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Pesquisa 279 PDF
Pesquisa 279 PDF
Crânios das espécies Buriolestes schultzi (no alto) e Bagualosaurus agudoensis, que viveram há cerca de 230 milhões de anos
Drauzio Varella Fibra cashmere UFPA identifica Novas iniciativas Autonomia foi
defende o SUS, feita no país milhões de incentivam decisiva para
fala do trabalho tem qualidade hectares mulheres a melhorar as
Ano 20 n.279
www.fapesp.br/ciencia-aberta
Uma parceria:
@AgenciaFAPESP
@agfapesp
Nióbio em flor
“Flores” nascem dentro de um equipamento que funciona como uma panela de pressão,
em um laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
“Inserimos oxalato amoniacal de nióbio e hidróxido de amônio”, conta o químico Marcos
Vinícius Petri, que sintetizou o composto em parceria com o colega Eduardo Carmine
de Melo. “Nas proporções corretas, nessas condições de alta temperatura e pressão,
formam-se estruturas cristalinas em folha que depois se organizam como flores.” Para
enxergar esses buquês, só usando microscópio eletrônico: são microflores. A conformação
permite a produção de catalisadores mais eficientes, por terem mais superfície de
contato. O laboratório se dedica a entender como esses compostos funcionam.
p. 18
vídeo youtube.com/user/pesquisafapesp
p. 58 p. 64
12 Notas Entrevista:
Luciano Queiroz e Altay de Souza
Responsáveis
pelos podcasts
Dragões de Garagem
e Naruhodo!
debatem estratégias
para divulgação
p. 46
científica
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Conteúdo a que a
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Medalha que vale vaga na universidade
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Por e-mail:
léo ramos chaves
6 | maio DE 2019
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
carta da editora
Marco Antonio zago
Presidente
Conselho Superior
Conselho Técnico-Administrativo
A
Diretor Científico
Coordenador científico
dos e descritos pela comunidade cientí- a presidência do Conselho de Reitores
Luiz Henrique Lopes dos Santos fica local, com pesquisadores do exterior. das Universidades Estaduais Paulistas
diretora de redação
Alexandra Ozorio de Almeida
O primeiro dinossauro daquele perío- (Cruesp), a autonomia permitiu que as
editor-chefe
do encontrado em território brasileiro, três crescessem e chegassem ao pata-
Neldson Marcolin
Staurikosaurus pricei, foi descrito na lite- mar das melhores instituições da Amé-
Editores Fabrício Marques (Política C&T),
Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), ratura científica nos anos 1970; Saturna- rica Latina (página 48). Nas próximas
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores especiais),
Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro e Yuri Vasconcelos lia tupiniquim foi escavado no final dos edições, Pesquisa FAPESP continuará
(Editores-assistentes)
anos 1990. Nesta década, foram quatro, tratando do tema.
repórteres Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade
sendo o último, anunciado em janeiro
redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
do Prado (Mídias Sociais) deste ano, Nhandumirim waldsangae, um **
arte Mayumi Okuyama (Editora), Alexandre Affonso (Editor de
infografia) Felipe Braz (Designer digital), Júlia Cherem Rodrigues e
pequeno carnívoro bípede com 1,5 metro O oncologista paulistano Drauzio Varella
Maria Cecilia Felli (Assistentes) de comprimento que viveu no que hoje é o médico mais conhecido do país. Co-
fotógrafo Léo Ramos Chaves
é a região central do Rio Grande do Sul. meçou no rádio nos anos 1980, depois
banco de imagens Valter Rodrigues
O número de descobertas recentes no foi para a televisão, onde é visto por mi-
Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil)
Brasil, apresentadas na reportagem de lhões de pessoas nas noites de domingo,
capa (página 18), sugere que o país se es- descobriu-se escritor de livros, mantém
revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro
A
Universidade Duke, nos Estados Unidos, pesquisa entre 2006 e 2018. Doze artigos
fechou um acordo com a Justiça e aceitou científicos foram retratados também por utilizarem
pagar US$ 112,5 milhões, o equivalente informações manipuladas. O trabalho da
a R$ 440 milhões, para encerrar um processo no pesquisadora tornou-a coautora de dezenas de
qual uma pesquisadora da instituição era acusada de artigos científicos, que estão sendo investigados.
falsificar dados em artigos científicos e em relatórios “Potts-Kant se engajou em fraudes sistemáticas”,
apresentados a órgãos federais de fomento à acusou o ex-analista de laboratório da universidade
pesquisa, como os Institutos Nacionais de Saúde Joseph Thomas, que denunciou o caso e
(NIH) e a Agência de Proteção Ambiental (EPA). iniciou a ação contra Duke em parceria com o
Erin Potts-Kant, coordenadora de pesquisa clínica Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
da divisão pulmonar na Duke Health, complexo Segundo ele, a pesquisadora chegou a inventar
de hospitais e escolas de medicina e enfermagem da conjuntos inteiros de dados.
universidade, tinha como função certificar a O escândalo chamou a atenção não apenas pelas
validade de resultados de trabalhos da unidade, cifras, mas também por recorrer a uma legislação
mas, em vez disso, modificava dados desfavoráveis raramente utilizada em casos de integridade
para facilitar a obtenção ou manutenção de científica: a Lei de Alegações Falsas, que pune
financiamento. Projetos sobre a função pulmonar quem comete fraudes usando recursos federais
de ratos, que se basearam em dados manipulados, com o pagamento de indenizações vultosas,
somaram US$ 200 milhões em verbas federais para equivalentes a até três vezes o dinheiro desviado
8 | maio DE 2019
ou obtido irregularmente. A maior quando o caso eclodiu. Por conta
parte dos US$ 112,5 milhões irá para as disso, desde abril de 2018 os NIH
agências de fomento que financiaram passaram a impor restrições adicionais
projetos com dados falsificados. A lei Devemos aceitar a pesquisadores da Duke. Projetos
também permite que denunciantes com financiamento a partir de
recebam até 30% da indenização
a responsabilidade US$ 250 mil são obrigados a fornecer
estabelecida. No caso de Duke, o autor e reconhecer que orçamentos mais detalhados do que
da ação, Joseph Thomas, vai receber o exigido de outras instituições.
US$ 33,75 milhões. “O acordo envia
nossos processos A universidade se defendeu, em
uma forte mensagem de que a fraude não funcionaram, uma declaração oficial, dizendo que só
e a desonestidade não serão toleradas descobriu a possível fraude em 2013
no processo de financiamento de
disse o reitor depois que Potts-Kant foi demitida.
pesquisa”, afirmou, em nota oficial, Vincent E. Price E argumentou que, inicialmente,
o Departamento de Justiça. não compreendeu a gravidade e
Potts-Kant perdeu o emprego em a extensão do crime. O reitor
2013, quando o caso veio à tona e da universidade, o cientista político
ela também enfrentou acusações de Vincent E. Price, informou que a
desviar dinheiro da instituição. Mas instituição está revendo seus
isso não foi o suficiente para reverter o em explicações de Potti que mais processos para promover a integridade
estrago na reputação da Universidade tarde se revelaram inconsistentes científica. “Esperamos que os
Duke, envolvida em outros (ver Pesquisa FAPESP nº 189). Os pesquisadores da Duke sempre
escândalos. Uma das mais prestigiosas dois pesquisadores foram demitidos. sigam os mais altos padrões de
universidades norte-americanas, O descaso da instituição no episódio integridade e praticamente todos
berço de 13 ganhadores do prêmio de Potti e Nevins foi citado como fazem isso com muita dedicação”,
Nobel e responsável por um mau exemplo em um amplo relatório disse. “Quando indivíduos não
orçamento anual de pesquisa na casa apresentado em abril de 2017 pelas cumprem esses padrões e quem está
de US$ 1 bilhão, a instituição já Academias Nacionais de Ciências, ciente de possíveis erros não os
enfrentava outras acusações de Engenharia e Medicina dos Estados relata, como aconteceu nesse caso,
práticas negligentes. Em meados dos Unidos, com recomendações para devemos aceitar a responsabilidade,
anos 2000, dois pesquisadores de aperfeiçoar práticas e políticas reconhecer que nossos processos
Duke, Anil Potti e Joseph Nevins, relacionadas à integridade científica para identificar e prevenir desvios
selecionaram pacientes para realizar nos Estados Unidos (ver Pesquisa de conduta não funcionaram e tomar
ensaios clínicos de métodos capazes FAPESP nº 255). “Não sei se medidas para melhorar.”
de predizer a evolução de certos tipos Duke mudou suas práticas, mas não No ano passado, a universidade
de câncer e apontar o tratamento ficaria surpreso se o problema se nomeou a ginecologista Geeta Swamy
mais adequado. O recrutamento repetisse”, criticou, na apresentação para o recém-criado cargo de
foi realizado embora já se soubesse do documento, o bioengenheiro vice-reitora de integridade científica.
que tinham sido detectados Robert Nerem, presidente do Também abriu um Escritório de
erros nos trabalhos científicos que comitê que produziu o relatório. Integridade Científica e começou a
embasavam as técnicas. Na No caso de Potts-Kant, a exigir planos detalhados e prestação
ilustrações zansky
contramão das evidências de que universidade foi acusada de de contas para todas as unidades da
os métodos eram problemáticos, acompanhar de modo frouxo o Duke Health. Price anunciou, ainda,
a universidade liberou os ensaios trabalho de seus pesquisadores e de a criação de um Painel de Excelência
em fevereiro de 2010, fiando-se demorar a tomar atitudes incisivas e Integridade em Pesquisa, que
vai propor novas políticas para a
universidade até 30 de junho, e de um
comitê de supervisão executiva,
liderado por A. Eugene Washington,
chanceler para assuntos de saúde.
“Continuamos a ter confiança na alta
qualidade do corpo docente da Duke
e em suas pesquisas”, afirmou Price.
“O acordo judicial, que resulta de
má conduta intencional que ocorreu
em um laboratório, mas que afetou o
trabalho de muitos pesquisadores,
não deve diminuir o trabalho de salvar
vidas que acontece todos os dias na
Universidade Duke.” n Fabrício Marques
ilustração zansky
em território norte-americano tenha nos Estados Unidos para
congressos e conferências receber os US$ 50 milhões.
talhados para arrecadar dinheiro Caso a Omics insista em políticas
de pesquisadores. predatórias, a comissão vai
Quando os eventos são pedir que suas revistas sejam
anunciados, a editora convida removidas da internet e
pesquisadores da área para promete contatar hotéis e centros
submeter trabalhos ou fazer de convenção onde a empresa
palestras. Mas se eles aceitam e faz suas conferências para
enviam seus manuscritos, são alertar sobre suas práticas.
surpreendidos com a publicação
instantânea em revistas de anais
de conferências, sem que se
faça uma revisão por pares
autêntica. A conta, sobre a qual Plágio causa retratação de artigo de padre
ninguém havia falado, finalmente
aparece: os autores são cobrados
a pagar taxas que alcançam O artigo “A estrada para Emaús e a Dougherty no jornal canadense
milhares de dólares. E não adianta estrada para Gaza”, publicado em National Post. O padre trabalhava
reclamar do valor e pedir a 1994 pelo padre canadense Thomas no serviço em língua inglesa do
retirada dos artigos. Os pedidos Rosica, de 60 anos, foi retratado Escritório de Imprensa do Vaticano
são ignorados e as cobranças pela revista Worship, um periódico e comandava uma emissora católica
reiteradas. Segundo a FTC, a acadêmico revisado por pares de televisão no Canadá. Ele admitiu
Omics tem o costume de listar especializado em estudos sobre as falhas éticas, interrompeu sua
nomes de editores que não têm liturgia. Isso porque o religioso produção de textos de divulgação e
nenhum vínculo com suas copiou trechos de seis diferentes renunciou ao posto de conselheiro
revistas nem sabem que estão teólogos no artigo, sem mencionar de uma instituição de ensino
sendo mencionados. a fonte. Não foi um caso isolado. superior confessional ligada à
A editora foi criada em 2007 O professor de filosofia da Universidade de Toronto, o
e publica mais de 700 periódicos Universidade Dominicana de Ohio University of St. Michael’s College.
de acesso aberto. Quem Michael Dougherty analisou 30 anos “Não quero que meus erros turvem
comemorou a condenação foi de produção literária de Rosica a governança da universidade e
o bibliotecário Jeffrey Beall, e o acusou de plagiar trabalhos de ofereçam um mau exemplo para
conhecido por criar uma lista teólogos, jornalistas e até cardeais estudantes, educadores e
na internet com periódicos em dezenas de palestras que funcionários”, explicou o religioso
predatórios, revistas de baixa proferiu e colunas publicadas em uma nota. “Todos sabemos que
importância e reputação que na imprensa. “Nosso escrutínio plagiar é errado. Minhas ações
publicam artigos sem qualidade mostrou que o plágio era um hábito nunca foram deliberadas, mas
em troca de dinheiro – a chamada duradouro e consistente”, escreveu estavam erradas.”
10 | maio DE 2019
Dados Universidades paulistas:
30 anos de autonomia
INDICADORES DE PRODUTIVIDADE
Desde 1989, quando as três
universidades paulistas, USP, 1989 2017 Variação
Unicamp e Unesp, passaram
Funcionários 35.167 27.593 -22%
a gozar de autonomia
Docentes 11.065 10.914 -1,4%
financeira plena, seus
Receitas do Tesouro
indicadores de produtividade
(R$ milhões 2017)* 6.052 9.116 +51%
apresentaram ganhos
Vagas na graduação 12.584 22.169 +76%
significativos, sendo que o
Alunos matriculados 80.325 188.453 +135%
número de docentes e
Graduação 57.055 118.920 +108%
funcionários caiu no período
Pós-graduação 23.270 69.533 +199%
de 1989 a 2017
Títulos concedidos 9.238 27.589 +199%
Graduação 6.900 15.976 +132%
Pós-graduação 2.338 11.613 +397%
Mestrado 1.571 6.311 +302%
Doutorado 767 5.302 +591%
Publicações científicas 1.064 17.175 +1.514%
* Valores médios de 2017, corrigidos pelo IGP-DI
2,50
2,32 Títulos de graduação
2,25
2,08 Matrículas de graduação
2,00 Base
1,75 1989 = 1,00 1,76 Vagas de graduação
0,25
0
1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017
18
14
12
10
8
Base Títulos de doutorado
1989 = 1,00
6,91
6
Títulos de mestrado
4 4,02
2,99 Matrículas de PG
2
1,51 Receitas do Tesouro
0
1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017
Fontes Incites/Web of Science/Clarivate (tipos: Article, Proceeding Paper e Review). Anuários USP, Unicamp, Unesp
Notre-Dame
em chamas em
15 de abril
(abaixo) e
reconstituída
digitalmente
Catedral
Notre-Dame em 3D
12 | maio DE 2019
O dia em que detalhado da devastação 4
incluindo os dinossauros. um rastro de destruição Como os seres humanos e alguns outros primatas,
Trabalhando sob a que se estendeu por um os gorilas também exibem comportamentos carac-
coordenação de raio de 3 mil quilômetros terísticos do luto. A conclusão é de um grupo de
uma equipe da (PNAS, 1º de abril). pesquisadores do Fundo Internacional Dian Fossey
Universidade do Kansas, Os fósseis estudados para o Estudo de Gorilas, do Instituto Congolês para
os pesquisadores guardavam evidências a Conservação da Natureza, e das universidades
encontraram o conjunto do cataclismo, como de Uppsala, na Suécia, e da Califórnia, nos Estados
de fósseis após seis anos detritos de vidro Unidos. Por meio de fotos e vídeos, os primatólogos
fotos 1 wikimedia commons 2 Andrew Tallon / Vassar College 3 Robert DePalma 4 Dian Fossey Gorilla Fund
14 | maio DE 2019
Quanto os americanos
sabem de ciência
16 | maio DE 2019
Diretrizes para
os cursos de
engenharia
Cérebros parcialmente
reavivados
O Ministério da Educação
cérebro tratado com
aprovou diretrizes que
nutrientes e oxigênio
buscam atualizar a Em um experimento que lembra o romance Frankenstein, da
base curricular dos escritora inglesa Mary Shelley (1797–1851), pesquisadores da Neurônios
Uma recomendação é nos cérebros tratados com solução inerte (Nature, 17 de abril). Cérebros que
engajar os estudantes, Segundo os pesquisadores, o cérebro do primeiro grupo de animais receberam
nutrientes e
logo nos primeiros anos de se comportou como se, em nível celular e molecular, estivesse
oxigênio (no alto)
curso, em atividades quase vivo. Em nenhum momento, porém, os pesquisadores preservaram mais
práticas para a solução observaram atividade elétrica global organizada, necessária células do que os
de problemas concretos. para funções complexas como atenção, percepção e consciência tratados com
solução inerte
As medidas foram e característica do funcionamento pleno do cérebro. O estudo
(acima)
elaboradas pela pode ter criado um modelo tridimensional e sofisticado para
Mobilização Empresarial estudar doenças neurológicas e testar tratamentos. Também
pela Inovação (MEI), abriu discussões éticas sobre os limites da vida e da morte.
fórum vinculado à
Confederação Nacional da
Indústria (CNI), e pela
Associação Brasileira
de Educação em
Engenharia (Abenge), que
enviaram as propostas
ao Conselho Nacional de
Educação em março
de 2018 (ver Pesquisa
FAPESP nº 267).
Na avaliação da CNI,
as diretrizes devem
modernizar o ensino de
engenharia, preparando
os alunos para trabalhar
com tecnologias
avançadas, como
inteligência artificial e
internet das coisas.
“Precisamos formar
engenheiros com
habilidades e capacidades
mais convergentes com as
transformações digitais”,
disse a economista Gianna
Sagazio, diretora de
Inovação da CNI. 4
A primeira terra
dos dinossauros
Centro do Rio Grande do Sul abriga, ao lado da
Argentina, os mais antigos fósseis desses répteis,
que surgiram há 230 milhões de anos
Marcos Pivetta
Rodrigo Müller
18 | maio DE 2019
Crânio de Buriolestes
schultzi, uma das seis
espécies de dinossauros
antigos achados na
região de Santa Maria
N
o início do ano, a paleontologia bra- Ao lado do recém-descoberto Nhandumirim,
sileira forneceu mais uma pista con- fazem parte desse sexteto primordial Stauriko-
creta de que os dinossauros podem saurus pricei, primeiro dinossauro encontrado
ter surgido na América do Sul, de no Brasil e descrito na literatura científica em
longe a hipótese mais plausível dian- 1970, Saturnalia tupiniquim, achado por Lan-
te do conjunto de fósseis atualmente disponível, e ger no final dos anos 1990, e outras três espé-
igualou uma disputa informal que era dominada cies identificadas nesta década: Pampadromaeus
há mais de meio século, quase sempre com folga, barberenai, Buriolestes schultzi e Bagualosaurus
por argentinos: agora cada país contabiliza seis agudoensis. A maioria era carnívora ou onívora
espécies de dinossauros extremamente antigos, (podia comer de tudo). Apenas Bagualosaurus e,
que estiveram entre os primeiros a deixar suas em menor escala, Pampadromaeus apresentavam
marcas sobre a Terra. Em fevereiro de 2019, uma uma dentição que parecia mais adaptada a um
equipe coordenada pelo paleontólogo Max Lan- regime predominantemente herbívoro.
ger, da Universidade de São Paulo (USP), campus Comparados com seus primos da Argentina,
de Ribeirão Preto, descreveu um pequeno car- os dinossauros da idade Carniana da região de
nívoro bípede, com no máximo 1,5 metro (m) de Santa Maria ainda são pouco conhecidos mesmo
comprimento, que viveu há 233 milhões de anos entre os paleontólogos. “Boa parte deles foi en-
na área onde atualmente se encontra o municí- contrada e descrita nos últimos anos. Para mim,
pio de Santa Maria, no centro do Rio Grande do entre as novas descobertas, eles são certamente a
Sul, a uma distância de cerca de 300 quilômetros mais importante para nos ajudar a entender a ori-
(km) de Porto Alegre. gem e a evolução inicial dos dinossauros”, opina
Com Nhandumirim waldsangae, nome cientí- o paleontólogo norte-americano Steve Brusatte,
fico dado à espécie apresentada ao público em da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Além
artigo no Journal of Vertebrate Paleontology, o de fazer pesquisa sobre as primeiras formas de
Brasil passou a contar com meia dúzia de dinos- dinossauros que surgiram no planeta, Brusatte
sauros retirados de rochas de idade Carniana, o se dedica a divulgar para o grande público a saga
primeiro estágio da época denominada Triássi- desses répteis. Foi o principal consultor científico
co Superior, que compreende um período entre do filme Caminhando com os dinossauros, pro-
237 e 227 milhões de anos atrás. “Encontramos dução de 2013 da rede britânica BBC, e lançou
o fóssil quando, durante um trabalho de coleta seis livros para leigos sobre o tema. A tradução
em fevereiro de 2012, um colega pisou em um para o português do mais recente deles, Ascen-
osso do dedo do animal que estava exposto nas são e queda dos dinossauros: Uma nova história
rochas de um conhecido sítio paleontológico da de um mundo perdido (Record), foi lançada neste
região”, recorda-se o paleontólogo Júlio Mar- mês no Brasil.
sola, primeiro autor do artigo científico, que Não é possível datar diretamente fósseis de mi-
estudou a nova espécie em seu doutorado, de- lhões de anos como os de dinossauros e de outras
fendido no ano passado na USP. Além de Brasil formas de vida do passado remoto, cujos tecidos
e Argentina, nenhum outro país tem fósseis tão biológicos literalmente viraram pedra ao longo
antigos que sejam consensualmente considera- do tempo. É uma situação diferente da que ocorre
dos como de dinossauros. com vestígios humanos ou de animais que vive-
Dois dinossauros
da espécie
Bagualosaurus
agudoensis
Rincossauro,
Um pequeno réptil herbívoro,
cinodonte, ancestral do gênero
dos mamíferos Hyperodapedon
ram a no máximo algumas dezenas de milhares menos o dobro das dimensões de Staurikosaurus, Ilustração da
de anos atrás. Nessa escala de tempo bem menor, com quem partilha alguns traços anatômicos. O fauna do Rio
Grande do Sul no
é possível que ainda se encontre nos fósseis algum segundo era outro bípede carnívoro, só que com
Triássico Superior,
colágeno, proteína que pode ser utilizada para no máximo 1 m de comprimento, que foi am- época em
datação pelo conhecido método do carbono 14. plamente divulgado em 1993 pelo paleontólogo que viveram os
A única alternativa, diante de achados paleonto- norte-americano Paul Sereno, da Universidade primeiros
dinossauros
lógicos tão antigos como os dinossauros, é tentar de Chicago, um de seus descobridores.
estabelecer uma cronologia da camada rochosa
em que eles foram encontrados e, assim, inferir datação por zircão
sua provável antiguidade. “É impossível dizer qual desses dinossauros bra-
Os fósseis das seis espécies encontradas no Rio sileiros e argentinos é o mais velho”, comenta
Grande do Sul saíram da formação Santa Maria, Langer, coautor dos trabalhos científicos que
nome da unidade geológica que se situa na região descreveram cinco dos seis dinossauros brasilei-
da cidade homônima e abriga rochas carnianas. ros oriundos de rochas carnianas (ver entrevista
Todos eram de animais de pequeno porte. O maior do paleontólogo na página 24). No ano passado,
deles, Staurikosaurus, seria o único estritamente Langer publicou um artigo científico com a da-
carnívoro e atingia 2,5 m de comprimento, mas tação por cristais de zircão de rochas carnianas
sua altura chegava apenas à cintura de uma pes- da formação Santa Maria, para as quais encon-
soa adulta (ver quadro comparativo na página 21). trou uma idade máxima de 233 milhões de anos.
