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REFORMA CATÓLICA E REFORMA PROTESTANTE

estudo das diferenças entre processos reformatórios na Igreja

Eduardo Kirchhof1

RESUMO

O século XVI apresenta-se como um período de grandes transformações para a, então,


instituição de maior poder na Europa: a Igreja Católica Apostólica Romana. Datando dos
séculos finais da Baixa Idade Média, após longos e numerosos processos de cristianização, a
Igreja Católica torna-se uma instituição forte e influente, assim como seu corpo clerical dentro
dos “proto-Estados” europeus. Todavia, com a ascensão de movimentos contrários a certas
colocações da instituição, simultaneamente à tomada de poder por monarcas europeus através
da crescente onda absolutista, a Igreja percebe-se obrigada a revisar suas práticas.
Não obstante, pode-se perceber movimentos de mudança dentro do corpo eclesiástico anteriores
aos movimentos supracitados, podendo remontar propostas reformatórias antes mesmo dos
movimentos chamados “protestantes”. Proponho-me a analisar as transformações dentro deste
período, procurando revisar o conceito de Contrarreforma; não mais como uma simples resposta
aos movimentos citados, mas que vinha há muito sendo encaminhado e processado.

Palavras-chave: reforma. igreja. protestantismo.

ABSTRACT

The 16th cenctury shows itself as a period of great transformations for the, by that time, most
powerfull institution in Europe: the Catholic Apostolic Roman Church. Dating from the last
centuries of the so called Low Medieval Period, after long and numerous processes of
christianization, the Catholic Church became a strong and influent, like it’s clerical body within
the european “proto-Estates”. However, with the ascencion of monarchical power throughout
Europe and the rising absolutism wave, the Church finds itself in need of reavaluation.

1
Graduando do Curso de História (Noturno) – Universidade Federal de Santa Catarina –
Florianópolis/SC – edukirchhof@hotmail.com
2

However, changing movements within this eclesial body may be noticed even before this
movements, allowing for reformatory propositions to grow even before the so called
“protestants”. My proposition is to analise the transformations within this period, aiming to
revise the concept of Counter Reformation; no longer as a simple answer tothis movements, but
something that was already on the run for some time then.

Keywords: reformation. church. protestantism.

AGRADECIMENTOS

O seguinte trabalho é fruto de uma revisão bibliográfica realizada frente ao artigo


Ex Opere Operato: Sobre a ascensão da Devotio Moderna e a quebra política da
Igreja Medieval, sob a orientação do Prof. Dr. João Klug, e apresentado no VI
Congresso Teológico da FACASC, Faculdade Católica de Santa Catarina.
Aproveito a oportunidade para agradecer ao professor, assim como à comissão
científica do congresso, pela oportunidade de desenvolver e apresentar este
trabalho.
3

INTRODUÇÃO

Para compreender os movimentos acontecidos dentro da Igreja durante sua Reforma,


assim como a sua força política, quebra e retomada desta nos momentos de sua atuação, é
necessário primeiro entender a conjuntura que se encontrava aquela nos momentos anteriores à
esta, objetivo final deste trabalho. Durante os últimos séculos da Baixa Idade Média, a Igreja
representava o maior poder político dentro da Europa, estando acima dos senhores medievais.
Sediada em Roma, a Igreja era a representante da fé cristã diante seus súditos, do simples
camponês aos senhores feudais e, posteriormente, com a tomada de poder monárquico, dos reis.

Essa tomada, porém, movimentou a Europa de forma a virar a jogo a favor das
monarquias recém estruturadas. A união de feudos pelo poder do absolutismo real, construiu as
poderosas nações europeias do período moderno, baseadas na Legibus Solutus do direito
romano, implicando que a vontade do rei é a lei. Esse fortalecimento do poder real contou,
sobretudo, com o apoio da classe burguesa, emergente comercial das cidades europeias. Esse
processo de nacionalização europeia, contudo, buscava também a libertação das nações em
relação à Igreja, aproveitando-se da procura sempre ascendente pelo controle, exercida por
estes. Sobre este processo, Martin N. Dreher explica em sua obra Crise e Renovação da Igreja
no Período da Reforma, que “Após o cisma (1378-1417; 1449) e depois do Concílio de Basiléia,
os papas tiveram que buscar reconhecimento junto aos príncipes, imperadores e reis,
concedendo ao Estado grandes poderes sobre a Igreja. ”2.

Conseguinte a essa mudança de lideranças na política europeia, a Igreja teve de curvar-


se perante a autoridade monárquica, mas claro, afim de continuar com seu poder intacto (na
medida que isto fosse possível). Pode-se, portanto, observar a cumplicidade entre a nobreza e
o clero, com acordos econômicos e políticos, firmando um plano de mutuo ganho: a Igreja
estaria isenta de seus impostos e inserida nesta rede de exploração do campesinato; a
monarquia, mais especificamente o rei, por sua vez, estaria inserido na alta cúpula da Igreja,
passível de determinar, juntamente com os colegiados, planos e ações para a atuação desta na
Europa.

Este entrosamento malicioso, porém, como já explicado, visada principalmente a


exploração final do camponês e da própria classe burguesa, apoiadora da monarquia. É sabido

2
DREHER, Martin N. “A crise e a renovação da Igreja no Período da Reforma”. São Leopoldo : Simodal, 1996.
Página 15.
4

que as indulgências, amplamente criticadas por reformadores protestantes como Lutero e,


juntamente, teóricos do período, cada vez mais presentes pela atuação em universidades
europeias, eram concedidas com o favor dos príncipes europeus, recebedores de uma fração dos
“lucros” do processo da salvação. Atos como este reforçam a teoria de Dreher, afirmando o
poder real acima do clero. Este exemplo demonstra, também, a disseminação do “metalismo”,
proposta mercantilista de apropriação de metais no intuito de demonstrar o poder nacional,
extremamente explorado posteriormente nas chamadas Grandes Navegações.

