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James Keenan, jesuíta e teólogo: “A Igreja profissionalizou-se” e o clero não sabe estar presente e
escutar as pessoas
Entrevista de António Marujo e José Maria Brito (PontoSJ) | 28 Dez 19 | Destaques, Newsletter, Últimas
A Igreja profissionalizou-se e o clero sabe como gerir uma paróquia mas não sabe estar presente, diz o
padre jesuíta e teólogo James Keenan. Em entrevista conjunta ao 7MARGENS e ao PontoSJ este
pensador e professor, que ensina actualmente em Roma, aborda várias questões a propósito da
exortação do Papa Francisco sobre a família, Amoris Laetitia.
Especialista em ética das virtudes, bioética e história das éticas teológicas, Keenan esteve em Junho em
Lisboa, a convite da Pastoral da Família da Companhia de Jesus e da revista Brotéria.
Na entrevista, agora publicada a propósito do domingo em que a Igreja Católica assinala liturgicamente
a festa da Sagrada Família, Keenan insiste em que a escuta é a palavra-chave neste momento para a
pastoral da Igreja: mas manifesta a dúvida de que a maior parte dos padres esteja preparada para
escutar, insistindo em que todo o clero – incluindo bispos – devem fazer essa experiência. “Quando
alguém está a sofrer é tão doloroso não ser escutado”, diz.
Keenan refere-se ainda à contestação de que o Papa tem sido vítima e à diferença, nas questões da
culpa e da consciência, entre as teologias do pós-II Guerra feitas nos EUA e na Europa.
Tive um professor de Direito Canónico que dizia: “a Tradição precisa de ser distinguida da fé morta dos
vivos e da fé viva dos mortos.” Isso pareceu-me muito inspirador porque a Tradição refere-se a uma fé
viva que tem um caminho contínuo e tem de seguir o seu caminho de uma forma prudente para não
levantar dificuldades. Por isso, a questão que se coloca é saber se o Papa está a ser prudente no modo
como abre a porta, do mesmo modo que podemos perguntar se o Papa João Paulo II foi prudente ao
abrir a porta num primeiro momento. Este é o ponto-chave.
E o que lhe parece?
J.K. – Penso que qualquer pessoa que leia o documento, que leia realmente o documento [sublinha de
forma muito enfática] encontra outros oito capítulos e muitas outras notas de rodapé que falam apenas
de acompanhar pessoas casadas. Ponto final parágrafo. Fim da questão. É disso que trata o documento.
É como um avô sentado na sala a dar conselhos sobre o modo de apoiar os casais e a ajudar o clero a
compreender como acompanhar as famílias. Creio que muita gente não leu o documento e, quando o
faz, fica surpreendida pelo modo como ele nos enche de vida.
Aconselho quem queira saber qual é o tema principal do documento a ler os capítulos dois e quatro. São
capítulos sobre o que é a vida familiar, sobre o que é o casamento e como deve ser o acompanhamento
da Igreja, sobre como é que um padre deverá estar disponível. Isto são coisas sobre as quais a maioria
das pessoas que se senta nos bancos da Igreja gostaria de ouvir falar.
E também se fala sobre o acompanhamento por parte de leigos… Podemos falar de um bom
acolhimento e de uma boa concretização da AL?
J.K. – Sim. Há vários exemplos. Na diocese de Rouen, em França, o bispo nomeou há [mais de] três anos
sete “padres da misericórdia”. Os casais que desejem falar sobre a sua situação podem procurar estes
padres. O bispo confia neles, no seu juízo prudencial, no seu acompanhamento e modo de proceder.
Este é um exemplo.
Tenho falado com um bispo da Califórnia e ele refere-se a diferentes programas desenvolvidos nas suas
paróquias. Passando por diferentes lugares para falar da AL vou percebendo que a linguagem do
acompanhamento se vai tornando mais familiar. É uma palavra que os padres estão a usar nas
paróquias.
Nas casas de retiros dos jesuítas agora diz-se “estou a acompanhar” alguém num retiro; antes dizia-se
“estou a dirigir”. Nunca tinha ouvido isto antes. A linguagem do acompanhamento está a tornar-se
normal e eu acho que este é um elemento chave. Poderia dar muitos outros exemplos no que toca a
este acompanhamento.
