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UNIVERSIDADE FEDERAL DO OESTE DO PARÁ

INSTITUTO DE CIÊNCIAS DA SOCIEDADE


INSTITUIÇÕES CONTEMPORÂNEAS DE DIREITO CIVIL IV (DIREITOS REAIS)

Flávio Nicaretta Amorim

A USUCAPIÃO FAMILIAR E SUAS PRINCIPAIS


CARACTERÍSTICAS À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

SANTARÉM/PA
2019
Flávio Nicaretta Amorim

A USUCAPIÃO FAMILIAR E SUAS PRINCIPAIS


CARACTERÍSTICAS À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Artigo completo entregue à disciplina


Instituições Contemporâneas de Direito
Civil IV (Direitos Reais), como requisito
de avaliação parcial, orientado pela
docente Bianca da Silva Medeiros

SANTARÉM/PA
2019
A USUCAPIÃO FAMILIAR E SUAS PRINCIPAIS
CARACTERÍSTICAS À LUZ DO CÓDIGO CIVIL DE 2002

Flávio Nicaretta Amorim1

Resumo: O presente trabalho insere-se sobre o Direito das Coisas e Direito de


Família, especificamente o instituto jurídico usucapião, que é de grande
relevância prática e sendo bastante estudada pela doutrina e jurisprudência.
Porém, a usucapião ganhou novas espécies, tais como usucapião urbana
coletiva e a usucapião familiar sendo esta última o foco do presente trabalho.
Dessa maneira, a problemática que norteou esse exame remete-se a
compreender as principais características da usucapião familiar, seus requisitos
essenciais e sua fundamentação jurídica. Com isso, a hipótese levantada era
que o novo instituto trazia requisitos claros, objetivos e definidos no Código Civil,
proporcionando mais um passo no desenvolvimento no direito social. Assim, o
objetivo principal deste estudo é entender a usucapião familiar à luz do Código
Civil de 2002, por meio das análises doutrinárias, uma vez que ela é uma criação
brasileira e que pode auxiliar milhares de famílias abandonadas pelo seu cônjuge
ou companheiro. De forma específica, também é intento compreender a
ambiência histórica e conceitual do instituto, além de aprofundar na
fundamentação da usucapião familiar. Essa pesquisa de caráter descritivo e
bibliográfico, de cunho qualitativo, insurgiu na análise dos estudiosos do Direito
sobre a usucapião, realçando as divergências, concepções e críticas, a fim de
analisar e debater a nova modalidade de usucapião. Percebe-se, que há muitas
lacunas conceituais que necessitam serem aperfeiçoadas, entretanto, isso não
tira o mérito da usucapião familiar e suas consequências benéficas para as
famílias brasileiras.
Palavras-Chave: Usucapião, Usucapião familiar, abandono do lar.

1
Graduando do curso de Bacharelado em Direito; Universidade Federal do Oeste do Pará; Instituto
de Ciências da Sociedade. Contato: flavio.nicaretta.amorim@gmail.com.

3
1. INTRODUÇÃO

O presente trabalho insere-se na temática do Direito das Coisas e Direito


de Família, retomando o instituto jurídico usucapião, sendo bastante estudado
pela doutrina e jurisprudência, mas que ganhou novas modalidades, como a
usucapião familiar. A usucapião familiar tem recebido especial atenção dos
civilistas porque além de ser muito conectada a vida dos cidadãos em geral, a
usucapião familiar é um instituto novo, que precisa ser amadurecido,
pesquisado, debatido a fim de diminuir as dúvidas em torno dela.

Com base nisso, a problemática que orientou esse artigo remete-se a


compreender as principais características da usucapião familiar, seus requisitos
essenciais e sua fundamentação jurídica.

A hipótese levantada remetia-se a se o novo instituto possuía requisitos


claros, objetivos e definidos no Código Civil, proporcionando mais um passo no
desenvolvimento no direito social. Percebe-se, no estudo da usucapião, um
conglomerado de institutos dos direitos processual civil, civil, constitucional etc.,
sendo que o enfoque desse exame recai sobre o Direito Civil, especificamente
sobre o Direitos das Coisas.

