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arenas deliberativas1
Resumo:
O artigo analisa as arenas deliberativas voltadas à reparação do desastre da Samarco, em suas
consequências sobre o rio Doce, no Espírito Santo: uma arena de governança do desastre, uma
arena de políticas públicas e uma arena da sociedade civil. Argumentamos, sob a ótica da teoria do
sistema deliberativo, que a conexão entre as arenas é fundamental para a implementação do
processo de reparação, podendo conferir maior legitimidade às decisões tomadas.
A análise se faz desde um ponto de vista privilegiado para a observação destas relações – uma
metodologia de participação da sociedade civil, denominada ComRioComMar Opinião Popular
(CRCMOP). Ela foi construída visando se articular com as estratégias participativas dos atores
sociais, e permite evidenciar as conexões entre arenas e traçar diagnósticos a respeito do sistema.
O artigo se insere no contexto de análise de instituições e espaços de participação. A perspectiva
sistêmica, na teoria deliberativa, permite analisar como nas três arenas se organizaram espaços de
participação que se conectam de forma complementar (Mansbridge et al, 2012). Analisa também a
existência ou falta de mecanismos que podem promover conexões entre as partes do sistema, e
que podem facilitar a construção de encaixeis institucionais (Skocpol, 1992). Assim, o artigo pode
contribuir para duas agendas: a que estuda a perspectiva dos sistemas deliberativos e a que avalia
as possibilidades de encaixes em processos de interação socioestatal (Gurza Lavalle et al, 2019).
I. Introdução:
Este artigo se volta à reflexão sobre a relação entre estas três arenas e seus papéis na
produção de deliberações voltadas à reparação do desastre, entre 2015 e 2019. Ele surge a partir
da constituição de um instrumento de participação da sociedade civil, denominado ComRioComMar
Opinião Popular (CRCMOP), que veio somar-se às demais ações que visam influir na formulação
de temas, problemas e soluções para a reparação do desastre.
4 Dornelas et al (2016) citam a existência de 13 ACP em tramitação no estado do Espirito Santo, impetradas
entre novembro de 2015 e maio de 2016. 7 delas impetradas pelo MP do estado, 5 pelo MPF e 5 impetradas
por outros autores como o Município de Colatina, de Linhares, Instituto Colatinense de Meio Ambiente e
Saneamento Ambiental (SANEAR), MP do Trabalho, IEMA e estado do Espírito Santo.
5 No TTAC, p. 2, está a declaração de que o objetivo do acordo, é a “integral recuperação do meio ambiente
Vemos assim que, para além do sistema de governança criado pelos TACs, a deliberação
pela “integral recuperação do meio ambiente e das condições socioeconômicas da região7”,
colocada como objetivo dos acordos, é também objetivo e interesse das outras arenas. Dada essa
rede de espaços participativos, constituída em partes e com paralelismos, num ambiente de
desastre que gerou intenso ativismo, cabe perguntarmos: Como a participação nestes espaços se
articula levando à deliberação de temas e problemas concernentes à reparação do desastre?
Argumentamos neste artigo que o conjunto de espaços participativos nas três arenas, com
diferentes formatos e diferentes capacidades deliberativas, buscam – com diferentes ênfases,
peculiares a cada arena – atuar na formulação de prioridades e no controle social sobre as políticas
de reparação do desastre. Uma abordagem sistêmica permitiria analisar sinergias, papéis,
complementariedades entre elas. Assim, temos como perguntas: a) quais mecanismos conectam
essas arenas? b) onde e quando as conexões não acontecem ou passam a existir?
Após esta introdução, na próxima seção discutiremos as contribuições e limites que teorias
da participação nos oferecem para analisar esse contexto de conexões entre espaços ou instâncias
participativas. Em seguida, descreveremos o processo de implementação do CRCMOP, construído
em articulação com as estratégias participativas dos atores sociais, e como ele pode ser utilizado
como instrumento metodológico para evidenciar as conexões entre arenas e traçar diagnósticos a
respeito do sistema. A quarta seção descreve como nas três arenas se organizaram espaços de
participação que buscaram contribuir para a deliberação de propostas e ações para a reparação do
desastre. A quinta seção analisa as conexões entre as arenas e a possível construção de encaixeis
socioestatais, concluindo com a reflexão sobre a importância dessas conexões para a legitimidade
deste sistema de reparação do desastre.
