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Pesquisa FAPESP maio de 2019

maio de 2019 | Ano 20, n. 279

a origem dos dinossauros


Região gaúcha de
Santa Maria tem, ao
lado da Argentina,
os fósseis mais antigos
desses répteis

Crânios das espécies Buriolestes schultzi (no alto) e Bagualosaurus agudoensis, que viveram há cerca de 230 milhões de anos

Drauzio Varella Fibra cashmere UFPA identifica Novas iniciativas Autonomia foi
defende o SUS, feita no país milhões de incentivam decisiva para
fala do trabalho tem qualidade hectares mulheres a melhorar as
Ano 20  n.279

de comunicador superior à no Pará que explorar as áreas universidades,


e da felicidade do mercado só existem de tecnologia e diz reitor da
ao escrever internacional no papel programação Unicamp
O Ciência Aberta é um programa de TV mensal,
produzido pela FAPESP, que reúne pesquisadores
e público em debates importantes
sobre temas científicos da atualidade

Os 10 programas já produzidos estão disponíveis no site

www.fapesp.br/ciencia-aberta
Uma parceria:
@AgenciaFAPESP

@agfapesp

Para participar das gravações, sugestões ou críticas escreva para cienciaaberta@fapesp.br


fotolab o conhecimento em imagens

Sua pesquisa rende fotos bonitas? Mande para imagempesquisa@fapesp.br


Seu trabalho poderá ser publicado na revista.

Nióbio em flor
“Flores” nascem dentro de um equipamento que funciona como uma panela de pressão,
em um laboratório do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP).
“Inserimos oxalato amoniacal de nióbio e hidróxido de amônio”, conta o químico Marcos
Vinícius Petri, que sintetizou o composto em parceria com o colega Eduardo Carmine
de Melo. “Nas proporções corretas, nessas condições de alta temperatura e pressão,
formam-se estruturas cristalinas em folha que depois se organizam como flores.” Para
enxergar esses buquês, só usando microscópio eletrônico: são microflores. A conformação
permite a produção de catalisadores mais eficientes, por terem mais superfície de
contato. O laboratório se dedica a entender como esses compostos funcionam.

Imagem enviada por Marcos Vinícius Petri, estudante de doutorado do IQ-USP

PESQUISA FAPESP 279 | 3


maio  279

p. 18

CAPA POLÍTICA C&T 48 Entrevista 60 Oncologia


Sul do Brasil Marcelo Knobel, reitor Estudo mapeia perfil
abriga, ao lado 34 Saúde pública da Unicamp, diz que genético de paciente
Governo dos Estados Unidos autonomia ampliou brasileiro com doença rara
da Argentina,
faz planos para acabar a qualidade que causa câncer de tireoide
os mais antigos com a epidemia de Aids das universidades
fósseis de 62 Novos materiais
dinossauros 39 Equipamentos Nanopartículas de ouro
p. 18 multiusuários CIÊNCIA revestidas de platina podem
USP e Unicamp montam melhorar eficiência
portais para compartilhar 52 Cosmologia de células a combustível
Paleontólogo infraestrutura de pesquisa Consórcio internacional
Max Langer fala obtém primeira
42 Fomento imagem do entorno de TECNOLOGIA
das discussões
Guia busca incentivar um buraco negro
sobre a origem encomendas tecnológicas 64 Engenharia hídrica
desses animais no país 56 Física Ceará deverá construir
p. 24 Grupo de São Carlos a maior usina de
46 Política universitária desenvolve técnica mais dessalinização do país
Foto de capa  Unicamp cria diretoria simples de produzir
Flavio Pretto voltada para promoção dos moléculas ultrafrias 69 Engenharia têxtil
direitos humanos Fibra cashmere
57 Patrimônio brasileira é superior à
Laudo aponta sobrecarga internacional
em ar-condicionado
ENTREVISTA
como causa do incêndio
Drauzio Varella
no Museu Nacional Humanidades
Oncologista
utiliza todas as
58 Ecologia 76 Gestão fundiária
mídias disponíveis
Abelha nativa é menos Milhões de hectares de
para esclarecer
resistente a inseticidas áreas particulares e públicas
questões
que Apis, de origem só existem no papel
sobre saúde
europeia
p. 26 82 Arquitetura
Revisão bibliográfica
mostra baixo impacto de
estudos sobre programa
de moradia social
www.revistapesquisa.fapesp.br
Leia no site todos os textos da revista em português, inglês
e espanhol, além de conteúdo exclusivo

vídeo  youtube.com/user/pesquisafapesp

p. 58 p. 64

86 Artes plásticas 72 Pesquisa empresarial Como Portinari fazia suas obras


Coleção revela que gravura Dona de amplo portfólio, Análises podem ajudar a confirmar a autoria
funcionou como plataforma a WEG fabricou os de pintura bit.ly/igPortinariV
de circulação de arte eletroímãs do Projeto Sirius
norte-americana no Brasil
89 Resenhas
Antonio Candido 100 anos,
Seções de Maria Augusta Fonseca e
Roberto Schwarz (orgs.).
3 Fotolab Por Luís Bueno

6 Comentários A cadeia secreta – Diderot e


o romance filosófico, de
7 Carta da editora Franklin de Mattos. Por
Marcelo Jacques de Moraes
8 Boas práticas
Universidade Duke paga 91 Memória
indenização milionária Ibama completa 30 anos de Jejum faz hormônio estimular fome
em caso de falsificação proteção ao meio ambiente Grupo descobre mecanismo que dificulta
de dados perda de peso  bit.ly/vJejum
94 Carreiras
11 Dados Iniciativas estimulam
Universidades paulistas: meninas a explorar
30 anos de autonomia áreas de tecnologia podcast  bit.ly/PesquisaBr

12 Notas Entrevista:
Luciano Queiroz e Altay de Souza

Responsáveis
pelos podcasts
Dragões de Garagem
e Naruhodo!
debatem estratégias
para divulgação
p. 46
científica
bit.ly/PBrPod
Conteúdo a que a
comentários cartas@fapesp.br
mensagem se refere:

Revista impressa

Reportagem on-line Jairton Dupont perior que subverta de forma disruptiva o


A entrevista com o químico Jairton Du- instituído em 1968.
Galeria de imagens
pont (“O químico radical”, edição 278) foi Alberto Almeida

Vídeo maravilhosa. A química, ainda vista com cer-


to preconceito, é uma das responsáveis por
Rádio
termos melhor qualidade de vida hoje do que Ingresso via medalhas
no início do século passado. Excelente a novidade da reportagem “Me-
Antonio Alex dalha que vale vaga na universidade” (edi-
contatos ção 277). Desmitifica as provinhas. Parabéns
aos ingressantes e à Unicamp. É por aí que a
revistapesquisa.fapesp.br Francisco Costa  educação deve caminhar.
Excelente a entrevista com Francisco de Paulo Penalva
redacao@fapesp.br
Assis Costa (“As múltiplas faces da Ama-
PesquisaFapesp
zônia”, edição 277). Deu muito orgulho do Que iniciativa boa. Porque o aluno já de-
PesquisaFapesp trabalho feito aqui na Amazônia, onde estou monstrou competências antes do vestibular.
pesquisa_fapesp como professor visitante sênior na Universi- Christiane Carreira Nunes

Pesquisa Fapesp dade Federal do Oeste do Pará. Felizmente


pesquisafapesp
existe Pesquisa FAPESP para veicular estudos
de pesquisadores como ele ou nós pouco sa- Vídeo
cartas@fapesp.br beríamos do seu trabalho sobre a bioeconomia Orgulho de ver o Brasil investindo o nos-
R. Joaquim Antunes, 727 da Amazônia. so dinheiro em ciência e tecnologia (“Si-
10º andar
Lauro E. S. Barata rius, o maior e mais complexo laboratório
CEP 05415-012
São Paulo, SP
brasileiro”). O Sirius é uma vitória para o
Brasil, além de ser o único desse porte no he-
Assinaturas, renovação Direito misfério Sul.
e mudança de endereço Trabalho fundamental e providencial pa- Ueslei Rebouças
Envie um e-mail para ra o campo jurídico do Brasil (“Magistra-
assinaturaspesquisa@
tura em transformação”, edição 278). Temos uma enorme dívida com as popu-
fapesp.br
ou ligue para Cris Keiko lações que habitavam o Brasil (“Pela so-
(11) 3087-4237, brevivência das línguas indígenas”). Parabéns
de segunda a sexta, para as iniciativas de resgate da cultura que
das 9h às 19h Universidades rapidamente está desaparecendo.
A respeito da reportagem “Modelos re- Adroaldo José Tanella
Para anunciar 
Contate: Paula Iliadis 
criados” (edição 277), o mais interessan-
Por e-mail: te é que não me parece que as universidades,
publicidade@fapesp.br inclusive as públicas, tenham o desejo de Sua opinião é bem-vinda. As mensagens poderão ser resumidas
Por telefone: promover um novo modelo de educação su- por motivo de espaço e clareza.
(11) 3087-4212

Edições anteriores
Preço atual de capa
acrescido do custo de
postagem. A mais lida do mês no Facebook
Peça pelo e-mail:
ações afirmativas
clair@fapesp.br
Medalha que vale vaga na universidade 
Licenciamento bit.ly/fb277Medalhistas
de conteúdo
Adquira os direitos de
reprodução de textos
71.162 pessoas alcançadas
e imagens
de Pesquisa FAPESP. 1.788 reações
Por e-mail:
léo ramos chaves

mpiliadis@fapesp.br 100 comentários


Por telefone:
(11) 3087-4212 451 compartilhamentos

6 | maio DE 2019
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo
carta da editora
Marco Antonio zago
Presidente

Eduardo Moacyr Krieger

Paleontologia brasileira em alta


vice-Presidente

Conselho Superior

Carmino Antonio de Souza, Eduardo Moacyr


Krieger, Ignacio Maria Poveda Velasco, João
Fernando Gomes de Oliveira, José de Souza Martins,
Marco Antonio Zago, Marilza Vieira Cunha Rudge,
Pedro Luiz Barreiros Passos, Pedro Wongtschowski, Alexandra Ozorio de Almeida | diretora de redação
Ronaldo Aloise Pilli e Vanderlan da Silva Bolzani

Conselho Técnico-Administrativo

Carlos américo pacheco


Diretor-presidente

Carlos Henrique de Brito Cruz

A
Diretor Científico

fernando menezes de almeida


Diretor administrativo
Argentina e o Brasil são os dois positivo aplica o artigo 207 da Consti-
países com os fósseis mais anti- tuição Federal, que determina que “as
gos classificados como sendo de universidades gozam de autonomia
issn 1519-8774 dinossauros. País com longa tradição em didático-científica, administrativa e
Conselho editorial paleontologia, o vizinho do Sul explorou de gestão financeira e patrimonial”. O
Carlos Henrique de Brito Cruz (Presidente), Caio Túlio Costa,
Eugênio Bucci, Fernando Reinach, José Eduardo Krieger, bem a presença, nas províncias de San decreto do então governador Orestes
Luiz Davidovich, Marcelo Knobel, Maria Hermínia Tavares de
Almeida, Marisa Lajolo, Maurício Tuffani e Mônica Teixeira Juan e La Rioja, de uma camada geoló- Quércia dispõe sobre a autonomia da
comitê científico gica que remete ao primeiro estágio do USP, Unicamp e Unesp e garante um
Luiz Henrique Lopes dos Santos (Presidente),
Américo Martins Craveiro, Anamaria Aranha Camargo, Ana Triássico Superior (período entre 237 mi- orçamento próprio para as três universi-
Maria Fonseca Almeida, Carlos Américo Pacheco, Carlos
Eduardo Negrão, Douglas Eduardo Zampieri, Euclides de lhões e 227 milhões de anos atrás), quan- dades. O impacto positivo dessa medida
Mesquita Neto, Fabio Kon, Francisco Antônio Bezerra
Coutinho, Francisco Rafael Martins Laurindo, Hernan do esses animais começavam a habitar a pode ser visto nos seus indicadores de
Chaimovich, José Roberto de França Arruda, José Roberto
Postali Parra, Lucio Angnes, Luiz Nunes de Oliveira, Marco Terra. Seis dos 12 dinossauros retirados produtividade (página 11). Para Mar-
Antonio Zago, Marie-Anne Van Sluys, Maria Julia Manso Alves,
Paula Montero, Roberto Marcondes Cesar Júnior, Sérgio Robles de rochas daquela época foram escava- celo Knobel, da Unicamp, que assumiu
Reis Queiroz, Wagner Caradori do Amaral e Walter Colli

Coordenador científico
dos e descritos pela comunidade cientí- a presidência do Conselho de Reitores
Luiz Henrique Lopes dos Santos fica local, com pesquisadores do exterior. das Universidades Estaduais Paulistas
diretora de redação
Alexandra Ozorio de Almeida
O primeiro dinossauro daquele perío- (Cruesp), a autonomia permitiu que as
editor-chefe
do encontrado em território brasileiro, três crescessem e chegassem ao pata-
Neldson Marcolin
Staurikosaurus pricei, foi descrito na lite- mar das melhores instituições da Amé-
Editores Fabrício Marques (Política C&T),
Glenda Mezarobba (Humanidades), Marcos Pivetta (Ciência), ratura científica nos anos 1970; Saturna- rica Latina (página 48). Nas próximas
Carlos Fioravanti e Ricardo Zorzetto (Editores espe­ciais),
Maria Guimarães (Site), Bruno de Pierro e Yuri Vasconcelos lia tupiniquim foi escavado no final dos edições, Pesquisa FAPESP continuará
(Editores-assistentes)
anos 1990. Nesta década, foram quatro, tratando do tema.
repórteres Christina Queiroz, Rodrigo de Oliveira Andrade
sendo o último, anunciado em janeiro
redatores Jayne Oliveira (Site) e Renata Oliveira
do Prado (Mídias Sociais) deste ano, Nhandumirim waldsangae, um **
arte Mayumi Okuyama (Editora), Alexandre Affonso (Editor de
infografia) Felipe Braz (Designer digital), Júlia Cherem Rodrigues e
pequeno carnívoro bípede com 1,5 metro O oncologista paulistano Drauzio Varella
Maria Cecilia Felli (Assistentes) de comprimento que viveu no que hoje é o médico mais conhecido do país. Co-
fotógrafo Léo Ramos Chaves
é a região central do Rio Grande do Sul. meçou no rádio nos anos 1980, depois
banco de imagens Valter Rodrigues
O número de descobertas recentes no foi para a televisão, onde é visto por mi-
Rádio Sarah Caravieri (Produção do programa Pesquisa Brasil)
Brasil, apresentadas na reportagem de lhões de pessoas nas noites de domingo,
capa (página 18), sugere que o país se es- descobriu-se escritor de livros, mantém
revisão Alexandre Oliveira e Margô Negro

Colaboradores Ana Matsusaki, Bernardo França,


Domingos Zaparolli, Fabio Otubo, Luís Bueno, Luisa Destri, tabelece não apenas como “berçário” de há anos colunas semanais na imprensa,
Marcelo Jacques de Moraes, Rafael Garcia, Renato Pedrosa,
Suzel Tunes, Zansky, fósseis dos primeiros dinossauros – os um website e um canal de vídeos no You-
Revisão técnica Adriana Valio, Célio Haddad, Gabriela
Celani, José Roberto de França Arruda, Lucio Angnes,
seis “brasileiros” foram encontrados na Tube. Fala principalmente de questões
Luiz Nunes de Oliveira, Nathan Berkovits, Osvaldo Novais
de Oliveira, Roger Chammas, Sérgio Queiroz, Walter Colli
formação Santa Maria, perto da cidade relacionadas à saúde – sem se furtar de
homônima –, mas também como deten- temas polêmicos –, e também de vários
É proibida a reprodução total ou parcial
de textos, fotos, ilustrações e infográficos tor de uma massa crítica de paleontólo- outros assuntos. Nessa multiplicidade de
sem prévia autorização

Tiragem  28.530 exemplares


gos capazes de achar fósseis, descrever formas de comunicação e de conteúdos,
IMPRESSão Plural Indústria Gráfica
distribuição Dinap
espécies e, com colegas da comunidade há um princípio condutor: o respeito pe-
GESTÃO ADMINISTRATIVA FUSP – FUNDAÇÃO DE APOIO À
científica internacional, confirmar (ou lo conhecimento científico. Seus argu-
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
não) a hipótese sobre o surgimento des- mentos são baseados em dados resultan-
PESQUISA FAPESP Rua Joaquim Antunes, no 727,
10o andar, CEP 05415-012, Pinheiros, São Paulo-SP ses animais. A região gaúcha é objeto de tes de pesquisa e complementados pelo
FAPESP Rua Pio XI, no 1.500, CEP 05468-901,
Alto da Lapa, São Paulo-SP estudos sistemáticos por pesquisadores conhecimento decorrente de sua ampla
Secretaria de Desenvolvimento Econômico,
de instituições locais e de outros estados. experiência como médico – no consul-
Ciência, Tecnologia e inovação
tório, em hospitais públicos e privados
**
Governo do Estado de São Paulo

de São Paulo e no sistema carcerário


Em fevereiro, completaram-se 30 anos paulista, onde atua voluntariamente há
do Decreto Estadual nº 29.598. O dis- mais de 25 anos (página 26).

PESQUISA FAPESP 279 | 7


Boas práticas

Dados fraudulentos geram indenização milionária


Universidade Duke fecha acordo para pagar US$ 112,5 milhões e encerrar processo
em que pesquisadora foi acusada de falsificações sistemáticas

A
Universidade Duke, nos Estados Unidos, pesquisa entre 2006 e 2018. Doze artigos
fechou um acordo com a Justiça e aceitou científicos foram retratados também por utilizarem
pagar US$ 112,5 milhões, o equivalente informações manipuladas. O trabalho da
a R$ 440 milhões, para encerrar um processo no pesquisadora tornou-a coautora de dezenas de
qual uma pesquisadora da instituição era acusada de artigos científicos, que estão sendo investigados.
falsificar dados em artigos científicos e em relatórios “Potts-Kant se engajou em fraudes sistemáticas”,
apresentados a órgãos federais de fomento à acusou o ex-analista de laboratório da universidade
pesquisa, como os Institutos Nacionais de Saúde Joseph Thomas, que denunciou o caso e
(NIH) e a Agência de Proteção Ambiental (EPA). iniciou a ação contra Duke em parceria com o
Erin Potts-Kant, coordenadora de pesquisa clínica Departamento de Justiça dos Estados Unidos.
da divisão pulmonar na Duke Health, complexo Segundo ele, a pesquisadora chegou a inventar
de hospitais e escolas de medicina e enfermagem da conjuntos inteiros de dados.
universidade, tinha como função certificar a O escândalo chamou a atenção não apenas pelas
validade de resultados de trabalhos da unidade, cifras, mas também por recorrer a uma legislação
mas, em vez disso, modificava dados desfavoráveis raramente utilizada em casos de integridade
para facilitar a obtenção ou manutenção de científica: a Lei de Alegações Falsas, que pune
financiamento. Projetos sobre a função pulmonar quem comete fraudes usando recursos federais
de ratos, que se basearam em dados manipulados, com o pagamento de indenizações vultosas,
somaram US$ 200 milhões em verbas federais para equivalentes a até três vezes o dinheiro desviado

8 | maio DE 2019
ou obtido irregularmente. A maior quando o caso eclodiu. Por conta
parte dos US$ 112,5 milhões irá para as disso, desde abril de 2018 os NIH
agências de fomento que financiaram passaram a impor restrições adicionais
projetos com dados falsificados. A lei Devemos aceitar a pesquisadores da Duke. Projetos
também permite que denunciantes com financiamento a partir de
recebam até 30% da indenização
a responsabilidade US$ 250 mil são obrigados a fornecer
estabelecida. No caso de Duke, o autor e reconhecer que orçamentos mais detalhados do que
da ação, Joseph Thomas, vai receber o exigido de outras instituições.
US$ 33,75 milhões. “O acordo envia
nossos processos A universidade se defendeu, em
uma forte mensagem de que a fraude não funcionaram, uma declaração oficial, dizendo que só
e a desonestidade não serão toleradas descobriu a possível fraude em 2013
no processo de financiamento de
disse o reitor depois que Potts-Kant foi demitida.
pesquisa”, afirmou, em nota oficial, Vincent E. Price E argumentou que, inicialmente,
o Departamento de Justiça. não compreendeu a gravidade e
Potts-Kant perdeu o emprego em a extensão do crime. O reitor
2013, quando o caso veio à tona e da universidade, o cientista político
ela também enfrentou acusações de Vincent E. Price, informou que a
desviar dinheiro da instituição. Mas instituição está revendo seus
isso não foi o suficiente para reverter o em explicações de Potti que mais processos para promover a integridade
estrago na reputação da Universidade tarde se revelaram inconsistentes científica. “Esperamos que os
Duke, envolvida em outros (ver Pesquisa FAPESP nº 189). Os pesquisadores da Duke sempre
escândalos. Uma das mais prestigiosas dois pesquisadores foram demitidos. sigam os mais altos padrões de
universidades norte-americanas, O descaso da instituição no episódio integridade e praticamente todos
berço de 13 ganhadores do prêmio de Potti e Nevins foi citado como fazem isso com muita dedicação”,
Nobel e responsável por um mau exemplo em um amplo relatório disse. “Quando indivíduos não
orçamento anual de pesquisa na casa apresentado em abril de 2017 pelas cumprem esses padrões e quem está
de US$ 1 bilhão, a instituição já Academias Nacionais de Ciências, ciente de possíveis erros não os
enfrentava outras acusações de Engenharia e Medicina dos Estados relata, como aconteceu nesse caso,
práticas negligentes. Em meados dos Unidos, com recomendações para devemos aceitar a responsabilidade,
anos 2000, dois pesquisadores de aperfeiçoar práticas e políticas reconhecer que nossos processos
Duke, Anil Potti e Joseph Nevins, relacionadas à integridade científica para identificar e prevenir desvios
selecionaram pacientes para realizar nos Estados Unidos (ver Pesquisa de conduta não funcionaram e tomar
ensaios clínicos de métodos capazes FAPESP nº 255). “Não sei se medidas para melhorar.”
de predizer a evolução de certos tipos Duke mudou suas práticas, mas não No ano passado, a universidade
de câncer e apontar o tratamento ficaria surpreso se o problema se nomeou a ginecologista Geeta Swamy
mais adequado. O recrutamento repetisse”, criticou, na apresentação para o recém-criado cargo de
foi realizado embora já se soubesse do documento, o bioengenheiro vice-reitora de integridade científica.
que tinham sido detectados Robert Nerem, presidente do Também abriu um Escritório de
erros nos trabalhos científicos que comitê que produziu o relatório. Integridade Científica e começou a
embasavam as técnicas. Na No caso de Potts-Kant, a exigir planos detalhados e prestação
ilustrações zansky

contramão das evidências de que universidade foi acusada de de contas para todas as unidades da
os métodos eram problemáticos, acompanhar de modo frouxo o Duke Health. Price anunciou, ainda,
a universidade liberou os ensaios trabalho de seus pesquisadores e de a criação de um Painel de Excelência
em fevereiro de 2010, fiando-se demorar a tomar atitudes incisivas e Integridade em Pesquisa, que
vai propor novas políticas para a
universidade até 30 de junho, e de um
comitê de supervisão executiva,
liderado por A. Eugene Washington,
chanceler para assuntos de saúde.
“Continuamos a ter confiança na alta
qualidade do corpo docente da Duke
e em suas pesquisas”, afirmou Price.
“O acordo judicial, que resulta de
má conduta intencional que ocorreu
em um laboratório, mas que afetou o
trabalho de muitos pesquisadores,
não deve diminuir o trabalho de salvar
vidas que acontece todos os dias na
Universidade Duke.” n Fabrício Marques

PESQUISA FAPESP 279 | 9


Punição por práticas comerciais enganosas

A Omics International, editora “Lista de Beall” acabou sendo


de revistas acadêmicas sediada removida pelo autor para evitar
em Hyderabad, na Índia, foi ações judiciais. “Existem
condenada em uma ação movida centenas de editores predatórios,
pela Comissão Federal de mas a Omics é o império do mal”,
Comércio (FTC) dos Estados disse o bibliotecário ao jornal
Unidos, sob acusação de adotar The New York Times. O advogado
políticas comerciais enganosas, da editora, Kishore Vattikoti,
que violam a legislação do país. anunciou que vai recorrer da
Um juiz do estado de Nevada, condenação e solicitar que o caso
onde a empresa indiana mantém seja avaliado por um júri. Ele
um endereço postal, ordenou argumenta que o juiz de Nevada
que a Omics pague US$ 50 não poderia ter tomado a decisão
milhões à FTC e abandone sozinho. O desafio para a FTC
práticas consideradas predatórias. agora é identificar bens e
A principal delas é promover contas bancárias que a empresa

ilustração zansky
em território norte-americano tenha nos Estados Unidos para
congressos e conferências receber os US$ 50 milhões.
talhados para arrecadar dinheiro Caso a Omics insista em políticas
de pesquisadores. predatórias, a comissão vai
Quando os eventos são pedir que suas revistas sejam
anunciados, a editora convida removidas da internet e
pesquisadores da área para promete contatar hotéis e centros
submeter trabalhos ou fazer de convenção onde a empresa
palestras. Mas se eles aceitam e faz suas conferências para
enviam seus manuscritos, são alertar sobre suas práticas.
surpreendidos com a publicação
instantânea em revistas de anais
de conferências, sem que se
faça uma revisão por pares
autêntica. A conta, sobre a qual Plágio causa retratação de artigo de padre
ninguém havia falado, finalmente
aparece: os autores são cobrados
a pagar taxas que alcançam O artigo “A estrada para Emaús e a Dougherty no jornal canadense
milhares de dólares. E não adianta estrada para Gaza”, publicado em National Post. O padre trabalhava
reclamar do valor e pedir a 1994 pelo padre canadense Thomas no serviço em língua inglesa do
retirada dos artigos. Os pedidos Rosica, de 60 anos, foi retratado Escritório de Imprensa do Vaticano
são ignorados e as cobranças pela revista Worship, um periódico e comandava uma emissora católica
reiteradas. Segundo a FTC, a acadêmico revisado por pares de televisão no Canadá. Ele admitiu
Omics tem o costume de listar especializado em estudos sobre as falhas éticas, interrompeu sua
nomes de editores que não têm liturgia. Isso porque o religioso produção de textos de divulgação e
nenhum vínculo com suas copiou trechos de seis diferentes renunciou ao posto de conselheiro
revistas nem sabem que estão teólogos no artigo, sem mencionar de uma instituição de ensino
sendo mencionados. a fonte. Não foi um caso isolado. superior confessional ligada à
A editora foi criada em 2007 O professor de filosofia da Universidade de Toronto, o
e publica mais de 700 periódicos Universidade Dominicana de Ohio University of St. Michael’s College.
de acesso aberto. Quem Michael Dougherty analisou 30 anos “Não quero que meus erros turvem
comemorou a condenação foi de produção literária de Rosica a governança da universidade e
o bibliotecário Jeffrey Beall, e o acusou de plagiar trabalhos de ofereçam um mau exemplo para
conhecido por criar uma lista teólogos, jornalistas e até cardeais estudantes, educadores e
na internet com periódicos em dezenas de palestras que funcionários”, explicou o religioso
predatórios, revistas de baixa proferiu e colunas publicadas em uma nota. “Todos sabemos que
importância e reputação que na imprensa. “Nosso escrutínio plagiar é errado. Minhas ações
publicam artigos sem qualidade mostrou que o plágio era um hábito nunca foram deliberadas, mas
em troca de dinheiro – a chamada duradouro e consistente”, escreveu estavam erradas.”

10 | maio DE 2019
Dados Universidades paulistas:
30 anos de autonomia

INDICADORES DE PRODUTIVIDADE
Desde 1989, quando as três
universidades paulistas, USP, 1989 2017 Variação
Unicamp e Unesp, passaram
Funcionários 35.167 27.593 -22%
a gozar de autonomia
Docentes 11.065 10.914 -1,4%
financeira plena, seus
Receitas do Tesouro
indicadores de produtividade
(R$ milhões 2017)* 6.052 9.116 +51%
apresentaram ganhos
Vagas na graduação 12.584 22.169 +76%
significativos, sendo que o
Alunos matriculados 80.325 188.453 +135%
número de docentes e
Graduação 57.055 118.920 +108%
funcionários caiu no período
Pós-graduação 23.270 69.533 +199%
de 1989 a 2017
Títulos concedidos 9.238 27.589 +199%
Graduação 6.900 15.976 +132%
Pós-graduação 2.338 11.613 +397%
Mestrado 1.571 6.311 +302%
Doutorado 767 5.302 +591%
Publicações científicas 1.064 17.175 +1.514%
* Valores médios de 2017, corrigidos pelo IGP-DI

Vagas, matrículas, títulos de graduação, Receita, número de docentes e de funcionários

2,50
2,32 Títulos de graduação
2,25
2,08 Matrículas de graduação
2,00 Base
1,75 1989 = 1,00 1,76 Vagas de graduação

1,50 1,51 Receitas do Tesouro


1,25

1,00 0,99 Número de docentes


0,75 0,78 Número de funcionários
0,50

0,25

0
1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017

Matrículas, títulos de PÓS-Graduação, Receitas do Tesouro e publicações científicas

18

16 16,14 Publicações WoS

14

12

10

8
Base Títulos de doutorado
1989 = 1,00
6,91
6
Títulos de mestrado
4 4,02
2,99 Matrículas de PG
2
1,51 Receitas do Tesouro
0
1989 1991 1993 1995 1997 1999 2001 2003 2005 2007 2009 2011 2013 2015 2017

Fontes Incites/Web of Science/Clarivate (tipos: Article, Proceeding Paper e Review). Anuários USP, Unicamp, Unesp

PESQUISA FAPESP 279 | 11


Notas

Notre-Dame
em chamas em
15 de abril
(abaixo) e
reconstituída
digitalmente

Catedral
Notre-Dame em 3D

O trabalho realizado há quase uma década


pelo historiador da arte Andrew Tallon (1969-
2018) pode auxiliar na reconstrução da ca-
tedral Notre-Dame de Paris. Em 15 de abril
deste ano, a catedral ardeu em chamas em um
incêndio de origem ainda indefinida – suspeita-
-se de um curto-circuito no sistema elétrico dos
sinos ou de uma ponta de cigarro deixada por
operários que restauravam o telhado. Ícone
do estilo gótico, Notre-Dame começou a ser
construída em 1163 e ficou pronta em 1345.
Com o incêndio, boa parte do telhado ruiu,
assim como sua torre pontiaguda, a agulha.
A reconstrução, para a qual haviam sido pro-
metidos € 850 milhões em doações dias após
o incêndio, pode se beneficiar do trabalho
feito em 2010 por Tallon, que era professor
do Vassar College, em Nova York. Nascido
na Bélgica, Tallon se interessava por história
da arte, em especial pelo período gótico. Em
dezembro de 2010, ele fez um mapeamento
digital da catedral usando um scanner a laser
de alta resolução. Posicionou o equipamento
em cerca de 50 pontos dentro e fora da igreja,
fazendo medições com precisão de milímetros,
relatou no texto La technologie 3D au service
de Notre-Dame, publicado no livro La grâce
d’une cathédrale – Notre-Dame de Paris (2012).
Tallon tirou fotos panorâmicas a partir de
cada ponto de digitalização e aplicou essas
imagens sobre o modelo digital para criar uma
reconstituição exata do edifício.
1

12 | maio DE 2019
O dia em que detalhado da devastação 4

os dinossauros que ocorreu horas


após um meteorito de
morreram grandes dimensões
ter se chocado com
Um cemitério de galhos a Terra onde hoje é a
e troncos de árvores península de Yucatán,
carbonizados, no México. Alterações
misturados com fósseis climáticas decorrentes
de mamíferos, insetos, do impacto são a
répteis marinhos e provável causa da
peixes de água doce e mortandade em larga
salgada, foi encontrado escala, que marcou o fim
em um sítio arqueológico do período geológico
no estado de Dakota do Cretáceo. O choque
Norte, nos Estados teria aberto uma cratera
Unidos. O material de 180 quilômetros de
está ajudando os diâmetro (Chicxulub) e
pesquisadores a lançado aos céus bilhões
compreender os eventos de toneladas de rocha
que se seguiram à derretida. Teria
queda no planeta, há também desencadeado Titus, o
65 milhões de anos, terremotos de grande macho-alfa de
um bando que
Gorilas também
do meteorito que teria magnitude, além de
contribuído para uma tsunamis e chuva de
vivia no Parque
Nacional dos
entram em luto
das extinções em massa partículas de vidro. Esses Vulcões,
de plantas e animais, fenômenos deixaram em Ruanda

incluindo os dinossauros. um rastro de destruição Como os seres humanos e alguns outros primatas,
Trabalhando sob a que se estendeu por um os gorilas também exibem comportamentos carac-
coordenação de raio de 3 mil quilômetros terísticos do luto. A conclusão é de um grupo de
uma equipe da (PNAS, 1º de abril). pesquisadores do Fundo Internacional Dian Fossey
Universidade do Kansas, Os fósseis estudados para o Estudo de Gorilas, do Instituto Congolês para
os pesquisadores guardavam evidências a Conservação da Natureza, e das universidades
encontraram o conjunto do cataclismo, como de Uppsala, na Suécia, e da Califórnia, nos Estados
de fósseis após seis anos detritos de vidro Unidos. Por meio de fotos e vídeos, os primatólogos
fotos 1 wikimedia commons 2 Andrew Tallon / Vassar College  3 Robert DePalma  4 Dian Fossey Gorilla Fund

de escavações no sítio incrustados nas monitoraram a interação de gorilas-do-oriente


arqueológico de Tanis, brânquias dos peixes (Gorilla beringei beringei) com adultos mortos do
na Formação Hell Creek. e na resina das bando no Parque Nacional dos Vulcões, em Ruan-
Segundo o grupo, o sítio árvores, datados em da. Titus, um macho de 38 anos de idade, e Tuck,
oferece um registro 65,8 milhões de anos. uma fêmea de 35 anos, pertenciam ao mesmo
grupo e morreram por complicações relacionadas
3 à idade avançada. Os pesquisadores observaram
que os membros do grupo permaneceram reu-
nidos em volta dos corpos durante dias. Alguns
apenas olhavam. Outros cheiravam, tocavam
ou lambiam os mortos (PeerJ, 2 de abril). Duas
situações chamaram a atenção. Um jovem gorila
ficou perto de Titus por dois dias. Outro, filho de
Tuck, cuidou do corpo da mãe e chegou a tentar
mamar em seu peito. As expressões de tristeza não
parecem ser restritas aos membros do bando ou
da mesma subespécie. Gorilas-do-oriente manifes-
taram comportamento semelhante ao encontrar
Peixes o corpo de um gorila-de-grauer (Gorilla beringei
fossilizados em graueri), no Parque Nacional de Kahuzi-Biega, na
consequência República Democrática do Congo: circularam ao
da queda do
redor do corpo e arrumaram seus restos mortais.
meteorito que
abriu a cratera Os achados ampliam a discussão sobre como os
de Chicxulub animais percebem e processam a morte.

PESQUISA FAPESP 279 | 13


1 Sustentáveis combustíveis fósseis
apenas em (Nature Communications,
9 de abril). As análises,
longas viagens baseadas em dados de
protótipos de VTOLs,
Os chamados veículos indicam que essas
aéreos de decolagem e aeronaves consomem
pouso verticais (VTOLs) muita energia na
talvez possam em alguns decolagem, na ascensão,
anos ajudar a reduzir na descida e na
os congestionamentos aterrissagem. São
e a melhorar a qualidade relativamente eficientes
do ar nos grandes centros apenas na fase de
urbanos do mundo. cruzeiro, quando viajam
A conclusão consta de a velocidades que vão de
um estudo coordenado 240 a 320 quilômetros
por pesquisadores do por hora. Com base
Centro de Sistemas nessas informações,
Sustentáveis da os pesquisadores
Universidade de Michigan argumentam que, por
Dispositivo
e da fabricante de ora, esses VTOLs só
Sensores sem
flexível para o
monitoramento automóveis Ford, seriam sustentáveis
da oxigenação ambos nos Estados caso voassem lotados
fios para bebês sanguínea em
centros de
Unidos. Eles analisaram (com um piloto e
a demanda energética três passageiros), em
em UTI terapia intensiva
e os níveis de emissão viagens com distância
de gases de efeito superior a 100
estufa relacionados quilômetros (km). Nesse
Ha Uk Chung, da Universidade North- às cinco fases de voo caso, emitem 52%
western, em Chicago, e outros pesqui- (da decolagem à menos poluentes do que
sadores dos Estados Unidos, da China aterrissagem) desses veículos movidos a
e da Coreia do Sul desenvolveram um veículos, apelidados de gasolina e 6% menos do
sensor sem fios e sem baterias para mo- carros voadores. que os carros elétricos.
nitorar bebês em Unidades de Terapia Os engenheiros Os resultados foram Em viagens de menos
Intensiva. Os sensores aderem à pele e David North (à esq.) comparados com os de de 35 km, os carros
e Bill Fredericks
registram a frequência cardíaca, a taxa carros elétricos e convencionais ainda
transportam
de respiração e a oxigenação do san- protótipo de VTOL os de carros movidos a são mais eficientes.
gue (Science, 1º de março). Testado em da Nasa para teste
bebês com até 28 semanas, o sensor
incorpora recursos de transferência de
dados por radiofrequência e comuni-
cação de alta velocidade, por meio de
uma minúscula antena magnética. Os
criadores do dispositivo argumentaram
que a eliminação de fios facilita o contato
entre os recém-nascidos e seus pais, o
que ajuda a estabilizar sinais vitais e a
reduzir a mortalidade. Em um comen-
tário na mesma edição da Science, Ruth
Guinsburg, professora da Universidade
Federal de São Paulo, reconhece que o
sensor poderia facilitar a mobilidade e
reduzir os danos à pele causados pelos
dispositivos atualmente em uso. Ela ob-
serva, no entanto, que a mortalidade de
recém-nascidos prematuros em países
pobres não se deve tanto à saúde das
crianças após o parto, mas, sim, à saúde
precária e à pobreza de suas mães. 2

14 | maio DE 2019
Quanto os americanos
sabem de ciência

Um estudo do Pew Research Center, instituto


especializado em pesquisas de opinião pública
dos Estados Unidos, apresentou um panorama
atualizado da capacidade dos americanos de
compreender conceitos e práticas científicas.
Embora a maioria dos entrevistados tenha fa-
miliaridade com questões das ciências da vida,
Obit magnist como medicina e biologia, poucos são capazes
velicipic tet de distinguir hipóteses ou reconhecer grupos
quis adignimint
de substâncias químicas em medicamentos.
omnis eserovit
volupta con O instituto entrevistou 4.464 adultos, selecio-
nimus aboressi nados aleatoriamente na internet. Deles, 79%
entendem que o uso excessivo de antibióticos
aumenta a resistência das bactérias às medica-
ções existentes. Quando questionados sobre os
3 principais componentes dos antiácidos, porém,
apenas 39% responderam corretamente que
Lago Baikal, são as bases. A proporção dos entrevistados
A lenta da nerpa (Pusa sibirica), na Rússia, que acertou ao menos nove das 11 perguntas foi
onde diminuiu
degradação dos única foca exclusivamente
a população
baixa: quatro em cada 10 participantes. Ameri-
de água doce, canos com pós-graduação acertaram, em média,
grandes lagos intensamente caçada até
de nerpa,
uma foca de quatro questões a mais do que aqueles apenas
2007. O lago Titicaca, água doce com ensino fundamental ou médio. Os homens
Pesca intensiva, despejo com 8.562 km2, nos acertaram, em média, 7,4 questões, enquanto as
de esgoto e fertilizantes Andes do Peru e da mulheres, 6, e os entrevistados autodeclarados
agrícolas, expansão de Bolívia, recebe esgotos brancos pontuaram mais do que os negros ou os
algas, invasão de espécies das cidades próximas, de origem hispânica. Segundo o Pew Research, as
exóticas, turismo o que favorece a diferenças de raça e etnia podem estar ligadas a
excessivo, entre outros multiplicação de algas e diversos fatores, como o acesso a uma educação
fotos 1 Northwestern University 2 David C. Bowman / Nasa Langley  3 Sergey Pesterev / Wikimedia Commons

problemas, estão bactérias, além de de qualidade e a informações científicas. O estudo


alterando os grandes fertilizantes agrícolas. completo está disponível em bit.ly/CenterPew.
lagos de água doce do A introdução da truta-
mundo, como o mar -arco-íris (Salmo gairdneri)
Cáspio, o maior de todos, para expandir a pesca Alguns pontos avaliados no levantamento
com cerca de 3,6 milhões comercial no lago e a Porcentagem de pessoas que responderam corretamente às afirmações
de quilômetros quadrados infiltração do peixe-rei
Ciências da vida
(km2), que ocupa parte (Odontesthes bonariensis), O uso excessivo de antibióticos leva à resistência contra esses medicamentos
de cinco países da Ásia. nativo da Argentina, 79
As conclusões resultam prejudicaram as Inserir um gene em uma planta é um exemplo de engenharia genética
de uma análise de populações de peixes 56
Ciências físicas e da Terra
29 lagos – a maioria com endêmicos e podem ter
Petróleo, gás natural e carvão são combustíveis fósseis
uma superfície superior favorecido a extinção do
68
a 500 km2 e formada há peixe Orestias cuvieri O desmatamento faz aumentar a erosão do solo
pelo menos 10 mil anos – no lago Titicaca. Os 60
coordenada por pesquisadores notaram Os principais componentes dos antiácidos são as bases
Stephanie Hampton, da elevada concentração 39
Interpretação de números gráficos
Universidade do Estado urbana próximo aos lagos,
Um carro viajando à velocidade de 40 milhas por hora
de Washington, Estados com 43 grandes centros percorre 30 milhas em 45 minutos
Unidos (Limnology and urbanos às margens 57
Oceanography, abril). do mar Cáspio, seis do Processos científicos
No lago Baikal, na Rússia, mar de Aral, ambos Capaz de identificar a necessidade de usar um grupo de controle
para avaliar a eficácia de um novo medicamento
um dos problemas é a na Ásia, e cinco do lago de
60
redução da população Maracaibo, na Venezuela.
Fonte  Pew Research Center

PESQUISA FAPESP 279 | 15


O mutável veneno
das raias

O veneno das raias sofre alteração à


medida que esses peixes com o corpo
em forma de disco amadurecem. As
toxinas encontradas no veneno das
raias jovens causam muita dor e infla-
mação, enquanto as da peçonha dos
indivíduos adultos costumam provocar
necrose nos tecidos, verificou o gru-
po das farmacologistas Carla Lima e
Mônica Lopes Ferreira, do Instituto
Butantan. As pesquisadoras adminis-
traram o veneno de exemplares jovens
e adultos da raia Potamotrygon rex,
1
comum no rio Tocantins, sobre a pele
de camundongos anestesiados. As to-
xinas dos indivíduos jovens acionaram
os mecanismos de dor. Já o veneno
Nova espécie altura, já vivessem ali 2 das raias adultas levou à morte das
de humanos havia mais tempo. Caverna Callao, células e liberação de seu conteúdo
Em 2007, o grupo havia na ilha de Luzon, (Toxicon, maio). Estudos anteriores
primitivos achado na caverna
onde foram
haviam comparado a diferença entre
encontrados
um osso do pé direito, fósseis de Homo o veneno de raias de água doce e o das
Ossos e dentes datado em 67 mil anos. luzonensis, como raias marinhas, mas não a alteração da
encontrados em uma A forma e o tamanho os dentes de um peçonha durante o desenvolvimento
indivíduo (acima)
caverna na ilha de Luzon, de ossos e dentes de um indivíduo da mesma espécie.
norte das Filipinas, encontrados agora “Nossos dados indicam que a compo-
foram atribuídos a uma levaram os sição do veneno de Potamotrygon rex é
nova espécie de seres pesquisadores a concluir influenciada pelo estágio de maturação
humanos primitivos: que todos são de uma do animal”, afirmou Lopes Ferreira à
Homo luzonensis, que espécie até então Agência FAPESP. As pesquisadoras
pode ter vivido na região desconhecida (Nature, atribuem a mudança na composição
há mais de 50 mil anos. 10 de abril). Os dentes da peçonha à fase da vida. Raias jo-
Escavados entre 2011 e guardam semelhanças vens vivem em cardumes, enterradas
2015 pelo grupo dos com os de espécies na areia. Sua ferroada serviria para
paleoantropólogos antigas do gênero Homo afugentar predadores. Após os 2 anos
Florent Détroit, do Museu e também modernas. de idade, esses peixes migram para a
Nacional de História A proporção entre o coluna d’água e possivelmente usam
Natural de Paris, e tamanho dos molares e o veneno para caçar. Acidentes com
Armand Salvador Mijares, pré-molares, porém, raias são frequentes em rios brasileiros.
da Universidade das é distinta daquelas de
Filipinas, o material está espécies conhecidas.
fossilizado. São dois Os ossos das mãos e dos
ossos das mãos, dois pés são curvos, talvez
dos pés e um da coxa, adaptados a subir em
além de sete dentes. árvores. A nova espécie
Teriam pertencido a é a segunda identificada Exemplar de
dois adultos e a uma neste século no sudeste Potamotrygon rex,
comum no rio
criança. Um fóssil foi da Ásia. Em 2004,
Tocantins
datado em 50 mil anos, foi descrita a de Homo
mas é possível que os floresiensis, que
indivíduos dessa espécie, alcançava 1 metro de 3

que talvez não medissem altura e viveu mais ao


mais de 1,5 metro de sul, na Indonésia.