Além disso, este exame intenta em compreender a usucapião familiar à


luz do Código Civil de 2002, por meio de análises doutrinárias, uma vez que ela
é uma criação brasileira e que pode auxiliar milhares de famílias “abandonas”
por um de seus cônjuges ou companheiros.

Com base no objetivo deste trabalho, pretendeu-se realizar uma


pesquisa documental e bibliográfica, de caráter descritivo, tendo em vista que o
objeto deste estudo requer múltiplas fontes de informações, tais como artigos
científicos, livros, documentos oficiais, enunciados, discutindo o tema proposto,
não perdendo de vista a delimitação do objeto do estudo e o problema relatado.

Diante disso, o trabalho terá a seguinte linha de leitura: no primeiro


tópico, Conceito e Histórico da Usucapião, será discutido as definições
conceituais da usucapião. Também, far-se-á uma breve análise histórica e
evolutiva do instituto privado, a partir do Direito Romano; em seguida, no tópico

4
Usucapião Familiar, tentaremos compreender a fundo o novel instituto, além de
trazer as críticas (positivas e negativas) dos estudiosos, as divergências
doutrinárias e os elementos essenciais que caracterizam a usucapião familiar. E,
por fim, serão tecidas, no tópico Considerações Finais, a visão do autor sobre a
Usucapião Familiar.

2. CONCEITO E HISTÓRICO DA USUCAPIÃO

O termo usucapião tem origem latina da palavra usucapere, que dá


origem à expressão usucapio. Segundo Dias (2010), o termo usucapere é a
junção dos termos usus e capere. Usus era sinônimo de possessio, traduzida
por posse. Capere, por sua vez, queria dizer adquirir. Logo, antigamente, a
usucapião era definida, simplesmente, como a aquisição pelo uso, pela posse.

Com isso, a usucapião é um meio de adquirir a propriedade pela posse


prolongada da coisa, sob critérios definidos legalmente. Pereira (2004, p. 138)
conceitua usucapião como sendo a “aquisição da propriedade ou outro direito
real pelo decurso do tempo estabelecido e com a observância dos requisitos
instituídos em lei”.

Além disso, Tartuce (2017) lembra que a usucapião promove a


estabilidade da propriedade, estipulando um prazo que, quando ultrapassar, não
poderá mais levantar dúvidas a respeito de quaisquer vícios do título de posse.

Porém, há discordância doutrinária quanto a usucapião ser um modo


originário ou derivado da aquisição da propriedade. Orlando Gomes aduz que:

Inclui-se entre os modos originários. É que, a despeito de acarretar a


extinção do direito de propriedade do antigo titular, não se estabelece
qualquer vínculo entre ele e o possuidor que p adquire. Há, no entanto,
quem a considere modo derivado, sob o fundamento de que não se fez
nascer um direito novo, substituindo os direitos que o antigo titular
havia constituído sobre o bem, antes de ser usucapido (GOMES, 2010,
p.180)

Por outro lado, Maria Helena Diniz (2010) defende que a usucapião é um
modo originário de aquisição da propriedade, porque ela não deriva de nenhuma
relação antecedente, sendo assim, um direito novo, autônomo.

5
Quanto à grafia, segundo Sidou (1977), a palavra usucapião é do gênero
feminino, e não masculino como constava no CC/1916. Já o Código Civil de
2002, o Estatuto da Cidade e a Lei da Usucapião Agrária utilizam o gênero
feminino para expressar o termo.

No que diz respeito ao aspecto histórico, ainda há divergências sobre o


surgimento do instituto. Há doutrinadores que defendem sua gênese na Grécia,
outros mencionam os hebreus. Porém, a maioria dos estudiosos remontam a
Roma Antiga o berço da usucapião.