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II. Uma abordagem sistêmica
A obra Deliberative Systems, organizada por Jane Mansbridge e John Parkinson (2012) se
volta a algumas questões na teoria deliberativa, especialmente as diferentes dimensões da
deliberação, em espaços que podem ser vistos de forma complementar. Identifica diferentes arenas
com distintas funções e papéis no jogo político mais amplo. Considera estas diferentes arenas como
um conjunto de partes que se articulam - um sistema.
Estes desafios são coincidentes com as perguntas centrais deste trabalho, acerca de uma
rede ou “sistema” composto de diferentes arenas participativas, que exercem papéis e funções
distintas no “trabalho deliberativo” voltado à reparação do desastre da Samarco. Por isso
encontramos uma potência analítica adequada a eles na obra de Mansbridge et al, cujo argumento
central afirma a complementariedade entre os espaços que geram decisões políticas os quais,
isoladamente, não geram decisões com legitimidade deliberativa: “nenhum fórum, mesmo que
idealmente constituído, tem capacidade deliberativa suficiente para legitimar a maioria das decisões
e políticas adotadas nas democracias” (Mansbridge et al, 2012, p. 1). Por isso, afirmam os autores,
4
“(...) é necessário ir além do estudo das instituições e processos individuais e examinar sua
interação no sistema como um todo” (p. 2).
Aqui não estudamos porém um sistema estruturado, tal como um sistema de uma política
pública no Brasil, como o SUS ou o SUAS, com suas instâncias decisórias governamentais,
parlamentares e seus conselhos participativos (Almeida e Cunha, 2016), ou um sistema de
participação como o do Rio Grande do Sul (Fonseca, 2019), que não é setorial, mas é igualmente
estruturado. Analisamos uma rede de espaços que vão-se conectando formal e informalmente ao
longo do tempo por compartilhar atores e objetivos.
Tais funções podem ser específicas ou compartilhadas entre as arenas que compõem o
sistema. Segundo Mansbridge et. al. funções diferentes correspondem a uma “divisão de trabalho”
na qual as partes do sistema podem manter entre si “relações de complementaridade ou de
deslocamento” (p. 3). Assim o ônus ou a legitimidade da tomada de decisão não recai sobre apenas
um espaço ou arena, mas é distribuído entre as diferentes partes.
O sistema pode envolver partes ou instâncias institucionais ou não. Claudia F. Faria (2017,
p. 4). ressalta que a perspectiva dos sistemas deliberativos pode combinar “arenas formais de
tomada de decisão e arenas informais de formulação de temas e problemas concernentes ao
interesse público que devem operar conjuntamente na construção de decisões legítimas”. Em nosso
caso temos espaços participativos extra institucionais, organizados por movimentos sociais, nos
quais os protestos são formas de ação. Eles colocam em debate a linha entre a pressão e a
persuasão, que caracteriza a função epistêmica de um sistema deliberativo. Mas, segundo Fung
(2005), o protesto pode contribuir para o sistema deliberativo explicitando ou corrigindo fragilidades
nas suas funções. O protesto pode começar a “corrigir desigualdades no acesso à influência,
trazendo mais vozes e interesses para o processo de tomada de decisão”. Pode facilitar e promover
a circulação de informações úteis; pode facilitar e promover interações éticas e respeitosas entre
cidadãos (Mansbrige et al, 2012, p.19).
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Além do debate suscitado pela presença de protestos, em nosso caso também merece
reflexão a presença de especialistas. Eles, por um lado, são essenciais para a qualificação da
deliberação, mas, também podem fragilizar a qualidade deliberativa do sistema, especialmente em
sua função ética, que sublinha o respeito aos cidadãos. Num sistema deliberativo, os atores sociais
não devem ser pensados como “objetos da legislação” ou como “sujeitos passivos a serem
governados” (Gutmann e Thompson, 2004). Cabe assim a reflexão sobre onde e quando os
especialistas são apropriados e como deliberações de especialistas podem ser conectadas a
decisões dos grupos de cidadãos (Mansbridge et al, 2012, pg. 13). Inovações participativas podem
permitir que os cidadãos desenvolvam sua própria expertise e criem conexões através das quais a
sua expertise possa influenciar a política (Smith 2009).
Como analisar a conexão entre as partes de um sistema deliberativo? Uma referência teórica
que pode se somar às lentes sistêmicas para melhor analisar estas conexões8 vem da literatura
neoinstitucionalista, com Theda Skocpol e sua noção de encaixe entre Estado e sociedade.