16 | maio DE 2019
Diretrizes para
os cursos de
engenharia
Cérebros parcialmente
reavivados
O Ministério da Educação
cérebro tratado com
aprovou diretrizes que
nutrientes e oxigênio
buscam atualizar a Em um experimento que lembra o romance Frankenstein, da
base curricular dos escritora inglesa Mary Shelley (1797–1851), pesquisadores da Neurônios

cursos de graduação em Universidade Yale, nos Estados Unidos, reavivaram parcialmente


engenharia. As novas o cérebro de porcos quatro horas depois de os animais terem sido
regras preveem a criação abatidos para o consumo humano. A equipe do neurocientista
de disciplinas ligadas Nenad Sestan restaurou a circulação no cérebro e recuperou Astrócitos

ao empreendedorismo algumas funções de suas células ao bombear, em ritmo seme-


cérebro tratado
e ao desenvolvimento lhante ao do coração e à temperatura corporal, um líquido rico com Solução inerte
de competências, e não em oxigênio, nutrientes e compostos protetores de células para
Neurônios
apenas ao domínio de o interior das artérias cerebrais. Nas seis horas em que permane-
conteúdos. Também ceram conectados à máquina, os cérebros voltaram a consumir
incentivam a adoção de oxigênio e energia (glicose). Também foi restaurada a troca de
metodologias de ensino informação entre células em nível local e a arquitetura celular Astrócitos
voltadas à inovação. foi preservada. Houve menos inchaço e morte celular do que
fotos  1 e 2  Callao Cave Archaeology Project  3 Jim Capaldi / Wikimedia Commons  4 pexels  5 Stefano G. Daniele & Zvonimir Vrselja / Sestan Laboratory / Yale School of Medicine

Uma recomendação é nos cérebros tratados com solução inerte (Nature, 17 de abril). Cérebros que
engajar os estudantes, Segundo os pesquisadores, o cérebro do primeiro grupo de animais receberam
nutrientes e
logo nos primeiros anos de se comportou como se, em nível celular e molecular, estivesse
oxigênio (no alto)
curso, em atividades quase vivo. Em nenhum momento, porém, os pesquisadores preservaram mais
práticas para a solução observaram atividade elétrica global organizada, necessária células do que os
de problemas concretos. para funções complexas como atenção, percepção e consciência tratados com
solução inerte
As medidas foram e característica do funcionamento pleno do cérebro. O estudo
(acima)
elaboradas pela pode ter criado um modelo tridimensional e sofisticado para
Mobilização Empresarial estudar doenças neurológicas e testar tratamentos. Também
pela Inovação (MEI), abriu discussões éticas sobre os limites da vida e da morte.
fórum vinculado à
Confederação Nacional da
Indústria (CNI), e pela
Associação Brasileira
de Educação em
Engenharia (Abenge), que
enviaram as propostas
ao Conselho Nacional de
Educação em março
de 2018 (ver Pesquisa
FAPESP nº 267).
Na avaliação da CNI,
as diretrizes devem
modernizar o ensino de
engenharia, preparando
os alunos para trabalhar
com tecnologias
avançadas, como
inteligência artificial e
internet das coisas.
“Precisamos formar
engenheiros com
habilidades e capacidades
mais convergentes com as
transformações digitais”,
disse a economista Gianna
Sagazio, diretora de
Inovação da CNI. 4

PESQUISA FAPESP 279 | 17


capa

A primeira terra
dos dinossauros
Centro do Rio Grande do Sul abriga, ao lado da
Argentina, os mais antigos fósseis desses répteis,
que surgiram há 230 milhões de anos

Marcos Pivetta

Rodrigo Müller

18 | maio DE 2019
Crânio de Buriolestes
schultzi, uma das seis
espécies de dinossauros
antigos achados na
região de Santa Maria

N
o início do ano, a paleontologia bra- Ao lado do recém-descoberto Nhandumirim,
sileira forneceu mais uma pista con- fazem parte desse sexteto primordial Stauriko-
creta de que os dinossauros podem saurus pricei, primeiro dinossauro encontrado
ter surgido na América do Sul, de no Brasil e descrito na literatura científica em
longe a hipótese mais plausível dian- 1970, Saturnalia tupiniquim, achado por Lan-
te do conjunto de fósseis atualmente disponível, e ger no final dos anos 1990, e outras três espé-
igualou uma disputa informal que era dominada cies identificadas nesta década: Pampadromaeus
há mais de meio século, quase sempre com folga, barberenai, Buriolestes schultzi e Bagualosaurus
por argentinos: agora cada país contabiliza seis agudoensis. A maioria era carnívora ou onívora
espécies de dinossauros extremamente antigos, (podia comer de tudo). Apenas Bagualosaurus e,
que estiveram entre os primeiros a deixar suas em menor escala, Pampadromaeus apresentavam
marcas sobre a Terra. Em fevereiro de 2019, uma uma dentição que parecia mais adaptada a um
equipe coordenada pelo paleontólogo Max Lan- regime predominantemente herbívoro.
ger, da Universidade de São Paulo (USP), campus Comparados com seus primos da Argentina,
de Ribeirão Preto, descreveu um pequeno car- os dinossauros da idade Carniana da região de
nívoro bípede, com no máximo 1,5 metro (m) de Santa Maria ainda são pouco conhecidos mesmo
comprimento, que viveu há 233 milhões de anos entre os paleontólogos. “Boa parte deles foi en-
na área onde atualmente se encontra o municí- contrada e descrita nos últimos anos. Para mim,
pio de Santa Maria, no centro do Rio Grande do entre as novas descobertas, eles são certamente a
Sul, a uma distância de cerca de 300 quilômetros mais importante para nos ajudar a entender a ori-
(km) de Porto Alegre. gem e a evolução inicial dos dinossauros”, opina
Com Nhandumirim waldsangae, nome cientí- o paleontólogo norte-americano Steve Brusatte,
fico dado à espécie apresentada ao público em da Universidade de Edimburgo, na Escócia. Além
artigo no Journal of Vertebrate Paleontology, o de fazer pesquisa sobre as primeiras formas de
Brasil passou a contar com meia dúzia de dinos- dinossauros que surgiram no planeta, Brusatte
sauros retirados de rochas de idade Carniana, o se dedica a divulgar para o grande público a saga
primeiro estágio da época denominada Triássi- desses répteis. Foi o principal consultor científico
co Superior, que compreende um período entre do filme Caminhando com os dinossauros, pro-
237 e 227 milhões de anos atrás. “Encontramos dução de 2013 da rede britânica BBC, e lançou
o fóssil quando, durante um trabalho de coleta seis livros para leigos sobre o tema. A tradução
em fevereiro de 2012, um colega pisou em um para o português do mais recente deles, Ascen-
osso do dedo do animal que estava exposto nas são e queda dos dinossauros: Uma nova história
rochas de um conhecido sítio paleontológico da de um mundo perdido (Record), foi lançada neste
região”, recorda-se o paleontólogo Júlio Mar- mês no Brasil.
sola, primeiro autor do artigo científico, que Não é possível datar diretamente fósseis de mi-
estudou a nova espécie em seu doutorado, de- lhões de anos como os de dinossauros e de outras
fendido no ano passado na USP. Além de Brasil formas de vida do passado remoto, cujos tecidos
e Argentina, nenhum outro país tem fósseis tão biológicos literalmente viraram pedra ao longo
antigos que sejam consensualmente considera- do tempo. É uma situação diferente da que ocorre
dos como de dinossauros. com vestígios humanos ou de animais que vive-

PESQUISA FAPESP 279 | 19


Quatro cinodontes
de outro tipo

Dois dinossauros
da espécie
Bagualosaurus
agudoensis

Rincossauro,
Um pequeno réptil herbívoro,
cinodonte, ancestral do gênero
dos mamíferos Hyperodapedon

ram a no máximo algumas dezenas de milhares menos o dobro das dimensões de Staurikosaurus, Ilustração da
de anos atrás. Nessa escala de tempo bem menor, com quem partilha alguns traços anatômicos. O fauna do Rio
Grande do Sul no
é possível que ainda se encontre nos fósseis algum segundo era outro bípede carnívoro, só que com
Triássico Superior,
colágeno, proteína que pode ser utilizada para no máximo 1 m de comprimento, que foi am- época em
datação pelo conhecido método do carbono 14. plamente divulgado em 1993 pelo paleontólogo que viveram os
A única alternativa, diante de achados paleonto- norte-americano Paul Sereno, da Universidade primeiros
dinossauros
lógicos tão antigos como os dinossauros, é tentar de Chicago, um de seus descobridores.
estabelecer uma cronologia da camada rochosa
em que eles foram encontrados e, assim, inferir datação por zircão
sua provável antiguidade. “É impossível dizer qual desses dinossauros bra-
Os fósseis das seis espécies encontradas no Rio sileiros e argentinos é o mais velho”, comenta
Grande do Sul saíram da formação Santa Maria, Langer, coautor dos trabalhos científicos que
nome da unidade geológica que se situa na região descreveram cinco dos seis dinossauros brasilei-
da cidade homônima e abriga rochas carnianas. ros oriundos de rochas carnianas (ver entrevista
Todos eram de animais de pequeno porte. O maior do paleontólogo na página 24). No ano passado,
deles, Staurikosaurus, seria o único estritamente Langer publicou um artigo científico com a da-
carnívoro e atingia 2,5 m de comprimento, mas tação por cristais de zircão de rochas carnianas
sua altura chegava apenas à cintura de uma pes- da formação Santa Maria, para as quais encon-
soa adulta (ver quadro comparativo na página 21). trou uma idade máxima de 233 milhões de anos.
As seis espécies de dinossauros mais antigos da Esse é o método mais preciso para estabelecer a
Argentina, que historicamente têm uma paleon- geocronologia de rochas tão antigas como as do
tologia mais ativa e com mais depósitos fossilífe- Triássico Superior. “As rochas carnianas da for-
ros do que o Brasil, também viveram por volta de mação Santa Maria são 1,5 milhão de anos mais
230 milhões de anos atrás. Todas são oriundas das velhas do que as de Ischigualasto, segundo as
rochas carnianas da formação Ischigualasto, nas datações de que dispomos. Mas, na prática, diria
ilustração  Jorge Blanco

províncias de San Juan e La Rioja, a mais de mil que há um empate técnico entre a idade dos dois
quilômetros a noroeste de Buenos Aires. As mais lugares”, explica o paleontólogo da USP.
conhecidas são Herrerasaurus ischigualastensis No mesmo trabalho, também foi determinada a
e Eoraptor lunensis. O primeiro era um bípede idade máxima das rochas da formação Caturrita,
carnívoro descrito em 1963 que tinha mais ou que usualmente recobre Santa Maria e às vezes

20 | maio DE 2019
O sexteto de Santa Maria
Os dinossauros que viveram há 230 milhões de anos em área hoje dentro do
Rio Grande do Sul eram pequenos, com, no máximo, 1 metro de altura

Saturnalia
tupiniquim Staurikosaurus pricei
150 cm
Nhandumirim
waldsangae Buriolestes Bagualosaurus
schultzi agudoensis
Pampadromaeus
100 cm barberenai

50 cm

Sítios onde as espécies


Cerro da Alemoa Sanga Grande Buriol Janner
foram encontradas

se confunde com ela. A datação indicou que o n Formações


nível mais velho da Caturrita tem 225 milhões Santa Maria
e Caturrita
de anos, 8 milhões a menos do que os estratos
mais antigos da Santa Maria. Fósseis interessan- n Zona urbana
58

São João do
-1
BR

Polêsine
tes também têm sido encontrados na Caturrita,
como os três exemplares de um novo gênero e Agudo
Santa
espécie de dinossauro herbívoro encontrado em Maria
um mesmo bloco de rochas, Macrocollum itaquii.
BR-287
Descrito no ano passado na literatura científica
como o registro mais antigo de um dinossauro de
pescoço longo, o comprimento total do réptil era
BR-

de cerca de 3,5 m, dos quais o pescoço respondia


392

por aproximadamente 1 m. 10 km RS
Há registros de fósseis controversos mais anti-
gos ou contemporâneos aos dinossauros de idade
Carniana encontrados no Brasil e na Argentina.
O réptil Nyasasaurus parringtoni, cujos fósseis Uma origem partilhada
extremamente fragmentados foram achados na Ao lado de outras formas de répteis, como os pterossauros e os silessaurídeos, os
Tanzânia, viveu há 243 milhões de anos, como dinossauros pertencem a um grande grupo animal denominado Avemetatarsalia
indicam as rochas de idade Anisiana, um está- Triássico Jurássico
gio do Triássico Médio, em que seus vestígios
Inferior Médio Superior
foram encontrados. Alguns autores chegaram 252 ma 247 ma 237 ma 201 ma
a considerá-lo um verdadeiro dinossauro, mas Pseudossúquios (linhagem dos crocodilos)
atualmente a espécie aparece com afinidades
incertas em quase todas as classificações. Afanossauros

Existem muitas incertezas na classificação dos Pterossauros


primeiros dinossauros. Até recentemente, o peque-
Avemetatarsalia
no herbívoro argentino Pisanosaurus mertii, que Lagerpetídeos
infográfico alexandre affonso

viveu 228 milhões de anos atrás, era considerado Ornithodira


Silessaurídeos
o mais antigo representante dos ornitísquios, uma
Dinosauromorpha
das duas linhagens principais em que se dividem Período em que
os dinossauros. Os ornitísquios têm a estrutura Dinosauriformes as espécies
Dinossauros citadas existiram
da pélvis parecida com a das aves (a outra linha-
gem primordial é a dos saurísquios, cujo quadril
se assemelha mais ao dos lagartos). Atualmente, * ma = milhões de anos Fonte  Flavio Pretto / UFSM e max langer / usp

PESQUISA FAPESP 279 | 21


1

Pedaços de ossos
dos dedos de
Nhandumirim
waldsangae
e reconstituição
artística da espécie unidos em um único supercontinente, Pangea,
pontuados por desertos e clima árido. A metade
norte era denominada Laurásia e a sul Gondwana.
A América do Sul estava ligada à África e ocupa-
alguns autores consideram Pisanosaurus como va o centro-sul de Gondwana, onde a umidade
um silessaurídeo, grupo próximo aos dinossau- seria um pouco maior.
ros. Para outros especialistas, os silessaurídeos
seriam dinossauros ornitísquios. Sacisaurus agu- Fósseis raros
doensis, outro pequeno herbívoro gaúcho, só que Durante todo o período Triássico, entre 251 e
encontrado na formação Caturrita, é considerado 201 milhões de anos atrás, a forma dominante de
um silessaurídeo. No hemisfério Norte, também vertebrados terrestres foi a dos arcossauros, um
existem registros antigos de animais de difícil vasto grupo de répteis do qual se originaram os
classificação filogenética, que seriam antecesso- dinossauros, os crocodilianos e os pterossauros.
res próximos dos primeiros dinossauros. Um de- “Apenas 5% dos fósseis que encontramos na for-
les é Saltopus elginensis, bípede carnívoro de 60 mação Santa Maria são de dinossauros”, explica o

fotos 1 Átila Da Rosa  2 Laboratório de Paleontologia / USP Ribeirão Preto   ilustração  Jorge Blanco
centímetros que viveu há aproximadamente 230 paleontólogo Flávio Pretto, do Centro de Apoio à
milhões de anos onde hoje é a Escócia. Pesquisa Paleontológica da Quarta Colônia (Cap-
Em seus primórdios, os dinossauros eram um pa), unidade da UFSM inaugurada em 2013 e lo-
grupo discreto e não muito abundante de répteis calizada em São João do Polêsine, bem no meio
de pequeno porte que ocupavam uma posição da faixa de 250 quilômetros que compreende a
muito distinta do status de senhores da Terra ou formação Santa Maria (e também a Caturrita).
da imagem de pináculo da grandiosidade e da fe- No acervo do Cappa, há cerca de 200 fósseis de
rocidade popularizada por filmes de ficção. Eles répteis e pré-mamíferos antigos já catalogados,
surgiram como coadjuvantes em um mundo cujas mas ainda não estudados. “Devemos ter outros
formas de vida passavam por um grande processo 200 à espera ainda de catalogação”, diz Pretto.
de reacomodação. Os paleontólogos concordam A proeminência da paleontologia nacional na
que os dinossauros surgiram alguns milhões de busca pelos dinossauros mais antigos do plane-
anos (quantos exatamente ninguém sabe) de- ta se deve a investimentos feitos nos últimos 20
pois da maior extinção em massa registrada na anos na montagem de equipes de pesquisadores,
Terra, ocorrida na passagem do período Per- sobretudo no Rio Grande do Sul, mas também
miano para o Triássico, há 252 milhões de anos. em outros estados da federação, e ao aumento de
Causado provavelmente por um aquecimento incursões no campo para estudar afloramentos
anormal da atmosfera e acidificação excessiva do Triássico com potencial de abrigar fósseis.
dos oceanos, esse cataclismo extinguiu cerca de Para o geólogo e paleontólogo Átila Da-Rosa,
95% das espécies marinhas e 70% das terrestres do campus central da UFSM, em Santa Maria, a
do planeta. Na época em que surgiram os primei- implantação no início dos anos 1990 do projeto
ros dinossauros, todos os continentes estavam Pró-Guaíba, patrocinado pelo governo gaúcho

22 | maio DE 2019
Afloramento no sítio
paleontológico
Janner, em Agudo, no
Rio Grande do Sul,
onde foram
encontrados fósseis
de dois dinossauros,
Pampadromaeus
barberenai e
Bagualosaurus
agudoensis

com dinheiro do Banco Interamericano de De- fora que participam de algum trabalho de cam-
senvolvimento (BID) para estudar o ambiente po na região. No Departamento de Geociências
da bacia hidrológica do rio Guaíba, permitiu o situado no campus central da UFSM, em Santa
início da exploração de áreas importantes que Maria, os paleontólogos Átila Da-Rosa e Sérgio
abrigavam sítios da pré-história remota. “Tudo Dias-da-Silva se encarregam de estudar os sítios
começou mais ou menos nessa época, sobretudo que estão em Santa Maria e em localidades vizi-
em razão da atuação de paleontólogos da Funda- nhas a oeste da cidade.
ção Museu de Zoobotânica (FZB) do Rio Grande Um dos planos dos pesquisadores da UFSM e
do Sul”, comenta Da-Rosa. do Cappa é construir um museu para abrigar os
Além dos pesquisadores da FZB, que hoje corre principais achados paleontológicos da região e
risco de ser extinta pelo governo gaúcho, paleon- aumentar o trabalho de educação e divulgação
tólogos da Universidade Federal do Rio Grande do científica. Por ora, essa meta ainda não foi alcan-
Sul (UFRGS), da Pontifícia Universidade Católica çada. “Nossa sociedade não valoriza como deve-
(PUC-RS), da Universidade Luterana do Brasil ria o fato de termos os dinossauros mais velhos
(Ulbra) e também de instituições de outros esta- do mundo”, diz o paleontólogo Luiz Eduardo
dos, como a USP e a Universidade Federal do Rio Anelli, do Instituto de Geociências da USP, que
de Janeiro (UFRJ), passaram a realizar viagens publicou 16 livros de divulgação científica sobre
regulares nas duas últimas décadas para estudar esse grupo de répteis e outros animais da pré-
e coletar fósseis em afloramentos das formações -história brasileira. “Se esses fósseis tivessem sido
Santa Maria e Caturrita. A proximidade do campus encontrados na Europa ou nos Estados Unidos,
central da UFSM e do Cappa, que se situa a me- eles já teriam criado algo como o ‘parque dos
nos de 50 quilômetros da cidade de Santa Maria, primeiros dinossauros’, que seria visitado pelos
possibilita atualmente um acesso rápido e fácil nossos turistas.” n
aos principais afloramentos com fósseis da região.
O Cappa conta com três paleontólogos (Leo-
nardo Kerber, Rodrigo Temp Müller e Flávio Projeto
Pretto), um funcionário administrativo e um carro A origem e irradiação dos dinossauros no Gondwana (Neotriássico –
à disposição. Eles são encarregados de monito- Eojurássico) (nº 14/03825-3); Pesquisador responsável Max Langer
(USP); Modalidade Projeto Temático; Investimento R$ 2.411.452,01.
rar os sítios pré-históricos nos nove municípios
Artigos científicos
a leste de Santa Maria que fazem parte da área
MARSOLA, J. C. A. et al. A new dinosaur with theropod affinities
denominada Quarta Colônia. “Estamos a meia from the Late Triassic Santa Maria Formation, South Brazil. Journal
hora de carro da maior parte dos sítios e pode- of Vertebrate Paleontology. 14 fev. 2019.
mos visitá-los toda semana”, explica Pretto. O PRETTO, F. A., LANGER, M. C. e SCHULTZ C. L. A new dinosaur (Sau-
rischia: Sauropodomorpha) from the Late Triassic of Brazil provides
centro também dispõe de um alojamento para insights on the evolution of sauropodomorph body plan. Zoological
10 pessoas que pode acolher pesquisadores de Journal of the Linnean Society. 25 mai. 2018.

PESQUISA FAPESP 279 | 23


Entrevista max langer

Como classificar
a vida pré-histórica
Paleontólogo explica o que faz de um
réptil um dinossauro e fala das discussões
sobre a origem desses animais

O
paleontólogo Max Langer, da hipótese de que os dinossauros podem um ancestral comum. Por essa definição,
Universidade de São Paulo ter surgido na América do Sul. todos os descendentes desse ancestral
(USP), campus de Ribeirão comum são considerados dinossauros.
Preto, acaba de voltar de uma O que torna um réptil um dinossauro e É dessa forma, por exemplo, que as aves
viagem de 10 dias à provícia de La Rioja, o diferencia de outros répteis contem- são classificadas como dinossauros. Elas
no noroeste da Argentina. Ao lado de porâneos? descendem desse ancestral comum.
pesquisadores locais e de colegas bra- Não é simples responder essa pergunta.
sileiros, participou de coletas em sítios Há diferentes formas de fazer essa dis- Que importância os paleontólogos atri-
importantes da formação Ischigualas- tinção. Atualmente, a definição do que é buem à discussão sobre o local em que
to, de onde, ao lado da formação Santa um dinossauro tem mais a ver com a sua os dinossauros devem ter surgido?
Maria, no Rio Grande do Sul, tem saído árvore genealógica, a história evolutiva Esse debate tem um pouco a ver com
os dinossauros mais antigos do mundo. de seus membros, do que com algumas certo orgulho em dizer que os dinos-
Langer, de 45 anos, conhece ainda características anatômicas que seriam sauros teriam surgido em seu país ou, na
mais profundamente os fósseis gaúchos. típicas desse grupo, como ter o quadril pior das hipóteses, em seu continente ou
Fez mestrado na Universidade Federal perfurado para o encaixe do fêmur ou as hemisfério. Mas a questão não se resume
do Rio Grande do Sul (1996), doutora- patas posicionadas diretamente abaixo a isso. Como paleontólogos, estudamos
do na Universidade de Bristol (2001), do corpo. As classificações modernas se os padrões de diversidade e distribuição
no Reino Unido, e já perdeu a conta de baseiam no conceito de clados, grupos de geográfica das espécies ao longo da his-
quantas vezes realizou trabalhos de cam- organismos que têm uma história evoluti- tória geológica. Trata-se de ciência bási-
po na parte central do território gaúcho. va comum. Os dinossauros são definidos ca. É importante entender como se deu
Ele participou da descoberta de dois fós- com base na posição filogenética de três a irradiação das diferentes linhagens de
seis de dinossauros encontrados em ro- gêneros classicamente vistos como repre- dinossauros, que são animais muito po-
chas da idade Carniana (por volta de 230 sentantes de suas principais linhagens: o pulares e despertam a atenção. Os fósseis
milhões de anos atrás) da formação Santa terópode (bípede carnívoro) Megalosau- são frágeis e seu registro é incompleto.
Maria. É também coautor de cinco dos rus, o ornitísquio Iguanodon e o saurópo- Sabemos que uma nova descoberta pode
seis trabalhos científicos que descreve- de (quadrúpede herbívoro) Cetiosaurus. mudar tudo, mas, com base nas evidên-
ram essas espécies. Nesta entrevista, ele Partimos desses três animais e percorre- cias que temos hoje, o mais provável é
fala sobre as evidências que favorecem a mos sua árvore genealógica até chegar em que os dinossauros tenham surgido no

24 | maio DE 2019
Pesquisador da USP
em afloramento da
região de Santa Maria
apresentam duas espécies, H. mariensis de Ischigualasto. Mas nelas também não
e H. sanjuanensis, cujos fósseis são igual- foram achados dinossauros. Por isso, di-
mente achados nas duas formações. go que, por ora, as evidências indicam
que os dinossauros devem ter surgido
Gondwana, a metade sul do supercon- A paleontologia nos Estados Unidos e na América do Sul.
tinente Pangea que existia há cerca de na Europa é mais desenvolvida do que
230 milhões de anos. Para ser mais pre- aqui. Por que eles não encontraram até Mas o fato de se ter encontrado na Áfri-
ciso, o mais provável é que tenham sur- agora dinossauros mais antigos do que ca o fóssil de um réptil de 245 milhões
gido no oeste do Gondwana, onde hoje os da América do Sul? de anos não enfraquece a hipótese a
fica o sul da América do Sul e da África. Não basta ter dinheiro. Quase todas as favor da América do Sul?
Incluo aqui a África, que estava unida à rochas do Triássico Superior dos Esta- Sim, enfraquece um pouco, mas nem de
América do Sul no Gondwana, pois es- dos Unidos com registro fóssil de tetrá- longe derruba essa hipótese. O fóssil des-
tamos trabalhando na descrição de um podes, grupo que inclui os atuais anfí- se possível dinossauro achado na Tanzâ-
dinossauro africano mais ou menos da bios, répteis, aves e mamíferos, foram nia, Nyasasaurus parringtoni, é muito mal
mesma idade dos nossos. datadas. Algumas são mais antigas que preservado. Foram encontrados apenas
as de Santa Maria e de Ischigualasto, algumas vértebras e um úmero parcial.
Os dinossauros mais antigos das forma- mas não têm dinossauros. Claro que é Não dá para saber se é realmente um di-
ções Santa Maria e Ischigualasto po- possível que tenha havido dinossauros nossauro. Até pode ser. Mas, a partir ape-
dem ter mantido algum tipo de contato? tão antigos quanto os nossos ali, mas, nas dele, não dá para dizer que os dinos-
É provável que sim. Alguns dinossauros, possivelmente por não terem sido tão sauros surgiram em outro lugar e não na
como Chromogisaurus novasi, da Argen- abundantes nessas regiões, eles não fo- América do Sul. Seria necessário um con-
tina, e Saturnalia tupiniquim, são muito ram preservados. Essa é uma das hipóte- junto mais completo de fósseis de dinos-
parecidos. Há até quem sugira que eles ses. Ou eles podem mesmo não ter exis- sauros de outras partes do mundo em
seriam uma única espécie. Também há tido na América do Norte. Na Europa, há rochas da mesma idade ou mais velhas
arquivo pessoal

outros animais que ocorriam tanto lá co- duas localidades, uma na Polônia e outra que as de Santa Maria e Ischigualasto
mo aqui. Os rincossauros [um tipo de rép- na Escócia, que parecem ter rochas da para se refutar a ideia da origem sul-ame-
til herbívoro] do gênero Hyperodapedon mesma idade que as de Santa Maria e ricana desses animais. n Marcos Pivetta

PESQUISA FAPESP 279 | 25


entrevista Antônio Drauzio Varella

Palavra de
médico
Oncologista que tratou os primeiros casos de Aids
no país utiliza todas as mídias para esclarecer questões
que considera relevantes sobre saúde pública

Alexandra Ozorio de Almeida e Neldson Marcolin

retrato  Léo Ramos Chaves

F
oi em 1983, durante um estágio no Sloan Kettering
Memorial Hospital, em Nova York, que Drauzio idade 76 anos
Varella percebeu que a Aids chegaria ao Brasil com
especialidade
força. Apesar de já ter mais de 10 anos de experiência
Oncologia
em oncologia, acostumado a ver doentes em estado
grave, os pacientes soropositivos que viu nos Estados Unidos instituição
o impressionaram. Todos jovens, muitos eram artistas e inte- Membro do corpo
lectuais. “Fiquei muito tocado com essa experiência”, lembra. clínico do Hospital
“Tive a sensação exata de que ia acontecer uma tragédia.” Sírio-Libanês
Começou a estudar o assunto. Quando voltou ao Brasil, era
formação
o único oncologista com experiência em sarcoma de Kaposi
Graduação em medicina
disseminado – um tipo raro de câncer, comum em pacientes
pela Universidade de
com Aids. Como os infectologistas tinham pouca experiência
São Paulo (1967)
com a nova enfermidade, o próprio Drauzio começou a tra-
tar dos casos de Aids no Hospital do Câncer, em São Paulo, produção
vindos de todo o Brasil. 16 artigos científicos
Dois anos mais tarde, durante um congresso médico em e 16 livros, entre os
Estocolmo, na Suécia, ao sair de uma grande discussão sobre quais Estação Carandiru
a epidemia de Aids, o oncologista se viu pensando sobre outro
aspecto da doença, o preconceito, e sobre como enfrentá-lo.

26 | maio DE 2019
PESQUISA FAPESP 279 | 27
“Naquela época, a ignorância era brutal. fazer?”, perguntou. Primeiro, precisa-
Isso está acontecendo no Brasil e nin- mos aprender, expliquei. Contatei o Gor-
guém vai falar nada?” Nasceu ali uma don Cragg, chefe do setor de produtos
atividade que o tornaria o médico mais naturais do National Cancer Institute
conhecido do país, primeiro por intermé- Na pesquisa [NCI], que tem o maior projeto de scree-
dio do rádio, depois da televisão, dos jor- ning do mundo para câncer. Fui para lá e
nais impressos, dos livros e da internet.
Classificada por ele como atividade
feita com ele disse que haviam perdido o interesse
pelo Brasil em razão das acusações de
educativa por meio de veículos de co-
municação de massa, o seu trabalho de plantas da biopirataria. Mas ofereceu suporte téc-
nico, podíamos mandar gente que eles
comunicação abrange uma infinidade preparariam. Teríamos de aprender a
de temas e assuntos, que às vezes ex- Amazônia, fazer a extração e, depois, seria preciso
trapolam a saúde. A controvérsia não o um trabalho de taxonomia rigoroso por-
assusta – aos 76 anos, com a consciên- chegamos a que se errar a classificação da planta está
cia de que a vida é finita, se dá o direito tudo perdido. O pesquisador mais res-
de dizer o que pensa. Em seus textos e
manifestações públicas, Drauzio defende
cinco extratos peitado na área de taxonomia de plantas
amazônicas, Douglas Daly, trabalhava
o direito ao aborto, a descriminalização
das drogas e a ineficácia da política de com atividade no New York Botanical Garden. Saí do
NCI e fui para Nova York conhecê-lo.
encarceramento em massa como forma Encontrei um norte-americano falan-
de combate à violência. antineoplásica do português com sotaque de caboclo
Casado com a atriz Regina Braga des- amazônico: “Rapaaaaiz...”. Apaixonado
de 1981, pai de duas filhas de seu pri-
meiro casamento e avô de duas netas, o
intensa, que pelo Brasil, mantinha um projeto com a
Universidade Federal do Acre. Monta-
oncologista paulistano divide seu tempo
entre os pacientes, a comunicação e a estão sendo mos um herbário, mandamos uma jovem
recém-saída da Universidade de São
escrita, para ele uma fonte de felicida- Paulo [USP], Ivana Sufredini, que apren-
de. Nesta entrevista, conta sobre suas estudados deu toda a parte técnica da extração. Ela
atividades de pesquisa, reclama da pou- voltou para cá e montou o laboratório,
ca importância dada ao Sistema Único depois retornou ao NCI para testar os
de Saúde (SUS) pela população, fala de extratos em linhagens tumorais que eles
seu trabalho de comunicação e da forte cederam para nós.
relação com o mundo carcerário, onde
aprendeu a apreciar a cachaça. quiser, até o Robert Gallo”. O Gallo, na E como foi essa experiência?
época, estava merecidamente no topo da Foi uma epopeia. Para coletar as plantas,
Entre todas as suas atividades, certa- pesquisa sobre Aids. Fizemos esse curso, precisava de licença do Ibama. Naquela
mente a menos conhecida é a relacio- com mais de 20 convidados, inclusive o época, era uma tragédia. Entregávamos
nada à pesquisa científica. Como foi a Gallo, que foi transmitido para 20 audi- o projeto, que caía em um buraco negro.
realizada com plantas da Amazônia? tórios de várias cidades pela Embratel, Foram anos assim. Coletamos tudo que
No final de semana do massacre do Ca- patrocinado pela Unip, com a qual eu dava. A Unip tem hoje a maior extrato-
randiru, em outubro de 1992, organiza- tinha uma ligação informal. teca da floresta amazônica, são 2.200
mos um curso sobre biotecnologia em extratos. Chegamos a cinco extratos com
Aids e câncer em um hotel em São Paulo. E da viagem nasceu um projeto? atividade antineoplásica mais intensa,
A biotecnologia estava começando, era a Do barco não se vê uma planta igual a que estão sendo estudados. É um proje-
área mais quente na biologia. No Brasil outra na margem. Observando essa bio- to de pesquisa muito interessante, que
não tinha quase nada e queríamos tra- diversidade, Gallo perguntou: “Do ponto contou também com financiamento da
zer gente do primeiro time para chamar de vista biológico, vocês têm algum es- FAPESP. Temos produzido e publicado
a atenção sobre esse campo. Conversei tudo de screening sendo feito aqui?”. Ele bastante.
com um amigo na Cleveland Clinic, Ron queria saber se extratos de planta eram
Bukowski, sobre como organizar um cur- sistematicamente analisados e testados Como você escolheu a oncologia?
so. Ele me disse: “O Brasil está fora do para doenças. Fiquei com aquilo na ca- Eu me formei na USP em 1967. Comecei
trajeto internacional. Se quer levar gen- beça. Como tínhamos a infraestrutura a residência em saúde pública, mas de-
te para aí, precisa oferecer um passeio, necessária, poderíamos montar um pro- sanimei, era muito teórico. Queria pôr
um fim de semana na praia...”. Como a jeto. Fui falar com o [João Carlos] Di a mão na massa, trabalhar em posto de
Unip [Universidade Paulista] tinha um Genio, dono do Objetivo e da Unip. Eu saúde. Fui aluno do Luis Rey na parasi-
barco na Amazônia, o Escola da Nature- tinha contato apenas ocasional, mas ele tologia, uma das maiores autoridades
za, uma gaiola amazônica típica, pensei: tem uma característica, percebe as coi- brasileiras em malária. Ele foi posto pa-
“E se levasse esse pessoal para lá?”. E ele sas que são interessantes, nem precisa ra fora da universidade em 1964, junto
respondeu: “Daria para levar quem você explicar muito. “Como é que você quer com o Erney Plessmann de Camargo

28 | maio DE 2019
Como foi da oncologia para a Aids?
arquivo Pessoal

No final de 1981, esteve no Brasil o Joe


Burchenal, chefe da oncologia do Me-
morial. Em um almoço, ele comentou
que haviam aparecido em Nova York uns
casos de pneumonia por Pneumocystis
carinii em jovens, aparentemente não
imunodeprimidos. Ao mesmo tempo,
surgiram em São Francisco casos de sar-
coma de Kaposi em jovens, por coinci-
dência, homossexuais, como os de Nova
York. Fui atrás do Morbidity and Mor-
tality Report dos CDCs [Centers for Di-
sease Control and Prevention, nos Es-
tados Unidos], li a descrição dos casos
e fiquei muito interessado. Tínhamos
uma doença causada por um agente in-
feccioso, provavelmente vírus, que pro-
vocava deficiência imunológica, doenças
infecciosas oportunistas, câncer – sarco-
ma de Kaposi disseminado – em jovens
Barco Escola da Natureza, da Unip, utilizado na coleta de plantas na Amazônia homossexuais. Fui para o Memorial em
1983 e fiquei três meses. Havia uma pes-
quisadora lá, Susan Krown, que traba-
e o Luiz Hildebrando Pereira da Silva. Com o que começou a trabalhar lá? lhava com interferon em Kaposi. Fiquei
Eu tinha muita admiração pelos três. Naquela época começou uma experiên- chocado porque os pacientes eram todos
Fiz um movimento e escolhemos o Luiz cia com o uso do BCG [a vacina de tu- jovens, a maioria intelectualizada, es-
Hildebrando como paraninfo. Como a berculose] no tratamento do melanoma critores, jornalistas, pintores. Comecei
diretoria da faculdade se negou a parti- maligno. Quando dei essa aula, o pessoal a estudar feito um louco. Quando voltei
cipar da formatura, ela foi extraoficial. da clínica médica veio pedir ajuda. Era para o Brasil, era o único oncologista
O Rey voltou para o Brasil em 1969 e foi uma coisa nova, ninguém sabia nada so- que tinha experiência com Kaposi dis-
contratado pela Faculdade de Saúde Pú- bre imunologia do câncer. Como já vinha seminado. Comecei a tratar os primeiros
blica, só que ele tinha que ter o curso lendo sobre isso, disse que se tivesse caso casos. Os infectologistas tinham pouca
de saúde pública, então era meu colega. de melanoma eu gostaria de ver. Comecei experiência. Tratei gente de todo o Bra-
Pensei: “Um cara reconhecido mundial- a ir uma manhã por semana, recebia uns sil, no Hospital do Câncer. Fui envolvido
mente está aqui sentado fazendo esse casos de melanoma. Um desses, era o de pela epidemia da Aids.
curso. Não quero esse futuro para mim”. um senhor que tinha tido melanoma no
A Secretaria de Saúde tinha organizado braço e começou a ter nódulos que se es- Foi nessa época que começou seu traba-
a carreira de sanitarista, mas o salário palharam. Propus tentar tratar com BCG lho de comunicação sobre saúde?
era o valor do meu aluguel – eu já era oral e ver o que acontecia. As lesões co- Naquela época, a ignorância era brutal.
casado. Era época da ditadura, dava au- meçaram a ficar avermelhadas. Fotografei Chamavam de peste gay, o que queria
la no cursinho à noite, saía e encontra- e tirei uma delas. Passado mais um tempo, dizer que mulher não corria risco ne-
va o pessoal do Jornal da Tarde e ficava começaram a ficar muito vermelhas e a nhum nem homem heterossexual, ou
conversando até de madrugada. Um dia regredir. Alguns meses depois, desapa- quem injetava droga na veia. Em Nova
encontrei o Vicente Amato Neto, infecto- receram completamente e deixaram um York percebi que ia acontecer uma tra-
logista homenageado pela minha turma. halo branco no local, que caracteriza a gédia no Brasil.
Contei que estava perdido e ele sugeriu rejeição do melanoma. Fiquei fascinado.
que eu fizesse MI [moléstias infeccio- Depois tivemos outros casos e publicamos O que fez?
sas] por ter ligação com saúde pública. na revista Cancer em 1981, foi o primeiro Eu era muito amigo do Fernando Vieira
Me convidou para fazer um estágio no trabalho brasileiro na revista. Apresentei de Mello [1929-2001], diretor da rádio
Hospital do Servidor Público. Comecei duas vezes esses resultados no Memorial Jovem Pan, um jornalista maravilhoso.
a me interessar, por sugestão dele, pelos Sloan Kettering Cancer Center, de Nova Ele disse: “Você tem que dar uma en-
aspectos imunológicos das doenças in- York, que era a meca da oncologia mun- trevista na rádio, não adianta falar para
fecciosas. A imunologia moderna estava dial. Foi uma das primeiras demonstra- mim”. Resisti bastante. Naquela época,
tendo grandes avanços no início dos anos ções científicas, de casos bem estudados, médico que falava em meio de comu-
1970. O Alois Bianchi, o maior pediatra com imagens, de que era possível fazer nicação de massa ficava malvisto. Dei a
que já tivemos, me convidou para dar um estímulo imunológico e provocar re- entrevista, longa, e ele dividiu em peda-
uma aula de imunologia no Hospital do jeição tumoral a distância. Foi assim que ços e foi inserindo na programação. Re-
Câncer. Fui e acabei ficando. me tornei oncologista. clamei: “Você não pode fazer uma coisa

PESQUISA FAPESP 279 | 29


“Primeiro, temos que demonstrar o que

arquivo Pessoal
acontece aqui, quantas pessoas estão
infectadas aqui dentro”. A partir desse
número, definir o que vai ser feito.