As seis espécies de dinossauros mais antigos da Esse é o método mais preciso para estabelecer a
Argentina, que historicamente têm uma paleon- geocronologia de rochas tão antigas como as do
tologia mais ativa e com mais depósitos fossilífe- Triássico Superior. “As rochas carnianas da for-
ros do que o Brasil, também viveram por volta de mação Santa Maria são 1,5 milhão de anos mais
230 milhões de anos atrás. Todas são oriundas das velhas do que as de Ischigualasto, segundo as
rochas carnianas da formação Ischigualasto, nas datações de que dispomos. Mas, na prática, diria
ilustração Jorge Blanco
províncias de San Juan e La Rioja, a mais de mil que há um empate técnico entre a idade dos dois
quilômetros a noroeste de Buenos Aires. As mais lugares”, explica o paleontólogo da USP.
conhecidas são Herrerasaurus ischigualastensis No mesmo trabalho, também foi determinada a
e Eoraptor lunensis. O primeiro era um bípede idade máxima das rochas da formação Caturrita,
carnívoro descrito em 1963 que tinha mais ou que usualmente recobre Santa Maria e às vezes
20 | maio DE 2019
O sexteto de Santa Maria
Os dinossauros que viveram há 230 milhões de anos em área hoje dentro do
Rio Grande do Sul eram pequenos, com, no máximo, 1 metro de altura
Saturnalia
tupiniquim Staurikosaurus pricei
150 cm
Nhandumirim
waldsangae Buriolestes Bagualosaurus
schultzi agudoensis
Pampadromaeus
100 cm barberenai
50 cm
São João do
-1
BR
Polêsine
tes também têm sido encontrados na Caturrita,
como os três exemplares de um novo gênero e Agudo
Santa
espécie de dinossauro herbívoro encontrado em Maria
um mesmo bloco de rochas, Macrocollum itaquii.
BR-287
Descrito no ano passado na literatura científica
como o registro mais antigo de um dinossauro de
pescoço longo, o comprimento total do réptil era
BR-
por aproximadamente 1 m. 10 km RS
Há registros de fósseis controversos mais anti-
gos ou contemporâneos aos dinossauros de idade
Carniana encontrados no Brasil e na Argentina.
O réptil Nyasasaurus parringtoni, cujos fósseis Uma origem partilhada
extremamente fragmentados foram achados na Ao lado de outras formas de répteis, como os pterossauros e os silessaurídeos, os
Tanzânia, viveu há 243 milhões de anos, como dinossauros pertencem a um grande grupo animal denominado Avemetatarsalia
indicam as rochas de idade Anisiana, um está- Triássico Jurássico
gio do Triássico Médio, em que seus vestígios
Inferior Médio Superior
foram encontrados. Alguns autores chegaram 252 ma 247 ma 237 ma 201 ma
a considerá-lo um verdadeiro dinossauro, mas Pseudossúquios (linhagem dos crocodilos)
atualmente a espécie aparece com afinidades
incertas em quase todas as classificações. Afanossauros
Pedaços de ossos
dos dedos de
Nhandumirim
waldsangae
e reconstituição
artística da espécie unidos em um único supercontinente, Pangea,
pontuados por desertos e clima árido. A metade
norte era denominada Laurásia e a sul Gondwana.
A América do Sul estava ligada à África e ocupa-
alguns autores consideram Pisanosaurus como va o centro-sul de Gondwana, onde a umidade
um silessaurídeo, grupo próximo aos dinossau- seria um pouco maior.
ros. Para outros especialistas, os silessaurídeos
seriam dinossauros ornitísquios. Sacisaurus agu- Fósseis raros
doensis, outro pequeno herbívoro gaúcho, só que Durante todo o período Triássico, entre 251 e
encontrado na formação Caturrita, é considerado 201 milhões de anos atrás, a forma dominante de
um silessaurídeo. No hemisfério Norte, também vertebrados terrestres foi a dos arcossauros, um
existem registros antigos de animais de difícil vasto grupo de répteis do qual se originaram os
classificação filogenética, que seriam antecesso- dinossauros, os crocodilianos e os pterossauros.
res próximos dos primeiros dinossauros. Um de- “Apenas 5% dos fósseis que encontramos na for-
les é Saltopus elginensis, bípede carnívoro de 60 mação Santa Maria são de dinossauros”, explica o
fotos 1 Átila Da Rosa 2 Laboratório de Paleontologia / USP Ribeirão Preto ilustração Jorge Blanco
centímetros que viveu há aproximadamente 230 paleontólogo Flávio Pretto, do Centro de Apoio à
milhões de anos onde hoje é a Escócia. Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (Cap-
Em seus primórdios, os dinossauros eram um pa), unidade da UFSM inaugurada em 2013 e lo-
grupo discreto e não muito abundante de répteis calizada em São João do Polêsine, bem no meio
de pequeno porte que ocupavam uma posição da faixa de 250 quilômetros que compreende a
muito distinta do status de senhores da Terra ou formação Santa Maria (e também a Caturrita).
da imagem de pináculo da grandiosidade e da fe- No acervo do Cappa, há cerca de 200 fósseis de
rocidade popularizada por filmes de ficção. Eles répteis e pré-mamíferos antigos já catalogados,
surgiram como coadjuvantes em um mundo cujas mas ainda não estudados. “Devemos ter outros
formas de vida passavam por um grande processo 200 à espera ainda de catalogação”, diz Pretto.
de reacomodação. Os paleontólogos concordam A proeminência da paleontologia nacional na
que os dinossauros surgiram alguns milhões de busca pelos dinossauros mais antigos do plane-
anos (quantos exatamente ninguém sabe) de- ta se deve a investimentos feitos nos últimos 20
pois da maior extinção em massa registrada na anos na montagem de equipes de pesquisadores,
Terra, ocorrida na passagem do período Per- sobretudo no Rio Grande do Sul, mas também
miano para o Triássico, há 252 milhões de anos. em outros estados da federação, e ao aumento de
Causado provavelmente por um aquecimento incursões no campo para estudar afloramentos
anormal da atmosfera e acidificação excessiva do Triássico com potencial de abrigar fósseis.
dos oceanos, esse cataclismo extinguiu cerca de Para o geólogo e paleontólogo Átila Da-Rosa,
95% das espécies marinhas e 70% das terrestres do campus central da UFSM, em Santa Maria, a
do planeta. Na época em que surgiram os primei- implantação no início dos anos 1990 do projeto
ros dinossauros, todos os continentes estavam Pró-Guaíba, patrocinado pelo governo gaúcho
22 | maio DE 2019
Afloramento no sítio
paleontológico
Janner, em Agudo, no
Rio Grande do Sul,
onde foram
encontrados fósseis
de dois dinossauros,
Pampadromaeus
barberenai e
Bagualosaurus
agudoensis
com dinheiro do Banco Interamericano de De- fora que participam de algum trabalho de cam-
senvolvimento (BID) para estudar o ambiente po na região. No Departamento de Geociências
da bacia hidrológica do rio Guaíba, permitiu o situado no campus central da UFSM, em Santa
início da exploração de áreas importantes que Maria, os paleontólogos Átila Da-Rosa e Sérgio
abrigavam sítios da pré-história remota. “Tudo Dias-da-Silva se encarregam de estudar os sítios
começou mais ou menos nessa época, sobretudo que estão em Santa Maria e em localidades vizi-
em razão da atuação de paleontólogos da Funda- nhas a oeste da cidade.
ção Museu de Zoobotânica (FZB) do Rio Grande Um dos planos dos pesquisadores da UFSM e
do Sul”, comenta Da-Rosa. do Cappa é construir um museu para abrigar os
Além dos pesquisadores da FZB, que hoje corre principais achados paleontológicos da região e
risco de ser extinta pelo governo gaúcho, paleon- aumentar o trabalho de educação e divulgação
tólogos da Universidade Federal do Rio Grande do científica. Por ora, essa meta ainda não foi alcan-
Sul (UFRGS), da Pontifícia Universidade Católica çada. “Nossa sociedade não valoriza como deve-
(PUC-RS), da Universidade Luterana do Brasil ria o fato de termos os dinossauros mais velhos
(Ulbra) e também de instituições de outros esta- do mundo”, diz o paleontólogo Luiz Eduardo
dos, como a USP e a Universidade Federal do Rio Anelli, do Instituto de Geociências da USP, que
de Janeiro (UFRJ), passaram a realizar viagens publicou 16 livros de divulgação científica sobre
regulares nas duas últimas décadas para estudar esse grupo de répteis e outros animais da pré-
e coletar fósseis em afloramentos das formações -história brasileira. “Se esses fósseis tivessem sido
Santa Maria e Caturrita. A proximidade do campus encontrados na Europa ou nos Estados Unidos,
central da UFSM e do Cappa, que se situa a me- eles já teriam criado algo como o ‘parque dos
nos de 50 quilômetros da cidade de Santa Maria, primeiros dinossauros’, que seria visitado pelos
possibilita atualmente um acesso rápido e fácil nossos turistas.” n
aos principais afloramentos com fósseis da região.
O Cappa conta com três paleontólogos (Leo-
nardo Kerber, Rodrigo Temp Müller e Flávio Projeto
Pretto), um funcionário administrativo e um carro A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico –
à disposição. Eles são encarregados de monito- Eojurássico) (nº 14/03825-3); Pesquisador responsável Max Langer
(USP); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 2.411.452,01.
rar os sítios pré-históricos nos nove municípios
Artigos científicos
a leste de Santa Maria que fazem parte da área
MARSOLA, J. C. A. et al. A new dinosaur with theropod affinities
denominada Quarta Colônia. “Estamos a meia from the Late Triassic Santa Maria Formation, South Brazil. Journal
hora de carro da maior parte dos sítios e pode- of Vertebrate Paleontology. 14 fev. 2019.
mos visitá-los toda semana”, explica Pretto. O PRETTO, F. A., LANGER, M. C. e SCHULTZ C. L. A new dinosaur (Sau-
rischia: Sauropodomorpha) from the Late Triassic of Brazil provides
centro também dispõe de um alojamento para insights on the evolution of sauropodomorph body plan. Zoological
10 pessoas que pode acolher pesquisadores de Journal of the Linnean Society. 25 mai. 2018.
Como classificar
a vida pré-histórica
Paleontólogo explica o que faz de um
réptil um dinossauro e fala das discussões
sobre a origem desses animais
O
paleontólogo Max Langer, da hipótese de que os dinossauros podem um ancestral comum. Por essa definição,
Universidade de São Paulo ter surgido na América do Sul. todos os descendentes desse ancestral
(USP), campus de Ribeirão comum são considerados dinossauros.
Preto, acaba de voltar de uma O que torna um réptil um dinossauro e É dessa forma, por exemplo, que as aves
viagem de 10 dias à provícia de La Rioja, o diferencia de outros répteis contem- são classificadas como dinossauros. Elas
no noroeste da Argentina. Ao lado de porâneos? descendem desse ancestral comum.
pesquisadores locais e de colegas bra- Não é simples responder essa pergunta.
sileiros, participou de coletas em sítios Há diferentes formas de fazer essa dis- Que importância os paleontólogos atri-
importantes da formação Ischigualas- tinção. Atualmente, a definição do que é buem à discussão sobre o local em que
to, de onde, ao lado da formação Santa um dinossauro tem mais a ver com a sua os dinossauros devem ter surgido?
Maria, no Rio Grande do Sul, tem saído árvore genealógica, a história evolutiva Esse debate tem um pouco a ver com
os dinossauros mais antigos do mundo. de seus membros, do que com algumas certo orgulho em dizer que os dinos-
Langer, de 45 anos, conhece ainda características anatômicas que seriam sauros teriam surgido em seu país ou, na
mais profundamente os fósseis gaúchos. típicas desse grupo, como ter o quadril pior das hipóteses, em seu continente ou
Fez mestrado na Universidade Federal perfurado para o encaixe do fêmur ou as hemisfério. Mas a questão não se resume
do Rio Grande do Sul (1996), doutora- patas posicionadas diretamente abaixo a isso. Como paleontólogos, estudamos
do na Universidade de Bristol (2001), do corpo. As classificações modernas se os padrões de diversidade e distribuição
no Reino Unido, e já perdeu a conta de baseiam no conceito de clados, grupos de geográfica das espécies ao longo da his-
quantas vezes realizou trabalhos de cam- organismos que têm uma história evoluti- tória geológica. Trata-se de ciência bási-
po na parte central do território gaúcho. va comum. Os dinossauros são definidos ca. É importante entender como se deu
Ele participou da descoberta de dois fós- com base na posição filogenética de três a irradiação das diferentes linhagens de
seis de dinossauros encontrados em ro- gêneros classicamente vistos como repre- dinossauros, que são animais muito po-
chas da idade Carniana (por volta de 230 sentantes de suas principais linhagens: o pulares e despertam a atenção. Os fósseis
milhões de anos atrás) da formação Santa terópode (bípede carnívoro) Megalosau- são frágeis e seu registro é incompleto.
Maria. É também coautor de cinco dos rus, o ornitísquio Iguanodon e o saurópo- Sabemos que uma nova descoberta pode
seis trabalhos científicos que descreve- de (quadrúpede herbívoro) Cetiosaurus. mudar tudo, mas, com base nas evidên-
ram essas espécies. Nesta entrevista, ele Partimos desses três animais e percorre- cias que temos hoje, o mais provável é
fala sobre as evidências que favorecem a mos sua árvore genealógica até chegar em que os dinossauros tenham surgido no
24 | maio DE 2019
Pesquisador da USP
em afloramento da
região de Santa Maria
apresentam duas espécies, H. mariensis de Ischigualasto. Mas nelas também não
e H. sanjuanensis, cujos fósseis são igual- foram achados dinossauros. Por isso, di-
mente achados nas duas formações. go que, por ora, as evidências indicam
que os dinossauros devem ter surgido
Gondwana, a metade sul do supercon- A paleontologia nos Estados Unidos e na América do Sul.
tinente Pangea que existia há cerca de na Europa é mais desenvolvida do que
230 milhões de anos. Para ser mais pre- aqui. Por que eles não encontraram até Mas o fato de se ter encontrado na Áfri-
ciso, o mais provável é que tenham sur- agora dinossauros mais antigos do que ca o fóssil de um réptil de 245 milhões
gido no oeste do Gondwana, onde hoje os da América do Sul? de anos não enfraquece a hipótese a
fica o sul da América do Sul e da África. Não basta ter dinheiro. Quase todas as favor da América do Sul?
Incluo aqui a África, que estava unida à rochas do Triássico Superior dos Esta- Sim, enfraquece um pouco, mas nem de
América do Sul no Gondwana, pois es- dos Unidos com registro fóssil de tetrá- longe derruba essa hipótese. O fóssil des-
tamos trabalhando na descrição de um podes, grupo que inclui os atuais anfí- se possível dinossauro achado na Tanzâ-
dinossauro africano mais ou menos da bios, répteis, aves e mamíferos, foram nia, Nyasasaurus parringtoni, é muito mal
mesma idade dos nossos. datadas. Algumas são mais antigas que preservado. Foram encontrados apenas
as de Santa Maria e de Ischigualasto, algumas vértebras e um úmero parcial.
Os dinossauros mais antigos das forma- mas não têm dinossauros. Claro que é Não dá para saber se é realmente um di-
ções Santa Maria e Ischigualasto po- possível que tenha havido dinossauros nossauro. Até pode ser. Mas, a partir ape-
dem ter mantido algum tipo de contato? tão antigos quanto os nossos ali, mas, nas dele, não dá para dizer que os dinos-
É provável que sim. Alguns dinossauros, possivelmente por não terem sido tão sauros surgiram em outro lugar e não na
como Chromogisaurus novasi, da Argen- abundantes nessas regiões, eles não fo- América do Sul. Seria necessário um con-
tina, e Saturnalia tupiniquim, são muito ram preservados. Essa é uma das hipóte- junto mais completo de fósseis de dinos-
parecidos. Há até quem sugira que eles ses. Ou eles podem mesmo não ter exis- sauros de outras partes do mundo em
seriam uma única espécie. Também há tido na América do Norte. Na Europa, há rochas da mesma idade ou mais velhas
arquivo pessoal
outros animais que ocorriam tanto lá co- duas localidades, uma na Polônia e outra que as de Santa Maria e Ischigualasto
mo aqui. Os rincossauros [um tipo de rép- na Escócia, que parecem ter rochas da para se refutar a ideia da origem sul-ame-
til herbívoro] do gênero Hyperodapedon mesma idade que as de Santa Maria e ricana desses animais. n Marcos Pivetta
Palavra de
médico
Oncologista que tratou os primeiros casos de Aids
no país utiliza todas as mídias para esclarecer questões
que considera relevantes sobre saúde pública
F
oi em 1983, durante um estágio no Sloan Kettering
Memorial Hospital, em Nova York, que Drauzio idade 76 anos
Varella percebeu que a Aids chegaria ao Brasil com
especialidade
força. Apesar de já ter mais de 10 anos de experiência
Oncologia
em oncologia, acostumado a ver doentes em estado
grave, os pacientes soropositivos que viu nos Estados Unidos instituição
o impressionaram. Todos jovens, muitos eram artistas e inte- Membro do corpo
lectuais. “Fiquei muito tocado com essa experiência”, lembra. clínico do Hospital
“Tive a sensação exata de que ia acontecer uma tragédia.” Sírio-Libanês
Começou a estudar o assunto. Quando voltou ao Brasil, era
formação
o único oncologista com experiência em sarcoma de Kaposi
Graduação em medicina
disseminado – um tipo raro de câncer, comum em pacientes
pela Universidade de
com Aids. Como os infectologistas tinham pouca experiência
São Paulo (1967)
com a nova enfermidade, o próprio Drauzio começou a tra-
tar dos casos de Aids no Hospital do Câncer, em São Paulo, produção
vindos de todo o Brasil. 16 artigos científicos
Dois anos mais tarde, durante um congresso médico em e 16 livros, entre os
Estocolmo, na Suécia, ao sair de uma grande discussão sobre quais Estação Carandiru
a epidemia de Aids, o oncologista se viu pensando sobre outro
aspecto da doença, o preconceito, e sobre como enfrentá-lo.
26 | maio DE 2019
PESQUISA FAPESP 279 | 27
“Naquela época, a ignorância era brutal. fazer?”, perguntou. Primeiro, precisa-
Isso está acontecendo no Brasil e nin- mos aprender, expliquei. Contatei o Gor-
guém vai falar nada?” Nasceu ali uma don Cragg, chefe do setor de produtos
atividade que o tornaria o médico mais naturais do National Cancer Institute
conhecido do país, primeiro por intermé- Na pesquisa [NCI], que tem o maior projeto de scree-
dio do rádio, depois da televisão, dos jor- ning do mundo para câncer. Fui para lá e
nais impressos, dos livros e da internet.
