“Para aqueles que cresceram no silêncio da floresta, o barulho das cidades é doloroso.” – Davi
Kopenawa
A etimologia provável do termo heã é composta por he, “cabeça”, que remete à noção
de extremidade, de “ponto limite”, e por ã, que se refere ao som e à voz. O verbo
intransitivo heãmuu significa “marcar sua presença por um som”. Assim, quando se
assobia para anunciar a chegada em uma casa coletiva amigável, se diz fazer husi
heãmuu. Podemos, portanto, aproximar esse termo da ideia de “sinais sonoros”. A
complexa rede de associações entre vozes animais indiciais e a presença de caça ou
plantas úteis na floresta de heã yanomami constitui um sistema de identificação
acústica ensinado desde a infância e que, sendo ao mesmo tempo rígido e
constantemente mutável, se torna sempre capaz de orientar caçadores e coletores
dentro da “grande orquestra animal” da floresta[10]. Como nos lembra o xamã
yanomami Davi Kopenawa:
As vozes animais da floresta que nós conhecemos, os chamados heã de que estamos
falando, são palavras que ouvimos de nossos anciãos e que eles nos deixaram,
dizendo: “Esta música é a heã dessa caça ou desses frutos!” e nós as mantemos em
nós desde a infância até agora[11].
Além disso, alguns desses chamados também são considerados índices sonoros para
eventos climáticos e ecológicos[12]. Dessa forma, uma dupla nota grave do cri-crió
seguida de seu chamado ressonante são considerados como o heã das trovoadas,
enquanto a assombrosa canção matutina do udu-de-coroa-azul anuncia o “tempo
dos macacos gordos” (pico da estação chuvosa de junho a agosto) e as rajadas de
gorjeios agudos do pipira-vermelha indicam o começo do “tempo da fruta da
pupunha” (de janeiro a março). Por fim, as fortes estridulações das grandes cigarras
marcam a chegada de Omoari a, o ser da estação seca.
À esta escuta atenta às vozes da floresta, junta-se uma preocupação não menos
zelosa dos caçadores de se comunicar com os animais que eles esperam atrair ao
alcance de suas flechas, relacionando-se com estes pela imitação do chamado de seus
companheiros, de seus congêneres do sexo oposto ou de seus descendentes. Este
amplo repertório de simulações de vozes de animais geralmente utiliza chamados
assobiados de vários tipos[13] (huxomuu) ou imitações fônicas baseadas em
onomatopeias. O único chamado desses que eu vi ser usado pelos Yanomami é um
assobio produzido por um apito de madeira em forma de “T” utilizado para
falsificar o chamado da anta.
Os animais que são possíveis “chamar” (nakai) e “fazer responder” (wã huamãi) na
floresta são, é claro, múltiplos. Em função da variedade de talentos dos meus
interlocutores, pareceu-me, durante nossas conversas, que essas iscas acústicas
poderiam ser utilizadas para a maior parte dos animais caçados pelos Yanomami,
desde os tucanos, araçaris, araras, jacamins, jacus, mutuns, codornizes, de grandes a
pequenos inhambus até antas, queixadas, veados e onças, cutias, macacos-aranha,
macacos bugios, caxiús-preto e cairaras. Essas capacidades de imitação acústica se
estendem para além da atividade cinegética, vindo a cobrir quase toda a vida
selvagem na região da floresta conhecida e percorrida pelos caçadores (é assim que a
maioria dos nomes de pássaros yanomami é formada a partir da onomatopeia de
seus cantos)[14].
No início, os animais eram humanos, mas eles se tornaram caça. Embora ainda
humanos, eles agora têm a falsa aparência de animais e são moradores da floresta
apenas porque é o lugar onde eles se metamorfosearam. Eles assim pensam nos
humanos de hoje: “Nós somos as mesmas pessoas que eles, mas eles têm um tal
desejo pela nossa carne que nós acreditamos que sejam como seres malignos! Mas
eles não são. Eles são nossos companheiros!”. Isso mesmo. Somos outras pessoas do
mesmo tipo que os animais e ainda as comemos![16]
Davi Kopenawa termina sua descrição da caça à anta com uma série de
onomatopeias evocando a morte do animal: “thaiii (estalo da corda do arco atirando)!