Merecedor de observação especial ainda, temos na consciência burguesa quanto aos


abusos realizados pela Igreja, os quais eram combatidos por estes. As ações questionáveis dos
papados renascentistas, como com Alexandre VI (1492-1503) e seu sucessor Júlio III (1503-
1513), reconhecidamente corruptos e não exatamente exemplos da doutrina cristã, somado com
a declarada resistência da instituição com a “Liberdade”, tema essencial para a compreensão da
modernidade e da própria reforma protestante, montam um cenário inevitável para a Reforma.
Estes atos são sustentados pela eclesiologia papalista, pregando o poder do papa como absoluto
dentro da Igreja. Esta proposta é sustentada também por Juan de Torquemada (cardeal espanhol
da Ordem dos Pregadores) em sua Summa de Ecclesia3, defendida no Concílio de Basiléia,
anteriormente citado por Dreher. A insatisfação burguesa com tais abusos os leva a apoiar
monarcas em um sistema que, supostamente, acabaria com tais atos pela instituição religiosa,
que, por fim, apoia igualmente o sistema para poder não ser destituída de suas regalias,
renovando os abusos contra os burgueses, agora em duas frentes: a Igreja e a Coroa.

No todo, pode-se dizer que a descrição que se fazia da Igreja insere-se


em uma teoria de decadência e degeneração. Visto de um modo
simplista, afirmava-se, em geral, que ao longo de sua história a Igreja
afastou-se sempre mais da situação ideal da Igreja Primitiva. Somente
o retorno à Igreja Primitiva poderia eliminar o mal que tomou conta da
Igreja em virtude do abuso feito com o poder papal. 4
Importante ressaltar que, somente em 1869-1870 a Igreja tentaria formular uma
eclesiologia uniforme para suas ordens, proposta no Concilium Vaticano Primum5, sendo
apenas alcançada com a “Lumen Gentium”6, no Concilium Vaticano Secundum7, no fim do
século XX (1962-1965). A infalibilidade papal e o primado, todavia, haviam sido promulgados

3
“Soma da Igreja”, em tradução livre do autor.
4
Martin N. Dreher, 1996, 21.
5
“Concílio Vaticano Primeiro”, em tradução livre do autor.
6
“A Constituição Dogmática sobre a Igreja”, ou “Luz dos Povos” em tradução livre do autor, desenvolvida durante
o Concílio Vaticano II, promulgada por Paulo VI em 1964, propunha uma revisão dos dogmas da Igreja como
instituição política e de fé.
7
“Concílio Vaticano Segundo”, em tradução livre do autor.
5

na primeira parte do Concilio, solidificando as teorizações de Torquemada sobre os sucessores


do apóstolo Pedro. Entende-se, portanto, que os abusos promovidos pelo papado antecedem o
auge de seu poder constitucional.

Com este cenário montado, começa-se a entender o que levou ao início da Reforma
protestante. A Reforma (ou Reforma protestante, como utilizado neste trabalho), tem seu início
marcado com os trabalhos de Martim Lutero em seus debates na universidade de Wittenberg,
onde lecionava neste ponto de sua vida. Lutero, batizado Martim Luder, antecedendo sua troca
quando “(...) da descoberta da justificação por graça e fé. ”8, nasceu na cidade de Eisleben9 em
1483. Os primeiros anos de sua formação foram passados na escola de Mansfeld, a partir do
ano de 1490, seguida, em 1497, por Magdeburg e, por fim, em Eisenach, em 1498. Seguindo
para a Universidade de Erfurt, na Turíngia, estudou na faculdade dos artistas10 entre os anos de
1501 e 1505, tornando-se Magister Artium11. Dreher discorre sobre à formação de Lutero,
indicando que “Os professores da faculdade dos artistas eram todos pertencentes à ‘via
moderna’. Isso significa que Lutero recebeu uma exposição do pensamento de Aristóteles a
partir da perspectiva de Guilherme de Ockham. ”12, sustentando o rompimento do jovem Lutero
com as “artes liberais”13 e apresentando-o a um pensamento filosófico mais ampliado, focado
na filosofia natural, moral e metafísica, por fim, enaltecendo a atuação do Doctor Invincibilis14
na interpretação de Aristóteles.

Conseguinte a sua formação nas artes, Lutero seguiu para a faculdade do Direito, como
programado por seu pai, relutante à ideia de seu filho seguir como magister de Filosofia, visto
seu completo planejamento para o herdeiro, longe do celibato da Teologia. Um mês depois do
início de suas aulas, porém, ao voltar de uma viajem à Mansfeld, em julho de 1505, o jovem
estudante é surpreendido por uma tempestade em seu caminho; assustado, pede por Santa Ana,
que, caso lhe intercedesse, viraria monge. Consequentemente, no dia 17 de julho de 1505,

8
Martin N. Dreher, 1996, 23.
9
Atual Lutherstadt Eisleben, (Eisleben Cidade de Lutero, em tradução livre do autor), cidade do estado de Saxônia-
Anhalt, Alemanha.
10
A “Faculdade dos Artistas” era necessária para a matrícula às três faculdades superiores disponíveis: Direito,
Teologia e Medicina, como explicado por Dreher em sua obra.
11
“Mestre das Artes”, em tradução livre do autor.
12
Martin N. Dreher, 1996, 24.
13
As sete artes liberais: gramática, retórica e lógica (Trivium); aritmética, música, astronomia e geometria
(Quadrivium).
14
O “Doutor Invencível” (em tradução livre do autor), Guilherme de Ockham, foi um frade franciscano, teólogo,
filosofo e lógico, representante do modelo Nominalista de ensino, extremamente importante para a Reforma de
Lutero.
6

Lutero entrava, sem o consentimento do pai, no convento agostiniano dos irmãos eremitas
observantes, em Erfurt.