Classificada por ele como atividade
feita com ele disse que haviam perdido o interesse
pelo Brasil em razão das acusações de
educativa por meio de veículos de co-
municação de massa, o seu trabalho de plantas da biopirataria. Mas ofereceu suporte téc-
nico, podíamos mandar gente que eles
comunicação abrange uma infinidade preparariam. Teríamos de aprender a
de temas e assuntos, que às vezes ex- Amazônia, fazer a extração e, depois, seria preciso
trapolam a saúde. A controvérsia não o um trabalho de taxonomia rigoroso por-
assusta – aos 76 anos, com a consciên- chegamos a que se errar a classificação da planta está
cia de que a vida é finita, se dá o direito tudo perdido. O pesquisador mais res-
de dizer o que pensa. Em seus textos e
manifestações públicas, Drauzio defende
cinco extratos peitado na área de taxonomia de plantas
amazônicas, Douglas Daly, trabalhava
o direito ao aborto, a descriminalização
das drogas e a ineficácia da política de com atividade no New York Botanical Garden. Saí do
NCI e fui para Nova York conhecê-lo.
encarceramento em massa como forma Encontrei um norte-americano falan-
de combate à violência. antineoplásica do português com sotaque de caboclo
Casado com a atriz Regina Braga des- amazônico: “Rapaaaaiz...”. Apaixonado
de 1981, pai de duas filhas de seu pri-
meiro casamento e avô de duas netas, o
intensa, que pelo Brasil, mantinha um projeto com a
Universidade Federal do Acre. Monta-
oncologista paulistano divide seu tempo
entre os pacientes, a comunicação e a estão sendo mos um herbário, mandamos uma jovem
recém-saída da Universidade de São
escrita, para ele uma fonte de felicida- Paulo [USP], Ivana Sufredini, que apren-
de. Nesta entrevista, conta sobre suas estudados deu toda a parte técnica da extração. Ela
atividades de pesquisa, reclama da pou- voltou para cá e montou o laboratório,
ca importância dada ao Sistema Único depois retornou ao NCI para testar os
de Saúde (SUS) pela população, fala de extratos em linhagens tumorais que eles
seu trabalho de comunicação e da forte cederam para nós.
relação com o mundo carcerário, onde
aprendeu a apreciar a cachaça. quiser, até o Robert Gallo”. O Gallo, na E como foi essa experiência?
época, estava merecidamente no topo da Foi uma epopeia. Para coletar as plantas,
Entre todas as suas atividades, certa- pesquisa sobre Aids. Fizemos esse curso, precisava de licença do Ibama. Naquela
mente a menos conhecida é a relacio- com mais de 20 convidados, inclusive o época, era uma tragédia. Entregávamos
nada à pesquisa científica. Como foi a Gallo, que foi transmitido para 20 audi- o projeto, que caía em um buraco negro.
realizada com plantas da Amazônia? tórios de várias cidades pela Embratel, Foram anos assim. Coletamos tudo que
No final de semana do massacre do Ca- patrocinado pela Unip, com a qual eu dava. A Unip tem hoje a maior extrato-
randiru, em outubro de 1992, organiza- tinha uma ligação informal. teca da floresta amazônica, são 2.200
mos um curso sobre biotecnologia em extratos. Chegamos a cinco extratos com
Aids e câncer em um hotel em São Paulo. E da viagem nasceu um projeto? atividade antineoplásica mais intensa,
A biotecnologia estava começando, era a Do barco não se vê uma planta igual a que estão sendo estudados. É um proje-
área mais quente na biologia. No Brasil outra na margem. Observando essa bio- to de pesquisa muito interessante, que
não tinha quase nada e queríamos tra- diversidade, Gallo perguntou: “Do ponto contou também com financiamento da
zer gente do primeiro time para chamar de vista biológico, vocês têm algum es- FAPESP. Temos produzido e publicado
a atenção sobre esse campo. Conversei tudo de screening sendo feito aqui?”. Ele bastante.
com um amigo na Cleveland Clinic, Ron queria saber se extratos de planta eram
Bukowski, sobre como organizar um cur- sistematicamente analisados e testados Como você escolheu a oncologia?
so. Ele me disse: “O Brasil está fora do para doenças. Fiquei com aquilo na ca- Eu me formei na USP em 1967. Comecei
trajeto internacional. Se quer levar gen- beça. Como tínhamos a infraestrutura a residência em saúde pública, mas de-
te para aí, precisa oferecer um passeio, necessária, poderíamos montar um pro- sanimei, era muito teórico. Queria pôr
um fim de semana na praia...”. Como a jeto. Fui falar com o [João Carlos] Di a mão na massa, trabalhar em posto de
Unip [Universidade Paulista] tinha um Genio, dono do Objetivo e da Unip. Eu saúde. Fui aluno do Luis Rey na parasi-
barco na Amazônia, o Escola da Nature- tinha contato apenas ocasional, mas ele tologia, uma das maiores autoridades
za, uma gaiola amazônica típica, pensei: tem uma característica, percebe as coi- brasileiras em malária. Ele foi posto pa-
“E se levasse esse pessoal para lá?”. E ele sas que são interessantes, nem precisa ra fora da universidade em 1964, junto
respondeu: “Daria para levar quem você explicar muito. “Como é que você quer com o Erney Plessmann de Camargo
28 | maio DE 2019
Como foi da oncologia para a Aids?
arquivo Pessoal
arquivo Pessoal
acontece aqui, quantas pessoas estão
infectadas aqui dentro”. A partir desse
número, definir o que vai ser feito.
Como começou?
Propus fazer uma pesquisa com o pes-
soal que recebia visitas íntimas. Era uma
amostra significativa, 1.500 pessoas ins-
critas no programa. Consegui uma doa-
ção dos kits para os testes e o trabalho de
coleta podia ser feito pelos presos usuá-
rios, os “baqueiros”, que sabem pegar
veia melhor que qualquer um. Conversei
com o diretor e ele me trouxe uns cinco
presos. Perguntei e eles tinham expe-
riência. “A gente pega veia com agulha
torta, com esse material do senhor é até
covardia”, um deles respondeu. Colhe-
mos sangue de 1.492 pessoas. Testamos,
e 17,3% estavam infectadas. Das travestis
Drauzio entrevista moradoras do Acre sobre malária para o programa Fantástico, em 2018 presas na Casa havia mais de seis anos,
100% estavam infectadas. Comecei a usar
esses dados para falar com as autorida-
dessas, vou ficar muito mal com meus aula 25 vezes por semana. Adolescente des. O mínimo que tínhamos de fazer
colegas, sou um médico pretensamente não para quieto nem no cinema, tem que era distribuir camisinha para as visitas
sério”. Ele respondeu: “Você quer es- manter a atenção. Foi um longo processo. íntimas e orientar as mulheres, encami-
tar bem com seus colegas ou transmitir Não é talento, é treino. nhar para os postos de saúde. Ninguém
informação para a população?”. Fiquei queria saber.
balançado. Voltei lá depois de alguns A partir da Aids, como foi parar no Ca-
dias e perguntei o que tinha que fazer. randiru? Mas você insistiu...
Ele explicou que as mensagens transmi- Por causa da rádio, me procuraram pa- A cadeia é o lugar certo para divulgar es-
tidas pelo rádio têm que ser curtas, não ra fazer um vídeo sobre Aids. Fizemos se tipo de informação. Onde se reúnem 7
devem passar de 2 minutos. Tem que se com uma produtora profissional, que mil bandidos? Passam um tempo na ca-
apresentar. E dirigir a mensagem para o filmou na avenida Indianópolis, em São deia, voltam para a rua, se espalham pela
grupo com quem vai falar, não adianta Paulo, ponto de travestis, na zona do me- cidade inteira e depois voltam de novo
falar para todo mundo. “Aqui é o doutor retrício e na prisão. No Brasil temos as para a cadeia. A informação transmitida
Drauzio Varella falando com você que é visitas íntimas, e não se tomava nenhu- lá pode ser disseminada pela cidade para
jovem e homossexual; para você que in- ma precaução para ajudar aquelas mu- um grupo inatingível fora da cadeia. Pro-
jeta droga na veia.” Para cada um é uma lheres, informá-las. Gravamos na peni- pus ao diretor fazermos palestras sobre
linguagem diferente. tenciária do estado e passei o dia lá. Na Aids. A Unip dava o telão e o microfone.
enfermaria tinha gente morrendo, com Fiz duas ou três e percebi que não ia dar
E os colegas? caquexia, uma tragédia. Fiquei muito certo. Eu queria fazer um trabalho sis-
Ninguém nunca me falou nada. Tive cer- impressionado com a experiência. Des- temático, a cadeia inteira. Aí apareceu
teza de que esse tipo de comunicação de criança gosto de filme de cadeia. Tem o carcereiro Valdemar Gonçalves e or-
era importante. Eu via na rua as pessoas gente atraída por esse ambiente, conhe- ganizou: cada sessão seria assistida por
comentando, falando comigo, gente sim- ci outras pessoas assim. Passei os dias um andar de um pavilhão. Às 8h, abriam
ples. Pensei: “É isso que quero fazer”. Se seguintes pensando na cadeia, minha primeiro essas celas, os presos desciam e
alguém achar que estou querendo apare- mulher disse que nunca tinha me visto iam todos assistir. Isso antes de abrir ou-
cer, é problema dele, não meu. Até hoje tão quieto. Depois de algumas semanas, tros andares, senão misturava. Fizemos
ouço pessoas dizendo que nasci para esse procurei o chefe do departamento médi- uma reunião com os presos que eram os
trabalho – não é verdade. É treinamen- co do sistema penitenciário de São Pau- chefes de faxina dos pavilhões. Na época
to. Dei aula em cursinho quase 20 anos. lo, Manoel Schechtman, oferecendo um não tinha PCC [Primeiro Comando da
Comecei no primeiro ano da faculdade. trabalho voluntário. Ele disse que o pro- Capital], os chefes da faxina eram quem
Meu pai tinha quatro filhos, dois empre- blema maior estava na Casa de Detenção comandavam a cadeia. Eles estavam ven-
gos, eu não conseguiria fazer a faculdade de São Paulo, o Carandiru, com mais de do as pessoas morrer; a epidemia para
sem trabalhar. O Objetivo, que ajudei a 7 mil pessoas, ninguém queria trabalhar eles não era uma teoria. Explicamos que
fundar e dei o nome, chegou a ter 25 tur- lá. Fui conversar com o diretor, Ismael queríamos passar informações, mas não
mas de 400 alunos. Dávamos a mesma Pedrosa [1935-2005]. Pensei o seguinte: poderia acontecer nenhum incidente. Se
30 | maio DE 2019
um morresse, acabaria o nosso trabalho. O que é mais difícil resolver na saúde
Eles disseram: “Pode ficar sossegado, pública brasileira?
não vai acontecer nada”. Outro proble- A organização. Temos as unidades bá-
ma era tirar os presos da cama às 7h50. sicas de saúde [UBS] e um programa de
Vagabundo não acorda cedo de jeito ne- O Sistema saúde pública citado como um dos 10
nhum. E aí veio a ideia do Valdemar, de melhores do mundo, que é o Estratégia
passar um filme pornográfico. Terminada
a palestra, a gente saía da sala, “para não
Único de Saúde da Família. Há o agente comuni-
tário de saúde, que mora na localidade,
perder o respeito”, e passavam o filme.
Era um pacote: entrou, fecha a porta, e Saúde, o SUS, ganha um salário e é responsável pelas
famílias sob sua jurisdição. Há também
fica até o fim. Funcionou maravilhosa- uma auxiliar de enfermagem, uma en-
mente bem. Foram uns 10 anos fazendo foi a maior fermeira e um médico. Hoje cobre um
essas palestras. pouco mais de 60% da população brasi-
revolução da leira, mas deveria cobrir 100%. Quando
E daí passou para o trabalho de aten- o morador da região tem um problema,
dimento médico?
Quando terminava a palestra, o pessoal
história a equipe resolve na maioria das vezes. É
um pouco como minha experiência em
me parava no corredor. “Ô, doutor, olha
como eu estou...” Formavam fila, pare- da saúde cadeias. Lá não tem laboratório nem má-
quina de raios X. Mesmo assim, resolvo
cia um pátio dos milagres. Passei a aten- cerca de 90% dos casos sozinho.
der um dia por semana. Durou até 2002, brasileira.
quando a cadeia foi inativada. Tudo isso?
E qual é?
vídeos, porque de escrever. O jornalismo também é um
exercício muito interessante. Tem que
Não há nenhum outro país no mundo
com mais de 100 milhões de habitan- atingem escrever naquele espaço, com prazo de
entrega, não pode ter frescura. E com co-
tes que tenha ousado oferecer saúde meço, meio e fim. Diferente de um livro,
pública gratuita para todos. Nenhum. um público onde se divaga, muitas vezes se perde na
Somos o único. As pessoas não sabem escrita. Jornalismo te dá um objetivo, e
disso. Quando se fala do SUS, costuma-
-se dizer: “É uma vergonha, macas no
inatingível de eu comecei a gostar de fazer isso.
32 | maio DE 2019
reproduzidos. Só a partir daí podemos
Fotos 1 Caio Guatelli / Folhapress 2 Arquivo pessoal
O fim da epidemia
de Aids?
Governo dos Estados Unidos quer reduzir em 90%
os novos casos da doença até 2030, mas enfrenta
o desafio de alcançar grupos vulneráveis
Fabrício Marques
O
presidente norte-americano, Donald xia pré-exposição (PrEP), um comprimido capaz de
Trump, anunciou em fevereiro um pla- reduzir o risco de contágio em 97% dos usuários. A
no para acabar, até 2030, com a epide- grande novidade é a intenção de concentrar esforços
mia provocada pelo HIV nos Estados em 48 condados onde, constatou-se, ocorrem mais
Unidos. “Temos uma oportunidade da metade dos casos de Aids do país, intensificando
inédita nesta geração de eliminar novas infecções as estratégias de prevenção, diagnóstico, tratamento
na América”, afirmou, no discurso anual sobre o Es- e monitoramento. Boa parte desses hotspots fica em
tado da União. A meta é reduzir em 75% o número áreas urbanas e regiões pobres, com destaque para
de infecções em cinco anos, e em 90% em 10 anos, estados como Flórida, Califórnia, Texas e Geórgia.
evitando o contágio de 250 mil pessoas no período A julgar pelos progressos obtidos nos últimos anos,
e transformando a síndrome da imunodeficiência a meta proposta por Trump parece possível de ser al-
adquirida em uma doença de incidência restrita e cançada. As estatísticas gerais mostram que a epidemia
eventual. Para tentar alcançar esse objetivo, haverá de Aids perdeu ímpeto. De acordo com dados da Kai-
ações em várias frentes simultaneamente. ser Family Foundation, organização norte-americana
A principal, que já vinha sendo adotada, consiste dedicada a estudos sobre saúde pública, 940 mil pes-
em multiplicar a oferta de testes de diagnóstico e de soas morreram no mundo em 2017 de causas relacio-
infográficos e ilustrações alexandre affonso
medicamentos antirretrovirais. O objetivo é garan- nadas à Aids. Esse contingente equivale à metade do
tir que o 1,1 milhão de pessoas que vivem com HIV 1,9 milhão de mortos em 2004. Nos Estados Unidos,
naquele país não apenas evitem as manifestações da a Aids tem uma prevalência baixa na população geral,
doença que destrói as defesas imunológicas, como com concentração de casos em grupos como homens
também suprimam a carga de vírus na circulação que fazem sexo com homens, travestis e profissionais
sanguínea a ponto de parar de transmiti-lo, man- do sexo. A doença atinge 0,3% da população do país,
tendo-se em tratamento para o resto da vida – ou índice semelhante ao registrado no Brasil, de 0,4%.
até que se descubra a cura. Outro foco é evitar que Uma limitação que o plano vai enfrentar se rela-
cerca de 1 milhão de pessoas em situação de risco ciona à heterogeneidade nos serviços de saúde nos
adquiram a moléstia, utilizando a chamada profila- Estados Unidos. “Ao contrário do modelo brasileiro,
% do total 90
de pessoas 85 86 84 85
com HIV 81
73 75
72
64 66 64
63 62
58 57
51
46
42 42
39
29
26
18
14 13
6
Metas da Brasil EUA Europa Oceania Sudeste África Europa Oriente Médio
Unaids Ocidental Asiático e Subsaariana Oriental e e Norte da
Pacífico Ásia Central África
Fontes Jacob Levi, Imperial College London Medical School/ Unaids/ Ministério da Saúde
não existe lá um sistema universalizado e os cuida- cuidados e de medicamentos. Cada questão dá ori-
dos acabam variando de um lugar para outro”, ex- gem a um indicador”, diz. O inquérito classifica os
plica a médica Maria Ines Battistella Nemes, pro- serviços em quatro diferentes níveis e ajuda equipes
fessora da Faculdade de Medicina da Universidade e secretarias da Saúde a aperfeiçoar seu trabalho.
de São Paulo (FM-USP). “No estado de Nova York, Se o plano norte-americano tem clareza sobre
por exemplo, os serviços ambulatoriais produzem, métodos e objetivos, há dúvidas acerca de sua ca-
a partir de prontuários e registros eletrônicos, re- pacidade de transformar comportamentos. Embora
latórios diários que mostram quem ainda não está em queda na população geral, a Aids nos Estados
com a carga viral zerada. E investigam prontamente Unidos voltou a crescer entre homens jovens. E mes-
quando o paciente não aparece nos atendimentos mo localidades onde houve redução de casos têm
programados. Mas essa é a realidade do Estado de dificuldades de eliminar a doença. São Francisco,
Nova York, onde o tratamento é largamente subsi- na Califórnia, que contabilizava 2 mil casos por ano
diado. Muitos outros estados do país têm contextos na década de 1990, hoje registra 200 casos anuais.
bem diferentes, com dificuldades até para o acesso “Chegamos a um piso. Todos os jovens gays bran-
aos medicamentos”, afirma. cos estão tomando PrEP, mas há indivíduos que não
Em 2018, Nemes passou uma temporada de seis conseguimos alcançar”, disse ao jornal The New York
meses no Departamento de Saúde do Estado de Times Jeff Sheehy, ativista da mobilização contra o
Nova York estudando os cuidados a pacientes para HIV na cidade. “A Aids tem associação com grupos
subsidiar seu trabalho à frente do projeto QualiAids, pobres e vulneráveis e é difícil isolar a doença dos
uma ferramenta de avaliação dos serviços ambula- outros problemas que essas pessoas enfrentam.”
toriais do Sistema Único de Saúde (SUS) que tra- O Brasil tem o mesmo problema. “O fato de haver
tam pessoas com HIV no Brasil. O QualiAids teve tecnologia para acabar com a epidemia não signifi-
quatro edições e fornece 84 indicadores sobre os ca que conseguiremos chegar lá”, diz Maria Amélia
serviços. “Os ambulatórios respondem a uma série Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas
de perguntas sobre tempo de atendimento, recur- da Santa Casa de São Paulo, que estuda e acompa-
sos tecnológicos e financeiros disponíveis, oferta de nha grupos especialmente atingidos, como travestis,
O
s canais tradicionais para atingir as popula- Reduzir taxas de morte (2015)
ções de risco são insuficientes. “Nos comuni-
camos mal”, diz Veras, lembrando que a vida 14,3%
sexual, principalmente dos jovens, passou a ser me- 17,2%
A
3,0 3,9
nova realidade deu origem a uma abordagem 15 a 19
7,0 3,2
múltipla, baseada na detecção do maior nú-
mero possível de casos e na oferta massiva 15,6 14,8
de remédios para os diagnosticados. “O tratamento 36,2
20 a 24
10,3
passou a ser parte da prevenção”, afirma Maria Ines
Nemes. Em 2012, a Unaids, braço das Nações Unidas 38,2 26,8
25 a 29
para o combate à síndrome, lançou o plano 90-90-90: 50,9 15,6
diagnosticar pelo menos 90% dos infectados, tratar
90% dos diagnosticados e suprimir a carga viral de 56,1
30 a 34
35,2
Onde a Aids
18,9
17,7
13,2 13,7 11,3
avançou e 28,5 RR
AP 21,3 CE RN
13,3
12,6 9,7
recuou
23,6
21,2
15,2
MA PB
Taxas de detecção do 18,9 19,3
AM PA 13,1
HIV por grupo de 10,6
8,4 8,8 18,8 18,7
100 mil habitantes nas 16,2
PI PE
unidades da federação, AC 6,7 18
em 2007 e 2017 RO
23,1 22,3
18,6 TO 10,7
11,9 10,2
14,4
AL
BA
16,5
2007 2017
MT DF 11,8
13,7 14,7
Aumento de casos 15
12,3 SE
Redução de casos 24,3
18,9
GO
21,3 19,2
16
MG 16,1
O equipamento
de ressonância
magnética
Magneton 7T MRI,
da Faculdade de
Medicina da USP
Acesso rápido
a máquinas
e laboratórios
USP e Unicamp criam portais para ampliar o compartilhamento
de infraestrutura de pesquisa
A
s universidades de São Paulo damental de laboratórios e facilities de de forma tímida ou fragmentada. “Não
foto léo Ramos chaves ilustrações freepick
(USP) e Estadual de Campinas universidades públicas, que é servir há queixas relacionadas a barreiras no
(Unicamp) criaram portais na ao maior número possível de pesqui acesso, mas temos a percepção de que os
internet que catalogam seus sadores a fim de aumentar o impacto instrumentos poderiam ser mais usados
equipamentos de pesquisa e os disponi e a qualidade de trabalhos científicos se fossem mais conhecidos”, diz Watson
bilizam para usuários de dentro e de fora e tecnológicos do país. A maior parte Loh, professor do Instituto de Química
das instituições, inclusive de empresas. O dessa infraestrutura foi financiada por (IQ) da Unicamp e coordenador adjunto
objetivo é facilitar o compartilhamento agências de fomento sob o compromisso do Programa de Equipamentos Multi
de instrumentos de custo elevado, como de que parte de seu tempo de uso se usuários (EMU) da FAPESP.
microscópios eletrônicos, espectrôme ja franqueado a outros pesquisadores Na Unicamp, o Portal de Equipamen
tros de massas ou sequenciadores, entre interessados. Mas nem sempre é fácil tos Multiusuários e Serviços (www.prp.
muitos outros. As iniciativas procuram para os usuários encontrar o que preci unicamp.br/pt-br/ces/site/) garante
dar visibilidade para uma missão fun sam, uma vez que a oferta é divulgada acesso a instrumentos de médio e de
O Laboratório Central de
Tecnologias de Alto
Desempenho (LaCTAD),
facility na Unicamp
Núcleo de
sequenciamento
genético instalado
grande porte espalhados pela instituição, no Instituto do
ratórios e desonerar seus responsáveis
com a vantagem de permitir a busca por Câncer do Estado de tarefas burocráticas”, esclarece Syl
palavras-chave. Não é necessário saber o de São Paulo vio Canuto, professor do Instituto de
modelo ou o tipo específico de máquina: Física e pró-reitor de Pesquisa da USP.