Como começou?
Propus fazer uma pesquisa com o pes-
soal que recebia visitas íntimas. Era uma
amostra significativa, 1.500 pessoas ins-
critas no programa. Consegui uma doa-
ção dos kits para os testes e o trabalho de
coleta podia ser feito pelos presos usuá-
rios, os “baqueiros”, que sabem pegar
veia melhor que qualquer um. Conversei
com o diretor e ele me trouxe uns cinco
presos. Perguntei e eles tinham expe-
riência. “A gente pega veia com agulha
torta, com esse material do senhor é até
covardia”, um deles respondeu. Colhe-
mos sangue de 1.492 pessoas. Testamos,
e 17,3% estavam infectadas. Das travestis
Drauzio entrevista moradoras do Acre sobre malária para o programa Fantástico, em 2018 presas na Casa havia mais de seis anos,
100% estavam infectadas. Comecei a usar
esses dados para falar com as autorida-
dessas, vou ficar muito mal com meus aula 25 vezes por semana. Adolescente des. O mínimo que tínhamos de fazer
colegas, sou um médico pretensamente não para quieto nem no cinema, tem que era distribuir camisinha para as visitas
sério”. Ele respondeu: “Você quer es- manter a atenção. Foi um longo processo. íntimas e orientar as mulheres, encami-
tar bem com seus colegas ou transmitir Não é talento, é treino. nhar para os postos de saúde. Ninguém
informação para a população?”. Fiquei queria saber.
balançado. Voltei lá depois de alguns A partir da Aids, como foi parar no Ca-
dias e perguntei o que tinha que fazer. randiru? Mas você insistiu...
Ele explicou que as mensagens transmi- Por causa da rádio, me procuraram pa- A cadeia é o lugar certo para divulgar es-
tidas pelo rádio têm que ser curtas, não ra fazer um vídeo sobre Aids. Fizemos se tipo de informação. Onde se reúnem 7
devem passar de 2 minutos. Tem que se com uma produtora profissional, que mil bandidos? Passam um tempo na ca-
apresentar. E dirigir a mensagem para o filmou na avenida Indianópolis, em São deia, voltam para a rua, se espalham pela
grupo com quem vai falar, não adianta Paulo, ponto de travestis, na zona do me- cidade inteira e depois voltam de novo
falar para todo mundo. “Aqui é o doutor retrício e na prisão. No Brasil temos as para a cadeia. A informação transmitida
Drauzio Varella falando com você que é visitas íntimas, e não se tomava nenhu- lá pode ser disseminada pela cidade para
jovem e homossexual; para você que in- ma precaução para ajudar aquelas mu- um grupo inatingível fora da cadeia. Pro-
jeta droga na veia.” Para cada um é uma lheres, informá-las. Gravamos na peni- pus ao diretor fazermos palestras sobre
linguagem diferente. tenciária do estado e passei o dia lá. Na Aids. A Unip dava o telão e o microfone.
enfermaria tinha gente morrendo, com Fiz duas ou três e percebi que não ia dar
E os colegas? caquexia, uma tragédia. Fiquei muito certo. Eu queria fazer um trabalho sis-
Ninguém nunca me falou nada. Tive cer- impressionado com a experiência. Des- temático, a cadeia inteira. Aí apareceu
teza de que esse tipo de comunicação de criança gosto de filme de cadeia. Tem o carcereiro Valdemar Gonçalves e or-
era importante. Eu via na rua as pessoas gente atraída por esse ambiente, conhe- ganizou: cada sessão seria assistida por
comentando, falando comigo, gente sim- ci outras pessoas assim. Passei os dias um andar de um pavilhão. Às 8h, abriam
ples. Pensei: “É isso que quero fazer”. Se seguintes pensando na cadeia, minha primeiro essas celas, os presos desciam e
alguém achar que estou querendo apare- mulher disse que nunca tinha me visto iam todos assistir. Isso antes de abrir ou-
cer, é problema dele, não meu. Até hoje tão quieto. Depois de algumas semanas, tros andares, senão misturava. Fizemos
ouço pessoas dizendo que nasci para esse procurei o chefe do departamento médi- uma reunião com os presos que eram os
trabalho – não é verdade. É treinamen- co do sistema penitenciário de São Pau- chefes de faxina dos pavilhões. Na época
to. Dei aula em cursinho quase 20 anos. lo, Manoel Schechtman, oferecendo um não tinha PCC [Primeiro Comando da
Comecei no primeiro ano da faculdade. trabalho voluntário. Ele disse que o pro- Capital], os chefes da faxina eram quem
Meu pai tinha quatro filhos, dois empre- blema maior estava na Casa de Detenção comandavam a cadeia. Eles estavam ven-
gos, eu não conseguiria fazer a faculdade de São Paulo, o Carandiru, com mais de do as pessoas morrer; a epidemia para
sem trabalhar. O Objetivo, que ajudei a 7 mil pessoas, ninguém queria trabalhar eles não era uma teoria. Explicamos que
fundar e dei o nome, chegou a ter 25 tur- lá. Fui conversar com o diretor, Ismael queríamos passar informações, mas não
mas de 400 alunos. Dávamos a mesma Pedrosa [1935-2005]. Pensei o seguinte: poderia acontecer nenhum incidente. Se

30 | maio DE 2019
um morresse, acabaria o nosso trabalho. O que é mais difícil resolver na saúde
Eles disseram: “Pode ficar sossegado, pública brasileira?
não vai acontecer nada”. Outro proble- A organização. Temos as unidades bá-
ma era tirar os presos da cama às 7h50. sicas de saúde [UBS] e um programa de
Vagabundo não acorda cedo de jeito ne- O Sistema saúde pública citado como um dos 10
nhum. E aí veio a ideia do Valdemar, de melhores do mundo, que é o Estratégia
passar um filme pornográfico. Terminada
a palestra, a gente saía da sala, “para não
Único de Saúde da Família. Há o agente comuni-
tário de saúde, que mora na localidade,
perder o respeito”, e passavam o filme.
Era um pacote: entrou, fecha a porta, e Saúde, o SUS, ganha um salário e é responsável pelas
famílias sob sua jurisdição. Há também
fica até o fim. Funcionou maravilhosa- uma auxiliar de enfermagem, uma en-
mente bem. Foram uns 10 anos fazendo foi a maior fermeira e um médico. Hoje cobre um
essas palestras. pouco mais de 60% da população brasi-
revolução da leira, mas deveria cobrir 100%. Quando
E daí passou para o trabalho de aten- o morador da região tem um problema,
dimento médico?
Quando terminava a palestra, o pessoal
história a equipe resolve na maioria das vezes. É
um pouco como minha experiência em
me parava no corredor. “Ô, doutor, olha
como eu estou...” Formavam fila, pare- da saúde cadeias. Lá não tem laboratório nem má-
quina de raios X. Mesmo assim, resolvo
cia um pátio dos milagres. Passei a aten- cerca de 90% dos casos sozinho.
der um dia por semana. Durou até 2002, brasileira.
quando a cadeia foi inativada. Tudo isso?

Sua relação com o presídio ainda é forte?


Não há nada Sim, com a cesta básica de medicamen-
tos disponível. Normalmente, os proble-
A Detenção era uma cadeia inesquecí-
vel. Não sou só eu: os carcereiros, com
comparável mas são simples. Quantas vezes ficamos
gravemente doentes? Uma ou duas ve-
os quais me reúno até hoje, concordam. zes na vida, em pessoas relativamen-
Eu tinha um gosto particular de andar te normais. A grande maioria das vezes
por ela sozinho, entrar nas celas. De ser resolve-se na atenção primária. Sabemos
respeitado naquele ambiente pelo exer- hoje que um hospital com menos de 100
cício da minha profissão. Não era por va- leitos é inviável, do ponto de vista técni-
lor pessoal. O convívio era permanente, co e econômico. Mas os hospitais de 50
direto. Os carcereiros ficavam por ali, leitos são a maioria no Brasil. Construir
subiam, entravam nas celas. Sempre exis- é fácil. Depois tem de equipar e contra-
tiram facções e a função deles era não populações de risco. Não pode ter, a essa tar os médicos. Esse hospital vai custar
deixar que se unissem. Um carcereiro altura, preconceito contra homossexuais, muito caro para uma capacidade de aten-
me disse, certa vez: “O negócio deles é transgêneros... Há uma repressão embu- dimento pequena. É inviável.
tomar o poder na cadeia; o nosso é o de tida na discussão, de não falar claramen-
jogar areia”. Começava a juntar muito, te, de ofender as famílias. Morrem 11 mil Qual a solução?
tiravam um, transferiam outro, e com pessoas por ano no Brasil em consequên- Transformar os hospitais pequenos em
isso eles conseguiam administrar. O Pa- cia da Aids e vamos ficar preocupados centros ambulatoriais. Se há 12 cidades
vilhão 8 tinha 1.200 reincidentes. E cinco com preconceito? mais ou menos próximas, a maior delas
ou seis funcionários cuidando. Eles têm é a que deve ter um hospital com 100
um conhecimento da natureza humana É algo parecido com a do aborto. leitos ou mais, com o qual todas as pre-
que é muito impressionante. Depois do É a mesma coisa. Certa vez participei feituras devem colaborar, juntamente
massacre, em 1992, mudou a relação. de um encontro com o professor Mario com o estado. Os que precisam mesmo
Quando acontece algo assim, estava na Sérgio Cortella e com um rabino jovem do hospital iriam para lá. Em linhas ge-
cara que não iria acontecer de novo. Nin- do Rio, o Nilton Bonder. Na vez do ra- rais, temos uma estrutura de saúde no
guém iria mandar, dali a uma semana, a bino, perguntaram: “Como o senhor vê Brasil já armada. O que é preciso? Além
PM invadir outra vez. Os presos come- a questão do aborto?”. Ele disse: “No de organização, mais dinheiro, porque o
çaram a crescer, a tomar conta. O esta- judaísmo a vida começa quando a crian- total investido é pequeno diante do que
do foi obrigado a recuar, a afrouxar, e o ça nasce”. Pronto. Há quem ache que a é necessário.
poder não ficou vazio. Imediatamente, vida começa quando o espermatozoide
foi ocupado, as facções passaram a con- entra no óvulo. Pode-se pensar também Como organizar a saúde?
trolar. Foi o início do PCC. que a vida humana é caracterizada pelo O Brasil não tem política pública de saú-
funcionamento do sistema nervoso cen- de. Nos últimos 10 anos, tivemos 12 mi-
Ainda sobre a Aids, qual o papel dos tral. O que não se pode fazer é impor um nistros da Saúde. Isso ocorre porque o
meios de comunicação, hoje? mesmo modo de pensar. Mulheres per- cargo é moeda de troca com os partidos.
Teria de se dirigir especificamente às dem a vida por não fazer aborto seguro. Nos governos estaduais e municipais é a

PESQUISA FAPESP 279 | 31


mesma coisa. Como organizar e estabe- Como funciona seu trabalho de escrita?
lecer uma política de saúde nessas con- Como se prepara?
dições? No ministério e nas secretarias Leio o tempo todo. Hoje ficou muito
estaduais e municipais há gente muito mais fácil, recebemos informação por
competente. Quando cai o ministro da Gosto muito todos os lados. Fui me envolvendo com
Saúde na Alemanha, ele leva consigo sete a escrita. Escrevi Estação Carandiru, pu-
ou oito auxiliares, que subiram e caíram
com ele. O papel do ministro é estabe-
de fazer blicado em 1999. O livro, quando saiu,
ficou quatro anos em primeiro lugar na
lecer políticas para direcionar a saúde
pública. No Brasil, o ministro leva um
trabalhos pela lista dos mais vendidos e vendeu até hoje
mais de 500 mil exemplares. Acho que
bando de gente para cargos de confian- teve o mérito de trazer pela primeira vez
ça, troca todos os diretores de autarquia internet, a realidade de um presídio emblemático,
e dos hospitais. Aqui, não conseguimos como era a Detenção, para fora da cadeia
nem mesmo mostrar para a sociedade com textos e por uma pessoa que não estava envolvida
qual a importância e a relevância do SUS. naquele universo. Descobri aí a paixão

E qual é?
vídeos, porque de escrever. O jornalismo também é um
exercício muito interessante. Tem que
Não há nenhum outro país no mundo
com mais de 100 milhões de habitan- atingem escrever naquele espaço, com prazo de
entrega, não pode ter frescura. E com co-
tes que tenha ousado oferecer saúde meço, meio e fim. Diferente de um livro,
pública gratuita para todos. Nenhum. um público onde se divaga, muitas vezes se perde na
Somos o único. As pessoas não sabem escrita. Jornalismo te dá um objetivo, e
disso. Quando se fala do SUS, costuma-
-se dizer: “É uma vergonha, macas no
inatingível de eu comecei a gostar de fazer isso.

corredor, crianças sendo atendidas em


cadeiras na recepção”. Isso acontece por- outro modo A escrita tem efeito terapêutico para
você?
que a assistência primária não funciona. Pense o seguinte: sento de frente para
É só ver uma fila de pronto-socorro. Se uma parede, com um computador, e fi-
um médico examinar todas as pessoas, co escrevendo. Tenho uma ideia, fico ali
dará alta para 80% ou 90%. Elas vão para pondo as palavras, de repente – em al-
lá porque não conseguem atendimen- guns momentos acontece isso – eu acho
to na UBS. No PS do hospital, o doente uma ligação, que deixa o texto bom e
sabe que será atendido, de um jeito ou cidadão, em primeiro lugar. É preciso fico feliz. Eu obtive essa felicidade so-
de outro. atribuir essa responsabilidade. Quando zinho, olhando para uma parede branca.
adoece e não tem condições de se tratar, Não existe essa felicidade no mundo que
A maioria dessas pessoas é atendida o paciente pode ser atendido pelo Es- nos cerca. Com um computadorzinho
pelo SUS. tado. No Brasil, todos têm esse direito. na mão, dá para chegar nesse estágio.
O SUS foi a maior revolução da história O sistema é híbrido porque temos tam- Depois que se experimenta esse grau
da saúde brasileira. Não há nada com- bém uma saúde suplementar, paga. Esse de felicidade, não para mais de escrever.
parável. Fui residente no Hospital das sistema atende mais ou menos 47 mi-
Clínicas da Faculdade de Medicina da lhões de pessoas. O resto, cerca de 160 Então escrever não é um processo so-
USP. Na época havia o INPS [Instituto milhões de pessoas, depende do SUS. frido?
Nacional da Previdência Social]. Traba- O investimento do sistema privado e Para mim nunca foi. Em um sábado de
lhador com carteira assinada tinha direi- do público é quase da mesma ordem. A manhã, vou ao hospital, vejo os doen-
to ao INPS. Quem não tinha esse direito diferença é que um atende 47 milhões tes, corro para a casa e fico escrevendo.
era classificado como indigente. Não era e outro 160 milhões. Mesmo tendo pla- É um prazer enorme. Antes do almoço
algo teórico: vinha escrito no prontuário. no de saúde privado posso ser atendi- tomo uma cachaça para “potencializar”
Os trabalhadores por conta própria, todo do pelo sistema público. No Chile, por o trabalho... Isso eu aprendi com o pes-
o pessoal do campo, ficavam na depen- exemplo, opta-se por um ou por outro. soal da Detenção. Antes da cachaça eu
dência da caridade da sociedade, como O SUS é o maior programa de distri- tomava cerveja. Até que um deles falou:
a Santa Casa de Misericórdia. Em 1988, buição de renda da história do Brasil. “Doutor, o senhor tem de beber cachaça
colocaram na Constituição: “A saúde é O bolsa família é um projeto tímido se porque, se ficar bêbado, vão dizer que é
direito de todos e dever do Estado”. Em- comparado ao SUS. O cidadão pode es- cachaceiro. Se gastar dinheiro tomando
bora eu não goste muito desse slogan. tar embaixo da ponte e, se precisar de champanhe, vão dizer que é cachaceiro.
um transplante de fígado, vai fazer no Cerveja, quando está calor, toma uma
Por quê? HC gratuitamente. Quanto ele gastaria garrafa, toma outra, quando vê, bebeu
Primeiro, não diz de onde vem o di- em um hospital privado? É um sistema demais. Cachaça você sabe com quem
nheiro. Segundo, infantiliza a pessoa. de redução de desigualdade social. Nin- está lidando”. É verdade, é mais fácil
Cuidar da própria saúde é um dever do guém vê esse outro lado do SUS. de controlar.

32 | maio DE 2019
reproduzidos. Só a partir daí podemos
Fotos 1 Caio Guatelli / Folhapress  2 Arquivo pessoal

tirar conclusões. A ciência não é a única


forma de ver o mundo. Há outras for-
mas. Mas não vejo como conciliar essas
cosmovisões porque são antagônicas.

Você tem uma equipe que escreve para


o site e grava vídeos?
Há um grupo que começou comigo fa-
zendo gravações e criou uma agência
própria, a Uzumaki, que agora presta
serviços ao site. Essas linguagens mu-
dam muito rapidamente, temos de tentar
acompanhar. Gosto muito de fazer esses
trabalhos pela internet porque atingem
1 um público inatingível de outro modo.
2
Outro dia estava com minha mulher em
um cinema e havia umas crianças por
ali. De repente, uma menina colocou o
celular na minha cara com uma fotogra-
fia: “Você é esse aqui?”. Sou, respondi.
“A gente pode tirar uma fotografia com
você?” São crianças, entre 12 e 13 anos,
com quem eu consigo falar pela internet,
mas não pela televisão.

Você está trabalhando em algum livro?


Estou, mas ainda muito no começo. É
basicamente sobre memórias, mas o for-
mato não está bem definido. Resisti por
bastante tempo. Ocorre o seguinte: va-
mos fazendo as coisas pela vida e têm
algumas que dão certo e as que não dão.
Muitas dependeram de mim mesmo,
do meu trabalho, de decisões acertadas
No Carandiru, que tomei. Outras não, dependeram de
em 2001, com o grupo pública e não religiosa. Quando falo, as oportunidades.
de rap Comunidade
Carcerária (no alto)
reações são terríveis. Tenho 76 anos, co-
e durante encontro meço a enxergar com o horizonte mais Seu medo é tornar o acaso um méri-
com amigos carcereiros curto. Não posso ficar preocupado com to seu…
em 2018 (acima) quem xinga. Temos de expor ideias que Exato. E, quando você aparece na tele-
têm relevância social. Todas as vezes em visão, fica famoso. A televisão é cheia
que os ignorantes tomam o poder, nas di- de gente tola porque o cara fica achan-
taduras, por exemplo, o que eles fazem? do que aquele reconhecimento todo é
O subtexto é, sempre, “abaixo a cultura”. mérito pessoal dele. Não percebe que se
Com cachaça ou sem virou escritor... Nessas horas, o importante é manter o fosse outro ali ocorreria a mesma coisa.
Fiz essa carreira. Tenho essas duas co- diálogo aberto, a multiplicidade de ideias. É muito medíocre chegar na maturidade
lunas, na Folha de S.Paulo e na Carta- Não se pode estabelecer autocensura. plena e ficar se olhando no espelho. Há
Capital. Para a internet, uso o texto que outras coisas mais interessantes.
escrevo para a Folha e resumo em dois Isso vale também para os temas tabus?
minutos no YouTube, onde tenho um Sou ateu. Os religiosos pensam e agem Tem algo que gostaria de ter feito e não
canal. Às vezes, até em menos tempo. como se tivessem o monopólio da gene- fez ainda?
Quando vejo, 350 mil pessoas já assisti- rosidade humana. Sabemos que há gene- Quando peguei febre amarela eu tinha 61
ram. Tenho vídeo com quase 2 milhões rosidade em chimpanzés e gorilas – que anos. Houve um momento, tecnicamente,
de visualizações. É outra realidade. não rezam. Qual o princípio básico de ao ver os exames, que achei que iria mor-
toda religião? A crença, tem de crer. E rer. Pensei: “O que faltou fazer?”. Bem, ha-
E surgem muitos comentários... qual o princípio básico da ciência? Não via muitas coisas para fazer. Agora, nesta
Tem de tudo. Há assuntos tabus, como se pode crer em nada que não tenha ex- fase da vida, fiz tudo o que precisava e o
falar de aborto. É uma questão de saúde perimentos e resultados que possam ser queria, mas é claro que posso fazer mais. n

PESQUISA FAPESP 279 | 33


política c&T  Saúde pública y

O fim da epidemia
de Aids?
Governo dos Estados Unidos quer reduzir em 90%
os novos casos da doença até 2030, mas enfrenta
o desafio de alcançar grupos vulneráveis

Fabrício Marques

O
presidente norte-americano, Donald xia pré-exposição (PrEP), um comprimido capaz de
Trump, anunciou em fevereiro um pla- reduzir o risco de contágio em 97% dos usuários. A
no para acabar, até 2030, com a epide- grande novidade é a intenção de concentrar esforços
mia provocada pelo HIV nos Estados em 48 condados onde, constatou-se, ocorrem mais
Unidos. “Temos uma oportunidade da metade dos casos de Aids do país, intensificando
inédita nesta geração de eliminar novas infecções as estratégias de prevenção, diagnóstico, tratamento
na América”, afirmou, no discurso anual sobre o Es- e monitoramento. Boa parte desses hotspots fica em
tado da União. A meta é reduzir em 75% o número áreas urbanas e regiões pobres, com destaque para
de infecções em cinco anos, e em 90% em 10 anos, estados como Flórida, Califórnia, Texas e Geórgia.
evitando o contágio de 250 mil pessoas no período A julgar pelos progressos obtidos nos últimos anos,
e transformando a síndrome da imunodeficiência a meta proposta por Trump parece possível de ser al-
adquirida em uma doença de incidência restrita e cançada. As estatísticas gerais mostram que a epidemia
eventual. Para tentar alcançar esse objetivo, haverá de Aids perdeu ímpeto. De acordo com dados da Kai-
ações em várias frentes simultaneamente. ser Family Foundation, organização norte-americana
A principal, que já vinha sendo adotada, consiste dedicada a estudos sobre saúde pública, 940 mil pes-
em multiplicar a oferta de testes de diagnóstico e de soas morreram no mundo em 2017 de causas relacio-
infográficos e ilustrações  alexandre affonso

medicamentos antirretrovirais. O objetivo é garan- nadas à Aids. Esse contingente equivale à metade do
tir que o 1,1 milhão de pessoas que vivem com HIV 1,9 milhão de mortos em 2004. Nos Estados Unidos,
naquele país não apenas evitem as manifestações da a Aids tem uma prevalência baixa na população geral,
doença que destrói as defesas imunológicas, como com concentração de casos em grupos como homens
também suprimam a carga de vírus na circulação que fazem sexo com homens, travestis e profissionais
sanguínea a ponto de parar de transmiti-lo, man- do sexo. A doença atinge 0,3% da população do país,
tendo-se em tratamento para o resto da vida – ou índice semelhante ao registrado no Brasil, de 0,4%.
até que se descubra a cura. Outro foco é evitar que Uma limitação que o plano vai enfrentar se rela-
cerca de 1 milhão de pessoas em situação de risco ciona à heterogeneidade nos serviços de saúde nos
adquiram a moléstia, utilizando a chamada profila- Estados Unidos. “Ao contrário do modelo brasileiro,

34  z  maio DE 2019


Um modelo para vencer a síndrome
Em 2012, a Unaids propôs uma estratégia em forma de cascata para vencer a epidemia: diagnosticar
pelo menos 90% dos portadores do HIV, tratar 90% dos diagnosticados e suprimir a carga viral de 90%
de pacientes tratados. Abaixo, o desempenho de algumas regiões segundo os dados mais recentes

Indivíduos diagnosticados Indivíduos em tratamento Indivíduos com o vírus suprimido

% do total 90
de pessoas 85 86 84 85
com HIV 81
73 75
72
64 66 64
63 62
58 57
51
46
42 42
39

29
26
18
14 13
6

Metas da Brasil EUA Europa Oceania Sudeste África Europa Oriente Médio
Unaids Ocidental Asiático e Subsaariana Oriental e e Norte da
Pacífico Ásia Central África

Fontes  Jacob Levi, Imperial College London Medical School/ Unaids/ Ministério da Saúde

não existe lá um sistema universalizado e os cuida- cuidados e de medicamentos. Cada questão dá ori-
dos acabam variando de um lugar para outro”, ex- gem a um indicador”, diz. O inquérito classifica os
plica a médica Maria Ines Battistella Nemes, pro- serviços em quatro diferentes níveis e ajuda equipes
fessora da Faculdade de Medicina da Universidade e secretarias da Saúde a aperfeiçoar seu trabalho.
de São Paulo (FM-USP). “No estado de Nova York, Se o plano norte-americano tem clareza sobre
por exemplo, os serviços ambulatoriais produzem, métodos e objetivos, há dúvidas acerca de sua ca-
a partir de prontuários e registros eletrônicos, re- pacidade de transformar comportamentos. Embora
latórios diários que mostram quem ainda não está em queda na população geral, a Aids nos Estados
com a carga viral zerada. E investigam prontamente Unidos voltou a crescer entre homens jovens. E mes-
quando o paciente não aparece nos atendimentos mo localidades onde houve redução de casos têm
programados. Mas essa é a realidade do Estado de dificuldades de eliminar a doença. São Francisco,
Nova York, onde o tratamento é largamente subsi- na Califórnia, que contabilizava 2 mil casos por ano
diado. Muitos outros estados do país têm contextos na década de 1990, hoje registra 200 casos anuais.
bem diferentes, com dificuldades até para o acesso “Chegamos a um piso. Todos os jovens gays bran-
aos medicamentos”, afirma. cos estão tomando PrEP, mas há indivíduos que não
Em 2018, Nemes passou uma temporada de seis conseguimos alcançar”, disse ao jornal The New York
meses no Departamento de Saúde do Estado de Times Jeff Sheehy, ativista da mobilização contra o
Nova York estudando os cuidados a pacientes para HIV na cidade. “A Aids tem associação com grupos
subsidiar seu trabalho à frente do projeto QualiAids, pobres e vulneráveis e é difícil isolar a doença dos
uma ferramenta de avaliação dos serviços ambula- outros problemas que essas pessoas enfrentam.”
toriais do Sistema Único de Saúde (SUS) que tra- O Brasil tem o mesmo problema. “O fato de haver
tam pessoas com HIV no Brasil. O QualiAids teve tecnologia para acabar com a epidemia não signifi-
quatro edições e fornece 84 indicadores sobre os ca que conseguiremos chegar lá”, diz Maria Amélia
serviços. “Os ambulatórios respondem a uma série Veras, professora da Faculdade de Ciências Médicas
de perguntas sobre tempo de atendimento, recur- da Santa Casa de São Paulo, que estuda e acompa-
sos tecnológicos e financeiros disponíveis, oferta de nha grupos especialmente atingidos, como travestis,

pESQUISA FAPESP 278  z  35


mulheres transexuais e homens que fazem sexo
com homens. Segundo ela, em especial o grupo de As metas dos Estados
travestis e mulheres transexuais vive em condições
de alta vulnerabilidade. “Quem enfrenta dificul- Unidos contra a Aids
dades de moradia, inserção profissional ou baixa
escolaridade nem sempre é acessado ou consegue Resultados almejados e obtidos em alguns
dar prioridade à prevenção ou ao tratamento”, diz. indicadores-chave para deter a epidemia
Veras foi responsável por um estudo que identifi- (o ano se refere à medição do desempenho)
cou uma prevalência de 15,4% de contaminação pelo
HIV entre homossexuais e travestis que frequentam Desempenho
Já atingidas

bares e boates no centro de São Paulo (ver Pesquisa Objetivo


Em progresso

FAPESP nº 230). Atualmente, investiga como me- Não atingidas

lhorar a situação de saúde de travestis e mulheres


No grupo dos homens jovens que fazem sexo
transexuais vivendo com HIV. O projeto é uma par-
com homens, reduzir % dos que assumem
ceria com duas pesquisadoras da Universidade da
comportamento de risco (2017)
Califórnia, em São Francisco, e recebe financiamento
29,1%
dos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), dos Esta-
32,6%
dos Unidos. Com previsão para terminar em 2020,
o trabalho monitora grupos com e sem o HIV para, Reduzir % de pessoas com HIV que fazem sexo
entre outros aspectos, compreender as barreiras que de risco (2017)
podem comprometer a adesão ao tratamento. Na sua 6,6%
avaliação, é fundamental criar novas formas de aco- 7,1%
lher os grupos vulneráveis, a fim de engajá-los em
Aumentar o número de pessoas que tomam
esquemas de prevenção e tratamento. “Infelizmente,
profilaxia pré-exposição (PrEP) (2016)
vemos hoje um crescimento do preconceito contra
homossexuais, transexuais e travestis”, afirma. 64.763
17.937

O
s canais tradicionais para atingir as popula- Reduzir taxas de morte (2015)
ções de risco são insuficientes. “Nos comuni-
camos mal”, diz Veras, lembrando que a vida 14,3%
sexual, principalmente dos jovens, passou a ser me- 17,2%

diada por expedientes como aplicativos de busca de


Reduzir nº de novas infecções do HIV (2016)
parceiros, e eles não são alcançados por campanhas
de prevenção no formato mais tradicional, como 38.700
as veiculadas pela televisão. Entre exemplos bem- 36.500
-sucedidos, ela destaca a atuação da clínica pública
Ampliar % de portadores diagnosticados (2016)
de saúde sexual Dean Street, em Londres, que, em
um ambiente alegre e descolado, oferece a quem a 85,8%
procura testes gratuitos e tratamento imediato para 86%
HIV e outras infecções sexualmente transmissíveis.
Ampliar a taxa de retenção de
“Eles conseguem atrair os jovens, que preenchem um
pacientes em tratamento (2015)
questionário, são classificados em relação ao risco,
fazem o teste e, mesmo se o resultado for negativo, 57,5%

ganham um cartão eletrônico para serem acompa- 67,1%

nhados a partir dali”, afirma. Reduzir % de pacientes que não têm


A epidemia surgiu no início dos anos 1980 e, em onde morar (2016)
seus primeiros tempos, tornou-se um flagelo para
8,4%
grupos como homossexuais masculinos, usuários de
6,5%
drogas injetáveis e hemofílicos infectados por trans-
fusão de sangue (ver entrevista na página 26). Quem Reduzir % de pacientes que sofrem com
viveu aquela época via a síndrome como uma sen- o estigma do HIV (2016)
tença de morte, pois não havia tratamento eficiente.
39%
Nos anos 1990, surgiram medicamentos capazes de 36,9%
reduzir a presença do vírus e a Aids, embora incurável,
transformou-se em algo como uma moléstia crônica, Reduzir % de usuários de drogas sem HIV
com sobrevida crescente. As políticas de combate à que utilizam seringas não esterilizadas (2015)
síndrome atingiram um ponto de inflexão por volta 60.7%
de 2010, diante das evidências de que os portadores 56,9%
do HIV tratados com o arsenal terapêutico disponí- Fontes  HIV Prevention Progress Report, 2019/ CDC

36  z  maio DE 2019


vel conseguiam manter uma carga viral indetectável
e deixavam de transmitir a doença. “A constatação de A evolução da síndrome
que quem tinha o vírus indetectável parava de trans-
mitir transformou a forma de enfrentar a doença”, diz no Brasil em 10 anos
Nemes, da FM-USP. Até então, a abordagem concen-
trava-se em tratar indivíduos com sintomas e disse- Taxas de detecção de Aids por grupo de 100 mil habitantes,
minar métodos de prevenção. O modelo adotado no entre homens e mulheres e por faixa etária, em 2007 e 2017
governo George W. Bush (2001-2009) era conhecido 2007 2017 Faixas com aumento da detecção
como ABC, A de abstinência, B de fidelidade (Be fai-
thful) e, em último caso, C de preservativo (condom). Homens Mulheres
Idade

A
3,0 3,9
nova realidade deu origem a uma abordagem 15 a 19
7,0 3,2
múltipla, baseada na detecção do maior nú-
mero possível de casos e na oferta massiva 15,6 14,8
de remédios para os diagnosticados. “O tratamento 36,2
20 a 24
10,3
passou a ser parte da prevenção”, afirma Maria Ines
Nemes. Em 2012, a Unaids, braço das Nações Unidas 38,2 26,8
25 a 29
para o combate à síndrome, lançou o plano 90-90-90: 50,9 15,6
diagnosticar pelo menos 90% dos infectados, tratar
90% dos diagnosticados e suprimir a carga viral de 56,1
30 a 34
35,2

90% das pessoas em tratamento – a meta seria capaz 48,4 17,0


de reduzir em até 75% o número de novos casos. Nos
63,3 36,0
últimos anos, muitos países avançaram nesse sentido, 35 a 39
47,9 21,9
mas poucos, a exemplo da Suíça e da Itália, alcança-
ram 90% dos diagnósticos. O Ministério da Saúde 60,2 30,9
brasileiro estima a existência de 860 mil pessoas vi- 40 a 44
42,9 21,9
vendo com o vírus HIV no país. Desse total, 85%, ou
731 mil, sabem que têm a doença, 548 mil recebem 46,5 26,0
tratamento e 503 mil têm a carga viral indetectável. 38,4
45 a 49
20,6
A mudança no combate à Aids estimulou a ado-
ção de táticas para acelerar o diagnóstico. Em Santo 35,5 19,8
50 a 54
André, no ABC paulista, pesquisadores do Institu- 32,4 17,7
to Adolfo Lutz e da Secretaria Municipal da Saúde
avaliam o impacto de ferramentas para descobrir 24,7 15,0
55 a 59
precocemente indivíduos infectados. A equipe rea- 27,3 13,7

lizou um projeto piloto para testar uma estratégia


10,3 5,3
inovadora de triagem, baseada no uso de um algo- 60 e mais
13,4 6,4
ritmo para identificar pessoas que podem ter pego a
doença recentemente. Ao menos a metade dos por- Fonte Ministério da Saúde

tadores do vírus exibe sintomas transitórios assim


que o HIV se instala, comuns a outras viroses, como públicos só conseguem detectar anticorpos um mês
febre alta, dor de garganta, diarreia ou surgimento após a infecção, mas técnicas como a contagem da
de nódulos linfáticos. O algoritmo considera infor- carga viral flagram o vírus no sangue cerca de uma
mações prestadas pelo paciente, como a existência semana após o contágio.
dos sintomas e relações sexuais desprotegidas nas A experiência, realizada em um ambulatório de
seis semanas anteriores, para sugerir a investigação referência em Santo André, mostrou que a capacita-
de uma possível infecção. Se o algoritmo recomen- ção da equipe no reconhecimento de possíveis casos
dar, realizam-se exames mais sensíveis como o de de infecção reduziu de 82 para 28 dias o intervalo
carga viral e o teste rápido de quarta geração, que de tempo entre a admissão do paciente e o início do
consegue diagnosticar casos considerados negativos tratamento com antirretrovirais. “O investimento
em exames de rotina do SUS. vale a pena, pois permite que se inicie o tratamento
Em 2015, um estudo publicado pela equipe mos- logo depois do diagnóstico e que se retire o indiví-
trou que quatro pacientes que procuraram os servi- duo da cadeia de transmissão mais rapidamente”,
ços de saúde da cidade com suspeita de dengue, não diz a infectologista Elaine Monteiro Matsuda, da
confirmada em exames, eram casos de infecção agu- Secretaria de Saúde de Santo André. “O projeto tem
da pelo HIV. Eles estavam em um período conhecido impacto também por semear a prática de pesquisa
como janela imunológica, em que já podem infectar em serviços assistenciais e em centros regionais que
outras pessoas, mas ainda não são diagnosticados fa- atuavam apenas como laboratórios”, diz a bióloga
cilmente. Testes rápidos utilizados em ambulatórios Ivana Campos, coordenadora da iniciativa.

pESQUISA FAPESP 278  z  37


36,7 29,7
28,6

Onde a Aids
18,9
17,7
13,2 13,7 11,3

avançou e 28,5 RR
AP 21,3 CE RN
13,3
12,6 9,7

recuou
23,6
21,2
15,2
MA PB
Taxas de detecção do 18,9 19,3
AM PA 13,1
HIV por grupo de 10,6
8,4 8,8 18,8 18,7
100 mil habitantes nas 16,2
PI PE
unidades da federação, AC 6,7 18

em 2007 e 2017 RO
23,1 22,3
18,6 TO 10,7
11,9 10,2
14,4

AL
BA
16,5
2007 2017
MT DF 11,8
13,7 14,7
Aumento de casos 15
12,3 SE
Redução de casos 24,3
18,9
GO
21,3 19,2
16
MG 16,1

O Brasil foi pioneiro na oferta de medicamentos MS


ES
e mantém no horizonte a meta dos 90-90-90 da 46,1
18,4 17 SP
33,1
Unaids. “A intenção é atuar em prevenção, diagnós- 26,4
tico precoce e tratamento para todos”, diz Gerson 29,4
PR 33,7
Pereira, diretor do Departamento de Vigilância, 26,8
Prevenção e Controle das IST, do HIV/Aids e das
Hepatites Virais do Ministério da Saúde. A aborda- RJ

gem teve resultados positivos. A taxa de detecção era RS


de 21,5 casos a cada grupo de 100 mil habitantes em SC
2013 e hoje é de 18,5 casos, segundo o ministério. A Fonte  Ministério da Saúde

doença perdeu fôlego entre mulheres, mas aumen-


tou sua concentração entre homens jovens – na faixa
entre 20 e 24 anos, a taxa de detecção mais do que Para Maria Amélia Veras, é necessário avançar em
dobrou entre 2007 e 2017 (ver quadro na página 37). outras frentes. “Quando alguém tem um acidente
Para cada mulher com Aids, hoje há 2,2 homens ou uma relação desprotegida, pode recorrer a uma
na mesma situação. Entre profissionais do sexo, al- profilaxia até 72 horas depois da ocorrência. O me-
cança mais de 5%, entre os homens que fazem sexo dicamento ajuda a evitar que a infecção se instale e
com homens, por volta de 18%, e entre travestis, até é oferecido em vários serviços, mas precisaria estar
30%, de acordo com diferentes levantamentos. Se disponível em todos os prontos-socorros para ter im-
há medicamentos antirretrovirais disponíveis para pacto.” Gerson Pereira, do Ministério da Saúde, acha
todas as pessoas vivendo com HIV, outras estraté- precipitado prever o fim da epidemia, mas afirma
gias estão aquém de seu potencial. A profilaxia pré- que a redução da incidência nos grupos mais atin-
-exposição é utilizada por cerca de 8 mil brasileiros, gidos será visível nos próximos anos. Ele ressalta o
um contingente ainda tímido para representar uma esforço para reduzir as mortes relacionadas à doen-
barreira ao avanço da doença. “O uso da PrEP está ça, na casa das 12 mil por ano no país. “As mortes são
muito concentrado em homens que fazem sexo com causadas por moléstias oportunistas e parte delas se
homens de perfil socioeconômico mais elevado. O deve à tuberculose. Nosso departamento incorpo-
desafio é ampliá-lo para grupos que têm taxas mais rou os cuidados com essa doença e teremos ações
altas de infecção, como os homens jovens, de baixo específicas de prevenção e tratamento.” n
estrato social, além de profissionais do sexo, tran-
sexuais e travestis”, afirma o sociólogo Alexandre
Grangeiro, pesquisador da FM-USP, que coordenou Projetos
um dos primeiros estudos sobre a implantação do 1. Monitoramento e melhoria da qualidade dos serviços de saúde envolvi-
PrEP em cinco cidades brasileiras. Ele ressalta que, dos no contínuo do cuidado em HIV, STD e hepatites virais (nº 17/26021-
5); Modalidade Bolsas no exterior – Pesquisa; Pesquisadora responsável
para receber o tratamento, os indivíduos têm de se- Maria Ines Battistella Nemes (FM-USP); Investimento R$ 80.551,25.
guir um protocolo complexo, como visitas trimes- 2. Avaliação do uso de tecnologia de biologia molecular de detecção de
trais a serviços de saúde, além de consultas e exames viremia plasmática para identificação e incorporação de pacientes na
fase aguda da infecção pelo HIV-1 (nº 16/14813-1); Modalidade Auxílio
para monitorar a segurança do medicamento ou a à Pesquisa – PPSUS; Pesquisadora responsável Ivana Barros de Campos
ocorrência de infecções sexualmentes transmissíveis. (Instituto Adolfo Lutz); Investimento R$ 171.128,01.