Esta noção é desenvolvida pela autora em suas obras de 1985 a 1995. Skocpol (1985:26)
analisa “pontos de encaixe entre Estado e sociedade” como lócus de construção de significados
políticos e como conexão entre “grupos politicamente ativos” e “pontos de acesso e influência” às
“instituições” políticas (idem, 1992:41).
Nos processos de encaixe estão, por um lado, os atores sociais, com seus objetivos e
capacidades e, por outro, as instituições e seus pontos de acesso. Os dois lados podem operar de
8 Claudia Feres Faria (2017) aponta que o problema da conexão entre as partes é uma das lacunas
importantes da perspectiva dos sistemas deliberativos, e analisa alguns modelos de conectores.
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forma simultânea. As instituições abrem pontos de acesso, historicamente mutáveis. Os “grupos
politicamente ativos” desenvolvem capacidades para acessar os pontos que correspondam a seus
objetivos. Conforme observa Houtzager (2004:32) através destes processos de encaixe as
instituições dão a alguns atores e coalizões “acesso e influência sobre centros públicos de tomada
de decisões”. O autor assinala que a “habilidade de atores estatais e societários de produzirem
políticas inclusivas depende de sua capacidade de construir processos de encaixe e que estas
novas capacidades de ação se formam “a partir de reiterados ciclos de interação” (2004:32).
Com estes elementos temos então um arcabouço analítico que permite analisar um conjunto
de diferentes espaços de participação (com maiores ou menores capacidades deliberativas), que
compõem distintas arenas participativas institucionais ou extra-institucionais. Essa abordagem
permite olhar além dos potenciais e limites de cada arena, de forma isolada. Integradas a outras,
compondo um sistema, seus potenciais e seus limites poderiam ser aumentados, enfraquecidos ou
mesmo suprimidos na dinâmica de interação. Isto é, em diferentes momentos no tempo, um espaço
de participação pode ter maior ou menor capacidade de influir na deliberação de um tema, conforme
as conexões que surgem entre ele e as demais arenas que tratam do assunto.
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ponto privilegiado de observação das diversas partes do sistema e da conexão entre elas, ou sua
falta.
9 O CRCMOP foi baseado na experiência do Painel de Opinião Popular – P0P, em São Paulo
(https://www.p0p.com.br/).
10 Em outubro de 2019 temos 12 pontos de votação, em 5 municípios do estado (São Mateus, Colatina,
Com esta perspectiva, para entrar no território, buscamos construir relações com os atores
sócio-políticos que já atuavam pela reparação. Esta busca nos levou a atores locais e estaduais –
inicialmente identificados a partir das pesquisas sobre a Sociedade Civil no interior do projeto11.
Estes atores atuavam através de protestos e outras ações, articulando-se com outros atores
societários e construindo uma arena extra-institucional de ação da Sociedade Civil. Encontramos
atores com atuação mais local como associações de moradores e pescadores, e atores mais
amplos como pastorais diocesanas, fóruns e articulações regionais ou estaduais como a Aliança
Rio Doce e o Fórum Capixaba de Defesa do Rio Doce (FCRD) e nacionais como o Movimento dos
Atingidos por Barragens (MAB).
Conhecer estes atores, a sua atuação e o território onde atuavam foi essencial para a criação
do CRCMOP. A elaboração desta tecnologia de governança participativa ocorreu entre novembro
de 2017 e junho de 2018, a partir do estudo da realidade dos atores atuantes no estado e nas
comunidades – sua dinâmica de atuação, seus interesses, suas disponibilidades, dificuldades em
relação a deslocamentos e ao uso de tecnologias. Visitas de campo vêm ocorrendo desde 2017,
com a finalidade de conhecer as características geográficas das comunidades, o perfil de atuação
dos atores sociais locais e visando a reflexão sobre estratégias regionais de ação. O MAB e o FCRD
foram os interlocutores principais, permitindo-nos aprimorar o conhecimento da realidade, a relação
com lideranças e elaborar o primeiro desenho da proposta.
11 O Projeto é composto pelos seguintes eixos de pesquisa: (i) Sociedade civil; (ii) Capacidades estatais; (iii)
Políticas públicas; (iv) implantar tecnologia de governança participativa. Ver
https://www.comriocommar.com.br/pesquisa.