Sua entrada no convento dos agostinianos não fora realizada de forma aleatória. Esta
permitiria a Lutero continuar seus estudos em Filosofia, após o ano de noviciado. Em 1507,
conseguinte a conclusão previa do noviço, Lutero é designado pela ordem para se tornar
professor de Teologia em Erfurt; um ano depois em 1508, foi mandado a Wittenberg, onde
concluiu sua formação e atuou como professor de filosofia moral (no primeiro ano de sua
atuação na universidade), de interpretação bíblica (entre 1509 e 1510, quando foi enviado, à
pedido da ordem, a Roma) e, por fim, assumiu a cátedra bíblica, anteriormente ocupada por seu
confessor Johann von Staupitz15, a qual Lutero lecionou até o fim de sua vida, em 1546,
graduado Doutor em Teologia.

A partir desse momento, os trabalhos de Lutero tomam proporções por ele não
imaginadas. Além de suas interpretações de livros canônicos (Salmos, Romanos, Gálatas e
Hebreus, respectivamente), Lutero transcreve as famosas 95 teses, desenvolvida em conjunto
com teóricos da universidade após uma série de debates acima da verdadeira valia das
indulgências. Muitos historiadores relacionam a escrita das teses somente a Lutero, no entanto,
é importante ressaltar que estas são decorrência de debates na universidade que lecionava,
preferindo-se chama-las de 95 teses de Wittenberg. As teses foram enviadas por Lutero aos
bispos de sua ordem, Jerônimo Schultz e Alberto, conjunto com colegas, o que ocasionou a
disseminação destas, fora do controle de Lutero. “Elas nada contêm de herético, mas são críticas
justificadas a abusos na prática das indulgências e uma contribuição para sua superação. ”16.

Yet Luther has gone down in history as the first protestant reformer
because of the conflict with the Roman curia that was ignited by those
theses. It was a quarrel that Luther did not seek but also one that he did
not shun once it has begun. During the three years prior to his
excommunication (1521) Luther forged the identity and self-awarness
of a reformer and gained the collegial and political suport that would
make him a leader of the evangelical moviment in Germany. Even then,
however, Luther was not a reformer in the sense of implementing a
preconceived plan to reshape the church. Once Luther and his followers
were excommunicated, a process of restructuring Christianity in Europe
did ensue, but neither Luther nor his colleagues were able to envision

15
Johann von Staupitz foi o “(...) Geral da ordem e decano da Faculdade de Teologia (...)”, segundo Dreher em
sua obra, p.25.
16
Martin N. Dreher, 1996, 26.
7

the outcome of that process. Luther’s reforming agenda had another


goal altogether. 17
Como evidenciado neste trecho por Scott H. Hendrix18, até o momento da repressão, por
parte da Igreja, Lutero não se identificava como reformador. Não fazia parte de seus planos sair
da Igreja e criar uma nova vertente do cristianismo, apenas arrumar o que, em sua opinião (e de
muitos outros, como Müntzer, professor e colega de Lutero em Wittenberg, por exemplo) estava
errado nas ações daquela. A autoridade eclesiástica, contudo, expulsou Lutero de sua ordem e
do clero, o que pode ser considerado como o grande erro da Igreja em relação ao movimento
reformador na Alemanha.

Como descrito antes, a tomada de poder pelas recém-formadas monarquias europeias


buscava o distanciamento com a Igreja e sua dominação. Com a revolução que Lutero propunha
no pensamento social, príncipes alemães viram que tal movimento poderia lhes ajudar na
conquista de sua independência religiosa, levando a personagens como Frederico, o Sábio,
príncipe da Saxônia, protetor de Lutero (mesmo não havendo evidências de contato prolongado
entre estes; Frederico morreu católico, por exemplo) e o imperador do Sacro Império Romano-
Germânico, Carlos V, que sediou a Dieta de 20 de junho de 1530, em Augsburgo. O perigo de
uma guerra religiosa era iminente, com os representantes da “Velha Fé” criticando o
crescimento anárquico e iconoclasta dos “protestantes”, forçando uma resposta deste, na
imagem da Liga de Esmalcalda, designada à Dieta com o salvo-conduto de Carlos V.

Em consequência aos avanços turcos sobre a Alemanha, Carlos V adiou as resoluções


da Dieta de Augsburgo, garantindo aos protestantes da Liga de Esmalcalda a convocação de
um concílio (este seria realizado em Mântua em 1537, a pedido do novo papa, Paulo III) e a
proteção contra a violência em questões religiosas, possibilitando uma ampliação do carisma
luterano. O Concilio, todavia, não se realizaria, sendo adiado somente para 1545, em Trento. A
conjuntura, porém, era outra, com a influência de Lutero e dos Artigos de Esmalcalda

17
“No entanto Lutero ficou marcado na história como o primeiro reformador Protestante por causa do conflito
com a cúria Romana, gerado por aquelas teses. Foi uma briga que Lutero não procurou, mas também não fugiu,
assim que começou. Durante os três anos anteriores a sua excomunhão (1521), Lutero forjou a identidade e o
autoconhecimento de um reformador, ganhando o apoio colegial e político que o tornaria o líder do movimento
evangélico na Alemanha. Ainda assim, Lutero não era um reformador no sentido de implementar planos
preconcebidos para reformar a Igreja. Quando Lutero e seus colegas foram excomungados, um processo de
reestruturação do Cristianismo na Europa foi iniciado, mas nem Lutero, nem seus colegas conseguiram ver o
resultado deste processo. Os planos de reforma de Lutero possuíam outra intenção. ”. HENDRIX, Scott. “Martin
Luther, reformer”. In The Cambridge History of Christianity, Reform and Expansion, United Kingdom, 2012, 3.
Tradução livre do autor.
18
Scott H. Hendrix, professor emérito de História da Reforma, na Princeton Theological Seminary (Seminário
Teológico de Princeton).
8

(produzidos com base nos trabalhos de Lutero para o Concilio) crescendo em grande escala, se
tornando impossível manter a unidade da Igreja, sacramentando, por fim, a separação da Igreja,
o Cisma da Igreja Ocidental.

