anterior vimos como as três arenas foram se incorporando à deliberação sobre a
reparação do desastre, através de conexões que aos poucos foram gerando um sistema
deliberativo. Vimos como cada uma das arenas, isoladamente, possui certas funções deliberativas,
mas, na falta de conexões, se perde muito da capacidade de se produzir decisões legitimas. É a
articulação de partes que integram a “divisão do trabalho deliberativo” que constrói a perspectiva
sistêmica, produzindo maior legitimidade deliberativa.

Nesta seção analisamos com maior detalhe como as conexões ocorreram e quais os
mecanismos de articulação e de construção de encaixes socioestatais. Notamos a construção de
conexões desde os primeiros momentos pós desastre. Elas ocorrem entre atores sociais, entre
sociedade e os órgãos de defesa que impetraram as primeiras ações judiciais, entre órgãos públicos
que acudiram em socorro dos danificados, na mitigação e na reparação dos danos.

No primeiro acordo (TTAC), as mineradoras tentaram alijar os atingidos do processo


decisório e construir uma estrutura de governança centralizada e sob seu controle. Sindicatos de
pescadores e o Ministério Público do Trabalho, outros atores sociais e outras instâncias do MP e
DP atuaram na construção de pontes entre a sociedade e o Estado para impedir isso. O MPF e os
MP dos estados, a DPU e a DP ES criaram grupos especializados e forças tarefa30 para ouvir as
comunidades e defender direitos dos atingidos. O MAB e o FCRD também foram atores importantes

28 Ver PMAS Linhares em https://linhares.es.gov.br/wp-content/uploads/2019/05/PMAS_LINHARES_2018-


2021.pdf.
29 O Comitê estadual foi criado pelo governador em 2015 (Decreto nº 3.896-R). O prefeito de Linhares criou

em 14/7/2017 através da Portaria 284 uma comissão intersetorial que articula 6 secretarias municipais, para
“tratar de assuntos referentes ao desastre da Samarco”, ampliada em 2018.
30 MPF: Força tarefa Rio Doce: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/atuacao-do-mpf;

NUDAM: http://www.defensoria.es.def.br/site/index.php/tag/nudam; GIRD - Grupo interdefensorial do Rio


Doce: http://www.defensoria.es.def.br/site/index.php/grupo-interdefensorial-do-rio-doce-gird.
17
na conexão dessas duas arenas uma vez que se empenharam em fomentar as Comissões Locais
e as Assessorias Técnicas – além das iniciativas de comunicação e espaços participativos prévios
à estrutura de governança do desastre. Seminários, encontros, reuniões, audiências públicas,
grupos de trabalho foram mecanismos de conexão entre estas arenas.

A metodologia participativa denominada CRCMOP, com seus objetivos expressos de facilitar


a elaboração de preferências informadas e sua apresentação às autoridades tomadoras de decisão
também tem sido um mecanismo de conexão, que possibilita a construção de encaixes
socioestatais. Assim como o CRCMOP, as CTs também têm atuado na conexão entre as três
arenas envolvidas na reparação do desastre. Muitos integrantes das CTs têm participado das
Oficinas do CRCMOP, colocando-se ao lado dos atingidos no enfrentamento ao autoritarismo da
Fundação Renova e na busca de soluções de reparação integral.

A CT de Participação, Diálogo e Controle Social (CT PDCS) se destaca pelo papel de


conector que visa a construção de encaixes – organizando encontros voltados ao conhecimento e
o diálogo entre atingidos e CTs, e demais integrantes das arenas decisórias. Ela se torna assim um
“ponto de acesso” às arenas decisórias. Este ponto de acesso é “historicamente mutável”, podendo-
se destacar duas mudanças no tempo: uma mudança favorável foi a criação do “orçamento atingido”
que permitiu a destinação de recursos das mineradoras para a realização de encontros com os
atingidos. Por outro lado, há relatos sobre o menor compromisso do novo coordenador da CT PDCS
(representando a Presidência da República) com a realização de encontros participativos, o que
poderia levar a um enfraquecimento de seu papel na construção de encaixes no sistema.

Outro mecanismo de conexão ou de construção de encaixe entre Estado e sociedade pode


ser visto na elaboração de propostas qualificadas a ser apresentadas às autoridades tomadoras de
decisões. As oficinas do CRCMOP vêm propiciando um trabalho de elaboração mais propositiva de
demandas nas áreas de saúde, meio ambiente, trabalho e geração de renda. Estas oficinas
promovem o desenvolvimento de argumentações técnica e cientificamente fundamentadas, com a
elaboração de uma linguagem propositiva, capaz de fazer o diálogo com as
autoridades. Argumentamos aqui que esta qualificação das propostas e da atuação dos atingidos,
promove a redução das assimetrias entre eles e as autoridades, e também se constitui em um
mecanismo para o estabelecimento de encaixes socioestatais, na medida em que propostas vindas
dos grupos atingidos de uma comunidade específica podem incorporar o leque de medidas de
reparação do desastre que instituições governamentais ou a Renova venha a implementar.