basta informar a finalidade do uso para O agendamento pode ser feito on-line,
saber se existe algum equipamento ca com geração automática de boletos pa
paz de cumprir aquela tarefa. Em caso ra os usuários e liberação da utilização
positivo, o solicitante é direcionado para consultas de universidades e empresas assim que o pagamento pelo uso é feito.
o laboratório apropriado. Por enquanto, – ante uma média de apenas uma con Em geral, os laboratórios cobram taxas
há 140 equipamentos cadastrados. “Espe tratação por ano. “As máquinas e os ser menores de pesquisadores da própria
ramos aumentar e muito esse número”, viços estavam disponíveis no nosso site, universidade, e maiores de usuários de
diz Munir Skaf, também professor do mas o novo portal parece tê-los tornado outras instituições e de empresas. A USP
IQ e pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. mais visíveis”, considera Pagliuso. Além tem interesse em organizar o uso de seu
Foram criadas funcionalidades para os do Laboratório Multiusuários (Lamult) parque de equipamentos multiusuários
responsáveis pelas instalações, como um do IFGW, que tem 12 diferentes equipa a fim de racionalizar gastos com manu
kit que permite a cada unidade de ensino mentos, entre microscópios, espectrôme tenção e contratação de técnicos, que
e pesquisa construir um site para divul tros e difratômetros, o instituto também são alvos frequentes de demandas de
gar suas máquinas, com um sistema que franqueia cerca de 50 instrumentos ins pesquisadores e departamentos. A uni
organiza o agendamento. talados em laboratórios de pesquisadores versidade pretende lançar um edital pa
O portal da Unicamp começou a fun e departamentos. ra promover manutenção preventiva de
cionar em março e já contabiliza um au máquinas, mas vai esperar alguns meses
C
mento no número de solicitações para a riada no final do ano passado, a até que mais unidades adiram à central.
utilização dos equipamentos. No Institu Central USP de Equipamentos “Será possível avaliar quais são os mais
to de Física Gleb Wataghin (IFGW), as Multiusuários (uspmulti.prp.usp. compartilhados e esses terão priorida
consultas de usuários cresceram entre br/) por enquanto oferece acesso a dois de nos investimentos em manutenção”,
30% e 50%, dependendo do instrumento. laboratórios, ambos da Escola Politécni avalia Canuto. “Isso também vai ajudar a
Um dos exemplos que chamou a aten ca, e 17 máquinas instaladas em diversas nortear a abertura de vagas para técnicos
ção foi o do analisador de distribuição unidades. A expectativa é de multiplicar em instalações amplamente utilizadas.”
de tamanho de partículas, disponível em o número de centrais e instrumentos A disponibilidade de técnicos é um
um laboratório do IFGW, cujo uso foi disponíveis nos próximos meses. Há 25 ponto importante para ampliar o uso
solicitado por pesquisadores de outra centrais e laboratórios em fase de ca dos instrumentos. “Não é incomum que
unidade da Unicamp. “Fazia um bom dastramento e pelo menos outros 100 equipamentos fiquem acessíveis apenas
tempo que ninguém pedia para usá-lo”, em condições de participar da rede. A alguns dias da semana ou em horários
diz o físico Pascoal Pagliuso, diretor do plataforma disponibiliza ferramentas de restritos por conta do tempo disponível
instituto. Também um serviço oferecido gestão dos equipamentos, centralizadas dos técnicos que trabalham com a má
pelo IFGW no portal, a descaracteriza na Fundação de Apoio à Universidade quina”, diz Watson Loh. O compartilha
ção e descarte de cabeçotes de aparelhos de São Paulo (Fusp). “Essas ferramentas mento também se justifica por outras
de raios X, recebeu de uma só vez três buscam simplificar a rotina dos labo razões. O dinheiro arrecadado com os
A
s discussões sobre a necessidade
2 de aumentar a visibilidade dos
Microscópio confocal, um equipamentos multiusuários há
dos equipamentos do Centro tempos mobilizam pró-reitores de pes
de Facilidades de Apoio à
Pesquisa do Instituto de
quisa no âmbito do Conselho de Reito
Ciências Biomédicas da USP res das Universidades Estaduais Pau
listas (Cruesp). “Temos discutido for
mas de identificar toda a infraestrutura
disponível no estado para ampliar sua
serviços prestados pode ajudar na ma funciona no Instituto de Ciências Bio utilização”, diz o físico Carlos Graeff,
nutenção da infraestrutura. “Às vezes, médicas e desde 2014 oferece a usuários pró-reitor de Pesquisa da Universidade
um equipamento que custou R$ 1 milhão de todo o estado serviços de sequencia Estadual Paulista (Unesp) e professor
pode ficar parado por algum tempo à es mento, microscopia para estudo de cé da Faculdade de Ciências de Bauru. A
pera de recursos para comprar uma peça lulas vivas, espectrometria de massas, Unesp, que tem campi em 24 municípios
que custa R$ 10 mil”, conta Munir Skaf. entre outros – a FAPESP investiu US$ 4 do estado, pretende lançar ainda neste
A integração de pesquisadores de di milhões na compra de equipamentos. Na ano uma plataforma que reúna cerca de
ferentes campos do conhecimento em Unicamp, há iniciativas de porte como 200 equipamentos multiusuários, expan
torno de laboratórios multiusuários pode o Laboratório Central de Tecnologias dindo a central mantida pelo Instituto
gerar novas oportunidades de pesquisa. de Alto Desempenho (LaCTAD) – uma de Química de Araraquara.
“A organização de equipes para traba facility inaugurada em 2013 – para dar Para Débora Chadi, professora do Ins
lhar com equipamentos multiusuários suporte a pesquisas em genômica, bioin tituto de Biociências da USP e assessora
amplia a interlocução entre pessoas que formática, proteômica e biologia celular. da pró-reitoria de Pesquisa da USP, o lan
pensam a ciência de forma diferente e A FAPESP, que apoia a aquisição de çamento das centrais de universidades
permite discutir outras soluções multi infraestrutura de pesquisa em linhas de poderia ser uma etapa intermediária pa
fotos 1 léo Ramos chaves 2 e 3 Eduardo cesar ilustrações freepick
disciplinares de um problema”, afirma financiamento regular e no programa ra criar uma plataforma que congregas
Roger Chammas, coordenador da Rede EMU, exige que instrumentos de médio se todos os equipamentos de pesquisa
Premium (Programa Rede de Equipa e grande porte com potencial de utiliza disponíveis no estado de São Paulo. Ela
mentos Multiusuários), que desde 2005 ção por outros pesquisadores estejam menciona o exemplo do Reino Unido, que
disponibiliza em um endereço na inter disponíveis para uso compartilhado. É conseguiu cadastrar instalações de pes
net a infraestrutura de diferentes labora possível ter acesso em um endereço na quisa disponíveis no país em um único
tórios da Faculdade de Medicina da USP. internet (www.fapesp.br/emu/) aos sites portal (equipment.data.ac.uk), mantido
De maneira isolada, unidades da USP de laboratórios e unidades de pesquisa pelo Conselho de Pesquisa em Ciências
e da Unicamp já haviam montado nos no estado de São Paulo onde estão equi Físicas e Engenharia (EPSRC). “Seria in
últimos anos centrais de equipamentos pamentos adquiridos com recursos da teressante termos isso em São Paulo. Um
multiusuários robustas – que já foram Fundação. A lista é organizada por tipo pesquisador da USP no interior do esta
ou serão em breve integradas às cen de instrumento, instituição ou cidade. do poderia encontrar a máquina de que
trais de cada instituição. É o caso da Re “Essa iniciativa se refere à infraestrutura precisa em alguma universidade próxima,
de Premium ou o Centro de Facilidades comprada com apoio da FAPESP. Outras em vez de ter que procurá-la na capital
de Apoio à Pesquisa (Cefap) da USP, que agências, como a Financiadora de Estu paulista”, afirma. n Fabrício Marques
Inovações
induzidas
Guia busca ampliar o uso de legislação sobre
encomendas tecnológicas no Brasil
Bruno de Pierro
U
m guia produzido pelo Instituto de Pes- conhecido como TRL – acrônimo para Technology
quisa Econômica Aplicada (Ipea) reúne Readiness Level (ver infográfico). Criado pela Nasa,
um conjunto de recomendações para agência espacial norte-americana, na década de 1970,
ampliar o uso no Brasil das encomen- baseia-se em uma escala que vai de 1 (pesquisa bá-
das tecnológicas, um instrumento de sica) até 9 (produto no mercado): quanto mais ma-
estímulo à inovação ainda pouco adotado no país. dura é uma tecnologia, menor o risco contido nela.
Com 106 páginas, o manual orienta gestores públicos A encomenda se aplica a bens ou serviços que são
sobre como aplicar o poder de compra do Estado a potencialmente viáveis, mas ainda não existem, e
fim de criar soluções para problemas de interesse deve ser feita idealmente entre as TRL 2 e 8. “Para
da sociedade, como o desenvolvimento de vacinas produtos disponíveis, recomenda-se o uso de outros
ou tecnologias capazes de melhorar a mobilidade instrumentos, como licitação ou compra direta. E
urbana. Também há informações sobre critérios também não deve haver encomenda se a ideia ain-
para a escolha de fornecedores e as circunstâncias da está em fase preliminar e depende de aprofundar
nas quais uma encomenda tecnológica é mais viável. ciência básica”, explica Rauen, que também colabo-
A publicação, disponível em bit.ly/IpeaEnco- rou na elaboração do decreto.
menda, expõe as oportunidades criadas pelo De- Outro dispositivo regula a remuneração, que pode
creto nº 9.283, editado em fevereiro de 2018 pelo ser feita em etapas do desenvolvimento definidas
governo federal, que regulamenta dispositivos da previamente. Isso garante que, mesmo que a so-
legislação sobre compras públicas. “Essa norma lução almejada não seja obtida, a empresa receba
dá segurança jurídica para a administração fede- em função do esforço de P&D despendido. O guia
ral contratar empresas que executem projetos de descreve cinco formas de pagamento, que vão do
pesquisa e desenvolvimento [P&D] com alto risco estabelecimento de um preço fixo até o reembolso
tecnológico, como, por exemplo, uma vacina con- do custo com o acréscimo de uma taxa extra. “Agora
tra o vírus zika”, explica um dos autores do guia, é possível customizar contratos de acordo com o
o economista André Rauen, do Ipea. grau de incerteza relacionado a cada projeto”, diz
fotos reprodução
Em sua maioria, as regras são ainda pouco utiliza- Rauen. A propriedade intelectual do eventual pro-
das pela administração pública brasileira. Uma delas duto decorrente da encomenda também precisa ser
propõe a adoção de um método para determinar a discutida previamente. “Dependendo da complexi-
maturidade tecnológica de um produto inovador, dade da demanda, o Estado pode repassar total ou
Cargueiro militar
Robô Curiosity O maior avião já construído no Brasil, o
KC-390 foi construído pela Embraer a
O veículo de exploração espacial Curiosity,
partir de uma encomenda feita em 2009
enviado a Marte em 2012, foi encomendado
pela Força Aérea Brasileira, que precisava
pela agência espacial norte-americana
de uma aeronave para o transporte de
(Nasa) e fabricado pelas empresas Boeing e
tropas, cargas e operações de resgate
Lockheed Martin e pelo Jet Propulsion
Laboratory, da própria agência
Conceito Protótipo
fatores críticos para inovar é o horizonte principais empresas parceiras do projeto um processo comum de dispensa de lici-
de mercado. A inovação precisa ser ab- foi a brasileira WEG, especializada na tação, justificado pela ausência de outros
sorvida pela sociedade.” produção de motores elétricos, que foi potenciais concorrentes. Mas o contrato
contratada, entre outras encomendas, não previa o eventual fracasso atrelado ao
L
ançado antes do decreto de 2018, para entregar 1.036 eletroímãs que guiam risco tecnológico do projeto. “Mesmo na
o projeto Sirius, a nova fonte bra- a trajetória dos elétrons nos aceleradores presença do risco, os protótipos tinham
sileira de luz síncrotron, seguiu de partículas (ver reportagem na página de ser entregues. Felizmente isso ocorreu,
uma abordagem semelhante à da nova 72). “Trabalhando nessa iniciativa, a em- mas esse tipo de aquisição delegou todo
legislação. Em desenvolvimento desde presa testou sua capacidade tecnológica o risco ao fornecedor”, explica Rauen.
2012 no Centro Nacional de Pesquisa em e ganhou musculatura para atuar em pro- O arcabouço jurídico criado no país
Energia e Materiais (CNPEM), em Cam- jetos científicos de grande porte”, afirma em 2004 com a Lei de Inovação já permi-
pinas (SP), o Sirius envolveu o esforço Luís Alberto Tiefensee, diretor da WEG. tia a contratação de empresas e institui-
articulado de mais de uma centena de Mesmo antes de haver uma legislação ções sem fins lucrativos para a realização
fornecedores, na maioria empresas bra- apropriada, o poder de compra do Estado de atividades de P&D sem necessidade
sileiras de alta tecnologia (ver Pesquisa já foi usado diversas vezes para impulsio- de licitação. As regras, porém, não es-
FAPESP nº 269). “Boa parte dos compo- nar projetos ambiciosos no Brasil. Duran- tavam estipuladas com clareza, afirma
nentes demandados não estava disponível te os governos militares (1964-1985), por Rauen. Segundo ele, isso ajuda a explicar
no mercado”, conta o físico Antonio José exemplo, encomendas tecnológicas ajuda- o fato de o governo ter destinado apenas
Roque da Silva, diretor-geral do CNPEM ram a fortalecer a pesquisa em empresas R$ 150 milhões para encomendas tecno-
e responsável pelo Sirius. Como era al- como Embraer e Petrobras. Os primeiros lógicas em um período de cinco anos, de
to o risco tecnológico para a criação de aviões da Embraer foram encomendados 2010 a 2015 – uma quantia considerada
vários componentes, o centro – que é pelo governo brasileiro, o que permitiu muito pequena, diz Rauen.
uma organização social supervisionada à empresa desenvolver tecnologias e se A encomenda de produtos e soluções
pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, projetar como um dos principais fabrican- tecnológicas ocorre há décadas em paí-
Inovações e Comunicações – optou por tes do mundo. Em anos recentes, o maior ses como os Estados Unidos, onde apro-
associar o pagamento dos fornecedores cargueiro militar já construído no país, o ximadamente 30% dos gastos públicos
a cada etapa concluída. Em alguns casos, KC-390, foi desenvolvido pela empresa a com P&D são investidos em compras
mais de uma empresa foi contratada pa- partir de um pedido feito em 2009 pela dessa natureza. A Federal Acquisition
ra desenvolver um determinado tipo de Força Aérea Brasileira (FAB), que preci- Regulation (FAR), lei que regulamenta as
equipamento. Os melhores protótipos sava de uma aeronave para o transporte compras públicas no país desde 1974, foi
foram escolhidos e um conjunto menor de tropas, cargas e operações de resgate. uma das fontes de inspiração do decreto
de empresas foi contratado para efeti- A FAB optou por adquirir dois protótipos brasileiro. A FAR reconhece a relação do
vamente fabricar os produtos. Uma das ao custo total de R$ 3 bilhões, por meio de Estado com fornecedores privados como
O
utra referência para a legislação lizados e quais desafios são enfrenta- e secretário de Ciência, Tecnologia e
brasileira, informa Rauen, é o dos por instituições acadêmicas”, diz Insumos Estratégicos do Ministério
Horizonte 2020, principal pro- Gonçalves, que é gerente de desenvol- da Saúde entre 2011 e 2015.
grama científico da União Europeia, vimento de projetos do Fórum Virium Para Gadelha, projetos de inovação
com orçamento de € 76,4 bilhões para de Helsinque, na Finlândia. A organiza- incremental, que resultem do
o período 2014-2020. Um terço desse ção é responsável pelo projeto Fabulos, aperfeiçoamento de tecnologias
valor é aplicado em encomendas, que na consórcio formado por seis países para existentes, também precisam estar
infográfico Alexandre affonso
Europa são chamadas de compras pré- adquirir uma frota de micro-ônibus au- no radar dos gestores públicos.
-comerciais (PCPs) – bastante comuns tônomos. A iniciativa ainda está na fa- “A solução para vários problemas
no campo da saúde. Um dos projetos se de estudos teóricos e conta com um do país não depende apenas
beneficiados pelo Horizonte 2020 é o orçamento de € 5,5 milhões – dos quais de inovações radicais. Por meio de
Magic, um consórcio formado por ins- 90% são de recursos do Horizonte 2020 transferência de tecnologia é
tituições da Irlanda do Norte e da Itália e 10% fornecidos pelos integrantes do possível aumentar o nível de P&D
para encontrar soluções que melhorem consórcio. n das empresas", explica.
Abraçando as
diferenças
Nova diretoria da Unicamp integrará ações
de promoção dos direitos humanos entre alunos,
professores e funcionários
A
Universidade Estadual de Cam Técnico de Campinas (Cotuca), ligado Unicamp, outra comissão que faz parte
pinas (Unicamp) criou uma es à Unicamp, de adotar cotas etnorraciais da estrutura do novo órgão.
trutura dedicada à articulação em seus processos seletivos. Dos 3.386 A Diretoria Executiva de Direitos Hu
de políticas de disseminação da estudantes aprovados no vestibular da manos também deverá coordenar as ativi
tolerância, cidadania e inclusão em sua Unicamp para 2019, 1.293 (38,2%) eram dades da Comissão Assessora de Acessibi
comunidade acadêmica. A Diretoria Exe pretos ou pardos, sendo que quase metade lidade, que há alguns anos investe em pro
cutiva de Direitos Humanos foi aprovada deles (48,7%) era proveniente de escolas jetos para ampliar a mobilidade e o acesso
no dia 26 de março, durante reunião do públicas. Já os estudantes indígenas re de pessoas com deficiência no campus da
Conselho Universitário, e está vinculada presentaram 2,1% dos convocados. Segun universidade a equipamentos e materiais
ao gabinete da reitoria. “Queremos agir de do Almeida, a comissão deverá investir de estudo e pesquisa. A comissão tam
modo articulado para promover e valori em ações complementares de combate bém irá realizar estudos para identificar
zar os direitos humanos dentro e fora da ao racismo, disseminação do respeito às pontos críticos para que em seguida pos
Unicamp”, afirma a historiadora Néri de diferenças e valorização da diversidade. sa apresentar propostas de reforma das
Barros Almeida, professora do Instituto Em outra frente, desde fins de 2017, estruturas dos prédios, calçadas, praças e
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) uma comissão se dedica à criação de po espaços de convívio na instituição.
da universidade e diretora do novo órgão. líticas de combate à violência sexual e Outra instância que vai se articular
“A ideia é aprimorar iniciativas existentes discriminação baseada em gênero e se com a nova diretoria é a Cátedra Sérgio
e fomentar a criação de novas estratégias, xualidade. Esses são dois dos principais Vieira de Mello da Agência da Organi
procedimentos e práticas de inclusão, problemas enfrentados pelas instituições zação das Nações Unidas para Refugia
equidade, acessibilidade, prevenção do as de ensino no mundo, representando, em dos, a Acnur. Desde 2003 o órgão atua
sédio e discriminação e violência sexual.” alguns casos, mais da metade dos inci na promoção da educação, pesquisa e
A diretoria vai coordenar o trabalho dentes de violação de direitos humanos extensão acadêmica voltada à popula
de cinco comissões assessoras, criadas no ambiente acadêmico. “Vamos criar ção refugiada, em parceria com centros
nos últimos dois anos e que já atuavam uma secretaria de atendimento especia universitários brasileiros e o Comitê Na
de forma independente. Uma delas está lizado para pessoas vítimas de violência, cional para Refugiados (Conare), órgão
encarregada de promover a diversidade assédio ou discriminação sexual”, expli do Ministério da Justiça responsável por
etnorracial e, no ano passado, orientou ca Almeida, que também está à frente do analisar os pedidos e declarar o reco
a decisão da universidade e do Colégio Observatório dos Direitos Humanos da nhecimento da condição de refugiado
e Ottawa, além da Queen’s University, há universidade, a proposta da nova direto promoção de uma educação em direitos
algum tempo criaram escritórios dedica ria é adotar, sempre que possível, a prá humanos na perspectiva intercultural,
dos à promoção dos direitos humanos. tica do diálogo restaurativo, em lugar de crítica e emancipatória, que procure ar
O Centro de Direitos Humanos da Uni uma abordagem punitiva. A ideia é que ticular questões relacionadas à igualdade
versidade de Essex, no Reino Unido, é um intermediador resolva os conflitos e às diferenças no âmbito da comunidade
considerado um dos mais amplos e bem de modo a restabelecer a relação social universitária”, argumenta. n
O aprendizado da
autonomia
Para o reitor da Unicamp, financiamento
estável e liberdade de gestão impulsionaram a
qualidade das universidades estaduais paulistas
O
reitor da Universidade Es uma Comissão Parlamentar de Inquérito
tadual de Campinas (Uni criada na Assembleia Legislativa paulista
camp), Marcelo Knobel, to para avaliar supostas irregularidades na
mou posse em abril como gestão financeira das instituições. “Será
presidente do Conselho de uma oportunidade de mostrar o impacto
Reitores das Universidades Estaduais do trabalho das universidades, que é pou
Paulistas (Cruesp). Nos próximos 12 me co conhecido”, afirma. Nascido em Bue
ses, vai coordenar o trabalho do órgão, nos Aires há 51 anos, Marcelo Knobel é Marcelo Knobel: gestão
que reúne os dirigentes das universida professor do Instituto de Física Gleb Wa marcada pela criação de
novas formas de ingresso na
des de São Paulo (USP), Estadual Pau taghin e assumiu a reitoria da Unicamp
universidade e pelo
lista (Unesp) e da Unicamp e das secre em abril de 2017. Sua gestão é marcada engajamento em temas que
tarias de Desenvolvimento Econômico, por iniciativas de caráter inovador, tanto mobilizam a sociedade
Ciência e Tecnologia e da Educação, e na aproximação com a sociedade quanto
busca fortalecer a interação com as ins em formas de ingresso na universidade –
tituições, além de propor soluções para pela primeira vez, foram admitidos, sem
problemas relacionados ao ensino supe precisar passar no vestibular, estudantes
rior e à pesquisa. Entre as tarefas que o que se destacaram em olimpíadas cien
aguardam, estão as comemorações dos tíficas e se organizou um vestibular ex
30 anos de autonomia das universidades clusivo para indígenas. No mês passado,
estaduais, estabelecida por um decreto a Unicamp criou uma diretoria talhada
do então governador Orestes Quércia em para questões relacionadas à promoção
1989, que garantiu recursos e estabilida dos direitos humanos (ver reportagem à
de de gestão às instituições. página 46). Na entrevista a seguir, o reitor
Knobel também será um dos princi fala de seus desafios à frente da universi
pais porta-vozes das universidades em dade e do Cruesp.