Agora, após compreender como ocorreu a Reforma Luterana, passamos a análise da


chamada “Contrarreforma”. O uso das aspas, contudo, se faz necessário ao pensar no objetivo
desta revisão: a Reforma Católica não foi uma resposta ao processo reformatório de Lutero, ou
de outros reformadores (ditos protestantes) em outras localidades europeias, mesmo no que se
diz ao processo reformatório de Inácio de Loyola. Portanto, se a Reforma Católica não deve ser
compreendida como um processo consequente aos dantes analisados, quais fatores contribuem
para essa desambiguação? Quais são os indícios que levam à esta análise?

Para começar a justificativa, deve-se compreender o significa Reforma para a história


da Igreja (Católica Apostólica Romana). O termo Reforma refere-se, pura e simplesmente, à
momentos ou movimentos internos ao corpo eclesiástico que opuseram-se ao commonplace19
que poderia ser observado no momento de sua ação. A construção de uma nova ordem religiosa,
por exemplo, pode ser considerada uma reforma; logo, processos reformadores aconteceram na
história da Igreja desde sua fundação como instituição de fé. Portanto, uma resposta simples
para a desambiguação que aqui se propõe seria esta: a compreensão do que significa reforma
para a instituição Igreja, per se, contra indica a utilização da partícula “contra” em seu início.
A exemplo dos processos reformatórios católicos, levantarei três exemplos: Francisco de Assis,
Francisco Ximénez de Cisneros20, e Inácio de Loyola, portanto, um anterior e dois
contemporâneos (Cisnéros poucos anos antes de Lutero, Loyola alguns anos depois).

Giovanni di Pietro di Bernardone nasceu em Assis, Itália, em 1182. Fora um frade


católico e, para nossas considerações, um reformador. Mais conhecido pelo nome de Francisco,
pelo qual mudou mais à frente em sua vida, juntou-se a ordem dos Frades Menores após uma
juventude pouco contemplativa e burguesa. Segundo Jacopo de Varazze em sua Legenda
Aurea:

Francisco, escravo e amigo do Altíssimo, negociante nascido na cidade


de Assis, consumiu seu tempo vivendo na vaidade até quase os vinte
anos de idade. O Senhor serviu-se do chicote da enfermidade para

19
“Lugar Comum”, em tradução livre do autor.
20
Francisco Ximenez de Cisneros era monge franciscano, conselheiro da rainha Isabel Católica.
9

corrigi-lo e transformá-lo subitamente em outro homem, no qual


começou a se manifestar o espírito profético. 21
A reforma de Francisco de Assis não foi uma questão política, como pudemos observar
com Lutero, e observaremos com as próximas personagens a serem analisadas; sua reforma
toma teor muito mais pessoal, propondo uma mudança no modo de vida clerical. Neste ponto,
a reforma de Francisco se assemelha muitíssimo à dantes debatida: coloca-se o modo de vida
monástica sob crítica, questionando suas atitudes perante sua própria filosofia. Francisco opõe-
se a opulência da vida clerical abandonando sua vida burguesa em razão da pobreza de Cristo.
“In marrying Lady Poverty he insisted that the imitation of Christ meant a literal abandonment
of all worldly goods. ”22. Assim, partindo do conceito proposto para esta análise, Francisco é
exemplo de reforma dentro da história da Igreja antes dos processos de Lutero, apesar dos
debates sobre sua persona. Segundo McGuire, “Francis is na attractive but difficult person, and
his legacy is one of disagreement and division (...)”23.

O contesto da Igreja na Espanha do século XVI é completamente diferente da conjuntura


alemã e italiana, analisadas anteriormente. Em primeiro lugar, ressalta-se a concessão do
Patronato Régio24 à coroa espanhola, que lhes permitia tomadas de decisões políticas na
organização da Igreja em seu reino. “Uma das consequências disso é a política dos reis da
Espanha, desde a época dos Reis Católicos, de se ‘meterem’ nas coisas relativas à Igreja dentro
dos reinos, mais que em qualquer outro reino cristão da época, nomeando bispos e promovendo
reformas (...)”25, explica a professora Luciana Lopes dos Santos. Os Reis Cristãos, Fernando e
Isabel, apoiados por esse poder, realizaram uma reforma dentro da Igreja de seu reino, guiados
pelo cardeal Francisco Ximénez de Cisneros, de onde se deriva o nome do movimento. Apesar,
ressalta Santos, da existência anterior de planos políticos em relação à Igreja de Castilla e
Aragón, com a instauração da Inquisição Espanhola (separada da Inquisição Papal, importante
ressaltar), relacionada ao movimento da Reconquista e expulsão dos judeus do reino de
Granada.

21
VARAZZE, Jacopo de. “Legenda Aurea: vida dos santos”. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, 836.
22
“Ao casar com a Senhora Pobreza, ele insistiu que a imitação de Cristo significa o abandono literal de todos os
bens materiais. ”. MCGUIRE, Brian Patrick. “Monastic and religious orders, c. 1100-C. 1350”. In Cambridge
History of Christianity, Christianity in Western Europe c. 1100-c. 1500, United Kingdom, 2012, 68, em tradução
livre do autor.
23
“Francisco é uma pessoa atraente, mas difícil, e seu legado é de debate e divisão”, em tradução livre do autor.
McGuire, 2012, 69.
24
Direito papal concedido a reinos específicos da Europa, dando-lhes mais autonomia e poder sobre a Igreja.
25
Trecho retirado de entrevista realizada no dia 13/07/2016 com a professora Luciana Lopes dos Santos, da
Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri, Brasil.
10

Cisneros aponta para pontos que Lutero mais tarde escreveria sobre, como a educação
e repressão às indulgências. Enquanto Lutero evidencia o descaso social com a educação,
Cisneros foca-se na falta de formação do clero, iniciando um processo de fundação e reforma
de universidades na Espanha. O cardeal trouxera o humanismo da Itália, assim como a
evidenciou importância de Tomás de Aquino. “Assim, um tomismo com características
humanistas determinou o catolicismo espanhol da época. ”26.