kosho (impacto da flecha)! uwooo hoo hoo hoo (gemidos de dor da anta)! tëk tëk tëk
(passos de sua fuga) kurai (som de sua queda)!” O uso de onomatopeias e ideofones
é onipresente na arte narrativa dos Yanomami, mais uma vez demonstrando a
importância do ambiente acústico da floresta nas formas ameríndias de expressão
linguística. Mas, além dessa riqueza mimética habitual, quando os narradores
querem acentuar a delicada intensidade de alguns episódios de sua história, como é
o caso aqui, eles amplificam esta propensão à iconicidade sonora a ponto de
substituir inteiramente as proposições descritivas de sua narração por sequências de
onomatopeias codificadas. É então, por estas sequências de imagens fônicas
perfeitamente óbvias para o seu público, que eliminam totalmente as restrições
formais da narrativa dos acontecimentos relatados, escolhendo se esforçarem para
restaurar uma experiência de simulação acústica o mais próximo possível da que
partilham com o universo sensível da floresta[17].
Os amoã pë consistem em frases musicais muito curtas, algumas das quais são
repetidas ritmicamente. Altamente apreciadas e populares, elas são trocadas por
cantores durante o reahu e circulam entre os grupos aliados em vastas áreas do
território Yanomami. Seu conteúdo é geralmente composto de notas fugazes a partir
dos movimentos e sons observados na floresta (de animais, frutas, ventos, rios), à
maneira de haicais livres apoiados por uma linha melódica simples:
[Ela sobe e desce, sobe e desce! A cauda do macaco saki preto sobe e desce!]
“Reiki reiki kë-ëëë (bis)! Mõra maki uxuhu a ka reiki reiki kë-ëëë!”
Os xamãs Yanomami veem essas árvores vocalistas sob a forma de enormes troncos
cobertos de bocas vibrantes e adornadas com plumas tão brancas que cegam, os
quais deixam escapar infinitos cantos harmoniosos. Como explica Davi Kopenawa,
os cantos amoã pë apresentados nas festas reahu “são as imagens de melodias
provindas das árvores amoã hi ki. Os convidados que os apreciam os mantêm em
seus […] peitos para que possam ser reproduzidos posteriormente nas festas que
fizerem em suas casas. É assim que os cantos se espalham de casa em casa[21].”
Os cantos que os espíritos xapiri entoam através de seus “pais” xamãs têm o mesmo
nome que os dos coros herii (amoã pë) e dizem ter se originado das mesmas “árvores
com cantos”. Certa vez foi dito que os espíritos tinham que cortar ramos das
“árvores com cantos” para adquirir suas melodias[24], e as gaitas oferecidas durante
as primeiras visitas dos napë pë (estrangeiros, “brancos”) eram assim também
qualificadas como “árvores com cantos”. Mais recentemente, são os gravadores que,
por sua vez, foram designados por essa expressão (ou a expressão de “objetos do
sabiá-da-mata”, yõrixia kiki). A descrição do modo de aquisição de seus cantos pelos
xapiri seguiu essa mesma relação semântica:
Os espíritos dos sábia yõrixiama e dos japim ayokora – mas também dos pássaros
sitipari si e taritari axi – são os primeiros a acumular esses cantos em grandes cestos
sakosi. Colhem-nos um por um com objetos invisíveis semelhantes aos gravadores
dos brancos. Porém, os cantos são tão numerosos que nunca se pode esgotá-los!
Entre esses espíritos de aves, os dos sábia yõrixiama a são realmente os sogros das
canções, seus verdadeiros mestres[25].
Quando inalamos o pó de yãkoana, não distinguimos mais tão bem os seres humanos.
Eles assumem uma aparência perturbadora com fedor de fumaça, e seu barulho se
torna assustador. No momento em que o poder da yãkoana cresce em nós, nos
tornamos muito agitados e é impossível ficar descansando na rede. Apenas a floresta
parece boa e você só se sente bem quando a ouve. Isto é assim porque os xapiri
querem ser ouvidos apenas no silêncio dos humanos. Eles odeiam nosso burburinho
e fogem assim que o ouvem.
Uma vez mortos sob o efeito de yãkoana, vemos as árvores se tornarem seres
humanos, com olhos e boca. Também ouvimos as vozes dos animais da floresta
falando como eu estou fazendo agora. Nós os compreendemos claramente. Aqueles
que não tomaram yãkoana não podem vê-los. Eles ouvem suas vozes apenas através
de nossas canções em que os espíritos se nomeiam eles mesmos. Eles acham que
essas palavras são realmente belas. Nessas canções, os xapiri descrevem os lugares
desconhecidos de onde vêm, evocam lugares habitados por outros humanos e
florestas e colinas distantes que visitaram.