Fortalecidos por suas lutas, reforçados em seus argumentos pelos subsídios oferecidos pela
pesquisa e pelo diálogo com as CTs, os atingidos e as organizações da sociedade civil
intensificaram, a partir dos resultados do CRCMOP, sua participação em espaços da arena de
governança (CIF, CTs, Renova), seu diálogo com autoridades do MP e da DP, e com as prefeituras
e suas secretarias, com o objetivo de ampliar a sua capacidade de influência sobre a reparação dos
danos do desastre.
18
Não obstante, muitas destas conexões ocorrem de forma tardia e precária. O desastre-crime
da Samarco terá completado 4 anos, em novembro de 2019. A arena de governança do desastre,
principalmente a Fundação Renova, ainda relutam em atuar sistemicamente. Como arena isolada,
resta muito deficitária em suas funções ética e democrática. Dentre os muitos motivos que se pode
especular para estes déficits, é preciso compreender que a instituição da Fundação Renova no
TTAC se interpôs a uma perspectiva pública de responsabilização das mineradoras. Esta estratégia
de se criar uma fundação privada com papel de gestora da reparação resultou no retardamento da
construção de um sistema deliberativo. Talvez, na melhor das hipóteses, os proponentes dessa
estratégia tenham buscado dar celeridade ao processo de reparação. Entretanto, a dimensão do
desastre e seus impactos não permite que soluções sejam buscadas sem participação direta dos
atingidos. Isso se mostrou evidente na busca por conexões que atores das diversas arenas têm
realizado. Por conseguinte, ao longo dos últimos anos, tem emergido um sistema, ainda mal
ajustado. Algumas conexões não acontecem. Alguns atores como a Fundação Renova resistem em
se articular ao sistema, interagindo com as outras arenas. O sistema se fortalece na medida em que
atores sócio-políticos e técnicos buscam conectar as partes a fim de lhe prover sustentação e
legitimidade democrática.

Este trabalho apresenta a perspectiva sistêmica como capaz de iluminar o processo de


deliberação sobre a reparação do desastre ocorrido no rio Doce, compreendendo-o como composto
de partes complementares. Identificar conexões e lacunas de conexões entre estas partes permite
identificar déficits de legitimidade deliberativa e possibilidades de aumentá-la.

O processo de deliberação sobre a reparação do desastre da Samarco foi inicialmente


atribuído pelo TTAC a uma única arena de governança do desastre, denominada sistema CIF e
integrada pelo CIF, as CTs e Fundação Renova. As mineradoras tentaram isolar esta estrutura das
arenas societal e das políticas públicas que estavam igualmente afetadas pelo desastre. Atuações
consideradas desastrosas pelos atores sociais e por autoridades técnicas comprometidos com
políticas públicas de direitos questionaram esta atitude autocrática assumida pela Fundação
Renova. Destacam-se as notas públicas do MAB e do FCRD repudiando a não participação dos
atingidos no TTAC31. Também o MP repudiou este acordo e não o assinou até que se conseguiu
chegar ao TAC Governança. Alianças entre estes atores construíram as primeiras conexões
sistêmicas. A arena de governança criada pelo TTAC foi rejeitada e criticada até que o TAC gov
criou possibilidades para um sistema mais legítimo.

Vimos ainda como as atitudes isoladas, não sistêmicas, os déficits ético e democrático da
arena de governança do desastre foram questionados também dentro desta própria arena, através
de técnicos comprometidos com os paradigmas de garantia de direitos expressos no SUS e no
SUAS. Integrantes das CTs foram essenciais para construir conexões, propiciando o surgimento

31 Ver https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/acordo-foi-feito-sem-a-
participacao-dos-atingidos-diz-mab-em-relacao-a-termo-sobre-desastre-de-mariana.ghtml.
19
de um esboço de sistema deliberativo mais democrático. Algumas sedimentações institucionais
estão ganhando vida própria: até que ponto a CT PDCS conseguirá constituir-se como encaixe
institucional? Até que ponto o TAC Gov poderá converter-se no mesmo?

Também a metodologia participativa CRCMOP construiu conexões entre partes do sistema.


A formulação de preferências, representando a voz de muitos atingidos32, a elaboração de
propostas técnica e cientificamente fundamentadas, o diálogo com técnicos e autoridades
contribuíram para o empoderamento dos atingidos, diminuíram assimetrias entre estes e
autoridades, facilitaram diálogos, construíram conexões socioestatais, melhorando a legitimidade e
a capacidade deliberativa do sistema. Podemos identificar então que se destacam pela função de
construir conexões entre as 3 arenas alguns indivíduos, instituições ou processos que vêm atuando
como conectores: alguns atores sociais, especialmente o MAB, algumas CTs, especialmente a CT
de participação (CT PDCS), alguns integrantes da Defensoria Pública, algumas instituições do
Legislativo, como CPI e Comissão de Direitos Humanos.

A perspectiva sistêmica permitiu assim, por um lado, analisar as arenas envolvidas nas
deliberações sobre o desastre da Samarco, evidenciando três arenas relevantes neste processo e
sua essencial complementariedade. A abordagem dos encaixes institucionais permitiu, por outro
lado, identificar os processos socioestatais de construção de conexões, necessários para que as
arenas se articulem de modo sistêmico, isto é, quais os mecanismos que poderiam melhorar a
articulação sistêmica entre estas três arenas, de modo a melhorar a qualidade deliberativa do
sistema, ou a legitimidade das deliberações produzidas por ele.

32 Chegamos, em outubro de 2019, a 16 urnas em 5 municípios e mais de 8 mil votos em propostas.


20
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