Quanto às indulgências, Will Durant afirma que: “Em 1513 o cardeal Ximenes proibiu
a promulgação na Espanha da indulgência oferecida por Júlio II para a reconstrução da igreja
de São Pedro. ”27. Este é também o processo analisado por Lutero, contra as indulgências. É
notável, a independência política do estado espanhol perante Roma. Lutero fora excomungado
pelos mesmos motivos que Cisneros questionava o papado; a esse, porém, nada aconteceu. Isso
se deve ao supracitado Patronato Régio, pela qual “Realmente o rei era aceito como cabeça da
Igreja espanhola (...) não foi necessária Reforma alguma na Espanha para tornarem unos o
Estado e a Igreja, o nacionalismo e a religião. ”28, completa Durant.

Neste contesto encontramos, então, o plano de fundo para algumas das maiores mentes
reformadoras na Europa, criados neste contesto de mudança da visão clerical, entusiastas da
Devotia Moderna29: Teresa d’Ávila, João da Cruz e Inácio de Loyola. Convencionou-se, devido
interpretações historiográficas, relacionar a proposta inaciana diretamente ao movimento da
Reforma, deixando de lado a Formulação Teresiana30; contudo, deve-se compreender a
diferença entre cada um dos movimentos, para compreender o porquê desta distinção
metodológica.

A fundação da Ordem do Carmelo Descalço por Santa Teresa d’Ávila e São João da
Cruz, juntamente com outros apoiadores de suas propostas, está inserida no momento da
Reforma Católica, sim, porém difere das índoles de outras ordens criadas na época, pois
procurava uma renovação da vida espiritual da Igreja, além de mudanças terrenas31.

26
Martin N. Dreher, 1996, 116.
27
DURANT, Will. “A História da Civilização VI: A reforma”. Rio de Janeiro, 170.
28
Will Durant, 170.
29
“Moderna Devoção”, em tradução livre do autor.
30
Termo preferido pela Ordem em relação à Reforma Teresiana.
31
John Patrick Donnelly, professor emérito da Marquete Universty, Milwaukee, Estados Unidos, descreve em
New Religious Orders for Men (Novas Ordens para Homens) que, “Except possibly for the Spanish Discalced
Carmelites, all new orders stressed active ministry more than prayer, although none saw work and prayer as either/
or alternatives. ” (“Com a exceção dos Carmelitas Descalços espanhóis, todas as novas ordens ressaltaram um
11

A grande diferença é que a marca da Reforma Teresiana é espiritual,


quer tocar o profundo do ser humano e daí a transformação. Daí a
oração como ‘porta’, como essencial para a interiorização. O Concílio
de Trento propôs uma reforma mais jurídica e disciplinar. É diferente,
mas também fundamental, dado o tamanho da crise. 32
A fundação de novos conventos e a pratica das propostas teresianas, como o voto de
pobreza (deste fato derivando a nomenclatura “Descalço”, procurando distanciamento com a
antiga ordem, o Carmelo Calçado, como ficou conhecido após a disseminação das ideias
teresianas), que confunde muitos por se encaixar nas propostas altruístas das reformas; o fator
da importância da vida contemplativa, no entanto, afasta a Fundamentação Teresiana daquelas.
Para Teresa, a reclusão e o silêncio são bases para o entendimento dos mistérios de Deus. Esta
pequena base sobre o carisma de Teresa nos possibilita entender as razões de muitos
historiadores relacionarem a Fundamentação Teresiana com as reformas religiosas de Felipe
II33, continuando o trabalho de seus antepassados, rei Fernando e rainha Isabel, do que com a
atuação da Reforma Católica ou com o Concílio de Trento.

A Companhia de Jesus, porém, buscava a salvação das almas através da doação aos
outros, divergindo da vida de oração carmelitana. Inácio de Loyola, nascido em 1491 na
Espanha sob o nome de Iñigo de Onaz y Loyola, foi o fundador da ordem jesuíta, estabelecida
em 1539 sob a designação Societas Jesu34. Anterior a sua formação clerical, Iñigo representava
o clássico cavaleiro espanhol do século XVI. Opiniões divergem sobre sua procedência militar
(alguns autores o afirmam como soldado, outros negam esta afirmação), o importante, contudo,
é entender o acidente que levou sua conversão. Em 1521, Iñigo foi atingido em batalha contra
a invasão francesa em Pamplona, deixando-o terrivelmente machucado, forçando um período
de recuperação no castelo de sua família. Durante este período, leu muitos livros de santos
(outro ponto nebuloso entre historiadores, que não sabem precisar quais aqueles eram,
especificamente), proporcionando sua final conversão. “Inácio de Loyola sublinhou, a partir de
sua experiência, a doutrina da cooperativo hominis cum Deo35 em questões da justificação, com

ministério ativo antes de oração, ainda que nenhum tenha encarado trabalho e oração como partes de um mesmo/
uma alternativa”, em tradução livre do autor); The Cambridge History of Christianity, p.162.
32
Trecho de entrevista realizada no dia 13/07/2016 com frei Anderson Fontes Dias, frade da Ordem do Carmelo
Descalço, província Sul, Brasil.
33
Felipe II de Espanha, o rei Prudente, governou a Espanha e, mais posteriormente, Portugal, até seu falecimento
em 1581. A professora Luciana Lopes dos Santos afirma a existência de uma corrente de pensamento
historiográfico que defende este processo de Felipe II como “impaciência” com a lentidão do processo de Roma,
provocando a Reforma em seu próprio reino através do patrono régio.
34
“Companhia de Jesus”, em tradução livre do autor.
35
“Cooperação entre os homens e Deus”, em tradução livre do autor.
12

a mesma veemência que Lutero usou para rejeitá-la. ”36, sustentando suas práticas de devoção
aos santos, ao lado de sua consagração à Maria.