9
A participação nos locais de votação se dá através da coleta de votos com sugestões, em
urnas onde são depositadas cédulas de votação expressando preferências individuais. As urnas
ficam sob a responsabilidade de lideranças locais as quais, apoiadas por lideranças regionais,
promovem mensalmente debates e votações, informados por um Jornal trimestral, que apresenta a
síntese dos debates e votações anteriores.
Os votos de apoio às propostas são agregados por comunidade (ou associação, sindicato),
por município e pela totalidade das regiões atingidas. Esta agregação permite identificar e
consolidar as principais preferências, que serão apresentadas aos tomadores de decisão (policy
makers).
Colatina é um município capixaba cortado pelo rio Doce que utiliza sua água para
abastecimento da cidade; tanto a área urbana como rural foram atingidas. Conflitos e outras
prioridades locais dificultaram a implantação do CRCMOP, e a capacidade de mobilização e
geração de propostas foi menor13.
Notamos assim a necessidade de adaptações aos ritmos e à lógica própria dos interesses
dos atores locais. Enquanto em Colatina esta metodologia não parecia atrair os participantes, em
12 Antes disso, em junho de 2018 realizamos um pré-teste, com votações realizadas em encontro Estadual
do MAB e em reunião da coordenação do FCRD, onde se criaram as primeiras propostas. Em julho iniciamos
o piloto.
13 Como este espaço participativo não é promovido por autoridades públicas ou da Renova, e como não há
A iniciativa destas conexões também partiu de dentro das Câmaras Técnicas (CTs). A partir
da segunda Oficina, alguns integrantes das CTs começaram a procurar o CRCMOP para construir
diálogos com os atingidos. Uma outra arena deliberativa – a arena de governança do desastre - se
torna então permeável à participação dos atores societais. Neste momento a função do CRCMOP
se amplia. Para além de sua função epistêmica, de formação de preferências, criação de propostas,
ele passou a ser, também, um conector, ou seja, um facilitador de encaixes socioestatais. As
conexões com as CTs permitem aos atingidos a elaboração de suas propostas com base em
informação e debates mais qualificados.
14 Inicialmente foram reconhecidos como atingidos apenas os municípios da calha do Rio Doce, como Baixo
Guandu, Colatina e Linhares. O reconhecimento de outras populações atingidas seguiu ritmos diferenciados
e lentos, em resposta às lutas sociais. É o caso das comunidades pescadoras e marisqueiras do município
de São Mateus, da associação de Jacaraípe (ASPEJ) e dos pescadores de todo o estado representados pelo
Sindipesmes.
15 Após um ano o CRCMOP chegou a 16 pontos de votação em 5 municípios do estado (São Mateus, Colatina,
12
do rio, no trecho capixaba, desenvolvendo ações sociais com especial articulação nos municípios
de Colatina e Linhares. A Diocese de Colatina também se manteve como um ator de forte influência
local, que organiza anualmente uma marcha no aniversário do desastre como forma de protesto.
Num primeiro momento todos esses atores tiveram grande influência local e midiática.
Expuseram a dimensão do crime e suas consequências não apenas para as populações ribeirinhas,
mas também para grupos mais afastados que dependiam da água do mar ou da irrigação
proveniente da água do rio. Nota-se também as ações de divulgação em mídia paralela como a
criação da enciclopédia eletrônica participativa WikiRioDoce, com apoio do coletivo Aliança Rio
Doce. A arena da sociedade civil articula, de formas diversas nos diferentes momentos atores socio
políticos como sindicatos e associações de pescadores, marisqueiros, criadores de peixes,
associações de moradores, de comerciantes, a Comissão de Caciques indígenas de Aracruz, as
associações quilombolas de Degredo, ONGs voltadas à produção de alternativa econômica às
populações que viviam do rio etc.
17 Ver https://www.mabnacional.org.br/noticia/evento-na-onu-discute-vazamento-da-barragem-da-samarco-
e-retrocessos-nas-leis-ambientais-b-0.
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fortalecendo assim a função ética no sistema. No entanto, a arena da sociedade civil é frágil em
produzir efeitos nas políticas de reparação, caso permaneça desconectada de arenas formalmente
decisórias.
Vemos, porém, que os atores da sociedade civil constroem encaixes com as arenas
institucionais desde o início. Mecanismos de formação de encaixes são construídos inicialmente
através da aproximação das lideranças sociais com os promotores e defensores, e com deputados.