Legislativa para analisar a gestão das e Comunicações aferiu no país o conhe exponencialmente, assim como cresceu o
universidades e o repasse de verbas. Não cimento sobre instituições científicas. O número de estudantes (ver seção Dados na
temos nada a temer, e pretendemos usar resultado foi desastroso. Só 4% da po página 11). A Unicamp, há 30 anos, tinha
O limite
do visível
Rede internacional de radiotelescópios produz a
primeira imagem dos arredores de um buraco negro
Ricardo Zorzetto
P
ōwehi. A expressão significa A mancha escura envolta pelo anel gramados para funcionar como se fos-
imagens 1 event horizon telescope collaboration 2 NASA / ESA / Hubble Heritage Team (STScI/AURA) / P. Cote (Instituto
algo como “criação adornada, iluminado no centro da M87 é a sombra sem um radiotelescópio com o tamanho
sombria e imensurável” e apa- deixada pelo horizonte de eventos, re- da Terra (ver infográfico na página 54).
de Astrofísica Herzberg) e E. Baltz (Universidade Stanford) 3 e 4 NASA / CXC / Villanova University / J. Neilsen
rece algumas vezes no Kumu- gião a partir da qual a gravidade cresce “Vimos o que se pensava ser invisí-
lipo, cântico havaiano do século XVIII absurdamente e captura tudo o que es- vel”, afirmou o astrônomo norte-ame-
que narra em 2.102 versos a origem do tá por perto – a matéria e a energia que ricano Sheperd Doeleman, diretor do
mundo. Pōwehi foi o termo escolhido por atravessam o horizonte de eventos ter- projeto EHT, ao apresentar a imagem
Larry Kimura, professor de línguas na- mina comprimida em um único ponto, na conferência de imprensa realizada
tivas na Universidade do Havaí, Estados chamado pelos físicos de singularidade. em Washington, Estados Unidos. “Con-
Unidos, para nomear a imagem de algo O anel, tingido artificialmente com cores seguimos algo que se presumia ser im-
jamais visto anteriormente: a vizinhança que vão do amarelo-claro ao vermelho, possível há apenas uma geração”, disse
de um buraco negro. é a porção mais interna de um disco de Doeleman, que é pesquisador do Centro
Apresentada em uma conferência de gás ultra-aquecido, que espirala na vi- de Astrofísica Harvard & Smithsonian,
imprensa realizada em 10 de abril, a ima- zinhança do horizonte de eventos antes em Massachusetts.
gem revela um círculo colorido ligeira- de ser capturado e perder contato com o Buracos negros são os objetos mais
mente desfocado, ao redor de uma região Universo. É o brilho desse gás que per- insólitos do Universo. Sua existência
central enegrecida (ver página ao lado). mite delinear a sombra do horizonte de só começou a ser imaginada a partir de
Ela resulta da primeira observação da- eventos do buraco negro. 1916, depois que o físico e astrônomo
quilo que é possível enxergar nas proxi- A imagem é a evidência mais direta alemão Karl Schwarzschild (1873-1916)
midades de um buraco negro. No caso, o da existência de um buraco negro. Ela publicou uma solução, obtida entre as
buraco negro do centro da galáxia Mes- resulta do esforço de mais de 200 pes- batalhas contra a Rússia na Primeira
sier 87 (M87), situada no céu em direção quisadores do projeto Telescópio Ho- Guerra Mundial, para as equações da
à constelação de Virgem. O nome Pōwehi rizonte de Eventos (EHT), consórcio teoria da relatividade geral, de Albert
ainda precisa ser submetido à aprovação internacional que usou dados de oito ob- Einstein (1879-1955). A solução que Sch-
da União Astronômica Internacional an- servatórios de radioastronomia situados warzschild encontrou definiu a distância
tes de ser formalmente adotado. em diferentes pontos do planeta, pro- a partir da qual um corpo de massa muito
Radiação eletromagnética
A luz e os telescópios
A radiação eletromagnética
é uma forma de energia que
oscila perpendicularmente
ao sentido de propagação.
Ela abrange dos raios gama,
que vibram muito
rapidamente e são
extremamente energéticos,
às ondas de rádio, que
oscilam lentamente e têm
pouca energia. O olho
humano capta uma estreita
faixa dessa radiação, a luz
visível. Diferentes tipos de
telescópios observam faixas
distintas de radiação.
Região central da M87 e o jato de Os radiotelescópios são
partículas vistos pelo observatório antenas parabólicas que
espacial Chandra, que detecta A galáxia e um dos jatos de partículas e captam a energia na faixa
raios X radiação que emana da vizinhança de seu de micro-ondas e rádio.
buraco negro, observados pelo telescópio Programas de computador
espacial Hubble em luz visível e infravermelho as convertem em imagem
C
Pathfinder do
Atacama om base nos cálculos da relativi-
ALMA dade geral, esperava-se que, se o
Grande Arranjo buraco negro estivesse imerso em
Milimétrico/
Submilimétrico uma região brilhante, como o interior
do Atacama de um disco de gás incandescente, se-
ria possível observar uma sombra com
determinada forma e tamanho. Jamais,
porém, havia-se conseguido telescópio
5.000 TB com resolução suficiente para registrá-la.
As observações que permitiram gerar
de dados foram transportados 6 Antártida
SPT
essa imagem apresentada agora foram
para os EUA e a Alemanha por
Telescópio realizadas em abril de 2017 e produzi-
avião para construir a imagem
6
do polo Sul ram cerca de 5 petabytes de dados (5
mil terabytes ou 5 mil anos de música
guardada em arquivos digitais), armaze-
elevada passaria a atrair tudo o que está nados em centenas de discos rígidos de
ao redor. Essa distância, chamada de raio memória e transportados de avião para
de Schwarzschild, é tão maior quanto dois centros de análise. Nesses centros,
mais elevada a massa concentrada na O buraco negro as equipes trabalharam por dois anos
singularidade e determina o horizon- para correlacionar os dados dos dife-
te de eventos do buraco negro. Quando da M87 tem rentes observatórios e fazer as devidas
esses resultados foram apresentados, correções. A interpretação dos dados e a
Einstein e outros físicos o acharam in-
massa 6,5 bilhões estratégia de análise foram apresentadas
teressante, mas improvável de ocorrer de vezes em seis artigos científicos publicados em
na natureza. Apenas meio século mais abril em uma edição especial da revista
tarde, a partir da publicação de estudos maior que a do The Astrophysical Journal Letters.
teóricos de corpos com massa elevada “A imagem obtida pela equipe do EHT
em rotação e da observação de objetos Sol e está a 55 representa o limite de nosso conheci-
celestes compatíveis com buracos ne- mento”, afirma o físico teórico Bruno
gros, é que se começou a levar a sério a
milhões de Carneiro da Cunha, da Universidade Fe-
possibilidade de esses objetos existirem. anos-luz da Terra deral de Pernambuco (UFPE).
“Desde as décadas de 1960 e 1970 ha- Ainda que não tenha nitidez perfeita,
via evidências indiretas da existência ela é considerada um feito científico por
desses objetos”, conta o astrofísico Da- duas razões. A primeira é que permite
estimar com mais precisão as caracte- Teórica da Universidade Estadual Paulis- comportamento do disco de matéria que
rísticas do buraco negro da M87 – antes, ta (IFT-Unesp). Em setembro de 2015, o alimenta os buracos negros. “Ainda há
por exemplo, calculava-se que sua massa Observatório Interferométrico de On- muito por compreender. Por exemplo:
fosse 3,5 bilhões de vezes maior que a do das Gravitacionais (Ligo), nos Estados como são criados os jatos emitidos por
Sol. A segunda e mais importante é que Unidos, havia obtido indícios indiretos alguns buracos negros, como o da galá-
ela confirma que a teoria da relatividade ao detectar ondas gravitacionais geradas xia M87”, diz.
geral passou por mais um teste e permi- pela colisão de dois buracos negros (ver Espera-se para os próximos anos obter
te descrever com precisão até mesmo os Pesquisa FAPESP nº 241). imagens ainda mais nítidas da vizinhan-
infográficos 1 alexandre affonso 2 ESO / ESA / Hubble / M. Kornmesser / N. Bartmann
fenômenos mais extremos do Universo. Avery Broderick, pesquisador do Ins- ça do buraco negro da M87. Três outros
O primeiro teste foi a observação há 100 tituto Perimeter e da Universidade de radiotelescópios devem integrar a rede
anos da curvatura da luz ao passar pró- Waterloo, ambos no Canadá, afirmou e aumentar em cerca de 30% seu poder
ximo ao Sol, medida durante o eclipse durante a conferência de imprensa em de resolução. Antes, porém, talvez seja
de 1919 (ver Pesquisa FAPESP nº 278). Washington que a teoria da relatividade apresentada outra imagem: a dos arredo-
“O fato de se haver observado o ho- geral faz uma predição precisa dos com- res do buraco negro no centro da nossa
rizonte de eventos com o tamanho es- ponentes do buraco negro. Os dados ob- galáxia, a Via Láctea. Conhecido como
timado a partir de cálculos da teoria da tidos pelo Ligo e pelo EHT, prosseguiu Sagitário A*, ele tem massa 4,1 milhões
relatividade geral deve reduzir brutal- o pesquisador, indicam que os buracos de vezes maior do que a do Sol e está
mente a atenção dada a teorias de gravi- negros, com massa elevada ou pequena, situado 2 mil vezes mais perto da Terra
tação alternativas à de Einstein”, avalia guardam analogias importantes e devem do que o buraco negro da M87. Segun-
o astrofísico teórico Rodrigo Nemmen, se comportar do mesmo jeito. do Doeleman, essas imagens são mais
da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a astrofísica brasileira Lia complexas e a equipe do EHT ainda tra-
“A observação da mancha no centro Medeiros, integrante da colaboração balha nelas. n
da M87 é considerada a evidência mais EHT e atualmente pesquisadora da Uni-
direta da existência de buracos negros, versidade do Arizona, Estados Unidos,
embora não seja a única”, explica o físi- os resultados apresentados agora ajuda- Os artigos científicos consultados para esta reportagem
co George Matsas, do Instituto de Física rão a conhecer melhor a geometria e o estão listados na versão on-line.
de partículas
Letters. “O experimento funcionou como
prova de princípio. Espero que estimu-
le outros grupos a tentar reproduzi-lo”,
conta Marcassa.
A estratégia reduziu a vibração das
partículas, mas só parcialmente a rota-
Grupo de São Carlos desenvolve ção. “É um método mais simples do que
os anteriores e uma alternativa interes-
estratégia mais simples de produzir sante”, afirma o físico Marcio Miranda,
da Universidade Federal de Pernambu-
moléculas ultrafrias co (UFPE), que participou da produção
das primeiras moléculas ultrafrias, em
2008, nos Estados Unidos. “Ainda é pre-
A
ciso melhorar o controle sobre a rotação
produção de moléculas ultra- propriedade do mundo das partículas: a das moléculas.” n Ricardo Zorzetto
frias, mantidas a temperaturas tendência de se manterem sempre com
próximas ao zero absoluto ou o nível mais baixo de energia possível.
zero Kelvin (-273,15o), ocorre Em um primeiro momento, eles co-
Projeto
em muitas etapas e exige o uso de vários meçaram usando o laser para fornecer
Manipulation of atomic collisions in optical traps (nº
feixes de laser, além de equipamentos energia às moléculas. Isso as torna exci- 13/02816-8); Modalidade Projeto Temático; Pesqui-
caros, que custam alguns milhões de dó- tadas e as faz vibrar mais. Na sequência, sador responsável Luis Gustavo Marcassa (IFSC-USP);
lares, disponíveis em poucos laboratórios porém, elas perdem energia emitindo luz Investimento R$ 1.487.738,55.
no mundo. Esse quadro pode começar e voltam para um estado menos energé- Artigo científico
PASSAGEM, H. F. et al. Continuous loading of ultracold
a mudar. No Instituto de Física de São tico, às vezes de energia inferior ao do ground-state 85Rb2 molecules in a dipole trap using a
Carlos (IFSC) da Universidade de São estado inicial. Com base em cálculos do single light beam. Physical Review Letters. 26 mar. 2019.
Paulo (USP), a equipe de Luis Marcassa
desenvolveu uma estratégia mais sim-
ples de resfriar moléculas – os físicos
se interessam por elas porque permitem
testar propriedades fundamentais das
partículas, realizar operações de com-
putação quântica e tentar otimizar as
reações químicas. Com um feixe de laser
e aparelhos que, juntos, somaram US$
150 mil, o grupo da USP gerou moléculas
de dois átomos de rubídio à temperatura
de 10 microKelvin (10 milionésimos de
grau acima do zero absoluto).
A novidade está na forma de resfriar
as moléculas. Os experimentos anterio-
res usavam um feixe de laser para redu-
zir a velocidade de moléculas até quase
dennis s. k. / wikimedia commons
A provável
origem das
chamas
Laudo aponta sobrecarga que desabou quando o teto do térreo Carlos Alberto Trindade, outro perito da
ruiu e foi destruído pelo avanço do fogo. PF no vídeo, “nem portas corta-fogo, que
em ar-condicionado e A sobrecarga gerou faíscas e fogo por- impedissem a propagação da fumaça”.
que os três aparelhos estavam ligados a Se visitantes ainda estivessem no mu-
falhas do sistema elétrico um só disjuntor, dispositivo que desli- seu quando o incêndio começou, a tra-
como causas do incêndio ga automaticamente o circuito elétrico gédia poderia ter sido maior, porque, em
quando a intensidade da corrente supera fotos anteriores à destruição, os peritos
do Museu Nacional a que pode ser suportada. “Deveria ha- não identificaram sinalização que indi-
ver um disjuntor para cada máquina”, casse as rotas de fuga nessas situações.
disse o perito criminal Marco Isaac no Por ausência de indícios, a equipe da PF
I
vídeo da apresentação. “A instalação não descartou outras causas, como descarga
nstalações elétricas irregulares foram seguia a recomendação do fabricante atmosférica, queda de balão ou incêndio
a provável causa do incêndio que des- [dos aparelhos].” intencional. A divulgação do laudo encer-
truiu a sede do Museu Nacional (MN), No início da noite do domingo em que ra a investigação sobre a causa do incên-
no Rio de Janeiro, na noite de 2 de o incêndio começou, “o ar-condicionado dio, mas os peritos ainda trabalham para
setembro de 2018 (ver Pesquisa FAPESP era o único equipamento do auditório determinar se houve responsáveis pelo
nº 272), de acordo com o laudo da Polícia que estava energizado, em stand by, es- incidente. “Apesar de não termos exami-
Federal (PF) apresentado em 4 abril. perando comando do controle remoto”, nado com cuidado o laudo, a diretoria do
Durante quase uma hora, na Superinten- comentou, na apresentação, o também museu não tem capacidade técnica para
dência da PF, no Rio, os peritos que par- perito criminal Marco Antônio Zatta. se posicionar sobre ele”, disse o paleon-
ticiparam da investigação descreveram Ele apontou outra irregularidade: “Não tólogo Alexander Kellner, diretor do MN.
como examinaram as áreas queimadas identificamos aterramento [elétrico], que Logo após o incêndio, o governo fe-
por meio de fotos aéreas, imagens es- tem a função de auxiliar o escoamento deral anunciou a aprovação de R$ 10
caneadas e escavações até concluírem da corrente, em caso de falhas”. milhões para a reconstrução, estimada
que o incêndio deve ter começado com Os especialistas verificaram que os ex- entre R$ 50 milhões e R$ 100 milhões.
uma sobrecarga elétrica no aparelho de tintores estavam funcionando, mas não Por meio de uma emenda parlamentar
Ana Carolina Fernandes
ar-condicionado mais próximo do palco havia hidrantes de parede, sprinklers apresentada por deputados do Rio de
do auditório do andar térreo. O auditório (chuveiros ativados automaticamente Janeiro, o governo federal aprovou ou-
encontrava-se abaixo da sala que abriga- em caso de fumaça) e alarme de incêndio. tros R$ 55 milhões. “Vamos começar a
va o Maxakalisaurus topai, fóssil de um “Perdemos o museu por não haver dispo- reconstrução ainda neste ano”, afirma
dinossauro de 13 metros de comprimento sitivo de detecção de incêndio”, observou Kellner. n Carlos Fioravanti
Sem ferrão
e muito
sensíveis
Larvas de abelhas nativas
se mostraram menos
resistentes a inseticidas
do que as de Apis mellifera,
de origem europeia
Carlos Fioravanti
As abelhas jataí se
tornam mais lentas
e voam menos sob a
ação de agrotóxicos
mapeado
M918T, por exemplo, é classificada como
de risco altíssimo e apareceu como a se
gunda mais frequente entre os pacientes
estudados (quase 15% das famílias apre
sentavam essa alteração genética). Aos
portadores dessa mutação é indicada a
retirada imediata da tireoide mesmo que
ainda não haja aparecimento de tumor.
A mutação mais comum entre os pa
Estudo determina o perfil cientes brasileiros, presente em 43% das
famílias do levantamento, foi a C634,
genético de pacientes brasileiros que também apresenta risco elevado de
causar precocemente câncer de tiroide,
de doença rara que causa mas menor do que em pacientes com a
um tipo de câncer de tireoide M918T. No caso de mutações de manifes
tação mais branda, como a V804, encon
trada em 12,5% das famílias do estudo, a
retirada da tireoide, conduta necessária
Suzel Tunes para todos os casos de MEN2, pode ser
feita mais tarde.