38  z  maio DE 2019


Equipamentos multiusuários  y

O equipamento
de ressonância
magnética
Magneton 7T MRI,
da Faculdade de
Medicina da USP

Acesso rápido
a máquinas
e laboratórios
USP e Unicamp criam portais para ampliar o compartilhamento
de infraestrutura de pesquisa

A
s universidades de São Paulo damental de laboratórios e facilities de de forma tímida ou fragmentada. “Não
foto  léo Ramos chaves  ilustrações freepick

(USP) e Estadual de Campinas universidades públicas, que é servir há queixas relacionadas a barreiras no
(Unicamp) criaram portais na ao maior número possível de pesqui­ acesso, mas temos a percepção de que os
internet que catalogam seus sadores a fim de aumentar o impacto instrumentos poderiam ser mais usados
equipamentos de pesquisa e os disponi­ e a qualidade de trabalhos científicos se fossem mais conhecidos”, diz Watson
bilizam para usuários de dentro e de fora e tecnológicos do país. A maior parte Loh, professor do Instituto de Química
das instituições, inclusive de empresas. O dessa infraestrutura foi financiada por (IQ) da Unicamp e coordenador adjunto
objetivo é facilitar o compartilhamento agências de fomento sob o compromisso do Programa de Equipamentos Multi­
de instrumentos de custo elevado, como de que parte de seu tempo de uso se­ usuários (EMU) da FAPESP.
microscópios eletrônicos, espectrôme­ ja franqueado a outros pesquisadores Na Unicamp, o Portal de Equipamen­
tros de massas ou sequenciadores, entre interessados. Mas nem sempre é fácil tos Multiusuários e Serviços (www.prp.
muitos outros. As iniciativas procuram para os usuários encontrar o que preci­ unicamp.br/pt-br/ces/site/) garante
dar visibilidade para uma missão fun­ sam, uma vez que a oferta é divulgada acesso a instrumentos de médio e de

pESQUISA FAPESP 279  z  39


1

O Laboratório Central de
Tecnologias de Alto
Desempenho (LaCTAD),
facility na Unicamp
Núcleo de
sequenciamento
genético instalado
grande porte espalhados pela instituição, no Instituto do
ratórios e desonerar seus responsáveis
com a vantagem de permitir a busca por Câncer do Estado de tarefas burocráticas”, esclarece Syl­
palavras-chave. Não é necessário saber o de São Paulo vio Canuto, professor do Instituto de
modelo ou o tipo específico de máquina: Física e pró-reitor de Pesquisa da USP.
basta informar a finalidade do uso para O agendamento pode ser feito on-line,
saber se existe algum equipamento ca­ com geração automática de boletos pa­
paz de cumprir aquela tarefa. Em caso ra os usuários e liberação da utilização
positivo, o solicitante é direcionado para consultas de universidades e empresas assim que o pagamento pelo uso é feito.
o laboratório apropriado. Por enquanto, – ante uma média de apenas uma con­ Em geral, os laboratórios cobram taxas
há 140 equipamentos cadastrados. “Espe­ tratação por ano. “As máquinas e os ser­ menores de pesquisadores da própria
ramos aumentar e muito esse número”, viços estavam disponíveis no nosso site, universidade, e maiores de usuários de
diz Munir Skaf, também professor do mas o novo portal parece tê-los tornado outras instituições e de empresas. A USP
IQ e pró-reitor de Pesquisa da Unicamp. mais visíveis”, considera Pagliuso. Além tem interesse em organizar o uso de seu
Foram criadas funcionalidades para os do Laboratório Multiusuários (Lamult) parque de equipamentos multiusuários
responsáveis pelas instalações, como um do IFGW, que tem 12 diferentes equipa­ a fim de racionalizar gastos com manu­
kit que permite a cada unidade de ensino mentos, entre microscópios, espectrôme­ tenção e contratação de técnicos, que
e pesquisa construir um site para divul­ tros e difratômetros, o instituto também são alvos frequentes de demandas de
gar suas máquinas, com um sistema que franqueia cerca de 50 instrumentos ins­ pesquisadores e departamentos. A uni­
organiza o agendamento. talados em laboratórios de pesquisadores versidade pretende lançar um edital pa­
O portal da Unicamp começou a fun­ e departamentos. ra promover manutenção preventiva de
cionar em março e já contabiliza um au­ máquinas, mas vai esperar alguns meses

C
mento no número de solicitações para a riada no final do ano passado, a até que mais unidades adiram à central.
utilização dos equipamentos. No Institu­ Central USP de Equipamentos “Será possível avaliar quais são os mais
to de Física Gleb Wataghin (IFGW), as Multiusuários (uspmulti.prp.usp. compartilhados e esses terão priorida­
consultas de usuários cresceram entre br/) por enquanto oferece acesso a dois de nos investimentos em manutenção”,
30% e 50%, dependendo do instrumento. laboratórios, ambos da Escola Politécni­ avalia Canuto. “Isso também vai ajudar a
Um dos exemplos que chamou a aten­ ca, e 17 máquinas instaladas em diversas nortear a abertura de vagas para técnicos
ção foi o do analisador de distribuição unidades. A expectativa é de multiplicar em instalações amplamente utilizadas.”
de tamanho de partículas, disponível em o número de centrais e instrumentos A disponibilidade de técnicos é um
um laboratório do IFGW, cujo uso foi disponíveis nos próximos meses. Há 25 ponto importante para ampliar o uso
solicitado por pesquisadores de outra centrais e laboratórios em fase de ca­ dos instrumentos. “Não é incomum que
unidade da Unicamp. “Fazia um bom dastramento e pelo menos outros 100 equipamentos fiquem acessíveis apenas
tempo que ninguém pedia para usá-lo”, em condições de participar da rede. A alguns dias da semana ou em horários
diz o físico Pascoal Pagliuso, diretor do plataforma disponibiliza ferramentas de restritos por conta do tempo disponível
instituto. Também um serviço oferecido gestão dos equipamentos, centralizadas dos técnicos que trabalham com a má­
pelo IFGW no portal, a descaracteriza­ na Fundação de Apoio à Universidade quina”, diz Watson Loh. O compartilha­
ção e descarte de cabeçotes de aparelhos de São Paulo (Fusp). “Essas ferramentas mento também se justifica por outras
de raios X, recebeu de uma só vez três buscam simplificar a rotina dos labo­ razões. O dinheiro arrecadado com os

40  z  maio DE 2019


dos e Projetos [Finep], também finan­
ciam a compra de equipamentos mul­
tiusuários e têm listagens próprias. Daí a
importância de haver portais com todas
as máquinas disponíveis em uma insti­
tuição”, conta Munir Skaf, da Unicamp.

A
s discussões sobre a necessidade
2 de aumentar a visibilidade dos
Microscópio confocal, um equipamentos multiusuários há
dos equipamentos do Centro tempos mobilizam pró-reitores de pes­
de Facilidades de Apoio à
Pesquisa do Instituto de
quisa no âmbito do Conselho de Reito­
Ciências Biomédicas da USP res das Universidades Estaduais Pau­
listas (Cruesp). “Temos discutido for­
mas de identificar toda a infraestrutura
disponível no estado para ampliar sua
serviços prestados pode ajudar na ma­ funciona no Instituto de Ciências Bio­ utilização”, diz o físico Carlos Graeff,
nutenção da infraestrutura. “Às vezes, médicas e desde 2014 oferece a usuários pró-reitor de Pesquisa da Universidade
um equipamento que custou R$ 1 milhão de todo o estado serviços de sequencia­ Estadual Paulista (Unesp) e professor
pode ficar parado por algum tempo à es­ mento, microscopia para estudo de cé­ da Faculdade de Ciências de Bauru. A
pera de recursos para comprar uma peça lulas vivas, espectrometria de massas, Unesp, que tem campi em 24 municípios
que custa R$ 10 mil”, conta Munir Skaf. entre outros – a FAPESP investiu US$ 4 do estado, pretende lançar ainda neste
A integração de pesquisadores de di­ milhões na compra de equipamentos. Na ano uma plataforma que reúna cerca de
ferentes campos do conhecimento em Unicamp, há iniciativas de porte como 200 equipamentos multiusuários, expan­
torno de laboratórios multiusuários pode o Laboratório Central de Tecnologias dindo a central mantida pelo Instituto
gerar novas oportunidades de pesquisa. de Alto Desempenho (LaCTAD) – uma de Química de Araraquara.
“A organização de equipes para traba­ facility inaugurada em 2013 – para dar Para Débora Chadi, professora do Ins­
lhar com equipamentos multiusuários suporte a pesquisas em genômica, bioin­ tituto de Biociências da USP e assessora
amplia a interlocução entre pessoas que formática, proteômica e biologia celular. da pró-reitoria de Pesquisa da USP, o lan­
pensam a ciência de forma diferente e A FAPESP, que apoia a aquisição de çamento das centrais de universidades
permite discutir outras soluções multi­ infraestrutura de pesquisa em linhas de poderia ser uma etapa intermediária pa­
fotos 1 léo Ramos chaves 2 e 3 Eduardo cesar  ilustrações freepick

disciplinares de um problema”, afirma financiamento regular e no programa ra criar uma plataforma que congregas­
Roger Chammas, coordenador da Rede EMU, exige que instrumentos de médio se todos os equipamentos de pesquisa
Premium (Programa Rede de Equipa­ e grande porte com potencial de utiliza­ disponíveis no estado de São Paulo. Ela
mentos Multiusuários), que desde 2005 ção por outros pesquisadores estejam menciona o exemplo do Reino Unido, que
disponibiliza em um endereço na inter­ disponíveis para uso compartilhado. É conseguiu cadastrar instalações de pes­
net a infraestrutura de diferentes labora­ possível ter acesso em um endereço na quisa disponíveis no país em um único
tórios da Faculdade de Medicina da USP. internet (www.fapesp.br/emu/) aos sites portal (equipment.data.ac.uk), mantido
De maneira isolada, unidades da USP de laboratórios e unidades de pesquisa pelo Conselho de Pesquisa em Ciências
e da Unicamp já haviam montado nos no estado de São Paulo onde estão equi­ Físicas e Engenharia (EPSRC). “Seria in­
últimos anos centrais de equipamentos pamentos adquiridos com recursos da teressante termos isso em São Paulo. Um
multiusuários robustas – que já foram Fundação. A lista é organizada por tipo pesquisador da USP no interior do esta­
ou serão em breve integradas às cen­ de instrumento, instituição ou cidade. do poderia encontrar a máquina de que
trais de cada instituição. É o caso da Re­ “Essa iniciativa se refere à infraestrutura precisa em alguma universidade próxima,
de Premium ou o Centro de Facilidades comprada com apoio da FAPESP. Outras em vez de ter que procurá-la na capital
de Apoio à Pesquisa (Cefap) da USP, que agências, como a Financiadora de Estu­ paulista”, afirma. n Fabrício Marques

pESQUISA FAPESP 279  z  41


Fomento y

Inovações
induzidas
Guia busca ampliar o uso de legislação sobre
encomendas tecnológicas no Brasil

Bruno de Pierro

U
m guia produzido pelo Instituto de Pes- conhecido como TRL – acrônimo para Technology
quisa Econômica Aplicada (Ipea) reúne Readiness Level (ver infográfico). Criado pela Nasa,
um conjunto de recomendações para agência espacial norte-americana, na década de 1970,
ampliar o uso no Brasil das encomen- baseia-se em uma escala que vai de 1 (pesquisa bá-
das tecnológicas, um instrumento de sica) até 9 (produto no mercado): quanto mais ma-
estímulo à inovação ainda pouco adotado no país. dura é uma tecnologia, menor o risco contido nela.
Com 106 páginas, o manual orienta gestores públicos A encomenda se aplica a bens ou serviços que são
sobre como aplicar o poder de compra do Estado a potencialmente viáveis, mas ainda não existem, e
fim de criar soluções para problemas de interesse deve ser feita idealmente entre as TRL 2 e 8. “Para
da sociedade, como o desenvolvimento de vacinas produtos disponíveis, recomenda-se o uso de outros
ou tecnologias capazes de melhorar a mobilidade instrumentos, como licitação ou compra direta. E
urbana. Também há informações sobre critérios também não deve haver encomenda se a ideia ain-
para a escolha de fornecedores e as circunstâncias da está em fase preliminar e depende de aprofundar
nas quais uma encomenda tecnológica é mais viável. ciência básica”, explica Rauen, que também colabo-
A publicação, disponível em bit.ly/IpeaEnco- rou na elaboração do decreto.
menda, expõe as oportunidades criadas pelo De- Outro dispositivo regula a remuneração, que pode
creto nº 9.283, editado em fevereiro de 2018 pelo ser feita em etapas do desenvolvimento definidas
governo federal, que regulamenta dispositivos da previamente. Isso garante que, mesmo que a so-
legislação sobre compras públicas. “Essa norma lução almejada não seja obtida, a empresa receba
dá segurança jurídica para a administração fede- em função do esforço de P&D despendido. O guia
ral contratar empresas que executem projetos de descreve cinco formas de pagamento, que vão do
pesquisa e desenvolvimento [P&D] com alto risco estabelecimento de um preço fixo até o reembolso
tecnológico, como, por exemplo, uma vacina con- do custo com o acréscimo de uma taxa extra. “Agora
tra o vírus zika”, explica um dos autores do guia, é possível customizar contratos de acordo com o
o economista André Rauen, do Ipea. grau de incerteza relacionado a cada projeto”, diz
fotos  reprodução

Em sua maioria, as regras são ainda pouco utiliza- Rauen. A propriedade intelectual do eventual pro-
das pela administração pública brasileira. Uma delas duto decorrente da encomenda também precisa ser
propõe a adoção de um método para determinar a discutida previamente. “Dependendo da complexi-
maturidade tecnológica de um produto inovador, dade da demanda, o Estado pode repassar total ou

42  z  maio DE 2019


Busca por novas soluções
definição

Encomenda tecnológica é um tipo específico de compra pública em que o governo


contrata empresas capazes de criar soluções para problemas de interesse do país.
O produto ou serviço encomendado não existe ou não se encontra disponível no
GPS
mercado, o que permite a contratação direta de potenciais fornecedores. O sistema de
As empresas são remuneradas em função do esforço de pesquisa despendido posicionamento por
satélite é fruto de
encomendas realizadas
pelo projeto Navstar,

casos EXEMPLARES desenvolvido pelo


governo americano nos
anos 1960 com a
finalidade de aperfeiçoar

Jeep o sistema de navegação


das forças armadas
No início da Segunda Guerra Mundial, o
governo norte-americano encomendou um
veículo para melhorar o transporte de
soldados em terrenos irregulares.
A empresa contratada foi a Willys-Overland
Motors, com a qual se fechou acordo para
produção de 16 mil unidades

Cargueiro militar
Robô Curiosity O maior avião já construído no Brasil, o
KC-390 foi construído pela Embraer a
O veículo de exploração espacial Curiosity,
partir de uma encomenda feita em 2009
enviado a Marte em 2012, foi encomendado
pela Força Aérea Brasileira, que precisava
pela agência espacial norte-americana
de uma aeronave para o transporte de
(Nasa) e fabricado pelas empresas Boeing e
tropas, cargas e operações de resgate
Lockheed Martin e pelo Jet Propulsion
Laboratory, da própria agência

parcialmente os direitos de propriedade de inovação brasileiro. “No caso das en-


ao fornecedor. Essa concessão pode es- comendas, é o Estado que define exata-
timular a participação de empresas em mente qual resultado deve ser buscado.
uma encomenda”, observa Rauen. A tecnologia passa a ser o meio, e não o
Internet Sugere-se, ainda, a criação de um co-
mitê técnico de especialistas com expe-
fim do processo”, ressalta. “Como as em-
presas privadas em geral são avessas ao
A Arpanet, precursora da riência na aplicação de tecnologias pa- risco inerente à inovação, o poder públi-
internet, resultou da ra assessorar o gestor público que faz a co deve internalizar parte desse risco de
encomenda de uma rede de encomenda. Cabe ao órgão monitorar a forma a incentivar projetos mais ousados
comunicação, com fins execução do contrato e avaliar se o pro- na indústria. Do contrário, não haverá de-
militares, feita pelo jeto foi realizado da forma mais eficiente. senvolvimento tecnológico”, diz Rauen.
Departamento de Defesa “O comitê poderá também atestar o es- O economista Carlos Grabois Gadelha,
dos Estados Unidos no final da forço de pesquisa feito pelos fornecedo- coordenador das Ações de Prospecção da
década de 1960 res e auxiliar a administração pública na presidência da Fundação Oswaldo Cruz
compreensão de problemas científicos”, (Fiocruz), explica que o risco de a tecno-
diz Rauen. Segundo o economista, o ob- logia não ser incorporada pelo mercado
jetivo do guia é movimentar o sistema também deve ser considerado. “Um dos

pESQUISA FAPESP 279  z  43


Desafios no caminho Encomendas tecnológicas
devem ser feitas entre os
As etapas de uma encomenda correspondem a níveis de maturidade tecnológica TRLs 2 e 8
(TRL), que precisam ser superadas pelos potenciais fornecedores

TRL 0 TRL 1 TRL 2 TRL 3 TRL 4 TRL 5


PESQUISA FORMULAÇÃO PESQUISA TESTE EM TESTE EM
IDEIA
BÁSICA DA TECNOLOGIA APLICADA ESCALA REDUZIDA ESCALA PILOTO

Conceitos ainda Identificação Concepção Testes Validação da Modelo validado


não foram testados do lastro de de possíveis laboratoriais e tecnologia em em ambiente
conhecimento aplicações prova de conceito ambiente controlado simulado

Conceito Protótipo

fatores críticos para inovar é o horizonte principais empresas parceiras do projeto um processo comum de dispensa de lici-
de mercado. A inovação precisa ser ab- foi a brasileira WEG, especializada na tação, justificado pela ausência de outros
sorvida pela sociedade.” produção de motores elétricos, que foi potenciais concorrentes. Mas o contrato
contratada, entre outras encomendas, não previa o eventual fracasso atrelado ao

L
ançado antes do decreto de 2018, para entregar 1.036 eletroímãs que guiam risco tecnológico do projeto. “Mesmo na
o projeto Sirius, a nova fonte bra- a trajetória dos elétrons nos aceleradores presença do risco, os protótipos tinham
sileira de luz síncrotron, seguiu de partículas (ver reportagem na página de ser entregues. Felizmente isso ocorreu,
uma abordagem semelhante à da nova 72). “Trabalhando nessa iniciativa, a em- mas esse tipo de aquisição delegou todo
legislação. Em desenvolvimento desde presa testou sua capacidade tecnológica o risco ao fornecedor”, explica Rauen.
2012 no Centro Nacional de Pesquisa em e ganhou musculatura para atuar em pro- O arcabouço jurídico criado no país
Energia e Materiais (CNPEM), em Cam- jetos científicos de grande porte”, afirma em 2004 com a Lei de Inovação já permi-
pinas (SP), o Sirius envolveu o esforço Luís Alberto Tiefensee, diretor da WEG. tia a contratação de empresas e institui-
articulado de mais de uma centena de Mesmo antes de haver uma legislação ções sem fins lucrativos para a realização
fornecedores, na maioria empresas bra- apropriada, o poder de compra do Estado de atividades de P&D sem necessidade
sileiras de alta tecnologia (ver Pesquisa já foi usado diversas vezes para impulsio- de licitação. As regras, porém, não es-
FAPESP nº 269). “Boa parte dos compo- nar projetos ambiciosos no Brasil. Duran- tavam estipuladas com clareza, afirma
nentes demandados não estava disponível te os governos militares (1964-1985), por Rauen. Segundo ele, isso ajuda a explicar
no mercado”, conta o físico Antonio José exemplo, encomendas tecnológicas ajuda- o fato de o governo ter destinado apenas
Roque da Silva, diretor-geral do CNPEM ram a fortalecer a pesquisa em empresas R$ 150 milhões para encomendas tecno-
e responsável pelo Sirius. Como era al- como Embraer e Petrobras. Os primeiros lógicas em um período de cinco anos, de
to o risco tecnológico para a criação de aviões da Embraer foram encomendados 2010 a 2015 – uma quantia considerada
vários componentes, o centro – que é pelo governo brasileiro, o que permitiu muito pequena, diz Rauen.
uma organização social supervisionada à empresa desenvolver tecnologias e se A encomenda de produtos e soluções
pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, projetar como um dos principais fabrican- tecnológicas ocorre há décadas em paí-
Inovações e Comunicações – optou por tes do mundo. Em anos recentes, o maior ses como os Estados Unidos, onde apro-
associar o pagamento dos fornecedores cargueiro militar já construído no país, o ximadamente 30% dos gastos públicos
a cada etapa concluída. Em alguns casos, KC-390, foi desenvolvido pela empresa a com P&D são investidos em compras
mais de uma empresa foi contratada pa- partir de um pedido feito em 2009 pela dessa natureza. A Federal Acquisition
ra desenvolver um determinado tipo de Força Aérea Brasileira (FAB), que preci- Regulation (FAR), lei que regulamenta as
equipamento. Os melhores protótipos sava de uma aeronave para o transporte compras públicas no país desde 1974, foi
foram escolhidos e um conjunto menor de tropas, cargas e operações de resgate. uma das fontes de inspiração do decreto
de empresas foi contratado para efeti- A FAB optou por adquirir dois protótipos brasileiro. A FAR reconhece a relação do
vamente fabricar os produtos. Uma das ao custo total de R$ 3 bilhões, por meio de Estado com fornecedores privados como

44  z  maio DE 2019


Transferência
de tecnologia
Se as encomendas tecnológicas
ainda não são muito comuns no
TRL 6 TRL 7 TRL 8 TRL 9 Brasil, um modelo parecido ganhou
terreno no país nos últimos anos, em
PROTÓTIPO FASE APLICAÇÃO DA
DEMONSTRAÇÃO particular na área da saúde. Desde
EM TESTE PRÉ-COMERCIAL TECNOLOGIA
2012, o governo utiliza o poder de
compra do Sistema Único de Saúde
(SUS) de forma mais organizada
a fim de internalizar a produção
de bens que pesam na balança
comercial, em uma estratégia
Situação próxima Protótipo analisado Tecnologia pronta O produto está denominada Parcerias para o
à do desempenho em ambiente e validada em pronto para ir Desenvolvimento Produtivo (PDPs).
esperado operacional ambiente real para o mercado A diferença em relação às
encomendas tecnológicas é que,
no caso das PDPs, o medicamento
ou o equipamento médico já existe
Validação Produção
e sua utilização no SUS depende
de importação. As aquisições
destinadas à saúde somaram, em
2015, um montante superior a
uma parceria e não apenas uma transação a qualidade de vida de pessoas que so- R$ 16 bilhões, mais de um terço
comercial rotineira. “Um dos setores que freram acidente vascular cerebral. “A do total de compras federais.
mais se beneficiaram das compras públi- iniciativa está na fase de ensaios clíni- Um caso representativo é o do
cas nos Estados Unidos é o de Defesa”, cos, com três empresas testando protó- imunossupressor tacrolimo, capaz
pontua o economista Nicholas Vonor- tipos”, diz Julie-Ann Walkden, coorde- de diminuir a atividade do sistema
tas, professor da Universidade George nadora do projeto no Departamento de imunológico para prevenção da
Washington, autor de estudos sobre o Saúde da Irlanda do Norte. Um deles é rejeição do organismo a órgãos
sistema de inovação brasileiro. Atual- um dispositivo que utiliza inteligência transplantados. O fármaco é
mente, 90% do orçamento da Agência artificial para monitorar o desempenho utilizado continuamente por cerca
de Pesquisa Avançada de Defesa (Darpa), de pacientes em fisioterapia. de 30 mil pessoas no país e
estimado em US$ 3 bilhões, é direciona- Além da capacidade de identificar atualmente é produzido pelo
do para encomendas. Atribuem-se a pro- problemas cujas soluções não se encon- Instituto de Tecnologia em Fármacos
jetos iniciados na agência o desenvolvi- tram no mercado, o Estado também pre- (Farmanguinhos), da Fundação
mento da tecnologia stealth, usada para cisa acompanhar os rumos da pesquisa Oswaldo Cruz (Fiocruz), no
ocultar aviões e submarinos militares, a no mundo, diz o engenheiro português Rio de Janeiro. “As PDPs ajudaram
primeira transmissão sem fio da Arpa- Hugo Tamagnini Gonçalves, especialista o Brasil a adquirir habilidades em
net, precursora da internet, e o sistema em compras públicas. “A administração biotecnologia a partir da absorção de
de posicionamento por satélite (GPS). pública precisa entender as limitações novos conhecimentos”, avalia Carlos
tecnológicas em produtos já comercia- Gadelha, economista da Fiocruz

O
utra referência para a legislação lizados e quais desafios são enfrenta- e secretário de Ciência, Tecnologia e
brasileira, informa Rauen, é o dos por instituições acadêmicas”, diz Insumos Estratégicos do Ministério
Horizonte 2020, principal pro- Gonçalves, que é gerente de desenvol- da Saúde entre 2011 e 2015.
grama científico da União Europeia, vimento de projetos do Fórum Virium Para Gadelha, projetos de inovação
com orçamento de € 76,4 bilhões para de Helsinque, na Finlândia. A organiza- incremental, que resultem do
o período 2014-2020. Um terço desse ção é responsável pelo projeto Fabulos, aperfeiçoamento de tecnologias
valor é aplicado em encomendas, que na consórcio formado por seis países para existentes, também precisam estar
infográfico  Alexandre affonso

Europa são chamadas de compras pré- adquirir uma frota de micro-ônibus au- no radar dos gestores públicos.
-comerciais (PCPs) – bastante comuns tônomos. A iniciativa ainda está na fa- “A solução para vários problemas
no campo da saúde. Um dos projetos se de estudos teóricos e conta com um do país não depende apenas
beneficiados pelo Horizonte 2020 é o orçamento de € 5,5 milhões – dos quais de inovações radicais. Por meio de
Magic, um consórcio formado por ins- 90% são de recursos do Horizonte 2020 transferência de tecnologia é
tituições da Irlanda do Norte e da Itália e 10% fornecidos pelos integrantes do possível aumentar o nível de P&D
para encontrar soluções que melhorem consórcio. n das empresas", explica.

pESQUISA FAPESP 279  z  45


política universitária y

Abraçando as
diferenças
Nova diretoria da Unicamp integrará ações
de promoção dos direitos humanos entre alunos,
professores e funcionários

Rodrigo de Oliveira Andrade

A
Universidade Estadual de Cam­ Técnico de Campinas (Cotuca), ligado Unicamp, outra comissão que faz parte
pinas (Unicamp) criou uma es­ à Unicamp, de adotar cotas etnorraciais da estrutura do novo órgão.
trutura dedicada à articulação em seus processos seletivos. Dos 3.386 A Diretoria Executiva de Direitos Hu­
de políticas de disseminação da estudantes aprovados no vestibular da manos também deverá coordenar as ativi­
tolerância, cidadania e inclusão em sua Unicamp para 2019, 1.293 (38,2%) eram dades da Comissão Assessora de Acessibi­
comunidade acadêmica. A Diretoria Exe­ pretos ou pardos, sendo que quase metade lidade, que há alguns anos investe em pro­
cutiva de Direitos Humanos foi aprovada deles (48,7%) era proveniente de escolas jetos para ampliar a mobilidade e o acesso
no dia 26 de março, durante reunião do públicas. Já os estudantes indígenas re­ de pessoas com deficiência no campus da
Conselho Universitário, e está vinculada presentaram 2,1% dos convocados. Segun­ universidade a equipamentos e materiais
ao gabinete da reitoria. “Queremos agir de do Almeida, a comissão deverá investir de estudo e pesquisa. A comissão tam­
modo articulado para promover e valori­ em ações complementares de combate bém irá realizar estudos para identificar
zar os direitos humanos dentro e fora da ao racismo, disseminação do respeito às pontos críticos para que em seguida pos­
Unicamp”, afirma a historiadora Néri de diferenças e valorização da diversidade. sa apresentar propostas de reforma das
Barros Almeida, professora do Instituto Em outra frente, desde fins de 2017, estruturas dos prédios, calçadas, praças e
de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH) uma comissão se dedica à criação de po­ espaços de convívio na instituição.
da universidade e diretora do novo órgão. líticas de combate à violência sexual e Outra instância que vai se articular
“A ideia é aprimorar iniciativas existentes discriminação baseada em gênero e se­ com a nova diretoria é a Cátedra Sérgio
e fomentar a criação de novas estratégias, xualidade. Esses são dois dos principais Vieira de Mello da Agência da Organi­
procedimentos e práticas de inclusão, problemas enfrentados pelas instituições zação das Nações Unidas para Refugia­
equidade, acessibilidade, prevenção do as­ de ensino no mundo, representando, em dos, a Acnur. Desde 2003 o órgão atua
sédio e discriminação e violência sexual.” alguns casos, mais da metade dos inci­ na promoção da educação, pesquisa e
A diretoria vai coordenar o trabalho dentes de violação de direitos humanos extensão acadêmica voltada à popula­
de cinco comissões assessoras, criadas no ambiente acadêmico. “Vamos criar ção refugiada, em parceria com centros
nos últimos dois anos e que já atuavam uma secretaria de atendimento especia­ universitários brasileiros e o Comitê Na­
de forma independente. Uma delas está lizado para pessoas vítimas de violência, cional para Refugiados (Conare), órgão
encarregada de promover a diversidade assédio ou discriminação sexual”, expli­ do Ministério da Justiça responsável por
etnorracial e, no ano passado, orientou ca Almeida, que também está à frente do analisar os pedidos e declarar o reco­
a decisão da universidade e do Colégio Observatório dos Direitos Humanos da nhecimento da condição de refugiado

46  z  maio DE 2019


no Brasil. Almeida conta que a Unicamp estruturados da Europa, ao reunir uma entre a vítima e o acusado. “Espera-se
passou a integrar a cátedra em setembro comunidade de estudantes, 2 mil ex-alu­ com isso que a vítima se sinta reparada
de 2017 e, desde então, promove a forma­ nos, mais de 100 professores e pesquisa­ e que o acusado compreenda a situação,
ção acadêmica e a capacitação de profes­ dores de 11 disciplinas, bolsistas e parcei­ reconheça seus atos e adote uma postura
sores e estudantes no âmbito desse tema. ros. Entre as iniciativas promovidas estão alinhada às normas de conduta”, explica.
palestras, reuniões, cartilhas, pesquisas, Ela reconhece que essa abordagem pode
experiências internacionais serviços de aconselhamento universitá­ não ser suficiente nos casos mais graves,
Conforme explica o físico Marcelo Kno­ rio e treinamentos sobre assuntos como envolvendo injúrias raciais ou sexuais,
bel, reitor da Unicamp, a diretoria segue assédio sexual, diversidade e inclusão. por exemplo. Por isso, não se descartam
um movimento internacional. “Nos úl­ Esses escritórios também elaboram e punições como expulsão de alunos e de­
timos anos, universidades em diversos divulgam manuais de prevenção de vio­ missão de professores e funcionários.
países passaram a investir na criação de lação dos direitos humanos entre seus Segundo Knobel, no Brasil, é comum
escritórios dedicados à elaboração e im­ alunos, professores e funcionários, além as universidades terem núcleos, centros
plementação de políticas de estímulo à de políticas de inclusão, acolhimento e ou comissões de promoção e afirmação
valorização dos princípios de respeito à permanência, por exemplo, de alunos e dos direitos humanos. Na sua avaliação,
diversidade cultural, de defesa da igual­ pesquisadores transgêneros, indivíduos a Diretoria Executiva de Direitos Hu­
dade, da dignidade humana e do cultivo que se identificam como de um gênero manos da Unicamp se diferencia dessas
da convivência solidária”, diz. diferente daquele que lhes foi atribuído iniciativas porque pretende promover
Muitas delas se concentram em paí­ em virtude de seu sexo biológico (ver ações de forma orquestrada. “Qualquer
ses do hemisfério Norte, como Estados Pesquisa FAPESP nº 266). Segundo Al­ instituição de ensino e pesquisa que al­
Unidos, Reino Unido e Canadá. Univer­ meida, nos casos de descumprimento das meje estar entre as maiores do mundo
sidades canadenses como a de Waterloo normas de conduta estabelecidas pela precisa cultivar essa preocupação com a
ilustraçãO bernardo frança

e Ottawa, além da Queen’s University, há universidade, a proposta da nova direto­ promoção de uma educação em direitos
algum tempo criaram escritórios dedica­ ria é adotar, sempre que possível, a prá­ humanos na perspectiva intercultural,
dos à promoção dos direitos humanos. tica do diálogo restaurativo, em lugar de crítica e emancipatória, que procure ar­
O Centro de Direitos Humanos da Uni­ uma abordagem punitiva. A ideia é que ticular questões relacionadas à igualdade
versidade de Essex, no Reino Unido, é um intermediador resolva os conflitos e às diferenças no âmbito da comunidade
considerado um dos mais amplos e bem de modo a restabelecer a relação social universitária”, argumenta. n

pESQUISA FAPESP 279  z  47


Entrevista Marcelo Knobel y

O aprendizado da

autonomia
Para o reitor da Unicamp, financiamento
estável e liberdade de gestão impulsionaram a
qualidade das universidades estaduais paulistas

O
reitor da Universidade Es­ uma Comissão Parlamentar de Inquérito
tadual de Campinas (Uni­ criada na Assembleia Legislativa paulista
camp), Marcelo Knobel, to­ para avaliar supostas irregularidades na
mou posse em abril como gestão financeira das instituições. “Será
presidente do Conselho de uma oportunidade de mostrar o impacto
Reitores das Universidades Estaduais do trabalho das universidades, que é pou­
Paulistas (Cruesp). Nos próximos 12 me­ co conhecido”, afirma. Nascido em Bue­
ses, vai coordenar o trabalho do órgão, nos Aires há 51 anos, Marcelo Knobel é Marcelo Knobel: gestão
que reúne os dirigentes das universida­ professor do Instituto de Física Gleb Wa­ marcada pela criação de
novas formas de ingresso na
des de São Paulo (USP), Estadual Pau­ taghin e assumiu a reitoria da Unicamp
universidade e pelo
lista (Unesp) e da Unicamp e das secre­ em abril de 2017. Sua gestão é marcada engajamento em temas que
tarias de Desenvolvimento Econômico, por iniciativas de caráter inovador, tanto mobilizam a sociedade
Ciência e Tecnologia e da Educação, e na aproximação com a sociedade quanto
busca fortalecer a interação com as ins­ em formas de ingresso na universidade –
tituições, além de propor soluções para pela primeira vez, foram admitidos, sem
problemas relacionados ao ensino supe­ precisar passar no vestibular, estudantes
rior e à pesquisa. Entre as tarefas que o que se destacaram em olimpíadas cien­
aguardam, estão as comemorações dos tíficas e se organizou um vestibular ex­
30 anos de autonomia das universidades clusivo para indígenas. No mês passado,
estaduais, estabelecida por um decreto a Unicamp criou uma diretoria talhada
do então governador Orestes Quércia em para questões relacionadas à promoção
1989, que garantiu recursos e estabilida­ dos direitos humanos (ver reportagem à
de de gestão às instituições. página 46). Na entrevista a seguir, o reitor
Knobel também será um dos princi­ fala de seus desafios à frente da universi­
pais porta-vozes das universidades em dade e do Cruesp.