Um desses doutrinadores é Ferreira (1977) recordando as


características da usucapião encontradas na Lei das XII Tábuas, mais
precisamente a Tábua VI, nos anos 300 a.C. Além dele, Nunes (1977) reforça a
origem romana da usucapião, explicando que a Tábua VI prescrevia os seguintes
dizeres: usus autocritas fundi biennium esto coeterarum rerum annus,
significando: “adquire-se a propriedade do solo pela posse de dois anos, e das
outras coisas pela posse de um ano”.

Desta forma, havia uma estipulação de tempo (prescrição) do direito da


propriedade na hipótese do proprietário não praticar a posse, dando um período
de um ano para os bens móveis e dois anos para os bens imóveis. Logo,
percebem-se algumas características essenciais do instituto estudado.

Além disso, o escritor Neguete (1954, p.14) esmiúça a descrição romana


citada acima, explicando que a expressão usus significava posse e auctoritas a
proteção legal. Juntando as duas expressões, teriam o mesmo significado do
termo usucapio, posteriormente criada pelo Direito Romano.

Já Oliveira (1896) entende que a usucapião nasce na Grécia, sendo


mencionada no livro a República, de Platão. Neguete (1977) discorda dos
autores acima, defendendo que o instituto surgiu com os Hebreus:

[...] pois que no Livro dos Juízes, Cap.11, versículo 26, se encontra que
Jefte o alegara em favor dos hebreus, contra os amonitas, por haverem
aqueles, habitado o país de Hesebon e suas cidades, por mais de
duzentos anos, sem qualquer oposição. [...] Entre os romanos, por sua
vez, remontam ela a épocas antiguíssimas. [...] Era, em linhas gerais,
um modo de adquirir, pela posse a título de proprietário e de boa fé,

6
prolongada sem interrupção pelo tempo legal, não só a propriedade,
mas as servidões, a enfiteuse e a superfície, além de, na época
clássica, o direito de hereditariedade e a manus [...]. (NEGUETE, 1977,
P.155)

Porém, a usucapião se desenvolve na Roma Antiga. O instituto tinha


como propósito minimizar os problemas sociais da época, defendendo a
propriedade e a posse das terras italianas, que vinham crescendo
exponencialmente por meio de conquistas do Império Romano.

Cordeiro (2011) explica que o direito à usucapião na Lei das XII Tábuas,
exigia alguns requisitos, a saber: temporalidade (dois anos para bens móveis, e
um ano para bens móveis); coisa idônea, posse continuada, justo título ou justa
coisa e boa-fé.

É importante salientar que a Lei das XII Tábuas era aplicável somente
aos romanos, ou seja, a usucapião era restritiva, não tendo esse direito os
estrangeiros, chamados também de peregrinos. Dias (2010) esclarece que

a usucapião ficou tão restrita aos cidadãos romanos, conhecidos como


quirites, dando-se origem à seguinte expressão: usucapio est modus
acquirendi dominium iuris Quiritium, que sintetizava o contexto a que a
usucapião estava inserida. DIAS (2010, p.12)

Posteriormente, no Período Clássico, devido às conquistas territoriais e


aumento dos estrangeiros em terras romanas, as relações sociais ficaram mais
complexas, demandando a melhoria do ordenamento jurídico. Uma delas foi a
ampliação do direito de usucapião aos peregrinos, denominado praescriptio longi
temporis.

Sidou (1977) explica que a praescriptio longi temporis era um modo


derivado de aquisição da propriedade, ou seja, não era um instrumento hábil
para se adquirir a propriedade, mas uma forma de defesa contra alguém que
reivindicasse ser o proprietário. Além disso, o tempo era mais longo: dez anos
entre presentes e vinte entre ausentes.

No Período Pós-Clássico, houve grandes mudanças sobre o instituto


usucapião. O Direito Romano passou a aceitar outra forma de assegurar a posse

7
sem criar uma nova forma de aquisição de propriedade, denominada de exceptio
(exceção), a qual se caracterizava pela defesa do titular da posse contra
quaisquer reivindicações do proprietário.