Além de o grau de agressividade da
mutação ser importante para prever o
desenvolvimento do CMT, a demora no
U
diagnóstico também reduz as chances
m estudo multicêntrico deter foram encontradas diferenças regionais de cura. “Muitos casos são diagnostica
minou o perfil das mutações no perfil das alterações genéticas, que dos tardiamente, o que contribui para a
que provocam na população seriam um reflexo da miscigenação do mortalidade e morbidade dos pacien
brasileira a rara síndrome he povo brasileiro, devido à sua ancestra tes”, afirma a endocrinologista Ana Lui
reditária conhecida como neoplasia en lidade europeia, indígena e africana. Os za Maia, chefe da Unidade de Tireoide
dócrina múltipla tipo 2, ou simplesmente resultados do estudo, que encontrou 13 do Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
MEN2, que acomete em média uma a diferentes tipos de mutações nesse gene, vinculado à Universidade Federal do Rio
cada 80 mil pessoas. Em quase 100% dos foram publicados na edição de março da Grande do Sul (UFRGS), outra coordena
casos, a doença ocasiona o surgimento do revista científica Endocrine Connections. dora do estudo, denominado BrasMEN.
carcinoma medular de tireoide (CMT), Determinar a mutação no gene RET O estudo contou com financiamento das
tumor maligno que pode levar à morte que causa a MEN2 e, por extensão, o fundações de amparo à pesquisa de São
se não for tratado precocemente. Com carcinoma medular de tireoide, é fun Paulo e do Rio Grande do Sul.
menor frequência, também pode originar damental para o estabelecimento de Um dos dados mais interessantes
outros tumores endócrinos, como na um provável prognóstico da evolução produzidos pelo trabalho diz respeito à
medula da suprarrenal e nas glândulas do tumor. “Existe uma relação entre o prevalência no país da mutação G533C,
paratireoides. A MEN2 é causada por tipo da mutação e o quadro clínico dos descoberta por Maciel e colaboradores
diferentes mutações em um gene, o RET. pacientes”, explica o endocrinologista em 2002. Essa alteração estava presente
Segundo o trabalho, que determinou a Rui Monteiro de Barros Maciel, da Uni em 0,6% das famílias participantes do
variante desse gene presente em 176 fa versidade Federal de São Paulo (Unifesp) trabalho, frequência maior ou igual à
mílias que englobam 554 pacientes com e um dos coordenadores do estudo, que encontrada em países da Europa, com
CMT, as mutações mais frequentes no envolveu um consórcio de 46 pesqui uma única exceção: a Grécia, onde essa
país são, grosso modo, as mesmas descri sadores de 18 centros de referência do mutação é a mais comum. “Acreditáva
tas na população europeia. No entanto, país. Algumas mutações provocam ma mos que outros indivíduos vivendo na
A energia de
uma dupla
de metais
Nanopartículas de ouro revestidas de platina
podem melhorar a eficiência de catalisador
usado em células a combustível
Rafael Garcia
U
ma equipe do Centro de Pes O dispositivo formulado pelos pesqui dor também poderia ser mais barato,
quisas Avançadas em Grafeno, sadores da universidade paulista é for pois empregaria menores quantidades
Nanomateriais e Nanotecno mado por uma folha de óxido de grafeno de platina do que os dispositivos atuais,
logias (MackGraphe), da Uni ao qual são agregadas nanopartículas segundo os pesquisadores. “A platina é
versidade Presbiteriana Mackenzie, em de ouro revestidas por uma camada de muito cara e o processo de geração de
São Paulo, desenvolveu o protótipo de platina com um átomo de espessura. A combustível com esse tipo de catalisador
um catalisador bimetálico que poderia nanoestrutura peculiar, originada pela ainda é pouco eficiente”, diz Seixas. Es
aumentar a eficiência de células a com junção das partículas dos dois metais, sas limitações estimularam a equipe do
bustível – dispositivos que convertem seria a responsável por aprimorar o de MackGraphe a usar seus conhecimentos
hidrogênio em eletricidade de forma sempenho do dispositivo. O segredo do sobre o grafeno e nanoestruturas para
silenciosa e sem emitir poluentes. Usual catalisador residiria na camada mono tentar manipular a platina e melhorar
mente feito de platina, um elemento raro atômica de platina sobre ouro, que au o processo de obtenção de hidrogênio.
e caro, o catalisador de células a com menta as propriedades eletrônicas do Nos experimentos e simulações, as
bustível estimula a quebra da molécula nanomaterial e sua capacidade de atuar nanopartículas de ouro recobertas por
de água (H2O) que libera átomos para como catalisador. “As nanopartículas uma folha de platina funcionaram co
a formação de oxigênio e de hidrogê são arranjadas de maneira a formar um mo catalisador de forma superior à de
nio. Esse último gás é o responsável caroço de ouro de aproximadamente 1,2 estruturas feitas de partículas macros
por alimentar a célula a combustível, nanômetro com uma casca de platina”, cópicas de platina, da liga ouro-platina e
que, como uma bateria elétrica, pode explica o físico teórico Leandro Seixas, até de nanopartículas apenas de platina.
ser usada para movimentar veículos. O do MackGraphe, um dos autores do estu “Quando colocamos a platina em cima
catalisador é incorporado aos eletrodos, do publicado em 29 de janeiro no perió do ouro, ela fica mais ativa que a platina
dispositivos que aplicam uma descarga dico ACS Applied Materials & Interfaces, pura”, comenta a química Camila Maro
elétrica na água durante o procedimento que descreveu o processo de criação do neze, do MackGraphe, outra autora do
de eletrólise. Dessa forma, núcleos de dispositivo. Com a capa de platina e o estudo. “Esse foi um aspecto interessante
hidrogênio são estimulados a se ligarem interior de ouro, as nanopartículas atin que a teoria previu bem e comprovamos
uns aos outros, em vez de entrarem na gem no máximo 1,8 nanômetro. experimentalmente.” Para concluir a par
formação de novas moléculas de água, Além de se mostrar mais eficiente te teórica do trabalho, os pesquisadores
que seria seu curso natural. nos testes realizados, o novo catalisa contaram com a infraestrutura do centro
Ilustração mostra
nanopartículas
de ouro revestidas de
Óxido de grafeno
platina sobre folhas
de óxido de grafeno
de pesquisa em materiais bidimensionais físico Ennio Peres, da Universidade Esta é melhorar a eficácia da platina, como foi
da Universidade Nacional de Cingapura, dual de Campinas (Unicamp). “A energia feito no trabalho publicado agora. Outra
cujo supercomputador rodou simulações gerada pelo sol e pelo vento é intermi é achar substitutos para esse elemento.
sobre o novo material. Na frente expe tente e precisa ser armazenada para que “Um metal que estamos estudando, o
rimental, microscópios de transmissão possa ser utilizada nos picos de consumo. molibdênio, é muito mais barato do que
eletrônica do Centro Nacional de Pes Se aproveitarmos essa energia excedente a platina”, diz Seixas. “Quando combi
quisa em Energia e Materiais (CNPEM), para produzir hidrogênio combustível, nado com o enxofre, o molibdênio fica
de Campinas, foram usados para ver as poderemos armazená-la para usar mais lamelar, ou bidimensional, assim como
nanoestruturas obtidas em laboratório. tarde, gerando eletricidade com células o grafeno.” O chamado dissulfeto de mo
a combustível.” libdênio, explica o físico, pode ser então
Armazenar energia Antes de se aposentar, Peres dirigiu reestruturado na escala nanométrica, na
Conduzidas pela equipe do Mackenzie na Unicamp por mais de uma década o tentativa de se obter propriedades ele
como ciência básica, as pesquisas de Laboratório de Hidrogênio (LH2), que trônicas diferentes. Esse composto vem
Seixas e Maroneze não geraram, ainda, originou a empresa Hytron, spin-off bra sendo mencionado com frequência na
patentes. A manipulação do ouro sobre sileira que atua no mercado de arma literatura científica da área e deve ser
a base de óxido de grafeno havia sido zenamento de energia com hidrogênio. objeto dos próximos trabalhos a serem
descrita em um estudo publicado no ano Segundo o pesquisador, no campo das publicados pelo grupo. n
passado na revista científica Nanoscale. aplicações práticas o custo dos catalisa
A produção dessas nanopartículas é, po dores é uma questão crucial. Nas células
Projeto
rém, o estágio inicial em um movimen a combustível, que funcionam como os
Grafeno: Fotônica e optoeletrônica. Colaboração UPM-
tado cenário de inovação. O hidrogênio “motores” dos veículos e dos geradores, -NUS (nº 12/50259-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa;
hoje é usado não apenas nos primeiros ainda não se arranjou substituto eficaz Programa Spec; Pesquisador responsável Antonio Helio
modelos de carros movidos a célula a para a platina. Há uma corrida tecnológi de Castro Neto (Universidade Presbiteriana Mackenzie);
ilustraçãO fabio otubo
U
m dos estados brasileiros mais casti-
o sal
de água marinha do país. Quando estiver pronto,
o empreendimento, cujo projeto foi iniciado em
2016, irá reforçar o sistema de abastecimento da
capital, Fortaleza, e dos municípios da região
metropolitana, uma mancha urbana onde vivem
mais de 4 milhões de pessoas. A expectativa da
da
Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cage-
ce), empresa de saneamento responsável pelo
projeto, é de que o edital de licitação seja lan-
çado ainda neste semestre. Os estudos técnicos,
operacionais, ambientais e econômicos que estão
sendo usados para a elaboração da concorrência
água
pública foram feitos por um consórcio liderado
pelo Grupo GS, da Coreia do Sul.
Ronner Gondim, superintendente de sustenta-
bilidade da Cagece, explica que a construção da
planta, prevista para começar a operar em 2022,
será feita a partir de uma parceria público-privada
(PPP), cujos detalhes serão definidos pelo edital.
O local de instalação ainda não foi escolhido, mas
cogita-se a praia de Mucuripe, próxima ao porto
de Fortaleza. A usina está sendo projetada para
produzir 1 metro cúbico (m3) de água por segundo
Ceará planeja construir (o equivalente a mil litros) – a Região Metropo-
litana de Fortaleza consome 8 m3 por segundo.
a primeira grande usina “Teremos um aumento de 12% na oferta de água
na região, o suficiente para abastecer cerca de
de dessalinização do país; 720 mil pessoas”, ressalta. O valor estimado do
novas tecnologias são projeto gira em torno de R$ 480 milhões.
“A empresa vencedora assumirá a construção e
pesquisadas no Brasil e no o direito de operação por 30 anos”, diz Gondim.
O governo cearense vai estipular uma tarifa má-
exterior para reduzir xima por litro de água dessalinizada. O vencedor
da licitação será quem oferecer a menor tarifa.
o custo do processo Hoje, o valor médio praticado pela Cagece para
tratar 1 m3 de água doce está em torno de R$ 3.
O custo médio da água dessalinizada ao redor do
Rodrigo de Oliveira Andrade mundo começa em US$ 2 (cerca de R$ 8) o metro
cúbico, a depender do processo usado.
A expectativa é de que a nova usina retire o
sal da água marinha por meio da técnica de os-
James Grellier / wikimedia commons
Energia
Resfriamento
Vapor-d’água
Íons de
Condensação
Sais Sais cloro (Cl-)
Sais
ÓXIDO DE GRAFENO
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Fede-
Nesse sistema de osmose reversa, a ral da Paraíba (UFPB) trabalham na criação de
filtragem é realizada por membranas Molécula membranas nanoestruturadas de grafeno para
feitas de óxido de grafeno. Elas deixam de água dessalinizar água salobra. Além da redução do
passar as moléculas de água, mas custo, outra vantagem desse método é que os
Membrana
retém os íons de cloro e sódio (sais). de óxido filtros de grafeno não precisam ser limpos com
O processo não é comercial de grafeno a mesma frequência dos filtros de membranas
de osmose reversa. O grafeno também é imune
aos efeitos do cloro, usado durante o processo
de limpeza e que reduz a integridade estrutural
de operação”, explica. No Brasil, o grupo de Ruo- das membranas poliméricas, fazendo com que
tolo desenvolveu um processo de deionização precisem ser substituídas com mais frequência.
capacitiva à base de carvões ativados com poros
nanométricos (ver Pesquisa FAPESP nº 262). DESSALINIZAÇÃO NO BRASIL
Outra estratégia que vem ganhando destaque A usina de dessalinização do Ceará deverá ser a
é o uso de membranas feitas de óxido de grafeno, maior, mas não a primeira, a operar no Brasil. Há
caracterizadas como folhas de carbono com espes- quase duas décadas o arquipélago de Fernando
infográfico alexandre affonso (concepção e ilustração)
sura atômica, em sistemas de osmose reversa. A de Noronha tem um pequeno sistema de des-
ideia é usá-las como uma peneira para remover o salinização capaz de produzir cerca de 720 m3
sal da água marinha ou salobra, como a encontra- de água por dia. A produção responde por 40%
da em poços perfurados no semiárido brasileiro. da demanda hídrica do arquipélago. O restante
Estima-se que seu emprego reduza em até 50% o vem da água das chuvas. Algumas comunidades
gasto energético para bombear a água pelos filtros. do semiárido brasileiro também contam com o
Isso porque há menos atrito quando se força a pas- auxílio de dessalinizadores para tornar a água
sagem da água salgada por membranas de grafeno salobra obtida de poços artesianos adequada ao
em comparação com as tradicionais de polímero. consumo humano. “Todos usam o método de os-
Cientistas ao redor do mundo têm se debruça- mose reversa”, esclarece a engenheira química
do sobre essa tecnologia. No Brasil, pesquisadores Weruska Brasileiro Ferreira, do Departamento
das universidades Estadual da Paraíba (UEPB), de Engenharia Sanitária e Ambiental da UEPB.
Amostras de
fibra, fio e tecido
de cashmere
lia souza coelho
feitas no país
O fino pelo O
Brasil poderá se inserir em alguns anos
no mercado global de um insumo va-
lorizado pela indústria têxtil. Trata-se
do cashmere, uma fibra natural muito
das cabras
fina, leve, suave e, ao mesmo tempo, forte e re-
sistente. Produzida a partir de pelos de caprinos,
ela proporciona conforto e isolamento térmico,
protegendo tanto do frio quanto do calor. Um
quilo da fibra é cotado no mercado internacional
a US$ 160 (cerca de R$ 630), de acordo com o
Fibra cashmere produzida a site de informações Emerging Textiles. No ano
passado, a China liderou a fabricação do insumo,
partir de caprinos nacionais com 15 mil toneladas (t), cerca de 60% do total,
seguido pela Mongólia, com 6 mil t.
tem qualidade superior à A entrada de produtores brasileiros nesse mer-
comercializada no mercado cado será resultado de pesquisas conduzidas há
sete anos pela zootecnista Lia Souza Coelho, co-
internacional laboradora do Centro Brasileiro de Pesquisas Fí-
sicas (CBPF), sediado no Rio de Janeiro. Durante
seu mestrado na Universidade Federal Rural do
Domingos Zaparolli Rio de Janeiro (UFRRJ), ela descobriu que é pos-
sível produzir no país uma fibra cashmere ainda
mais delgada e confortável do que as disponíveis
paradas para depósito. Os estudos fo- na região Nordeste. As principais fontes Desenvolvimento Sustentável da Organi-
ram feitos nos laboratórios do CBPF, da de renda do caprinocultor são a produção zação das Nações Unidas (ONU), entre
Universidade Estadual Paulista (Unesp), de carne e leite. Em janeiro deste ano, o eles a geração de trabalho e renda para
campus de Araraquara, e do Instituto criador ganhava em torno de R$ 190 na grupos econômicos vulneráveis, a baixa
Nacional de Tecnologia Industrial da venda do animal vivo para abate, confor- produção de resíduos e o reduzido con-
Argentina (Inti). “O Inti conta com es- me levantamento da Empresa Brasileira sumo de água.
pecialistas e aparelhos para realização de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Fernando Pimentel, presidente da
de testes físicos da fibra cashmere com Cada caprino brasileiro produz cerca Abit, avalia que o mercado internacio-
as normas reconhecidas internacional- de 217 gramas de fibra cashmere por ano. nal será essencial para viabilizar a cadeia
mente, algo que, infelizmente, inexiste Segundo Lia Coelho, negociações pre- produtiva do cashmere brasileiro, já que,
no país”, relata a cientista. liminares com potenciais interessados em países tropicais como o Brasil, a de-
indicam um preço médio na casa de R$ manda pelo produto é limitada. “É uma
CADEIA PRODUTIVA 1.137 o quilo da fibra nacional, superior boa ideia que precisa avançar, estimu-
Lia Coelho agora integra a equipe de pes- ao do insumo no mercado internacional, lando parcerias com governos estaduais
quisadores colaboradores do CBPF, sob em razão de sua qualidade superior. Caso que queiram incentivar a agricultura
supervisão de André Linhares Rossi, e li- esse valor seja confirmado, a coleta da familiar e com empresas interessadas
dera o Projeto Cashmere Brasileira, cujo fibra poderá acrescentar uma renda de nesse mercado”, diz. Firmar um acor-
objetivo é criar uma cadeia produtiva lo- R$ 247 ao ano por animal aos criadores. do com um produtor de fios e tecidos é
cal para o insumo têxtil. A iniciativa já foi Essa não é a única vantagem. A retirada uma das metas de Lia Coelho para 2019.
apresentada ao Ministério da Agricultura, da fibra se dá por escovação e apenas na “Estamos em negociação avançada com
Pecuária e Abastecimento (Mapa) e ao época em que se desprende sozinha do três empresas.” n
governo da Paraíba, estado que concen- animal. “Os caprinos escovados aumen-
tra expressivo rebanho de caprinos. Em tam a produção de leite e sofrem menor
paralelo, a equipe do projeto trabalha pa- estresse térmico”, relata a pesquisadora. Artigo científico
ra demonstrar o potencial do cashmere Para Júlia Baruque Ramos, da EACH- COELHO, L. et al. Characterization and identification of
brasileiro para associações de criadores. -USP, o cashmere brasileiro poderá ser cashmere in goats in northeastern Brazil. Revista Aca-
O último Censo Agropecuário produzi- valorizado no mercado internacional de dêmica: Ciência Animal. v. 16. 2018.
do pelo Instituto Brasileiro de Geografia e alto luxo em razão não só da qualidade, Livro
lia souza coelho
Estatística (IBGE) informa que o rebanho mas também pela sustentabilidade eco- COELHO, L. Características da capa externa de caprinos
em ambiente tropical: Reconhecimento e caracteriza-
de caprinos do país somava 8,2 milhões nômica e ambiental. O insumo nacional, ção de cashmere em cabras no Brasil. Novas Edições
de animais em 2017, sendo que 90% está destaca, atende a vários dos Objetivos de Acadêmicas, 2017.
Muito além
dos
motores
Dona de um abrangente portfólio,
a multinacional catarinense WEG
produziu os precisos eletroímãs
do Projeto Sirius
U
m dos mais ambiciosos projetos da ciência nacio-
nal, a fonte de luz síncrotron Sirius recebeu uma
relevante contribuição da multinacional brasileira
WEG, sediada em Jaraguá do Sul, interior de Santa
Catarina. Especializada na fabricação de motores
elétricos industriais, geradores de energia, equipamentos de
automação, entre outros produtos, a companhia forneceu os Eletroímãs durante
eletroímãs do equipamento, projetado e operado pelo Labo- testes de caracterização
magnética na fonte
ratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), localizado em de luz síncrotron Sirius
Campinas (SP). Componente vital e difícil de ser fabricado,
os eletroímãs têm a função de guiar a trajetória dos feixes de
elétrons dentro do Sirius, de forma a gerar a luz síncrotron.
Essa radiação é capaz de revelar em alta resolução a estrutura
de materiais, proteínas, vírus, rochas, plantas e ligas metálicas,
possibilitando o avanço da pesquisa científica e tecnológica em
diversas áreas de conhecimento (ver Pesquisa FAPESP no 269).
Poucos fabricantes de eletroímãs no mundo são capazes
de uma entrega com esse perfil. Até receber a encomenda, a
WEG nunca havia produzido eletroímãs, mas tinha longa ex-
periência na estamparia de chapas laminadas de ferro silício,
material que forma o núcleo do eletroímã e, ao mesmo tempo,
é usado em transformadores de energia, equipamentos que
WEG
Centro de P&D
Jaraguá do Sul (SC)
Nº de pesquisadores
2,5 mil profissionais
Principais produtos
Motores elétricos
industriais, geradores
de energia, eletroímãs
e equipamentos de
automação
integram o portfólio da empresa cata- inédita na qual as chapas laminadas de 1.036 eletroímãs foram produzidos pela
rinense (ver reportagem na página 42). ferro silício são obtidas apenas com o WEG e entregues ao LNLS.
A qualidade dos eletroímãs, segundo o processo de estampagem, que consiste Apesar do sucesso da empreitada, a
engenheiro eletricista James Citadini, no corte a frio de uma chapa para fabri- companhia não tem planos de entrar no
líder do Grupo de Imãs do LNLS, é de- cação de uma peça a partir de um molde. mercado de eletroímãs. Isso não impede,
terminada por sua complexa geometria Tradicionalmente, após a estampagem os entretanto, que ela os produza sob enco-
mecânica. Cada chapa laminada deve fabricantes fazem o acabamento por meio menda para outros projetos de acelera-
ter uma precisão dimensional dentro de usinagem. Essa etapa encarece em três dores de partículas como o Sirius, desen-
de 5 a 8 micrômetros (µm), para que o vezes o processo produtivo e reduz a qua- volvidos ao redor do mundo. “O que nos
conjunto de chapas, depois de montado, lidade magnética do eletroímã devido ao interessou na parceria com a LNLS foi o
não ultrapasse uma variação de 30 µm. aquecimento do material. “Chegamos a desafio de participar de um projeto ro-
O esforço conjunto das equipes do uma solução inovadora que gerou econo- busto, em que tivemos a oportunidade de
léo ramos chaves
LNLS e da WEG resultou no desenvol- mia significativa ao projeto”, diz Citadini. desenvolver nossas habilidades em estam-
vimento de eletroímãs de altíssima pre- “E temos um fornecedor local, capaz de paria de precisão”, destaca Milton Oscar
cisão, construídos a partir de uma técnica dar a assistência de forma rápida.” Exatos Castella, diretor de engenharia da WEG.
nutenção em turbinas instaladas sobre troladores de velocidade e componentes de médio e grande porte e aviões”, conta
torres com mais de 120 metros de altura. para transmissão mecânica. No mesmo Castella. O segmento de veículos de pas-
Ainda no setor de energias renováveis, mês, comprou outra divisão da norte- seio, por ora, ainda não está nos planos
a WEG é fornecedora de equipamentos -americana NPS, a unidade que projeta da companhia. n Domingos Zaparolli
As terras
imaginárias
do Pará
22,7 milhões de hectares de áreas particulares
e 18,5 milhões de terrenos públicos só existem no papel
Carlos Fioravanti, de Belém
E
m julho, o promotor Luiz Gustavo deral do Pará (UFPA) em colaboração com o MP
da Luz Quadros deverá assumir a e o Tribunal de Justiça (TJ) do Estado do Pará.
coordenação de uma unidade da Pro- O SIG Fundiário fez algo inédito, ao integrar
motoria de Justiça Agrária do Mi- bases de dados de órgãos públicos e cartórios e
nistério Público (MP) do Pará que está delineando a real situação fundiária do es-
está sendo criada no município de Castanhal, tado. Os resultados preliminares revelaram 22,7
próximo à capital do estado, para intermediar milhões de hectares (ha) de terras privadas e 18,5
a resolução de conflitos de terra com o apoio milhões de ha de terras públicas que não existem
de novos recursos tecnológicos. “Queremos de fato, porque a soma das áreas registradas em
evitar que os problemas sejam resolvidos com cartórios excede a área total dos municípios. A
violência, à bala, e ganhem repercussão nacio- chamada matrícula, documento que permite a
nal e internacional”, diz. Em 2017, o Pará re- venda ou a doação de imóveis, gera novo registro
gistrou 71 assassinatos de trabalhadores rurais toda vez que muda o proprietário. O SIG Fundiá-
em conflitos de terra e em 2018 24. Até março rio identificou até 10 registros simultâneos, como
de 2019 outros seis assassinatos foram asso- se houvesse 10 donos ou conjuntos de donos, com
ciados a disputas por terra. Quadros pretende áreas sobrepostas.
reconhecer os legítimos proprietários e regu- Criado há cinco anos, com financiamento de
larizar a situação fundiária do estado sempre cerca de US$ 1,6 milhão da Fundação Ford e da
fotos léo ramos chaves
que possível por meio de acordos amigáveis, organização não governamental Climate and
sem processos judiciais, usando o Sistema Geo- Land Use Alliance (Clua), o SIG Fundiário reuniu
gráfico de Informação Fundiário (SIG Fundiá- 83.676 documentos de três regiões – Tomé-Açu,
rio), plataforma computacional elaborada por Jari e Itaituba, que somam 19,5 milhões de ha, o
equipe multidisciplinar da Universidade Fe- equivalente a 15% do Pará. A equipe do Labo-
Propriedades multiplicadas
Equipe da UFPA identificou 22,7 milhões de hectares de áreas privadas a mais em 10 municípios
de três regiões do Pará, que correspondem a 15% do território do estado
Projeto Jari
n área oficial 916.602 ha
▲ área registrada 1.126.336 ha
Diferença: 23%
mesorregião
metropolitana
de belém
baixo amazonas
marajó
Microrregião de Tomé-Açu
n área oficial 2.457.565 ha
nordeste
paraense ▲ área registrada 11.405.484 ha
Diferença: 364%
Itaituba
n área oficial 6.204.247 ha
▲ área registrada
19.746.163 ha sudoeste paraense
Diferença: 218%
Fonte Integradata/UFPA
ver. Um dos casos levantados pelo SIG Fundiário para amenizar os conflitos de terras no Pará. n
começou em 1960, com solicitação feita por um
fazendeiro interessado em adquirir, do governo
do estado, uma área de cerca de 3 mil ha, ocupada Livro
por um castanhal, em Marabá. Por se tratar de COSTA, F. de A. Dinâmica fundiária na Amazônia: Concorrência de
trajetórias, incertezas e mercado de terras. In: MALUF, R. S. e FLE-
uma área destinada ao extrativismo, o pedido foi XOR, G. (orgs.) Questões agrárias, agrícolas e rurais: Conjunturas e
negado. Pouco tempo depois, no entanto, valendo- políticas públicas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2017.