48  z  maio DE 2019


Que foco terá seu trabalho no Cruesp? a oportunidade para mostrar a grandio­ pulação brasileira sabia citar uma ins­
O Cruesp está em um momento muito sidade do sistema de ensino superior tituição que faz pesquisa no país. Natu­
bom. Os três reitores têm ótima relação paulista aos deputados que, às vezes, ralmente temos que fazer o mea culpa.
e temos nos reunido mensalmente para têm certo desconhecimento de como As universidades têm um problema de
discutir problemas comuns. Há grupos funcionam as universidades. Mais do comunicação e não estão sabendo levar à
encarregados de debater temas sobre que isso, mostraremos para a socieda­ população e aos políticos a importância
graduação, pós-graduação, pesquisa, que de e seus representantes a importância das ações que desenvolvem utilizando
têm funcionado de maneira muito inten­ de ter universidades do calibre das três recursos da sociedade.
sa. Neste ano, teremos a comemoração estaduais paulistas.
dos 30 anos da autonomia das univer­ Qual o saldo dos 30 anos de autonomia?
sidades estaduais paulistas, o que é um A que atribui esse desconhecimento? As universidades estaduais paulistas cres­
marco para as três instituições. Agora Não é um fenômeno exclusivo de São ceram e chegaram ao patamar das me­
há o desafio da Comissão Parlamentar Paulo. Uma pesquisa recente do Minis­ lhores instituições da América Latina.
de Inquérito [CPI] criada na Assembleia tério da Ciência, Tecnologia, Inovações A quantidade de publicações aumentou
léo ramos chaves

Legislativa para analisar a gestão das e Comunicações aferiu no país o conhe­ exponencialmente, assim como cresceu o
universidades e o repasse de verbas. Não cimento sobre instituições científicas. O número de estudantes (ver seção Dados na
temos nada a temer, e pretendemos usar resultado foi desastroso. Só 4% da po­ página 11). A Unicamp, há 30 anos, tinha

pESQUISA FAPESP 279  z  49


cerca de 50% do corpo docente com dou­ Não, mas reconheço que o assunto é po­
torado. Foi feito um programa para me­ lêmico. Na minha visão, a cobrança de
lhorar a qualidade e, hoje, 99% dos nossos mensalidade é uma falsa solução. Não
professores são doutores. Conseguimos é assim que a universidade vai resolver
formar mais pessoas e produzir mais pes­ seus problemas de financiamento, nem
quisa mesmo com a redução dos quadros. o governo. Veja o caso do Massachusetts
Pudemos nos planejar e pensar em como A cobrança de Institute of Technology, o MIT, uma uni­
crescer. Do ponto de vista de formação versidade de referência em pesquisa. É
de recursos humanos, de pesquisa, de mensalidade uma instituição privada, em que apenas
extensão à comunidade, de assistência 10% dos custos são cobertos por matrí­
em hospitais universitários – em todos
é uma falsa culas. O resto é bancado por projetos
os setores as estaduais progrediram e isso solução. A boa do governo e por um fundo patrimonial
ocorreu principalmente graças à autono­ muito forte, que se mantém graças à tra­
mia. Na Unicamp, por exemplo, temos um pesquisa é cara, dição em filantropia nos Estados Unidos.
complexo de cinco hospitais que atende Não há milagre. A boa pesquisa é cara,
mais de 6 milhões de pessoas na Região complexa complexa e precisa de recursos públicos.
Metropolitana de Campinas. A autono­
mia gerou um processo de aprendizado
e precisa de Como racionalizar os gastos?
constante, com acertos e também erros. recursos públicos Pela Constituição, as universidades de­
vem se dedicar a ensino, pesquisa e ex­
Que tipo de erro? tensão. É preciso repensar o modelo. O
Em um período recente, acreditou-se que deveria ocorrer, na minha visão, é
que a economia e a arrecadação de im­ uma diversificação. Deveríamos ter algu­
postos continuariam crescendo em ritmo mas universidades públicas de pesquisa
forte, o que não ocorreu. Na minha visão e um número maior de universidades
e na dos colegas do Cruesp, houve deci­ a intervenções policiais em campi na públicas essencialmente de ensino, que
sões que colocaram em risco as finanças campanha eleitoral. Por quê? são mais baratas e ainda assim podem
das universidades e o resultado foi uma Há dois princípios fundamentais das oferecer um ensino de altíssima qualida­
crise complexa, que tivemos de resolver. universidades. O primeiro é a autono­ de. Poderíamos ter diferentes modalida­
A USP criou um programa de demis­ mia e o segundo é a liberdade acadêmi­ des, como existem nos Estados Unidos,
são voluntária de grande dimensão. Na ca. Desses princípios não se pode abrir por exemplo, os community colleges e os
Unicamp fizemos esforço para reduzir mão. O professor, o pesquisador, o fun­ liberal arts colleges, além dos cursos de
a folha de pagamentos, reorganizar pro­ cionário, o estudante, todos têm de ter tecnólogos e outras modalidades pro­
cessos e melhorar a gestão. E o mesmo liberdade de expressar suas ideias. Claro, fissionalizantes, para que os estudantes
ocorreu com a Unesp. Mesmo em crises, tem de haver respeito pelas ideias dos pudessem optar por diferentes caminhos
a autonomia mostrou que é possível su­ outros, assim como à integridade físi­ e carreiras, com mobilidade entre eles.
perar momentos difíceis com discussões ca e à liberdade de ir e vir. A discussão
internas, planejamento e transparência deve ser acadêmica, baseada em fatos Fundos patrimoniais são uma opção?
sobre o que acontece aqui dentro. cientificamente comprovados e/ou da­ A legislação é muito recente e um dos
dos bem estabelecidos, feita de maneira pontos principais infelizmente foi vetado
Recentemente, o senhor disse que as ética, franca e cordial. pelo presidente da República, que abria a
universidades estão em perigo. Por quê? possibilidade de isenção fiscal para doa­
Há ameaças à autonomia, à liberdade de As universidades públicas são acusadas dores de fundos patrimoniais. Mas ainda
cátedra e ao modelo de universidade pú­ de ter um viés ideológico. Faltou ou fal- há espaço para trabalhar. A ideia é criar
blica consolidado no país. Muitas vezes ta tolerância dentro da universidade? fundos que permitam realizar projetos
isso se baseia em falta de entendimento Isso deveria ser algo sagrado na univer­ que de outra maneira não poderiam ser
da atuação da universidade. Estamos vi­ sidade, mas, infelizmente, não funciona feitos, como grandes obras. Ou que per­
vendo um momento de polarização ex­ assim nem mesmo nas nossas famílias. mitam às universidades equilibrar-se em
trema e muitas decisões se baseiam em Quantas pessoas tiveram pela primeira momentos de tempestade financeira.
questões ideológicas. Como universida­ vez um Natal longe dos seus familiares
des públicas, devemos nos aproximar da por discordâncias políticas? Somos o A Unicamp tem boas relações com o se-
sociedade e mostrar o impacto do nosso reflexo da sociedade. Mas aqui tem de tor produtivo. Parcerias com empresas
trabalho. Sem universidade pública, o ser o local privilegiado de respeito à di­ podem ajudar no financiamento?
Brasil não tem futuro. versidade de ideias, à opinião do outro, A Unicamp tem um portfólio de mais
a maneiras institucionalizadas de tomar de mil patentes das quais aproximada­
A Unicamp se apresentou ao Supremo decisões em órgãos colegiados. mente 14% são licenciadas. Geralmente
Tribunal Federal para defender a livre esse número varia de 3% a 5% em ou­
manifestação de ideias no ambiente Cobrar mensalidades seria uma solu- tras universidades. O licenciamento de
acadêmico, em uma ação relacionada ção para financiar as universidades? tecnologias é importante, mas, para que

50  z  maio DE 2019


seja uma fonte extra de recursos, pre­ excelência. A sociedade que nos finan­ de jovens de escolas públicas na univer­
cisa ter uma dimensão muito maior ou cia precisa estar refletida aqui dentro. A sidade sem a necessidade do vestibular.
algum produto espetacular em termos Unicamp despertou para essa questão no Agora em 2019, adotamos um projeto de
de lucros. É um caminho a seguir, mas início dos anos 2000, quando foi criado cotas etnorraciais, que é diferente das
não se deve colocar todas as fichas nessa o Paais, o Programa de Ação Afirmativa universidades federais – elas não são
estratégia. O objetivo da transferência de e Inclusão Social, que foi inovador, mas necessariamente apenas para alunos de
tecnologia não é fazer caixa. É cultivar o avançou só até certo ponto. Trata-se de escolas públicas. Além disso, foi criado o
espírito empreendedor em professores um programa de bônus nas notas do ves­ vestibular indígena. Realizamos exames
e estudantes, é criar conhecimento que tibular que estagnou em um patamar de em vários lugares do país e hoje temos 23
beneficie a humanidade. Se a universida­ ingresso de 30% de estudantes de es­ etnias diferentes entre nossos 70 alunos
de ganhar algum dinheiro, tanto melhor. colas públicas, o que dava 18% a 20% indígenas. Abriu-se a possibilidade de in­
de pretos, pardos e indígenas. Foi feita gresso de alunos vencedores de alguma
A Unicamp também é referência em uma tentativa de aumentar o bônus, o medalha olímpica científica. Também
criação de startups. Qual é o impacto que ampliou a média de estudantes de criamos a cátedra Sérgio Vieira de Me­
delas no ambiente da universidade? escolas públicas, mas em cursos de alta lo, que permite a refugiados solicitar o
Elas são algo em torno de 700 empresas, demanda gerou uma distorção imensa. ingresso na universidade sem a neces­
quase R$ 6 bilhões de faturamento anual. Alunos de escolas privadas praticamente sidade do vestibular.
Usamos também esses dados para mos­ não conseguiam entrar. Concluímos que
trar para a sociedade que o investimento era preciso buscar novas alternativas. Atrair alunos de perfil heterogêneo não
na universidade pública dá resultados exige esforços para que eles resolvam
concretos. O orçamento dessas empre­ E como se chegou a essa nova combi- deficiências de formação?
sas é mais do que o dobro do que a uni­ nação de formas de ingresso? Esse é o bom desafio. A deficiência do
versidade recebe por ano. O impacto vai Em 2016, houve uma greve, com uma ensino fundamental é um problema sé­
muito além disso. As startups mantêm demanda estudantil na questão das cotas rio. A universidade precisa acompanhar
vínculos com a universidade e isso gera etnorraciais. Resolvemos enfrentar essa os ingressantes, verificar suas dificulda­
uma retroalimentação muito positiva. questão de maneira a ampliar a partici­ des e eventualmente repensar currículos
Faz com que estudantes sejam contra­ pação de pretos, pardos e indígenas na para se adaptar a essa realidade, que, afi­
tados por elas ou que tenham ambição e universidade, aumentar a inclusão so­ nal, é a realidade em que vivemos.
vontade de criar suas próprias empresas. cial e manter a excelência. Antes disso,
foi criado o ProFis, um programa muito Não há o risco de que esses alunos não
É papel da universidade engajar-se, co- inovador no que diz respeito à aceitação consigam se manter lá dentro?
mo fez a Unicamp, no acompanhamento Além de eventuais dificuldades acadê­
do desastre de Brumadinho e do mas- micas, temos também outros desafios,
sacre na escola de Suzano? principalmente o financeiro. Temos in­
A universidade tem compromisso com vestido muito em programas de perma­
a sociedade, que pode ter várias dimen­ nência, incluindo bolsas de auxílio social,
sões. A principal é mostrar como os re­ moradia, transporte, alimentação. Temos
cursos investidos se revertem para a pró­ feito ações para compreender a evasão
pria sociedade. Outra dimensão envolve em nossos cursos e diminuí-la ao máxi­
essas ações específicas, uma vez que te­ A meta é atrair mo. Naturalmente, ao ampliar o perfil de
mos especialistas em praticamente todas estudantes da universidade esses desa­
as áreas do conhecimento e do saber. talentos que fios ficam mais complexos, mas é vital
Alguns pesquisadores têm capacidade que os enfrentemos para termos uma
e vontade de ir para as comunidades,
não entrariam na universidade cada vez melhor.
atuar direto com o público. Outros po­ universidade
dem atuar na divulgação da ciência. Cada Não pode haver prejuízo à excelência?
um dá sua contribuição. Essa diretriz não pelos caminhos Nosso objetivo é atrair jovens talentosos,
busca apenas dar resposta aos desastres, mas que não entrariam na universida­
mas atuar em prevenção e capacitação. tradicionais. de pelos caminhos tradicionais. Temos
cerca de 600 mil jovens que se formam
A Unicamp criou formas de ingresso
O funil é estreito todo ano no ensino médio público no
além do vestibular tradicional. O que e muita gente estado de São Paulo. As três universi­
muda com essas iniciativas? dades estaduais paulistas juntas ofere­
A ideia é trazer os melhores estudantes boa fica de fora cem algo como 12 mil vagas. O funil é
de todo o país e atrair algo que é funda­ estreito demais e muita gente boa fica
mental para a universidade, que são no­ de fora. A ideia é aproveitar melhor es­
vas culturas, outras maneiras de pensar ses talentos. Queremos que as oportu­
e de ver o mundo. A diversidade de sabe­ nidades façam diferença na vida desses
res é oxigênio para uma universidade de jovens e na do país. n Fabrício Marques

pESQUISA FAPESP 279  z  51


ciência  COSMOLOGIA y

O limite
do visível
Rede internacional de radiotelescópios produz a
primeira imagem dos arredores de um buraco negro

Ricardo Zorzetto

P
ōwehi. A expressão significa A mancha escura envolta pelo anel gramados para funcionar como se fos-

imagens 1 event horizon telescope collaboration 2 NASA / ESA / Hubble Heritage Team (STScI/AURA) / P. Cote (Instituto
algo como “criação adornada, iluminado no centro da M87 é a sombra sem um radiotelescópio com o tamanho
sombria e imensurável” e apa- deixada pelo horizonte de eventos, re- da Terra (ver infográfico na página 54).

de Astrofísica Herzberg) e E. Baltz (Universidade Stanford) 3 e 4 NASA / CXC / Villanova University / J. Neilsen
rece algumas vezes no Kumu- gião a partir da qual a gravidade cresce “Vimos o que se pensava ser invisí-
lipo, cântico havaiano do século XVIII absurdamente e captura tudo o que es- vel”, afirmou o astrônomo norte-ame-
que narra em 2.102 versos a origem do tá por perto – a matéria e a energia que ricano Sheperd Doeleman, diretor do
mundo. Pōwehi foi o termo escolhido por atravessam o horizonte de eventos ter- projeto EHT, ao apresentar a imagem
Larry Kimura, professor de línguas na- mina comprimida em um único ponto, na conferência de imprensa realizada
tivas na Universidade do Havaí, Estados chamado pelos físicos de singularidade. em Washington, Estados Unidos. “Con-
Unidos, para nomear a imagem de algo O anel, tingido artificialmente com cores seguimos algo que se presumia ser im-
jamais visto anteriormente: a vizinhança que vão do amarelo-claro ao vermelho, possível há apenas uma geração”, disse
de um buraco negro. é a porção mais interna de um disco de Doeleman, que é pesquisador do Centro
Apresentada em uma conferência de gás ultra-aquecido, que espirala na vi- de Astrofísica Harvard & Smithsonian,
imprensa realizada em 10 de abril, a ima- zinhança do horizonte de eventos antes em Massachusetts.
gem revela um círculo colorido ligeira- de ser capturado e perder contato com o Buracos negros são os objetos mais
mente desfocado, ao redor de uma região Universo. É o brilho desse gás que per- insólitos do Universo. Sua existência
central enegrecida (ver página ao lado). mite delinear a sombra do horizonte de só começou a ser imaginada a partir de
Ela resulta da primeira observação da- eventos do buraco negro. 1916, depois que o físico e astrônomo
quilo que é possível enxergar nas proxi- A imagem é a evidência mais direta alemão Karl Schwarzschild (1873-1916)
midades de um buraco negro. No caso, o da existência de um buraco negro. Ela publicou uma solução, obtida entre as
buraco negro do centro da galáxia Mes- resulta do esforço de mais de 200 pes- batalhas contra a Rússia na Primeira
sier 87 (M87), situada no céu em direção quisadores do projeto Telescópio Ho- Guerra Mundial, para as equações da
à constelação de Virgem. O nome Pōwehi rizonte de Eventos (EHT), consórcio teoria da relatividade geral, de Albert
ainda precisa ser submetido à aprovação internacional que usou dados de oito ob- Einstein (1879-1955). A solução que Sch-
da União Astronômica Internacional an- servatórios de radioastronomia situados warzschild encontrou definiu a distância
tes de ser formalmente adotado. em diferentes pontos do planeta, pro- a partir da qual um corpo de massa muito

52  z  maio DE 2019


Imagem dos arredores do
buraco negro no centro
da galáxia M87 reconstruída
a partir de sinais de
micro-ondas captados por
radiotelescópios

Radiação eletromagnética

Raios gama Raios X Ultravioleta Infravermelho Micro-ondas Ondas de rádio


Luz visível

A luz e os telescópios

A radiação eletromagnética
é uma forma de energia que
oscila perpendicularmente
ao sentido de propagação.
Ela abrange dos raios gama,
que vibram muito
rapidamente e são
extremamente energéticos,
às ondas de rádio, que
oscilam lentamente e têm
pouca energia. O olho
humano capta uma estreita
faixa dessa radiação, a luz
visível. Diferentes tipos de
telescópios observam faixas
distintas de radiação.
Região central da M87 e o jato de Os radiotelescópios são
partículas vistos pelo observatório antenas parabólicas que
espacial Chandra, que detecta A galáxia e um dos jatos de partículas e captam a energia na faixa
raios X radiação que emana da vizinhança de seu de micro-ondas e rádio.
buraco negro, observados pelo telescópio Programas de computador
espacial Hubble em luz visível e infravermelho as convertem em imagem

pESQUISA FAPESP 279  z  53


niel Dutra, da Universidade Federal de
Um megarradiotelescópio Santa Catarina (UFSC). “Contudo, ter
uma imagem do horizonte de eventos
Oito telescópios situados em quatro países, além da Antártida, nos dá uma confiança de que dificilmen-
funcionaram em rede, como se fossem um só equipamento te seria alcançada com indícios indire-
tos, por mais numerosos que fossem.”
Embora o buraco negro da M87 tenha
Centros de análise de dados 4 EUA (arizona) 5 Espanha
uma massa extremamente elevada, cerca
SMT PV 30m
de 6,5 bilhões de vezes maior que a do
Telescópio Telescópio de
1 eua (Havaí) Submilimétrico 30 metros Sol, é difícil observar o brilho do gás a
JCMT do pico Veleta
sua volta. É que esse buraco negro está
Telescópio James
Clerk Maxwell
tão distante (sua luz levou 55 milhões
SMA
de anos para chegar ao nosso planeta) e
Arranjo a sombra de seu horizonte de eventos é
Submilimétrico tão pequena (tem tamanho comparável
4 ao de uma laranja na superfície da Lua
2 México
Bonn vista a partir da Terra) que só recente-
Boston mente se conseguiu uma estratégia pa-
LMT
Grande 5 ra enxergar os seus limites. Para isso, a
Telescópio
Milimétrico
equipe do EHT teve de aprender a fazer
1 2 os oito radiotelescópios funcionarem em
conjunto e desenvolver algoritmos para
3 CHILE tratar os dados e reconstruir a imagem
APEX 3 (ver reportagem na página 94).
Experimento

C
Pathfinder do
Atacama om base nos cálculos da relativi-
ALMA dade geral, esperava-se que, se o
Grande Arranjo buraco negro estivesse imerso em
Milimétrico/
Submilimétrico uma região brilhante, como o interior
do Atacama de um disco de gás incandescente, se-
ria possível observar uma sombra com
determinada forma e tamanho. Jamais,
porém, havia-se conseguido telescópio
5.000 TB com resolução suficiente para registrá-la.
As observações que permitiram gerar
de dados foram transportados 6 Antártida
SPT
essa imagem apresentada agora foram
para os EUA e a Alemanha por
Telescópio realizadas em abril de 2017 e produzi-
avião para construir a imagem
6
do polo Sul ram cerca de 5 petabytes de dados (5
mil terabytes ou 5 mil anos de música
guardada em arquivos digitais), armaze-
elevada passaria a atrair tudo o que está nados em centenas de discos rígidos de
ao redor. Essa distância, chamada de raio memória e transportados de avião para
de Schwarzschild, é tão maior quanto dois centros de análise. Nesses centros,
mais elevada a massa concentrada na O buraco negro as equipes trabalharam por dois anos
singularidade e determina o horizon- para correlacionar os dados dos dife-
te de eventos do buraco negro. Quando da M87 tem rentes observatórios e fazer as devidas
esses resultados foram apresentados, correções. A interpretação dos dados e a
Einstein e outros físicos o acharam in-
massa 6,5 bilhões estratégia de análise foram apresentadas
teressante, mas improvável de ocorrer de vezes em seis artigos científicos publicados em
na natureza. Apenas meio século mais abril em uma edição especial da revista
tarde, a partir da publicação de estudos maior que a do The Astrophysical Journal Letters.
teóricos de corpos com massa elevada “A imagem obtida pela equipe do EHT
em rotação e d​a observação​​​​​ de objetos Sol e está a 55 representa o limite de nosso conheci-
celestes compatíveis com buracos ne- mento”, afirma o físico teórico Bruno
gros, é que se começou a levar a sério a
milhões de Carneiro da Cunha, da Universidade Fe-
possibilidade de esses objetos existirem. anos-luz da Terra deral de Pernambuco (UFPE).
“Desde as décadas de 1960 e 1970 ha- Ainda que não tenha nitidez perfeita,
via evidências indiretas da existência ela é considerada um feito científico por
desses objetos”, conta o astrofísico Da- duas razões. A primeira é que permite

54  z  maio DE 2019


2

Anatomia de um buraco negro


Como se estruturam os objetos mais enigmáticos do Cosmo

Disco de acreção horizonte


de eventos
Os buracos negros são corpos
extremamente densos. jato de
partículas e
Concentram uma massa muito radiação
elevada (milhões a bilhões
de vezes maior que a do Sol) em
uma região ínfima, a singularidade.
Como resultado, deformam o
espaço-tempo e atraem tudo o que
está próximo. São alimentados por
um disco de gás superaquecido
(disco de acreção) que, atraído
pela gravidade, espirala
ao redor do horizonte de eventos,
região a partir da qual nada escapa.
Ao rotacionar, o buraco negro
arrasta o disco e distorce seus
campos magnéticos, criando jatos
de partículas e radiação.
singularidade

estimar com mais precisão as caracte- Teórica da Universidade Estadual Paulis- comportamento do disco de matéria que
rísticas do buraco negro da M87 – antes, ta (IFT-Unesp). Em setembro de 2015, o alimenta os buracos negros. “Ainda há
por exemplo, calculava-se que sua massa Observatório Interferométrico de On- muito por compreender. Por exemplo:
fosse 3,5 bilhões de vezes maior que a do das Gravitacionais (Ligo), nos Estados como são criados os jatos emitidos por
Sol. A segunda e mais importante é que Unidos, havia obtido indícios indiretos alguns buracos negros, como o da galá-
ela confirma que a teoria da relatividade ao detectar ondas gravitacionais geradas xia M87”, diz.
geral passou por mais um teste e permi- pela colisão de dois buracos negros (ver Espera-se para os próximos anos obter
te descrever com precisão até mesmo os Pesquisa FAPESP nº 241). imagens ainda mais nítidas da vizinhan-
infográficos 1 alexandre affonso 2 ESO / ESA / Hubble / M. Kornmesser / N. Bartmann

fenômenos mais extremos do Universo. Avery Broderick, pesquisador do Ins- ça do buraco negro da M87. Três outros
O primeiro teste foi a observação há 100 tituto Perimeter e da Universidade de radiotelescópios devem integrar a rede
anos da curvatura da luz ao passar pró- Waterloo, ambos no Canadá, afirmou e aumentar em cerca de 30% seu poder
ximo ao Sol, medida durante o eclipse durante a conferência de imprensa em de resolução. Antes, porém, talvez seja
de 1919 (ver Pesquisa FAPESP nº 278). Washington que a teoria da relatividade apresentada outra imagem: a dos arredo-
“O fato de se haver observado o ho- geral faz uma predição precisa dos com- res do buraco negro no centro da nossa
rizonte de eventos com o tamanho es- ponentes do buraco negro. Os dados ob- galáxia, a Via Láctea. Conhecido como
timado a partir de cálculos da teoria da tidos pelo Ligo e pelo EHT, prosseguiu Sagitário A*, ele tem massa 4,1 milhões
relatividade geral deve reduzir brutal- o pesquisador, indicam que os buracos de vezes maior do que a do Sol e está
mente a atenção dada a teorias de gravi- negros, com massa elevada ou pequena, situado 2 mil vezes mais perto da Terra
tação alternativas à de Einstein”, avalia guardam analogias importantes e devem do que o buraco negro da M87. Segun-
o astrofísico teórico Rodrigo Nemmen, se comportar do mesmo jeito. do Doeleman, essas imagens são mais
da Universidade de São Paulo (USP). Segundo a astrofísica brasileira Lia complexas e a equipe do EHT ainda tra-
“A observação da mancha no centro Medeiros, integrante da colaboração balha nelas. n
da M87 é considerada a evidência mais EHT e atualmente pesquisadora da Uni-
direta da existência de buracos negros, versidade do Arizona, Estados Unidos,
embora não seja a única”, explica o físi- os resultados apresentados agora ajuda- Os artigos científicos consultados para esta reportagem
co George Matsas, do Instituto de Física rão a conhecer melhor a geometria e o estão listados na versão on-line.

pESQUISA FAPESP 279  z  55


FÍSICA y grupo de Olivier Dulieu, da Universidade
Paris-Sud, na França, a equipe da USP
repetiu o procedimento quase 20 vezes,
diminuindo progressivamente a energia
fornecida às partículas até que elas qua-
se não vibrassem mais. Com a estratégia,

Super-refrigerador foi possível baixar a temperatura de 74%


das 10 mil moléculas de rubídio, rela-
taram os pesquisadores em um artigo
publicado em março na Physical Review

de partículas
Letters. “O experimento funcionou como
prova de princípio. Espero que estimu-
le outros grupos a tentar reproduzi-lo”,
conta Marcassa.
A estratégia reduziu a vibração das
partículas, mas só parcialmente a rota-
Grupo de São Carlos desenvolve ção. “É um método mais simples do que
os anteriores e uma alternativa interes-
estratégia mais simples de produzir sante”, afirma o físico Marcio Miranda,
da Universidade Federal de Pernambu-
moléculas ultrafrias co (UFPE), que participou da produção
das primeiras moléculas ultrafrias, em
2008, nos Estados Unidos. “Ainda é pre-

A
ciso melhorar o controle sobre a rotação
produção de moléculas ultra- propriedade do mundo das partículas: a das moléculas.” n Ricardo Zorzetto
frias, mantidas a temperaturas tendência de se manterem sempre com
próximas ao zero absoluto ou o nível mais baixo de energia possível.
zero Kelvin (-273,15o), ocorre Em um primeiro momento, eles co-
Projeto
em muitas etapas e exige o uso de vários meçaram usando o laser para fornecer
Manipulation of atomic collisions in optical traps (nº
feixes de laser, além de equipamentos energia às moléculas. Isso as torna exci- 13/02816-8); Modalidade Projeto Temático; Pesqui-
caros, que custam alguns milhões de dó- tadas e as faz vibrar mais. Na sequência, sador responsável Luis Gustavo Marcassa (IFSC-USP);
lares, disponíveis em poucos laboratórios porém, elas perdem energia emitindo luz Investimento R$ 1.487.738,55.

no mundo. Esse quadro pode começar e voltam para um estado menos energé- Artigo científico
PASSAGEM, H. F. et al. Continuous loading of ultracold
a mudar. No Instituto de Física de São tico, às vezes de energia inferior ao do ground-state 85Rb2 molecules in a dipole trap using a
Carlos (IFSC) da Universidade de São estado inicial. Com base em cálculos do single light beam. Physical Review Letters. 26 mar. 2019.
Paulo (USP), a equipe de Luis Marcassa
desenvolveu uma estratégia mais sim-
ples de resfriar moléculas – os físicos
se interessam por elas porque permitem
testar propriedades fundamentais das
partículas, realizar operações de com-
putação quântica e tentar otimizar as
reações químicas. Com um feixe de laser
e aparelhos que, juntos, somaram US$
150 mil, o grupo da USP gerou moléculas
de dois átomos de rubídio à temperatura
de 10 microKelvin (10 milionésimos de
grau acima do zero absoluto).
A novidade está na forma de resfriar
as moléculas. Os experimentos anterio-
res usavam um feixe de laser para redu-
zir a velocidade de moléculas até quase
dennis s. k. / wikimedia commons

pará-las. A freada as faz perder energia e


vibrar menos (quanto menor a vibração,
mais baixa a temperatura), mas exige a
ação de mais feixes de laser e de outras
técnicas para controlar a rotação das mo-
léculas. Marcassa e sua equipe tiveram
a ideia de resfriá-las aproveitando uma Ampola contendo rubídio, metal utilizado na produção de moléculas ultrafrias

56  z  maio DE 2019


PATRIMÔNIO y

A provável
origem das
chamas

Fogo em aparelho do auditório se alastrou e destruiu a sede do museu em setembro de 2018

Laudo aponta sobrecarga que desabou quando o teto do térreo Carlos Alberto Trindade, outro perito da
ruiu e foi destruído pelo avanço do fogo. PF no vídeo, “nem portas corta-fogo, que
em ar-condicionado e A sobrecarga gerou faíscas e fogo por- impedissem a propagação da fumaça”.
que os três aparelhos estavam ligados a Se visitantes ainda estivessem no mu-
falhas do sistema elétrico um só disjuntor, dispositivo que desli- seu quando o incêndio começou, a tra-
como causas do incêndio ga automaticamente o circuito elétrico gédia poderia ter sido maior, porque, em
quando a intensidade da corrente supera fotos anteriores à destruição, os peritos
do Museu Nacional a que pode ser suportada. “Deveria ha- não identificaram sinalização que indi-
ver um disjuntor para cada máquina”, casse as rotas de fuga nessas situações.
disse o perito criminal Marco Isaac no Por ausência de indícios, a equipe da PF

I
vídeo da apresentação. “A instalação não descartou outras causas, como descarga
nstalações elétricas irregulares foram seguia a recomendação do fabricante atmosférica, queda de balão ou incêndio
a provável causa do incêndio que des- [dos aparelhos].” intencional. A divulgação do laudo encer-
truiu a sede do Museu Nacional (MN), No início da noite do domingo em que ra a investigação sobre a causa do incên-
no Rio de Janeiro, na noite de 2 de o incêndio começou, “o ar-condicionado dio, mas os peritos ainda trabalham para
setembro de 2018 (ver Pesquisa FAPESP era o único equipamento do auditório determinar se houve responsáveis pelo
nº 272), de acordo com o laudo da Polícia que estava energizado, em stand by, es- incidente. “Apesar de não termos exami-
Federal (PF) apresentado em 4 abril. perando comando do controle remoto”, nado com cuidado o laudo, a diretoria do
Durante quase uma hora, na Superinten- comentou, na apresentação, o também museu não tem capacidade técnica para
dência da PF, no Rio, os peritos que par- perito criminal Marco Antônio Zatta. se posicionar sobre ele”, disse o paleon-
ticiparam da investigação descreveram Ele apontou outra irregularidade: “Não tólogo Alexander Kellner, diretor do MN.
como examinaram as áreas queimadas identificamos aterramento [elétrico], que Logo após o incêndio, o governo fe-
por meio de fotos aéreas, imagens es- tem a função de auxiliar o escoamento deral anunciou a aprovação de R$ 10
caneadas e escavações até concluírem da corrente, em caso de falhas”. milhões para a reconstrução, estimada
que o incêndio deve ter começado com Os especialistas verificaram que os ex- entre R$ 50 milhões e R$ 100 milhões.
uma sobrecarga elétrica no aparelho de tintores estavam funcionando, mas não Por meio de uma emenda parlamentar
Ana Carolina Fernandes

ar-condicionado mais próximo do palco havia hidrantes de parede, sprinklers apresentada por deputados do Rio de
do auditório do andar térreo. O auditório (chuveiros ativados automaticamente Janeiro, o governo federal aprovou ou-
encontrava-se abaixo da sala que abriga- em caso de fumaça) e alarme de incêndio. tros R$ 55 milhões. “Vamos começar a
va o Maxakalisaurus topai, fóssil de um “Perdemos o museu por não haver dispo- reconstrução ainda neste ano”, afirma
dinossauro de 13 metros de comprimento sitivo de detecção de incêndio”, observou Kellner. n Carlos Fioravanti

pESQUISA FAPESP 279  z  57


ECOLOGIA y

Sem ferrão
e muito
sensíveis
Larvas de abelhas nativas
se mostraram menos
resistentes a inseticidas
do que as de Apis mellifera,
de origem europeia

Carlos Fioravanti

As abelhas jataí se
tornam mais lentas
e voam menos sob a
ação de agrotóxicos

58  z  maio DE 2019


D
epois de uma intensa mortanda- no alimento de larvas de uma espécie Brasil. De acordo com esse documento,
de de abelhas no início dos anos de abelha nativa sem ferrão, a canudo as abelhas realizam 66% dos trabalhos
2000, causada possivelmente (Scaptotrigona depilis). Sobreviveram de polinização, ao lado de besouros, bor-
pelo uso excessivo de inseticida apenas 40% das larvas tratadas com a boletas, mariposas, aves e morcegos.
no campo, o Instituto Brasileiro do Meio dose mais alta de inseticida, enquanto As abelhas sem ferrão – na verdade,
Ambiente e dos Recursos Naturais Re- no grupo controle, que não recebeu in- com ferrão atrofiado – voam em prati-
nováveis (Ibama) convidou os biólogos seticida, sobreviveram 80%, como deta- camente toda a América Central e do
Osmar Malaspina, da Universidade Es- lhado em um artigo publicado em 2016 Sul, África, Sudeste Asiático e norte da
tadual Paulista (Unesp), de Rio Claro, e na revista Apidologie. Austrália. “Elas vivem em matas próxi-
Roberta Nocelli, da Universidade Federal Em 2018, ela participou de um estudo mas às plantações, como Apis, são menos
de São Carlos (UFSCar), para aprofundar na Unesp realizado pela bióloga Adna numerosas e visíveis, percorrem áreas
os estudos sobre a situação das abelhas no Dorigo, que avaliou o efeito de dime- menores, porém entram em cultivos agrí-
Brasil. Em 2017, o governo aprovou uma toato, usado como referência interna- colas”, diz Malaspina. Diante do risco
lei estabelecendo que os agrotóxicos a cional em testes de toxicidade, na uruçu de redução contínua das populações de
serem comercializados no Brasil devem nordestina (Melipona scutellaris). Nesse abelhas, ele argumenta: “Como os agro-
passar por testes de avaliação de risco em trabalho, publicado em março de 2019 na tóxicos ainda são indispensáveis para
abelhas Apis mellifera, espécie adotada revista científica PLOS One, a concen- manter o tamanho da safra agrícola, os
internacionalmente nos testes dessa na- tração letal capaz de matar 50% de uma fabricantes de defensivos e os produtores
tureza, por viver em quase todo o mundo. população de larvas de uruçu foi 320 ve- rurais deveriam investir mais em agro-
No entanto, a mortalidade continuou. De zes menor que a de larvas de Apis. Em químicos menos tóxicos ou em produtos
dezembro de 2018 a fevereiro de 2019, o novos estudos, ainda preliminares, larvas biológicos mais seletivos”.
Rio Grande do Sul registrou 400 milhões de outra espécie de abelha sem ferrão, “Se usados adequadamente, por meio
de Apis mortas, Santa Catarina 50 mi- a mandaguari (Scaptotrigona postica), de aplicações aéreas com empresas cer-
lhões, Mato Grosso do Sul 45 milhões e morreram com uma concentração letal tificadas, os defensivos agrícolas não
São Paulo 5 milhões. Os inseticidas usados ainda menor do que a da uruçu. causam impacto sobre as abelhas”, diz
para matar pragas das plantações são uma a advogada Renata Camargo, coordena-
das causas da redução das populações de mudanças de comportamento dora de sustentabilidade da União da
abelhas no mundo, ao lado da diminuição Na Escola Superior de Agricultura Luiz Agroindústria Canavieira do Estado de
das áreas de florestas e das mudanças de Queiroz da Universidade de São Pau- São Paulo (Unica), que representa 120
climáticas (ver Pesquisa FAPESP no 271). lo (Esalq-USP), a bióloga Cynthia Jacob usinas produtoras de açúcar e álcool.
O grupo de trabalho criado pelo Ibama reforçou as conclusões sobre os efeitos Em junho de 2017, a Unica e a Organi-
para avaliar o risco de agrotóxicos con- de defensivos agrícolas em abelhas sem zação de Plantadores de Cana da Região
cluiu que era necessário incluir abelhas ferrão ao verificar que o tiametoxam e Centro-Sul do Brasil (Orplana) assina-
sem ferrão que fossem representativas outros três inseticidas do grupo dos neo- ram um acordo com órgãos do governo
das cerca de 350 espécies exclusivas do nicotinoides podem causar mudanças paulista, o Protocolo Etanol Mais Verde,
Brasil. “Temos de criar metodologias de comportamento, como a redução da para, entre outros objetivos, promover
de análise de toxicidade para as abelhas velocidade de voo e da distância per- as boas práticas no uso de agrotóxicos e
nativas para não fazer apenas testes com corrida, de abelhas adultas jataí (Tetra- a proteção da vegetação nativa. n
Apis antes de lançar um produto novo”, gonisca angustula), de acordo com um
enfatiza Malaspina, coordenador do la- estudo publicado em fevereiro na revista
boratório de pesquisa sobre ecotoxico- Chemosphere. Projeto
logia de abelhas sociais do Instituto de Apis predominam como produtoras Padronização de método para testes de toxicidade em
Biociências da Unesp de Rio Claro. “Su- de mel e são essenciais como poliniza- larvas de abelhas sem ferrão em condições de laboratório,
e potenciais efeitos adversos provenientes do alimento
gerimos que os métodos para avaliação doras de laranja, soja, canola, algodão, larval contaminado com o neonicotinoide tiametoxam (no
de toxicidade durante o estágio imaturo entre outras culturas agrícolas, enquan- 16/00328-4); Modalidade Bolsa de Pós-doutorado; Pes-
de abelhas adotados para Apis para ava- to as sem ferrão favorecem a frutificação quisador responsável Osmar Malaspina (Unesp); Bolsista
Annelise de Souza Rosa; Investimento R$ 302.373,77.
liação de risco não podem ser aplicados de café, morango, maçã, pêssego, toma-
Artigos científicos
nas abelhas sem ferrão”, reitera a bióloga te e berinjela. O relatório Polinização,
DORIGO, A. S. et al. In vitro larval rearing protocol for the
Annelise Rosa-Fontana, pesquisadora polinizadores e produção de alimentos, stingless bee species Melipona scutellaris for toxicological
em estágio de pós-doutorado na Unesp organizado pela Plataforma Brasileira studies. PLOS One. v. 14, n. 3, e02113109. 20 mar. 2019.
em Rio Claro. de Biodiversidade e Serviços Ecossistê- JACOB, C. R. de O. et al. The impact of four widely used
neonicotinoid insecticides on Tetragonisca angustula
Em 2015, em um experimento de seu micos (BPBES) e pela Rede Brasileira (Latreille) (Hymenoptera: Apidae). Chemosphere. v.
doutorado na Universidade de São Pau- de Interações Planta-Polinizador (Re-
léo ramos chaves

224, p. 65-70. 18 fev. 2019.


lo (USP) em Ribeirão Preto, ela colocou bipp) e apresentado em fevereiro de ROSA, A. de S. et al. Consumption of the neonicotinoid
thiamethoxam during the larval stage affects the survi-
doses diferentes de um inseticida bastan- 2019, estimou em R$ 43 bilhões os ser- val and development of the stingless bee, Scaptotrigo-
te usado na agricultura, o tiametoxam, viços prestados pelos polinizadores no na aff. depilis. Apidologie. v. 47, n. 6, p. 729-38. Nov. 2016.

pESQUISA FAPESP 279  z  59


oncologia  y Células do
carcinoma medular
de tireoide, tumor
associado à
síndrome MEN2

Risco nifestações muito mais precoces e graves


da doença, exigindo intervenções mais
rápidas, enquanto outras se manifes­
tam de forma mais branda. A mutação

mapeado
M918T, por exemplo, é classificada como
de risco altíssimo e apareceu como a se­
gunda mais frequente entre os pacientes
estudados (quase 15% das famílias apre­
sentavam essa alteração genética). Aos
portadores dessa mutação é indicada a
retirada imediata da tireoide mesmo que
ainda não haja aparecimento de tumor.
A mutação mais comum entre os pa­
Estudo determina o perfil cientes brasileiros, presente em 43% das
famílias do levantamento, foi a C634,
genético de pacientes brasileiros que também apresenta risco elevado de
causar precocemente câncer de tiroide,
de doença rara que causa mas menor do que em pacientes com a
um tipo de câncer de tireoide M918T. No caso de mutações de manifes­
tação mais branda, como a V804, encon­
trada em 12,5% das famílias do estudo, a
retirada da tireoide, conduta necessária
Suzel Tunes para todos os casos de MEN2, pode ser
feita mais tarde.
Além de o grau de agressividade da
mutação ser importante para prever o
desenvolvimento do CMT, a demora no

U
diagnóstico também reduz as chances
m estudo multicêntrico deter­ foram encontradas diferenças regionais de cura. “Muitos casos são diagnostica­
minou o perfil das mutações no perfil das alterações genéticas, que dos tardiamente, o que contribui para a
que provocam na população seriam um reflexo da miscigenação do mortalidade e morbidade dos pacien­
brasileira a rara síndrome he­ povo brasileiro, devido à sua ancestra­ tes”, afirma a endocrinologista Ana Lui­
re­ditária conhecida como neoplasia en­ lidade europeia, indígena e africana. Os za Maia, chefe da Unidade de Tireoide
dócrina múltipla tipo 2, ou simplesmente resultados do estudo, que encontrou 13 do Hospital de Clínicas de Porto Alegre,
MEN2, que acomete em média uma a diferentes tipos de mutações nesse gene, vinculado à Universidade Federal do Rio
cada 80 mil pessoas. Em quase 100% dos foram publicados na edição de março da Grande do Sul (UFRGS), outra coordena­
casos, a doença ocasiona o surgimento do revista científica Endocrine Connections. dora do estudo, denominado BrasMEN.
carcinoma medular de tireoide (CMT), Determinar a mutação no gene RET O estudo contou com financiamento das
tumor maligno que pode levar à morte que causa a MEN2 e, por extensão, o fundações de amparo à pesquisa de São
se não for tratado precocemente. Com carcinoma medular de tireoide, é fun­ Paulo e do Rio Grande do Sul.
menor frequência, também pode originar damental para o estabelecimento de Um dos dados mais interessantes
outros tumores endócrinos, como na um provável prognóstico da evolução produzidos pelo trabalho diz respeito à
medula da suprarrenal e nas glândulas do tumor. “Existe uma relação entre o prevalência no país da mutação G533C,
paratireoides. A MEN2 é causada por tipo da mutação e o quadro clínico dos descoberta por Maciel e colaboradores
diferentes mutações em um gene, o RET. pacientes”, explica o endocrinologista em 2002. Essa alteração estava presente
Segundo o trabalho, que determinou a Rui Monteiro de Barros Maciel, da Uni­ em 0,6% das famílias participantes do
variante desse gene presente em 176 fa­ versidade Federal de São Paulo (Unifesp) trabalho, frequência maior ou igual à
mílias que englobam 554 pacientes com e um dos coordenadores do estudo, que encontrada em países da Europa, com
CMT, as mutações mais frequentes no envolveu um consórcio de 46 pesqui­ uma única exceção: a Grécia, onde essa
país são, grosso modo, as mesmas descri­ sadores de 18 centros de referência do mutação é a mais comum. “Acreditáva­
tas na população europeia. No entanto, país. Algumas mutações provocam ma­ mos que outros indivíduos vivendo na