Conforme Araújo (2013), o prazo para alegar a exceptio era de 10 anos


para os presentes e 20 anos para os ausentes. Além disso, o mesmo autor
lembrou que Justiniano fundiu o instituto usucapio e da longi temporis praecriptio,
dando ensejo a mais uma evolução do direito de usucapião, proporcionando
dupla característica ao instituto: modo de aquisição e de extinção de
propriedade.

Cordeiro (2011) ratifica que essa nova espécie de usucapião promoveu


novos prazos, a saber: três anos para as coisas móveis, 10 anos, entre
presentes; e 20 anos, entre ausentes, para imóveis. Além disso, essa inovação
no instituto foi denominada de “extraordinária”, a fim de diferenciá-la da anterior,
chamada de “ordinária”.

Assim, o instituto da usucapião foi criado para solucionar conflitos sociais


sobre a propriedade e a posse. Ela está ligada ao Direito Romano, por meio da
Lei das XII Tábuas além de suas evoluções que foram sendo adaptadas ao longo
do crescimento territorial e populacional do Império Romano.

Desta forma, o instituto ganhou “corpo”, sendo multiplicado no direito


ocidental, como no Código de Napoleão, que foi o primeiro a reproduzi-lo. No
Brasil, o instituto, além de possuir os mesmos contornos do Direito Romano, tem
a mesma finalidade que o Império Romano: diminuir as dúvidas quanto ao titular
do bem móvel ou imóvel.

Consoante Rivaldo Jesus (2014), o Brasil, no Código Civil de 1916,


recebeu a simples classificação: Usucapião Ordinária e Usucapião
Extraordinária. Porém, outras formas especiais de usucapião foram surgindo, em
razão da evolução social e econômica do país. O autor continua explicando que
em 1850, no Regime Imperial, o país criou uma nova forma de Usucapião,
chamada de Lei das Terras, possibilitando a prescrição aquisitiva em terras
públicas. Araújo (2013) detalha que essa modalidade é a mais antiga usucapião
pro labore no direito brasileiro.

8
Em 1934, no período Republicano, a usucapião ganhou status
constitucional, encontrada no seu artigo 125. Posteriormente, a Constituição de
1937 manteve o status constitucional da usucapião, reproduzindo o mesmo
dispositivo da Carta Magna antecedente. Já a Constituição de 1946 estendeu a
usucapião para os estrangeiros, substituindo a redação “a todo brasileiro” para
“todo aquele que”, ampliando o direito a qualquer pessoa, tanto nacional quanto
estrangeira.

Já a Constituição de 1967 e a Emenda Constitucional de 1969 não


previram a usucapião, deixando-a para ser legislada pelas normas
infraconstitucionais. Desta maneira, Rivaldo Jesus (2014) lembra que o Estatuto
da Terra (Lei nº 4.504, de 30 de novembro de 1964), foi normatizado
apresentando requisitos diferentes para a aquisição da usucapião Pro Labore.

O Estatuto mencionado trouxe a possibilidade de usucapir terras


públicas federais, estabelecendo que todo trabalhador agrícola que tivesse
ocupado, por um ano, terras devolutas, teria preferência para aquisição de um
lote da dimensão do módulo de propriedade rural estabelecido pela região.

Araújo (2013) não concorda com a possibilidade de usucapião de terras


públicas, fundamentando na inalienabilidade dos bens públicos estabelecidos
nos artigos 66 e 67 do Código Civil de 1916. A polêmica foi resolvida com a
Constituição Federal de 1988, em seu artigo 191 que veda qualquer espécie de
usucapião de bens públicos.

O mesmo autor lembra que antes do Código Civil de 1916 (CC/1916) o


Brasil adotava três modalidades de usucapião, a saber: a prescrição ordinária,
que se efetivava em 3, 10 ou 20 anos; a prescrição extraordinária, normatizando
30 e 40 anos; e a prescrição imemorial, compreendida como uma presunção de
aquisição, e não um forma particular de aquisição.