Desenvolvem-se ações em conjunto com estes aliados através da promoção de Audiências
Públicas18. O MAB se torna interlocutor privilegiado do MP nas negociações sobre o TAC gov. A
interlocução ocorre também com outros atores sociais como Sindicatos19.
Instituída a partir do TTAC de 2016 essa arena surge de forma pouco participativa contando
com o Comitê Interfederativo (CIF), as CTs e a Fundação Renova. O CIF tem como função “orientar
e validar os atos da Fundação Renova” à qual cabe “gerir e executar as medidas de recuperação
dos danos resultantes da tragédia”21. O Comitê Interfederativo (CIF) é composto por 11 Câmaras
Técnicas que prestam assessoria às decisões por meio de estudos e pareceres. Elas auxiliam os
membros do CIF a supervisionar e deliberar sobre os 42 programas definidos pelo TTAC22.
18 Audiências públicas foram promovidas na Câmara Federal, nas Assembleias legislativas. Ver por exemplo,
http://www.defensoria.es.def.br/site/index.php/2017/11/27/defensoria-participa-de-audiencia-publica-na-
camara-dos-deputados-sobre-dois-anos-do-desastre-de-mariana/; e www.mabnacional.org.br/noticia/em-bh-
audi-ncia-p-blica-faz-balan-dois-anos-do-crime-da-samarco-em-mariana.
19 Ver Termo de audiência realizada no dia 14/4/2016 na sede da Procuradoria do Trabalho em Colatina-ES
para tratar de Projeto para pescadores artesanais proposta pela Federação dos Pescadores do Espírito Santo.
20 Ver em https://www.comriocommar.com.br/cartilhas-e-materiais as Cartilhas de subsídio às Oficinas que
colocam como “portas” em que os atingidos podem bater os diversos atores das arenas institucionais de
deliberação sobre o desastre – CIF, CTs, Renova, Conselhos, Prefeituras etc.
21 Ver https://www.ibama.gov.br/cif. O CIF é presidido pelo Ibama e composto por representantes da União,
dos governos de Minas Gerais e do Espírito Santo, dos municípios impactados, das pessoas atingidas, da
Defensoria Pública e do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce.
22 Ver http://www.brasil.gov.br/recuperacao-da-bacia-do-rio-doce/camaras-tecnicas-do-comite-
interfederativo.
23 Ver www.mpf.mp.br/mg/sala-de-imprensa/noticias-mg/mpf-questiona-proposta-de-acordo-judicial-da-
uniao-e-estados-com-samarco-vale-e-bhp.
24 O TAC-Governança foi negociado entre representantes da União (Advocacia Geral da União), do estado
de Minas Gerais (Advocacia Geral do Estado), das empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP
Billiton Brasil Ltda., e do Comitê Interfederativo, assim como do Ministério Público Federal, Ministério Público
de Minas Gerais e das Defensorias Públicas da União e do estado do Espírito Santo, visando “reformular o
sistema de governança e repactuar os programas”. Ver http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-
samarco/documentos/parecer-no-279-2018. Ver www.ibama.gov.br/cif/tac-gov.
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uma estrutura mais complexa de governança, com principal atenção a instituições de participação
da população. Para isso foram criadas as Comissões Locais, em 17 territórios (sendo 8 em MG, 8
no ES e mais o território quilombola de Degredo), as Câmaras Regionais e as Assessorias
Técnicas25. Ampliou-se também o espaço de participação no CIF e nas CTs. Criou-se um
“orçamento atingido” para garantir a participação nas instâncias criadas. Abre ainda a participação
dos atingidos nas CTs, no CIF e em colegiados da Fundação Renova.
Esta arena inclui órgãos públicos que integram os três poderes nos três níveis federativos,
incluindo Ministérios, Secretarias, as instituições da Justiça como o Ministério e a Defensoria
Públicos, e as instituições de controle social, vinculadas ao Executivo, como os conselhos gestores
de políticas públicas e comitês de bacia hidrográfica. O envolvimento dessas instituições na
construção de deliberações sobre a reparação do desastre, contudo, tem ocorrido de forma diversa
ao longo do tempo.