60  z  maio DE 2019


grafias e dosagens de calcitonina, hor­
mônio secretado pela tireoide que fun­
ciona como um marcador tumoral, pois
seus níveis aumentam quando o tumor se
instala. Hoje, um teste genético permi­
te identificar se o paciente tem alguma
mutação associada à MEN2.
Embora o tipo de mutação genética
seja um bom indicativo do prognóstico,
essa relação não é 100% determinan­
te e não se deve abrir mão de avaliação
individualizada de cada caso. Pessoas
com o mesmo tipo de mutação podem,
eventualmente, apresentar diferentes
evoluções da doença. “Encontramos em
uma família, por exemplo, portadores da
mesma mutação que apresentaram di­
ferentes quadros clínicos”, conta Maia.
Em um adolescente de 17 anos, o CMT
já havia se manifestado. Mas, em outro
membro da família, o tumor foi diagnos­
ticado tardiamente e o paciente morreu
aos 75 anos de outra causa.
“Esse estudo multicêntrico, apesar de
mais concentrado nas regiões Sudeste
e Sul, pode ser tomado como uma refe­
rência das mutações em pacientes bra­
sileiros com MEN2”, afirma a endocri­
nologista Denise Engelbrecht Zantut
Wittmann, do Serviço de Câncer de Ti­
reoide da Faculdade de Ciências Médicas
da Universidade Estadual de Campinas
(FCM-Unicamp), que não participou do
trabalho. Para José Augusto Sgarbi, pre­
sidente do Departamento de Tireoide da
Sociedade Brasileira de Endocrinologia
Europa poderiam apresentar a mesma mais de 350 anos. Levantamentos histó­ e Metabologia (Sbem), os resultados do
mutação devido ao fato de que a famí­ ricos baseados em narrativas orais e nos BrasMEN reforçam a necessidade de
lia em que descobrimos essa alteração arquivos de registros de nascimento e criação de políticas públicas, como o es­
genética ser originária de Barcelona, na batismo confirmaram a existência de um tabelecimento de um protocolo determi­
Espanha, e ter emigrado para o Brasil no ancestral comum que emigrou de Por­ nando a realização de exames genéticos
final do século XIX”, recorda-se Maciel. tugal para o Brasil em 1700 e participou nos pacientes diagnosticados com CMT
Em parceria com pesquisadores gregos, da colonização do Ceará. e em familiares próximos. “Hoje a Sbem
Maciel e seus colegas determinaram que recomenda que todos os indivíduos que
essa mutação era realmente originária do Teste genético tenham o carcinoma medular de tireoi­
povo helênico, de onde se espalhou para Para Maciel, o estudo do gene RET pode de realizem o teste genético”, comenta
o resto do continente europeu. trazer tranquilidade e melhorar a qua­ Sgarbi. O exame ainda não é coberto pelo
O BrasMEN fez também uma desco­ lidade de vida dos portadores de muta­ Sistema Único de Saúde (SUS). n
berta sobre a ancestralidade da síndrome ções que causam a MEN2. “Anos atrás,
no Vale do Jaguaribe, no Ceará. Nesse es­ quando uma pessoa era identificada com
tado, os pesquisadores encontraram uma câncer de tireoide decorrente dessa sín­ Projeto
rara mutação batizada de M918V em al­ drome, todos os membros da família fi­ Sequenciamento completo do exoma, Paired-end RNA e
genoma: Novos insights sobre a natureza genética do cân-
gumas famílias. “A princípio pensávamos cavam com uma nuvem escura pairando
SCIEPRO / SCIENCE PHOTO LIBRARY

cer de tiroide na idade adulta e na faixa etária pediátrica e


que se tratasse de famílias isoladas, mas sobre a cabeça. A MEN2 é uma doença aplicações na prática clínica (nº 14/06570-6) Modalidade
o estudo genético mostrou que todos os autossômica dominante: os descendentes Projeto Temático; Pesquisadora responsável Janete Maria
Cerutti (Unifesp); Investimento R$ 2.697.516,49. 
pacientes tinham um ancestral comum”, diretos do paciente têm 50% de risco
Artigo científico
diz Maciel. Estudos matemáticos indica­ de herdá-la”, lembra ele. Os familiares
MACIEL, R.M.B. et al. Genotype and phenotype landscape
ram que a mutação M918V acompanha a mais próximos do doente eram, então, of MEN2 in 554 medullary thyroid cancer patients: The
população local ao longo de 15 gerações, obrigados a fazer frequentes ultrassono­ BrasMEN study. Endocrine Connections. 1º mar. 2019.

pESQUISA FAPESP 279  z  61


novos Materiais y

A energia de
uma dupla
de metais
Nanopartículas de ouro revestidas de platina
podem melhorar a eficiência de catalisador
usado em células a combustível

Rafael Garcia

U
ma equipe do Centro de Pes­ O dispositivo formulado pelos pesqui­ dor também poderia ser mais barato,
quisas Avançadas em Grafeno, sadores da universidade paulista é for­ pois empregaria menores quantidades
Nanomateriais e Nanotecno­ mado por uma folha de óxido de grafeno de platina do que os dispositivos atuais,
logias (MackGraphe), da Uni­ ao qual são agregadas nanopartículas segundo os pesquisadores. “A platina é
versidade Presbiteriana Mackenzie, em de ouro revestidas por uma camada de muito cara e o processo de geração de
São Paulo, desenvolveu o protótipo de platina com um átomo de espessura. A combustível com esse tipo de catalisador
um catalisador bimetálico que poderia nanoestrutura peculiar, originada pela ainda é pouco eficiente”, diz Seixas. Es­
aumentar a eficiência de células a com­ junção das partículas dos dois metais, sas limitações estimularam a equipe do
bustível – dispositivos que convertem seria a responsável por aprimorar o de­ MackGraphe a usar seus conhecimentos
hidrogênio em eletricidade de forma sempenho do dispositivo. O segredo do sobre o grafeno e nanoestruturas para
silenciosa e sem emitir poluentes. Usual­ catalisador residiria na camada mono­ tentar manipular a platina e melhorar
mente feito de platina, um elemento raro atômica de platina sobre ouro, que au­ o processo de obtenção de hidrogênio.
e caro, o catalisador de células a com­ menta as propriedades eletrônicas do Nos experimentos e simulações, as
bustível estimula a quebra da molécula nanomaterial e sua capacidade de atuar nanopartículas de ouro recobertas por
de água (H2O) que libera átomos para como catalisador. “As nanopartículas uma folha de platina funcionaram co­
a formação de oxigênio e de hidrogê­ são arranjadas de maneira a formar um mo catalisador de forma superior à de
nio. Esse último gás é o responsável caroço de ouro de aproximadamente 1,2 estruturas feitas de partículas macros­
por alimentar a célula a combustível, nanômetro com uma casca de platina”, cópicas de platina, da liga ouro-platina e
que, como uma bateria elétrica, pode explica o físico teórico Leandro Seixas, até de nanopartículas apenas de platina.
ser usada para movimentar veículos. O do MackGraphe, um dos autores do estu­ “Quando colocamos a platina em cima
catalisador é incorporado aos eletrodos, do publicado em 29 de janeiro no perió­ do ouro, ela fica mais ativa que a platina
dispositivos que aplicam uma descarga dico ACS Applied Materials & Interfaces, pura”, comenta a química Camila Maro­
elétrica na água durante o procedimento que descreveu o processo de criação do neze, do MackGraphe, outra autora do
de eletrólise. Dessa forma, núcleos de dispositivo. Com a capa de platina e o estudo. “Esse foi um aspecto interessante
hidrogênio são estimulados a se ligarem interior de ouro, as nanopartículas atin­ que a teoria previu bem e comprovamos
uns aos outros, em vez de entrarem na gem no máximo 1,8 nanômetro. experimentalmente.” Para concluir a par­
formação de novas moléculas de água, Além de se mostrar mais eficiente te teórica do trabalho, os pesquisadores
que seria seu curso natural. nos testes realizados, o novo catalisa­ contaram com a infraestrutura do centro

62  z  maio DE 2019


nanopartículas de
ouro e platina

Ilustração mostra
nanopartículas
de ouro revestidas de
Óxido de grafeno
platina sobre folhas
de óxido de grafeno

de pesquisa em materiais bidimensionais físico Ennio Peres, da Universidade Esta­ é melhorar a eficácia da platina, como foi
da Universidade Nacional de Cingapura, dual de Campinas (Unicamp). “A energia feito no trabalho publicado agora. Outra
cujo supercomputador rodou simulações gerada pelo sol e pelo vento é intermi­ é achar substitutos para esse elemento.
sobre o novo material. Na frente expe­ tente e precisa ser armazenada para que “Um metal que estamos estudando, o
rimental, microscópios de transmissão possa ser utilizada nos picos de consumo. molibdênio, é muito mais barato do que
eletrônica do Centro Nacional de Pes­ Se aproveitarmos essa energia excedente a platina”, diz Seixas. “Quando combi­
quisa em Energia e Materiais (CNPEM), para produzir hidrogênio combustível, nado com o enxofre, o molibdênio fica
de Campinas, foram usados para ver as poderemos armazená-la para usar mais lamelar, ou bidimensional, assim como
nanoestruturas obtidas em laboratório. tarde, gerando eletricidade com células o grafeno.” O chamado dissulfeto de mo­
a combustível.” libdênio, explica o físico, pode ser então
Armazenar energia Antes de se aposentar, Peres dirigiu reestruturado na escala nanométrica, na
Conduzidas pela equipe do Mackenzie na Unicamp por mais de uma década o tentativa de se obter propriedades ele­
como ciência básica, as pesquisas de Laboratório de Hidrogênio (LH2), que trônicas diferentes. Esse composto vem
Seixas e Maroneze não geraram, ainda, originou a empresa Hytron, spin-off bra­ sendo mencionado com frequência na
patentes. A manipulação do ouro sobre sileira que atua no mercado de arma­ literatura científica da área e deve ser
a base de óxido de grafeno havia sido zenamento de energia com hidrogênio. objeto dos próximos trabalhos a serem
descrita em um estudo publicado no ano Segundo o pesquisador, no campo das publicados pelo grupo. n
passado na revista científica Nanoscale. aplicações práticas o custo dos catalisa­
A produção dessas nanopartículas é, po­ dores é uma questão crucial. Nas células
Projeto
rém, o estágio inicial em um movimen­ a combustível, que funcionam como os
Grafeno: Fotônica e optoeletrônica. Colaboração UPM-
tado cenário de inovação. O hidrogênio “motores” dos veículos e dos geradores, -NUS (nº 12/50259-8); Modalidade Auxílio à Pesquisa;
hoje é usado não apenas nos primeiros ainda não se arranjou substituto eficaz Programa Spec; Pesquisador responsável Antonio Helio
modelos de carros movidos a célula a para a platina. Há uma corrida tecnológi­ de Castro Neto (Universidade Presbiteriana Mackenzie);
ilustraçãO  fabio otubo

Investimento R$ 13.561.689,05 (para todo o projeto).


combustível, mas também em dispositi­ ca para tentar baratear esses dispositivos.
vos para armazenar energia. “A demanda O grupo de pesquisa do MackGraphe Artigo científico
por esse segundo tipo de aplicação deve trabalha em duas frentes, também adota­ GERMANO, L. D. et al. Ultrasmall (<2 nm) Au@Pt Na-
nostructures: Tuning the surface electronic states for
aumentar à medida que a energia solar das por equipes de várias universidades e electrocatalysis. ACS Applied Materials & Interfaces.
e a eólica também crescerem”, prevê o centros de estudos do mundo. Uma delas 29 jan. 2019.

pESQUISA FAPESP 279  z  63


tecnologia  ENGENHARIA HÍDRICA y

U
m dos estados brasileiros mais casti-

Para tirar gados pela falta de chuvas e escassez


hídrica, o Ceará prepara-se para cons-
truir a maior usina de dessalinização

o sal
de água marinha do país. Quando estiver pronto,
o empreendimento, cujo projeto foi iniciado em
2016, irá reforçar o sistema de abastecimento da
capital, Fortaleza, e dos municípios da região
metropolitana, uma mancha urbana onde vivem
mais de 4 milhões de pessoas. A expectativa da

da
Companhia de Água e Esgoto do Ceará (Cage-
ce), empresa de saneamento responsável pelo
projeto, é de que o edital de licitação seja lan-
çado ainda neste semestre. Os estudos técnicos,
operacionais, ambientais e econômicos que estão
sendo usados para a elaboração da concorrência

água
pública foram feitos por um consórcio liderado
pelo Grupo GS, da Coreia do Sul.
Ronner Gondim, superintendente de sustenta-
bilidade da Cagece, explica que a construção da
planta, prevista para começar a operar em 2022,
será feita a partir de uma parceria público-privada
(PPP), cujos detalhes serão definidos pelo edital.
O local de instalação ainda não foi escolhido, mas
cogita-se a praia de Mucuripe, próxima ao porto
de Fortaleza. A usina está sendo projetada para
produzir 1 metro cúbico (m3) de água por segundo
Ceará planeja construir (o equivalente a mil litros) – a Região Metropo-
litana de Fortaleza consome 8 m3 por segundo.
a primeira grande usina “Teremos um aumento de 12% na oferta de água
na região, o suficiente para abastecer cerca de
de dessalinização do país; 720 mil pessoas”, ressalta. O valor estimado do
novas tecnologias são projeto gira em torno de R$ 480 milhões.
“A empresa vencedora assumirá a construção e
pesquisadas no Brasil e no o direito de operação por 30 anos”, diz Gondim.
O governo cearense vai estipular uma tarifa má-
exterior para reduzir xima por litro de água dessalinizada. O vencedor
da licitação será quem oferecer a menor tarifa.
o custo do processo Hoje, o valor médio praticado pela Cagece para
tratar 1 m3 de água doce está em torno de R$ 3.
O custo médio da água dessalinizada ao redor do
Rodrigo de Oliveira Andrade mundo começa em US$ 2 (cerca de R$ 8) o metro
cúbico, a depender do processo usado.
A expectativa é de que a nova usina retire o
sal da água marinha por meio da técnica de os-
James Grellier / wikimedia commons

mose reversa, embora a definição final caiba ao


vencedor da licitação. Esse é o método de des-
salinização mais barato e usado no mundo. Nele,
uma bomba de alta pressão força a água a passar
por membranas poliméricas com orifícios mi-
núsculos, que retêm os sais. O gasto energético
desse processo chega a 4 quilowatts-hora (kWh)

64  z  maio DE 2019


Usina de
dessalinização
por osmose
reversa
de Barcelona,
na Espanha

pESQUISA FAPESP 279  z  65


por m3 de água purificada. A tecnologia represen- 15 kWh/m3. A principal fonte de energia térmica
ta 84% do total de operações de dessalinização usada no processo são combustíveis fósseis, como
no mundo. Israel é um dos pioneiros no uso do petróleo e gás, abundantes naquela região. O custo
sistema. A cada ano, 600 milhões de m3 de água da dessalinização térmica é por volta de três ve-
do mar são transformados em potável no país, zes maior do que o da técnica de osmose reversa,
atendendo as necessidades de 6,5 milhões de chegando a cerca de US$ 6 por m3 de água tratada.
pessoas, cerca de 75% da população israelense. Pesquisadores de vários países estudam no-
Atualmente 15,9 mil plantas de dessalinização vos sistemas de dessalinização mais eficientes
encontram-se em operação no planeta, com ca- e econômicos – o alto consumo de energia é o
pacidade para purificar cerca de 95 milhões de principal entrave para a adoção em larga esca-
m3 de água por dia, segundo estudo publicado em la da dessalinização, sobretudo em países em
dezembro de 2018 na revista Science of the Total desenvolvimento. Uma das novas tecnologias
Environment. Essas usinas estão localizadas prin- em estudo é a deionização capacitiva, proces-
cipalmente no Oriente Médio, norte da África, so eletroquímico que retém os íons da água no
Estados Unidos, China e Austrália. Na Europa, a momento em que ela passa entre dois eletrodos
Espanha é o principal país a usar a tecnologia. A porosos de carbono eletricamente carregados. “A
planta de Barcelona, na costa do Mediterrâneo, deionização capacitiva ainda está em desenvol-
com capacidade para processar 2,3 m3 de água vimento, mas tem se mostrado promissora. No
por segundo, é uma das principais do continente. caso da dessalinização de águas salobras, é até
mais barata do que a osmose reversa”, diz o en-
CUSTO É ENTRAVE genheiro químico Luís Augusto Martins Ruoto-
Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos estão lo, do Departamento de Engenharia Química da
entre os países que mais usam a tecnologia para Universidade Federal de São Carlos (UFSCar).
a produção de água potável a partir da água do No mundo, os principais grupos dedicados a es-
mar. A maior usina do mundo, a de Ras Al-Khair, sa técnica estão na Universidade Stanford, no
com produção de 1 milhão de m3 de água por dia Laboratório Nacional Lawrence Livermore, no
(11,5 m3 por segundo), fica na Arábia Saudita. A Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT),
técnica mais comum por lá é a dessalinização todos nos Estados Unidos, e no Centro Europeu
térmica, na qual a água salgada é armazenada de Excelência em Tecnologias para Água Sus-
em tanques aquecidos. Quando evapora, acu- tentável (Wetsus), na Holanda.
mula-se na parte superior do reservatório e, ao Segundo Ruotolo, a principal vantagem des-
se condensar, transforma-se em água pura, sem se sistema é que, ao contrário da osmose reser-
os sais (ver infográfico na página 67). va, pressões elevadas não são necessárias para a
Um dos problemas da dessalinização térmica é operação do equipamento. “Isso implicaria uma
a elevada demanda de energia, que pode chegar a diminuição da demanda energética e dos custos

Governo cria centro de pesquisa para o setor


Instituição irá avaliar o desempenho de dessalinizadores usados no país

A fim de impulsionar o desenvolvimento Laboratório de Referência em interessadas em enviar seus sistemas


e uso de dessalinizadores no Brasil, Dessalinização da Universidade Federal para avaliação de desempenho. Por ora,
o governo federal anunciou em janeiro de Campina Grande (UFCG). sete companhias foram selecionadas,
deste ano a criação do Centro de Testes “O objetivo do centro é avaliar o grau todas brasileiras.
de Tecnologia de Dessalinização (CTTD), de maturidade tecnológica dos Medeiros esclarece que o governo
com sede no Instituto Nacional do dessalinizadores em operação no país e ainda não anunciou o valor total a ser
Semiárido (Insa), em Campina Grande, dos equipamentos ainda em repassado ao novo empreendimento,
na Paraíba. O instituto é uma das desenvolvimento”, afirma o engenheiro que começou a operar em abril.
unidades de pesquisa do Ministério da agrícola Salomão Medeiros, diretor A iniciativa também pretende estimular
Ciência, Tecnologia, Inovações e do Insa. “Isso será feito por meio de o intercâmbio de conhecimento
Comunicações (MCTIC). A criação do testes de eficiência dos aparelhos sobre dessalinização entre pesquisadores
CTTD foi uma das 35 metas prioritárias e da avaliação da qualidade da brasileiros e israelenses. “O domínio
da administração federal para os dessalinização, gasto de energia, dessa tecnologia é estratégico em
primeiros 100 dias de governo. Os custo de manutenção, entre outros qualquer país, mesmo naqueles com
pesquisadores do novo órgão também parâmetros.” Para isso, o governo lançou abundância de água, como o Brasil”,
contam com a infraestrutura do uma chamada pública para empresas destaca o diretor do Insa.

66  z  maio DE 2019


Processos de dessalinização
Conheça as principais técnicas existentes e os métodos em desenvolvimento

Osmose Reversa DESSALINIZAÇÃO TÉRMICA DEIONIZAÇÃO CAPACITIVA


Sob alta pressão, a água no mar passa A água salgada é aquecida e evapora, Nesse processo eletroquímico, o líquido
por membranas poliméricas, dotadas de acumulando-se na parte interna do passa entre dois eletrodos porosos de
minúsculos orifícios, que retêm os tanque. Em outro compartimento, o carbono eletricamente carregados que
sais presentes no líquido. É o método vapor é resfriado, condensa-se e fazem a retenção dos íons de sódio e cloro
mais usado no mundo transforma-se novamente em água. presentes na água salgada. O método
Técnica tem elevado gasto energético ainda está em desenvolvimento
Água
salgada
Água salgada Eletrodo Eletrodo
Água positivo negativo
salgada
Coletor
da água
filtrada Aquecimento Íons de
Membranas sódio (Na+)
poliméricas

Energia
Resfriamento
Vapor-d’água

Íons de
Condensação
Sais Sais cloro (Cl-)

Água Água Água


tratada tratada tratada

Sais
ÓXIDO DE GRAFENO
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) e Fede-
Nesse sistema de osmose reversa, a ral da Paraíba (UFPB) trabalham na criação de
filtragem é realizada por membranas Molécula membranas nanoestruturadas de grafeno para
feitas de óxido de grafeno. Elas deixam de água dessalinizar água salobra. Além da redução do
passar as moléculas de água, mas custo, outra vantagem desse método é que os
Membrana
retém os íons de cloro e sódio (sais). de óxido filtros de grafeno não precisam ser limpos com
O processo não é comercial de grafeno a mesma frequência dos filtros de membranas
de osmose reversa. O grafeno também é imune
aos efeitos do cloro, usado durante o processo
de limpeza e que reduz a integridade estrutural
de operação”, explica. No Brasil, o grupo de Ruo- das membranas poliméricas, fazendo com que
tolo desenvolveu um processo de deionização precisem ser substituídas com mais frequência.
capacitiva à base de carvões ativados com poros
nanométricos (ver Pesquisa FAPESP nº 262). DESSALINIZAÇÃO NO BRASIL
Outra estratégia que vem ganhando destaque A usina de dessalinização do Ceará deverá ser a
é o uso de membranas feitas de óxido de grafeno, maior, mas não a primeira, a operar no Brasil. Há
caracterizadas como folhas de carbono com espes- quase duas décadas o arquipélago de Fernando
infográfico  alexandre affonso (concepção e ilustração)

sura atômica, em sistemas de osmose reversa. A de Noronha tem um pequeno sistema de des-
ideia é usá-las como uma peneira para remover o salinização capaz de produzir cerca de 720 m3
sal da água marinha ou salobra, como a encontra- de água por dia. A produção responde por 40%
da em poços perfurados no semiárido brasileiro. da demanda hídrica do arquipélago. O restante
Estima-se que seu emprego reduza em até 50% o vem da água das chuvas. Algumas comunidades
gasto energético para bombear a água pelos filtros. do semiárido brasileiro também contam com o
Isso porque há menos atrito quando se força a pas- auxílio de dessalinizadores para tornar a água
sagem da água salgada por membranas de grafeno salobra obtida de poços artesianos adequada ao
em comparação com as tradicionais de polímero. consumo humano. “Todos usam o método de os-
Cientistas ao redor do mundo têm se debruça- mose reversa”, esclarece a engenheira química
do sobre essa tecnologia. No Brasil, pesquisadores Weruska Brasileiro Ferreira, do Departamento
das universidades Estadual da Paraíba (UEPB), de Engenharia Sanitária e Ambiental da UEPB.

pESQUISA FAPESP 279  z  67


Marcelino Lourenço Ribeiro Neto / Embrapa
Irrigação de
A distribuição e a instalação desses aparelhos e mais membranas para dessalgá-la. Cada litro plantação no
semiárido nordestino
vêm sendo feitas desde a década de 1990 por várias de água do mar tem mais de 30 mil miligramas
com rejeito do
instituições. A partir de 2011, o governo federal (mg) de sal. Já a água dos poços no semiárido processo de
desenvolveu uma metodologia que deu base ao apresenta concentração a partir de 5 mil mg de dessalinização
Programa Água Doce e que incorpora cuidados sal por litro, podendo atingir 18 mil mg. O valor
técnicos, sociais e ambientais visando uma maior considerado adequado para consumo humano
sustentabilidade no funcionamento dos sistemas pela Organização Mundial da Saúde (OMS) varia
de dessalinização. Por meio do programa, foram entre 250 e 500 mg por litro.
implantados 605 dessalinizadores, benefician- “Cada 2 mil litros de água salobra que passa
do cerca de 240 mil pessoas em 174 municípios. pelo dessalinizador rendem mil litros de água
Segundo o engenheiro civil Alexandre Saia, potável e outros mil litros de água muito salgada,
coordenador de dessalinização do Ministério do que é o rejeito”, diz o cientista de alimentos Ân-
Desenvolvimento Regional, o custo médio de ins- gelo Paggi Matos, do Departamento de Ciência e
talação de dessalinizadores no sertão nordestino Tecnologia de Alimentos da Universidade Federal
é de R$ 278 mil por unidade. Cada equipamento de Santa Catarina (UFSC). Seu descarte é um dos
produz 4 m3 por dia, o que atende 400 pessoas. problemas associados à dessalinização no país.
Muitos dos sistemas instalados no semiárido, no Nas usinas que processam água do mar, o re-
entanto, estão abandonados por falta de recur- jeito, ou concentrado salino, é devolvido ao ocea-
sos das prefeituras para manutenção adequada. no. Já nas que operam no semiárido, o descarte
O engenheiro industrial Antonio Santos Sán- inadequado pode comprometer a qualidade do
chez, da Escola Politécnica da Universidade Fe- solo, tornando-o improdutivo. Para contornar
deral da Bahia (UFBA), explica que a manutenção esse problema, o Programa Água Doce implan-
envolve sobretudo a troca e a limpeza das mem- tou tanques para contenção do concentrado. Por
branas que retêm os sais, cuja vida útil é de cinco meio de uma parceria com a Empresa Brasileira
a nove anos. “Sem a limpeza adequada, a dura- de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) Semiárido,
bilidade do sistema se reduz”, destaca. O custo em Petrolina (PE), foram criadas estratégias para
anual de manutenção gira em torno de R$ 18 mil, o reúso desse rejeito na produção de tilápia e irri-
segundo a coordenação do Programa Água Doce. gação de mudas de espécies vegetais da Caatinga,
As membranas usadas no Brasil são fabricadas como a erva-sal (Atriplex nummularia), empre-
pela companhia norte-americana Dow Chemical. gada como alimento para caprinos e ovinos. n
É o mesmo material empregado em dessaliniza-
dores de Israel. O que muda é a quantidade de
energia demandada pelo sistema e o tipo de mem- Projeto
brana usada no processo. A concentração de sais Dessalinização por deionização capacitiva: Desenvolvimento de novos
eletrodos e otimização do processo (nº 15/16107-4); Modalidade
na água do mar é muito maior do que nos poços Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Luís Augusto
do semiárido, o que exige maior gasto de energia Martins Ruotolo (UFSCar); Investimento R$ 228.804,27.

68  z  maio DE 2019


ENGENHARIA TÊXTIL y

Amostras de
fibra, fio e tecido
de cashmere
lia souza coelho

feitas no país

O fino pelo O
Brasil poderá se inserir em alguns anos
no mercado global de um insumo va-
lorizado pela indústria têxtil. Trata-se
do cashmere, uma fibra natural muito

das cabras
fina, leve, suave e, ao mesmo tempo, forte e re-
sistente. Produzida a partir de pelos de caprinos,
ela proporciona conforto e isolamento térmico,
protegendo tanto do frio quanto do calor. Um
quilo da fibra é cotado no mercado internacional
a US$ 160 (cerca de R$ 630), de acordo com o
Fibra cashmere produzida a site de informações Emerging Textiles. No ano
passado, a China liderou a fabricação do insumo,
partir de caprinos nacionais com 15 mil toneladas (t), cerca de 60% do total,
seguido pela Mongólia, com 6 mil t.
tem qualidade superior à A entrada de produtores brasileiros nesse mer-
comercializada no mercado cado será resultado de pesquisas conduzidas há
sete anos pela zootecnista Lia Souza Coelho, co-
internacional laboradora do Centro Brasileiro de Pesquisas Fí-
sicas (CBPF), sediado no Rio de Janeiro. Durante
seu mestrado na Universidade Federal Rural do
Domingos Zaparolli Rio de Janeiro (UFRRJ), ela descobriu que é pos-
sível produzir no país uma fibra cashmere ainda
mais delgada e confortável do que as disponíveis

pESQUISA FAPESP 279  z  69


no mundo – quanto mais fino o insumo, Para ser classificada como tal, a fibra
maior a sensação de suavidade ao toque precisa ter até 19 micrômetros (µm) de
e mais valorizado o tecido. Agora, a cien- Sinais espessura. Fibras de caprinos muito novos
tista trabalha para viabilizar uma cadeia conseguem a média de 14 µm. É a chama-
produtiva para o cashmere nacional. particulares da baby cashmere, cuja comercialização
Tecidos com essa fibra são produzidos é feita diretamente entre produtores e
há séculos na Caxemira, região situada no Principais confecções internacionais de alto luxo;
norte do subcontinente indiano, na China características da seus preços, superiores ao normal, não
e no Nepal, a partir da retirada no verão fibra cashmere são divulgados. Em grifes como as italia-
dos subpelos (camada inferior da pela- nas Brunello Cucinelli e Loro Piana, um
gem) de cabras da raça cashmere (Hir- › É o subpelo de caprinos, suéter de baby cashmere é vendido por
cus laniger) – eles são essenciais para os machos ou fêmeas de € 2.500 (em torno de R$ 11.000). A fibra
animais enfrentarem o inverno do Hima- qualquer idade cashmere obtida com as cabras brasilei-
laia. O trabalho de Lia Coelho teve iní- › A espessura média da fibra
ras mede entre 10 e 12 µm de espessura.
cio quando um caprinocultor fluminense não pode exceder
“A radiação intensa de sol no Brasil pro-
doou para a UFRRJ algumas cabras da 19 micrômetros (µm)
vavelmente favoreceu o aparecimento de
raça boer, nativas da África do Sul, mas cashmere com característica mais fina nas
introduzidas há muito tempo no Brasil – › Os animais produtores cabras brasileiras”, explica Lia Coelho.
o criador estava desgostoso com a feiura podem ser de diversas raças. Segundo Júlia Baruque Ramos, pro-
dos animais e com o fato de terem o cor- No passado, a fibra original fessora do bacharelado têxtil e moda da
po coberto por pelos embolados e um era coletada da raça Escola de Artes, Ciências e Humanidades
excesso de fibras finas. cashmere, o que lhe valeu da Universidade de São Paulo (EACH-
“Ninguém sabia o que era aquele ti- essa denominação -USP), o cashmere é um material nobre
po de pelo”, recorda-se a pesquisadora. por excelência. “Há demanda por fibras
“Analisei o material em um microscópio de melhor qualidade, ou seja, mais finas.
eletrônico de varredura, estudei sobre O Brasil poderá ser um potencial expor-
fibras de origem animal e descobri que a tador desse tipo de cashmere”, opina.
fibra que os caprinos estavam produzin- As pesquisas de Lia Coelho constata-
do era cashmere”, relata. Não se tratava ram que, além das cabras boer, animais
de uma fibra cashmere comum, porém. das raças saanen, alpina, alpina america-
na e savana – todas originárias de outros
países, mas bem adaptadas no Brasil –,
assim como mestiços dessas raças, tam-
bém produzem a fibra. Em seu doutora-
do, concluído em 2018 na UFRRJ, Lia
produziu os primeiros protótipos de fio
e tecido de cashmere brasileiro. Tam-
bém concluiu que a fibra nacional usa
menos água no processamento, geran-
do uma economia de 98% em relação
à produção convencional. Isso se dá por
causa da forma de criação intensiva em
fazendas feita no Brasil, que favorece
a obtenção de fibras mais limpas, dis-
pensando a lavagem inicial – na Ásia,
os animais são criados nas montanhas,
expostos à chuva e à neve.
Realizada com apoio da Associação
Brasileira da Indústria Têxtil e de Con-
fecção (Abit), do Centro de Tecnologia
da Indústria Química e Têxtil do Serviço
Nacional de Aprendizagem Industrial
(Senai Cetiqt) e da Brastema, represen-
tante no país da indústria japonesa de
equipamentos têxteis Shima Seiki, a pes-
A zootecnista quisa resultou em um livro, um artigo e
Lia Coelho
cinco patentes depositadas no Institu-
durante análise
das fibras em to Nacional da Propriedade Industrial
laboratório (INPI) – outras nove estão sendo pre-

70  z  maio DE 2019


As fibras de
cashmere são
retiradas por meio
de escovação

paradas para depósito. Os estudos fo- na região Nordeste. As principais fontes Desenvolvimento Sustentável da Organi-
ram feitos nos laboratórios do CBPF, da de renda do caprinocultor são a produção zação das Nações Unidas (ONU), entre
Universidade Estadual Paulista (Unesp), de carne e leite. Em janeiro deste ano, o eles a geração de trabalho e renda para
campus de Araraquara, e do Instituto criador ganhava em torno de R$ 190 na grupos econômicos vulneráveis, a baixa
Nacional de Tecnologia Industrial da venda do animal vivo para abate, confor- produção de resíduos e o reduzido con-
Argentina (Inti). “O Inti conta com es- me levantamento da Empresa Brasileira sumo de água.
pecialistas e aparelhos para realização de Pesquisa Agropecuária (Embrapa). Fernando Pimentel, presidente da
de testes físicos da fibra cashmere com Cada caprino brasileiro produz cerca Abit, avalia que o mercado internacio-
as normas reconhecidas internacional- de 217 gramas de fibra cashmere por ano. nal será essencial para viabilizar a cadeia
mente, algo que, infelizmente, inexiste Segundo Lia Coelho, negociações pre- produtiva do cashmere brasileiro, já que,
no país”, relata a cientista. liminares com potenciais interessados em países tropicais como o Brasil, a de-
indicam um preço médio na casa de R$ manda pelo produto é limitada. “É uma
CADEIA PRODUTIVA 1.137 o quilo da fibra nacional, superior boa ideia que precisa avançar, estimu-
Lia Coelho agora integra a equipe de pes- ao do insumo no mercado internacional, lando parcerias com governos estaduais
quisadores colaboradores do CBPF, sob em razão de sua qualidade superior. Caso que queiram incentivar a agricultura
supervisão de André Linhares Rossi, e li- esse valor seja confirmado, a coleta da familiar e com empresas interessadas
dera o Projeto Cashmere Brasileira, cujo fibra poderá acrescentar uma renda de nesse mercado”, diz. Firmar um acor-
objetivo é criar uma cadeia produtiva lo- R$ 247 ao ano por animal aos criadores. do com um produtor de fios e tecidos é
cal para o insumo têxtil. A iniciativa já foi Essa não é a única vantagem. A retirada uma das metas de Lia Coelho para 2019.
apresentada ao Ministério da Agricultura, da fibra se dá por escovação e apenas na “Estamos em negociação avançada com
Pecuária e Abastecimento (Mapa) e ao época em que se desprende sozinha do três empresas.” n
governo da Paraíba, estado que concen- animal. “Os caprinos escovados aumen-
tra expressivo rebanho de caprinos. Em tam a produção de leite e sofrem menor
paralelo, a equipe do projeto trabalha pa- estresse térmico”, relata a pesquisadora. Artigo científico
ra demonstrar o potencial do cashmere Para Júlia Baruque Ramos, da EACH- COELHO, L. et al. Characterization and identification of
brasileiro para associações de criadores. -USP, o cashmere brasileiro poderá ser cashmere in goats in northeastern Brazil. Revista Aca-
O último Censo Agropecuário produzi- valorizado no mercado internacional de dêmica: Ciência Animal. v. 16. 2018.

do pelo Instituto Brasileiro de Geografia e alto luxo em razão não só da qualidade, Livro
lia souza coelho

Estatística (IBGE) informa que o rebanho mas também pela sustentabilidade eco- COELHO, L. Características da capa externa de caprinos
em ambiente tropical: Reconhecimento e caracteriza-
de caprinos do país somava 8,2 milhões nômica e ambiental. O insumo nacional, ção de cashmere em cabras no Brasil. Novas Edições
de animais em 2017, sendo que 90% está destaca, atende a vários dos Objetivos de Acadêmicas, 2017.

pESQUISA FAPESP 279  z  71


pesquisa empresarial

Muito além
dos
motores
Dona de um abrangente portfólio,
a multinacional catarinense WEG
produziu os precisos eletroímãs
do Projeto Sirius

U
m dos mais ambiciosos projetos da ciência nacio-
nal, a fonte de luz síncrotron Sirius recebeu uma
relevante contribuição da multinacional brasileira
WEG, sediada em Jaraguá do Sul, interior de Santa
Catarina. Especializada na fabricação de motores
elétricos industriais, geradores de energia, equipamentos de
automação, entre outros produtos, a companhia forneceu os Eletroímãs durante
eletroímãs do equipamento, projetado e operado pelo Labo- testes de caracterização
magnética na fonte
ratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), localizado em de luz síncrotron Sirius
Campinas (SP). Componente vital e difícil de ser fabricado,
os eletroímãs têm a função de guiar a trajetória dos feixes de
elétrons dentro do Sirius, de forma a gerar a luz síncrotron.
Essa radiação é capaz de revelar em alta resolução a estrutura
de materiais, proteínas, vírus, rochas, plantas e ligas metálicas,
possibilitando o avanço da pesquisa científica e tecnológica em
diversas áreas de conhecimento (ver Pesquisa FAPESP no 269).
Poucos fabricantes de eletroímãs no mundo são capazes
de uma entrega com esse perfil. Até receber a encomenda, a
WEG nunca havia produzido eletroímãs, mas tinha longa ex-
periência na estamparia de chapas laminadas de ferro silício,
material que forma o núcleo do eletroímã e, ao mesmo tempo,
é usado em transformadores de energia, equipamentos que

72  z  maio DE 2019


empresa

WEG

Centro de P&D
Jaraguá do Sul (SC)

Nº de pesquisadores
2,5 mil profissionais

Principais produtos
Motores elétricos
industriais, geradores
de energia, eletroímãs
e equipamentos de
automação

integram o portfólio da empresa cata- inédita na qual as chapas laminadas de 1.036 eletroímãs foram produzidos pela
rinense (ver reportagem na página 42). ferro silício são obtidas apenas com o WEG e entregues ao LNLS.
A qualidade dos eletroímãs, segundo o processo de estampagem, que consiste Apesar do sucesso da empreitada, a
engenheiro eletricista James Citadini, no corte a frio de uma chapa para fabri- companhia não tem planos de entrar no
líder do Grupo de Imãs do LNLS, é de- cação de uma peça a partir de um molde. mercado de eletroímãs. Isso não impede,
terminada por sua complexa geometria Tradicionalmente, após a estampagem os entretanto, que ela os produza sob enco-
mecânica. Cada chapa laminada deve fabricantes fazem o acabamento por meio menda para outros projetos de acelera-
ter uma precisão dimensional dentro de usinagem. Essa etapa encarece em três dores de partículas como o Sirius, desen-
de 5 a 8 micrômetros (µm), para que o vezes o processo produtivo e reduz a qua- volvidos ao redor do mundo. “O que nos
conjunto de chapas, depois de montado, lidade magnética do eletroímã devido ao interessou na parceria com a LNLS foi o
não ultrapasse uma variação de 30 µm. aquecimento do material. “Chegamos a desafio de participar de um projeto ro-
O esforço conjunto das equipes do uma solução inovadora que gerou econo- busto, em que tivemos a oportunidade de
léo ramos chaves

LNLS e da WEG resultou no desenvol- mia significativa ao projeto”, diz Citadini. desenvolver nossas habilidades em estam-
vimento de eletroímãs de altíssima pre- “E temos um fornecedor local, capaz de paria de precisão”, destaca Milton Oscar
cisão, construídos a partir de uma técnica dar a assistência de forma rápida.” Exatos Castella, diretor de engenharia da WEG.

pESQUISA FAPESP 279  z  73


Linha de produção
de motores elétricos
na fábrica de
Jaraguá do Sul (SC)