Porém, o CC/1916 normatizou duas formas de usucapião: a ordinária e


a extraordinária, nos artigos 618 e 550, respectivamente para bens móveis e
imóveis, abolindo a prescrição imemorial. Segundo Araújo (2013, p. 76), a
prescrição imemorial foi substituída pela prescrição extraordinária, com novos
prazos, a saber: 10 anos para bens móveis e 30 anos para bens imóveis. Já a

9
prescrição ordinária previa 03 anos para os bens móveis e para bens imóveis,
10 anos presentes ou 20 anos entre ausentes.

Além disso, Neguete (1977) explica sobre os cinco requisitos essenciais


para caracterizar a prescrição ordinária: 1) posse contínua, pacífica, pública e
ininterrupta; 2) temporalidade; 3) coisa hábil; 4) justo título; 5) boa-fé. Já a
prescrição extraordinária renunciava o justo título, exigindo somente quatro
requisitos.

O Código Civil de 2002 (CC/02) trouxe uma nova maneira de encarar a


propriedade, dando ênfase na sociedade, na coletividade e na função social da
propriedade. Isso é comprovado em seu artigo 1.228 que, além da preocupação
com a função social da propriedade, prescreve o cuidado com o meio ambiente

Art. 1.228. O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da


coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente
a possua ou detenha.

§ 1o O direito de propriedade deve ser exercido em consonância com


as suas finalidades econômicas e sociais e de modo que sejam
preservados, de conformidade com o estabelecido em lei especial, a
flora, a fauna, as belezas naturais, o equilíbrio ecológico e o patrimônio
histórico e artístico, bem como evitada a poluição do ar e das águas. 2]

O CC/02 preservou as formas tradicionais de usucapião, como:


ordinária, extraordinária. A ordinária possui como requisitos a posse, o justo título
e a boa-fé, com o objetivo de proteger quem supostamente adquiriu a
propriedade. Ademais, a posse necessita ser pacífica, ininterrupta e o possuidor
tem que estar com a intenção de ser o dono.

O artigo que regulamenta a usucapião ordinária é o artigo 1.242, tendo


como lapso temporal de 10 anos, contínuos e incontestadamente, com justo
título e boa-fé. O parágrafo único tipifica um prazo de 05 anos, caso o imóvel

2
BRASIL, República Federativa do. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acessado: 03 de jan. de
2019

10
tenha sido adquirido onerosamente, baseado em certidão de registro
presumivelmente correta, registrada em cartório, mas cancelada posteriormente.
Segundo Fiuza (2010), a usucapião extraordinária possui como requisitos a
posse ad usucapionem e o prazo de 15 anos. O prazo pode ser reduzido para
10 anos, se o possuidor houver se instalado no imóvel, de maneira habitual, ou
tiver feito obras ou serviços de caráter produtivo.

Além disso, o Código Civil de 2002 manteve outras formas de usucapião,


denominadas de especiais, uma rural e outra urbana, com prazo de 05 anos de
posse ininterrupta. Ademais, por meio das mudanças sociais, econômicas, o
processo de urbanização, o foco no meio ambiente, na sustentabilidade e na
sociedade, o ordenamento jurídico brasileiro criou novas hipóteses de
usucapião, tais como a usucapião urbana coletiva e a usucapião familiar, este
último será o tema do artigo.