Viajou para a terra santa de Jerusalém, fator decisivo para atitudes tomadas
posteriormente para com a ordem jesuíta. Quando voltou de sua peregrinação, estudou em
Barcelona e, em 1528, transferiu-se para Paris, onde conheceu seus companheiros de fundação
da ordem. Estes juraram peregrinar para Jerusalém e agir para a salvação daqueles, porém, a
guerra com os turcos impediu sua viagem à terra santa, levando-os a buscar orientação de papa
Paulo III37. Este permitiu a criação da Ordem e indicou-os para cidades ao norte da Itália, onde
seguiram para evangelizar.

Eleito o primeiro Geral da ordem, Loyola utilizou das características militares para
organizar o grupo, sendo reconhecidamente normalista, mas extremamente flexível com as suas
regras. Esta organização, entretanto, os distinguia das demais ordens da Igreja na época,
permitindo-os alcançar grandes obras posteriormente. Diferentemente do Carmelo dantes
analisado, os jesuítas não buscaram o voto de pobreza, embora presem pela simplicidade até
hoje, sob a justificativa de Inácio que a obediência e a organização hierárquica os manteria
unidos. Percebe-se que a democracia visível em outras ordens não se encontrava entre jesuítas.

Loyola convergia com as ideias de Lutero no quesito educação, ambos sendo grandes
críticos da escassa formação clerical. O plano jesuítico não era, todavia, tornarem a educação
seu principal ministério. A atuação de seus colégios, somada com a importância dada ao
trabalho missionário alavancou a estrutura e a influência destes para a Europa, explicando o
porquê de ser uma das ordens com maior adesão, apesar dos rigorosos processos de iniciação e
formação. Estas eram realizadas nos colégios da ordem, sendo, com o passar do tempo,
procuradas para a educação dos filhos de burgueses e nobres, dispostos a pagar pela formação
de seus filhos38. Com o crescimento destas, sua fama se espalhou pelas cidades europeias, sendo
novas localidades designadas para o trabalho. “The real pioneer Jesuit college for lay students,

36
Martin N. Dreher, 1996, 119.
37
Papa Paulo III “governou” entre 1534 e 1549. Abio político, foi responsável pela convocação do Concílio de
Mântua, sendo transferido após revoltas para Trento, em 1542.
38
Percebemos, portanto, uma divergência com a Alemanha dos relatos de Lutero, onde a educação era
extremamente negligenciada pelos pais, independentes da posição social, descrito em seu texto Aos Conselhos de
Todas as Cidades Alemãs para que Criem e Mantenham Escolas Cristãs, 1524.
13

not young Jesuits was opened at Messina in 1548. ”39, explica John Patrick Donnelly sobre a
abertura destas para jovens não jesuítas.

Estes colégios foram se suma importância para o processo reformatório da Igreja, pois
firmava a fé católica nos territórios não tocados pela Reforma Protestante, assim como
“reconquistava” outros dominados pelas teorias desta. A designação de um grupo para a criação
do Collegium Germanicum40, fundado em 1552 para a formação de jovens clérigos afim de
atuarem na Alemanha luterana, era de grande interesse para Roma; esta viu na missão de
Francisco Xavier41 também um enorme potencial de dominação política de áreas não tocadas
pelo protestantismo. Outro exemplo destas jornadas jesuítas é sua atuação no Brasil, ainda no
século XVI, parte destes planos conciliares, fazendo dos jesuítas os principais responsáveis
(práticos) pela universalização da Igreja.

Ao lado das ordens espanholas podemos citar os cappuccinos42, teatinos43, barnabitas44,


oratorianos45, entre muitas outras ordens, que se fundamentaram nas práticas da caridade e
mudança da vida eclesial. Entre todas, o Carmelo Descalço fora “a única ordem clerical
masculina na igreja fundada por uma mulher. ”46, referindo-se, é claro, à Teresa d’Àvila,
anteriormente discutida, exaltada por John Donnelly como “(...) the sixteenth century’s greatest
mystic and arguably its greatest woman writer. ”47.

Voltando-se, agora, para a organização política da Reforma, percebemos a importância


destas ordens dentro do plano geral da Igreja. O Concílio de Trento, anteriormente relatado pela
oficialização do Cisma, foi o XIX Concílio Geral da Igreja, realizado em 1545. É importante
entender o concílio não apenas como um canal de discussão das propostas antiprotestantes,

39
“A verdadeira primeira escola jesuíta para alunos de fora da ordem, não jesuítas, foi aberta em Messina em
1548”, em tradução livre do autor. John Patrick Donelly, 2012, 173.
40
“Colégio Germânico”, em tradução livre do autor.
41
Francisco Xavier foi um jovem jesuíta que partiu, no ano de 1542, em missão para a índia, iniciando os processos
missionários tão estimados pela Societa Jesu.
42
Os Cappuccinos foram institucionalizados oficialmente em 1619, porém, sua idealização remonta as ideias do
papa Leo X, em 1517, de separar os franciscanos em diferentes ordens.
43
Os Teatinos formaram-se em 1524, em Roma, liderados por Gaetano Thiene e Giampietro Carafa, futuro Paulo
IV.
44
Os Barnabitas realizaram com sucesso seus votos em 1533, em Milão, sendo oficialmente reconhecidos como
uma comunidade de fé.
45
Os Oratorianos basearam-se nos ensinamentos de Filippino Neri, que fundou a ordem (porém esta só fora
reconhecida em 1575, por Gregório XIII), santo da Reforma como Loyola mais tarde também seria canonizado e
reconhecido.
46
Trecho de entrevista realizada no dia 13/07/2016 com frei Anderson Fontes Dias, frade da Ordem do Carmelo
Descalço, província Sul, Brasil.
47
“(...) a maior mística do século XVI e, sem dúvidas, sua maior escritora. ”, em tradução livre do autor. John
Patrick Donelly, 2012, 176.
14

reacionárias ao fortalecimento luterano alemão, mas também pela institucionalização da Igreja


como universal e confessional.