Alguns atores acudiram imediatamente à tomada de decisões sobre o desastre, logo após
aparecerem suas consequências. A Presidência da República, o Ibama, os órgãos de defesa civil,
o Mistério Público Federal, o Mistério Público do Trabalho e a Defensoria Pública da União agiram
no que podemos considerar o primeiro momento, isto é, antes mesmo da assinatura do TTAC. Os
governos estaduais e municipais tardaram e se incorporaram em tempos distintos a esta perspectiva
25 As Assessorias Técnicas são ONGs escolhidas pelas Comissões locais para assessorar os atingidos em
todos os espaços institucionais de participação. Elas são financiadas pela Fundação Renova, e são
monitoradas através de processo coordenado pelo Fundo Brasil de Direitos Humanos. As Comissões Locais
terão o apoio de Assessorias Técnicas para “Acompanhamento e/ou comparecimento nas instâncias ou
momentos de deliberação e debate” (cap.3, $2, Tac-gov).
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de ação reparadora. Em especial os governantes do estado do Espírito Santo demoraram a
reconhecer o status de atingido do estado e dos municípios.
Exemplo claro disso é o caso apresentado pela CT Saúde, integrada por representante da
Secretaria de Saúde de Minas Gerais, quando acusa, em março de 201826, a necessidade de se
rever o Programa27 14, de “apoio à Saúde Física e Mental da População impactada” no sentido de
substituir “apoio e fortalecimento das políticas públicas” por “apoio e fortalecimento do Sistema
Único de Saúde” (Oficio 23, de 2018 do Coordenador da CT Saúde, p.1), explicitando a necessidade
de vinculação e contextualização de ações reparadoras pontuais com um Sistema nacional
assoberbado pelo desastre. No mesmo sentido, a Câmara Técnica de Organização Social (CT OS)
acusa divergências quanto ao Programa de Proteção Social apresentado pela Fundação Renova
pois “as ações da Assistência Social” não podem ser isoladas e nem ter “caráter meramente
voluntarista, altruísta, mas devem estar sempre dotadas do caráter de Direito Social
constitucionalmente previsto” e devem “ocorrer de forma integrada e articulada” (Nota Técnica nº24
CTOS, 2019). Assim, ao arbitrar estas questões, estas CTs destacam a necessidade de considerar
os sistemas de políticas públicas (como SUS e SUAS) que se organizam nos estados e munícipios,
considerando os espaços de participação e as capacidades estatais para a implementação das
políticas, mas cujas capacidades técnico-gerenciais e orçamentárias precisam ser apoiadas e
fortalecidas frente aos impactos decorrentes do desastre. Vemos assim a exigência da construção
de conexões entre a arena de governança de desastre e a de políticas públicas.
As críticas apresentadas acima se referem a um déficit nas funções que poderiam garantir
a legitimidade deliberativa do sistema: a Nota Técnica da CT OS se refere explicitamente ao risco
de soluções isoladas e “voluntaristas” quando a Fundação Renova ignora os princípios
constitucionais e a Política Nacional de Assistência Social (PNAS), que a definem como direito do
cidadão que deve ser garantido de forma integrada. A Fundação infringe assim a função ética de
um processo deliberativo, quando se relaciona com os cidadãos como meros objetos de “altruísmo”
e não como sujeitos de suas vidas.
A incorporação dos municípios ao processo decisório da reparação foi lenta. Sem recursos
para ações emergenciais os gestores evitaram iniciativas até mesmo de reconhecimento das
26Ver Oficio 23, de 2018 do Coordenador da CT Saúde e Nota Técnica nº 024, de 2018 da CTOS.
27A Fundação Renova elaborou 42 programas, socioeconômicos e socioambientais, em resposta às cláusulas
do TTAC.
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demandas. Os planos municipais de Saúde e de Assistência Social (de São Mateus e Linhares28)
nem sequer se referem ao desastre. A avaliação epidemiológica ignora as consequências do
desastre na saúde. Os Conselhos municipais, que elaboraram estes planos, não incorporam estes
problemas e não elaboram planos de metas para sua solução. O desastre não aparece nos
orçamentos municipais. Ainda assim, é possível notar casos isolados de servidores municipais
participando de espaços como o CRCMOP em busca das conexões necessárias para alterarem
este cenário.
Na seção anterior vimos como as três arenas foram se incorporando à deliberação sobre a
reparação do desastre, através de conexões que aos poucos foram gerando um sistema
deliberativo. Vimos como cada uma das arenas, isoladamente, possui certas funções deliberativas,
mas, na falta de conexões, se perde muito da capacidade de se produzir decisões legitimas. É a
articulação de partes que integram a “divisão do trabalho deliberativo” que constrói a perspectiva
sistêmica, produzindo maior legitimidade deliberativa.