3. USUCAPIÃO FAMILIAR

A usucapião constitucional (ou especial urbana) está tipificada no artigo


183 da Constituição Federal:

Aquele que possuir como sua área urbana de até duzentos e


cinquenta metros quadrados, por cinco anos, ininterruptamente e
sem oposição, utilizando-a para sua moradia ou de sua família,
adquirir-lhe-á o domínio, desde que não seja proprietário de outro
imóvel urbano ou rural.3

A norma constitucional foi reproduzida no artigo 1.240 do CC/2002. Em


16 de junho de 2011, a Lei 12.424 incluiu no ordenamento jurídico brasileiro uma
nova modalidade de usucapião especial urbana, sendo denominada de
usucapião familiar, inserido no Código Civil, no artigo 1.240-A:

Art. 1.240-A. Aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente


e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano
de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja
propriedade dívida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que

3
BRASIL, República Federativa do Brasil. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988. Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acessado:
06 de jan de 2019.

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abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família,
adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de
outro imóvel urbano ou rural. (Incluído pela Lei nº 12.424, de 2011)

§1º O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo


possuidor mais de uma vez.4

O instituto prevê a metragem de até 250 m 2, a mesma normatizada no


artigo 1.240 do CC/2002, mostrando que o legislador procurou manter uma
uniformidade. Segundo Tartuce (2017, p.209), a inovação da usucapião familiar
foi diminuir o prazo para dois anos, “o que faz com que a nova categoria seja
aquela com menor prazo previsto, entre todas as modalidades de usucapião”.

Consoante Donizetti e Quintella (2013), a Lei 12.424 (que instituiu a nova


modalidade de usucapião) teve como objetivo alterar a Lei 11.977/2009, a qual
normatiza o Programa Minha Casa, Minha Vida. Além disso, os autores
lembraram que a usucapião familiar apresenta requisitos bastante peculiares,
como o abandono do lar, no sentido objetivo e subjetivo.

Assim, além dos requisitos tradicionais - posse mansa, pacífica e


ininterrupta, durante um lapso temporal -, a usucapião familiar exige o abandono
do lar. Conforme Tartuce (2017), o abandono do lar é o fator primordial para a
consunção da norma, agregado ao estabelecimento da moradia direta. Com
isso, não basta a posse incontestada e ininterrupta, é preciso que ela seja direta.
O mesmo autor alerta que pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive
homoafetivos. Nesse sentido, foi aprovado na V Jornada de Direito Civil o
enunciado nº 500, a saber: “A modalidade de usucapião, prevista no art. 1.240-
A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas
as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas”5.

Isto posto, o abandono do lar representa duas nuances: o fato do


cônjuge ou companheiro não estar mais residindo no domicílio (elemento
objetivo); e o ânimo de abandonar o outrem (elemento subjetivo). Desta forma,

4
BRASIL, República Federativa do. Lei n.º 10.406, de 10 de janeiro de 2002. Código Civil.
Disponível em:< http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/l10406.htm>. Acessado: 06 de jan. de
2019
5
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciados. Disponível em:<
https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/569>. Acessado: 07 de jan de 2019.

12
por exemplo, se um dos cônjuges estiver preso, não caracterizará abandono do
lar, pois falta o elemento subjetivo. Logo, o abandono do lar é o elemento
essencial para configurar essa modalidade de usucapião, pois o mero
desaparecimento, ausência, sem a vontade do abandono, não qualificará a
usucapião familiar (DONIZETT E QUINTELLA, 2013).

O Enunciado n.º 595, da VII Jornada de Direito Civil tem o objetivo de


clarificar a interpretação do requisito “abandono do lar”, transcrito assim:

O requisito 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto


da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel
somado à ausência da tutela da família, não importando em
averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável.
Revogado o Enunciado 499.6

No entanto, o abandono do lar ainda possui muitas divergências


doutrinárias. Silva (2013) considera esse elemento como uma sanção civil pelo
descumprimento dos deveres do casamento e da união estável, pois quando a
pessoa abandona o lar, sem motivo justo, fica sujeito à perda do direito da
propriedade. Dessa maneira, o artigo 1.240-A representa uma proteção ao
cônjuge inocente e punição ao culpado pelo desrespeito aos deveres familiares.