Uma das principais multinacionais do


país, segundo ranking da escola de ne-
gócios Fundação Dom Cabral, a WEG
foi constituída em 1961 pelo eletricista
Werner Ricardo Voigt, o administrador
Eggon João da Silva e o mecânico Geraldo
Werninghaus. Os três sócios, já falecidos,
uniram-se para produzir motores elétri-
cos, o carro-chefe da empresa até hoje.
No ano passado, ela obteve uma receita
operacional líquida de R$ 11,9 bilhões
com produção em 14 fábricas no Brasil e
outras 28 em 11 países das Américas, Eu-
ropa, África e Ásia. São, ao todo, 21,5 mil
funcionários no país e 9,7 mil no exterior. saios e desenvolvimento de produtos. Os realiza parcerias. Entre elas estão as uni-
Em 2017, 53% do faturamento foi gerado investimentos em PD&I somaram R$ 307 versidades federais de Santa Catarina
a partir da venda de produtos lançados milhões em 2018, o equivalente a 2,6% da (UFSC), Rio Grande do Sul (UFRGS) e
há menos de cinco anos. A WEG ocupa o receita operacional líquida. Até dezem- Minas Gerais (UFMG), a Universidade
posto de sexta empresa mais inovadora do bro do ano passado, a companhia con- Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR)
país, segundo o Ranking Valor Inovação tabilizava, no mundo todo, 62 patentes e a Universidade Estadual de Campinas
Brasil 2018, elaborado pela consultoria concedidas e 112 em tramitação. (Unicamp), além de instituições estran-
Strategy&, do grupo PwC. Os projetos de inovação da WEG são geiras como as universidades de Wup-
Os trabalhos de pesquisa, desenvolvi- definidos por um planejamento tecnoló- pertal, na Alemanha, de Glasgow, na Es-
mento e inovação (PD&I) estão a cargo de gico de cada uma de suas áreas de atua- cócia, e de Berna, na Suíça.
uma equipe composta por 2,5 mil colabo- ção. Além de avaliações mercadológicas
radores, sendo 1,3 mil engenheiros – 167 e concorrenciais, também é parâmetro MOTORES CONECTADOS
destes têm mestrado ou doutorado. No para o planejamento as atividades de um Uma das mais recentes inovações criadas
Brasil, a empresa dispõe de nove labora- Comitê Científico e Tecnológico, cons- nos laboratórios da empresa é o WEG
tórios de motores, nove de automação, tituído em 1998, que a cada encontro Motor Scan, um sistema de monitora-
três de energia, seis de tintas e dois de anual tem a colaboração de professo- mento de motores industriais que in-
transmissão e distribuição. No exterior, res e pesquisadores de universidades do corpora soluções de Internet das Coi-
cada filial mantém um laboratório de en- Brasil e do exterior com as quais a WEG sas (IoT). A primeira versão do sistema,
finalizada em 2018, usa um sensor não
invasivo instalado no equipamento pa-
equipe de Pesquisadores ra acompanhar temperatura, vibração
e tempo de operação. Os dados ficam
Confira alguns dos profissionais que fazem P&D na WEG e conheça as instituições acumulados no sensor até serem cole-
acadêmicas responsáveis por sua formação tados por um dispositivo móvel, como
um celular, via bluetooth, e disponibili-
Milton Oscar Castella, engenheiro eletricista, Faculdade de Engenharia de Joinville: zados em nuvem para análise por meio
diretor de engenharia graduação da plataforma WEG de IoT. “As infor-
Sebastião Lauro Nau, engenheiro eletricista, Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC): mações coletadas permitem prever fa-
gerente de pesquisa e inovação tecnológica graduação, mestrado e doutorado lhas no equipamento e adotar ações que
Carlos Ogawa, engenheiro eletricista, gerente Escola Federal de Engenharia de Itajubá (Efei): reduzem interrupções não previstas na
de desenvolvimento e inovação tecnológica graduação produção”, diz o engenheiro eletricista
UFSC: mestrado
Sebastião Lauro Nau, gerente de pes-
Francisco Pinto Rebordão, engenheiro Fundação Educacional Brusquense: quisa e inovação tecnológica da WEG.
eletricista, gerente de engenharia de produto graduação em filosofia
Uma evolução do WEG Motor Scan já
Universidade Regional de Blumenau:
graduação e mestrado em engenharia elétrica está sendo desenvolvida e deverá chegar
ao mercado até o fim deste ano, informa
Adalberto José Rossa, engenheiro eletricista, Universidade Federal do Rio Grande do Sul:
gerente de desenvolvimento de drives seriados graduação Nau. A nova versão prevê que os dados
coletados pelos sensores sejam transmi-

74  z  maio DE 2019


Montagem de
aerogeradores:
empresa é a
única fabricante
brasileira do
equipamento

tidos para gateways (pontos de ligação e produz sistemas de armazenamento de


que conectam redes que utilizam pro- energia, como baterias de lítio.
tocolos diferentes de comunicação) dis- O segmento de veículos de tração elé-
tribuídos pela fábrica e disponibilizados A WEG tem trica, de acordo com Castella, é outra
em nuvem em tempo real. aposta de expansão da WEG nos pró-
Também está previsto para ser lançado 14 fábricas no ximos anos. A companhia catarinense
nos próximos meses um novo aerogera- criou um sistema de powertrain com-
dor com 4 megawatts (MW) de potência.
Brasil e outras posto por motor elétrico e inversores
Aerogeradores são turbinas usadas para 28 em 11 países de frequência para tração elétrica – as
produção de energia elétrica a partir da baterias são importadas. Powertrain é o
força dos ventos. Atualmente a WEG fa- das Américas, conjunto de componentes que geram o
brica dois aerogeradores, com 2,1 MW e movimento de um veículo. Em 2017, a
2,2 MW de potência. As turbinas mais Europa, WEG fechou uma parceria com a fabri-
potentes, conforme João Paulo Gualberto cante de caminhões MAN Latin Ameri-
da Silva, diretor da área de novas energias
Ásia e África ca para o desenvolvimento do primeiro
da WEG, são uma tendência global, pois caminhão leve 100% elétrico feito no
permitem uma maior geração elétrica Brasil, o e-Delivery. Dotado do novo sis-
no mesmo espaço físico ocupado pelos tema de powertrain, o veículo será equi-
aerogeradores de menor porte. A WEG é pado com motor de 80 kW (109 cv) de
a única fabricante brasileira desses equi- de geração hidráulica e fotovoltaica. Em potência. Ele já se encontra em testes,
pamentos (ver Pesquisa FAPESP nº 275). 2018, após aval do Conselho Administra- e a previsão é de que comece a ser pro-
A nova versão de 4 MW é fruto de um tivo de Defesa Econômica (Cade), ela in- duzido em 2020.
desenvolvimento conjunto por uma equi- corporou a fabricante paulista de turbinas No próximo ano também deve ser ini-
pe de engenheiros brasileiros e norte- a vapor TGM, em um negócio iniciado em ciada a comercialização do primeiro mi-
-americanos. Em 2016 a WEG adquiriu a 2016. “A aquisição nos permite desenvol- cro-ônibus híbrido (elétrico mais diesel,
divisão de turbinas eólicas da Northern ver soluções para geração de energia com etanol ou gás) projetado no Brasil, o Volk-
Power Systems (NPS), com sede em Ver- diferentes biomassas”, afirma o diretor de bus e-Flex. O veículo foi desenvolvido
mont, nos Estados Unidos. Com a aqui- engenharia Milton Castella. pela Volkswagen Caminhões e Ônibus,
sição, ela passou a vender aerogeradores Segundo o executivo, a incorporação com quem a WEG fechou contrato para
com tecnologia Direct Drive, criada pela de negócios já estabelecidos é uma das o fornecimento do sistema de powertrain
NPS, que usa rotor e gerador na mesma estratégias da multinacional para am- com motor de até 350 cv de potência.
velocidade, dispensando o uso de caixas pliar seu leque de atuação. Em feverei- “Nosso objetivo é desenvolver soluções
multiplicadoras de velocidade. A tecno- ro deste ano, a WEG adquiriu a gaúcha de tração elétrica também para tratores,
logia permite a redução de gastos de ma- Geremia Redutores, fabricante de con- navios, barcos, empilhadeiras, caminhões
fotos  weg / chan

nutenção em turbinas instaladas sobre troladores de velocidade e componentes de médio e grande porte e aviões”, conta
torres com mais de 120 metros de altura. para transmissão mecânica. No mesmo Castella. O segmento de veículos de pas-
Ainda no setor de energias renováveis, mês, comprou outra divisão da norte- seio, por ora, ainda não está nos planos
a WEG é fornecedora de equipamentos -americana NPS, a unidade que projeta da companhia. n Domingos Zaparolli

pESQUISA FAPESP 279  z  75


humanidades   GESTÃO FUNDIÁRIA y

As terras
imaginárias
do Pará
22,7 milhões de hectares de áreas particulares
e 18,5 milhões de terrenos públicos só existem no papel
Carlos Fioravanti, de Belém
E
m julho, o promotor Luiz Gustavo deral do Pará (UFPA) em colaboração com o MP
da Luz Quadros deverá assumir a e o Tribunal de Justiça (TJ) do Estado do Pará.
coordenação de uma unidade da Pro- O SIG Fundiário fez algo inédito, ao integrar
motoria de Justiça Agrária do Mi- bases de dados de órgãos públicos e cartórios e
nistério Público (MP) do Pará que está delineando a real situação fundiária do es-
está sendo criada no município de Castanhal, tado. Os resultados preliminares revelaram 22,7
próximo à capital do estado, para intermediar milhões de hectares (ha) de terras privadas e 18,5
a resolução de conflitos de terra com o apoio milhões de ha de terras públicas que não existem
de novos recursos tecnológicos. “Queremos de fato, porque a soma das áreas registradas em
evitar que os problemas sejam resolvidos com cartórios excede a área total dos municípios. A
violência, à bala, e ganhem repercussão nacio- chamada matrícula, documento que permite a
nal e internacional”, diz. Em 2017, o Pará re- venda ou a doação de imóveis, gera novo registro
gistrou 71 assassinatos de trabalhadores rurais toda vez que muda o proprietário. O SIG Fundiá-
em conflitos de terra e em 2018 24. Até março rio identificou até 10 registros simultâneos, como
de 2019 outros seis assassinatos foram asso- se houvesse 10 donos ou conjuntos de donos, com
ciados a disputas por terra. Quadros pretende áreas sobrepostas.
reconhecer os legítimos proprietários e regu- Criado há cinco anos, com financiamento de
larizar a situação fundiária do estado sempre cerca de US$ 1,6 milhão da Fundação Ford e da
fotos  léo ramos chaves

que possível por meio de acordos amigáveis, organização não governamental Climate and
sem processos judiciais, usando o Sistema Geo- Land Use Alliance (Clua), o SIG Fundiário reuniu
gráfico de Informação Fundiário (SIG Fundiá- 83.676 documentos de três regiões – Tomé-Açu,
rio), plataforma computacional elaborada por Jari e Itaituba, que somam 19,5 milhões de ha, o
equipe multidisciplinar da Universidade Fe- equivalente a 15% do Pará. A equipe do Labo-
Propriedades multiplicadas
Equipe da UFPA identificou 22,7 milhões de hectares de áreas privadas a mais em 10 municípios
de três regiões do Pará, que correspondem a 15% do território do estado

Projeto Jari
n área oficial 916.602 ha
▲ área registrada 1.126.336 ha
Diferença: 23%

mesorregião
metropolitana
de belém

baixo amazonas

marajó
Microrregião de Tomé-Açu
n área oficial 2.457.565 ha
nordeste
paraense ▲ área registrada 11.405.484 ha
Diferença: 364%

Itaituba
n área oficial 6.204.247 ha
▲ área registrada
19.746.163 ha sudoeste paraense
Diferença: 218%

Quanto mais intenso o


sudeste paraense
vermelho, maior o
número de sobreposições

Fonte Integradata/UFPA

ratório de Integração de Informações Agrárias, estudo, a equipe do Integradata reuniu os mapas


Econômicas e Ambientais para Análise Dinâmica de unidades de conservação, terras indígenas
da Amazônia (Integradata), órgão da reitoria da e quilombolas sob responsabilidade de órgãos
UFPA que cuida do SIG Fundiário, coletou infor- públicos federais no Pará e encontrou 792 so-
mações diretamente das matrículas e registros breposições, que equivalem a 1,5 milhão de ha.
de 14 dos 104 cartórios do estado. Em fevereiro, De acordo com os documentos oficiais, a área
começou o trabalho de digitalização de documen- das terras indígenas e unidades de conservação
tos do cartório de Santarém. No Integradata, os é 8,4 milhões de ha maior que a identificada pelo
documentos são conferidos, os dados históricos SIG Fundiário. Nas terras públicas, 18,5 milhões
são indexados e as coordenadas geográficas de de ha de fato não existem. “Nos últimos anos, os
localização dos imóveis são inseridas em um sis- mapas foram corrigidos nos sites das instituições
tema de informações geográficas. Programas de dos órgãos do governo federal, mas a informa-
acesso livre permitem o registro das informações, ção continua errada nos documentos oficiais”,
a integração de documentos e a produção auto- comenta Solyno.
mática de mapas. Em 2018, a pedido do governo Segundo ele, as sobreposições detectadas no
do estado do Maranhão, a equipe do Integradata SIG Fundiário podem resultar tanto de impre-
utilizou esse método para cadastrar 23.616 docu- cisões técnicas quanto de posse ilegal de ter-
mentos do Instituto de Colonização e Terras do ras: “Temos de analisar cada caso com cautela,
Maranhão (Iterma) e de dois cartórios do estado. identificar as situações mais graves e construir
uma metodologia adequada de trabalho”. O Mi-
Sobreposições nistério do Meio Ambiente estima que a área
As áreas registradas nos documentos dos car­ total de terras obtidas por intermédio de escri-
tórios dos 10 municípios paraenses examinados turas falsas no Pará, registradas em cartórios de
somaram 32,2 milhões de ha. Como a área estu- imóveis, atinja 30 milhões de ha, quase 25% da
dada tem 9,5 milhões de ha, 22,7 milhões de ha superfície do estado.
não existem de fato. “São terras de papel”, diz o As sobreposições dificilmente apareciam com
agrônomo Sebastião Aluizio Solyno Sobrinho, as dimensões agora detectadas pelo SIG Fundiá-
coordenador técnico do SIG Fundiário. Em outro rio porque as bases públicas de dados raramente

78  z  maio DE 2019


Policiais vão a são integradas e as equipes dos órgãos públicos 2012 e 2015. O Instituto Nacional de Colonização
campo para conter priorizam problemas mais urgentes. O geógrafo e Reforma Agrária (Incra), responsável pela gestão
conflitos de terra
Danny Silvério Ferreira Sousa, técnico do Ins- de terras federais, adota um programa similar ao
entre posseiros e
fazendeiros no Pará, tituto de Terras do Pará (Iterpa), órgão público CAR, o Sistema de Gestão Fundiária (Sigef ), cer-
em agosto de 1984 responsável pela gestão fundiária no estado, ob- tificando a posse de terra somente quando não
serva que 6.126 processos de regularização de ter- aparece nenhuma sobreposição.
ras corriam na Gerência de Cartografia e Geopro- “Os cartórios têm parcela de responsabilidade
cessamento do instituto até novembro de 2018 – por essa situação, ao abrir novas matrículas sem
uma média de 875 processos para cada um dos verificar os documentos anteriores”, observa Jo-
sete funcionários do setor. sé Antonio Cavalcante, juiz auxiliar da correge-
O Cadastro Ambiental Rural (CAR), criado pe- doria da Região Metropolitana de Belém do TJ.
lo governo federal em 2012 para facilitar a regu- Segundo ele, “por desconhecimento do dever
larização das áreas obrigatórias de preservação de ofício ou má-fé”, os cartórios mantiveram
ambiental em todo o Brasil, registrou um excesso abertos os registros iniciais, permitindo a venda
de terras em propriedades privadas no Pará de de terrenos mesmo quando a área estava sob a
12,1 milhões de ha, dos quais 1,1 milhão de ha so- responsabilidade de outro cartório. “Quando de-
brepostos a terras indígenas. Por ser alimentado tectamos irregularidades”, diz Cavalcante, “man-
com informações fornecidas diretamente pelos damos os cartórios bloquearem os registros para
proprietários rurais, o CAR deixa espaço para evitar que a terra seja repassada a terceiros, até
imprecisões e fraudes. Em 2016, a Receita Fede- os proprietários apresentarem os documentos e
ral prendeu uma quadrilha chefiada por um em- resolvermos o problema”.
presário paulista, que desmatava e grilava terras
Fernando Santos / Folhapress

públicas no estado. O registro no CAR em nome Incertezas


de empresas de fachada permitia que as terras fos- Em 2009, uma comissão de combate à grilagem
sem exploradas, arrendadas e vendidas. De acordo instituída pelo TJ do Pará verificou que as 9.124
com reportagem da Agência Pública, essa organi- áreas documentadas somavam cerca de 490 mi-
zação movimentou R$ 1,9 bilhão e desmatou cerca lhões de ha, uma área quase quatro vezes maior
de 300
2 quilômetros quadrados de florestas entre que o estado do Pará. Em Moju, no nordeste

pESQUISA FAPESP 279  z  79


Além da
sobreposição com
propriedades
privadas, as áreas
indígenas do Pará
estão sujeitas a
ameaças como
a construção da
usina hidrelétrica
de Belo Monte, em
Vitória do Xingu

paraense, a irregularidade equivalia a 8 vezes a -se de um instrumento jurídico, o aforamento, o


área do município. A comissão pediu o bloqueio estado transferiu a terra para o fazendeiro. Nos
de cerca de 5,5 mil títulos de imóveis com mais 40 anos seguintes a área foi comprada e reven-
de 2,5 mil ha, já que a alienação ou concessão de dida várias vezes, sem título definitivo de posse.
terras públicas acima desse limite depende de Um dos compradores registrou-a em 2004, em
aprovação prévia do Congresso Nacional. Itupiranga, município desmembrado de Mara-
“Reconhecer a confusão é o primeiro passo para bá. Seis anos depois, o Iterpa concedeu ao atual
buscar as formas legais adequadas de fazer o or- proprietário, morador de Minas Gerais, o título
denamento territorial do estado”, diz o advogado definitivo, cancelado em 2014 porque a área ul-
Girolamo Domenico Treccani, que coordenou o trapassava o limite de 2,5 mil ha.
levantamento da comissão, então como assessor- Na disputa pela posse legal das propriedades
-chefe do Iterpa. Atualmente coordenador de rurais resta uma certeza: “Alguém vai sair per-
análises institucionais do SIG Fundiário e profes- dendo”, prevê Patrícia Moreira, juíza auxiliar
sor do Instituto de Ciências Jurídicas da UFPA, das corregedorias das comarcas do interior do
ele observa que um dos prejuízos causados pela TJ do Pará. Em novembro de 2018, por exem-
grilagem de terras é a expulsão de comunidades plo, a Justiça determinou o bloqueio de posse
tradicionais, como indígenas e quilombolas. “A de duas fazendas em Acará, nordeste paraense,
obscuridade é a base do poder, da corrupção e da sob a alegação de que as áreas, públicas, teriam
venda ilegal de terras”, afirma o economista Fran- sido indevidamente ocupadas e a empresa que
cisco de Assis Costa, do Núcleo de Altos Estudos reivindicava sua posse, apresentado documen-
Amazônicos (Naea) da UFPA e coordenador-geral tos falsos ao registrá-las em cartório. “Haverá
do SIG Fundiário (ver Pesquisa FAPESP no 277). protestos com o trabalho de regularização que
“Incertezas fundiárias resultam em insegurança está sendo feito”, comenta a juíza, “mas também
social e em redução de oportunidades econômi- maior segurança jurídica, porque a terra legali-
cas”, escreveu no livro Questões agrárias, agrícolas zada terá mais valor”. No início de abril, ela ou-
e rurais (Editora E-Papers, 2017). viu com interesse a equipe da UPFA apresentar
As situações nem sempre são fáceis de resol- o SIG Fundiário, reconhecendo seu potencial
Anderson Barbosa / Folhapress

ver. Um dos casos levantados pelo SIG Fundiário para amenizar os conflitos de terras no Pará. n
começou em 1960, com solicitação feita por um
fazendeiro interessado em adquirir, do governo
do estado, uma área de cerca de 3 mil ha, ocupada Livro
por um castanhal, em Marabá. Por se tratar de COSTA, F. de A. Dinâmica fundiária na Amazônia: Concorrência de
trajetórias, incertezas e mercado de terras. In: MALUF, R. S. e FLE-
uma área destinada ao extrativismo, o pedido foi XOR, G. (orgs.) Questões agrárias, agrícolas e rurais: Conjunturas e
negado. Pouco tempo depois, no entanto, valendo- políticas públicas. Rio de Janeiro: E-Papers, 2017.

80  z  maio DE 2019


Para refazer as matas paulistas
Programa indica possíveis áreas de compensação florestal no estado de São Paulo

Em fevereiro de 2019, na Sociedade Rural que permite a adequação das áreas embasar a tomada de decisões pelos
Brasileira, em São Paulo, o agrônomo de preservação a leis anteriores. proprietários rurais ou representantes
Gerd Sparovek, professor da Escola de “Caso o proprietário tenha menos de dos órgãos do governo”, acrescenta a
Agricultura Luiz de Queiroz da 20% de vegetação nativa em sua bióloga Alice Brites, pesquisadora em
Universidade de São Paulo (Esalq-USP) propriedade, o artigo 68 o isenta estágio de pós-doutorado na Esalq que
e presidente da Fundação Florestal de de recompor a porcentagem da lei coordenou as seis reuniões realizadas
São Paulo, apresentou para um grupo atual se ele estiver de acordo com a desde 2017 com proprietários rurais,
de 100 produtores rurais, advogados e legislação ambiental da época em representantes do governo, advogados,
representantes de órgãos de governos que foi feita a conversão da vegetação procuradores e outros especialistas
e de organizações não governamentais nativa em outros usos”, explica o em questões agrícolas. O projeto é
a versão mais recente de um programa biólogo Paulo André Tavares, resultado de debates iniciados em 2015
de computador que indica possíveis pesquisador do grupo da Esalq. sobre a implantação do Programa de
áreas de compensação de reservas legais O marco legal de 1934 estabeleceu a Regularização Ambiental (PRA) com os
no estado de São Paulo. De acordo obrigatoriedade de manter 25% da pesquisadores do Programa Pesquisa
com o novo Código Florestal, em vigor vegetação nativa da propriedade rural, em Biodiversidade (Biota-FAPESP).
desde 2012, toda propriedade rural no mas como o seguinte, de 1965, não
estado deve manter 20% de sua área especificava o tipo de vegetação a ser
com vegetação nativa; preservada. “Queremos oferecer Projeto
esse valor corresponde à reserva legal ferramentas técnicas para o gestor Áreas prioritárias para compensação de Reserva
Legal: Pesquisa para o desenvolvimento de uma fer-
somada com as áreas de preservação público trabalhar com segurança e inibir
ramenta para auxílio à tomada de decisão e transpa-
permanente – quem tiver menos do condutas administrativas indevidas rência no processo de implementação do Programa
que 20% pode restaurar vegetação ou errôneas”, afirma Sparovek. de Regularização Ambiental (PRA) no estado de São
Paulo (no 16/17680-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa
nativa ou fazer a compensação em outra “Oferecemos vários cenários possíveis – Regular; Programa Biota; Pesquisador responsável
área. Aberto a qualquer interessado, de compensação de reserva legal para Gerd Sparovek (USP); Investimento R$ 1.147.138,91.

por ora o programa (bit.ly/compRL_SP)


contém somente dados de São Paulo.
No estado, 30.417 propriedades
rurais acumulam um déficit de reserva Déficit de vegetação nativa no estado
legal de 865.391 hectares.
De acordo com o atual Código Florestal, 30.417 propriedades rurais
“Assim que o Supremo Tribunal
acumulam um déficit de reserva legal de 865.391 hectares
Federal publicar o acórdão do
julgamento do Código Florestal, que
ocorreu em 28 de fevereiro de 2018,
o programa permitirá avaliar
objetivamente as possibilidades de
definição de similaridade ecológica
da compensação de reserva legal ”,
diz Sparovek. Para se adequar à nova
legislação, os proprietários rurais com
déficit de reserva legal têm quatro
opções: restaurar suas próprias matas;
arrendar uma área em outra
propriedade; comprar uma área
dentro de unidades de conservação de
proteção integral e doá-la ao estado; Déficit estimado de
ou adquirir áreas excedentes de reserva legal (ha)
vegetação nativa, as chamadas cotas n ≤ 15 n 241 a 500
de reserva ambiental, dentro do n 16 a 30 n >500
mesmo estado e do mesmo bioma. n 31 a 60 n Cerrado
Sparovek expôs um conjunto n 61 a 120 n Mata Atlântica 100 km 200 km

de mapas sobre possíveis cenários de n 121 a 240


compensação de reserva legal de acordo
com o artigo 68 do Código Florestal, Fonte Geolab Esalq-Usp

pESQUISA FAPESP 279  z  81


Arquitetura y

Minha M
aior programa habitacional do país,
o Minha Casa, Minha Vida (MCMV)
se tornou também um recorrente ob-
jeto de pesquisas acadêmicas – que,
apesar do volume, falham em oferecer uma visão

Casa,
pormenorizada das habitações construídas e
em se tornar base para a tomada de decisões
políticas. Essas são as principais conclusões de
estudo de revisão bibliográfica coordenado pe-
la arquiteta Doris Kowaltowski, professora na
Faculdade de Engenharia Civil, Arquitetura e

Minha
Urbanismo da Universidade Estadual de Cam-
pinas (FEC-Unicamp). Intrigada com a grande
produção em torno do tema, em 2015 ela reuniu
um grupo de cinco pesquisadores para verificar
as investigações científicas realizadas. “Quis
fazer uma análise do que já se sabe a respeito

Vida
do programa”, conta.
A equipe partiu de um conjunto de mais de
8 mil documentos que mencionavam o projeto,
identificados em distintas bases de dados. “Nossa
preocupação inicial era localizar o que havia sido
publicado sobre o Minha Casa, Minha Vida. A par-

na
tir daí, estabelecemos os critérios de seleção dos
estudos”, explica o arquiteto e urbanista Daniel
de Carvalho Moreira, também da FEC-Unicamp.
O primeiro desses filtros teve a função de identifi-
car a produção estritamente acadêmica, tomando

academia
como base índices internacionais e instrumentos
de amplo alcance, como o Google Acadêmico. O
corpus foi reduzido a 2.477 trabalhos, entre trans-
crição de conferências, artigos, livros e capítulos
de livros, manuscritos e relatórios – além de 750
dissertações e teses, cujos títulos e resumos foram
analisados de modo a fornecer um panorama para
a pesquisa mais refinada, que se concentrou em
57 artigos selecionados a partir das ferramentas
Revisão bibliográfica feita por SciELO, Scopus e Web of Science. Classificado a
partir de quatro parâmetros – tipo de pesquisa e
pesquisadores mostra baixo de resultado (qualitativo ou quantitativo), escopo
da pesquisa (local ou nacional) e tipologia de habi-
impacto de estudos sobre tação investigada (individual ou multifamiliar) –,
programa de moradia social esse material foi avaliado de maneira minuciosa.
A primeira etapa da pesquisa foi apresentada em
um artigo de 2015 no Journal of the Korean Hou-
Luisa Destri sing Association; no ano passado, uma síntese com
os resultados foi publicada no periódico inglês
Building Research & Information.
Alguns aspectos surpreenderam os pesquisa-
dores. Em primeiro lugar, a quantidade de estu-
dos realizados em áreas que não a arquitetura
e o urbanismo. “Aproximadamente metade dos

82  z  maio DE 2019


Unidades do conjunto
residencial Florestan
Fernandes, em São
Paulo, construído em
regime de mutirão

trabalhos de pós-graduação sobre o MCMV foi


desenvolvida em programas como direito, econo-
mia, geografia, sociologia, entre outros”, informa
Moreira. Em relação aos estudos da área, havia a
expectativa de encontrar pesquisas que avalias-
sem os projetos arquitetônicos e as condições de
moradia da perspectiva do usuário, o que ocorreu
apenas eventualmente. “Os estudos de caso e as
análises de unidades construídas não representa-
ram a abordagem principal dos pesquisadores na
área da arquitetura e urbanismo, que nesses casos
se revelou pouco sistemática e sem protocolos
rigorosos”, comenta o pesquisador. Kowaltowski
destaca a dificuldade para, diante da ausência de
uma metodologia comum, comparar dados. “Nas
poucas pesquisas realizadas com os moradores
existe muita variedade de procedimentos”, diz.
“Mas esse problema não ocorre apenas no Brasil;
não há formas consagradas de avaliar habitação
social no mundo.”
A coordenadora do estudo aponta esse fato co-
mo um dos responsáveis pela existência de con-
clusões contraditórias no conjunto de pesquisas
examinadas. Entre os trabalhos que avaliam, por
exemplo, o acesso à infraestrutura urbana a partir
das unidades construídas pelo MCMV, 16 artigos
classificam-no como positivo e três como nega-
tivo. Já em relação à redução de despesas fami-
liares com moradia, cinco trabalhos observaram
o efeito positivo da mudança para uma dessas
unidades habitacionais, enquanto sete associam
a troca de residência a um aumento de gastos. A
engenheira moçambicana Elisa Muianga, que
integrou a equipe de pesquisadores responsáveis
pela revisão bibliográfica enquanto desenvolvia
seu doutorado na FEC-Unicamp, explica uma das
razões para que o novo imóvel se torne oneroso
para as famílias: “Muitas vezes eram pessoas que,
vivendo em favelas, não tinham despesas como
água, eletricidade, condomínio e passam a ter de
pagá-las na nova residência”.
Para Nabil Bonduki, arquiteto, urbanista e pro-
fessor de planejamento urbano da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São
Paulo (FAU-USP), as divergências nos resultados
podem estar relacionadas não apenas à ausência
de metodologia, mas também às diferenças entre
seus beneficiários. “O MCMV foi o primeiro pro-
grama massivo no Brasil que teve um atendimento
léo ramos chaves

significativo para a população de baixa renda. E


é preciso sempre considerar qual era a condição
anterior do beneficiado”, afirma.

pESQUISA FAPESP 279  z  83


MCMV: o objeto em números
Partindo do conjunto de documentos que mencionavam o programa, a pesquisa aplicou critérios de seleção que
resultaram no corpus final. 57 artigos, sobre os temas abaixo listados, foram analisados em profundidade

8.590
PALAVRAS-CHAVE documentos

“Minha casa
Impacto sobre o déficit habitacional 7
minha vida”
Mobilidade urbana e infraestrutura 5
“MCMV” Objetivos políticos e econômicos 5
Usuário e requisitos de espaço 5
“PMCMV”
Benefícios do programa habitacional 5
entre Legislação territorial 5
2010 2.477
documentos Expansão urbana e imobiliária 4
e 2016
Mudança climática/ eficiência energética 4
Zonas especiais de interesse social 3
Avaliação geo-histórica 3
965 Transformações urbanas 2
(livros,
conferências,
762
artigos Impacto de remoção de favelas 2
manuscritos
etc.)
750 Tecnologia de construção 1
dissertações
e teses Áreas comuns e externas 1
Mutirão versus habitação padrão 1
Projetos de design universal (UD) 1
Atualização de propostas 1
57 Projetos especiais 1
Artigos
Resíduos da construção 1
Fonte  Kowaltowski, D. et. al.
A critical analysis of research of
a mass-housing programme. 2018

Origens diversas explicariam, por clusões parciais a partir da revisão bi- lias de mais de três pessoas e a ausência
exem­plo, por que dois estudos veem co- bliográfica, os autores sustentam: “Fer- de preocupação com o conforto térmico
mo positiva a segurança na nova mora- ramentas de pesquisa, que podem avaliar dos moradores – apontado como negati-
dia, enquanto outros dois apontam para fielmente a qualidade de vida das pessoas vo nos trabalhos em que foi considera-
uma piora no quesito. Segundo dados de nas novas condições, devem ser testadas do. Kowaltowski defende que recursos
2017 da Secretaria Nacional de Habita- e aplicadas juntamente com métodos arquitetônicos simples, como avaliação
ção, desde 2009, ano de implantação do estatisticamente robustos. Estudos de- prévia da orientação solar e adoção de
programa, até 2016, dos cerca de 3,2 mi- vem ser repetidos a fim de comparar as ventilação cruzada, sejam empregados
lhões de unidades entregues, 1,1 milhão primeiras impressões com níveis poste- nos projetos, a fim de evitar danos maio-
destinou-se à faixa 1, isto é, a famílias riores de satisfação”. res no futuro. “As temperaturas parecem
com renda mensal de até R$ 1.800,00. A A existência de poucos trabalhos com estar cada vez mais altas. Um dia, essas
faixa seguinte, de rendimento mensal de essa característica parece guardar rela- pessoas vão comprar aparelhos de ar-
até R$ 4 mil, recebeu a maior parte das ção, conforme argumentam, à repetição -condicionado para amenizar o proble-
unidades, 1,8 milhão; na terceira, de até de erros do passado por parte do poder ma nas unidades e esse gasto de energia,
R$ 9 mil mensais, foram 290 mil habita- público, não apenas no Brasil, como tam- que poderia ser evitado com ajustes nos
ções adquiridas por meio do programa. bém globalmente – em especial no que projetos, acabará por representar mais
diz respeito à concepção dos empreen- um fator para a piora do clima.” A falta
Foco nos moradores dimentos. “Algumas pesquisas registra- de privacidade, já que há pouca distância
Diante do foco prevalente em aspectos ram que os projetos arquitetônicos não entre as janelas das diferentes unidades,
relacionados à cidade e à vizinhança, respondem a diversas necessidades e e a monotonia estética, provocada pela
como a avaliação da localização dos con- anseios dos usuários finais, indicando a repetição de projetos idênticos ou mui-
juntos e de sua relação com a paisagem necessidade de intervenções para me- to similares, nas unidades construídas,
urbana, a equipe de pesquisadores apon- lhorias, quando possível”, afirma Kowal- são outros problemas destacados pelo
ta a importância do desenvolvimento towski. Dentre as principais queixas ob- estudo e lembrados pela pesquisadora.
de investigações científicas baseadas na servadas nos estudos estão a metragem Entre as razões para que a produção
perspectiva do usuário. Já no artigo de pequena das unidades – em boa parte dos acadêmica tenha impacto limitado sobre
2015, em que foram apresentadas con- casos, 35 metros quadrados – para famí- os projetos elaborados no âmbito do pro-

84  z  maio DE 2019


grama, os especialistas indicam a nature-
za e a dimensão do Minha Casa, Minha
Vida. “Há situações em que a dificuldade
de acesso à moradia é tão impeditiva para
uma família, e a possibilidade de obter o
imóvel já representa um ganho tão gran-
de na qualidade de vida, que não sobra
muita margem para julgar a qualidade
dessa habitação, porque a necessidade
primeira é que deveria ser sanada”, pon-
dera Daniel de Carvalho Moreira.

movimentando a economia
Nabil Bonduki destaca a dimensão do
programa. Comparável ao desenvolvi-
do pelo Banco Nacional da Habitação
(BNH), que entre 1964 e 1986 financiou
a construção de 4 milhões de unidades
habitacionais, o MCMV, instituído du-
rante a presidência de Luiz Inácio Lula
da Silva (2003-2011), superou em no-
ve anos esse marco histórico. Segundo
o Ministério do Desenvolvimento Re-
gional, desde 2009 foram contratados
5,5 milhões de unidades habitacionais,
e mais de 4 milhões foram entregues.
Além da meta elevada, o programa foi
criado também com a proposta de mo-
vimentar a economia a partir do setor da
construção civil: estudo realizado pela Conjunto habitacional
Associação Brasileira de Incorporado- em Presidente “Obviamente o MCMV representa um
Prudente, São Paulo
ras Imobiliárias (Abrainc) e pela Funda- esforço grande para entregar moradia a
ção Instituto de Pesquisas Econômicas milhões de famílias. Embora a iniciati-
(Fipe) mostrou que entre 2008 e 2017 o va seja muito positiva, como arquiteta e
MCMV foi responsável por 77,8% dos pesquisadora sempre me questiono se a
6,3 milhões de unidades lançadas pelo qualidade não poderia ter sido melhor”,
mercado imobiliário em todo o país. Em unidades”, afirma. Na interpretação de pondera Kowaltowski. Elisa Muianga
2010, ano seguinte à criação do progra- Bonduki, além do programa, seriam ne- pensa que o intervalo de tempo entre a
ma, a contribuição do setor da constru- cessárias outras iniciativas para equa- inscrição no programa e a entrega das
ção civil para o Produto Interno Bruto cionar de maneira satisfatória o déficit moradias poderia ser utilizado na com-
(PIB) teve aumento de 11,6%, o maior em habitacional do país, como saneamento e preensão das necessidades e demandas
24 anos e superior ao crescimento per- urbanização de assentamentos precários, dos futuros moradores. “Seria uma boa
centual do PIB do país. “Em uma inicia- reabilitação de centros históricos e pro- oportunidade para estabelecer contato
tiva com essas dimensões, há a preferên- grama de lotes urbanizados com finan- e entender o que é importante para a
cia por projetos-padrão, já que qualquer ciamento de materiais de construção – o população contemplada. Isso ajudaria
inovação pode atrasar a aprovação do que não foi levado adiante. a inovar os projetos.” Muianga não tem
financiamento”, explica Bonduki, autor Bonduki destaca, porém, a vertente dúvidas: “A parceria entre academia e
do livro em três volumes Os pioneiros da Entidades do Minha Casa, Minha Vida, poder público é o único meio para pro-
habitação social (editora Unesp, 2014). modalidade em que os recursos são ge- mover a melhoria da habitação social”. n
Para o pesquisador da FAU, que parti- ridos pelos próprios beneficiários, que
cipou da idealização de um projeto na- administram a construção das unidades,
cional de habitação a ser implantado pelo participando inclusive das decisões sobre Artigos científicos
governo Lula, as limitações de qualida- os processos das obras. Um dos exemplos Kowaltowski, D., Muianga, E., Granja, A. D., Morei-

de são inerentes a iniciativas de massa. está em Cidade Tiradentes, na zona les- ra, D., Bernardini, S., Castro, M. R. A critical analy-
sis of research of a mass-housing programme. Building
“Minha principal crítica é que, entre as te de São Paulo, onde o Movimento Sem Research & Information. v. 47, n. 6, p. 716-33. 2019.
várias iniciativas propostas para a área, Terra Leste 1 construiu, com financia-
léo ramos chaves

Kowaltowski, D., Granja, A. D., Moreira, D. de C.,

apenas uma foi implementada – o pro- mento do programa e em regime de mu- Pina, S. M., Oliva, C. A. e Castro, M. R. The Brazilian
housing program “Minha Casa Minha Vida” – A syste-
grama MCMV, ou seja, a disponibilização tirão, os conjuntos Florestan Fernandes matic literature review. Journal of the Korean Housing
de recursos para a construção de novas e José Maria Amaral. Association. v. 26, n. 6, p. 35-42. On-line. Dez. 2015.

pESQUISA FAPESP 279  z  85


artes plásticas y

Acervos redescobertos
Coleção localizada em
museu de São Paulo revela
que a gravura funcionou
como plataforma
de circulação de arte
norte-americana no Brasil

Christina Queiroz

U
ma pesquisa desenvolvida co-
mo parte das atividades de um
projeto sobre acervos museoló-
gicos identificou recentemente
uma coleção de 28 gravuras norte-ame-
ricanas que estavam armazenadas há
mais de seis décadas na reserva técnica
do Museu de Arte Contemporânea da
Universidade de São Paulo (MAC-USP).
Doada ao Brasil em 1951 pelo empresá-
rio e político norte-americano Nelson
Rockefeller (1909-1979), a coleção des-
coberta mostra que a gravura funcionou
como plataforma inicial para circula-
ção da produção artística dos Estados
Unidos no cenário nacional. Parte dos
trabalhos está exposta em Atelier 17 e
a gravura moderna nas Américas, or-
ganizada pelo MAC-USP em parceria
com a Terra Foundation for American
Art. Aberta ao público até 2 de junho, a
exposição também reúne gravuras de
instituições como Brooklyn Museum e
Art Institute of Chicago.
“Até a década de 1950, a cena artísti-
ca brasileira estava voltada à produção
1 europeia. A descoberta desse conjunto
de gravuras evidencia um momento em
Tarantelle (1943), de Stanley que a arte norte-americana começou
William Hayter, verniz mole e
buril em cores sobre papel:
a circular de maneira mais intensa no
gravuras eram marcadas por Brasil”, conta Ana Gonçalves Magalhães,
caráter experimental vice-diretora do MAC, lembrando que

86  z  maio DE 2019


Entre acte (1950/51),
de Geraldo de Barros,
monotipia sobre
papel colorida à mão:
artista visitou
o Atelier 17 em 1951