Nesta seção analisamos com maior detalhe como as conexões ocorreram e quais os
mecanismos de articulação e de construção de encaixes socioestatais. Notamos a construção de
conexões desde os primeiros momentos pós desastre. Elas ocorrem entre atores sociais, entre
sociedade e os órgãos de defesa que impetraram as primeiras ações judiciais, entre órgãos públicos
que acudiram em socorro dos danificados, na mitigação e na reparação dos danos.
em 14/7/2017 através da Portaria 284 uma comissão intersetorial que articula 6 secretarias municipais, para
“tratar de assuntos referentes ao desastre da Samarco”, ampliada em 2018.
30 MPF: Força tarefa Rio Doce: http://www.mpf.mp.br/grandes-casos/caso-samarco/atuacao-do-mpf;
Fortalecidos por suas lutas, reforçados em seus argumentos pelos subsídios oferecidos pela
pesquisa e pelo diálogo com as CTs, os atingidos e as organizações da sociedade civil
intensificaram, a partir dos resultados do CRCMOP, sua participação em espaços da arena de
governança (CIF, CTs, Renova), seu diálogo com autoridades do MP e da DP, e com as prefeituras
e suas secretarias, com o objetivo de ampliar a sua capacidade de influência sobre a reparação dos
danos do desastre.
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Não obstante, muitas destas conexões ocorrem de forma tardia e precária. O desastre-crime
da Samarco terá completado 4 anos, em novembro de 2019. A arena de governança do desastre,
principalmente a Fundação Renova, ainda relutam em atuar sistemicamente. Como arena isolada,
resta muito deficitária em suas funções ética e democrática. Dentre os muitos motivos que se pode
especular para estes déficits, é preciso compreender que a instituição da Fundação Renova no
TTAC se interpôs a uma perspectiva pública de responsabilização das mineradoras. Esta estratégia
de se criar uma fundação privada com papel de gestora da reparação resultou no retardamento da
construção de um sistema deliberativo. Talvez, na melhor das hipóteses, os proponentes dessa
estratégia tenham buscado dar celeridade ao processo de reparação. Entretanto, a dimensão do
desastre e seus impactos não permite que soluções sejam buscadas sem participação direta dos
atingidos. Isso se mostrou evidente na busca por conexões que atores das diversas arenas têm
realizado. Por conseguinte, ao longo dos últimos anos, tem emergido um sistema, ainda mal
ajustado. Algumas conexões não acontecem. Alguns atores como a Fundação Renova resistem em
se articular ao sistema, interagindo com as outras arenas. O sistema se fortalece na medida em que
atores sócio-políticos e técnicos buscam conectar as partes a fim de lhe prover sustentação e
legitimidade democrática.
Vimos ainda como as atitudes isoladas, não sistêmicas, os déficits ético e democrático da
arena de governança do desastre foram questionados também dentro desta própria arena, através
de técnicos comprometidos com os paradigmas de garantia de direitos expressos no SUS e no
SUAS. Integrantes das CTs foram essenciais para construir conexões, propiciando o surgimento
31 Ver https://g1.globo.com/mg/minas-gerais/desastre-ambiental-em-mariana/noticia/acordo-foi-feito-sem-a-
participacao-dos-atingidos-diz-mab-em-relacao-a-termo-sobre-desastre-de-mariana.ghtml.
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de um esboço de sistema deliberativo mais democrático. Algumas sedimentações institucionais
estão ganhando vida própria: até que ponto a CT PDCS conseguirá constituir-se como encaixe
institucional? Até que ponto o TAC Gov poderá converter-se no mesmo?
A perspectiva sistêmica permitiu assim, por um lado, analisar as arenas envolvidas nas
deliberações sobre o desastre da Samarco, evidenciando três arenas relevantes neste processo e
sua essencial complementariedade. A abordagem dos encaixes institucionais permitiu, por outro
lado, identificar os processos socioestatais de construção de conexões, necessários para que as
arenas se articulem de modo sistêmico, isto é, quais os mecanismos que poderiam melhorar a
articulação sistêmica entre estas três arenas, de modo a melhorar a qualidade deliberativa do
sistema, ou a legitimidade das deliberações produzidas por ele.
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