Por outro lado, Gonçalves (2013) não concorda com o posicionamento


sancionatório e defende que a usucapião familiar reabre a discussão sobre as
causas do abandono do lar, pois além de ser voluntário, há que ser culposo.
Dessa maneira, caso a dissolução do casamento, por um dos cônjuges, for por
determinação judicial - como, por exemplo, fundamentada na Lei Maria da Penha
(Lei n.º 11.340/2006) -, não estará configurado o abandono do lar voluntário
(elemento subjetivo), e, consequentemente, não justificaria o pedido de
usucapião familiar. Além disso, Tartuce (2017, p.210) lembra que não se pode
aplicar a usucapião familiar “nos casos de atos de violência praticados por um
cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a
expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono.”

6
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciados. Disponível em:<
https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/853>. Acessado: 07 de jan de 2019.

13
Outro enunciado importante aprovado na V Jornada demonstra que não
é requisito obrigatório o divórcio ou a dissolução da união estável para configurar
a usucapião familiar, bastando a mera separação de fato. Assim, as expressões
‘ex-cônjuge’ e ‘ex-companheiro’, contidas no art. 1.240-A do Código Civil,
“correspondem à situação fática da separação, independentemente de
divórcio”7.Desta maneira, o abandono do lar necessita de uma interpretação
cautelosa e objetiva.

Dessarte, percebe-se que a usucapião familiar precisa de mais


amadurecimento no ordenamento jurídico brasileiro, pois ela se destaca das
outras modalidades tradicionais de usucapião, podendo gerar efeitos contrários
aos seus objetivos e, consequentemente, produzir insegurança jurídica.

Sobre a questão da prescrição extintiva é importante esclarecer qual o


prazo para a aplicabilidade da lei. Consoante Gonçalves (2012), o prazo
começaria a viger a partir da decretação do divórcio ou da dissolução da união
estável. Jatahy (2013) concorda com Gonçalves, ratificando sobre a
necessidade da dissolução do casamento:

Tal interpretação, contudo, levaria a uma discriminação entre o


casamento e a união estável, já que esta pode ser dissolvida de fato,
sem necessidade de decreto judicial. Assim, enquanto o ex-
companheiro computaria o início do prazo prescricional logo após o
abandono do lar por parte do outro convivente, ao ex-cônjuge seria
necessário, primeiramente, ajuizar ação de divórcio. A solução mais
justa é exigir o decreto do divórcio para configurar a situação de ex-
cônjuge e afastar a comunhão sobre o bem. Porém, o início do prazo
prescricional pode ser computado a partir do abandono do lar pelo
cônjuge. (JATAHY, 2013, p.90)

Tartuce (2017) esclarece que o prazo para o exercício desse novo direito
só pode começar, para os interessados, a partir da vigência da lei, não podendo
retroagir. A fundamentação está no Enunciado n.º 498, aprovado na V Jornada
de Direito Civil, a saber: “A fluência do prazo de 2 (dois) anos previsto pelo art.

7
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciados. Disponível
em:<https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/570>. Acessado: 07 de jan de 2019.

14
1.240-A para a nova modalidade de usucapião nele contemplada tem início com
a entrada em vigor da Lei n. 12.424/2011”8.

Ademais, é importante relatar que a nova modalidade determina que o


imóvel só pode ser usado para fins de moradia, não podendo ter outra finalidade,
caso a pessoa queira se beneficiar da usucapião.

Outro ponto polêmico é que o artigo 1.240-A não menciona os imóveis


rurais, ferindo, para alguns doutrinadores, o princípio da isonomia, pois os efeitos
do abandono do lar são os mesmos, independentemente da localização do
imóvel. Silva (2013) ressaltou que a regulamentação poderá provocar sérias
consequências, pois a restrição para o imóvel urbano, não contemplaria uma
grande parcela da sociedade que coabita na zona rural. Além do mais, nessas
áreas o imóvel, na maioria das vezes, é superior a 250 m2.