Mas ainda há muito trabalho a fazer?
J.K. – Sim. Os padres precisam de ser preparados. Este é o principal problema. Porque muitos dizem “eu
não sei como acompanhar”. Sou padre, tenho 66 anos e já ouvi muitas pessoas em confissão. Um bom
confessor é alguém que acompanha. O confessor ouve as pessoas no confessionário, procura
compreender o que dizem, fazer um bom julgamento, dar alguns conselhos pastorais, consolar. Tudo
para ajudar o penitente a ir mais além da absolvição, experimentando a graça do sacramento.
Não vejo isso em muitos padres e ouço muitos a dizer que não sabem como acompanhar. E eu
pergunto-lhes “porque é que és padre?” E ainda que sejam muito conservadores, eu digo-lhes: “Senta-
te num confessionário e aprende. Esse é um ministério de acompanhamento.”
No meu contexto, a Igreja profissionalizou-se. As pessoas sabem como gerir uma paróquia, mas não sei
se sabem estar pastoralmente presentes numa paróquia. O povo de Deus está desejoso de
acompanhamento, mas eu não sei se os padres estão preparados para isso. Uma coisa é pregar onde, de
certa maneira, se pode dizer o que se quiser. Outra coisa muito diferente é estar na situação humilde de
ouvir um casal ou uma pessoa e trabalhar com essas pessoas, estar disponível para elas. Este é o
ministério a que estamos chamados. Creio que é o ministério próprio do II Concílio do Vaticano, é o tipo
de ministério que o Papa Francisco defende na AL. E isto é o que eu acho entusiasmante na exortação.
Deve a Igreja preparar mais pessoas, incluindo jovens e jovens casais para acompanhar outros casais
jovens?
J.K. – Sim. A diocese de San Diego, na Califórnia, teve um sínodo e uma das coisas que ficou decidida foi
ter um programa de acompanhamento para todos os casais, em especial para os que se preparam para
o matrimónio. Há duas possibilidades: ou o casal escolhe um outro casal para o acompanhar ou a
paróquia designa um para o mesmo efeito. Esta segunda possibilidade é mais formal, mas vincula o
casal à paróquia como um todo. A escolha pessoal fica dentro da família e amigos em vez de alargar a
pertença à paróquia.
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Mas tudo depende da liderança do bispo. É o bispo fiel no que respeita ao ensinamento da AL? E o que
posso verificar é que estamos a presenciar um lento, mas firme desenvolvimento desta atitude. As
pessoas tomaram consciência de que estamos diante de uma nova forma de exercer o ministério.
Isso tem consequências na teologia, também?
J.K. – Isto também afeta os teólogos morais que já não escrevem uns para os outros, mas escrevem para
todos aqueles que exercem algum ministério para que possam saber como o devem fazer. Sejam eles
leigos, padres ou bispos. Por isso, a natureza eclesial do trabalho dos teólogos também mudou. Não se
trata de preparar pronunciamentos teológicos, mas de acompanhar as pessoas no seu trabalho.
Isto é muito entusiasmante e não me parece que seja muito difícil de aprender. Creio que é uma
questão de vontade e de humildade. Acredito que, quando começamos a aprender a ouvir, a olhar para
nós próprios como alguém que tem de lidar com a sua consciência e que procura encontrar-se com
outra pessoa que luta também com a sua consciência, experimentamos um apelo à abertura, à
honestidade e à integridade. Isto é acompanhar.
Costumo usar como modelo de acompanhamento os Penitenciários Irlandeses. Quando este modelo
começou as pessoas iam confessar-se a alguém a quem chamavam “um amigo da alma”. Alguém que,
na vizinhança, se sabia que tinha sofrido e que era conhecido por ser um ouvinte humilde. Seria bom ter
alguém com estas características nas nossas paróquias.
A escuta é a palavra-chave…
J.K. – A escuta é a palavra-chave, a escuta saudável… Quando alguém está a sofrer e quem ouve não
escuta a luta da pessoa que sofre, é tão doloroso… Escutar é estar realmente atento à pessoa.