Toledo, que também é doutoranda no


Programa Interunidades em Estética
e História da Arte da USP, conta que a
coleção foi enviada com a finalidade de
contribuir para a formação do acervo do
primeiro museu de arte moderna do país.
Como parte desse esforço, Rockefeller já
havia doado, em 1946, um conjunto de
14 obras. “O envio de obras de arte fez
parte de uma estratégia de aproximação
cultural, política e econômica durante o
pós-guerra. As doações de Rockefeller
buscavam ampliar a influência dos Es-
tados Unidos no cenário latino-america-
2
no”, diz. As duas coleções foram trans-
feridas para o MAC-USP em 1963, ano
de fundação do museu, cujo acervo tem
os acervos do Museu de Arte Moderna hoje cerca de 12 mil obras.
(MAM) e do Museu de Arte de São Paulo Pesquisas em A curadora lembra que depois da Se-
(Masp) foram formados principalmente gunda Guerra Mundial a economia dos
por trabalhos de artistas europeus. Ma- acervos Estados Unidos passava por um período
galhães coordena o projeto de pesquisa de crescimento, atraindo intelectuais
que identificou as obras.
museológicos e artistas europeus para o país. “A arte
Produzida entre 1910 e 1960, a coleção trazem aspectos gráfica é um suporte de baixo custo, de
de gravuras havia sido exposta uma única rápida produção, voltada para a repro-
vez no Brasil após a doação de Rockefel- pouco dutibilidade em série, o que permitia, já
ler, na mostra Gravadores norte-america- naquele momento, ampliar a capacidade
nos, organizada pelo MAM poucos meses conhecidos da de divulgação da arte moderna”, afirma
antes da primeira Bienal de São Paulo, Toledo. De acordo com ela, em 1945 era
em 1951. Depois desse evento, o conjunto
historiografia possível comprar uma gravura premia-
permaneceu guardado na reserva técnica artística brasileira da de Hayter, como Tarantelle, por US$
do MAC-USP. “A historiografia sabia da 45. Além de museus e acervos de jornais
existência de algumas dessas gravuras, brasileiros, Toledo fez pesquisas no Ro­
mas desconhecia que elas faziam parte ckefeller Archive Center, em Nova York.
de uma coleção, que foi pensada e doada
ao Brasil como parte dos esforços norte- Gravuristas brasileiros
-americanos de ampliar a circulação de tas vinculados ao Atelier 17, do britâni- Até 1808, quando a família real se esta-
fotos 1 Coleção MAC USP / Ding Musa 2 Coleção MAC USP

obras de arte do país em território na- co Stanley William Hayter (1901-1988). beleceu no Brasil, as atividades de im-
cional”, explica Luiz Claudio Mubarac, Hayter fundou o Atelier 17 em 1927 em pressão estavam proibidas no país. Com
professor de artes plásticas da Escola de Paris, mas, em 1940, após a invasão da isso, o desenvolvimento das primeiras
Comunicações e Artes (ECA) da USP, França pelos nazistas, mudou-se para gráficas começou apenas na segunda
que não participa do projeto. Nova York. “O estúdio era um espaço de metade do século XIX. “O panorama
A doação foi realizada por intermé- experimentação de novos procedimentos nacional é muito diferente do europeu,
dio da equipe curatorial do Museu de e métodos e reunia artistas imigrantes e onde a tradição da gravura data do século
Arte Moderna de Nova York (MoMA) e mulheres”, informa a jornalista Carolina XV”, compara Mubarac, da ECA-USP. De
reúne obras realizadas a partir de téc- Rossetti de Toledo, autora da pesquisa acordo com ele, por causa dessas carac-
nicas e parâmetros estéticos da gravura de mestrado que identificou a coleção e terísticas, o trabalho de gravadores bra-
produzida nos Estados Unidos no final uma das curadoras da exposição, junto sileiros pioneiros como Carlos Oswald
dos anos 1940. A maior parte é de artis- com Magalhães. (1882-1971), Lívio Abramo (1903-1992)

pESQUISA FAPESP 279  z  87


Quadro de
Debret (ao lado)
e obra de Oscar
Pereira da Silva
(abaixo), que se
tornou referência
de imagem do
bandeirante

fotos 1 Jean-Baptiste Debret. Sauvages civilisés, soldats indiens de Mugi das Cruzas (Province de St Paul) combattant des botocudos (1834), litografia. Acervo da Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin (USP)
1
2

e Oswaldo Goeldi (1895-1961) também


é marcado por um caráter experimental.
Magalhães, do MAC-USP, conta que
alguns artistas brasileiros tiveram con-
tato com o Atelier 17 por intermédio de
bolsas de estudo e viagens; outros pelo meia-idade, com barbas longas, botas de entender se o exemplar do MAC-USP

2 Oscar Pereira da Silva. Combate de milicianos de Mogi das Cruzes com botocudos (1920), óleo sobre tela. Acervo do Museu Paulista (USP)
acesso a livros de Hayter e nas bienais cano alto e colete se disseminou pelo era um deles”, diz a pesquisadora. Por
de São Paulo, em exposições de gravuris- Brasil por meio de selos, moedas e em meio de estudos interdisciplinares que
tas ligados ao grupo dos artistas norte- livros didáticos, que reproduziam obras envolveram análises de raios X e técni-
-americanos. “Em 1951, após o retorno de de arte do acervo do museu”, conta. Se- cas de leitura de materiais, identificou-
Hayter dos Estados Unidos a Paris, Lívio gundo Marins, na origem da imagem -se que a escultura em gesso do acervo
Abramo e Geraldo de Barros [1923-1998], mais emblemática do que seria a peça de do MAC-USP é, de fato, a que foi exibida
por exemplo, foram à França e tiveram indumentária característica dos bandei- pelo artista na ocasião.
acesso aos equipamentos de impressão rantes – o gibão costurado em losangos – Quando Boccioni morreu, a escultura
e conhecimento das técnicas que circu- estaria a pintura encomendada pelo foi vendida a uma aristocrata milane-
lavam no estúdio”, conta. museu em 1920 a Oscar Pereira da Sil- sa e, depois, ao poeta futurista Filippo
va (1867-1939), que foi baseada em uma Tommaso Marinetti (1976-1944). Fran-
Revisão da história obra de 1843 do francês Jean-Baptiste cisco Matarazzo Sobrinho (1898-1977)
Assim como a coleção de gravuras, pes- Debret (1768-1848). “O quadro Comba- a comprou em 1952 e a doou ao acervo
quisas conduzidas como parte do projeto te de milicianos de Mogi das Cruzes com do MAC-USP em 1963. “Historiadores
coordenado por Magalhães têm revelado botocudos tornou-se uma referência ico- da arte costumavam tratar eventos co-
aspectos desconhecidos da historiografia nográfica e passou a definir a imagem da mo a aquisição da obra de Boccioni ou
artística brasileira. Também integrante roupa do bandeirante”, afirma. a doação de gravuras por Rockefeller
da equipe do projeto, Paulo César Garcez Ana Magalhães, por sua vez, desenvol- como temas à parte da historiografia ar-
Marins, professor do Museu Paulista, es- veu um estudo para identificar como a tística brasileira, mas as revisitações ao
tuda a constituição do imaginário brasi- obra Formas únicas da continuidade no acervo evidenciam que eles devem ser
leiro a partir da figura do bandeirante. De espaço, do futurista italiano Umberto entendidos como parte dessa história”,
acordo com ele, não há retratos desses Boccioni (1882-1916), chegou ao Brasil. conclui Magalhães. n
desbravadores feitos no período colonial, O original em gesso, que hoje pertence ao
de maneira que as características hoje acervo do MAC-USP, é uma das 11 peças
associadas a essa figura foram determi- que o artista exibiu em uma mostra de Projeto
nadas por encomendas feitas pelo Museu escultura futurista realizada em Paris Coletar, identificar, processar, difundir: O ciclo curato-
Paulista nas primeiras décadas do século em 1913. “Após sua morte, sobraram ape- rial e a produção do conhecimento (nº 17/07366-1);
Modalidade Projeto Temático; Pesquisadora respon-
XX. “Em sua maioria mestiços, a imagem nas três dos gessos que ele havia apre- sável Ana Gonçalves Magalhães (USP); Investimento
do bandeirante como homem branco de sentado nessa exposição. Precisávamos R$ 1.840.776,89.

88  z  maio DE 2019


resenhas

A voz coletiva em Antonio Candido


Luís Bueno

A
passagem do centenário de nascimento corpo dentro da vasta obra de Antonio Candido,
de Antonio Candido, em 2018, tem pe- ao lado dos trabalhos sempre lembrados. É o ca-
lo menos duas peculiaridades que vale so de Teresina etc., objeto específico dos textos
assinalar. A primeira é que seu caráter festivo de Michael Lowy e Vilma Arêas, mas evocado
foi nublado pela perda recente que representou em vários outros artigos. Ou do artigo Direito à
a morte do crítico, em 2017. A segunda é o mo- literatura, estudado por Irenísia Torres Olivei-
mento por que passa o país. ra e igualmente convocado em diversas outras
É nesse contexto que se publica esta que é a reflexões. Ou do último livro do homenageado,
mais abrangente coletânea de estudos sobre a O albatroz e o chinês, abordado por Celso Lafer
obra de Antonio Candido – lembre-se que já ha- e, mais uma vez, referido com frequência. Ou,
via volumes bastante ambiciosos organizados ainda, os textos da juventude, muito lembrados
por ocasião de outras homenagens. Essa abran- e objeto de um estudo do maior interesse de Edu
Antonio Candido gência não decorre do volume de textos em si, Teruki Otsuka, que localiza nos primeiros artigos
100 anos mas da trajetória que sua organização propõe de Candido o conceito de romance que se mobi-
Maria Augusta
Fonseca e
ao leitor e da variedade de elementos que são lizará na Formação.
Roberto Schwarz postos sob análise por um conjunto também va- Num outro plano, algumas novas interroga-
(orgs.) riado de autores. ções se fazem à obra do crítico, o que termina por
Editora 34 Tal trajetória se desenha já na nota introdutória ampliá-la em direções até hoje pouco exploradas,
496 páginas
R$ 82,00
assinada por Roberto Schwarz, que, em poucos como sua posição diante das literaturas africa-
parágrafos, esboça aquilo que o livro todo vai nas, tema de Rita Chaves, do universo feminino,
construir lentamente: a figura de um intelectual por Maria Augusta Fonseca, da escravidão (ou
de carne e osso e de suas ideias. É o homem de sua ausência) na Formação, por Luiz Felipe de
carne e osso que se evoca logo na segunda seção, Alencastro, ou ainda de sua antecipação a ela-
que traz a reprodução de dedicatórias ao crítico borações influentes de intelectuais postados no
em livros de Manuel Bandeira (1886-1968), Má- centro, como Fredric Jameson, a partir de um
rio de Andrade (1893-1945), Oswald de Andrade lugar periférico e de um objeto igualmente peri-
(1890-1954) e Graciliano Ramos (1892-1953). Na férico, a literatura brasileira, tal como descortina
terceira seção, o poeta Francisco Alvim dá um o artigo de Silvia L. Lopez.
curto-circuito que energizará todo o livro ao Esses são uns poucos exemplos que dão ideia,
nos conduzir a um outro poeta, Tomás Antônio em curto espaço, da contribuição que o volume
Gonzaga (1744-1810), lido pelos olhos do crítico traz para um balanço e uma nova compreensão
que leva em conta o que sofreu o homem-poeta da obra do autor de Na sala de aula. O que se de-
de carne e osso. ve ressaltar, no entanto, é o quanto o conjunto
Nas cinco seções seguintes, avançamos no per- apresenta uma forma de pensar que ainda tem
curso que sai do mais pessoal, uma série de de- muito a dizer e que é possível sintetizar a par-
poimentos de alunos, para dirigir-se à militância tir de um dos mais fortes textos da coletânea, o
política, ao vasto interesse pela América Latina e de Ana Paula Pacheco. Mobilizando um grande
à cultura de forma ampla, para chegar, na oitava número de escritos de Candido, ela contrasta o
e mais volumosa seção, à crítica literária, cam- tempo de formação do crítico e o nosso, o radi-
po preferencial do homenageado. Servindo de calismo do crítico e o conformismo que domina
coda, é a voz do crítico que, lembrando de sua hoje, quando “a classe média ‘cansou’”.
experiência pessoal como leitor desde a infân- Abdicar do exercício de esperança da igualda-
cia, fecha o livro. de, ensina Antonio Candido, é abdicar do mais
É evidente que nada é assim tão estanque, e o importante. E isso a voz coletiva que soa em An-
crítico é evocado desde o princípio, bem como tonio Candido 100 anos nos lembra o tempo todo.
o homem de carne e osso, professor e militante,
apresenta-se a todo instante. Nesse movimento, Luís Bueno é professor do Departamento de Literatura e Linguística
alguns elementos surgem renovados e ganham da Universidade Federal do Paraná (Dellin-UFPR).

PESQUISA FAPESP 279 | 89


Encadeamento filosófico
Marcelo Jacques de Moraes

U
ma das maiores ilustrações do Iluminismo E é especialmente à tal articulação que se de-
francês do século XVIII encarnou-se na dica Franklin de Mattos em A cadeia secreta,
Enciclopédia, ou Dicionário razoado das seu segundo livro dedicado a Diderot, em que
ciências, das artes e dos ofícios, escrita entre 1747 vai muito além de uma arguta e necessária re-
e 1766 no intuito de “reunir”, numa única obra, constituição da contribuição do escritor para o
“os conhecimentos espalhados sobre a superfície “lento processo de habilitação do romance no
da Terra”, como resumiu no verbete “Enciclopé- século XVIII”. Mattos mostra ao longo de sete
dia”, redigido em 1755, Denis Diderot (1713-1784). ensaios como, nos romances do “inquieto expe-
Com Jean d’Alembert (1717-1783), ele concebeu rimentador”, redesenham-se suas “duas grandes
e coordenou o ambicioso projeto. vocações”: “o materialismo e a conversação”, mas
Diderot descobriu, contudo, que a reunião de es- sem por isso deixarem de manter uma secreta
pecialistas, artistas e homens de letras não garantia consonância, ou cadeia, com as obras filosóficas
A cadeia secreta – uma obra perfeitamente acabada, que restituísse e dramatúrgicas do escritor.
Diderot e o um universo inequívoco, desde então disponível Conciliando capacidade de síntese com erudi-
romance filosófico
Franklin de Mattos
para todos, até porque, no limite, cada um dos co- ção crítica, Mattos retrama os elos dessa cadeia a
Editora Unesp laboradores “tinha sua maneira de sentir e de ver”. partir especialmente da apresentação e da leitura
162 páginas E, mais do que isso, o filósofo passava a intuir que de três obras primordiais: As joias indiscretas, A
R$ 34,00 o grande obstáculo ao projeto não residia tanto nas religiosa e Jacques, o fatalista. Cabe destacar dois
diferenças de visão dos colaboradores quanto na aspectos fundamentais no que tange ao confron-
própria natureza da linguagem. Em vez de mediar to incontornável entre a ordem da natureza e as
a aproximação de um real supostamente inteligí- convenções morais que a obra de Diderot expõe
vel por meio do estabelecimento de conceitos e e que as análises de Mattos exploram.
representações estáveis e claramente remissíveis O primeiro aspecto diz respeito à atenção de
a outros conceitos e representações, a linguagem Diderot à dimensão material do desejo, que, na
parecia adiar a aquisição de certezas filosóficas ou leitura de Mattos, aparece especialmente na pers-
práticas. Estas, de fato, não cessavam de se perder pectiva do feminino: seja ao fazer “ouvir” a “voz
no redemoinho dos verbetes e das pranchas da En- impertinente” das joias femininas, seja com a des-
ciclopédia: “Vimos, à medida que trabalhávamos, a crição de “cenas de prazer sáfico” entre religiosas,
matéria estender-se, a nomenclatura obscurecer- seja no teatralizado embate entre “maquiavelismo
-se, substâncias reduzidas a uma infinidade de no- feminino” e “despotismo masculino”.
mes diferentes, os instrumentos, as máquinas, e as O segundo aspecto concerne à dimensão labi-
manobras multiplicando-se desmesuradamente, e ríntica da linguagem. A trama de A religiosa se
os numerosos desvios de um labirinto inextricável configura como uma “falsa história verdadeira”,
se complicando cada vez mais”. produzida a partir da manipulação de cartas tro-
Nesse sentido, o trabalho do filósofo, longe de cadas entre personagens ficcionais e reais. Jac-
iluminar plenamente o sentido do mundo, vinha ques, o fatalista, por sua vez, constitui-se como
revelar sua irredutibilidade à linguagem, perma- uma longa conversa em que se cruzam e recru-
necendo sempre, de certa forma, assombrado pelo zam vozes, reabrindo indefinidamente “os anéis
não senso. E “uma verdadeira Enciclopédia”, em da vasta cadeia que nos determina”.
última instância, não poderia ser senão um texto Ao longo do livro, Mattos retoma e revitaliza
por se escrever. o debate em torno do espinozismo de Diderot:
Creio que essa suspeita em relação à lingua- “Embora fatalistas, continuamos a falar, pensar e
gem foi uma das principais razões pelas quais escrever como se fôssemos livres”. Ironicamente,
o romance adquiriu tanta importância na obra faz ressoar um impasse que, desde o Iluminismo
mais tardia de Diderot, numa articulação entre do século XVIII, continua sendo nosso.
filosofia e literatura que, desde então, se imporia
de maneira cada vez mais consistente e incisiva Marcelo Jacques de Moraes é professor de literatura francesa na
como domínio e prática do pensamento. Universidade Federal do Rio de Janeiro.

90 | maio DE 2019
memória
Hermínio Lacerda / Ibama

Ação do Ibama
no início dos anos
1990: apreensão
de animais
silvestres e redes
usadas em pesca
predatória

Luta pela floresta

O
Há 30 anos o Ibama atua Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos
Recursos Naturais Renováveis (Ibama)
na proteção do meio completou 30 anos com o desafio de manter
sua autonomia e agenda de proteção do
ambiente no Brasil por meio ambiente. Por meio de laudos e estudos
meio de operações tecnocientíficos, o órgão desenvolve ações de combate a
crimes ambientais e de monitoramento e controle de
baseadas em estudos atividades envolvendo o uso de recursos naturais, como a
exploração de petróleo, de minério de ferro, entre outras
tecnocientíficos atividades potencialmente poluidoras do meio ambiente.
O Ibama foi criado oficialmente em 22 de fevereiro
de 1989 durante o governo do presidente José Sarney
(1985-1990). O objetivo era integrar as atividades
Rodrigo de Oliveira Andrade de gestão dos recursos ambientais no Brasil, até então
conduzidas por outras instituições governamentais
criadas ao longo das décadas de 1960 e 1970.
Entre elas estavam a Superintendência do
Desenvolvimento da Pesca (Sudepe) e o Instituto
Brasileiro de Desenvolvimento Florestal (IBDF),
ambos ligados ao Ministério da Agricultura, Pecuária e
Abastecimento (Mapa), e a Superintendência da

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projetos estruturados em
estudos científicos. “Suas
atividades englobam um
amplo conjunto de dados e
informações, provenientes
de processos de
investigação e inteligência,
que servem de base para
ações estratégicas de
fiscalização e licenciamento
ambiental”, escreveu a
economista Nadi Helena
Presser, do Departamento
de Ciência da Informação
da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE), em
artigo publicado em 2018 na
revista Pesquisa Brasileira
em Ciência da Informação e
1 Biblioteconomia.
Os dados a partir dos
Borracha (Sudhevea), ajudassem a conciliar Carregamento quais o instituto estrutura
vinculada ao então o desenvolvimento de madeira de as suas operações são
desmatamento
Ministério da Indústria, econômico e a preocupação obtidos por meio de estudos
interceptado
Comércio Exterior e ecológica no Brasil”, por agentes desenvolvidos no próprio
Serviços (MDIC). conta Teixeira. órgão ou por universidades
“Esses órgãos surgiram Da iniciativa surgiu a e instituições de pesquisa,
em um período marcado noção de que era preciso a partir de convites ou
pela construção de grandes centralizar a gestão das licitações. Exemplo disso
obras, com alto impacto políticas oficiais é a Operação Panóptico,
ambiental”, explica o relacionadas à proteção dos concebida em 2018 com
agrônomo Leonardo Ribeiro recursos naturais e seu uso base em estudos realizados
Teixeira, analista ambiental adequado em um único por analistas do órgão e
do Ibama entre os anos de órgão. “Foi quando se Mais de 1 milhão pesquisadores da
2003 e 2018. É o caso da decidiu pela extinção das de filhotes de Universidade Federal de
tartaruga foram
rodovia Transamazônica, na antigas autarquias e a Minas Gerais (UFMG).
monitorados pelo
região Norte, e a construção incorporação de seus órgão entre 2017 A operação pretende
da Usina de Itaipu, no Sul funcionários ao Ibama”, e 2018, no Pará prevenir o desmatamento
do país. Ele lembra que destaca o sociólogo Heitor
a situação na Amazônia Schulz Macedo, analista
em fins da década de 1980 ambiental do Ibama entre
também era alarmante, 2003 e 2008.
com altíssimo índice de
desmatamento; a caça Bases científicas
e a pesca avançavam sem Somente em 2002 foi
controle, assim como os realizado o primeiro
conflitos entre comunidades concurso para a contratação
tradicionais e os novos de analistas ambientais no
ocupantes de terras. órgão. “Isso abriu caminho
O acúmulo de incidentes para o aprimoramento dos
desencadeou pressão trabalhos de fiscalização,
sobre o governo no sentido como o uso de ferramentas
de fortalecer a gestão de georreferenciamento
ambiental. “Uma equipe de para a identificação e
especialistas e acadêmicos qualificação de infrações
foi convocada em meados ambientais”, diz Teixeira.
de 1988 para avaliar o Uma das marcas do
estado dos recursos naturais Ibama hoje é o
e propor estratégias que desenvolvimento de 2

92 | maio DE 2019
3

na Amazônia por meio da Em maio de 2018 Tropicais do Brasil (PPG7), concursados e pessoas
identificação de áreas de o instituto apreendeu iniciativa do governo sem vínculo com a
7.387 toras extraídas
maior risco. Isso é feito com brasileiro em parceria administração pública em
ilegalmente da
dados georreferenciados terra indígena Pirititi, com a comunidade cargos comissionados. Seu
obtidos pelo Instituto em Roraima internacional, incluindo os orçamento previsto para
Nacional de Pesquisas países do Grupo dos 7 (G7), este ano é de R$ 1,73 bilhão.
fotos 1 Hermínio Lacerda / Ibama 2 wikimedia commons / Roberto Lacava / Ibama  3 wikimedia commons Felipe Werneck / Ibama

Espaciais (Inpe). Com a e o Banco Mundial. Entre outras finalidades,


identificação dessas áreas, O ProVárzea, lançado esse valor deverá subsidiar
proprietários rurais são em 2001, teve como objetivo as ações do Ibama em
monitorados e orientados estabelecer as bases 2019, as quais se basearão
sobre a necessidade científicas, técnicas e no Diagnóstico dos Delitos
de solicitar autorização políticas para a conservação Ambientais 2018, que
antes de desmatar. e o manejo ambiental e mapeia problemas nacionais
Segundo Henrique socialmente sustentável e em âmbito estadual.
dos Santos Pereira, dos recursos naturais das Nos últimos meses o
superintendente do Ibama O Ibama luta várzeas da região central órgão vem lutando para
entre 2003 e 2009 e da bacia amazônica. manter sua autonomia
professor de ciências
para manter sua “O projeto contou com administrativa, técnica e
ambientais da Universidade autonomia a colaboração de orçamentária. Desde março,
Federal do Amazonas universidades e institutos as demandas de imprensa
(Ufam), o Ibama
administrativa, de pesquisa da região relacionadas à atuação
desenvolveu outros dois técnica e amazônica, contratados do Ibama devem ser
projetos de grande pelo Ibama para executar direcionadas à Assessoria
importância, sobretudo
orçamentária estudos diversos”, de Comunicação do
para a Amazônia: o Projeto esclarece o oceanógrafo Ministério do Meio
Manejo dos Recursos Mauro Luis Ruffino, Ambiente (MMA). Isso
Naturais da Várzea coordenador do ProVárzea. tem dificultado o acesso de
(ProVárzea) e o Projeto de Segundo dados obtidos jornalistas e organizações
Apoio ao Manejo Florestal via Portal da Transparência, não governamentais, por
Sustentável na Amazônia o Ibama conta hoje com exemplo, a informações e
(Promanejo), ambos no 3.922 funcionários, dados oficiais relacionados
âmbito do Programa Piloto incluindo técnicos e às ações levadas a cabo
para Proteção das Florestas pesquisadores, servidores pelo órgão ambiental. n

PESQUISA FAPESP 279 | 93


carreiras

Gênero

A retomada do espaço da mulher na computação


Iniciativas estimulam meninas a explorar as áreas de tecnologia, programação e empreendedorismo no Brasil

N
o dia 10 de abril o mundo foi Uma foto de Bouman publicada chamar a atenção de algumas
apresentado à primeira imagem nas redes sociais no dia do anúncio instituições de ensino superior, como
dos arredores de um buraco correu o mundo. Nela, a pesquisadora a Universidade Carnegie Mellon,

fotos 1 Eduardo Kenji Misawa 2 wikimedia commons ilustraçãO ana matsusaki


negro, no coração da galáxia Messier aparece diante do computador na Pensilvânia, nos Estados Unidos.
87, há 55 milhões de anos-luz do reagindo com alegria à imagem do Ela foi uma das primeiras a tentar
Sistema Solar. O feito é resultado do anel amarelo-alaranjado. A imagem compreender e reverter esse
esforço de mais de 200 pesquisadores transformou Bouman em uma das desequilíbrio em seus cursos de
do consórcio internacional Telescópio principais personagens do trabalho ciência da computação. O movimento
Horizonte de Eventos (EHT). feito pelo consórcio EHT – e também com o tempo disseminou-se por
Entre eles, o nome da cientista da em um símbolo para todas aquelas outras instituições, inclusive do Brasil.
computação norte-americana Katie que lutam para retomar seu espaço na Mais recentemente, novas iniciativas
Bouman se destaca. Aos 29 anos, ciência da computação. foram lançadas, todas com o propósito
ela foi a responsável por desenvolver o As mulheres tinham presença de contribuir para que meninas e
algoritmo que auxiliou a equipe de marcante nos cursos de ciência da mulheres se sintam motivadas
cientistas a construir a imagem. A computação nos Estados Unidos e no a explorar as áreas de tecnologia,
empreitada se deu há três anos, em seu Brasil até meados da década de 1980, programação e empreendedorismo.
doutorado em ciência da computação quando a tendência se inverteu Uma dessas iniciativas no Brasil é a
e inteligência artificial no Instituto de e a área passou a ser ocupada PrograMaria (www.programaria.org),
Tecnologia de Massachusetts (MIT), majoritariamente por homens. Essa lançada em 2015 pela jornalista e
nos Estados Unidos. situação aos poucos começou a empreendedora paulista Iana Chan.

94 | maio DE 2019
O projeto nasceu como um clube de
programação para mulheres. “Algumas
amigas e eu decidimos nos reunir para
aprender mais sobre tecnologia e
programação e discutir a presença das
mulheres nessas áreas”, diz. O grupo
identificou vários obstáculos que
contribuem para afastar meninas e
mulheres desse universo, como a falta
de exemplos que as inspirem a
ingressar em cursos nesse campo e
preconceitos que reforçam a ideia Iana Chan fez da
de que tecnologia é algo masculino. PrograMaria um
projeto capaz
Diante disso, Chan resolveu de despertar o
transformar a PrograMaria em um interesse feminino
projeto maior, capaz de despertar o pela tecnologia e pelo
interesse feminino pela tecnologia, por empreendedorismo

meio de palestras, debates e oficinas de


programação em parceria com outras
empresas engajadas em aumentar a
presença de mulheres nessas áreas. Ela
também oferta cursos, nos quais ensina
conceitos básicos de programação às 1

mulheres, de modo que elas consigam


desenvolver seus próprios sites.
Em três anos, a PrograMaria formou Logo após concluir a graduação, cursos de computação cresceu 586%
115 mulheres. Muitas conseguiram mergulhou de vez na área. Trabalhou nos últimos 24 anos no Brasil. Já o
ingressar no mercado de trabalho. É o em empresas de São Paulo até ser percentual de mulheres matriculadas
caso de Tuanny Ruiz, de 25 anos. Ela chamada para atuar como nesses cursos passou de 34,8% para
conta que sempre se interessou por programadora em uma companhia 15,5%, segundo dados do Instituto
matemática e programação, mas que, varejista norte-americana no Canadá, Nacional de Estudos e Pesquisas
por pressão dos pais, resolveu cursar para onde se mudou em abril. Educacionais (Inep), do Ministério da
engenharia civil. “Com o tempo Educação (MEC). O cenário também é
comecei a me desinteressar pelo curso.” Déficit profissional preocupante nos Estados Unidos.
Sem abandonar a faculdade, decidiu A necessidade de se ter mais mulheres O país deve chegar em 2020 com
estudar programação sozinha. na ciência da computação não é só aproximadamente 1,4 milhão de vagas
Em outubro de 2016, participou das uma questão de equidade de gênero, na área de tecnologia da informação e
oficinas e fez o curso da PrograMaria. mas também econômica. O número de um déficit de mão de obra da ordem
de 1 milhão de profissionais, segundo
a organização Code.org. “Só daremos
conta dessa demanda se inserirmos
as mulheres na área”, afirma Chan.
Uma das ações nesse sentido é a
Technovation Summer School for
Girls, lançada este ano pelo Instituto
de Ciências Matemáticas e de
Computação da Universidade de São
Paulo (ICMC-USP), em São Carlos. “O
projeto pretende ensinar meninas de
10 a 18 anos a desenvolver aplicativos
que contribuam para solucionar
problemas sociais, além de apresentar
possibilidades de carreira nas áreas de
tecnologia e empreendedorismo”,
explica a cientista da computação
Kalinka Castelo Branco, pesquisadora
do ICMC e coordenadora do Grupo de
2 Alunas nas Ciências Exatas (Grace),
Bouman com os arquivos de dados usados para construir a imagem dos arredores do buraco negro responsável pelo projeto.

PESQUISA FAPESP 279 | 95


Contribuição feminina
Mulheres e alguns de seus feitos na ciência da computação e tecnologia da informação

Várias mulheres contribuíram para A matemática britânica Ada


o aprimoramento da ciência da Lovelace (1815-1852) é considerada
a primeira programadora da história.
computação e da tecnologia da
Ela descreveu como códigos
informação (TI) ao longo de décadas, poderiam ser usados para manipular
criando componentes, cálculos e letras, símbolos e números, e, assim,
softwares ainda hoje considerados realizar cálculos complexos.
Suas ideias foram fundamentais para
essenciais para o desenvolvimento
que o matemático britânico Charles
dessas e de outras áreas do Babbage (1791-1871), seu amigo
conhecimento. Por muito tempo seus e tutor, projetasse uma máquina que,
nomes e trabalhos permaneceram se construída, teria sido o primeiro
computador da história. A cientista espacial
à sombra da história, ofuscados pela norte-americana Katherine
noção difundida a partir de 1980 Johnson ajudou a confirmar
de que programação, tecnologia e a precisão dos computadores
A alemã Stephanie Shirley usados pela Nasa e realizou
empreendedorismo seriam áreas
contribuiu para o avanço das cálculos que contribuíram para
masculinas. Aos poucos, no entanto, mulheres na área de TI e assegurar a realização de
historiadores da ciência, programação de computadores viagens espaciais mais seguras
pesquisadores e coletivos de ao criar a empresa de software a partir dos anos 1950. Ela
Freelance Programmers. também é responsável por
mulheres programadoras trabalham
A companhia foi fundada em algumas das análises usadas
para resgatar suas trajetórias e 1962 na Inglaterra e inicialmente para viabilizar o primeiro voo
lançar luz sobre seus feitos. empregava apenas mulheres. espacial humano em 1961.

O curso é voltado principalmente às Parte dos recursos também será


alunas da rede pública de ensino do convertida em bolsas de iniciação
estado de São Paulo e em sua primeira científica para que alunos de
edição teve a participação de 74 graduação do ICMC ministrem aulas
meninas e jovens entre 10 e 18 anos de de reforço nessas escolas.
idade. Elas aprenderam a desenvolver Outros exemplos de esforço na
um aplicativo e a apresentá-lo em redução das desigualdades de gênero
público. “As maiores de 15 anos no campo da ciência da computação
também foram instruídas a elaborar dizem respeito a iniciativas como o

fotos  1 wikimedia commons 2 divulgação Pyladies São paulo ilustraçãO ana matsusaki
um plano de negócio para viabilizar Meninas na Computação, do
suas ideias”, destaca Castelo Branco. Departamento de Computação da
Este ano, a presença feminina no Universidade Federal de Sergipe
evento mais do que dobrou: (UFS), em São Cristóvão, que pretende
162 estudantes participaram das incentivar jovens sergipanas a
atividades, que não exigem ingressar na área, o Cunhatã Digital,
conhecimento prévio de informática. que busca atrair meninas e mulheres
A iniciativa faz parte de outro a pesquisadora. “Teremos à disposição da região amazônica, e o Meninas
projeto em desenvolvimento pelo R$ 95 mil ao longo de um ano.” Digitais, da Sociedade Brasileira
ICMC em escolas públicas de São Ela explica que o valor será usado de Computação (SBC), para
Carlos. “Nossa proposta foi um dos no custeio de bolsas de pré-iniciação alunas do ensino médio e dos últimos
projetos contemplados em uma científica para meninas do ensino anos do fundamental de todo o país.
chamada do CNPq [Conselho Nacional médio de cinco escolas públicas da Também a Universidade Federal
de Desenvolvimento Científico e região. O projeto também prevê uma da Paraíba (UFPB), em João Pessoa,
Tecnológico], realizada no final do ano bolsa-auxílio de R$ 400 para uma há algum tempo desenvolve
passado para estimular a participação professora de cada escola. A ideia é seu projeto, chamado Meninas na
e a formação de meninas e mulheres levá-las à universidade para que Computação. “Desde 2014 realizamos
nas ciências exatas, engenharias e participem de palestras e oficinas oficinas de programação e robótica,
computação [Stem, em inglês]”, conta sobre assuntos ligados às áreas Stem. desenvolvimento de aplicativos, visitas

96 | maio DE 2019
no curso de bacharelado em ciência No entanto, a partir de 1985,
da computação da UFPB, apenas enquanto a incidência de mulheres nos
10% dos alunos eram mulheres. outros cursos continuou a aumentar,
Na engenharia computacional, 17%.” superando os 40% em 2015, na ciência
da computação, o movimento virou
Inversão de papéis para queda, saindo de cerca de 35%
As mulheres já foram maioria nos para menos de 20% em 2015. Para
cursos de ciência da computação em Medeiros, a principal explicação
algumas das principais universidades para o fenômeno, tanto no Brasil
do Brasil. Em 1974, 14 dos 20 alunos quanto nos Estados Unidos, estaria
que se formaram na primeira turma nos anos 1980, com a popularização
do bacharelado em ciência da dos computadores pessoais.
computação do Instituto de Então enormes máquinas de
Matemática e Estatística (IME) da calcular, após o fim da Segunda Guerra
USP eram mulheres. Em 2016, porém, Mundial (1939-1945) os computadores
dos 41 estudantes que concluíram o eram usados principalmente em
curso, apenas seis eram mulheres. atividades associadas à função de
Segundo a cientista da computação secretariado, como o processamento
Claudia Bauzer Medeiros, do Instituto de dados e a tabulação eletrônica.
de Computação da Universidade O predomínio das mulheres era
Estadual de Campinas (IC-Unicamp), evidente. No cálculo da folha de
o caso das mulheres nesse campo pagamento de empresas, por exemplo,
A engenheira de software norte-americana destoa das outras áreas Stem porque elas costumavam escrever os códigos
Margaret Hamilton foi diretora da Divisão elas já foram maioria no curso. que depois seriam transformados
de Software do Instituto de Tecnologia de Esse fenômeno parece seguir o em cartões perfurados para serem
Massachusetts (MIT) e responsável
pelo desenvolvimento do programa de
mesmo movimento observado nos lidos pelas máquinas.
voo usado no projeto Apollo 11, a primeira Estados Unidos. Segundo dados do Em meados dos anos 1980, com
missão tripulada à Lua. Centro Nacional de Estatísticas da a chegada dos primeiros computadores
1 Educação daquele país, as mulheres pessoais, esse cenário mudou.
representavam quase 37% de todos Relatório de 1985 produzido pelo
os estudantes de graduação em ciência Centro Nacional de Estatísticas da
aos laboratórios da universidade, da computação entre 1984 e 1985. Educação verificou que os
debates e palestras sobre equidade de Ao mesmo tempo, dados da American meninos nos Estados Unidos eram
gênero nas áreas Stem em escolas Bar Association, American Association muito mais propensos a usar essas
públicas da região”, conta a cientista of Medical Colleges e da National máquinas em casa do que as
da computação Josilene Aires Science Foundation apontam para meninas, possivelmente porque o
Moreira, do Centro de Informática uma participação crescente de marketing dos fabricantes era
da UFPB e coordenadora do projeto. mulheres em cursos superiores nas direcionado principalmente a eles.
Ela destaca que 65% dos 1.866 áreas do direito, ciências físicas, “É possível que isso tenha contribuído
frequentadores de cursos Stem na medicina e ciência da computação para que os garotos passassem a
instituição são homens. “Em 2018, entre as décadas de 1960 e 1980. aprender e a se interessar mais por
programação”, sugere Medeiros.
Com o tempo, a noção de que
a atividade de programação era
masculina tornou-se a narrativa
padrão, contribuindo para que fossem
esquecidos os nomes de personagens
femininas com importantes
contribuições para a área (ver box).
Em movimento similar ao desenvolvido
pela física britânica Jessica Wade
(ver Pesquisa FAPESP nº 276), a
PrograMaria reuniu recentemente
40 jovens programadoras em uma
maratona para criar, traduzir ou
melhorar o perfil na Wikipédia de 45
mulheres que atuam ou atuaram nas
2 áreas Stem, no Brasil e no exterior. n
Alunas durante curso de programação oferecido no IME-USP pelo Meninas Digitais e grupo PyLadies Rodrigo de Oliveira Andrade

PESQUISA FAPESP 279 | 97


perfil

Para ampliar as conexões


Física brasileira Cecilia Chirenti é selecionada para participar de programa de pesquisa
no Canadá dedicado a mulheres cientistas

A noção de que as áreas de ciência, Poucos meses antes de concluir seu uma das áreas da física teórica
tecnologia, engenharia e matemática estágio de pós-doutorado, em 2008, existentes no Perimeter. No processo
(Stem, em inglês) não são para as resolveu voltar para o Brasil e prestar seletivo, avaliam-se a produção das
mulheres nunca passou pela cabeça o concurso. Foi aprovada e, aos 26 pesquisadoras e o estágio da carreira
de Cecilia Chirenti. Sua mãe é anos de idade, tornou-se professora no qual se encontram. Chirenti foi
formada em engenharia eletrônica e adjunta do Centro de Matemática, contemplada junto com outras sete
desde 1978 leciona na Universidade Computação e Cognição da UFABC. cientistas de vários países e campos
Presbiteriana Mackenzie, em São Em 2018, ao tomar conhecimento da física teórica. Durante três meses,
Paulo, de modo que Chirenti não se do programa Simons Emmy poderá frequentar o instituto
sentiu intimidada ao escolher estudar Noether Fellows, desenvolvido pelo e lá estabelecer novas colaborações
no Instituto de Física da Universidade Instituto Perimeter de Física Teórica, de pesquisa. O objetivo é avançar
de São Paulo (IF-USP). “Muitos em Waterloo, Canadá, e voltado a em seus trabalhos sobre ondas
colegas da graduação morriam de físicas teóricas em início ou meados gravitacionais, buracos negros e
inveja porque eu podia tirar dúvidas de carreira, decidiu se candidatar estrelas de nêutrons.
de cálculo em casa”, brinca. (ver Pesquisa FAPESP nº 250). Chirenti é a primeira cientista
Só não tinha certeza se conseguiria As candidatas à bolsa precisam brasileira a obter uma bolsa do
construir uma trajetória acadêmica ocupar um cargo em instituição programa, que consiste em auxílio
no Brasil. “Ainda assim, decidi estudar de ensino superior e atuar em de 3 mil dólares canadenses
o que amava e fazer minha carreira (cerca de R$ 8,6 mil) por mês,
dar certo.” Na faculdade, Chirenti além do custeio de todas as despesas
fez dois anos de iniciação científica. com alimentação, moradia e
A experiência foi suficiente, na transporte durante sua permanência
avaliação de seu futuro orientador, no país. Ela embarcará para o
o físico teórico Elcio Abdalla, para Canadá em setembro. O programa
credenciá-la a um doutorado direto, também irá disponibilizar recursos
na mesma instituição, em 2003. para que Iara Ota, única mulher
Foi quando começou a trabalhar entre os seus três orientandos de
com perturbações de sistemas pós-graduação na UFABC, possa
gravitacionais, à luz da teoria da passar um mês no instituto. “A ideia
relatividade geral, proposta em 1915 é que ela participe de seminários,
pelo físico alemão Albert Einstein desenvolva parte de seu projeto
(1879-1955). de pesquisa e inicie novas
Chirenti concluiu sua pesquisa colaborações”, diz Chirenti. n R.O.A.
em 2007 e em seguida iniciou um
estágio de pós-doutorado no Instituto
Max Planck de Física Gravitacional,
em Potsdam, Alemanha. “Achava que
ficaria mais algum tempo no exterior
para talvez fazer outro estágio de
pós-doutorado”, conta. “Um dia, no No Canadá,
entanto, Elcio Abdalla me alertou Chirenti pesquisará
sobre ondas
sobre a abertura de concurso para
gravitacionais,
professor na Universidade Federal buracos negros e
do ABC”, relembra. estrelas de nêutrons
léo ramos chaves

98 | maio DE 2019
Você sabia que
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