Mesmo assim, o artigo 1.240-A trouxe importante inovação para o


ordenamento jurídico brasileiro, fortalecendo a função social da propriedade e
dando luz aos direitos fundamentais, tais como: dignidade da pessoa humana,
solidariedade e igualdade. Ademais, o Código Civil reduziu o prazo para o
reconhecimento do domínio da propriedade pela usucapião familiar. Logo, essa
nova modalidade permite a aquisição do imóvel, por meio de ação de usucapião,
desde que comprovado o abandono do núcleo familiar por alguns dos cônjuges
ou companheiros.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos fatos, percebe-se que a concepção de família não está mais
moldada no aspecto patriarcal e hierarquizado, mas sim compreendida como
ente cooperativo, fraterno e de auxílio mútuo entre os membros. Com isso, a
família é um ambiente de desenvolvimento da personalidade dos envolvidos e
de efetivação dos direitos fundamentais, os quais ajudam a propiciar novos
instrumentos para a tutela patrimonial do instituto familiar como a usucapião
familiar.

8
CONSELHO DA JUSTIÇA FEDERAL. Enunciados. Disponível em:<
https://www.cjf.jus.br/enunciados/enunciado/567>. Acessado: 07 de jan de 2019.

15
Desta forma, o foco do Código Civil de 2002 não está mais no direito de
propriedade e de patrimônio, mas sim na realização dos direitos fundamentais,
promovendo o desenvolvimento da personalidade dos atores que compõem a
família. Logo, a usucapião familiar integra a promoção dos direitos fundamentais,
tutelando o patrimônio familiar: a moradia que é direito social protegido
constitucionalmente e em favor da pessoa que permaneceu na residência,
atendendo os fins sociais e ao bem comum.

A usucapião familiar, assim, é a comprovação do diálogo entre o Direito


Privado e o Direito Público, mais especificamente entre o Direito Civil e o Direito
Constitucional, pois ela está fundamentada no princípio da dignidade da pessoa
humana e no da solidariedade, ambos pilares da Constituição da República de
1988.

Também, a igualdade e equidade entre o homem e a mulher estão


inseridos na incidência da nova usucapião, respeitando o artigo 226 da Carta
Magna. É importante salientar que a igualdade não se resume à formal, mas
também a igualdade material, dando tratamento isonômico às partes. Assim,
esses princípios refletem fortemente nas relações familiares e em seus direitos,
alterando substancialmente o modo de proteção patrimonial familiar, permitindo,
por meio da usucapião familiar, que um dos cônjuges ou companheiro adquira a
quota da parte do imóvel da outra parte que abandonou o lar.

A nova modalidade, como foi dito no artigo, é criação brasileira, tendo


como principal objetivo resolver o problema patrimonial do casal que se separa.
Percebe-se que esse instituto integra Direito das Coisas e de Família,
provocando divergências e críticas positivas e negativas por parte dos
operadores do Direito. Mesmo assim, a maioria entende que há lacunas
conceituais que necessitam serem observadas.

Algumas polêmicas foram apontadas no referido trabalho as quais se


remetem à necessidade de clareza na conceituação de elementos essenciais e
decisivos para definir a usucapião familiar, a saber: o abandono do lar, o
elemento culpa, o prazo de dois anos, o pré-requisito de até 250 m2, além de
não integrar os imóveis rurais no instituto novel. Com isso, é mister adicionar

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artigos que definam e detalham os requisitos essenciais da usucapião familiar,
como por exemplo, o que seria o abandono do lar; qualificar os imóveis que
podem ser atingidos pelo instituto, evitando a generalização e a desmoralização
da usucapião familiar; adicionar os imóveis rurais, amparando grande parte das
famílias brasileiras que moram em zonas rurais.

Por fim, o trabalho tentou não exaurir a discussão sobre a usucapião


familiar, mas sim entender como poderia ocorrer na prática e, também, provocar
a reflexão e servir de mais um instrumento de debate sobre essa nova
modalidade de usucapião.

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