Quando alguém morre sob o efeito de yãkoana, nossa cabeça e nossa boca encolhem.
Os xapiri se revelam para nós e só os ouvimos. Eles são vistos como uma nuvem
iluminada por plumas ou abelhas. Eles aparecem e desaparecem constantemente.
Quando eles dançam juntos, suas músicas são realmente lindas. Primeiro ouvimos
suas vozes chegarem a nós como o zumbido de um besouro voando. Então
distinguimos pouco a pouco suas bocas, seus olhos e seus ornamentos. É quando
podemos realmente respondê-los imitando-os.[30]
Yaro pëã hwaiwii pëã: a origem das línguas animais
A maioria das “histórias dos primeiros tempos” (hapao tëhëmë thëã) que os antigos
yanomami contam são sobre as vicissitudes finais de uma época em que homens e
animais ainda eram indistintos. É por uma longa série de caprichos,
desentendimentos e transgressões relatados por essas histórias que os primeiros
ancestrais, os Yarori pë[31], perderam sua condição “humanimal” original. Essa
perda, cujas vicissitudes são contadas com um humor muitas vezes exuberante, é, no
entanto, considerada um infortúnio fundamental. O tempo que essas histórias
descrevem é o de uma separação ontológica lamentável entre humanos (predadores)
e animais (comestíveis; de caça)[32]. É, literalmente, o “tempo do mal-devir dos
ancestrais” (në pata pë xi ka wãrirãeni tëhë), o “tempo do devir-caça dos ancestrais” (në
pata pë ka yaroprariyoni tëhë).
Então, uma vez que eles terminaram, começaram a tentar falar suas línguas. Naquela
época a floresta ainda era nova e crua, cheirava muito bem. As pessoas animais se
reuniram em grande número e alguns, que se tornaram araras, começaram a dizer:
“Nós que estamos aqui, nós vamos primeiro experimentar nossas palavras! Mas
como vamos conversar? Não! Não devemos nos perguntar isso! Nós vamos falar
como araras! Vamos nos fazer ouvir da seguinte forma: ããã ã ã ã ã ! “
Notas
[1] Alguns especialistas preveem uma perda de 40% de sua cobertura florestal até
2050; ver Britaldo Silveira Soares-Filho et al., “Modelling Conservation in the
Amazon Basin”, in Nature, vol. 440, n° 7083, 23 mar 2006.
[2] Ver Eduardo Góes Neves, “Arqueologia da Amazônia”, Jorge Zahar Editor, Rio
de Janeiro, 2006 ; coica.org.ec ; Francisco Queixalós et Odile Renault-Lescure (dir.),
As línguas amazônicas hoje, ISA-MPEG, São Paulo, 2000.
[3] Ver William Balée, “Cultural Forests of the Amazon. A Historical Ecology of
People and Their Landscapes”, University of Alabama Press, Tuscaloosa, 2013 ;
Charles R. Clement et al., « The Domestication of Amazonia Before European
Conquest », in Proceedings of the Royal Society B, vol. 282, n° 1812, 7 ago 2015.
[4] Ver Russell Alan Mittermeier et al., “Wilderness and Biodiversity Conservation”,
in Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 100, n° 18, 2 set 2003.
[6] Ver Leslie E. Sponsel, “Amazon Ecology and Adaptation”, in Annual Review of
Anthropology, vol. 15, out 1986.
[7] Ver Kenneth J. Feeley et Miles R. Silman, “Extinction Risks of Amazonian Plant
Species”, in Proceedings of the National Academy of Sciences, vol. 106, n° 30, 28 jul
2009.
[9] Frutos tóxicos tornados comestíveis uma vez cortados em fatias e colocados em
uma sucessão de inúmeras imersões no fluxo de um rio e um longo cozimento em
água fervente.
[10] Uma criação sonora inspirada neste tema (Hẽa, de Stephen Vitiello) foi
apresentada na exposição Yanomami, o espírito da floresta apresentada na Fundação
Cartier de Arte Contemporânea em 2003.
[11] Esta citação de Davi Kopenawa, assim como a maioria das informações
anteriores, vem de uma conversa com Bruce Albert e Stephen Vitiello na Casa
Coletiva de Watoriki em janeiro de 2003.
[12] Os sinais acústicos heã também podem estar associados a eventos de origem
humana (aproximação de feiticeiros,de convidados, guerreiros, visitantes brancos),
bem como à personagens e eventos míticos ou xamânicos. O termo heã se aplica aos
cantos propiciatórios relacionados aos alimentos cerimoniais das grandes festas
reahu.