A publicação do Professio Fidei Tridentinae48, em 1546, propunha ao corpo clerical


uma nova forma de atuação, como antes descrita como confessional, formando assim parte da
Reforma proposta; ao instituir a universalidade da Igreja, entende-se o movimento como a
separação com o nominalismo exaltado por Lutero, clarificando a doutrina, basificando a
Reforma por completo (somando-se, assim, a vida eclesiástica com a administração).

Compreende-se, no entanto, o esforço papal de não exigir um Concílio, com o adiamento


de tantos anteriores, ação criticada por reformadores protestantes, ao fator político-estrutural da
reunião. Estes momentos eram direcionados para discussões acerca das ações políticas do alto-
clero, tendo o poder de questionar decisões promulgadas anteriormente, até mesmo pelo
papado. Á este exemplo temos Clemente VII, dirigente entre 1523 e 1534, que não acionou
concílios por sustentar o mandato da casa Médici, mesmo vendo a necessidade deste, por temer
a atuação imperial no concílio. Paulo III, sucessor de Clemente VII, apesar de suas ações
questionáveis, convocou um concílio para o ano 1537 em Mântua, como já explicamos os
desenrolares deste episódio anteriormente, sendo adiado para 1542 em Trento. A revolta do
corpo clerical francês, no entanto, o forçou a suspender o Concílio novamente, para 1545,
novamente em Trento.

Durante o primeiro período do Concílio (de 1545 a 1547), tratou-se sobre o dogma da
Igreja, dando caro, anteriormente, do direito a voto dos leigos, sendo este retirado. Esta ação
incluía reis, que exigiam, juntamente com o imperador, a reforma imediata da Igreja. Entre a
canonização de novos textos, a primeira medida tomada foi quanto a Sagrada Escritura,
importantíssima para a Reforma protestante, que foi aceita como meio de cristianização, sendo
equiparada a tradição oral. A tradição, no entanto, não foi tocada, pois dizia respeito a toda a
doutrina papal.

Hubert Jedin constatou que o concílio tinha que responder as sete


questões: 1) Frente ao sola gratia de Lutero, acentuou-se que é possível
uma certa disposição do ser humano para receber a graça; 2) Não é o
perdão dos pecados que leva à santificação; a santificação inclui o
perdão dos pecados; 3) As boas obras são fruto da graça divina, mas
também devem ser exigidas; 4) A vontade humana participa da dádiva
da graça ao aceita-la e ao produzir frutos de justiça; 5) As boas obras
são fruto da graça divina e, como tais, são mérito, mas como também
são obra humana, até certo ponto pode-se dizer que são mérito humano;

48
“Profissão de Fé de Trento”, em tradução livre do autor.
15

6) Os sacramentos são o único meio normal para conseguir a


justificação; só eles mudam a qualidade do ser humano; 7) O
sacramento age ex opere operato, por isso a justificação não precisa ser
uma experiência humana. 49
Esta revisão, observada pelo professor Jedin, das bases eclesiásticas e normativas da
Igreja demonstram, ao mesmo tempo, as propostas antiprotestantes e o estabelecimento de
dogmas e, também, o ressalvo dos sacramentos. Essas medidas eram, de forma clara,
meramente reflexos do momento vivido, não procurando mudanças estruturais. Isto se
comprova na proibição de argumentos sobre liberdade, apesar da necessidade de uma união ser
acentuada, como defende Dreher.

Todavia, a maior e mais importante mudança proposta por essa primeira parte do
concílio foi, inegavelmente, a instituição de cátedras para o ensino nos conventos europeus,
contornando as críticas sobre a educação da época. O decreto contra a acumulação fora, da
mesma forma, importantíssimo para a comprovação da proposta conciliarista de mudanças. Em
1555, Gianpietro Caraffa, fundador da ordem dos teatinos, foi consagrado papa, com o nome
de Paulo IV, tentando realizar a reforma sem a convenção do concílio, em hiato desde 1552.
Contudo, Pio V50, sucessor de Paulo IV, propôs o retorno do concílio para 1561, que se estender
até 1563, solidificando a segunda parte do Concílio de Trento.

Esta segunda parte encarou maus momentos, com a hesitação de Pio V em perder seu
poder e, analogamente, a união dos bispos franceses com o Imperador alemão contra o concílio.
Entre as medidas tomadas neste segundo momento temos, notavelmente, o mantimento das
indulgências, com sua troca por dinheiro sendo finalmente proibida. Ressaltada necessidade de
formação aos clérigos, disfunção de cargos (como o administrador de prebenda) estão entre as
novas medidas do concílio.

Encerrando, em 1563, o Concílio de Trento, marca-se o nascimento da Igreja moderna,


com novas propostas e desligamento gradual do poder papal e do velho dogmatismo da Igreja
Medieval. Ainda que separadas, a Igreja Católica ainda se negaria a afirmar a fundamentação
da Reforma Protestante na igreja antiga, conforme as tradições cristãs. Este reconhecimento
viria somente com o Concílio Vaticano II, na década de 60 do século XX.