Em fevereiro de 2019, na Sociedade Rural que permite a adequação das áreas embasar a tomada de decisões pelos
Brasileira, em São Paulo, o agrônomo de preservação a leis anteriores. proprietários rurais ou representantes
Gerd Sparovek, professor da Escola de “Caso o proprietário tenha menos de dos órgãos do governo”, acrescenta a
Agricultura Luiz de Queiroz da 20% de vegetação nativa em sua bióloga Alice Brites, pesquisadora em
Universidade de São Paulo (Esalq-USP) propriedade, o artigo 68 o isenta estágio de pós-doutorado na Esalq que
e presidente da Fundação Florestal de de recompor a porcentagem da lei coordenou as seis reuniões realizadas
São Paulo, apresentou para um grupo atual se ele estiver de acordo com a desde 2017 com proprietários rurais,
de 100 produtores rurais, advogados e legislação ambiental da época em representantes do governo, advogados,
representantes de órgãos de governos que foi feita a conversão da vegetação procuradores e outros especialistas
e de organizações não governamentais nativa em outros usos”, explica o em questões agrícolas. O projeto é
a versão mais recente de um programa biólogo Paulo André Tavares, resultado de debates iniciados em 2015
de computador que indica possíveis pesquisador do grupo da Esalq. sobre a implantação do Programa de
áreas de compensação de reservas legais O marco legal de 1934 estabeleceu a Regularização Ambiental (PRA) com os
no estado de São Paulo. De acordo obrigatoriedade de manter 25% da pesquisadores do Programa Pesquisa
com o novo Código Florestal, em vigor vegetação nativa da propriedade rural, em Biodiversidade (Biota-FAPESP).
desde 2012, toda propriedade rural no mas como o seguinte, de 1965, não
estado deve manter 20% de sua área especificava o tipo de vegetação a ser
com vegetação nativa; preservada. “Queremos oferecer Projeto
esse valor corresponde à reserva legal ferramentas técnicas para o gestor Áreas prioritárias para compensação de Reserva
Legal: Pesquisa para o desenvolvimento de uma fer-
somada com as áreas de preservação público trabalhar com segurança e inibir
ramenta para auxílio à tomada de decisão e transpa-
permanente – quem tiver menos do condutas administrativas indevidas rência no processo de implementação do Programa
que 20% pode restaurar vegetação ou errôneas”, afirma Sparovek. de Regularização Ambiental (PRA) no estado de São
Paulo (no 16/17680-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa
nativa ou fazer a compensação em outra “Oferecemos vários cenários possíveis – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável
área. Aberto a qualquer interessado, de compensação de reserva legal para Gerd Sparovek (USP); Investimento R$ 1.147.138,91.
Minha M
aior programa habitacional do país,
o Minha Casa, Minha Vida (MCMV)
se tornou também um recorrente ob-
jeto de pesquisas acadêmicas – que,
apesar do volume, falham em oferecer uma visão
Casa,
pormenorizada das habitações construídas e
em se tornar base para a tomada de decisões
políticas. Essas são as principais conclusões de
estudo de revisão bibliográfica coordenado pe-
la arquiteta Doris Kowaltowski, professora na
Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e
Minha
Urbanismo da Universidade Estadual de Cam-
pinas (FEC-Unicamp). Intrigada com a grande
produção em torno do tema, em 2015 ela reuniu
um grupo de cinco pesquisadores para verificar
as investigações científicas realizadas. “Quis
fazer uma análise do que já se sabe a respeito
Vida
do programa”, conta.
A equipe partiu de um conjunto de mais de
8 mil documentos que mencionavam o projeto,
identificados em distintas bases de dados. “Nossa
preocupação inicial era localizar o que havia sido
publicado sobre o Minha Casa, Minha Vida. A par-
na
tir daí, estabelecemos os critérios de seleção dos
estudos”, explica o arquiteto e urbanista Daniel
de Carvalho Moreira, também da FEC-Unicamp.
O primeiro desses filtros teve a função de identifi-
car a produção estritamente acadêmica, tomando
academia
como base índices internacionais e instrumentos
de amplo alcance, como o Google Acadêmico. O
corpus foi reduzido a 2.477 trabalhos, entre trans-
crição de conferências, artigos, livros e capítulos
de livros, manuscritos e relatórios – além de 750
dissertações e teses, cujos títulos e resumos foram
analisados de modo a fornecer um panorama para
a pesquisa mais refinada, que se concentrou em
57 artigos selecionados a partir das ferramentas
Revisão bibliográfica feita por SciELO, Scopus e Web of Science. Classificado a
partir de quatro parâmetros – tipo de pesquisa e
pesquisadores mostra baixo de resultado (qualitativo ou quantitativo), escopo
da pesquisa (local ou nacional) e tipologia de habi-
impacto de estudos sobre tação investigada (individual ou multifamiliar) –,
programa de moradia social esse material foi avaliado de maneira minuciosa.
A primeira etapa da pesquisa foi apresentada em
um artigo de 2015 no Journal of the Korean Hou-
Luisa Destri sing Association; no ano passado, uma síntese com
os resultados foi publicada no periódico inglês
Building Research & Information.
Alguns aspectos surpreenderam os pesquisa-
dores. Em primeiro lugar, a quantidade de estu-
dos realizados em áreas que não a arquitetura
e o urbanismo. “Aproximadamente metade dos
8.590
PALAVRAS-CHAVE documentos
“Minha casa
Impacto sobre o déficit habitacional 7
minha vida”
Mobilidade urbana e infraestrutura 5
“MCMV” Objetivos políticos e econômicos 5
Usuário e requisitos de espaço 5
“PMCMV”
Benefícios do programa habitacional 5
entre Legislação territorial 5
2010 2.477
documentos Expansão urbana e imobiliária 4
e 2016
Mudança climática/ eficiência energética 4
Zonas especiais de interesse social 3
Avaliação geo-histórica 3
965 Transformações urbanas 2
(livros,
conferências,
762
artigos Impacto de remoção de favelas 2
manuscritos
etc.)
750 Tecnologia de construção 1
dissertações
e teses Áreas comuns e externas 1
Mutirão versus habitação padrão 1
Projetos de design universal (UD) 1
Atualização de propostas 1
57 Projetos especiais 1
Artigos
Resíduos da construção 1
Fonte Kowaltowski, D. et. al.
A critical analysis of research of
a mass-housing programme. 2018
Origens diversas explicariam, por clusões parciais a partir da revisão bi- lias de mais de três pessoas e a ausência
exemplo, por que dois estudos veem co- bliográfica, os autores sustentam: “Fer- de preocupação com o conforto térmico
mo positiva a segurança na nova mora- ramentas de pesquisa, que podem avaliar dos moradores – apontado como negati-
dia, enquanto outros dois apontam para fielmente a qualidade de vida das pessoas vo nos trabalhos em que foi considera-
uma piora no quesito. Segundo dados de nas novas condições, devem ser testadas do. Kowaltowski defende que recursos
2017 da Secretaria Nacional de Habita- e aplicadas juntamente com métodos arquitetônicos simples, como avaliação
ção, desde 2009, ano de implantação do estatisticamente robustos. Estudos de- prévia da orientação solar e adoção de
programa, até 2016, dos cerca de 3,2 mi- vem ser repetidos a fim de comparar as ventilação cruzada, sejam empregados
lhões de unidades entregues, 1,1 milhão primeiras impressões com níveis poste- nos projetos, a fim de evitar danos maio-
destinou-se à faixa 1, isto é, a famílias riores de satisfação”. res no futuro. “As temperaturas parecem
com renda mensal de até R$ 1.800,00. A A existência de poucos trabalhos com estar cada vez mais altas. Um dia, essas
faixa seguinte, de rendimento mensal de essa característica parece guardar rela- pessoas vão comprar aparelhos de ar-
até R$ 4 mil, recebeu a maior parte das ção, conforme argumentam, à repetição -condicionado para amenizar o proble-
unidades, 1,8 milhão; na terceira, de até de erros do passado por parte do poder ma nas unidades e esse gasto de energia,
R$ 9 mil mensais, foram 290 mil habita- público, não apenas no Brasil, como tam- que poderia ser evitado com ajustes nos
ções adquiridas por meio do programa. bém globalmente – em especial no que projetos, acabará por representar mais
diz respeito à concepção dos empreen- um fator para a piora do clima.” A falta
Foco nos moradores dimentos. “Algumas pesquisas registra- de privacidade, já que há pouca distância
Diante do foco prevalente em aspectos ram que os projetos arquitetônicos não entre as janelas das diferentes unidades,
relacionados à cidade e à vizinhança, respondem a diversas necessidades e e a monotonia estética, provocada pela
como a avaliação da localização dos con- anseios dos usuários finais, indicando a repetição de projetos idênticos ou mui-
juntos e de sua relação com a paisagem necessidade de intervenções para me- to similares, nas unidades construídas,
urbana, a equipe de pesquisadores apon- lhorias, quando possível”, afirma Kowal- são outros problemas destacados pelo
ta a importância do desenvolvimento towski. Dentre as principais queixas ob- estudo e lembrados pela pesquisadora.
de investigações científicas baseadas na servadas nos estudos estão a metragem Entre as razões para que a produção
perspectiva do usuário. Já no artigo de pequena das unidades – em boa parte dos acadêmica tenha impacto limitado sobre
2015, em que foram apresentadas con- casos, 35 metros quadrados – para famí- os projetos elaborados no âmbito do pro-
movimentando a economia
Nabil Bonduki destaca a dimensão do
programa. Comparável ao desenvolvi-
do pelo Banco Nacional da Habitação
(BNH), que entre 1964 e 1986 financiou
a construção de 4 milhões de unidades
habitacionais, o MCMV, instituído du-
rante a presidência de Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-2011), superou em no-
ve anos esse marco histórico. Segundo
o Ministério do Desenvolvimento Re-
gional, desde 2009 foram contratados
5,5 milhões de unidades habitacionais,
e mais de 4 milhões foram entregues.
Além da meta elevada, o programa foi
criado também com a proposta de mo-
vimentar a economia a partir do setor da
construção civil: estudo realizado pela Conjunto habitacional
Associação Brasileira de Incorporado- em Presidente “Obviamente o MCMV representa um
Prudente, São Paulo
ras Imobiliárias (Abrainc) e pela Funda- esforço grande para entregar moradia a
ção Instituto de Pesquisas Econômicas milhões de famílias. Embora a iniciati-
(Fipe) mostrou que entre 2008 e 2017 o va seja muito positiva, como arquiteta e
MCMV foi responsável por 77,8% dos pesquisadora sempre me questiono se a
6,3 milhões de unidades lançadas pelo qualidade não poderia ter sido melhor”,
mercado imobiliário em todo o país. Em unidades”, afirma. Na interpretação de pondera Kowaltowski. Elisa Muianga
2010, ano seguinte à criação do progra- Bonduki, além do programa, seriam ne- pensa que o intervalo de tempo entre a
ma, a contribuição do setor da constru- cessárias outras iniciativas para equa- inscrição no programa e a entrega das
ção civil para o Produto Interno Bruto cionar de maneira satisfatória o déficit moradias poderia ser utilizado na com-
(PIB) teve aumento de 11,6%, o maior em habitacional do país, como saneamento e preensão das necessidades e demandas
24 anos e superior ao crescimento per- urbanização de assentamentos precários, dos futuros moradores. “Seria uma boa
centual do PIB do país. “Em uma inicia- reabilitação de centros históricos e pro- oportunidade para estabelecer contato
tiva com essas dimensões, há a preferên- grama de lotes urbanizados com finan- e entender o que é importante para a
cia por projetos-padrão, já que qualquer ciamento de materiais de construção – o população contemplada. Isso ajudaria
inovação pode atrasar a aprovação do que não foi levado adiante. a inovar os projetos.” Muianga não tem
financiamento”, explica Bonduki, autor Bonduki destaca, porém, a vertente dúvidas: “A parceria entre academia e
do livro em três volumes Os pioneiros da Entidades do Minha Casa, Minha Vida, poder público é o único meio para pro-
habitação social (editora Unesp, 2014). modalidade em que os recursos são ge- mover a melhoria da habitação social”. n
Para o pesquisador da FAU, que parti- ridos pelos próprios beneficiários, que
cipou da idealização de um projeto na- administram a construção das unidades,
cional de habitação a ser implantado pelo participando inclusive das decisões sobre Artigos científicos
governo Lula, as limitações de qualida- os processos das obras. Um dos exemplos Kowaltowski, D., Muianga, E., Granja, A. D., Morei-
de são inerentes a iniciativas de massa. está em Cidade Tiradentes, na zona les- ra, D., Bernardini, S., Castro, M. R. A critical analy-
sis of research of a mass-housing programme. Building
“Minha principal crítica é que, entre as te de São Paulo, onde o Movimento Sem Research & Information. v. 47, n. 6, p. 716-33. 2019.
várias iniciativas propostas para a área, Terra Leste 1 construiu, com financia-
léo ramos chaves
apenas uma foi implementada – o pro- mento do programa e em regime de mu- Pina, S. M., Oliva, C. A. e Castro, M. R. The Brazilian
housing program “Minha Casa Minha Vida” – A syste-
grama MCMV, ou seja, a disponibilização tirão, os conjuntos Florestan Fernandes matic literature review. Journal of the Korean Housing
de recursos para a construção de novas e José Maria Amaral. Association. v. 26, n. 6, p. 35-42. On-line. Dez. 2015.
Acervos redescobertos
Coleção localizada em
museu de São Paulo revela
que a gravura funcionou
como plataforma
de circulação de arte
norte-americana no Brasil
Christina Queiroz
U
ma pesquisa desenvolvida co-
mo parte das atividades de um
projeto sobre acervos museoló-
gicos identificou recentemente
uma coleção de 28 gravuras norte-ame-
ricanas que estavam armazenadas há
mais de seis décadas na reserva técnica
do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo (MAC-USP).
Doada ao Brasil em 1951 pelo empresá-
rio e político norte-americano Nelson
Rockefeller (1909-1979), a coleção des-
coberta mostra que a gravura funcionou
como plataforma inicial para circula-
ção da produção artística dos Estados
Unidos no cenário nacional. Parte dos
trabalhos está exposta em Atelier 17 e
a gravura moderna nas Américas, or-
ganizada pelo MAC-USP em parceria
com a Terra Foundation for American
Art. Aberta ao público até 2 de junho, a
exposição também reúne gravuras de
instituições como Brooklyn Museum e
Art Institute of Chicago.
“Até a década de 1950, a cena artísti-
ca brasileira estava voltada à produção
1 europeia. A descoberta desse conjunto
de gravuras evidencia um momento em
Tarantelle (1943), de Stanley que a arte norte-americana começou
William Hayter, verniz mole e
buril em cores sobre papel:
a circular de maneira mais intensa no
gravuras eram marcadas por Brasil”, conta Ana Gonçalves Magalhães,
caráter experimental vice-diretora do MAC, lembrando que
obras de arte do país em território na- co Stanley William Hayter (1901-1988). beleceu no Brasil, as atividades de im-
cional”, explica Luiz Claudio Mubarac, Hayter fundou o Atelier 17 em 1927 em pressão estavam proibidas no país. Com
professor de artes plásticas da Escola de Paris, mas, em 1940, após a invasão da isso, o desenvolvimento das primeiras
Comunicações e Artes (ECA) da USP, França pelos nazistas, mudou-se para gráficas começou apenas na segunda
que não participa do projeto. Nova York. “O estúdio era um espaço de metade do século XIX. “O panorama
A doação foi realizada por intermé- experimentação de novos procedimentos nacional é muito diferente do europeu,
dio da equipe curatorial do Museu de e métodos e reunia artistas imigrantes e onde a tradição da gravura data do século
Arte Moderna de Nova York (MoMA) e mulheres”, informa a jornalista Carolina XV”, compara Mubarac, da ECA-USP. De
reúne obras realizadas a partir de téc- Rossetti de Toledo, autora da pesquisa acordo com ele, por causa dessas carac-
nicas e parâmetros estéticos da gravura de mestrado que identificou a coleção e terísticas, o trabalho de gravadores bra-
produzida nos Estados Unidos no final uma das curadoras da exposição, junto sileiros pioneiros como Carlos Oswald
dos anos 1940. A maior parte é de artis- com Magalhães. (1882-1971), Lívio Abramo (1903-1992)
fotos 1 Jean-Baptiste Debret. Sauvages civilisés, soldats indiens de Mugi das Cruzas (Province de St Paul) combattant des botocudos (1834), litografia. Acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (USP)
1
2
2 Oscar Pereira da Silva. Combate de milicianos de Mogi das Cruzes com botocudos (1920), óleo sobre tela. Acervo do Museu Paulista (USP)
acesso a livros de Hayter e nas bienais cano alto e colete se disseminou pelo era um deles”, diz a pesquisadora. Por
de São Paulo, em exposições de gravuris- Brasil por meio de selos, moedas e em meio de estudos interdisciplinares que
tas ligados ao grupo dos artistas norte- livros didáticos, que reproduziam obras envolveram análises de raios X e técni-
-americanos. “Em 1951, após o retorno de de arte do acervo do museu”, conta. Se- cas de leitura de materiais, identificou-
Hayter dos Estados Unidos a Paris, Lívio gundo Marins, na origem da imagem -se que a escultura em gesso do acervo
Abramo e Geraldo de Barros [1923-1998], mais emblemática do que seria a peça de do MAC-USP é, de fato, a que foi exibida
por exemplo, foram à França e tiveram indumentária característica dos bandei- pelo artista na ocasião.
acesso aos equipamentos de impressão rantes – o gibão costurado em losangos – Quando Boccioni morreu, a escultura
e conhecimento das técnicas que circu- estaria a pintura encomendada pelo foi vendida a uma aristocrata milane-
lavam no estúdio”, conta. museu em 1920 a Oscar Pereira da Sil- sa e, depois, ao poeta futurista Filippo
va (1867-1939), que foi baseada em uma Tommaso Marinetti (1976-1944). Fran-
Revisão da história obra de 1843 do francês Jean-Baptiste cisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977)
Assim como a coleção de gravuras, pes- Debret (1768-1848). “O quadro Comba- a comprou em 1952 e a doou ao acervo
quisas conduzidas como parte do projeto te de milicianos de Mogi das Cruzes com do MAC-USP em 1963. “Historiadores
coordenado por Magalhães têm revelado botocudos tornou-se uma referência ico- da arte costumavam tratar eventos co-
aspectos desconhecidos da historiografia nográfica e passou a definir a imagem da mo a aquisição da obra de Boccioni ou
artística brasileira. Também integrante roupa do bandeirante”, afirma. a doação de gravuras por Rockefeller
da equipe do projeto, Paulo César Garcez Ana Magalhães, por sua vez, desenvol- como temas à parte da historiografia ar-
Marins, professor do Museu Paulista, es- veu um estudo para identificar como a tística brasileira, mas as revisitações ao
tuda a constituição do imaginário brasi- obra Formas únicas da continuidade no acervo evidenciam que eles devem ser
leiro a partir da figura do bandeirante. De espaço, do futurista italiano Umberto entendidos como parte dessa história”,
acordo com ele, não há retratos desses Boccioni (1882-1916), chegou ao Brasil. conclui Magalhães. n
desbravadores feitos no período colonial, O original em gesso, que hoje pertence ao
de maneira que as características hoje acervo do MAC-USP, é uma das 11 peças
associadas a essa figura foram determi- que o artista exibiu em uma mostra de Projeto
nadas por encomendas feitas pelo Museu escultura futurista realizada em Paris Coletar, identificar, processar, difundir: O ciclo curato-
Paulista nas primeiras décadas do século em 1913. “Após sua morte, sobraram ape- rial e a produção do conhecimento (nº 17/07366-1);
Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora respon-
XX. “Em sua maioria mestiços, a imagem nas três dos gessos que ele havia apre- sável Ana Gonçalves Magalhães (USP); Investimento
do bandeirante como homem branco de sentado nessa exposição. Precisávamos R$ 1.840.776,89.