Uma coisa que aprendi há alguns anos e que ensino aos meus alunos é que, quando vão ao médico, as
pessoas só dizem o que realmente as preocupa na terceira afirmação. Os médicos perguntam: “Como
está?” E as pessoas respondem: “Não tenho dormido bem, ando irritado, tenho aqui uma mancha…” E
de repente, quando chegam ao terceiro ponto é que tocam no que é importante.
O mesmo acontece na confissão. É quando chegam ao terceiro ponto que as pessoas tocam no que as
incomoda: “Faltei à missa, menti duas vezes, estou envolvido num caso extraconjugal, zango-me com os
meus filhos.”
E aí entra a escuta…
J.K. – A escuta é uma experiência de abertura à humanidade, é um modo de estar presente. Implica
hábito, um hábito frequente. É aqui que está a chave. Implica entrar dentro da experiência sacerdotal
para que os padres compreendam que a escuta vale a pena. Temos de ter bispos que façam esta
experiência. Os padres, bispos e teólogos que o estão a fazer experimentam uma enorme satisfação. E
os leigos envolvidos neste processo também sentem que este modo de ser Igreja é muito gratificante.
Isto mudará consideravelmente o modo de viver a vocação. Muitos jovens padres têm dúvidas quanto
ao modo como a sua vocação será sustentada. Se for através deste modo de encontro honesto e
relacional, será muito melhor para eles.
É mesmo assim?
J.K. – Mesmo na história, qualquer pessoa que escrevesse sobre consciência – os romanos ou os gregos,
por exemplo – falavam primeiro sobre a culpa. É interessante quando a pessoa se sente culpada por ter
feito algo errado ou que deveria ter feito e não fez. Ninguém o disse, mas há uma voz dentro de si que
faz a pessoa sentir-se culpada.
O despertar da consciência está geralmente ligado à culpa e, no século XX, a renovação da [reflexão
sobre a] consciência veio da Europa e dos europeus. Os americanos não tinham qualquer interesse
nesse tema. Se olharmos para algumas revistas teológicas não encontramos teólogos como Bernard
Haring ou qualquer outro europeu. Em parte porque, com Eisenhower, Roosevelt e outros, os
americanos apenas se limitaram a seguir os líderes: fizemos bem, a guerra acabou, acabámos com o
mal. É assim que vemos as coisas.
Nos Estados Unidos, não temos experiência de reconhecer a culpa: não há nenhum monumento em sítio
algum dedicado à escravatura. Não há nenhum monumento em nenhum lugar sobre a tentativa de
erradicar os povos nativos. Não há nada sobre Hiroshima e Nagasaki. Nós nunca pedimos desculpa,
nunca reconhecemos nada. Parte do ethos americano é que a linguagem da consciência é uma arma que
eu uso para dizer que estou em desacordo.
É diferente do que se passa na Europa?
J.K. – Na Europa Ocidental, a apropriação da consciência aconteceu logo após o fim da Guerra e
permaneceu. Nos seminários, as pessoas que mais tarde se tornariam bispos e cardeais estavam
realmente convencidas da importância da consciência em todos os assuntos da vida. As outras igrejas de
língua inglesa – seja na Inglaterra, Irlanda ou Austrália ou em qualquer outro lugar – têm uma posição
semelhante à dos EUA. Falarão de consciência como “uma opção de saída”: “Lamento mas tenho de
seguir a minha consciência…”
Os europeus que olham para a culpa e a complexidade da II Guerra Mundial reconhecem-na
experimental, social e pessoalmente e percebem que a única coisa que os condenou realmente foi a sua
consciência. Aprenderam, experimentalmente, uma voz moral. Por isso, uma das coisas que me
preocupa é se compreendemos que a humildade é o contexto ou a base da consciência – essa é a chave.
Onde há humildade, há possibilidade de desenvolvimento da consciência. Sem humildade, não há
consciência.
Temos de ouvir os ditames da consciência. Há muito a fazer no ensino sobre consciência e o Papa fá-lo
bem. Na festa de Pedro e Paulo [29 de Junho], o Papa disse que, quem pense que é melhor do que
outro, está a começar mal. Se não se pensar com humildade, não estará a pensar em consciência.