[13] Assobios simples (soprados ou aspirados) feitos com a ajuda de uma folha
dobrada, os dedos, o estreitamento do lábio inferior ou da bochecha, como também
com as mãos entrelaçadas em concha.
[14] Os Yanomami distinguem animais que podem se “fazer vir à nós por imitação”
(haxamãi) daqueles que “nos contentamos de apenas imitar a voz” (wã uëmãi pio),
como em uma história de caça ou uma história mítica.
[15] Extraído de uma conversa entre Davi Kopenawa, Bruce Albert e Stephen
Vitiello, Watoriki, janeiro de 2003.
[16] Trechos de conversas entre Davi Kopenawa e Bruce Albert, Watoriki, 1997.
[17] Ver Eduardo O. Kohn, “Runa Realism. Upper Amazonian Attitudes to Nature
Knowing”, in Ethnos, vol. 70, n° 2, 2005.
[20] Esses dois exemplos vêm da região do Rio Catrimani e datam da década de
1970. O recente CD Reahu heã. Cantos da festa yanomami, produzido pela associação
yanomami Hutukara, contém cerca de vinte exemplos dessas músicas transcritas e
traduzidas.
[21] Davi Kopenawa e Bruce Albert, La Chute du ciel. Paroles d’un chaman
yanomami, Plon, Paris, 2010, p. 118. As “árvores dos cantos” às vezes também são
chamadas yõrixiama hi ki, “árvores sábia” ou pelo nome xamânico de reã hi ki.
[22] Pó alucinógeno.
[27] Os xamãs são qualificados por “pessoas espirituais” (xapiri thë pë) enquanto a
ação xamãnica se nomeia “agir em espírito” (xapirimuu).
[30] Trecho de uma conversa entre Davi Kopenawa, Bruce Albert et Stephen Vitiello,
Watoriki, janeiro 2003.
[33] A palavra wã (ou ã) significa tanto “ruído”, “canto”, “voz” e “palavra”. O verbo
wã hai pode assim ser genericamente traduzido como “emitir um som” ou, mais
especificamente, “falar”.
[34] O conceito de utupë a (plural utupa pë) refere-se, entre outras coisas, à imagem
corporal de qualquer pessoa humana ou não humana como princípio de identidade
vital. Também se refere à forma ontológica original de tudo que existe no “primeiro
tempo”, forma cujo componente da pessoa em questão é uma espécie de vestígio
interior.
[35] Os xapiri pë retêm a aparência humana dos ancestrais animais de onde vieram,
mas de uma forma infinitesimal. Além disso, cada nome de espírito constitui uma
classe de entidades (espécies) que abrange uma multiplicidade infinita de seres de
imagem idênticos (indivíduos).
[36] Trecho de uma conversa entre Davi Kopenawa e Bruce Albert, Watoriki, 1997.
[37] Sobre este ponto, ver Claude Lévi-Strauss citando Constantin Tastevin sobre os
Kaxinawá na introdução de “La Potière jalouse” (Plon, Paris, 1985, p. 14).
[38] Existem várias versões desse mito em Johannes Wilbert et Karin Simoneau,
“Folk Literature of the Yanomami Indians”, UCLA Latin American Center
Publications, Los Angeles, 1990, p. 229-268. Esta é uma versão gravada em 2003 com
o sogro de Davi Kopenawa. Esta história evoca um tema clássico da mitologia
ameríndia: “L’Origine de la couleur des oiseaux”, in Comme un oiseau, Fondation
Cartier pour l’art contemporain / Gallimard, Paris, 1996. Esta versão tem, no
entanto, a originalidade de tratar da escolha de dialetos animais menos usualmente
destacados.
[42] O autor deseja expressar sua gratidão a Stephen Vitiello (artista) por fornecer
generosamente suas gravações com os Yanomami de 2003. Ele também agradece a
Helder Perri Ferreira (lingüista) e a Mario Cohn-Haft (ornitólogo) por sua paciência
e a precisão de suas respostas a suas perguntas durante a redação deste artigo, bem
como Uirá Garcia (antropólogo) por comunicar sobre seu trabalho em curso sobre a
etno-acústica da caça ao awá-guajá (ver Uirá Garcia, Karawara. “A caça e o mundo
dos Awá-Guajá”, tese de doutoramento, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010,
capítulo 7).
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Publicado por subspeciealteritatis
5 de novembro de 2018
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