A
passagem do centenário de nascimento corpo dentro da vasta obra de Antonio Candido,
de Antonio Candido, em 2018, tem pe- ao lado dos trabalhos sempre lembrados. É o ca-
lo menos duas peculiaridades que vale so de Teresina etc., objeto específico dos textos
assinalar. A primeira é que seu caráter festivo de Michael Lowy e Vilma Arêas, mas evocado
foi nublado pela perda recente que representou em vários outros artigos. Ou do artigo Direito à
a morte do crítico, em 2017. A segunda é o mo- literatura, estudado por Irenísia Torres Olivei-
mento por que passa o país. ra e igualmente convocado em diversas outras
É nesse contexto que se publica esta que é a reflexões. Ou do último livro do homenageado,
mais abrangente coletânea de estudos sobre a O albatroz e o chinês, abordado por Celso Lafer
obra de Antonio Candido – lembre-se que já ha- e, mais uma vez, referido com frequência. Ou,
via volumes bastante ambiciosos organizados ainda, os textos da juventude, muito lembrados
por ocasião de outras homenagens. Essa abran- e objeto de um estudo do maior interesse de Edu
Antonio Candido gência não decorre do volume de textos em si, Teruki Otsuka, que localiza nos primeiros artigos
100 anos mas da trajetória que sua organização propõe de Candido o conceito de romance que se mobi-
Maria Augusta
Fonseca e
ao leitor e da variedade de elementos que são lizará na Formação.
Roberto Schwarz postos sob análise por um conjunto também va- Num outro plano, algumas novas interroga-
(orgs.) riado de autores. ções se fazem à obra do crítico, o que termina por
Editora 34 Tal trajetória se desenha já na nota introdutória ampliá-la em direções até hoje pouco exploradas,
496 páginas
R$ 82,00
assinada por Roberto Schwarz, que, em poucos como sua posição diante das literaturas africa-
parágrafos, esboça aquilo que o livro todo vai nas, tema de Rita Chaves, do universo feminino,
construir lentamente: a figura de um intelectual por Maria Augusta Fonseca, da escravidão (ou
de carne e osso e de suas ideias. É o homem de sua ausência) na Formação, por Luiz Felipe de
carne e osso que se evoca logo na segunda seção, Alencastro, ou ainda de sua antecipação a ela-
que traz a reprodução de dedicatórias ao crítico borações influentes de intelectuais postados no
em livros de Manuel Bandeira (1886-1968), Má- centro, como Fredric Jameson, a partir de um
rio de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade lugar periférico e de um objeto igualmente peri-
(1890-1954) e Graciliano Ramos (1892-1953). Na férico, a literatura brasileira, tal como descortina
terceira seção, o poeta Francisco Alvim dá um o artigo de Silvia L. Lopez.
curto-circuito que energizará todo o livro ao Esses são uns poucos exemplos que dão ideia,
nos conduzir a um outro poeta, Tomás Antônio em curto espaço, da contribuição que o volume
Gonzaga (1744-1810), lido pelos olhos do crítico traz para um balanço e uma nova compreensão
que leva em conta o que sofreu o homem-poeta da obra do autor de Na sala de aula. O que se de-
de carne e osso. ve ressaltar, no entanto, é o quanto o conjunto
Nas cinco seções seguintes, avançamos no per- apresenta uma forma de pensar que ainda tem
curso que sai do mais pessoal, uma série de de- muito a dizer e que é possível sintetizar a par-
poimentos de alunos, para dirigir-se à militância tir de um dos mais fortes textos da coletânea, o
política, ao vasto interesse pela América Latina e de Ana Paula Pacheco. Mobilizando um grande
à cultura de forma ampla, para chegar, na oitava número de escritos de Candido, ela contrasta o
e mais volumosa seção, à crítica literária, cam- tempo de formação do crítico e o nosso, o radi-
po preferencial do homenageado. Servindo de calismo do crítico e o conformismo que domina
coda, é a voz do crítico que, lembrando de sua hoje, quando “a classe média ‘cansou’”.
experiência pessoal como leitor desde a infân- Abdicar do exercício de esperança da igualda-
cia, fecha o livro. de, ensina Antonio Candido, é abdicar do mais
É evidente que nada é assim tão estanque, e o importante. E isso a voz coletiva que soa em An-
crítico é evocado desde o princípio, bem como tonio Candido 100 anos nos lembra o tempo todo.
o homem de carne e osso, professor e militante,
apresenta-se a todo instante. Nesse movimento, Luís Bueno é professor do Departamento de Literatura e Linguística
alguns elementos surgem renovados e ganham da Universidade Federal do Paraná (Dellin-UFPR).
U
ma das maiores ilustrações do Iluminismo E é especialmente à tal articulação que se de-
francês do século XVIII encarnou-se na dica Franklin de Mattos em A cadeia secreta,
Enciclopédia, ou Dicionário razoado das seu segundo livro dedicado a Diderot, em que
ciências, das artes e dos ofícios, escrita entre 1747 vai muito além de uma arguta e necessária re-
e 1766 no intuito de “reunir”, numa única obra, constituição da contribuição do escritor para o
“os conhecimentos espalhados sobre a superfície “lento processo de habilitação do romance no
da Terra”, como resumiu no verbete “Enciclopé- século XVIII”. Mattos mostra ao longo de sete
dia”, redigido em 1755, Denis Diderot (1713-1784). ensaios como, nos romances do “inquieto expe-
Com Jean d’Alembert (1717-1783), ele concebeu rimentador”, redesenham-se suas “duas grandes
e coordenou o ambicioso projeto. vocações”: “o materialismo e a conversação”, mas
Diderot descobriu, contudo, que a reunião de es- sem por isso deixarem de manter uma secreta
pecialistas, artistas e homens de letras não garantia consonância, ou cadeia, com as obras filosóficas
A cadeia secreta – uma obra perfeitamente acabada, que restituísse e dramatúrgicas do escritor.
Diderot e o um universo inequívoco, desde então disponível Conciliando capacidade de síntese com erudi-
romance filosófico
Franklin de Mattos
para todos, até porque, no limite, cada um dos co- ção crítica, Mattos retrama os elos dessa cadeia a
Editora Unesp laboradores “tinha sua maneira de sentir e de ver”. partir especialmente da apresentação e da leitura
162 páginas E, mais do que isso, o filósofo passava a intuir que de três obras primordiais: As joias indiscretas, A
R$ 34,00 o grande obstáculo ao projeto não residia tanto nas religiosa e Jacques, o fatalista. Cabe destacar dois
diferenças de visão dos colaboradores quanto na aspectos fundamentais no que tange ao confron-
própria natureza da linguagem. Em vez de mediar to incontornável entre a ordem da natureza e as
a aproximação de um real supostamente inteligí- convenções morais que a obra de Diderot expõe
vel por meio do estabelecimento de conceitos e e que as análises de Mattos exploram.
representações estáveis e claramente remissíveis O primeiro aspecto diz respeito à atenção de
a outros conceitos e representações, a linguagem Diderot à dimensão material do desejo, que, na
parecia adiar a aquisição de certezas filosóficas ou leitura de Mattos, aparece especialmente na pers-
práticas. Estas, de fato, não cessavam de se perder pectiva do feminino: seja ao fazer “ouvir” a “voz
no redemoinho dos verbetes e das pranchas da En- impertinente” das joias femininas, seja com a des-
ciclopédia: “Vimos, à medida que trabalhávamos, a crição de “cenas de prazer sáfico” entre religiosas,
matéria estender-se, a nomenclatura obscurecer- seja no teatralizado embate entre “maquiavelismo
-se, substâncias reduzidas a uma infinidade de no- feminino” e “despotismo masculino”.
mes diferentes, os instrumentos, as máquinas, e as O segundo aspecto concerne à dimensão labi-
manobras multiplicando-se desmesuradamente, e ríntica da linguagem. A trama de A religiosa se
os numerosos desvios de um labirinto inextricável configura como uma “falsa história verdadeira”,
se complicando cada vez mais”. produzida a partir da manipulação de cartas tro-
Nesse sentido, o trabalho do filósofo, longe de cadas entre personagens ficcionais e reais. Jac-
iluminar plenamente o sentido do mundo, vinha ques, o fatalista, por sua vez, constitui-se como
revelar sua irredutibilidade à linguagem, perma- uma longa conversa em que se cruzam e recru-
necendo sempre, de certa forma, assombrado pelo zam vozes, reabrindo indefinidamente “os anéis
não senso. E “uma verdadeira Enciclopédia”, em da vasta cadeia que nos determina”.
última instância, não poderia ser senão um texto Ao longo do livro, Mattos retoma e revitaliza
por se escrever. o debate em torno do espinozismo de Diderot:
Creio que essa suspeita em relação à lingua- “Embora fatalistas, continuamos a falar, pensar e
gem foi uma das principais razões pelas quais escrever como se fôssemos livres”. Ironicamente,
o romance adquiriu tanta importância na obra faz ressoar um impasse que, desde o Iluminismo
mais tardia de Diderot, numa articulação entre do século XVIII, continua sendo nosso.
filosofia e literatura que, desde então, se imporia
de maneira cada vez mais consistente e incisiva Marcelo Jacques de Moraes é professor de literatura francesa na
como domínio e prática do pensamento. Universidade Federal do Rio de Janeiro.
90 | maio DE 2019
memória
Hermínio Lacerda / Ibama
Ação do Ibama
no início dos anos
1990: apreensão
de animais
silvestres e redes
usadas em pesca
predatória
O
Há 30 anos o Ibama atua Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
na proteção do meio completou 30 anos com o desafio de manter
sua autonomia e agenda de proteção do
ambiente no Brasil por meio ambiente. Por meio de laudos e estudos
meio de operações tecnocientíficos, o órgão desenvolve ações de combate a
crimes ambientais e de monitoramento e controle de
baseadas em estudos atividades envolvendo o uso de recursos naturais, como a
exploração de petróleo, de minério de ferro, entre outras
tecnocientíficos atividades potencialmente poluidoras do meio ambiente.
O Ibama foi criado oficialmente em 22 de fevereiro
de 1989 durante o governo do presidente José Sarney
(1985-1990). O objetivo era integrar as atividades
Rodrigo de Oliveira Andrade de gestão dos recursos ambientais no Brasil, até então
conduzidas por outras instituições governamentais
criadas ao longo das décadas de 1960 e 1970.
Entre elas estavam a Superintendência do
Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) e o Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF),
ambos ligados ao Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa), e a Superintendência da
92 | maio DE 2019
3
na Amazônia por meio da Em maio de 2018 Tropicais do Brasil (PPG7), concursados e pessoas
identificação de áreas de o instituto apreendeu iniciativa do governo sem vínculo com a
7.387 toras extraídas
maior risco. Isso é feito com brasileiro em parceria administração pública em
ilegalmente da
dados georreferenciados terra indígena Pirititi, com a comunidade cargos comissionados. Seu
obtidos pelo Instituto em Roraima internacional, incluindo os orçamento previsto para
Nacional de Pesquisas países do Grupo dos 7 (G7), este ano é de R$ 1,73 bilhão.
fotos 1 Hermínio Lacerda / Ibama 2 wikimedia commons / Roberto Lacava / Ibama 3 wikimedia commons Felipe Werneck / Ibama
Gênero
N
o dia 10 de abril o mundo foi Uma foto de Bouman publicada chamar a atenção de algumas
apresentado à primeira imagem nas redes sociais no dia do anúncio instituições de ensino superior, como
dos arredores de um buraco correu o mundo. Nela, a pesquisadora a Universidade Carnegie Mellon,
94 | maio DE 2019
O projeto nasceu como um clube de
programação para mulheres. “Algumas
amigas e eu decidimos nos reunir para
aprender mais sobre tecnologia e
programação e discutir a presença das
mulheres nessas áreas”, diz. O grupo
identificou vários obstáculos que
contribuem para afastar meninas e
mulheres desse universo, como a falta
de exemplos que as inspirem a
ingressar em cursos nesse campo e
preconceitos que reforçam a ideia Iana Chan fez da
de que tecnologia é algo masculino. PrograMaria um
projeto capaz
Diante disso, Chan resolveu de despertar o
transformar a PrograMaria em um interesse feminino
projeto maior, capaz de despertar o pela tecnologia e pelo
interesse feminino pela tecnologia, por empreendedorismo
fotos 1 wikimedia commons 2 divulgação Pyladies São paulo ilustraçãO ana matsusaki
um plano de negócio para viabilizar Meninas na Computação, do
suas ideias”, destaca Castelo Branco. Departamento de Computação da
Este ano, a presença feminina no Universidade Federal de Sergipe
evento mais do que dobrou: (UFS), em São Cristóvão, que pretende
162 estudantes participaram das incentivar jovens sergipanas a
atividades, que não exigem ingressar na área, o Cunhatã Digital,
conhecimento prévio de informática. que busca atrair meninas e mulheres
A iniciativa faz parte de outro a pesquisadora. “Teremos à disposição da região amazônica, e o Meninas
projeto em desenvolvimento pelo R$ 95 mil ao longo de um ano.” Digitais, da Sociedade Brasileira
ICMC em escolas públicas de São Ela explica que o valor será usado de Computação (SBC), para
Carlos. “Nossa proposta foi um dos no custeio de bolsas de pré-iniciação alunas do ensino médio e dos últimos
projetos contemplados em uma científica para meninas do ensino anos do fundamental de todo o país.
chamada do CNPq [Conselho Nacional médio de cinco escolas públicas da Também a Universidade Federal
de Desenvolvimento Científico e região. O projeto também prevê uma da Paraíba (UFPB), em João Pessoa,
Tecnológico], realizada no final do ano bolsa-auxílio de R$ 400 para uma há algum tempo desenvolve
passado para estimular a participação professora de cada escola. A ideia é seu projeto, chamado Meninas na
e a formação de meninas e mulheres levá-las à universidade para que Computação. “Desde 2014 realizamos
nas ciências exatas, engenharias e participem de palestras e oficinas oficinas de programação e robótica,
computação [Stem, em inglês]”, conta sobre assuntos ligados às áreas Stem. desenvolvimento de aplicativos, visitas
96 | maio DE 2019
no curso de bacharelado em ciência No entanto, a partir de 1985,
da computação da UFPB, apenas enquanto a incidência de mulheres nos
10% dos alunos eram mulheres. outros cursos continuou a aumentar,
Na engenharia computacional, 17%.” superando os 40% em 2015, na ciência
da computação, o movimento virou
Inversão de papéis para queda, saindo de cerca de 35%
As mulheres já foram maioria nos para menos de 20% em 2015. Para
cursos de ciência da computação em Medeiros, a principal explicação
algumas das principais universidades para o fenômeno, tanto no Brasil
do Brasil. Em 1974, 14 dos 20 alunos quanto nos Estados Unidos, estaria
que se formaram na primeira turma nos anos 1980, com a popularização
do bacharelado em ciência da dos computadores pessoais.
computação do Instituto de Então enormes máquinas de
Matemática e Estatística (IME) da calcular, após o fim da Segunda Guerra
USP eram mulheres. Em 2016, porém, Mundial (1939-1945) os computadores
dos 41 estudantes que concluíram o eram usados principalmente em
curso, apenas seis eram mulheres. atividades associadas à função de
Segundo a cientista da computação secretariado, como o processamento
Claudia Bauzer Medeiros, do Instituto de dados e a tabulação eletrônica.
de Computação da Universidade O predomínio das mulheres era
Estadual de Campinas (IC-Unicamp), evidente. No cálculo da folha de
o caso das mulheres nesse campo pagamento de empresas, por exemplo,
A engenheira de software norte-americana destoa das outras áreas Stem porque elas costumavam escrever os códigos
Margaret Hamilton foi diretora da Divisão elas já foram maioria no curso. que depois seriam transformados
de Software do Instituto de Tecnologia de Esse fenômeno parece seguir o em cartões perfurados para serem
Massachusetts (MIT) e responsável
pelo desenvolvimento do programa de
mesmo movimento observado nos lidos pelas máquinas.
voo usado no projeto Apollo 11, a primeira Estados Unidos. Segundo dados do Em meados dos anos 1980, com
missão tripulada à Lua. Centro Nacional de Estatísticas da a chegada dos primeiros computadores
1 Educação daquele país, as mulheres pessoais, esse cenário mudou.
representavam quase 37% de todos Relatório de 1985 produzido pelo
os estudantes de graduação em ciência Centro Nacional de Estatísticas da
aos laboratórios da universidade, da computação entre 1984 e 1985. Educação verificou que os
debates e palestras sobre equidade de Ao mesmo tempo, dados da American meninos nos Estados Unidos eram
gênero nas áreas Stem em escolas Bar Association, American Association muito mais propensos a usar essas
públicas da região”, conta a cientista of Medical Colleges e da National máquinas em casa do que as
da computação Josilene Aires Science Foundation apontam para meninas, possivelmente porque o
Moreira, do Centro de Informática uma participação crescente de marketing dos fabricantes era
da UFPB e coordenadora do projeto. mulheres em cursos superiores nas direcionado principalmente a eles.
Ela destaca que 65% dos 1.866 áreas do direito, ciências físicas, “É possível que isso tenha contribuído
frequentadores de cursos Stem na medicina e ciência da computação para que os garotos passassem a
instituição são homens. “Em 2018, entre as décadas de 1960 e 1980. aprender e a se interessar mais por
programação”, sugere Medeiros.
Com o tempo, a noção de que
a atividade de programação era
masculina tornou-se a narrativa
padrão, contribuindo para que fossem
esquecidos os nomes de personagens
femininas com importantes
contribuições para a área (ver box).
Em movimento similar ao desenvolvido
pela física britânica Jessica Wade
(ver Pesquisa FAPESP nº 276), a
PrograMaria reuniu recentemente
40 jovens programadoras em uma
maratona para criar, traduzir ou
melhorar o perfil na Wikipédia de 45
mulheres que atuam ou atuaram nas
2 áreas Stem, no Brasil e no exterior. n
Alunas durante curso de programação oferecido no IME-USP pelo Meninas Digitais e grupo PyLadies Rodrigo de Oliveira Andrade
A noção de que as áreas de ciência, Poucos meses antes de concluir seu uma das áreas da física teórica
tecnologia, engenharia e matemática estágio de pós-doutorado, em 2008, existentes no Perimeter. No processo
(Stem, em inglês) não são para as resolveu voltar para o Brasil e prestar seletivo, avaliam-se a produção das
mulheres nunca passou pela cabeça o concurso. Foi aprovada e, aos 26 pesquisadoras e o estágio da carreira
de Cecilia Chirenti. Sua mãe é anos de idade, tornou-se professora no qual se encontram. Chirenti foi
formada em engenharia eletrônica e adjunta do Centro de Matemática, contemplada junto com outras sete
desde 1978 leciona na Universidade Computação e Cognição da UFABC. cientistas de vários países e campos
Presbiteriana Mackenzie, em São Em 2018, ao tomar conhecimento da física teórica. Durante três meses,
Paulo, de modo que Chirenti não se do programa Simons Emmy poderá frequentar o instituto
sentiu intimidada ao escolher estudar Noether Fellows, desenvolvido pelo e lá estabelecer novas colaborações
no Instituto de Física da Universidade Instituto Perimeter de Física Teórica, de pesquisa. O objetivo é avançar
de São Paulo (IF-USP). “Muitos em Waterloo, Canadá, e voltado a em seus trabalhos sobre ondas
colegas da graduação morriam de físicas teóricas em início ou meados gravitacionais, buracos negros e
inveja porque eu podia tirar dúvidas de carreira, decidiu se candidatar estrelas de nêutrons.
de cálculo em casa”, brinca. (ver Pesquisa FAPESP nº 250). Chirenti é a primeira cientista
Só não tinha certeza se conseguiria As candidatas à bolsa precisam brasileira a obter uma bolsa do
construir uma trajetória acadêmica ocupar um cargo em instituição programa, que consiste em auxílio
no Brasil. “Ainda assim, decidi estudar de ensino superior e atuar em de 3 mil dólares canadenses
o que amava e fazer minha carreira (cerca de R$ 8,6 mil) por mês,
dar certo.” Na faculdade, Chirenti além do custeio de todas as despesas
fez dois anos de iniciação científica. com alimentação, moradia e
A experiência foi suficiente, na transporte durante sua permanência
avaliação de seu futuro orientador, no país. Ela embarcará para o
o físico teórico Elcio Abdalla, para Canadá em setembro. O programa
credenciá-la a um doutorado direto, também irá disponibilizar recursos
na mesma instituição, em 2003. para que Iara Ota, única mulher
Foi quando começou a trabalhar entre os seus três orientandos de
com perturbações de sistemas pós-graduação na UFABC, possa
gravitacionais, à luz da teoria da passar um mês no instituto. “A ideia
relatividade geral, proposta em 1915 é que ela participe de seminários,
pelo físico alemão Albert Einstein desenvolva parte de seu projeto
(1879-1955). de pesquisa e inicie novas
Chirenti concluiu sua pesquisa colaborações”, diz Chirenti. n R.O.A.
em 2007 e em seguida iniciou um
estágio de pós-doutorado no Instituto
Max Planck de Física Gravitacional,
em Potsdam, Alemanha. “Achava que
ficaria mais algum tempo no exterior
para talvez fazer outro estágio de
pós-doutorado”, conta. “Um dia, no No Canadá,
entanto, Elcio Abdalla me alertou Chirenti pesquisará
sobre ondas
sobre a abertura de concurso para
gravitacionais,
professor na Universidade Federal buracos negros e
do ABC”, relembra. estrelas de nêutrons
léo ramos chaves
98 | maio DE 2019
Você sabia que
a Pesquisa
FAPESP tem
um canal no
O futuro do Museu do Ipiranga
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prefeito ambivalente
Nas bancas
e livrarias
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