A grande importância do Concílio de Trento para a afirmação de uma nova era cristã
não está em suas propostas, mas no cumprimento destas. O poder papal, constantemente

49
Dreher em citação de Jedin, p.123 e 124.
50
Papa Pio V exerceu seu cargo de 1559 a 1565.
16

ameaçado no período anterior ao concílio, solidificava-se novamente, não sem, todavia, o


protesto dos bispos franceses. Promulgou-se a obrigatoriedade da leitura do catecismo de
Trento ao corpo clerical, assim como o juramento perante à Professio Fidei Tridentinae; edita-
se um novo missal universal e uma nova versão da missa; instituem-se novas universidades pela
Europa, como o apoio ao Collegium Germanicum juntamente com o Collegium Hungaricum51,
Collegio Anglium52 e Collegium Graecum53, assim como o Collegium Romanum54, fundado por
Loyola; reorganização da Cúria romana; criação do Index Librorum Prohibitorum55 e a
instituição da Congregação dos Concílios, aumentando o poder papal e diminuindo o poder do
colégio dos cardeais, em decorrência da criação de novas congregações. Entende-se, por fim,
que todas as medidas promulgadas procuraram a manutenção do poder papal, através, porém
da união dos estados católicos.

Podemos concluir, portanto, que para a história da Igreja, os momentos de Reforma


Católica se apresentam como de suma importância, mesmo podendo dar atenção especial aos
movimentos de Loyola, visto sua proximidade à Lutero. O sentimento de mudança vivenciado
por esse, assim como por Müntzer, Loyola, d’Ávila, dentre outros teóricos de diferentes
períodos solidificam a mudança das estações do medievo ao moderno, proporcionam um
“reavivamento” do espírito cristão, buscando a separação da Igreja da faceta industrial e
imperial que criou ao longo dos séculos em favorecimento das tradições da Igreja primitiva.
Mesmo Francisco, cronologicamente distante deste momento de quebra, tem seu peso e merece
destaque à esse retorno supracitado.

É impossível separar tais momentos de seu caráter político, mesmo quando ressalta-se
tal observação, a exemplo de Francisco. Cada episódio aqui analisado deve-se ao seu momento
único na história; não é dizer que, em outros tempos, não aconteceriam, mas assinalar a
importância do entendimento de sua conjuntura é compreender a ligação que se podia
estabelecer.

Assim estabelecido, voltamos ao questionamento base desta revisão: porque não se


utilizar a partícula “Contra”? Após entender os processos de Lutero e Loyola, somente, seria
muito possível compreender esse como resposta a aquele. “Contra” pressupõe um antagonismo

51
“Colégio Húngaro”, em tradução livre do autor.
52
“Colégio Inglês”, em tradução livre do autor.
53
“Colégio Grego”, em tradução livre do autor.
54
“Colégio Romano”, em tradução livre do autor.
55
“Índice de Livros Proibidos”, em tradução livre do autor.
17

e, ao colocar um contra o outro, até mesmo cronologicamente, esta justificativa é possível. É


completamente viável estabelecer, mesmo, as confluências entre um e outro autor.

Contudo, chamar somente os trabalhos de Loyola como Reforma, será ignorar todos os
processos de Francisco e Ximénez aqui levantados; não somente eles, mas todos os outros
reformistas que aqui não citamos. Seria desconsiderar todos processos levantados nos
Concílios. Seria desconsiderar o peso dos poderes monárquicos europeus. Segundo o professor
Dreher, já muito citado neste trabalho,

Ao conceder os direitos do padroado aos reis de Portugal e de Espanha


e, mais tarde, aos demais reis europeus, para assim estes fugirem das
ideias do conciliarismo56, os papas acabaram por estabelecer que os reis
determinassem a vida religiosa e o preenchimento de cargos
eclesiásticos. 57
Até os dias atuais a Igreja ainda falha, em muitos aspectos, como falhou e continuará
falhando. Este processo é natural do ser humano, somos fracos e egoístas por natureza, mas a
Igreja procura (ou deveria procurar) demonstrar que não é necessário se viver assim. Teóricos
discutem a possibilidade de o momento atual da Igreja, iniciado por papa João Paulo II,
continuado por Bento XVI e hoje com Francisco, ser uma nova fase de Reforma para a Igreja
Católica Apostólica Romana. Deve-se, como historiador, esperar por novas documentações e
tratados futuros sobre as obras realizadas neste período. Deve-se, como sociedade, esperar que
os abusos cometidos pela instituição de fé, supostamente justa e verdadeira, não mais se proteja
com tradições e triunfos históricos. Deve-se torcer para que os seres humanos cresçam com os
erros do passados, para nunca mais realiza-los novamente.

REFERÊNCIAS

DREHER, Martin N. A crise e a renovação da Igreja no Período da Reforma. São Leopoldo


: Simodal, 1996

DONNELLY, John Patrick. New religious orders for men. In HSIA, R.Po-Chia (Org.). The
Cambridge History of Christianity: Reform and Expansion. United Kingdom: Cambridge
University Press. 2012.

56
Grifo do autor.
57
Martin N. Dreher, 1996, 15.
18

DURANT, Will. A História da Civilização VI: A reforma. Rio de Janeiro: Record, 1977

HENDRIX, Scott. Martin Luther, reformer. In HSIA, R.Po-Chia (Org.). The Cambridge
History of Christianity: Reform and Expansion. United Kingdom: Cambridge University
Press. 2012.

MCGUIRE, Brian Patrick. Monastic and religious orders, c. 1100-C. 1350. In RUBIB, Miri
e SIMONS, Walter (Org.). Cambridge History of Christianity: Christianity in Western
Europe c. 1100-c. 1500.United Kingdom: Cambridge University Press. 2012

VARAZZE, Jacopo de. Legenda Aurea: vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras,
2011

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